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ISEU – A VALQUÍRIA

PEDRO HENRIQUE LOBÃO CAVALCANTI


25/04/2022

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SUMÁRIO

PRÓLOGO (p.3)
I (p.6)
II (p.10)
MIDGARD (p.11)
HEL (p.20)
RETORNO A MIDGARD (p.30)
NIFLEIM (p.33)
JOTUNHEIM (p.36)
NÍDAVELLIR (p.49)
DE VOLTA A MIDGARD (p.60)
ASCENÇÃO AO CUME DE NÍDAVELLIR (p.65)
O CUME DE NÍDAVELLIR (p.70)
ÁLHEIM (p.73)
RETORNO A JOTUNHEIM (p.82)
VANAHEIM (p.91)
MARES DE MIDGARD (p.99)
MUSPELL (p.106)
RETORNO A VANAHEIM (p.113)
VIAJEM A ASGARD (p.120)
ASGARD (p.124)

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PRÓLOGO

Subservientes a Odin, as Valquírias cumpriam com maestria o papel de


fortificar o exército de Asgard com guerreiros dignos... até aquele momento.

– Este é o último – alertou Brenna ,a segunda na hierarquia, recolhendo


a alma de um carrancudo sujeito mutilado. As asas embranquecidas
reverberaram, sinalizando que estava pronta para abandonar o campo de
batalha.
– As outras Valquírias voltaram-se para Ágda, esperando por permissão
para retornarem. Armaduras talhadas em prata com proteções rúnicas as
cobriam, deixando apenas os rostos e asas à mostra.
– Partamos então – decretou a general apontando a lança para Bifrost, a
ponte arco-íris que as levaria para casa. A sua voz gélida e monocromática
ressoou pelo campo e logo uma vastidão de penas cobriu o céu.
Ágda as observava com atenção militar. Não era conhecida por admitir
erros ou indisciplina e aplicava punições que intimidavam até mesmo aos
deuses pela menor das falhas. Ainda assim, era admirada pelas Valquírias, que
a seguiam cegamente.
Uma chamativa cicatriz marcava-a da bochecha aos lábios, fruto de um
confronto com gigantes de gelo. As feições naturalmente cerradas, aliadas aos
aparentes traços de idade (em números humanos, estaria na faixa dos
cinquenta anos) destoavam do conceito de beleza idealizado à figura feminina
pelos deuses e homens.
Quando a última guerreira alcançou a Bifrost, Ágda alongou as cinzentas
asas. Porém, pouco antes de elevar-se no ar, sentiu uma mão segurar-lhe a
perna.
– Por favor...
A seus pés debruçava-se um garoto, de tamanho diminuto e timbre fino
que revelavam que não passara da puberdade.
A general empurrou-o com a bota, revelando uma ferida mortal na
barriga.

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– Valhalla... Me leve... – suplicou, tateando em busca da possível
salvadora.
– Não há corpos ao redor – respondeu friamente – Inimigo nenhum
tombou pela sua arma, logo você não é digno.
– Por favor... – insistiu, tossindo sangue com tanta violência que
respingos a atingiram na face.
Ágda preparou-se para deixá-lo, porém o choro do jovem a distraiu.
Segundos depois, os imaturos olhos cerraram-se para nunca mais abrirem. Hel
o aguardava.

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Durante toda a noite, a imagem do garoto reverberou em sua mente. Já


presenciara inúmeros momentos semelhantes, todavia nunca com alguém tão
novo. Questionou a si mesma pela primeira vez em séculos: “Deveria tê-lo
abandonado ao Hel por falta de habilidade, ou o trazido para Valhalla pela
coragem de se aventurar em uma batalha que não poderia vencer?”
No dia seguinte, buscou um momento com Odin. O pai de todos saberia
a resposta para a sua inquietação, e se fosse o caso, estava preparada para
ser punida pelo equívoco.
– Pai. – saudou-o ao adentrar a sala do trono, ajoelhando-se em sinal de
respeito.
Odin encarava-a de Hlidskialf, o trono mágico esculpido em metal fosco
que o permitia vigiar os nove mundos. Dois grandes lobos, Geri e Freki,
repousavam aos seus pés. Hugin e Munin, os fiéis corvos, já haviam deixado
Asgard para a habitual patrulha.
O único olho do deus brilhava feito o velado azul das lagoas congeladas.
Coçou o rosto com a lança Gungnir, inestimável presente dos anões que
carregava onde quer que fosse.
– Filha minha. – cumprimentou com voz profunda e áspera.
– Algo me aflige. – admitiu, escondendo o rosto por vergonha.

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– A criança. – deduziu o caolho. – Você tem curiosidade sobre o seu
destino. Eu posso vê-lo claramente, está em Hel, se banqueteando com carne
azeda e água escaldante. Isso te acalenta?
– Estou incerta sobre a minha decisão em abandoná-lo. – revelou. –
Poderia tê-lo trazido à Valhalla, mas...
– Basta! – vetou Odin, erguendo a lança. – Os meus salões são
reservados a heróis, não a fedelhos. Como de praxe, você agiu sabiamente,
filha minha.
Ágda assentiu. As palavras do pai de todos tranquilizaram a sua mente,
porém não o coração; o sentimento de que cometera um erro a perseguiria por
noites a fio.

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I

Quando o próximo grande confronto eclodiu, comandou as Valquírias até


o destruído campo de batalha. Enquanto as subordinadas recolhiam as almas
dignas, pôs-se a analisar a cena.
Não se tratava de uma luta, mas sim de um massacre. A quantidade de
camponeses dilacerados superava exponencialmente a de guerreiros; a vila
sofrera uma invasão, onde os moradores lutaram com armas improvisadas
para defender a terra e família.
Não entendia o motivo do coração estar acelerado. O sangue dos
inocentes a trouxe enjoo e precisou segurar-se em uma viga de madeira
próxima para não ruir.
̶ General? – chamou Brenna.
̶ Não são guerreiros. – vocalizou. O timbre ríspido e inflexível, apesar de
presente, pareceu falhar.
̶ Achamos dois. – reportou a segunda em comando.
Ágda voltou-se as Valquírias.
̶ Cada um deve ter matado ao menos uma dezena antes de tombar,
minha senhora. – expôs Kelda, soldada de asas e cabelos dourados.
̶ Uma dezena de civis desarmados. – retrucou. – Não há dignidade
neles.
As Valquírias se entreolharam, confusas.
̶ Deixem-nos e partam. – orientou Brenna, ao notar que a superior
arfava.
Ágda caminhou até os restos de uma casa incendiada. Em seu interior,
deparou-se com o corpo de uma mãe, que morrera abraçada protegendo o que
parecia um bebê.
̶ Algo te aflige, comandante? – questionou Brenna, observando-a com
atenção.
̶ Não. – mentiu Ágda. Queria dizer que achava a mulher dez vezes mais
digna de repousar em Valhalla do que os supostos guerreiros, porém sabia que

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Odin a observava. Dentre os milhares campos de batalha que percorrera,
aquele foi o primeiro que de fato enxergou.

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Nos salões de Valhalla, homens e deuses se banqueteavam em meio a


canções e hidromel. A mais suculenta das carnes era servida à vontade, fruto
de Saehrimir (um javali eternamente amaldiçoado a renascer segundos após
ser abatido). As extensas mesas de madeira alongavam-se magicamente pelo
cômodo, comportando a todos os habilidosos guerreiros que tombaram em
guerra ao decorrer de milênios.
Elevado por um palco, Odin degustava de vinho, o único alimento que
necessitava para se manter vivo. Ao lado, os deuses Frey, Freya e Frigga
conversavam animadamente. Todos portavam um ar de superioridade,
atenuado apenas pelos trejeitos arrogantes de Thor que, mesmo ausente,
ainda era a divindade que recebia mais brindes e homenagens no salão.
Ágda não achou conforto na ceia. Refletia involuntariamente sobre os
séculos em que servira aos deuses, e em quantas vidas humanas ceifara. Para
além de transportarem almas para Valhalla, as Valquírias eram o exército
pessoal de Odin e, por incontáveis vezes, o pai de todos ordenou que
mudassem o rumo das guerras a seu bel-prazer.
Retirou-se da mesa reservada a suas semelhantes sem proferir palavra.
Brenna e Kelda se entreolharam, porém nada disseram.
Dirigia-se para os seus aposentos quando a voz de Odin reverberou,
silenciando todas as outras:
̶ Espere – comandou, massageando a própria têmpora.
Ágda suspirou. Apesar do imensurável salão e o mar de pessoas que ele
comportava, sabia que as palavras foram direcionadas a ela.
Ao virar-se para o deus caolho, notou que todos a encaravam.
̶ Como posso servi-lo, senhor? – respondeu, ajoelhando-se.
̶ Sinto falta de dois guerreiros em minha morada. – anunciou.
̶ Eu não achei que fossem di...

