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Buscando abrigo contra uma tempestade de inverno, um
homem é forçado a enfrentar um evento trágico em seu
passado.

O capitão Aldous Northcott acredita-se amaldiçoado por


um voto tolo feito na infância. A tragédia que se seguiu o
mudou para sempre, e ele carrega um fardo secreto de
vergonha e arrependimento desde então. Isto é, até a noite em
que se encontra preso nas charnecas de Yorkshire, no meio de
uma violenta tempestade de neve.
À beira do colapso, ele é forçado a buscar abrigo em
Highfield Hall - o mesmo lugar onde a tragédia aconteceu
tantos anos antes. Ele se prepara para enfrentar o passado,
apenas para se deparar com uma revelação chocante, que lhe
permite reavaliar sua vida. Ele até ousa esperar a felicidade
que nunca pensou ter. Mas primeiro, ele deve encontrar a
coragem de desafogar sua alma para a pessoa que ele nunca
esqueceu.

A única pessoa que pode lhe dar a felicidade que ele


busca.
Hospital de Campo Allied, Ferme de Mont St
Jean,1

Waterloo, Bélgica

Segunda-feira, 19 de junho de 1815 d.C.

— EMBORA MEU PROGNÓSTICO possa ser um


pouco preocupante, capitão Northcott, você pode se
considerar de outra maneira feliz e com sorte. — O médico
deu um sorriso sóbrio para Aldous. — Cinco centímetros abaixo
ou uma fração mais profunda e o resultado teria sido muito pior.

Aldous permaneceu calado enquanto refletia sobre o prognóstico


do médico. Seu coração batia forte nos ouvidos.

Sorte?

Na verdade, ele não podia discordar. Quando comparado com o


preço que tantos outros pagaram, ele admitia que tinha sido
extremamente afortunado.

A vitória de Wellington em Waterloo tive um custo incalculável. A


perda de vidas de ambos os lados foi terrível, muitos dos
sobreviventes sofrendo ferimentos catastróficos que ainda os
acabariam mesmo vivos. Aldous não
precisou ser informado de que o hospital
no campo estava completamente
sobrecarregado. Os sons do sofrimento
humano haviam se tornado um ruído
permanente de fundo, e o fedor nauseante da
batalha pairava no ar como uma névoa
rançosa, tão espessa que ele quase podia sentir o
gosto.

A lembrança da batalha pessoal de Aldous


era um pequeno fragmento da arma que havia
ferido seu abdômen inferior. Ele apertou as
mandíbulas em uma tira de couro grosso enquanto o
ferimento havia sido costurado e enfaixado, sua
cabeça ressoando com um grito silencioso. Mas nenhum
som escapou de seus lábios.

O médico colocou um copo pequeno na boca de Aldous.

— Isso vai ajudar com a dor.

Ele estremeceu quando o láudano de sabor amargo assaltou sua


língua.

— Obrigado, — Aldous murmurou, tentando lembrar o nome do


médico. Ele havia fornecido um?

A exaustão sombreava o rosto não barbeado do médico e o suor


brilhava em sua testa, acrescentando um brilho à sujeira que enchia
os sulcos entre os olhos. No entanto, apesar da carnificina que ele,
sem dúvida, testemunhou, o homem exibia uma expressão reservada,
quase passiva, um contraste direto com o sangue violento que cobria
seu avental branco. Ele parecia ter
acabado de matar um rebanho de gado,
embora as manchas, é claro, fossem
inteiramente de sangue de humanos.
Aldous se perguntou vagamente quando o
homem dormira pela última vez.

— Eu também devo avisá-lo, capitão, que


as coisas ainda podem se deteriorar. — O médico
colocou a garrafa de láudano em sua bolsa de couro
surrada. — As feridas intestinais são
notoriamente imprevisíveis, então você não está a
salvo ainda. — A bolsa se fechou como se estivesse em
afirmação.

Aldous respirou fundo.

— Compreendo.

O homem resmungou.

— Sem movimentos bruscos, — disse ele, levantando a aba da


tenda para sair. — Eu ou outra pessoa o medicaremos mais tarde.
Enquanto isso, tente dormir um pouco.

A aba se fechou e Aldous fechou os olhos. Sua dor, embora


dura, ele poderia suportar. Era o prognóstico do médico a parte — um
tanto preocupante — que gelou seu sangue.

Pois havia levantado um fantasma da infância do seu túmulo.

Será que um voto feito dezessete anos antes havia retornado


para assombrá-lo? Ele nem tinha dito as malditas palavras em voz
alta, embora outras coisas tivessem sido ditas na época, coisas das
quais se arrependia desde então. Quanto
ao resto, ele mal pensara nelas em um
momento de irritação infantil. Mas e se
simplesmente pensar nas palavras de anos
atrás o tivesse amaldiçoado de alguma
maneira? O preenchimento de uma nota
promissória, com pagamento devido em um
tempo predeterminado no futuro. Se as suspeitas do
médico tiverem mérito, talvez tivesse chegado a hora
e a dívida seria exigida.

— Que diabos, Aldous, — ele murmurou, o


som de sua voz o surpreendendo. A observação havia
se espalhado sem ser solicitada, como se fosse dita
por uma entidade separada.

Abrindo os olhos, ele sorriu a sua tolice e permitiu


que seus pensamentos sombrios afundassem sob uma
crescente sensação de euforia. Ele reconhecia a causa e a acolheu. O
gosto amargo do láudano desmentia o prazer de seus efeitos
subsequentes.

Não, ele disse a si mesmo, em um momento de negligência na


infância e que não tinha nada a ver com esse ferimento ou com as
possíveis consequências dele. Era ridículo sugerir uma conexão entre
um e outro.

Simplificando, ele foi vítima de uma maldita luta sangrenta entre


nações que vinha ocorrendo há anos, culminando em uma batalha
final e infernal. Ele lutou e sobreviveu, membros intactos e ainda
capaz de ver e ouvir. Não era uma
maldição, por Deus, mas uma bênção.

Felizmente.

Ele soltou um suspiro e se deslizou


mais fundo em um agradável fluxo de
tranquilidade que permitiu que seus
pensamentos vagassem sem medo no passado.
Seu cérebro conjurou uma janela na parede da
tenda, e ele olhou maravilhado do outro lado da
charneca, uma visão que ele havia testemunhado
pela última vez quase dezessete anos antes.
Parecia inalterado. A luz do sol se derramava sobre um
tapete roxo de urze que se estendia até o horizonte
distante, e um aroma delicado de flores carregava
uma brisa fresca, apagando o cheiro da morte. Aldous
encheu seus pulmões com a ilusão e olhou em volta.

Ao longe, o carvalho solitário ficava ao lado da torre de pedra por


séculos, duas placas antigas apontando o caminho para Highfield.
Um instante depois, ele se viu embaixo da grande árvore e olhando
para a folhagem.

— Julian? Onde você está?

Mas Julian não respondeu.

De algum lugar próximo, um homem gritou. Um grito agonizante


que fez a visão de Aldous ondular e desaparecer. O perfume das flores
mudou para o cheiro da guerra e ameaçou levá-lo de volta ao
hospital.
— Não, — disse ele, ainda não
estava disposto a voltar para aquele
lugar. — Pare com isso. Agora.

Os gritos pararam, as ondulações


cessaram e Aldous espiou a poderosa
árvore mais uma vez.

— Julian?

Ainda sem resposta. Em vez disso, outro som


flutuou pela terra, um fraco grito de choro. O de
uma criança recém-nascida. Aldous estremeceu e
pressionou as mãos sobre os ouvidos, mas o som
persistiu. Veio de uma posição distante de árvores.
Veio de Highfield.

O remorso empurrou lágrimas nos olhos de Aldous.


Um sentimento familiar de vergonha que ameaçava, e ele
olhou loucamente dos lados, procurando escapar.

— Sinto muito pelo que eu disse. Eu não quis dizer isso. Eu não
sabia. Por favor me perdoe.

Uma porta apareceu diante dele e se abriu, oferecendo refúgio


nas trevas que estavam além. Ele deu um suspiro de alívio e, sem
olhar para trás, passou pelo limiar e entrou em um silêncio
abençoado.
Dezessete anos antes

Northcott Manor, Yorkshire

Quarta-feira, 12 de setembro de 1798 d.C.

— TOME CUIDADO, jovem mestre. — O Sr.


Hattersley olhou para o céu e depois olhou para
Aldous por baixo de um boné pontudo. — Podemos
ter tido alguns bons dias, mas há partes de uma charneca
que nunca secam, por isso não deixe de seguir os caminhos
certos. — Ele deu um tapinha no pescoço do pônei. — Você não
gostaria que esse camarada ficasse preso em um pântano. E não se
esqueça de voltar antes do anoitecer.

Aldous pegou as rédeas de Cometa e acenou com a cabeça para


o capitão do estábulo. Hattersley.

Ele cutucou a barriga de Cometa com os calcanhares e trotou


para fora do pátio de paralelepípedos até uma alameda esburacada
cercada por sebes altas. Excitação vibrava em seu estômago,
contrariada por uma sensação mais suave de arrependimento. Suas
três semanas de estadia nessas terras selvagens do Norte quase
chegara ao fim. Daqui a dois dias, na sexta-feira de manhã, ele
voltaria para a casa de seu pai em
Londres e dali para um internato em
Essex.

— Mais dois dias — ele resmungou


quando Cometa trotou pela beira da grama
que corria pelo centro da pista. Ele olhou para
o céu. — Por favor, não chova até depois que eu
for embora.

Pouco tempo depois, ele chegou à abertura


familiar na cerca e conduziu Cometa pelo caminho
estreito de terra mais além. Enquanto a terra se
erguia do vale, Aldous se inclinou para a frente e
manteve o pônei em ritmo constante. No topo da
colina, ele se aproximou e observou os arredores, seu
jovem coração disparado como uma criatura cativa a solta.

A charneca varrida pelo vento estava diante dele em


ondas de urze púrpura e grama fina, ondulando e rolando como um
vasto oceano estacionário. A desolação o emocionou. Não havia
multidões, meios de transporte, calçamento de lama ou calhas
fedorentas. E nenhuma das propriedades rurais de seu pai jamais
despertara seu espírito da mesma maneira.

Segundo sua mãe, Aldous já havia visitado a propriedade de


Yorkshire do tio Percival uma vez. Não tendo exatamente um ano de
idade na época, ele não se lembrava disso. Mas ele jurou que não
esqueceria essa visita. Nunca. Se tivesse escolha, ficaria aqui para
sempre e anunciara isso na noite anterior na sala azul.
— Supondo que eu ainda esteja na
terra de Deus, você pode voltar no próximo
ano. — Tio Percival piscou e bagunçou os
cabelos de Aldous. — Se seu pai permitir, é
claro.

Aldous olhou para o pai, cujo nariz havia


sido enterrado em algum tipo de livro.

— Pai?

— Vou considerar, — veio a resposta sem


compromisso, acompanhada de uma leve carranca.
Aldous deu um suspiro e não disse nada. Ele sabia
que não devia incomodar seu pai.

Por enquanto, ele decidiu aproveitar o pouco


tempo que lhe restava. Ele já sabia para onde iria naquele
dia. Ele havia decidido no dia anterior, tendo visto um
marco intrigante no horizonte distante. Parecia estar um pouco
mais longe do que ele costumava ir, mas enquanto o tempo
permanecesse claro, ele não tinha medo de se perder. Ele olhou para
Northcott Manor, suas duas fileiras de janelas brilhando como
diamantes na luz da manhã. A casa ficava em meio a jardins bem
cuidados ao pé do Monk's Tor, uma colina proeminente que podia ser
vista a quilômetros de distância. Enquanto Aldous pudesse ver o Tor,
ele sabia que seria capaz de encontrar o caminho de casa.

Tranquilizado, ele se virou e fixou o olhar em seu alvo. Ele não


conseguiu entender. Uma árvore, com certeza, mas havia algo mais
além. Uma torre de algum tipo, e o que parecia uma parede que
serpenteava sobre a terra e depois
desaparecia. Quem construiria algo
assim no meio do nada, e por que motivo?
Ele pretendia descobrir.

— Vamos, Cometa, — disse ele e


instou seu pônei.

Atendendo ao aviso do cavalariço, manteve-


se nos caminhos visíveis que cortavam as faixas de
urze como um labirinto sem paredes. Poucos
caminhos percorriam uma linha reta. A maioria
dos caminhos torciam e viravam, muitas vezes
dobrando para cruzar outros caminhos que levavam a
outros lugares.

Não é de admirar que as pessoas se percam, pensou


Aldous, guiando o pônei para um caminho mais amplo do
que qualquer outro que ele já vira. Suas esperanças
aumentaram. Este caminho corria em linha reta e parecia uma rua
principal. Larga o suficiente para levar carruagens, certamente. De
fato, sulcos das rodas podiam ser vistos na terra macia. Melhor ainda,
parecia levar diretamente ao seu destino.

Mais perto agora, ele podia ver que os objetos misteriosos eram
uma única árvore grande e uma torre de pedra ou os restos de uma.
Algo para explorar! Aldous lançou um olhar rápido e seguro para o
agora distante Monk's Tor, e depois empurrou Cometa para dentro de
um galope.