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̶ Desça e traga-os aqui. – ordenou, apontando para a saída que levava a
ponte Bifrost.
Ágda assentiu. Antes de erguer-se, contudo, não conseguiu esconder a
expressão de descontentamento.
Desejou com todas as forças que Odin não a tivesse notado, no entanto,
pouco passa despercebido ao pai de todos.
- Espere! – bradou tão alto que fez homens e deuses tamparem os
ouvidos. – É relutância que enxergo da campeã entre as Valquírias?
- Peço perdão, pai. – disse, abaixando a cabeça.
Odin cerrou o único olho. Cochichos eclodiam por todo o cômodo,
mesmo entre as divindades.
- Você desaprova minhas ordens. – concluiu o deus caolho, após
analisá-la.
- Sim.
A resposta escapara como uma ave presa ao ter a cela aberta; não
houve reflexão sobre as consequências ou hesitação em permanecer reclusa.
Surpreendeu-se tanto quanto a multidão a sua volta, que agora murmurava
incessantemente, porém ela manteve a expressão inalterada.
- Você se envergonha perante suas subordinadas. – apontou o deus. –
Você me envergonha em meu próprio lar.
Silêncio.
O caolho suspirou, massageando o pescoço com força.
- Terei de puni-la. – decretou, sinalizando para as Valquírias. As
soldadas ergueram-se mecanicamente, com semblantes inexpressivos.
- Sob qual crime? – questionou Ágda, com a mão próxima a arma. O
coração acelerara de forma inédita, quase soltando do peito. – Responder
livremente? Irei trazê-los, como ordenou. Isso não é o bastante?
Odin emanava fúria.
- Ultrajante! – intrometeu-se Frigga. – Você macula Valhalla com
palavras de insubordinação.
As Valquírias cercaram-na.

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- General Ágda! – vociferou o deus dos deuses. – O poder em comandar
as Valquírias te corrompeu a mente... Um século na prisão a lembrará de sua
posição na hierarquia.
Nesse instante, Brenna tocou-lhe no braço. Ao sentir um puxão que
tentava conduzi-la para fora, reagiu; torceu a mão da antiga companheira,
derrubando-a em seguida.
As outras Valquírias avançaram, a fim de contê-la.
As habilidades de Ágda foram testadas na medida em que derrotava
uma a uma das soldadas que treinara. Alguns dos mais bravos e habilidosos
guerreiros também se juntaram ao combate, porém pouco contribuíram para o
seu resultado.
Quando a última Valquíria caiu, Ágda ainda se mantinha de pé.
- Pai, farei a sua vontade. Eu só...
Antes que pudesse terminar a frase, sentiu uma dor súbita e lancinante
alastrar-se pela barriga.
Odin arremessara Gungnir, conhecida como a lança que nunca errava o
alvo) contra ela, perfurando-lhe o corpo e a prendendo no chão.

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II

Odin caminhou pesadamente até Ágda, que sangrava. Ao seu redor, os


homens riam e apontavam para a derrotada guerreira, já as Valquírias
mantinham-se inexpressivas.
Com um rugido, o caolho a puxou pelos cabelos, arrastando-a até o
portão. Ela tentava tocar-lhe a mão, porém era inútil, pois devido ao ferimento,
não tinha forças para erguer os braços. Buscou mecanicamente a fiel adaga
que carregava na cintura para defender-se como última instância, mas não a
encontrou. A lança, ainda presa ao corpo, ressoava como um sino; logo, uma
multidão pôs-se a segui-los, cuspindo e proferindo ofensas a Ágda. As
gargalhadas ecoavam feito música pelo salão, cada vez mais distantes.
̶ Veja o que me fez fazer. – lamentou Odin.
Passavam pela Bifrost, a ponte arco-íris que ligava o reino dos deuses
ao dos mortais. O caolho parou em sua extremidade, erguendo-a como um
caçador ergue uma moribunda lebre pouco antes de torcer-lhe o pescoço em
misericórdia. Retirou a lança com um movimento abrupto, expandindo ainda
mais o ferimento e a posicionou para fora da ponte.
̶ Pai... – suplicou Ágda.
̶ Você está banida de Asgard – decretou Odin. – Não a reconheço mais
como filha.
O urro de dor que se seguiu silenciou até os que cantavam a plenos
pulmões. Rispidamente, o caolho arrancou-lhe as asas com um inesperado
puxão, soltando-a com desgosto para Midgard. Quando os mortais viram a sua
queda, acharam se tratar de uma estrela cadente.

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MIDGARD

A força das Valquírias superava exponencialmente a humana. Os


ferimentos de Ágda seriam mais do que suficientes para dilacerar qualquer
homem que já existira, todavia não a ceifaram. O impacto ao atingir o chão foi
tamanho que devastou a área ao redor, explodindo-a. A dor das asas
arrancadas, combinada com a perfuração da lança e a colisão a imobilizaram
por dias a fio.
O corpo, enterrado entre terra e rochas, naturalmente se curava,
enquanto os pensamentos tornavam a repetir ininterruptamente os eventos
recentes. A decepção de ser expurgada do próprio lar machucava-a muito mais
do que qualquer sensação física.
Perdia-se em pensamentos fantasiosos quando ouviu uma voz distante.
De início, pensou se tratar de sua mente pregando-lhe peças, porém ao
distinguir um claro “olá” que teve a certeza de que era real.
Movida por uma curiosidade que desconhecia possuir, caminhou (ainda
capengando) para o exterior.
Um sujeito esguio, de olhos azuis e cabelos loiros lhe estendeu a mão
com o intuito de ajudá-la a sair da cratera. Relutante, Ágda o encarou por
alguns segundos; algo nele lhe despertou uma sensação estranha.
̶ Você... Caiu? – questionou o homem, com feições preocupadas. – Está
bem?
̶ Sim. – respondeu secamente. A mão do desconhecido continuava
erguida. Desconfortável, Ágda a aceitou.
̶ Minha casa não é longe. – disse, rasgando um pedaço da própria
vestimenta e despejando um pouco da água que trazia no coldre. Aproximou-
se do rosto da Valquíria com um movimento leve, porém decidido, limpando o
sangue seco e fuligem. – Posso levá-la até...
̶ Não – interrompeu Ágda, segurando-lhe o braço. Ao notar a expressão
de dor no sujeito, envergonhou-se por usar mais força do que a necessária
para afastá-lo. – Desculpe, eu...

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̶ Tudo bem. – interpôs, movimentando o membro com dificuldade, pois a
área onde Ágda o apertou tornara-se roxa, com as marcações dos dedos em
relevo. – Quando vi um objeto em chamas ruindo dos céus, não achei que seria
uma deusa de Asgard, não quis desrespeitá-la.
̶ Não sou uma deusa.
O homem a encarou confuso antes de prosseguir:
̶ Me chamo Ico. – apresentou-se, com um sorriso que, apesar de
forçado, emanava charme.
̶ Ágda.
̶ Como eu dizia, minha casa é próxima daqui e se desejar, seria uma
honra concedê-la abrigo. Há água própria para banho, comida e roupas limpas.
̶ Agradeço pela oferta, mas... – começou a guerreira, sem concluir a
sentença.
̶ Você precisa ir a algum lugar?
Ágda suspirou. As feridas nas costas latejavam intensamente e o corte
da Gungnir ainda sangrava. A garganta seca e barriga vazia tornaram-se, pela
primeira vez em sua existência, um incômodo.
Não conhecia Midgard para além dos campos de batalha. Desnorteada,
fitou os arredores; o crepúsculo encobria a terra, enquanto os filhos de Nótt
cantavam uma melodia solitária e selvagem.
- Mostre-me o caminho. – pediu a Valquíria.