Sorrindo com uma sensação de conquista, ele finalmente puxou


o pônei para parar sob a extensão da árvore e desmontou, sua
atenção atraída para a torre de pedra que
ficava a vários metros de distância. Era
obviamente uma ruína, sem um teto, mas
coberto por um grosso emaranhado de hera
escura que caía pelas bordas superiores. O
líquen e o musgo endureceram um lado da
torre, que parecia ter dois andares superiores,
cada um pontuado por uma janela estreita e sem
vidro. A pequena porta quadrada tinha sido
emparedada, uma visão que alimentou o lado mais
sombrio de sua imaginação e provocou uma
pontada no couro cabeludo.

A árvore e a torre, ele percebeu, serviam como


postes, marcando o início de outro caminho de
carroça. Era muito acidentado para chamar de calçada e
que se afastava em uma linha reta antes de desaparecer em
um pedaço distante de floresta. Rodeado de ambos os lados por
paredes de pedra desgastadas pelo tempo, o caminho de carroça, ao
contrário da torre, mostrava sinais de uso recente. Aldous se
perguntou o que havia no final.

A resposta pareceu vir um momento depois, quando ele notou


uma placa de madeira apontando para o destino misterioso. Ele
vagou e olhou para o nome desbotado que havia sido pintado na
madeira desgastada pelo tempo.

— Hi... — Franzindo a testa, ele ficou na ponta dos pés e traçou


as letras descascadas com os dedos. — Hig? Isso é um 'h' também? O
que isso diz?
— Highfield, — disse uma voz.

Aldous soltou um gritinho e virou-


se, sem ver ninguém. A voz tinha sido a de
uma criança. Um garoto como ele.

— Estou aqui em cima, — disse a voz.

Aldous ofegou e olhou para as janelas da


torre com os olhos arregalados.

— Você é um prisioneiro?

— Não, não aqui em cima! — Uma risadinha


se seguiu. — Aqui em cima.

Ele olhou para os galhos da árvore e viu um par


de pernas de calças sobre um dos galhos grossos, os
pés balançando para frente e para trás.

— Quem é você? — Aldous perguntou, seu rosto


quente com um rubor de vergonha e um toque de irritação
além disso. — E por que você está se escondendo ai? Desça aqui,
onde eu posso te ver.

Outra risadinha.

— Desculpe. Eu te assustei? Mova-se então. Você está no


caminho.

Ele deu um passo para trás, observando o garoto passar por


cima do galho e pendurar-se nos braços por um momento antes de
cair no chão, aterrissando de pé.

— Meu nome é Julian. — O garoto olhou para Aldous com um


interesse indisfarçável e estendeu a mão um pouco suja. — Julian
Frederick Thackeray. Tenho quase nove anos e moro em Highfield.
Aldous piscou e pegou a mão
estendida, surpreso pelo forte aperto do
garoto, que desmentia sua aparência. Eles
compartilhavam a mesma altura, mas onde
Aldous tinha uma estrutura sólida, Julian
tinha uma constituição fina, quase frágil e uma
aparência delicada.

Uma bagunça de cachos castanhos escuros


emoldurava um rosto claro cercado por grandes
olhos azuis. Algumas sardas polvilharam o nariz
do garoto, e seu sorriso parecia genuíno e quente.
Aldous esqueceu seu aborrecimento e devolveu o
sorriso.

— Sou Aldous Josiah Northcott. Eu vou fazer


oito anos e meio no próximo mês. Agora, vou ficar com meu
tio em Northcott Manor. — Ele apontou de onde ele veio. — Eu
moro em Londres principalmente, apesar de estar indo para a escola
em Essex quando voltar na próxima semana.

— Aldous. Eu nunca ouvi esse nome antes. — Julian lançou um


breve olhar para o contorno distante de Tor de Monk. — Eu não vou à
escola. Eu tenho um tutor. Meu pai tem uma casa em Londres, mas
eu nunca estive lá. Eu acredito que ele conhece seu tio. Esse é o seu
pônei? Qual o nome dele?

Aldous observou Cometa, que estava ocupado arrancando


bocados de capim do final do verão, com o rabo balançando.

— O nome dele é Cometa, mas ele não é realmente meu. Eu só o


uso enquanto estiver aqui. Você tem um pônei?
— Sim. — Julian acenou com a
cabeça na direção das árvores distantes.
— Você gostaria de vê-lo?

Mais uma vez, Aldous olhou de volta


para Tor de Monk, franzindo a testa ao ver
algumas nuvens se acumulando no horizonte.
Ele não tinha pensado em encontrar alguém
aqui, muito menos um garoto da mesma idade, mas
a curiosidade sobre Julian decidiu por si.

— Tudo bem, — disse ele, pegando as rédeas


de Cometa. — Mas não devo ficar muito tempo.
Para que serve a torre, aliás? Alguém estava preso
nele?

Julian balançou a cabeça.

— Não, nada tão horrível quanto isso. Meu pai a selou


porque não é mais seguro entrar. Ele não queria que ninguém
se machucasse. É muito antiga. Costumava ser uma torre de vigia,
quando Highfield era um castelo.

Aldous ofegou.

— Você mora em um castelo?

Julian balançou a cabeça novamente.

— Foi construído para ser um castelo há muito tempo, mas a


maior parte foi demolido e as pedras usadas para construir uma casa
senhorial. A guarita e as paredes externas ainda estão lá, e algumas
outras partes também, se você souber onde procurá-las. Mas
Highfield é apenas uma casa agora. Meu pai é o barão Westerdale e
minha mãe teve um bebê. Uma irmã para
mim. O nome dela é Grace. Você tem
irmãos e irmãs?

— Dois irmãos, — respondeu Aldous.


Godfrey e Edmund. Ambos mais velhos que
eu. Meu pai é o sexto conde de Hutton. Ele tem
muitas propriedades e cria cavalos de corrida.

— Acho que nunca conheci um conde antes. —


Ele sorriu para Aldous. — Ou o filho de um. Meu
pai é dono de algumas minas de carvão.

Julian continuou a conversar enquanto


seguiam o caminho até a floresta.

— Esses bosques se estendiam por


quilômetros, — disse ele. — Mas isso é tudo o que resta
agora. Minha família possuirá esta terra para sempre.

Aldous ficou boquiaberto com o teto arqueado da guarita.

— Havia um fosso e uma ponte levadiça aqui também. — Julian


gesticulou com a mão. — Você ainda pode ver parte do fosso na
floresta nos fundos da casa. Não há água nele. Apenas ervas
daninhas.

— Eu ainda gostaria de vê-lo, — disse Aldous, voltando sua


atenção para a entrada de cascalho que rangia sob seus pés. Ele
então olhou para a casa e seus olhos se arregalaram.

— Highfield — anunciou Julian, com uma nota de orgulho em


sua voz.
Construída com pedras cinzentas
desgastadas pelo tempo, a torre central
da casa erguia-se como a fortaleza de um
castelo. A seus pés, uma varanda de pedra
semelhante à de uma igreja abrigava a
entrada principal. Acima do telhado da varanda
no centro da torre, uma janela de com vidros
lançava brilhos da luz solar.

O resto da casa parecia ser uma coleção


aleatória de partes diferentes, todas reunidas,
parte da casa, parte da igreja e parte do castelo.
Uma asa tinha dois andares e um telhado de duas
águas. O outro tinha apenas uma ameia e um
telhado plano. No entanto, o efeito geral era
maravilhoso, pensou Aldous.

Julian olhou para ele.

— É bastante magnífica, você não acha?

Aldous assentiu.

— Eu gosto disso, Julian. Eu gosto muito.

— Eu também, — disse ele. — E será meu um dia.

Julian levou Aldous a fazer uma visita, incluindo os estábulos,


onde amarrou Cometa antes de admirar o manchado pônei galês de
Julian.

— Ele se chama Beau — disse Julian, fazendo cócegas no nariz


do pônei. — Ele corre como o vento.
Embora totalmente sem malícia,
Aldous não pôde deixar de sentir um
toque de inveja em relação a seu novo
amigo. A vida de Julian parecia mais
simples, de alguma forma. Menos
organizado. Livre. Ele deu um suspiro, tentando
não pensar na sexta-feira, embora seu humor
azedasse um pouco.

— Você tem muita sorte, Julian.

Os olhos de Julian se arregalaram.

— Por que você diz isso? Você não tem seu


próprio pônei?

— Sim, mas não quero dizer apenas por causa


do pônei. Eu quero dizer por tudo isso. Morar aqui,
especialmente.

— Eu gosto daqui. — Julian torceu o nariz. — Mas eu


gostaria de ter irmãos e irmãs.

— Você me disse que tinha uma irmã.

— Mas não posso brincar com ela, — disse ele. — Ainda não,
pelo menos. Ela é muito pequena.

— Meus irmãos são muito mais velhos que eu, então eles não se
incomodam muito comigo. — Aldous olhou para o teto do estábulo. —
O que é esse barulho?

Julian fungou.

— Soa como chuva.


— Droga! — Aldous pisou na porta
do estábulo e olhou para as nuvens. —
De onde veio isso?

— Sai do nada. — Julian ficou ao lado


dele. — Meu pai diz que se você pode ver
através da charneca, é um sinal de chuva. Se
você não pode ver através da charneca, é
porque já está chovendo.

Aldous fez uma careta.

— Não é engraçado, Julian. Vou me


encharcar indo para casa. E eu posso até me
perder.

Julian deu de ombros.

— Provavelmente será só um banho. Podemos entrar


e esperar até que pare, se quiser. Você joga dominó?

—E QUEM É esse? — Alto e magro, com uma cabeça de cachos


escuros bem cortados, o homem que acabara de descer a imponente
escadaria de pedra de Highfield espiou Aldous por cima de seu nariz.

— O nome dele é Aldous, pai, — respondeu Julian. — Eu o


conheci perto da torre de pedra.

— Aldous de quê?

— Northcott, — respondeu Aldous.

— Northcott, você diz? — O homem arqueou uma sobrancelha.


— Relacionado com Percival, por acaso?

Aldous assentiu.
— Sim, senhor. Ele é meu tio e
padrinho.

— E um bom homem. — Lorde


Thackery olhou para o filho. —Agora, sua
mãe está dormindo, Julian, então não se
preocupe com brincadeiras. Não deixarei que
seja perturbada.

Julian balançou a cabeça e subiu as escadas.

— Nós apenas vamos jogar dominó até a


chuva parar, pai.

Aldous seguiu Julian até uma pequena sala no


andar de cima, onde o chão rangia sob seus pés e a
chuva batia na janela. Julian abriu um dos armários
ao lado da lareira vazia e puxou uma pequena caixa de
madeira.

— Sente-se, — disse ele, tomando uma cadeira em uma


mesa manchada de tinta e derrubando os dominós.

Aldous lançou um olhar preocupado à chuva e sentou-se.

O barulho começou quase imediatamente. Um lamento


estridente que lembrou a Aldous de um gato, embora ele percebesse
que era um bebê. A nova irmã de Julian, sem dúvida. Parecia vir do
quarto ao lado. Julian não mostrou reação a isso. Ele simplesmente
montou seu dominó e Aldous fez o mesmo.

Julian conversou sobre sua educação enquanto brincavam,


explicando como ele gostava de geografia, arte e história, mas odiava
o latim. Aldous, ouvindo com meia orelha, ofereceu uma palavra aqui
e ali. Ansioso por sua volta para casa, ele
continuou olhando a chuva caindo pela
janela. De repente, Northcott Manor
parecia distante, e ele lutava com uma
crescente sensação de apreensão.

O tempo todo, a irmã de Julian continuou


a lamentar, o barulho irritante mexendo com os
nervos de Aldous.

Eu não deveria ter cavalgado até aqui. Eu


gostaria que a chuva parasse. — Ele rangeu os
dentes. — E eu gostaria que a irmã de Julian
parasse esses malditos gritos de uma vez e para
sempre!

Naquele momento de exasperação, Aldous jurou


nunca ter filhos. Não se eles gritassem tão
interminavelmente quanto a irmã recém-nascida de Julian
Thackeray. Na verdade, ele não tinha certeza de onde os bebês
vinham, mas nunca permitiria que sua esposa fizesse o que as
mulheres faziam que resultassem com bebês.

— Por que ela chora tanto? — Aldous perguntou, sua frustração


superando sua capacidade de controlá-lo. — Eu gostaria que ela
parasse.

— Provavelmente porque ela está com fome. — Julian franziu a


testa enquanto pousava o dominó escolhido.

Aldous soprou e colocou uma de suas peças restantes do


dominó.

— Então por que alguém não a alimenta?


— Elas tentam, mas ela não come.
— Julian jogou sua próxima peça de
dominó.

— Por que não? — Aldous ficou


inquieto, percebendo que agora podia
colocar seu duplo seis e vencer o jogo.

— Eu não tenho certeza. Ela é muito


pequena. Papai diz que é porque ela não deveria
estar aqui por mais um mês. — O lábio inferior de
Julian tremeu. — Ele... ele diz que ela pode não
viver.

Um rubor de remorso aqueceu as bochechas de


Aldous quando ele fechou os dedos em volta da peça
vencedora.

— Isso é horrível. Sinto muito, Julian.

Julian deu de ombros.

— Aconteceu da última vez também, exceto que era um menino.


Henry. Ele era ainda menor e viveu apenas um dia. Se ele não tivesse
morrido, ele teria cinco anos agora.

Mal ele falou, o gemido cessou. Aldous prendeu a respiração


quando encontrou o olhar de Julian. Apenas o tamborilar da chuva
na janela quebrou o silêncio.

— Talvez ela tenha dormido, — disse ele, uma tentativa de se


tranquilizar tanto quanto Julian. — Ou talvez ela esteja comendo
finalmente.

— Talvez. — Julian mordeu o lábio. — Acredito que sim.


Nesse momento, a chuva parou,
tornando o silêncio ainda mais profundo.

Chore. Por favor chore.

Outro lamento foi ouvido, embora um


pouco mais fraco do que antes. E a voz
suave de uma mulher.

— Viu? — Aldous deu um suspiro de alívio. —


Ela está bem. — Ele se levantou e colocou o dominó
de bruços. De alguma forma, ele não tinha vontade
de reivindicar sua vitória. — Parece que a chuva
parou, então é melhor eu ir. Se o tempo estiver
bom, voltarei amanhã.

NO CAMINHO PARA casa, Aldous resolveu não


mencionar Highfield para seus pais ou tio. Fazer isso
levaria uma infinidade de perguntas que ele não tinha
vontade de responder. Por alguma razão, ele não podia mudar o
que parecia um pedaço de barro na sua barriga.

Ele não parava de pensar no choro do bebê e no sofrimento que


representava. Ele discutiu consigo mesmo, tentando encontrar
desculpas por seu mau humor e pensamentos desagradáveis, mas
não conseguiu justificar nada disso.

Então, ele manteve suas respostas e, consequentemente, suas


mentiras, no mínimo. Sim, ele aproveitou seu tempo na charneca e
não, não ficou encharcado pela chuva porque se refugiou em um
celeiro. A mãe dele tinha estado agitada, declarando sua preocupação.
Seu pai zombou disso.
— Eu disse que ele ficaria bem,
Elena, — disse ele. — Você o mima
demais.

Tio Percival arqueou uma


sobrancelha.

— Onde estava esse celeiro em que você


se abrigou, Aldous?

Ele deu de ombros.

— Não tenho certeza exatamente, tio. Estava


lá. No meio do nada.

— Foi mesmo, — respondeu o tio. — Que sorte


sua.
ALDOUS SE AGITOU E virou por um tempo
antes de adormecer, mas na manhã seguinte, as
coisas pareciam mais brilhantes. O pedaço de barro
em sua barriga se foi. Sim, ele estava um pouco
irritado no dia anterior, mas, em retrospectiva, ele
realmente não fez nada de errado. Ele duvidava que
Julian tivesse notado. Quanto a mentir para seus
pais e seu tio... bem, ele pretendia fazer as pazes com
isso.

— Você vai sair de novo, jovem? — Perguntou o tio


Percival, saindo do escritório enquanto Aldous acelerava pelo
corredor.

— Sim, tio. — Ele acelerou o passo. — É o meu último dia e


quero aproveitar ao máximo.

— Muito bem, — respondeu seu tio. — Estou ansioso para ouvir


sobre isso mais tarde.

ALDOUS PAROU COMETA sob o carvalho e espiou os galhos.

— Julian?

Apenas a brisa respondeu, sussurrando através das folhas,


levando um arrepio estranho correr pela nuca de Aldous. Suprimindo
um calafrio, ele pediu a Cometa que
seguisse o caminho da carroça em
direção a Highfield.

Hoje seria diferente, ele resolveu. Um


dia para fazer as pazes, pelo menos em sua
mente, pelas transgressões do dia anterior.
Sem mau humor ou carrancas. Apenas
diversão. Talvez ele e Julian pudessem dar um
passeio, ou explorar a floresta e o que restava do
antigo fosso do castelo. Depois, ele voltaria para
casa e contaria aos pais e tio tudo sobre Julian e
Highfield.

Sem mais mentiras.

Ele atravessou a guarita, intrigado com uma


sensação de deserção que parecia pairar no ar. Onde
estavam todos? Depois de amarrar Cometa, ele caminhou até a
porta, ficou na ponta dos pés e deu duas batidas fortes na aldrava de
ferro.

A porta se abriu alguns momentos depois e um lacaio apareceu.

— Sim? — o homem perguntou, seu rosto sem expressão.

— Estou aqui para ver o mestre Julian, — respondeu Aldous.

Uma leve carranca apareceu no rosto do homem.

— Espere aqui, por favor, — disse ele, e fechou a porta.

Uma reação estranha, Aldous pensou. Por que ele não foi
convidado a entrar? Enquanto ele ficava intrigado, a porta se abriu
novamente, apenas a largura o suficiente para Julian olhar.
— Olá, Julian. — Aldous sorriu. —
Eu pensei que você poderia estar na
árvore novamente, mas não estava,
então... — Seu sorriso desapareceu quando
ele notou o rosto manchado de Julian. —
Hum, você está bem?

— Não, realmente não. — Julian olhou por


cima do ombro. — Eu não posso sair hoje.

— Por que não? O que há de errado?

A boca dele tremeu.

— Ela está morta, Aldous.

— O quê? — Uma mão gelada agarrou o coração


de Aldous. Ele tinha ouvido errado, certamente. Ela
morreu?

— A noite passada. — O rosto de Julian expressou


tristeza. — Eu tenho que ir. Desculpe.

— Mas...

A porta se fechou.

COM AS MÃOS ENFIADAS ATRÁS DA cabeça, Aldous estava deitado na


grama embaixo do carvalho, olhando para os galhos. Ele conseguiu
cavalgar tão longe antes de parar para esvaziar o conteúdo do
estômago. A umidade da chuva do dia anterior já havia ensopado
suas roupas, mas ele prestava pouca atenção. Se ele pegasse um
resfriado, que assim seja. Ele merecia sofrer.

Alheio ao tempo, ele ficou deitado embaixo da árvore por um


bom tempo. Algo dentro dele havia quebrado, e por mais que tentasse,
não conseguiu ver como isso poderia ser
consertado. Lágrimas queimaram o
fundo de seus olhos, mas ele firmemente
as manteve afastadas. Grace chorara e ele
reclamara porque o barulho o irritara. Ele
estava bravo com ela. Um bebê pequeno e
doentio. E agora ela nunca mais choraria. Bem,
ele também não.

Nunca.

Quando voltou para Northcott Manor, uma


parte de Aldous Josiah Northcott havia mudado
para sempre. Embora ele não se sentisse responsável
pela morte de Grace, se arrependia nas profundezas
de sua alma, pois a julgara sem conhecê-la. E a
crueldade da morte lhe roubara a chance dele fazer as
pazes. Ele nunca poderia retomar seus pensamentos
desagradáveis, seu voto egoísta ou seus comentários indiferentes.
Eles estariam com ele sempre. Não resolvido, não perdoado.

Ele enterrou seu sentimento de vergonha e disse a seus pais e


tio apenas o que eles queriam ouvir, que havia desfrutado de seu dia
na charneca. Seu pai grunhiu enquanto sua mãe mexia com suas
roupas úmidas e o mandou tomar um banho quente.

Tio Percival não disse nada.

Mais tarde naquela noite, porém, ele se sentou ao lado de


Aldous, que estava montando o mais recente mapa de quebra-cabeças
da Europa.

— Muito bem, — disse ele, sobre o progresso de Aldous.


Aldous sorriu e seu tio soltou um
suspiro.

— Há algo que você não está nos


dizendo, Aldous?

Aldous engoliu em seco de repente.

— Não, senhor. Nada.

— Hmm. — Percival levantou-se. — Bem, se


alguma coisa estiver te incomodando, você sempre
pode vir até mim. Eu nunca vou te julgar.

As palavras, embora gentilmente


pronunciadas, cortam como uma faca. Aldous não
respondeu.

No dia seguinte, ele partiu para Londres sem


olhar para trás.

OS ANOS SE PASSARAM. Aldous se destacou na escola e se


destacou ainda mais em Oxford. Durante esse tempo, ele viu seus
dois irmãos casados e lamentou a morte de seu pai. Ele também viu
Percival em numerosas reuniões familiares e sempre conseguia
inventar uma desculpa para não visitar a propriedade de Yorkshire.
Essa parte quebrada dele não permitiria que ele voltasse. Depois de
terminar em Oxford, Aldous comprou a comissão de capitão e se
juntou ao exército de Wellington. Após sua lesão em Waterloo, ele
retornou a Londres para fazer uma parada de recuperação.
Nos Dias Atuais

Terça-feira, 14 de dezembro de 1819 d.C.

Londres.

SATISFEITO, ALDOUS ROLOU de costas e olhou para


o teto, esperando que a dor leve em seu intestino
diminuísse. A lesão tinha sarado bem, mas ainda o
incomodava um pouco durante exercícios extenuantes.

— Você estará fazendo algo especial no Natal deste ano,


Aldous?

Ele riu e descansou o antebraço contra a testa. Um interlúdio


prazeroso poderia ser. Romântico? Nem um pouco.

— Não, Modesty. Nada especial.

— Por que você está rindo?

— Porque você me diverte.

Sua companheira de cama levantou-se sobre um cotovelo.

— Faço mais do que isso para você, querida.

De fato, ela fazia. No que dizia respeito ao quarto, não havia


nada modesto em Madame Modesty Bancroft. Uma conhecedora nata
de sua profissão, ela tinha sido
fundamental para fornecer tratamento
terapêutico a Aldous enquanto ele se
recuperava de sua lesão. Para sua alegria e
alívio, o tratamento provou ser bem-
sucedido. Se ele ainda podia ou não ter filhos,
no entanto, permaneceria sem resposta. Não
que isso importasse. Aldous havia muito que decidira
que nunca se casaria.

Vestiu-se e voltou para a casa vazia de sua


mãe em St. James Square. Ela saiu no dia
anterior para passar o Natal em Yorkshire com
Percival. Seus esforços para convencer Aldous a se
juntar a eles falharam, como sempre.

— Eu não entendo por que você constantemente se


recusa a visitar a propriedade de seu padrinho, — ela disse,
afastando um pedaço de fiapos de sua pele. — Pelo que me lembro,
você adorou quando criança e esteve lá. Percival expressou
especificamente uma esperança de que você iria desta vez.

Aldous encolheu os ombros.

— Eu já fiz outros planos, mãe. Vejo-o na próxima vez que


estiver em Londres.

— Só espero que você tenha essa outra oportunidade e não viva


para se arrepender desta. — Ela apresentou uma bochecha por um
beijo. — Ele não está ficando mais jovem, sabe.

Essas palavras voltaram a Aldous mais tarde naquela noite,


quando ele se acomodou diante do fogo. Apesar de sua afirmação, ele
não tinha feito planos para o Natal, o que
o levou a perceber que tinha sido sincero
com a cortesã, mas havia mentido para
sua mãe.

— Maldito seja, Aldous, — ele


murmurou e tomou um gole generoso do porto
rolar em torno de sua língua. Arrepender-se.
Como se ele precisasse mais disso. O que ele temia
ao voltar para Yorkshire? Grace estava morta há
mais de vinte anos.

No entanto, as lembranças daqueles dois dias


permaneceram intactas com o tempo. Segredos que ele
nunca compartilhou com ninguém. Talvez fosse hora
de colocar o passado aonde ele pertencia. Voltar para
onde tudo começou e exorcizar os fantasmas que nunca
deixaram de atormentá-lo.

No dia seguinte, ele conseguiu os serviços de uma carruagem


particular e deixou Londres, indo para o Norte.

OITO DIAS DEPOIS, ele se viu preso em um Posting Inn, 2 no


extremo Sul da charneca.

— Precisamos mudar a braçadeira, capitão, — explicou o


cocheiro. — A peça deve chegar aqui no final da tarde, o que significa
que provavelmente estaremos aqui a noite toda.

Aldous franziu o cenho. Ele realmente não queria esperar.

— Quanto tempo levarei para atravessar a charneca a cavalo? —


Ele perguntou.
O cocheiro parecia duvidoso.

— Três horas, talvez. Nesta época do


ano, seria mais sensato em viajar na
estrada principal.

— Quanto tempo pela principal?

O homem resmungou.

— Quatro horas ou mais.

Aldous pegou um cavalo e providenciou para


que sua bagagem fosse enviada para Northcott o
mais rápido possível. Os céus pareciam claros o
suficiente, então ele atravessou a charneca. Ele sabia
que a rota o levaria além de Highfield. O simples
pensamento disso despertou memórias antigas e
indesejadas.

Ele encolheu os ombros de medo e seguiu em frente, logo


percebendo que a charneca, nessa época do ano, era uma fera
diferente. O chão saturado sugava os cascos do cavalo, e o vento, sem
obstáculos, tinha uma voz fria e um toque desagradável. Então,
quando ele alcançou o topo de uma pequena elevação, Aldous se
deteve, estreitando os olhos enquanto contemplava o caminho a
seguir. Ele estava vendo coisas? Alguns minutos atrás, o caminho
estava claro e ininterrupto. Agora, parecia que uma cortina branca
havia sido puxada do horizonte, ondulando como se soprada por um
vento forte.