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- Não é muito, mas espero que se sinta confortável. – anunciou Ico,


adentrando ao lar.
A fogueira em seu interior amenizava a temperatura exacerbadamente
fria nas madrugadas. Enquanto Ico a instigava com mais lenha, Ágda pôs-se a
observar o lar simples, todavia aconchegante. Havia apenas um quarto, com
um leito relativamente grande e felpudo. Os instrumentos de cozinha

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mantinham-se meticulosamente arrumados, assim como as ferramentas de
caça e jardinagem.
Quando terminou de ajeitar o fogo, Ico avançou até um baú próximo,
retirando do seu interior duas opções de vestimentas femininas e
apresentando-as a Ágda.
- São de minha esposa – revelou ao notar a curiosidade perpassar pelo
rosto da hóspede. – Creio que servirão em você.
O baú, escancarado, também revelava vestuários infantis. Ico suspirou
ao vê-los, porém nada disse.
A armadura que Ágda utilizava quase como uma segunda pele (o
uniforme das valquírias era diariamente inspecionada por ela, e jamais deveria
ser retirado durante o serviço) pesava-lhe os ombros. Com o auxílio do
anfitrião, retirou as amarras que a prendiam; o peitoral fez tanto barulho ao
atingir o chão que pareceu tê-lo afundado.
- Meio pesado, não? – brincou Ico, assustado com a maciça peça.
Com cautela, puseram-se a remover as ombreiras.
- Quando ela voltará? – perguntou a Valquíria, encarando os vestidos
que a aguardavam.
- Ela partiu com nossa filha há dois anos. – expôs, sem levantar os
olhos. – Foi “em busca de uma vida melhor na civilização”, em suas palavras. A
vila mais próxima a esta casa é minúscula e fica a uma hora de caminhada.
Granda queria que Bô tivesse um futuro diferente do nosso.
- Entendo. – vocalizou Ágda.
- Nunca consegui me desfazer dos pertences das duas. – admitiu,
encarando pelo canto dos olhos uma boneca talhada em madeira no canto.
Ao retirar as botas, sentiu os pés formigarem como nunca. Livre da
armadura (e coberta apenas com a proteção interna confeccionada em couro e
tecido), pôs-se a se limpar com um pano úmido em água quente concedido por
Ico. A quantidade de sangue e sujeita era tamanha que precisou de mais três
tiras.

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Após a improvisada ceia, optou por um vestido cinza, de aparência
robusta. Ao retornar ao cômodo, encontrou o anfitrião ajeitando lençóis
próximos a fogueira.
̶ Dormirei aqui. – anunciou, sorrindo. – Espero que a cama seja de seu
conforto.
Ágda tentou argumentar contra a proposta de Ico, porém foi interrompida
com um enfático “eu insisto”. Ao deitar, sentiu o peso do mundo desvincular-se
de suas costas.

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Dormira até a noite seguinte. Ao acordar, ainda aérea, foi recordando


gradativamente os eventos que a levaram até ali. Ico a saudou com um jantar
composto por carne de cabra e cerveja, e acabou aceitando passar outra noite
na casa por conta do avançado horário.
Quando os pássaros começaram a cantar, despertou renovada. As
dores, apesar de presentes, haviam reduzido significativamente. Buscou Ico
pela cabana com o intuito de agradecer-lhe pela hospitalidade, pois sentia que
era hora de partir.
̶ Ico? – chamou, ao não o encontrar.
̶ Aqui fora! – respondeu o homem, em tom animado.
O quintal da propriedade era imenso. Por ser um local isolado, não
houve disputa em delimitar a sua extensão, dando a Ico a liberdade de
expandir o terreno sem se preocupar com vizinhos. Uma quantidade razoável
de animais percorria o espaço, sendo a maioria composta por gado e galinhas.
Ico preparara uma grande porção de omeletes para Ágda, apontando
para o prato (posto em cima de um acento próximo a ele) quando a viu se
aproximar.
̶ Estou reformando a morada dos porcos – revelou, dando uma voraz
machadada em um tronco caído.
̶ Precisa de ajuda? – ofereceu a Valquíria, utilizando as mãos para
comer.

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̶ Acho que dou conta disso sozinho. O que me diz de irmos pescar
quando eu terminar aqui? Há uma lagoa detrás da colina com peixes enormes
e suculentos. Garanto que te prepararei uma ceia digna dos deuses!
̶ Eu... – antes que pudesse concluir a frase com “preciso ir”, notou que
Ico a encarava com atenção. Havia algo demasiadamente curioso sobre o
homem, que instigava Ágda a permanecer em sua companhia. Por fim, ela
sorriu com o canto da boca, assentindo positivamente.
Pôs-se a observá-lo acertar repetidos golpes contra o tronco, até que a
primeira remessa de madeira estivesse pronta. Quando ele retornou a cabana
para os ajustes finais antes do passeio, a Valquíria tomou posse do machado e
seccionou os troncos em minúsculos pedaços. A expressão de surpresa do
homem ao ver o trabalho concluído em tão pouco tempo fez Ágda rir.

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O barco de Ico, apesar de rudimentar e mofado, os levou com eficácia


até o centro da lagoa. Enquanto preparava a vara de pescar da Valquíria, que
mesmo com as devidas orientações, não conseguiu desenrolar a linha sem a
partir por diversas vezes, Ico pôs-se a contar uma cômica história sobre a
primeira vez que levou a filha para pescar. A forma que Ico conduzia a
narrativa, imitando os trejeitos e voz da criança, fascinou Ágda; nem os mais
belos trovadores de Valhalla conseguiam a entreter daquela forma.
̶ E você, conhece histórias sobre pescarias? – quis saber o sujeito ao
concluir o relato.
̶ Bem, em Asgard, cantam sobre a vez que Thor pescou Jomungand.
̶ “Jomugrande”? – estranhou.
̶ A serpente do mundo. Nunca ouviu falar dela?
̶ Ah, sim. Mas... São apenas lendas, não? Digo, como um animal desse
tamanho pode...
Ao sentir um puxão da linha, o sujeito ergueu-se animadamente. Após
muito esforço, conseguiu fisgar um belo peixe de coloração avermelhada.

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̶ Desculpe, creio que te interrompi para batalhar contra esse feroz
monstro marinho. – brincou. – Poderia continuar, por favor?
̶ Ela circula as partes mais profundas do mar de Midgard, cobrindo-o de
uma ponta a outra – continuou a Valquíria. – Enquanto Thor pescava baleias
com o gigante Hymir, acabou fisgando-a com uma cabeça de boi.
̶ Pobre do boi – lamentou Ico, com expressão exagerada.
Ágda sorriu.
̶ Você começou a história com “em Asgard”... Você morava lá?
̶ Sim – respondeu, visivelmente desconfortável com a pergunta.
̶ Olha! – bradou Ico, mudando subitamente de assunto. A linha da vara
da Valquíria tremia, indicando que um peixe a mordera.
̶ O que faço?
̶ Puxe! Utiliza o seu corpo para contrabalancear a força, e...
Porém já era tarde; com um movimento rápido e preciso, o animal
conseguiu escapar.
̶ Bom... Mais sorte na próxima vez – confortou o sujeito.
Utilizando a vara de pesca como uma lança, Ágda atirou-a contra as
águas. Segundos depois, dois peixes enormes boiaram até a superfície,
abatidos pelo golpe. Surpreso, Ico pôs-se a gargalhar; teriam uma ceia farta
naquela noite.

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Dias viraram semanas, que se tornaram meses. O convívio com o sujeito


gerou intimidade e eventualmente evoluiu para um relacionamento. Ágda,
apesar de ter vivido por mais anos do que a compreensão humana era capaz
de conceber, nunca havia se interessado amorosamente por ninguém.
Sentimentos que achou não possuir iam se manifestando gradativamente e
explorá-los a instigava. Ico, contra todas as possibilidades, tornava-se mais e
mais interessante à medida que o conhecia melhor. Como poderia uma espécie
que vive tão pouco ser repleta de surpresas?

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Ico periodicamente partia para a cidade em busca de provisões. Ádga
não o acompanhava com frequência, entretanto, quando o fazia, notava que os
cidadãos a encaravam com medo, alguns nem a olhavam, chegando a desviar
do caminho para não ter que cumprimentá-la.
Em uma dessas idas, utilizou um vestido amarelo que nunca usara antes
(não gostava de cores vividas). Estranhou ao notar, em seu interior, o bordado
com o nome “Idália”; humanos costumavam marcar pertences valiosos com
seus nomes, porém a antiga esposa de Ico chamava-se “Granda”, não “Idália”.
Antes de questioná-lo, lembrou-se que o escambo era uma prática comum em
Midgard, e que ele deveria ter adquirido o vestido já usado por outrem.
Quando o cabelo do amado começou a pratear, acompanhado por rugas
e dificuldade de locomoção, Ágda lembrou-se do mal que assola os homens e
tiram-lhes o sono a noite: a mortalidade. Décadas felizes haviam passado e
enquanto a Valquíria não envelhecera nem sequer um dia, a vida de Ico se
aproximava do fim.
- Gostaria que houvesse um jeito de passarmos a eternidade juntos. –
lamentou o agora senhor, tossindo violentamente da cama. – Sei que te digo
isso todos os dias antes de dormir, todavia é a mais pura verdade.
Ágda permaneceu em silêncio, acariciando-lhe a cabeça até ele
adormecer.

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Como de rotina, acordou antes do nascer do sol. Pôs-se a arar a terra,


preparando-a para o iminente inverno (vapor gelado já emanava de sua
respiração). Quando o dia clareou, começou a recolher sementes próximas a
germinação. Esperou pela presença de Ico (mesmo debilitado, ele insistia em
fazê-la companhia durante o trabalho todas as manhãs), porém ele não veio.
Ao retornar para casa, deparou-se com o parceiro ainda na cama.
Gentilmente, avançou com o intuito de acordá-lo para o almoço, porém
estremeceu ao notar a pele gelada e semblante petrificado. Buscou inutilmente

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por um sinal de vida, praguejando contra as Nornas (divindades irmãs
responsáveis por tecer o destino).

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Quanto tempo havia passado? Encontrava-se ajoelhada ao pé da cama,


chorando como nunca o fizera. A lua de Máni iluminava a noite, que agraciava
os campos com serenidade.
“Gostaria que houvesse um jeito de passarmos a eternidade juntos”.
Essa frase repercutia incansavelmente em seus pensamentos, enquanto
encarava o companheiro. Hel aguardava Ico, que morrera de forma “indigna”
(longe dos campos de batalha), por sua vez, a Valquíria estava condenada a
eternidade em Midgard, pois não pereceria de causas naturais ou ferimentos
causados por humanos.
Cabisbaixa, carregou-o em seus braços até o lago em que
costumeiramente pescavam. Posicionou-o deitado sobre o barco, retornando
para a casa em busca de seus pertences mais valiosos.
O ritual funerário dos homens era dedicado a Odin. Ágda odiava-se por
homenagear o pai que a abandonara, entretanto as almas que não seguissem
essa prática corriam o risco de não serem aceitos por Hel e retornarem como
Draugs (espíritos presos ao reino dos mortais, privados de descanso).
Recolheu a boneca talhada em madeira que pertencia a filha de Ico, as
roupas favoritas do amado, hidromel e frutas. Enquanto averiguava uma última
e dolorosa vez o cômodo, notou que havia algo em cima do leito. Como não
percebera aquilo antes?
Era uma bolsa envolta por tecido branco. Surpreendeu-se ao abri-la e
vislumbrar a sua antiga adaga, a arma que mantinha sempre presa ao cinto
como subterfúgio caso se desapoderasse da espada em um confronto. Ágda
jurava que a tinha perdido em Asgard ao ser arrastada por Odin até a Bifrost.
Durante a caminhada de volta ao barco, teve uma ideia. Posicionou os
objetos ao redor do corpo de Ico, improvisou uma tocha e junto ao amado
lançou-se no rio.

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Com pesar, encarou o rosto envelhecido pela última vez. “Logo
estaremos juntos”, murmurou, antes de atear fogo a embarcação.
Enquanto as chamas corroíam a madeira, levantou a adaga; trêmula,
sabia que aquela era a única oportunidade que teria de vê-lo novamente. Com
um grito, empurrou a arma contra o próprio peito.

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HEL

Estava na sala de Odin. O deus ajoelhava-se a seus pés, com a lança


Gungnir quebrada. A barba, outrora branca, apresentava-se avermelhada
devido ao sangue que escorria do nariz e boca. Ao lado direito da Valquíria
havia um imenso lobo negro, e a sua esquerda uma colossal cobra.
- Você nos trouxe o Ragnarok... – vocalizou Odin com dificuldade,
enquanto ela erguia uma espada flamejante.

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Assustada, levantou-se com um sobressalto. O frio era tão extremo que


machucava os ossos, tornando cada movimento uma lamúria.
Névoa encobria o ambiente, desnorteando-a ao ponto de gritar de
angústia, porém sentiu um inesperado e caloroso abraço que abrandou a
cortante sensação.
- Você veio...
A voz de Ico a saudou.
- Permanecerei eternamente ao seu lado. – respondeu, sorrindo. Os
dentes trepidavam tão violentamente que pareciam prestes a partir.
- Você se acostumará com a temperatura – disse o homem, notando o
desconforto da Valquíria. – Raios, tudo é gelado por aqui, menos a cerveja.
Riram.
Ico havia rejuvenescido, a sua aparência o remetia a época do primeiro
contato que tiveram.
̶ Como me achou? – quis saber, fitando o inóspito local.
̶ Não sei responder. Senti uma vontade incessante de caminhar e
acabei aqui.
̶ A minha adaga, você...

20
̶ Quando a encontrei ferida em Midgard, sabia que eu deveria tentar
protegê-la. Aquela era a única arma que você portava, desconhecia o seu
objetivo, por isso decidi escondê-la para que não partisse. Demorou até você
me contar sua história... Mesmo quando percebi que não me abandonaria,
decidi manter a adaga oculta, para te ajudar a esquecer do passado. Me
desculpe. Mas me conte, como chegou...
̶ Estou aqui, não estou? É isso que importa – interrompeu a Valquíria.
̶ Existe um salão – revelou Ico, ainda abraçando-a. – Onde Hel abriga
as almas que sucumbem ao seu reino. Há comida e bebida, além de fogo para
nos aquecer.
̶ Cerveja escaldante e carne azeda... – recordou a guerreira, enquanto
caminhavam lentamente ao encontro do refúgio.

----

O salão principal de Hel alastrava-se para além da visão. Infinidades de


famílias se aglutinavam nas simplórias mesas de madeira, bebendo e comendo
o que em Valhalla seria considerado comida ruim ou até mesmo estragada.
Não havia muitos sorrisos entre as pessoas, apesar de que, eventualmente,
gargalhadas irrompiam pelo cômodo. Hel era um local de descanso, porém a
melancolia e pesar corroíam quase que magicamente o coração dos
habitantes.
Ico a levou até uma mesa relativamente afastada, com poucas pessoas
próximas. Ágda sorriu quando o amado a trouxe cerveja (a temperatura
certamente não era agradável, todavia passava longe de “escaldante”) e juntos
puseram-se a beber e conversar. Enquanto ele a contava sobre o tempo que
passara em Hel, pois o fluxo temporal corria de forma diferente ali, foram
interrompidos por uma voz entusiasmada e jovial:
̶ Que bom te ver!
Do outro lado da mesa, a esquerda, uma brilhante figura a fitava.
Tratava-se de um belo homem de traços leves, ornamentado com uma barba
sedosa e corpo atlético.

21
̶ Balder?! – surpreendeu-se Ágda, levantando-se.
̶ Nunca pensei que te acharia aqui. – admitiu o sujeito, abraçando-a
calorosamente. Ico tossiu, visivelmente incomodado com o grau de intimidade
entre os dois.
̶ Esse é Balder, o deus radiante.
̶ A luz que emano deriva de nosso encontro, minha querida. – retrucou a
divindade, beijando-lhe a mão.
̶ Eu sou o marido dela. – apresentou-se Ico, forçando um timbre rouco e
agressivo na voz, fazendo Ágda sorrir ao notar o aparente ciúme.
̶ És um homem de sorte. – comentou Balder, com um gesto cortês. – Me
diga, como veio parar aqui? Nosso pai a venerava...
̶ É uma longa história. – suspirou a Valquíria, virando o copo de cerveja.
̶ Vejo que tenho uma potencial concorrente pelo trono de melhor
narrativa até Hel. – descontraiu Balder. – Já sei, fui convocado pela deusa justa
para partilhar conhecimentos e entretê-la. Tenho certeza que ela adoraria ouvir
sobre a sua jornada também... Podemos ir juntos!
̶ Minha mulher está exausta, sabe... – intrometeu-se Ico. – Talvez em
outro momento.
̶ Sim, de fato estou – admitiu a guerreira. – Contudo, adoraria conhecê-
la.
As palavras de Odin reverberavam em sua mente; o que significaria ser
a “portadora do Ragnarok”? Talvez Hel tivesse a resposta.
̶ Fantástico! – comemorou o deus, batendo com alegria na mesa. –
Veja, preciso ajeitar algumas coisas antes de irmos. Nos encontramos aqui
mais tarde?
̶ Ótimo.
Após outro caloroso abraço (a tossida de Ico dessa vez foi tão abrupta
que o fez de fato se engasgar), Balder pôs-se a caminhar no sentido em que
vieram; por onde passava era saudado com cortejos e brindes.
̶ Então... Vocês foram colegas de trabalho ou algo assim? – questionou
Ico, encarando-a.