— Bom Deus, — ele murmurou, o medo se acumulando na boca


do estômago.
A tempestade encheu a largura e a
altura de sua visão, unindo terra e céu
enquanto se movia em sua direção.
Enquanto ele observava, o primeiro sopro
de vento gelado percorreu seu rosto,
trazendo alguns flocos de neve errantes.

O cavalo se moveu embaixo dele como se


estivesse esperando uma decisão sua. Havia apenas
duas opções: avançar ou recuar. Aldous calculou
que tinha pelo menos mais duas horas de viagem
pela frente e metade disso novamente se voltasse.
A tempestade continuou seu avanço com uma
velocidade surpreendente. O instinto lhe disse para
voltar, mas e se ele não pudesse fugir dela? Nesse
caso, ele acabaria viajando com a tempestade, preso em
seu aperto gelado. No entanto, se ele continuasse, poderia
passar pela tempestade e encontrar a calma do outro lado.

Outra rajada de vento gelado pareceu zombar dele. Decida-se,


Northcott, — dizia. — Você terá que lutar comigo, de qualquer maneira.

Ele tinha chegado tão longe. Não haveria como voltar atrás. Ele
puxou o chapéu sobre as orelhas, enfiou os calcanhares na barriga do
cavalo e avançou, com a intenção de cobrir o máximo de terreno
possível antes de ser pego no turbilhão.

Talvez, mais ou menos, um quilômetro depois, ele colidiu com


uma explosão gelada que lhe roubou o fôlego. Ele puxou o cachecol
por cima do nariz e inclinou a cabeça contra o ataque violento. Não se
tratava de uma queda suave de flocos, mas de um chicote picante de
bolinhas geladas que agrediam seu rosto
e se agarravam às roupas e cabelos. O
cavalo soltou um estrondo baixo de
descontentamento e diminuiu o passo.

Mal conseguindo ver a estrada à


frente, Aldous enfiou o queixo no casaco e
manteve o animal avançando, rezando para que
a tempestade logo passasse. Mas o ataque continuou.

Ainda assim ele continuou, o vento amargo


entorpeceu seus ouvidos e trouxe lágrimas aos
olhos. O frio logo penetrou em suas roupas e em
seus ossos. Suas mãos, apesar das luvas de couro, mal
conseguiam sentir as rédeas. Ficando mais
desorientado a cada minuto, esforçou-se por
distinguir as margens de uma estrada agora totalmente
obscurecida pela neve.

Pior, a pouca luz que a tempestade oferecia começara a


diminuir. Logo estaria escuro. Gelado até a medula, Aldous apertou
os olhos para a esquerda e para a direita em uma busca desesperada
e fútil por abrigo. Ele se perguntou até onde tinha chegado. Ele já
havia passado a curva para Highfield? Talvez ele tivesse andado por
outra trilha? Não que isso importasse mais. Ele percebeu que não
duraria muito mais tempo.

Nesse momento, o cavalo parou.

Aldous franziu a testa e deu um chute firme no animal.

— Continue, — disse ele, sua voz abafada por trás do cachecol.


O cavalo simplesmente abaixou a cabeça. Aldous chutou com mais
força. — Continue, eu disse! — Em
resposta, o cavalo recuou um passo e
plantou as quatro pernas firmemente
embaixo dele, sua mensagem clara. Ele já
teve o bastante.

Aldous levantou seu chicote para atacar a


fera, mas fez uma pausa, seu cérebro lento
chegando a um acordo com sua situação. Não havia
como escapar disso. Mesmo que a tempestade
diminuísse, ele nunca seria capaz de cavalgar na
charneca no escuro. Sua família não estava
esperando por ele, então ninguém viria procurá-lo.
Certamente não naquela noite ou mesmo no dia
seguinte.

— Parece que você terminou, Aldous, — ele


murmurou, abaixando o chicote. E oh, a ironia. Voltar depois
de todos esses anos, esperando fazer as pazes de alguma maneira,
apenas para morrer aqui.

Uma bolha de histeria se formou profundamente em seu peito,


brotando até pressioná-lo contra suas costelas. Ele puxou o cachecol
da boca, ergueu o olhar para o céu e riu ao vento.

— Então é isso? — Ele gritou. — Este é o meu acerto de contas


final? Aqui, onde tudo começou? Eu era apenas uma criança, pelo
amor de Deus. Oito anos de idade. Eu não pensei que seria tão grave.
Eu não sabia. — O vento gelado escaldou seus olhos. — Eu não
queria que ela morresse. Eu juro que não. Eu só queria que ela
ficasse quieta. Agora, eu daria tudo para ouvi-la chorar novamente.
Qualquer coisa! Se é a minha vida que
você quer, pode tê-la. Se eu pudesse
trocá-la pela dela, eu o faria. Sem hesitar.

Seguiu-se outra rajada violenta de


vento, que abriu um buraco no dilúvio de
flocos, expondo o que havia pela frente. E no
espaço de um batimento cardíaco, antes que a
cortina branca se fechasse novamente, uma imagem
se imprimiu na visão turva de Aldous. Ele piscou,
sem ousar acreditar.

— Querido Deus.

Tinha sido um truque da mente, certamente.


Uma ilusão criada pela loucura. Mas quando o
turbilhão de neve diminuiu mais uma vez, a imagem
reapareceu. Aldous ofegou. Não, não era truque nem ilusão.
Nem poderia ser coincidência.

Providência? Bem possível.

Pois, se o cavalo não tivesse parado naquele local preciso e o


vento não tivesse aberto um portal na neve naquele momento preciso,
Aldous poderia ter continuado cavalgando, de cabeça baixa, sem
perceber. Ele não tinha visto a velha torre de pedra com sua porta de
tijolos, ou o carvalho antigo, galhos desnudos pelos ventos do outono.

Mas ele os viu agora, permanecendo como estavam há séculos.


Para o inferno com explicações lógicas ou raciocínio; algo no estômago
de Aldous lhe dizia que tudo isso era predeterminado. Ele olhou para
a esquerda, vendo apenas um redemoinho frenético de neve na
escuridão. Mas ele sabia o que havia
além disso. Um lugar que ele jurou que
nunca mais colocaria os pés.

Highfield.

Refúgio da tempestade.

Mais ainda uma ironia.

Cerrando os dentes, ele se deslizou da sela, com


os pés tão dormentes que mal conseguiam sentir o
chão. Suas pernas se dobraram quando
sustentaram seu peso, e ele se firmou com o
estribo de couro. Então ele tropeçou indo a cabeça do
cavalo e agarrou as rédeas.

— Mova-se. — Ele olhou o cavalo nos olhos. —


Seu lindo, bastardo teimoso.

O cavalo soprou, sacudiu a neve da juba e obedeceu.

Nunca uma distância tão curta parecia tão longa. Aldous mal
conseguia ver o caminho e agradeceu silenciosamente pelas paredes
de pedra que serviam de guia crucial. Quando ele alcançou o abrigo
das árvores, a ferocidade da tempestade diminuiu um pouco, embora
os galhos nus sacudissem e batessem enquanto lutavam contra o
vento. Ele se arrastou por baixo da guarita e olhou para a frente, onde
a fachada de Highfield, pouco visível atrás do véu de neve, pairava em
um silêncio estoico. Todas as janelas estavam na escuridão, exceto a
janela de vidro, que brilhava com uma luz fraca.

Uma vela solitária, Aldous percebeu. Um sinal de vida.


Perto do colapso, ele largou as
rédeas e cambaleou para a varanda de
pedra, seus dedos congelados
atrapalhando quando alcançaram a pesada
aldrava de porta de ferro. Ele levantou e
largou o anel três vezes, xingando baixinho por
seus esforços frágeis. E se eles não pudessem
ouvi-lo?

— Alguém, por favor. — Fechando os olhos, ele


descansou a bochecha contra a madeira e
conseguiu dar mais uma batida na porta. —
Responda por favor.

Um uivo assustador ecoou pelas paredes da


varanda. Ao mesmo tempo, o som de um barulho
metálico pairou em seu ouvido, o de um ferrolho sendo
puxado para trás. Prendendo a respiração, Aldous levantou a
cabeça quando a porta se abriu. Um homem, nem velho nem jovem,
vestido com o uniforme de criado, olhou para ele, o cenho
desaparecendo quando seus olhos se arregalaram.

— Bom Deus, — disse o homem, abrindo a porta.

— Graças a Deus, — respondeu Aldous e caiu nos braços do


homem.
UMA LUZ BRUXULEANTE dançava além das
pálpebras fechadas de Aldous. Ele permaneceu
imóvel com um calor, glorioso e angustiante,
rastejando por suas veias. Vozes abafadas, de
homem e mulher, filtravam-se através da névoa
em seu cérebro.

— A cor dele melhorou um pouco, — disse a


mulher. — Pelo menos, o azul sumiu de seus lábios.
Vou pedir a Connie que prepare a câmara do abade,
embora, se nosso visitante não acordar, não sei como o
subiremos pelas escadas.

— Se for esse o caso, ele pode ficar onde está, pelo menos hoje à
noite, — respondeu o homem. — Ele está confortável o suficiente.

— Verdade. Vou buscar outro cobertor, só por precaução. —


Seguiu-se um suave movimento de saias e depois a mulher falou
novamente de mais longe. — Eu me pergunto quem ele é?

— Sem dúvida, descobriremos em breve, — respondeu o homem.

— Sim. — Um suspiro seguiu. — Eu estarei de volta em breve.

Uma dobradiça da porta gemeu, uma garganta pigarreou


novamente, e algo rangeu... uma cadeira, Aldous pensou. Como se
alguém tivesse se sentado nas proximidades.
Ele tentou abrir os olhos, vacilando
quando a luz encontrou um caminho. A
luz do fogo, ele percebeu, enquanto sua
visão se ajustava. Ele abriu os olhos e a
cadeira rangeu novamente.

— Ah, aí está você, — disse o homem, sua


silhueta momentaneamente bloqueando a luz e
o calor do fogo. — Você está bem. Você está seguro.

— Meu... — Aldous engoliu em seco. — Meu


cavalo.

— Foi resolvido. — O homem se afastou e,


Aldous ouviu o barulho de líquido sendo derramado.
— Aqui, beba isso. Aquecerá seu interior.

Um pequeno copo de prata apareceu embaixo do


nariz dele. Aldous levantou a cabeça para tomar um gole do
que era conhaque, o que deixou um rastro de fogo enquanto
escorria por sua garganta.

— Melhor?

Aldous tossiu, com os olhos lacrimejando.

— Obrigado, sim. — Ele piscou e olhou para o homem idoso que


estava diante dele, esperando encontrar algum reconhecimento. Era o
pai de Julian? Lorde Thackeray? Uma lembrança veio à tona, a de um
homem alto e moreno, parado ao pé da escada. Este homem era de
fato alto, mas magro a ponto de desaparecer e com uma auréola de
cabelos prateados. Ele parecia frágil, pensou Aldous.

— Lorde Thackeray, eu presumo?


As sobrancelhas do homem se
levantaram.

— Sim, — disse ele, colocando o copo


em uma pequena mesa próxima. — Sou
Lorde Thackeray. E você é?

— Meu nome é Aldous Northcott, milorde.


Capitão Aldous Northcott.

— Northcott? — As sobrancelhas de Lorde


Thackeray se uniram. — Um dos familiares de
Percival?

— Ele é meu tio. Eu estava a caminho da


mansão quando... — Suprimindo um calafrio, Aldous
tentou, e falhou, sentar-se. — Quando fui pego na
tempestade. Veio do nada.

— Elas costumam fazer isso. Aqui, deixe-me ajudá-lo.

Aldous sentou-se e respirou lentamente enquanto esperava um


turbilhão de tontura diminuir.

— Meus agradecimentos, — ele disse finalmente e juntou o


cobertor ao seu redor sem nenhum esforço. Parecia que seus
membros haviam se transformado em água. Ele reprimiu outro
arrepio e afastou o desejo de se deitar novamente.

— Percival é seu tio? Você é um dos filhos de Hutton, então?

Aldous assentiu.

— O mais novo.

— Hmm. — Lorde Thackeray esfregou a mandíbula. — Parece


que me lembro de um jovem Northcott visitando Highfield há muitos
anos. Julian o encontrou perto da torre e
o trouxe para casa. Era você, por acaso?

— Era sim. — Como a tempestade na


charneca, Aldous tinha pouca escolha a
não ser enfrentar o que havia pela frente,
encontrá-lo e passar por ela. Então, ele
respirou fundo e fez a pergunta que não podia
ser evitada. — Como está Julian? Ele está aqui?

Antes de terminar de falar, a porta atrás dele


se abriu e alguém ofegou. Lorde Thackeray
desviou o olhar para quem estava na soleira.

— Não, capitão, — ele respondeu. — Receio que


Julian não esteja aqui.

— Você o conheceu? — Uma mulher falou. — Você


conheceu Julian?

— Eu... — Aldous vacilou e se virou, tentando ver a dono


da voz. Conheceu? — Eu o conheci brevemente há muito tempo.

A mulher entrou em sua visão, segurando um cobertor dobrado


de lã.

— Há quanto tempo foi isso?

— Er... — Aldous olhou para um rosto mais agradável do que


bonito.

Pequeno, em forma de coração, e emoldurado por cabelos


castanhos escuros que tinham sido puxados para trás de uma
maneira severa e desagradável. No entanto, alguns fios rebeldes
escaparam e se soltaram em cachos desafiadores na testa clara da
mulher. Seus olhos escuros pareciam
grandes demais para o rosto e,
atualmente, brilhavam com o que
pareciam lágrimas suspeitas. Seus lábios,
cheios e macios, estavam levemente
abertos, e seu peito arfava como se fosse um
esforço. Esbelta ao ponto de delicada, ela ainda
exalava uma força sutil na maneira como se
sustentava. E, embora jovem, ela obviamente havia
passado o primeiro rubor da feminilidade. No
geral, ela parecia possuir um ar sombrio, ou talvez
seu penteado e seu vestido de lã cinza simplesmente
dessem essa impressão. A curiosidade de Aldous se
mexeu. Quem era ela?

— Faz mais de vinte anos, — ele respondeu.

— Ah. — Uma expressão fugaz de decepção brilhou em


seu rosto. — Vocês eram apenas crianças, então.

Lorde Thackeray pigarreou.

— Em qual regimento você está, capitão?

— Primeira Guarda de Dragões do Rei, milorde, embora eu não


esteja mais servindo.

— Você estava em Waterloo?

— Eu estava.

— Julian também — disse a mulher, abraçando o cobertor no


peito. — Ele estava na trigésima terceira. Só que ele... não voltou para
casa.
Choque, como outra rajada de ar
gelado, deixou Aldous sem fôlego. Muito
tarde. Tarde demais. Ele encontrou sua
voz.

— Sinto profundamente ouvir isso.


Embora eu o conhecesse apenas brevemente,
Julian causou uma impressão duradoura em
mim. Eu nunca o esqueci. Você é a viúva dele, pelo
que entendo?

A mulher pareceu brevemente surpresa.

— Oh, Deus o abençoe, senhor, não. Julian


nunca se casou. Sou Grace Thackeray, irmã de
Julian.

Aldous quase riu. Ele olhou para a mulher por mais


um momento e depois o desviou para olhar em volta,
espantado com os detalhes que seu pobre cérebro obviamente
fabricara.

As estantes à esquerda da lareira. Os candelabros no aparador e


o espelho dourado que refletia as luzes tremeluzentes. As cortinas de
veludo penduradas sobre a janela. O tapete turco esfarrapado no
chão. O retrato desbotado de um homem que estava pendurado acima
da lareira esculpida. Até o calor do fogo.

Nada disso era real, é claro. Nada disso. Nem a torre de pedra,
nem a árvore nua, nem Highfield. Era apenas a fantasia final de um
homem morrendo de frio na charneca. Uma tentativa de consertar as
coisas, de fazer as pazes consigo mesmo antes que ele morresse. Ele
ouvira falar de tais visões quando a morte se aproximava.
Ele voltou o olhar para a irmã de
Julian. Fazia sentido, ele supôs, que ela
se apresentasse como adulta. Uma criança
de dois dias não seria capaz de entender
seu remorso. A morte de Julian o intrigou,
no entanto. Mas então, raramente os sonhos
faziam sentido.

— Sinto muito, Grace, — disse ele, tremendo. —


Eu não sabia. Eu era apenas uma criança. Por favor
me perdoe.

Grace franziu a testa e trocou um olhar


confuso com Lorde Thackeray.

— Não há nada a perdoar, capitão Northcott. —


Ainda franzindo a testa, ela sacudiu o cobertor e o
colocou em volta dos ombros dele.

Aldous olhou para a carne clara de sua garganta e


respirou um suave perfume floral que provocou uma vaga lembrança.

— Você já sofreu bastante e está obviamente exausto, —


continuou ela. — Eu preparei um quarto para você e providenciei um
pouco de caldo de carne, caso você sinta vontade de comer alguma
coisa.

Aldous respirou seu perfume novamente, lembrando ao mesmo


tempo onde ele o havia sentido antes. Foi durante outra ilusão em
Waterloo quando, sob a influência do láudano, ele se deitou em uma
barraca e reviveu as lembranças da infância, incluindo o aroma das
flores do verão na brisa.
— Você pode ficar aqui se estiver
nevando por um dia ou dois. — A voz de
Lorde Thackeray se intrometeu nos
pensamentos de Aldous. — Quando lhe
esperavam? Temo que sua família fique
frenética de preocupação.

— Eles não estão me esperando, milorde.


Minha visita era para ser uma surpresa.

Aldous observou um pequeno pulso bater um


ritmo constante na garganta de Grace. Ele queria
tocá-lo, sentir a ilusão de sua vida sob as pontas
dos dedos. Em vez disso, ele estendeu a mão e tocou a
mão dela. Os dedos dela envolveram os dele quando
ela colocou a outra mão na testa dele. Um
formigamento percorreu seu couro cabeludo. Por que, de
repente, essa ilusão não parecia mais uma ilusão?

— Você está com um pouco de febre, eu suspeito, — ela


murmurou.

— É isto…? — Ele olhou para ela. — Você é real, Grace?

Um sorriso iluminou seu rosto, transformando suas feições


agradáveis em algo bastante adorável. Ela tirou a mão da testa dele,
mas manteve a outra em volta dos seus dedos.

— Muito mesmo, capitão.

— Mas eu não...

Ele disse que você morreu. Julian me disse que você morreu. Por
que ele diria isso se...?
— Ela morreu, Aldous.

Ela! Julian havia dito 'ela'. Não


'Grace'. Mas se não foi Grace, então quem?
A menos que…

Grace inclinou a cabeça.

— Você não sabe o que, senhor?

Uma suspeita vertiginosa invadiu o cérebro de


Aldous.

— O que... e Lady Thackeray. Ela está aqui?

Grace suspirou e olhou para Lorde


Thackeray, que balançou a cabeça.

— A baronesa morreu logo depois que Grace


nasceu, — disse ele. — Na verdade, acredito que foi na
época em que você conheceu Julian. Eu imagino que você
não se lembre disso.

O sangue foi drenado da cabeça de Aldous. Deus o ajude, ele


tinha entendido errado. Todos esses anos, ele entendeu tudo errado.
A irmãzinha de Julian não havia morrido. Ela sobreviveu. Ela estava
aqui agora, de pé diante dele, tocando-o. Ele a encarou
descaradamente, estupefato pela realidade de sua existência.

— Não, — ele disse. — Não me lembro de nada, milorde. Perdão.


Parece que estou um pouco confuso.

— Não me surpreende, dado o que você passou. — Grace tirou a


mão da dele. — Então, você vai comer ou beber alguma coisa? Depois
disso, com respeito, acho melhor você se recolher para noite. Você
está terrivelmente pálido.
Aldous enrolou os dedos em punho,
tentando impedir que o calor do toque de
Grace desaparecesse. Um peso ao longo da
vida acabara de ser arrancado de seu
coração, e ele não sabia muito bem como
reagir. Ele queria rir. Ele também queria
chorar. Mas ele simplesmente sorriu e se
dirigiu à moça como condizia a sua posição.

— Gostaria muito de beber, senhorita


Thackeray, — respondeu ele. — Brandy, por favor.

GRACE SAIU DA cama bem antes do nascer do


sol e espiou através das cortinas para um mundo
irreconhecível. A neve contrariou a escuridão,
cobrindo o chão até onde os olhos podiam ver e
flutuando em lugares onde havia sido pastoreada pelo
vento. Dadas as condições, Grace duvidava que o visitante
enigmático pudesse deixar Highfield, mesmo que ele quisesse. Dentro
de casa, diante de um fogo ardente de carvão, ela decidiu, era o único
lugar sensato para estar em um dia tão sombrio.

O pensamento de passar um dia na companhia do capitão


causou um estremecimento em sua barriga, embora ela fizesse uma
careta para sua reação. Oh, o homem era inegavelmente agradável
aos olhos e com um certo encanto, mas algo em Aldous Northcott não
fazia muito sentido.

Embora sua provação na charneca pudesse ser responsável por


parte de seu comportamento confuso, isso não explicava tudo
completamente. Sua reação a ela, em particular, foi além de estranha.
O olhar em seu rosto quando ela
anunciou seu nome tinha sido de choque
total, como o de um homem que havia sido
apresentado a um fantasma. E a maneira
subsequente como a encarava fora mais
perturbadora do que lisonjeira.

— Sinto muito, Grace. Eu não sabia Eu era


apenas uma criança. Por favor me perdoe.

Perdoar pelo quê? Perdoá-lo por quê? E o uso


casual de seu nome cristão foi um lapso incomum
para um homem de sua criação. Mas isso não
soou como um lapso. Nem soou casual. Em vez disso,
deu a Grace uma impressão de familiaridade
absoluta. Como se Aldous Northcott a conhecesse. Ele
admitiu conhecer Julian, mas aparentemente tinha sido
uma breve amizade de infância. Uma que não tinha sofrido
alterações. Ela se perguntou por que, já que o capitão admitiu que
Julian havia causado uma 'impressão duradoura' nele. Mais um
enigma.

E, Céus acima, ele ousou tocá-la. Pegou a mão dela na dele. As


costas de seu pai ficaram visivelmente enrijecidas, levando Grace a
desviar o incidente, sugerindo que o comportamento ultrajante do
capitão se devia a uma mente febril.

Mas sua testa estava fria. Nenhum sinal de febre.

Então ele seguiu a pergunta mais estranha de todas.

— Você é real, Grace?


Ele passou de agir como se a
conhecesse a vida inteira a duvidar de
sua existência. Extremamente estranho.

Depois que ela o tranquilizou, seu


comportamento mudou. Quase como se ele
tivesse acordado de um sonho. Posteriormente,
ele se dirigiu a ela de acordo com o decoro e
pediu um copo de conhaque, que ele bebeu um
pouco mais rápido do que a sabedoria decretava.
Depois disso, ele se retirou para a cama.

Uma súbita rajada de vento chegou a janela


de Grace, assustando-a com seus devaneios. Com um
beliscão frio no rosto, ela fechou as cortinas e puxou
a manta com mais força sobre os ombros. Ela ainda
não ouvira o relógio do andar de baixo tocar e imaginava a
hora. Como regra, Connie levava chá para o quarto às seis da
manhã. Não querendo esperar, vestiu-se apressadamente à luz de
velas e prendeu o cabelo rebelde em seu costumeiro coque apertado.

Nenhum som perturbava a casa, o que sugeriu uma hora inicial.


Grace passou pela câmara do capitão, sentindo a mesma vibração de
antecipação em sua barriga enquanto se perguntava como ele estava.
O mistério dele a excitou e a intrigou. Talvez ela pudesse resolver isso
hoje.

O relógio no corredor marcava quinze para as cinco. Grace


estremeceu quando abriu a porta da sala, esperando ver uma lareira
fria. Ela sabia que devia estar apagada e resolveu fazê-lo. Para sua
surpresa, a lareira a recebeu com uma
chama brilhante, seu calor já levantando
o frio da manhã.

— Srta. Thackeray. — A silhueta de


um homem levantou-se da poltrona do pai.
— Bom Dia.

— Oh! Capitão Northcott. — Os dedos de


Grace voaram para a garganta dela como se tivessem
parado com um suspiro de surpresa. — Eu achava
que ninguém... quer dizer, eu assumi que você
ainda estaria dormindo,

— Eu não quis assustar você. — Ele deu um


sorriso de desculpas. — Eu estou acostumado a
acordar cedo, embora confesso que não o bastante cedo
quanto isso. Espero que você não se importe de eu ter feito
o fogo.

— Não, não mesmo. É muito acolhedor. — Grace hesitou um


momento quando o decoro levantou a cabeça novamente. Ela decidiu
ignorá-lo e fechou a porta atrás de si. Aos vinte e um anos de idade,
sem um pretendente à vista, por que ela se importaria com essas
coisas? E embora o convidado deles tivesse apresentado algum
comportamento estranho, ela não o achava nem um pouco
ameaçador. — Como você está se sentindo? Você de fato acorda cedo.
Você conseguiu dormir?

— Estou me sentindo muito melhor, senhorita Thackeray.


Obrigado. — Ele esperou até que ela sentasse no banco oposto antes
de retomar ao seu. — E sim, eu dormi.
— Boa. — Grace amaldiçoou a
vibração agora familiar em seu estômago
enquanto examinava sua aparência. —
Você certamente parece melhor esta
manhã.

Na verdade, ele parecia bastante cansado,


embora sua cor tivesse melhorado. Seu cabelo
quase preto tinha sido penteado em uma aparência
boa, mas o início escuro de uma barba sombreava
sua mandíbula, dando-lhe uma aparência um
tanto desleixada. A questão de seus pertences não
havia sido abordada na noite anterior. Ele não tinha
bagagem, exceto um par de alforjes de sela, que
haviam sido colocados em seu quarto.

Como se estivesse ciente da direção de seus


pensamentos, o capitão esfregou sua mandíbula.