22
̶ Ele foi um bom amigo enquanto viveu em Asgard. – revelou Ágda.
̶ Vocês já... – começou Ico, encabulado demais para terminar a
pergunta.
̶ O quê?
̶ Me conte mais sobre ele. – pediu, desviando o assunto.
̶ Balder é filho de Odin e Freya e o mais amável e admirado entre os
deuses. Inclusive, é estranho você não ter gostado dele...
̶ Humf – resmungou Ico. – Sorrisos galanteadores não me
impressionam.
̶ Um dia, Balder teve uma premonição sobre a sua morte... – revelou a
Valquíria, interrompendo a história ao lembrar do sonho que teve ao adentrar
Hel. Seria aquela uma visão do futuro, ou apenas fantasia de sua cabeça?
̶ Aparentemente, ele estava correto – desdenhou Ico.
̶ Ao contar para Odin, o pai de todos apressou-se em buscar por uma
forma de anular o mal presságio. – continuou, tentando não focar nos próprios
pensamentos. – Junto a Frigga, ordenaram que toda criatura, viva ou não,
jurasse não machucar Balder, de todo modo a tarefa foi fácil, pois todos
amavam o deus. Assim, ele passou a ser conhecido como “o invulnerável”.
Entretanto, Loki decidiu que seria hilariante caso a alegria de Balder tivesse um
fim.
̶ Loki? – repetiu Ico, tomando um gole prolongado.
̶ A personificação da trapaça e malevolência e também pai de Hel. Ele
transformou-se em uma serva de Frigga e durante uma conversa
aparentemente despretensiosa com a deusa, descobriu que o visgo (uma
pequena planta que nasce no ramo das árvores) foi o único ser que não fez o
juramento, pois era considerado inofensivo.
̶ E o que aconteceu? – quis saber o homem, interessado.
̶ Os deuses costumavam brincar de “Acerte o Balder” quando ébrios;
atiravam todo e qualquer objeto contra a divindade, que não sofria nenhum
arranhão. Thor adorava lançar o Mjolnir contra o irmão com toda a força,
apenas para receber o martelo de volta com a mesma intensidade. Até Odin,

23
por vezes, desferia a lança Gungnir contra o filho. Sabendo da fraqueza de
Balder, Loki envolveu um dardo com o visgo e o entregou a Hoder, o deus
cego, que prontamente o arremessou.
̶ Loki me parece ser bem astuto – comentou.
̶ Balder pereceu na frente de todos, desde então, Asgard nunca mais foi
a mesma. Odin, furioso, exigiu a execução de Hoder. Antes de morrer, a
ludibriada divindade revelou que recebera o dardo de Loki.
̶ Mas, Hoder era inocente. – interpôs Ico. – Por que matá-lo?
̶ Nem sempre o julgamento dos deuses é justo... – e suspirou.
̶ Loki conseguiu escapar? – perguntou Ico, tomando outro gole.
̶ Thor o subjugou quando ele se transformou em salmão após ter se
disfarçado de giganta e desfeito o acordo de Hel em lamentar pela morte de
Balder, e... – ao ver a expressão confusa de Ico, resumiu: – Loki passará a
eternidade em uma gruta vedada por magia, onde o mais poderoso veneno o
atingirá esporadicamente na face.
̶ Ah – vocalizou o amado, franzindo a testa.
Os dois beberam por horas, enquanto lamentavam o destino dos
animais que criavam, sem os devidos cuidados, provavelmente morreriam. Ico
fez uma careta ao acompanhar o retorno de Balder.
̶ Estão prontos? – perguntou o carismático, sorrindo.
̶ Sim. – respondeu a Valquíria, erguendo Ico com um puxão.

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Os aposentos de Hel eram ainda mais escuros e fúnebres do que os


seus salões. Em um trono composto por ossos, repousava a deusa que
nomeara os seus domínios com o próprio nome.
O lado esquerdo do corpo da divindade era de uma beleza sem igual; o
grande olho azul observava os visitantes, enquanto o carnudo lábio sorria em
sinal de acolhimento. Entretanto, o lado direito da deusa estava pútrido; de
alguma forma, Hel possuía metade do corpo morto.

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̶ Balder, é sempre um deleite te ver. – saudou. – Vejo que traz
companhia.
̶ Chamo-me Ágda. – apresentou-se com um gesto cortês.
̶ A campeã entre as Valquírias. – complementou Hel. – Balder já me
falou sobre você.
̶ Apenas coisas boas, eu juro. – disse a reluzente divindade, aceitando
uma bebida amarelada entregue por um serviçal. Ico irritou-se ao notar que não
receberia o mesmo tratamento.
̶ Diga-me, dentre todas as crias de Odin em Asgard, como logo você
veio até o meu reino?
̶ Eu caí das graças de Odin. Discordei de...
̶ Discordou? – o olhar de Hel pareceu brilhar.
̶ Sim. – assentiu a Valquíria. – As últimas ordens do pai de todos se
opunham com as vontades de meu coração.
Balder sorria, mesmo sem entender muito bem a conversa.
̶ Você escolheu esse destino. – concluiu Hel, após fitá-la longamente.
̶ Vim em busca de meu amado. – expôs, segurando na mão de Ico (que
forçou um sorriso).
Hel ergueu-se com um movimento elegante, porém de alguma forma
também perturbador. A deusa caminhou lentamente até Ágda, que não
conseguiu manter contato visual.
̶ Por que veio aqui? – questionou a senhora do submundo.
̶ Já disse, para passar a eternidade ao lado de...
̶ Não. – cortou. – Por que veio até mim? Sei que pronunciam o meu
nome com desprezo em Valhalla devido aos atos de meu pai. Por que se
arriscar a conhecer a aterradora Hel, rainha da morte?
̶ Enquanto morria, tive uma visão. – admitiu Ágda, por fim encarando-a.
– Estava no salão de Odin, acompanhada por um lobo e uma cobra de
proporções monumentais. Havia subjugado o pai de todos, que sangrava sob
meus pés. Enquanto segurava uma espada em chamas, me preparava para
desferir um golpe fatal. Consegui sentir o bafo do lobo em meu cangote, o

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cheiro de veneno da cobra e o calor da lâmina e não acho se tratar de um mero
devaneio. Se em Hel há alguém com a sabedoria para decifrar tamanho
enigma, esse alguém é você.
A deusa do submundo alisou os cabelos, sorrindo.
̶ Valquírias não deveriam ter a capacidade de tomar decisões – revelou.
– Odin concebeu a sua raça com o único propósito de servi-lo. Ele tentou fazer
o mesmo com os humanos. Utilizando dois troncos que boiavam na praia, criou
o primeiro homem (Ask) a partir do freixo e a primeira mulher (Embla) através
do olmo. Assim como a madeira sem vida, Odin os fez ocos, receptáculos de
suas vontades, porém Vili e Ve, em segredo, os concederam inteligência e
sensações.
̶ Quem? – questionou Balder, em alegre.
̶ Seus tios, os primeiros deuses a sofrerem a ira de Odin.
̶ Nós fomos feitos para sermos escravos... – vocalizou Ico, atônito.
̶ E não são? – provocou a deusa. – Vivem temente aos deuses e
morrem em guerras que ceifam milhares de inocentes para condecorar poucas
dúzias. Você sabe bem do que estou falando, Ágda, afinal, salvar a alma dos
guerreiros “dignos” era o seu trabalho.
Os olhos da Valquíria banhavam-se em lágrimas incontidas. Isso
explicava a violenta reação de Odin ao ser contestado e o porquê dela sentir
um constante vazio e apatia pelos incontáveis anos de serviço.
̶ O que... – tentou pronunciar, porém não conseguiu.
̶ O que a fez despertar? – concluiu a deusa. – Não sei. Creio que
apenas uma magia de imenso poder seria capaz de tal feito. Tente se lembrar:
antes do expurgo, ocorreu algo de diferente?
̶ Um... menino – disse, esforçando-se para lembrar do ocorrido. –
Enquanto morria, me implorou para ascender a Valhalla. Desde então, eu...
̶ Ele te tocou? – questionou Hel, movimentando-se.
̶ Em minha perna, mas eu estava de armadura. Ele... – ao recordar-se,
os olhos esbugalharam. – Cuspiu sangue em meu rosto.

26
̶ Você foi “amaldiçoada”. – decretou a divindade em tom sarcástico. –
Ele a libertou da prisão que te adormecia.
̶ Mas, como uma criança...
̶ Não tenho respostas – interrompeu a deusa. – Contudo, sei quem pode
ajudar.
Risos contidos interromperam a conversa. Quando encararam Balder,
notaram que o deus cochichava animadamente com dois serviçais e que dividia
a sua bebida com eles.
̶ Quem? – quis saber Ágda, com o coração acelerado.
̶ Mimir, o sábio – revelou. – Após ser decapitado na grande guerra entre
os deuses Aesir e Vanir, Odin o devolveu a vida e o aprisionou, obrigando-o a
repartir todo o conhecimento que possui.
̶ Onde posso encontrá-lo?
̶ O poço em que reside se encontra na segunda raiz da árvore
Yggdrasil, em Jotunheim.
̶ A terra dos gigantes de gelo – murmurou Ágda, tocando na cicatriz que
levava no rosto.
Hel sorriu, encarando um inibido Ico.
̶ Ao meu ver, você tem duas opções: ou volta para o salão e passa a
eternidade com o conforto de seu amado, ou parte em busca de respostas que
talvez venham acompanhadas de vingança.
̶ Eu...
̶ Admito que ver Odin destronado me traria imensurável felicidade. –
cantarolou Hel. – Ele me atou a esse domínio repleto de meio contentamento,
enquanto se esbanja com sua corja em festas infinitas. Te auxiliarei caso
decida partir.
Gargalhadas irromperam do canto do cômodo. Para a diversão dos
servos, Balder parecia imitar um dragão, comicamente cuspindo água pela
boca.

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̶ Ágda, posso falar com você um instante? – pediu timidamente Ico, com
uma reverência exagerada para a deusa que consentiu. Ao se afastarem,
continuou:
̶ Não é tão ruim aqui. A bebida não é das melhores, porém ainda
teríamos álcool... – os dois riram. – Passar a eternidade ao seu lado é o melhor
destino que eu poderia desejar.
̶ Sim. Não vamos arriscar isso por conta de um sonho que...
̶ Porém... – interrompeu o homem. – Eu te conheço. Sei que jamais
descansará enquanto não souber o significado da visão.
̶ Não! Nós...
̶ Estaremos juntos – decretou Ico, segurando decididamente a sua mão
e retornando até Hel.
̶ Ela só irá se eu puder ir também! – exigiu o homem. Ao fitar o aterrador
olhar da deusa, ele engasgou com a própria saliva, perdendo a compostura.
̶ É isso que deseja? – questionou a divindade.
̶ Sim. – respondeu Ágda. Ico a afagou em sinal de apoio.
̶ Muito bem.
Hel caminhou até o trono, tocando-lhe suavemente. Para a surpresa de
todos, um enegrecido objeto materializou-se, erguido pelos longos dedos.
̶ A maçã de Iduna – revelou a divindade, entregando-a à Ágda. – O
segredo da imortalidade dos deuses.
̶ Está podre – constatou o homem.
̶ Assim como metade de mim – retrucou Hel.
Ágda segurava a fruta com receio. Desde que Loki roubara de Iduna em
uma de suas “brincadeiras”, Odin a mantinha encarcerada e em constante
vigilância, se o poder da eternidade corrompia até mesmo o pai de todos, o que
seria capaz de fazer com ela?
̶ Ao mordê-la, sua alma retornará ao corpo que deixou em Midgard –
expôs Hel. – Nada será capaz de matá-la novamente, pois eu a expurgo do
meu submundo. Você não sentirá mais dor, nem frio ou toques. Sendo clara,
não estou te concedendo a vida, apenas uma subsistência até que complete o

28
seu objetivo. As feridas que sofrer nunca cicatrizarão, portanto cuidado para
não ter os membros decepados. Ao final de sua jornada, Hel a esperará de
braços abertos.
̶ Nossos corpos aqui não são reais? – questionou Ico, tocando-se.
̶ São apenas projeções de como viam a si mesmos. Os seus ossos e
carne continuam em Midgard, somente a alma é salva.
̶ E se tudo não passar de um sonho de uma tola? Tanto trabalho para
terminar como piada em Asgard – questionou a Valquíria.
̶ Então, voltará para os meus salões com uma história melhor que a de
Balder! – O deus, já ébrio, abraçava os serviçais murmurando juras de
amizade. – Lembre-se: Odin, mesmo no trono Hlidskialf, não será mais capaz
de vê-la, pois estará oculta pelo véu do além vida.
̶ Como acharemos Mimir? – quis saber Ico, visivelmente temeroso.
̶ Em Midgard, encontrem a montanha mais alta e a escalem; em seu
cume, estarão na divisa entre mundos. Atirem-se no infinito da Yggdrasil e
chegarão até Niflheim, as raízes da árvore que conecta os nove reinos. Lá,
busquem por Nidhogg, o dragão, o qual, ao saber que foram enviados por mim,
os levará ao poço de Mimir.
̶ Dra-dragão? – gaguejou o homem, amedrontado.
̶ O caminho até NIflheim será tortuoso e devo dizer que nenhum mortal
jamais o alcançou. Quando estiver pronta, morda a maçã e o humano fará o
mesmo em seguida.
- Ei... Estarei logo atrás de você – consolou Ico, tocando-lhe
afetuosamente as costas.
Com um suspiro, Ágda a provou.

29
RETORNO A MIDGARD

Ao abrir os olhos, se viu rodeada por água. Enquanto saia do lago em


que ceifara a própria vida, notou com espanto que não respirava.
“Sou uma carcaça”, pensou, encarando o seu reflexo na margem. A pele
esbranquiçada e olhos opacos denunciavam a ausência de vida em seu corpo
apodrecido. Não sentiu qualquer tipo de dor ou incômodo ao retirar a adaga
ainda cravada no peito; ao tocar o ferimento, soube com pesar que ele jamais
cicatrizaria.
- É temporário. Nossas almas retornarão a Hel quando isso acabar.
A voz de Ico reconfortava-a. Quando virou para encarar o amado, levou
a mão à boca com a aparição a sua frente.
- Meu corpo mortal já se deteriorou... – expôs, encarando o lago com o
canto do olho. – Hel me trouxe de volta assim.
Ágda avançou para abraçá-lo, porém era o mesmo que tentar afagar o
ar; Ico virara um Draug.
- Ao menos nessa forma não irei te atrapalhar – brincou.
Brilho azulado emanava do fantasma, que se esforçava para sorrir. A
depender do ângulo que ela o encarava, era possível visualizar os ossos,
nervos ou músculos de Ico por baixo da pele semitransparente.
̶ A parte ruim disso tudo é que não poderemos... – e piscou para Ágda,
que cobraria caso sangue em seu corpo ainda fluísse de forma considerada
natural.
̶ A viagem será árdua. – lamentou a Valquíria, encarando o horizonte. A
maior montanha de Midgard erguia-se imensuravelmente distante, parecendo
tão inalcançável quanto uma estrela.
̶ Amor, olhe para nós: somos imortais nesse mundo. Nossa jornada será
um belo passeio e não uma penitência. Iremos percorrer as mais belas
paisagens sem nos cansarmos e faremos isso juntos! Desejo que essa
caminhada dure séculos.

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Ágda assentiu. Eventualmente passariam a eternidade em Hel e em
Midgard estavam ocultos de Odin. Nada nem ninguém poderia feri-los e não
havia urgência ou prazo para encontrar o poço de Mimir. A guerreira ergueu-se,
preparada para desbravar o vasto mundo que tão pouco conhecia para além
dos campos de batalha.

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Os meses seguintes foram os mais instigantes que Ágda já teve.