— Minha bagagem era para continuar viagem até a casa de meu


tio, então só tenho algumas coisas comigo por alguns dias. Por favor,
desculpe minha falta de cuidados. Não ousei fazer a barba esta
manhã. Ainda me sinto um pouco instável, receio. Meu quarto tem
um tapete oriental bastante esplêndido no chão, e eu não queria
sangrar nele.

Grace sorriu.

— Eu aprecio isso, capitão. E tenho certeza que Herbert ficará


feliz em ajudá-lo a fazer a barba. Ele estará acordado a qualquer
momento. Também não acho prudente continuar sua jornada hoje. As
condições lá fora ainda são assustadoras.
Ele devolveu o sorriso dela, embora
tenha durado apenas um momento.

— Sim, elas estão. Parece que devo


aproveitar ainda mais a sua hospitalidade.

— De nada, senhor, pelo tempo que


precisar. Embora eu espero que você consiga
chegar em casa a tempo do Natal.

Uma expressão estranha surgiu em seu rosto


quando ele se virou para olhar o fogo.

— Srta. Thackeray, você é muito gentil.

Uma troca tão educada e empolgada, pensou


Grace. Um sabor totalmente diferente do da noite
anterior. Ela tinha tantas perguntas, mas ousaria
perguntar? Nada se aventurava, nada ganhava, como
Julian costumava dizer. Julian. Meu Deus, ela sentia tanto a
falta dele. Talvez falar dele fosse um bom lugar para começar.

Ela limpou a garganta e brincou com as saias.

— Eu estava pensando, capitão, se você me dissesse como


conheceu...

A porta se abriu e uma criada entrou na sala com um balde de


carvão, os olhos arregalando-se quando ela parou.

— Desculpe, senhorita. Eu não sabia que havia alguém aqui.

— Está tudo bem, Peggy. — Grace apontou para a lareira. —


Encha a panela e peça a Connie que traga um pouco de chá e
torradas, por favor. Ou você prefere café, capitão Northcott?

Ele se mexeu na cadeira.


— Srta. Thackeray chá está bem.

A garota fez o que pedia, sacudindo


uma reverência ao sair.

— Não temos uma grande equipe


permanente em Highfield, — disse Grace
depois que a porta se fechou mais uma vez. —
Nós realmente não precisamos de uma equipe
grande, pois só eu e meu pai moramos aqui. Ficamos
um pouco reclusos nos últimos tempos, receio. A
saúde do meu pai diminuiu desde a morte de
Julian, então ele não viaja mais.

O capitão balançou a cabeça.

— Lamento muito saber da morte de Julian,


Srta. Thackeray.

Um breve sorriso tocou seus lábios.

— Eu acendo uma vela para ele todas as noites e coloco na


janela circular de vitral.

— Um sinal de vida, — ele murmurou.

— Perdão?

— Ontem à noite, as janelas de Highfield estavam todas escuras,


exceto a vela solitária, então eu sabia que alguém estava em casa. —
Ele a olhou com uma expressão indefinível. — Para mim, foi um sinal
de vida.

— Ah, eu entendo! — A pele arrepiada formigou na nuca. —


Essa é... essa é realmente uma maneira maravilhosa de descrevê-la.
Julian sempre foi tão cheio de vida.
— E eu o conheci no carvalho. —
Ele arqueou uma sobrancelha
interrogativa. — Suponho que é isso que
você estava prestes a me perguntar antes de
sermos interrompidos.

— Sim. — O coração de Grace deu um


pequeno salto. — Sim, era. Pode me contar,
capitão?

— Eu...

Uma batida na porta e Herbert entrou com


uma bandeja do chá e as torradas solicitadas.

Grace se levantou, mal reprimindo um suspiro.

— Por que você está fazendo isso, Herbert?


Onde está Constance?

— Ela estava a caminho daqui com a bandeja, senhorita,


e eu também, então a aliviei. Não há necessidade de estarmos a
incomodando. — Ele deu um aceno de saudação ao capitão Northcott
e colocou a bandeja no aparador. — Lorde Thackeray me pediu para
avisar que ele não vai tomar café da manhã, mas vai acompanhá-los
para o almoço.

— Oh, Céus. — Grace esfregou a têmpora. — Ele teve uma noite


ruim?

Herbert fez uma careta.

— Uma noite inquieta, senhorita, embora ele pareça estar de


bom humor. Ele disse para não se preocupar. Ele simplesmente
gostaria de dormir um pouco mais. Eu devo acordá-lo às onze.
Um pouco apaziguada, Grace deu
um suspiro.

— Muito bem. Obrigada Herbert. Eu


vou servir o chá.

O homem assentiu novamente.

— Também estou ao seu dispor, capitão


Northcott, caso exista algo que você precise.

O capitão esfregou o queixo novamente.

— Um barbear seria muito bem-vindo,


Herbert. Um pouco mais tarde, talvez?

— Como quiser, senhor. Apenas diga quando.


Café da manhã às nove, senhorita?

— Sim, obrigada. — Grace se remexeu quando a


porta se fechou. — Certo, espero que não haja mais
interrupções. Como você toma seu chá, capitão Northcott?

ALDOUS PASSOU A maior parte da noite tentando entender a


verdade sobre Grace. Embora isso alegrasse seu coração além das
palavras, ele mal podia usá-lo para se absolver. Talvez agora ele
pudesse seguir em frente com sua vida e encontrar satisfação. O
único arrependimento adicional foi saber da morte de Julian, e em
Waterloo, nada menos. A imagem do avental ensanguentado do
cirurgião deslizou em sua mente.

Aldous afastou-o e olhou para a jovem sentada à sua frente. Os


cabelos estavam presos da maneira desagradável de sempre, embora
com um pouco menos de cuidado, talvez, do que na noite anterior. Ele
se perguntou como seriam soltos.
Ela estava inquieta.

Ela o estava olhando, ele percebeu,


e pigarreou. Pela primeira vez, ele estaria
compartilhando memórias de sua visita a
Highfield. Mas nem todas elas, ele decidiu.
Somente aquelas significativas para Grace.

— A primeira vez que conheci Julian, ele


estava sentado no velho carvalho, — ele começou. —
Era quarta-feira. Eu sei disso porque...

E sua história continuou.

Grace estava sentada de frente para ele, o chá


frio na xícara, o olhar atento enquanto ouvia sem
interromper. Ele certamente imaginou as imagens
refletidas nos olhos dela, visões de seu irmão como ela
nunca o conhecera. Um garoto magro com cachos e sardas,
que havia pulado de um carvalho antigo e pousado aos pés de
Aldous. Um garoto que amava seu pônei, uma casa extraordinária
chamada Highfield e sua irmãzinha recém-nascida.

Grace chorou com isso, lágrimas silenciosas que deslizaram por


suas bochechas, arrastando a autoestima de Aldous com elas. Ele
enviou uma oração silenciosa pedindo perdão, lembrando da outra
vez que ela chorou. Ele passou a descrever a chuva e o subsequente
jogo de dominó, embora tenha omitido dizer onde o jogo aconteceu ou
quem ganhou.

— Quando a chuva parou, eu me despedi e voltei para Northcott


Manor. Parti dois dias depois para Londres.
— Minha mãe morreu na quinta-
feira, então você não saberia disso. — Ela
bateu um dedo no queixo. — E você nunca
viu Julian depois disso?

— Não depois que eu deixei Northcott,


não. — Não era exatamente uma mentira, no
contexto. — Fui enviado para o colégio interno
quase imediatamente. Depois fui para Oxford e dali
para o exército. Esta é a minha primeira visita a
Yorkshire desde criança.

— Bem, você certamente pinta uma imagem


vívida com suas palavras, capitão. Suas lembranças
daquele dia são notáveis. — Grace deu um suspiro.
— Por favor, faça concessões para minhas lágrimas
anteriores. Espero que não o tenham incomodado muito.

Oh, a pertinência dessa observação! Aldous retomou sua


oração e se amaldiçoou por uma eternidade em Hades.

— Foi um dia especial que ficou claro em minha memória,


senhorita Thackeray. Quanto às suas lágrimas, lamento tê-las
causado.

Ela balançou a cabeça.

— Tenho a sorte de ter ouvido falar sobre sua breve amizade


com meu irmão, embora deva dizer que acho uma pena que não
tenha continuado. Eu acredito que poderia ter sido algo bastante
especial.

ALDOUS, AGORA BARBEADO, juntara-se a Grace no café da manhã.


Duas horas depois, eles ainda estavam sentados à mesa, conversando
sobre tudo e qualquer coisa. Aldous se
viu atraído por ela, ansioso para
descobrir sobre seus gostos e desgostos.
Por quase toda a sua existência, ela tinha
sido uma parte desconhecida dele. Uma
vida sem vida.

Através dela, ele também renovou sua


conexão com Julian. Sempre que Grace falava de seu
irmão, uma luz vinha a seus olhos. E Aldous se viu
desejando, tolamente, que merecesse uma luz
semelhante nos olhos dela um dia. Ele sabia, é
claro, que nunca poderia ser. Não com ela ou com
qualquer outra mulher.

Lorde Thackeray apareceu ao meio-dia,


assegurando a Grace que ele se sentia bastante
descansado.

O resto do dia passou de forma preguiçosa, mas agradável,


terminando com um jantar casual. Lá fora, um vento fresco vindo do
Sudoeste começara a mover a neve.

— Acho que amanhã você estará a caminho, capitão — disse


Lorde Thackeray a noite. — Não que tenhamos pressa de vê-lo partir,
é claro. Mas tenho certeza que você gostaria de estar com sua família
no Natal.

— Estou mais do que agradecido por sua hospitalidade, milorde.


— Aldous deu um sorriso sombrio. — Se não fosse por Highfield,
duvido que tivesse visto o Natal este ano e nos outros.
— Prefiro não me demorar nesse
pensamento, — disse Grace, colocando o
guardanapo de lado. — Gostaria de saber,
capitão, se você gostaria de me acompanhar
enquanto eu acendo a vela de Julian.

Ele se levantou.

— Srta. Thackeray, ficaria honrado.

— Boa. E depois disso, acho que vou me


recolher. — Ela foi até o pai e deu um beijo na
bochecha dele. — Boa noite, pai.

— Boa noite minha querida.

Embora não fosse um homem particularmente


religioso, Aldous, no entanto, sussurrou uma oração
por seu amigo de infância enquanto Grace acendia a vela
solitária.

— Um sinal de vida, — disse ela, com os olhos suaves ao olhá-


lo. — A partir de agora, capitão, sempre pensarei assim.
Sexta-feira, 24 de dezembro de 1819 d.C.

ALDOUS PAROU NO carvalho e olhou para


Highfield. O que havia naquela casa destruída?
Mais uma vez, sua experiência havia sido
profunda, ligando-o inexoravelmente às suas antigas
muralhas e aos que viviam lá dentro. Enquanto
alguns fantasmas foram colocados para descansar,
outros se manifestaram. E Grace Thackeray, ao que
parecia, ainda ocupava seu coração.

— Não há escapatória, Aldous — ele murmurou, insistindo com


o cavalo. — Nenhuma escapatória.

Sua chegada inesperada a Northcott Manor causou uma grande


agitação. Novamente, por alguma razão insondável, ele nunca
mencionou Highfield. Só que a carruagem estava atrasada e com ela
sua bagagem.

Seu padrinho, em particular, ficou encantado em vê-lo e, mais


tarde, quando os outros convidados estavam cochilando, conduziu
Aldous para o escritório dele.

— Há algo que eu gostaria que você fizesse por mim antes de


morrer, Aldous, — disse ele. — Sente por favor.
Franzindo o cenho, Aldous fez o que
ele pediu.

— Espero que você não morra tão


cedo, tio. O que é que você quer?

Percival se sentou em sua cadeira e


pigarreou.

— A verdade.

— Sobre o quê?

— Sobre Highfield.

A boca de Aldous ficou seca.

— Highfield?

— Você estava lá, Aldous. No verão de 1798.

— Como você sabe disso?

— Porque vi Frederick Thackeray no funeral de sua


esposa na semana seguinte à sua saída, e ele mencionou. Eu tive
que fingir que sabia, porque você nunca falou disso. Por quê? O que
aconteceu naquela época? Eu sei que algo aconteceu. Suas mentiras
podem ter funcionado com seus pais, mas não comigo.

Aldous levantou-se e foi até a janela.

— Não é importante.

— Então me fale sobre isso.

— Por quê?

— Porque, seja o que for, isso mudou você. Você nunca mais
voltou aqui, por um lado. Do que você estava com medo?
Aldous virou-se para encarar o tio.

— Vai parecer tolice.

— Uma vez te disse que nunca te


julgaria. Isso ainda é verdade.

Aldous riu.

— O mais estranho é que fiz uma


descoberta há dois dias que mudou tudo.

— Diga-me Aldous.

Ele se sentou novamente.

— Quanto tempo você tem?

— Por quanto tempo for necessário.

Pela primeira vez desde que tudo aconteceu,


Aldous compartilhou todos os detalhes daqueles dois dias
e os efeitos subsequentes que tiveram na vida dele. Ele até
compartilhou a verdade sobre sua lesão e terminou com sua
recente e notável descoberta em Highfield.

— É isso aí, — disse ele, sentindo-se mais leve de alguma forma,


mas amaldiçoando o nó na garganta. — Isso é tudo.