Midgard comportava uma beleza que parecia não ter fim, e por diversas vezes
desviaram da rota apenas para apreciar os rios, bosques, cachoeiras e outras
maravilhas da terra.
Durante toda a jornada, brincaram de catalogar os animais e insetos que
encontravam. O jogo mostrou-se um passa tempo deveras eficaz nos dias mais
monótonos e acabaram por descobrir espécies tão estranhas e interessantes
que pareciam pertencer a outros reinos.
Esforçavam-se ao máximo para evitar humanos, não por receio de que
eles pudessem causar-lhes algum mal, mas por conta dos eventuais
transtornos que ocorreriam caso vilas inteiras começassem a perseguir
incansavelmente um temido Draug.
Apesar de feliz, a visão de seu embate com Odin constantemente
perpassava pela sua mente, conduzindo-a a um estado de reflexão que parecia
cegá-la para o mundo exterior. A medida em que se aproximavam da
montanha, as visões tornavam-se cada vez mais constantes e duradouras,
despertando a curiosidade e aparente preocupação de Ico.
Escalar até o topo de Midgard não foi fácil, ainda que não sentisse dor
ou frio, uma queda daquela altitude inutilizaria o seu corpo, falhando com a
missão. O íngreme trajeto, além de escorregadio e sinuoso, apresentava ainda
eventuais deslizes de neve que, caso a atingissem despreparada, certamente a
derrubariam. Ico foi de grande auxílio nesses momentos finais, alertando-a ao
menor sinal de perigo.

31
Ao chegarem ao cume, Ágda sorriu com a paisagem que se alastrava
infinitamente sob seus pés, recordando-a da sensação de voar.
̶ Se eu ainda tivesse algum fôlego, tenho certeza que ficaria sem
nenhum agora – brincou Ico.
Observaram o cenário por horas.

----

̶ “Atirem-se no infinito da Yggdrasil e chegarão até Niflheim” – repetia


Ico, procurando em vão qualquer sinal da árvore.
̶ Devemos estar próximos. – retrucou Ágda, cercada por uma densa
neblina que se intensificava com o avançar das horas.
̶ Sabe o que seria hilário? Se tivéssemos escalado a montanha errada.
– brincou o Draug, rindo sozinho. – Ou se...
̶ Ali! – bradou Ágda, apontando para um brilho dourado vindo do chão.
Ao se aproximarem, constataram que se tratava de uma estreita
rachadura. Dela emanava luz, proveniente de um dos ramos da Yggdrasil.
Quando a Valquíria ajoelhou para analisá-la, assustou-se: por debaixo
da montanha se espalhava um dos galhos da vida, que percorria um iluminado
abismo.

32
NIFLHEIM

̶ Teremos de pular. – observou a guerreira.


̶ Para dentro da montanha? Como? A passagem é muito estreita. –
retrucou Ico.
Ágda pôs-se a cavar os arredores da fenda, retirando os pedregulhos e
raízes que a cobriam. Ao terminar, desbloqueou um luminoso buraco envolto
pela Yggdrasil. Por estar insensível a dores, não notou os ferimentos que
causara a própria mão no processo.
A descida parecia infinita; mesmo após séculos de vôo, Ágda sentiu um
enjôo proveniente da vertigem apenas ao olhá-la.
̶ “Atirem-se no infinito da Yggdrasil e chegarão até Niflheim.” – disse Ico,
citando as palavras de Hel. – Se não estiver pronta, podemos...
̶ Estou pronta. – decretou a Valquíria.
̶ Pulamos no três? – sugeriu o Draug, com o olhar fixo na abertura.
Após a contagem, mergulharam pela passagem entre mundos.

----

Por instantes, Ágda achou que havia se fundido com as luzes. A


velocidade atingida era tamanha que fez a sua queda de Asgard para Midgard
parecer lenta.
Demorou até perceber que atingira o solo. Mesmo com o brilho da
Yggdrasil, a neblina em volta era tão espessa que limitava exponencialmente a
visibilidade. Ao ergueu-se, ainda desnorteada, notou que da pele
esbranquiçada emanavam faíscas; “não sentir o corpo tem um lado bom”,
pensou.
̶ Os portais entre mundos desafiam a mortalidade daqueles que a
tentam. Por ainda estar em pé, sei que ou estou diante de um valoroso aliado
ou de minha próxima refeição.

33
A frente, um híbrido entre homem e dragão a encarava. Curvava-se
como uma besta (Ágda julgou que deveria possuir cerca de dois metros e meio,
caso estivesse ereto), porém proferia as palavras de maneira impecável.
Estava envolto por vestimentas finas e inúmeras joias, que lhe adornavam os
dedos e pescoço e se sobrepunham umas as outras. A Valquíria não percebeu
de imediato, mas as próprias unhas da besta foram fundidas em ouro e metais.
As escamas escarlates eram tão vividas que se destacavam até na ausência
de luz, e os olhos penetrantes pareciam pulsar com a ideia de devorá-la, já as
asas, mesmo que robustas, aparentavam ser pouco desenvolvidas para
comportar o seu tamanho e peso.
̶ Você deve ser Nidhogg. – inferiu a Valquíria. – Me chamo Ágda, e...
Nesse instante, um grito de horror eclodiu pelo ambiente. Ico
desesperava-se no chão em vertigem, sem notar que a queda chegara no seu
fim.
̶ Um Draug. – constatou a criatura, avançando – e uma rejeitada pela
morte... Devo concluir que Hel as enviou até mim.
̶ Sim. – concordou a guerreira, gesticulando para que o amado ficasse
calmo. – Ela disse que você nos levaria ao poço de Mimir.
Nidhogg rugiu ao ouvir aquelas palavras.
̶ É um dragão! – apontou Ico, sussurrando. – Um dragão de verdade,
bem na nossa frente! Mas ele é tão diminuto... Achei que deveriam ter uns dez
metros, no mínimo.
̶ Silêncio! – vetou Ágda, simbolicamente pondo a mão em sua boca.
̶ Venham. – ordenou Nidhogg, desaparecendo no nevoeiro. Sem
escolha, puseram-se a segui-lo.
Não demorou até chegarem a uma lagoa de águas negras e paradas, a
ausência de vida era incômoda e pouco natural.
Nidhogg conduziu-os até a beirada.
̶ Devo admitir que estou surpreso com a presença de vocês. – expôs a
criatura, encarando o horizonte. – Séculos de vigília sem nenhum contato com
o exterior me fizeram questionar se Hel esquecera de mim.

34
Inesperadamente, Nidhogg quebrou a unha do polegar e a arremessou
na água que se pôs a borbulhar.
Ico e Ágda assistiram boquiabertos enquanto milhares de objetos
erguiam-se do fundo do lago e se aglutinavam, formando um fantasmagórico
navio.
̶ O poço de Mimir fica em Jotunheim. Não há portais de transição como
o que vocês vieram, então teremos de seguir por Yggdrasil. Prontos para
partir?

35
JOTUNHEIM

̶ O navio é feito com as unhas dos mortos. – repetiu pela terceira vez
consecutiva Ico. – E ele voa.
̶ Admito que prefiro o silêncio de minha vigília a te ouvir, Draug –
reclamou Nidhogg do leme.
Ao redor, a escuridão reinava em um breu absoluto. Planavam pelas
reluzentes raízes de Yggdrasil, a árvore que conectava os nove mundos. A
magia de Hel impulsionava a embarcação, comandada pelos ares com
maestria por Nidhogg.
̶ Mas por que unhas? Eu não consigo entender... – insistiu Ico.
̶ Fui incumbido de proteger o navio por Hel, que prometeu me agraciar
com a mais valiosa joia que os deuses poderiam conceber – justificou. – Pouco
importa se ele é feito de unhas dos pés ou pelos de nariz, sou o seu capitão e
navegarei para onde for ordenado até receber meu pagamento.
̶ Ela se referia a Draupnir – vocalizou Ágda. – É o maior tesouro de
Asgard.
̶ O anel que a cada nove noite multiplica-se em oito? – questionou Ico. –
Você me contou essa história algumas vezes.
̶ Draupnir... – repetiu o dragão, sorrindo.
̶ Como sabe tanto sobre Yggdrasil? – quis saber a Valquíria. – Transitar
pelos reinos é um conhecimento seleto, e nunca ouvi sobre você em Asgard.
̶ Fui um grande peregrinador antes de chamar a atenção dos deuses.
A Valquíria fez menção de continuar a conversa, porém se distraiu ao
notar um singelo floco de neve atingir o chão.
̶ Chegamos a Jotunheim – anunciou o capitão.
Segundos depois, se encontravam em meio a uma nevasca voraz. O
piso do navio não demorou a ser coberto por gelo, assim como as escamadas
do capitão, que amaldiçoava os ventos em um idioma desconhecido. Enquanto
Ágda limpava a pele e olhos, agradeceu novamente por ter perdido a
sensibilidade da pele.