Percival olhou para ele por um momento e depois se levantou.

— Você tem que parar com isso, Aldous.

— Parar o quê?

— De manter as coisas para si mesmo. Isso é prejudicial. — Ele


fez uma careta. — E você tem que se casar com Grace Thackeray.

Aldous riu.
— Eu te disse, não vou me casar
com ninguém. E eu te disse o porquê.

— Sim, você disse, — disse ele, indo


para a porta. — Mas ainda digo que se case
com a garota. Ela foi feita para você. Ah, e,
a propósito, quando eu finalmente morrer, esta
casa é sua.
26 de fevereiro de 1820 d.C.

UM DIA DECIDIDAMENTE INFELIZ, pensou Aldous,


olhando pela janela a paisagem de Londres. Ou o
pouco que ele podia ver, dada a mistura de garoa e
nevoeiro. Sua mão tremia um pouco quando ele levou
o copo de vinho aos lábios depois de estar um pouco
ébrio nos últimos dias. O pelo proverbial espetado de
cachorro parecia estar baixando agora, no entanto. A
pulsação atrás de seus olhos diminuiu um pouco, e sua língua
não parecia mais como se tivesse brotado penas.

Atrás dele, a porta se abriu com um rangido abafado, seguido


pelo pisar suave de um chinelo no tapete.

— Boa tarde, mãe, — disse ele, sem se virar.

— Aldous. — A condessa viúva veio e ficou ao lado dele. — O que


você está olhando?

Ele respirou seu perfume familiar.

— Nada.

O silêncio pairou entre eles por um momento.


— Faz quatro dias, — disse ela
finalmente. — Eu estava preocupada.

— Não precisa, — ele respondeu. —


Eu estava com uma amiga.

— Ela é boa? — Ela fungou. — E não


estou muito interessada em sua escolha de
perfume.

— Ela é boa comigo. — Aldous tomou outro gole


de porto. — Mas eu não acho que você gostaria
dela.

— Não, provavelmente não. — Um papel


apareceu embaixo do nariz dele. — Uma carta veio
para você enquanto estava fora. De Yorkshire.
Cheira a flores do verão.

O coração de Aldous deu um pulo quando ele largou o


copo.

— Obrigado, — disse ele, pegando a carta da mãe com a mão


trêmula.

Ela inclinou a cabeça.

— Você acha que eu gostaria desta?

Sua boca se contraiu.

— Sim, mãe, — ele respondeu. — Você provavelmente gostaria.

— Então estou ansiosa para conhecê-la.

— Isso nunca vai acontecer.

— Por quê?
Ele balançou sua cabeça.

— Você não entenderia.

— Graças a um certo padrinho seu,


eu entendo mais do que você imagina.

Aldous ofegou.

— Bom Deus. O que ele te disse? Não


importa, não responda a isso.

— Ele não fez por mal, Aldous. Muito pelo


contrário, de fato. Você sempre foi o favorito dele.
— Ela tocou o rosto dele. — Não espere filho. Se
você ama essa garota.

— Eu não a amo. — Por que isso parecia


mentira? Ele fez uma careta. — Eu mal a conheço.

Ela bateu o envelope na mão dele.

— No entanto, há uma luz em seus olhos que não existia


há um momento atrás. Se é essa garota, você deve contar a ela,
Aldous. Caso contrário, você se arrependerá pelo resto da vida.
Marque minhas palavras.

Arrepender. Eu sou um especialista nisso.

— Tio Percival teve alguma coisa a ver com o envio desta carta?

— Ah, não. — Franzindo a testa, ela balançou a cabeça. — Não,


meu querido, tenho certeza que ele nunca seria tão presunçoso.

Aldous foi para um canto privado para ler a carta de Grace.

Quarta-feira, 18 de fevereiro de 1820


Meu caro capitão Northcott,

Eu conheci seu tio na igreja na


semana passada, e ele me incentivou a
escrever para você pessoalmente.

Aldous ergueu os olhos para o teto e


murmurou uma maldição antes de continuar.

Confio que esta carta o encontrará de boa


saúde e bom humor.

É com um coração triste, no entanto, que devo


informá-lo da recente morte de meu pai. Ele morreu
tranquilamente em seu sono na noite de 29 de janeiro. Sinto
muita falta dele, é claro, e rezo para que ele tenha encontrado a
paz que o iludiu a buscar por tanto tempo.

Por enquanto, até que meu futuro se torne mais aparente,


segui o conselho de meu advogado e fui morar com o reverendo e
a Sra. Stone no vicariato em Morthwaite. Eles foram muito gentis
e estou muito à vontade com eles.

Pela primeira vez em mais de trezentos anos, no entanto,


Highfield não tem um Thackeray sob seu teto, embora eu espero
que seja apenas um lapso temporário.

Por favor, capitão, não se sinta obrigado a responder a esta


carta. Foi escrito simplesmente como um gesto de cortesia. Meu
pai e eu gostamos de tê-lo como
convidado por alguns dias antes do
Natal. Ele falou de você frequentemente.

Espero que, quando você estiver em


Yorkshire, reserve algum tempo para me
procurar. Seria um grande prazer vê-lo
novamente.

Atenciosamente,

Grace Thackeray.

Aldous dobrou a carta e a colocou no bolso.

Quarta-feira, 8 de março de 1820 d.C.

A VILA DE Morthwaite, aninhada em um vale no lado oeste da


charneca, ostentava uma igreja, duas fazendas, uma casa pública e
uma pequena loja da vila. Naquela manhã brilhante de março, os
narcisos brotantes as margens da estrada balançavam suas pétalas
douradas enquanto Aldous passava. Ele mal percebeu. Seu estômago
estava com um nó. Mais uma vez, ele teve que enfrentar uma
tempestade, se esperava encontrar a paz do outro lado. Este seria o
seu dia de acerto de contas, depois de tudo o que tinha acontecido.

Ele perguntou como chegar ao vicariato.


— Além, — disse a velha, apontando
com o queixo. — Desça até o fim da faixa
e vire à esquerda na igreja. Você não pode
se perder.

Ele não podia começar a adivinhar o


resultado do dia. Ele podia apenas ter
esperança. Ele sabia, no entanto, que não teria
mais ninguém além de Grace. Se ela o recusasse, o
que ela poderia, uma vez que ouvisse a verdade, ele
simplesmente...

— Aldous? — Ele murmurou, passando pelo


cemitério. — O que você vai fazer? Você não tem ideia,
não é?

O vicariato, uma bela casa de arenito com janelas


arqueadas e uma porta central preta, ficava de frente para a
passarela. Aldous desmontou, amarrou o cavalo no portão e
subiu o caminho. Respirando fundo, ele lançou um par de batidas
sólidas na porta.

Foi aberta quase imediatamente por uma serva doméstica.

— Sim, senhor?

Ele tirou o chapéu.

— Meu nome é Aldous Northcott e estou aqui para ver a


senhorita Thackeray. Ela está em casa?

A serva piscou.

— Ela está esperando você, senhor?


— Não. — Ele deu um sorriso de
desculpas. — Não, eu receio que ela não
esteja.

— Está tudo bem, Milly, — disse uma


voz familiar. A serva se afastou e Grace
apareceu na porta, com um rubor suave de
rosa nas bochechas. — Capitão Northcott, que
surpresa agradável! — Ela abriu a porta. — Por favor
entre.

— Obrigado, senhorita Thackeray. —


Brincando com a aba do chapéu, ele entrou em
um vestíbulo acolhedor. — Talvez eu devesse ter
mandado um recado. Se for inconveniente...

— Não é nada inconveniente. Estou muito feliz em


vê-lo. — A cor em suas bochechas se aprofundou. — Milly
vai levar seu casaco e chapéu. Gostaria de tomar um chá?

— Sim, obrigado. Isso seria bom.

Ela assentiu com um pedido para a criada.

— Por aqui, capitão. Você vai ficar com seu tio, presumo?

— Sim. — Ele a seguiu até uma sala onde um fogo queimava


preguiçosamente na lareira. — Eu recebi sua carta. Minhas
condolências pela perda de seu pai. Embora eu o conhecesse apenas
brevemente, ele me impressionou como sendo um homem honrado.

— Obrigada. Sim, ele faz muita falta. — Ela apontou para uma
poltrona. — Por favor sinta-se em casa.

Ele olhou ao redor enquanto se sentava.


— Você está sozinha aqui?

Ela assentiu.

— Por enquanto. O reverendo e sua


esposa estão visitando uma família em uma
vila próxima e voltarão mais para o final da
tarde. Quanto tempo você pode ficar? Tenho
certeza que eles adorariam conhecê-lo.

Aldous fez uma careta interiormente. Ele


realmente não estava aqui para tomar chá e trocar
gentilezas. Ele estava aqui para contar verdades
há muito escondidas, algumas delas duras. E ele
estava aqui para obter respostas. Grace olhou para ele
com uma leve carranca no rosto, esperando uma
resposta. Ela estava linda. E frágil. Muito frágil. Ele
precisava consertar isso. Ele precisava provocá-la um
pouco. Apoiar suas defesas e enrijecer sua espinha dorsal. Pelo
bem dele, tanto quanto dela.

Ela inclinou a cabeça.

— Capitão?

— Quem arrumou seu cabelo esta manhã, Grace?

Seus olhos se arregalaram e seus dedos voaram para os cachos


perdidos que suavizaram o contorno de seu rosto.

— Meu cabelo?

— Sim. Você fez isso?

— Não, Milly faz isso por mim. Por quê? Tenho medo de não...
— Eu gosto disso. Combina com
você. Parece muito melhor do que aquele
terrível penteado de governanta que você
tinha antes.

Ela se encolheu.

— Penteado de governanta?

— Sim. Receio que o estilo anterior não tenha


feito nada para você.

— Uma observação bastante direta, capitão.


— Os lábios dela afinaram um pouco. — Você
andou bebendo?

— Meu nome é Aldous. E não, eu não bebi, nem


sei quanto tempo vou ficar. Isso depende
inteiramente de você.

A porta se abriu e a criada entrou com uma bandeja de


chá.

— Devo servir, milady?

— Não, apenas coloque-o sobre a mesa, Milly. Obrigada. —


Grace esperou a serva sair antes de falar com Aldous novamente. —
Não tenho certeza de quem você é agora, senhor, mas parece claro
que não é você mesmo.

— Ou talvez eu esteja, — respondeu Aldous. — Receio não estar


aqui para uma conversa educada, senhorita Thackeray.

Ela piscou.

— Então por que você está aqui?


— Por duas razões. — Ele
encontrou o olhar dela e o segurou. — A
primeira é pedir que você seja minha
esposa.

As mãos dela voaram para o rosto.

— Sua esposa? Capitão Northcott, eu...

— Eu sei. Não é a mais romântica das


propostas, é? — Ele deu um sorriso sombrio. — E
depois da minha observação franca, você
provavelmente me recusaria de qualquer maneira.
Mas eu disse que estava aqui por duas razões.
Você ainda não ouviu a segunda.

O cenho voltou.

— Qual é?

— Para dizer a verdade, o que também está longe de ser


romântico.

— A verdade sobre o quê?

— Sobre o que realmente aconteceu no dia em que conheci


Julian. Sobre o choro desamparado de um bebê. Sobre o dia em que
você morreu. Sobre uma amizade abandonada pela vergonha. — Ele
engoliu bile. — E sobre mim, Grace. A verdade sobre mim. Depois de
ouvir tudo, você pode me dar sua resposta. Se você me recusar, juro
que vou embora sem problemas e nunca mais a incomodarei.

— Sobre o dia em que morri? — Lágrimas brilhavam em seus


olhos quando ela se levantou. — Desculpe capitão. Não sei o que
aconteceu com você, mas acho melhor você ir embora.
Ele gemeu.

— Eu apenas pensei que você


tivesse morrido, Grace. Por favor, sente-se
e deixe-me explicar. Você não tem nada a
temer, eu juro.

O peito dela subiu e caiu enquanto o


olhava.

— Muito bem, — disse ela, retomando a


cadeira. — Mas é melhor que essa explicação faça
sentido.

Sentido? Quando alguma coisa já fez sentido?

Aldous reuniu seus pensamentos. Quantas


vezes ele repetiu aqueles dois dias em sua cabeça?
Mil vezes? Dez mil vezes? Mas essa seria apenas a segunda
vez que ele contaria suas experiências em voz alta. Seria a
última vez também. Depois disso, não importando a reação de
Grace, ele colocaria as memórias em alguma prateleira obscura em
seu cérebro e as deixaria acumular poeira.

— Por favor, não me interrompa, Grace. Deixe-me terminar o


que tenho a dizer. Depois disso... — Ele soltou um suspiro. — Bem,
não tenho certeza do que esperar depois disso.

Grace assentiu, e Aldous contou sua história, observando uma


variedade de expressões cruzar seu rosto enquanto ele fazia isso. Ela
já sabia um pouco do que havia ocorrido, mas desta vez ele
acrescentou detalhes. Um chão que rangeu. Chuva na janela. O
pungente chora de uma menina recém-nascida. Um voto tolo que ele
fez. Um dominó vencedor que nunca foi
colocado. A culpa e a vergonha. As coisas
não ditas.

E as mentiras. Tantas mentiras.

Ele contou tudo, até o momento em


que Julian enfiou o rosto manchado de
lágrimas pela porta e pronunciou as palavras que
envolveram uma mão gelada no coração jovem de
Aldous.

— Ela está morta, Aldous.

— Ela morreu?

— A noite passada. Eu tenho que ir. Desculpe.

E Grace chorou novamente enquanto ele falava,


mais lágrimas silenciosas que trouxeram suas próprias
lágrimas à superfície. Mas ele não respondeu ao choro e nem
se livrou das lágrima. Ele continuou sua história, impulsionado pela
necessidade de purgar sua alma para essa mulher. Para explicar
como esses dois dias mudaram sua vida. Mudou a ele. Ele transmitiu
tudo o que importava, quase tudo, até a noite em que chegou, quase
morto de frio, aos portões de Highfield.

— E vi a vela solitária brilhando na janela. Um sinal de vida,


pensei, como de fato era. Pois foi nessa noite que descobri que você
não havia morrido. Que eu tinha entendido mal as palavras de Julian.
Ele estava falando sobre sua mãe. Não de você. — Aldous colocou a
mão em cima do coração. — Você manteve meu coração em cativeiro
durante a maior parte da minha vida, Grace. Você era um fantasma
secreto da infância que eu não pude exorcizar. Descobrir que você
estava viva deveria ter libertado meu
coração, mas não o fez. — Ele respirou
fundo. — Parece que você o capturou
novamente. Só que desta vez, sou um cativo
disposto.

— Oh, Aldous.

Ele levantou a mão.

— Ainda não terminei. Há algo mais que devo


lhe dizer.

— O quê?

— Primeiro, eu garanto que não há piedade no


que estou prestes a dizer. Eu não aguentava isso,
Grace. Você deve simplesmente recusar minha
proposta, se for isso que deseja fazer. Promete.

Ela assentiu.

— Eu juro.

— Bom. — Ele limpou a garganta. — Isso tem a ver com a lesão


que sofri em Waterloo. O pedaço de estilhaço causou algum dano
interno, cuja extensão não é certa. Ainda posso funcionar como
homem, mas há uma possibilidade de não ser capaz de ter filhos,
então pedir para você se casar comigo é pedir... bem, é pedir muito. —
Ele esfregou a parte de trás do pescoço. — Talvez eu tenha me
amaldiçoado quando fiz esse voto tolo anos atrás.

Grace olhou para ele por um momento.


— Entendo, — ela disse finalmente
e olhou para o colo. — Agradeço sua
honestidade, capitão, e, pelo que você me
disse, gostaria muito de algum tempo para
pensar em minha resposta.

Aldous sentiu algo rasgar em seu coração,


mas manteve sua expressão quieta quando se
levantou.

— Claro. Então vou me despedir de você.


Estarei em Northcott Manor pelo resto da semana,
para que você possa enviar uma mensagem para
lá.

Ela levantou a cabeça e olhou para ele, sua


expressão grave.

— Duvido que demore muito para eu lhe dar minha


resposta.

— Compreendo. — Ele passou a mão pelos cabelos. — Olha, eu


vou facilitar para você. Se não tiver notícias suas, simplesmente
considerarei uma recusa.

Ela baixou os olhos novamente.

— Isso é muito atencioso da sua parte, senhor.

— Certo. Bem, bom dia para você, Grace, Srta. Thackeray. Por
favor, não se incomode. Eu posso sair sozinho.

Ela não respondeu. Aldous engoliu o nó na garganta e se dirigiu


para a porta. Tanto para um acerto de contas. Parecia que ele seria
assombrado pelo fantasma de Grace
Thackeray pelo resto da vida. Ele colocou
a mão na maçaneta da porta.

— Capitão Northcott?

Ele se virou para ver Grace em pé.

— Sim?

— Eu tomei minha decisão. — Ela encolheu os


ombros. — Foi fácil de fazer, na verdade. Eu só
precisava de um pouco de tempo para compilar
minha resposta, mas acredito que a tenho agora.
Você vai ouvir?

Ele engoliu em seco novamente.

— Eu irei, é claro.

— Bom. — Ela se aproximou e pegou a mão dele,


assim como ele a pegara não faz muito tempo. Só que ela
trouxe para os lábios e segurou lá. Aldous prendeu a respiração. Ele
ousaria ter esperança?

— Eu não acredito em maldições, Aldous, — disse ela


finalmente, olhando para ele. — E mesmo que eu acreditasse, prefiro
viver com essa possibilidade que mencionou do que viver sem você.
Então, minha resposta para sua proposta é sim. Não há nada que eu
queira mais do que estar em sua vida pelo resto da minha.
Highfield, Yorkshire

Véspera de Natal, 1821 d.C.

ALDOUS CAMINHOU ATÉ o relógio da lareira e


olhou para ele.

— São oito e vinte — ele disse, coçando a


mandíbula. — Isso não pode estar certo. A coisa
maldita parou?

— Não, Aldous, não parou. — A condessa viúva de


Hutton, sentada no meio de uma pilha de almofadas de seda no
sofá, soltou um suspiro suave. — Bateu oito vezes há vinte minutos
atrás, se você se lembra. Enquanto tiver recordado, acenda um pouco
o fogo, sim? Está frio aqui com a porta aberta. Então, por favor, se
acomode. Você está me deixando tonta com esse absurdo de tanto
caminhar.

— Mas já deveríamos ter ouvido algo, não acha? — Ele pegou o


atiçador e cutucou os carvões, persuadindo uma nova explosão de
chamas deles. — Por que demora tanto tempo?

Seguiu-se um sopro muito pouco feminino.

— Ainda vai demorar, meu querido. Possivelmente amanhã.


Aldous gemeu e caiu em uma
cadeira.

— Receio que ela não seja forte o


suficiente para aguentar por tanto tempo,
mãe. Espero que esse sujeito de Huntley
saiba o que está fazendo. E se algo der errado?

— Nada vai dar errado, — respondeu Lady


Hutton. — Grace tem estado radiante por toda a
gravidez. Na verdade, nunca vi uma mulher tão
adequada a isso. E Horace Huntley é um dos
melhores parteiros do campo. Ele ajudou em todos
os nove filhos de Lady Creighton sem um único
problema.

Aldous grunhiu.

— Lady Creighton é constituída como uma égua do


condado. Ela provavelmente os solta sem um guincho.

— Aldous, sério!

— Enquanto Grace é... delicada.

— Você a subestima.

— Normalmente não. Mas isso é diferente.

— É um milagre de Natal, — disse sua mãe. — Tenha fé.

Um milagre? Na verdade, Aldous havia pensado o mesmo muitas


vezes nos últimos meses.

No início de seu casamento com Grace, dezoito meses antes,


Aldous se apegara à esperança de que a bagunça provocada por esse
fragmento de estilhaço não tivesse sido tão ruim quanto se
suspeitava. O amor deles merecia ser
abençoado pelo milagre da vida, ele
pensava, pois a paixão um pelo outro era
tão pura quanto profunda. No entanto,
nenhuma vez ele viu decepção no rosto de
Grace quando, mês após mês, sua menstruação
chegava. Ele se perguntava se ela via o
desapontamento dele, apesar de seus esforços para
escondê-lo. Vários meses após o casamento, Aldous
decidiu deixar seu pequeno pedaço de esperança
de lado e aceitar o que era de fato.

Então, em uma manhã brilhante no meio de


julho, depois de quase um ano de casamento, Grace
sentou-se para o café da manhã e um sorriso no
rosto.

— Eu disse que não acreditava em maldições, Aldous, —


ela disse, colocando ovos mexidos no prato. — Se for um menino, eu
gostaria de chamá-lo de Julian.

Grace recusou-se veementemente a ter o filho em outro lugar


que não Highfield. À medida que o tempo se aproximava, Aldous se
assegurou de contratar os serviços de Horace Huntley, um respeitável
parteiro, que se instalara em Highfield há quinze dias. Lady Hutton
havia chegado na semana seguinte e assumido o controle da casa
sem desculpas.

Aldous fechou os olhos e afundou na cadeira. Um milagre de


Natal? Eu oro que seja assim. Por favor, Deus, deixe a Grace ficar bem.
Deixe nosso filho nascer saudável e forte.
Ele abriu os olhos e sentou-se.

— O que foi isso?

— O que foi o quê?

— Pensei ter ouvido alguma coisa.

Lady Hutton lançou-lhe um olhar


divertido.

— Não ouvi nada, meu querido.

— Eu ouvi mãe. Eu sei que sim. — Aldous


deixou a cadeira, foi até o pé da escada e olhou
para as sombras no patamar, ouvindo apenas
silêncio. Talvez ele tivesse imaginado o som. Ou talvez
fosse simplesmente o remanescente de uma
memória que ele há muito tempo deixara de lado.

Mas veio de novo. Um inconfundível lamento de


protesto, emitido por uma criança que não se impressiona com
sua jornada de chegar ao mundo. Um forte protesto, também, ficando
mais forte a cada momento. Nada de fraco ou hesitante sobre isso.

— Bem, isso não demorou muito, — disse sua mãe, movendo-se


para ficar ao lado dele. — E isso é um grito forte. Um bom sinal.

Mas e quanto a Grace?

Aldous começou a subir as escadas.

— Você talvez deva esperar até ser convocado, Aldous, — disse a


mãe.

— Meu filho está chorando, mãe, — respondeu ele, sem olhar


para trás. — Isso já é o suficiente.
Quando Aldous alcançou a porta do
quarto, os gemidos cessaram. Ele
prendeu a respiração e pegou a maçaneta
da porta no momento em que a porta se
abriu.

Horace Huntley se encolheu.

— Ah, capitão Northcott. Você me assustou.


Eu estava prestes a convocá-lo. Parabéns, senhor,
pelo nascimento do seu filho. Um garoto saudável!

Um filho? Aldous engoliu em seco.

— E a minha esposa? Ela está bem?

O homem sorriu.

— Ela está com excelente saúde, senhor. O


nascimento foi tão direto quanto nunca antes aconteceu.
Sem complicações. Entre, por favor! A Sra. Northcott está
ansiosa para vê-lo. Vou deixá-los em particular.

— Obrigado, Sr. Huntley.

Aldous entrou no quarto e olhou para a cama onde Grace estava


encostada a uma cabeceira cheia de travesseiros, olhando para um
pacote em seus braços. Ela levantou a cabeça, sua expressão
radiante.

— Oh, Aldous, olhe! Venha e olhe para o seu filho. Ele é perfeito.

Ele se aproximou, não olhando para o filho, mas para Grace. A


visão dela quase parou seu coração. Seus cabelos, uma massa de
cachos macios e soltos, caíam sobre os ombros, um suave rubor de
rosa espanava suas bochechas e a
alegria, mais brilhantes que as estrelas
no céu, brilhavam em seus olhos.

Ele se inclinou e a beijou.

— Você está maravilhosa, minha


querida.

— Eu me sinto maravilhosa, Aldous. — Grace


levantou o embrulho. — Aqui está seu filho, meu
amor. Julian Aldous Northcott. Nosso milagre de
Natal.

Aldous pegou o pacote e olhou para o pequeno


rosto enrugado, seu coração se enchendo de uma
emoção nova e maravilhosa.

— Olá, Julian, — ele sussurrou. — Bem-vindo a


Highfield. — E então, pela primeira vez em mais de vinte
anos, Aldous Northcott chorou.

— Oh, Aldous, — Grace murmurou.

Levou alguns minutos para se recompor, período em que Grace


não disse uma palavra.

— Me perdoe. — Ele fungou e colocou a criança de volta em seus


braços. — Não tenho certeza de onde isso veio.

— Estavam muito atrasadas essas lágrimas, meu amor, — disse


Grace. — Você já acendeu a vela?

— Não. — Aldous se inclinou e a beijou novamente. — Eu vou


fazer agora.
Ele vagou pelo patamar da escada,
seu passo desacelerando enquanto se
aproximava da janela, intrigado com o que
viu.

— O que…?

Ele piscou, tentando lembrar se já havia


acendido a vela solitária que agora lançava sua
luz dourada sobre os pequenos painéis de vidro. Não,
ele definitivamente não tinha. Um dos criados,
talvez? Não, acender a vela era um ritual familiar.
Eles não seriam tão ousados. E a mãe dele? Nunca
lhe ocorreria fazer uma coisa dessas.

— Então quem…?

Ele ficou parado por um momento, observando a


chama queimar constantemente, e ousou acreditar que
houvera dois milagres de Natal naquela noite. Como se em
resposta, o som do choro de um bebê surgiu no ar e a vela
tremeluziu.

— Um sinal de vida, — Aldous murmurou enquanto se afastava.


— Eu vou cuidar bem deles, Julian. Eu prometo.
1 A fazenda Mont-Saint-Jean é uma fazenda caracteristica que serviu como hospital militar para
tropas inglesas durante a Batalha de Waterloo. Em 15 de junho de 1815, o duque de Wellington
decidiu estabelecer seu hospital de campo na Ferme de Mont-Saint-Jean. Durante e após a
batalha de Waterloo, quase 6000 soldados foram tratados lá.
2 Posting – postagem.

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