36
Navegaram por enormes montes e vales ocultos pela incessante geada
que caracterizava Jotunheim como um dos reinos mais inóspitos da Yggdrasil.
Ico jurou ver as montanhas se mexendo ao longe, e por diversas vezes
apontou com a empolgação de uma criança para fora do barco.
Em determinado momento do percurso, Nidhogg largou o leme e pôs-se
a analisar os arredores.
̶ Estamos perdidos? – quis saber o Draug.
O dragão suspirou impaciente, enquanto a embarcação avançava
devagar.
̶ O poço de Mimir está próximo? – perguntou a Valquíria, forçando os
olhos a enxergarem para além da nevasca.
̶ Deveria estar aqui. – resmungou o capitão.
̶ Ou seja, estamos perdidos. – insistiu Ico. – Ei, cuidado para não bater
naquela pedra!
Mesmo com a velocidade reduzida, o impacto que se seguiu foi forte o
suficiente para derrubá-los. Ao ergueu-se, Ágda notou que não se tratava de
um mero rochedo, mas sim uma porção flutuante de terra.
̶ Esperarei por vocês. – decretou Nidhogg, fazendo um gesto para que
desembarcassem.
Com um sorriso, Ágda observou que havia chegado ao seu destino.
Um lago de águas douradas alastrava-se ao centro da minúscula ilha. A
cabeça de Mimir, o mais sábio entre os deuses, repousava sobre uma bandeja
de prata suspensa pelos ramos da Yggdrasil. Ao chegarem perto, observaram
as envelhecidas feições contraírem-se em curiosidade.
̶ Vocês não deveriam estar aqui. – disse Mimir.
̶ Mimir... – murmurou Ágda, quase sem conseguir esconder a felicidade
pelo aguardado encontro.
̶ Peço humildemente que a ouça. – pediu Ico, tomando a palavra. – Nem
os próprios salões de Hel foram capazes de impedi-la de te conhecer.
̶ Você tem a minha curiosidade, Ágda. – admitiu Mimir. – Entretanto, não
simpatizo com escudeiras de Odin nem lacaios de Hel.

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̶ Como ele sabe seu nome? – questionou o Draug, ignorado pela
parceira.
̶ Fui amaldiçoada por algo forte o bastante para me libertar das amarras
de Odi, então falo e ajo por mim mesma, longe do domínio de deuses.
Mimir franziu a testa.
̶ Ao morrer, tive uma visão. – continuou a Valquíria. – Eu estava...
̶ Você quer respostas que eu não posso dar, criança – interrompeu a
divindade. – Ao menos não da forma que espera.
̶ Mas Hel disse...
̶ Que eu poderia te ajudar, talvez? De fato eu posso. Entretanto,
conhecimento requer sacrifício.
Aos pés da Valquíria emergiu um chifre, ainda mais dourado do que as
águas que o escondiam. Ágda estendeu a mão para pegá-lo, porém aproximar-
se fez o objeto afundar novamente.
̶ Exijo como oferenda ver tudo que você já viu. – decretou o deus.
̶ Como assim? – perguntou um confuso Ico.
̶ Observar o mundo pelos olhos de outrem é entendê-lo por uma nova
ótica.
̶ O que eu poderia ter a ensinar ao mais sábio dos seres? – quis saber
Ágda.
̶ Não se engane, guerreira: um mestre sempre aprende com o seu
pupilo e conosco não será diferente. Agora me responda: ainda está disposta
ao sacrifício?
̶ Você quer os olhos dela?! – berrou o Draug ao perceber o que era
pedido.
̶ Apenas um. – corrigiu Mimir. – Esse foi o mesmo acordo que fiz com
Odin; nada mais justo do que oferecê-lo também a sua filha. No entanto, esteja
ciente que, uma vez concedido, ele nunca mais retornará. Esteja em Hel ou
Asgard, a sua alma, não esse manto pútrido que veste, estará eternamente
incompleto.

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Ágda encarou o amado com tristeza. Ico tremia em desespero, porém ao
fitá-la, suspirou fundo e fez um gesto afirmativo com a cabeça.
̶ Eu aceito. – concordou a Valquíria. Retirou do cinto a fiel adaga e com
um movimento rápido e preciso, arrancou o próprio olho. Como uma lágrima,
ele caiu e misturou-se ao lago.
Das águas emanou novamente o chifre. Quando tentou recolhê-lo, Ágda
notou que a falta do olho afetara a sua noção de profundidade, tateando o ar
ao invés do objeto. Frustrada, abaixou o corpo novamente, finalmente
erguendo o chifre.
- O conhecimento pode ser uma dádiva ou uma maldição, criança –
advertiu Mimir.
Sem pestanejar, a Valquíria entornou o líquido.

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Casas aglutinavam-se umas sobre as outras e de tão altas, aparentavam


tocar o céu. Pessoas caminhavam sobre uma terra cinza, portando vestes de
aparência leve e padronizadas. Algumas locomoviam-se por estranhos objetos
quadriculares e outras eram levadas por enormes “caixas” que pareciam
comportar vilas inteiras. Era noite, mas de alguma forma havia luz; mesmo
contida e antinatural, não falhava em iluminar o ambiente.
Repentinamente, um ensurdecedor uivo reverberou pela escuridão,
seguido de um tremor que fez ruir toda construção, humano e natureza.
Do mar ergueu-se Jomungand, submergindo Midgard em águas
poluídas por seu veneno. Em seguida a boca de um lobo cobriu os céus,
devorando a lua e todos os animais que voavam.
Logo, uma frota de embarcações idênticas a de Nidhogg avançou contra
os céus, transportando gigantes de gelo e draugs que se uniram para destruir a
cidade dos deuses. Heimdall, o sentinela de Asgard, assoprou o chifre mágico
que anunciava: “O Ragnarok chegou”.
Materializou-se então uma imensa criatura erguendo uma espada em
chamas, que destruiu a ponte Bifrost e todos que a defendiam.

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Um a um, os deuses de Asgard tombaram perante os seus inimigos.
Nem mesmo Thor fora capaz de resistir ao veneno de Jomungand,
sacrificando-se para matar a cobra.
O lobo que devorara a lua seguia com a sua fome insaciável,
abocanhando a carne de Odin e metade da cidade.
Imagens desconexas e turvas se seguiram: Dois humanos, escondidos
na Yggdrasil, abandonam o caos para gerar a próxima geração que povoará
Midgard, já os filhos de Thor vingam o pai, jurando que governarão com
prudência, uma nova Asgard é criada, intitulada “Idavoll” e o ciclo reinicia.

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̶ NÃO! – berrou Ágda, abrindo os olhos.


̶ Está tudo bem. – confortou Ico, abraçando-a. – Foi só... Um sonho?
A Valquíria chorava, entretanto nenhuma lágrima descia dos olhos
opacos.
̶ Tantas vidas... Tanta dor!
̶ Esse é o futuro, escrito junto ao início – expôs Mimir. – Odin se prepara
para o Ragnarok desde que o descobriu; ainda assim, o pai de todos sabe que
nem os melhores guerreiros reunidos por eras serão capazes de mudar o
desfecho do combate.
̶ Então por isso Odin só abre os portões de Valhalla para os guerreiros?
Ele está montando um exército para defender Asgard? – questionou Ico.
̶ Sim – respondeu Ágda. – É por isso que nós...
̶ As Valquírias são uma tentativa desesperada do pai de todos em
mudar o imutável. A fórmula para criá-las foi roubada de Prometeus por Odin,
que viajou para além-mar em busca de esperança.
̶ Quem é Prometeus? – quis saber Ágda.
̶ Além-mar? – repetiu o Draug.
Mimir encarou-os por quase um minuto, como se ponderasse o quanto
deveria revelá-los. Por fim, continuou:

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̶ Existem fronteiras há muito repartidas entre os deuses. Midgard, Hel,
Asgard, fazem parte dos nove reinos que coexistem ligados pela Yggdrasil;
porém, para além-mar, existem terras proibidas para nós. Tive a honra de
conhecer, quando nossas estrelas ainda eram embriões, uma morada dos
deuses chamada Olimpo. Zeus, assim como Odin o faz em Asgard, governava
os deuses e homens que regia. O submundo de lá era chamado Hades e a
divindade que a cultivava, similar a Hel, também dava nome aos próprios
domínios. Existem algumas constantes em cada mundo, como os humanos
viverem sempre no mesmo plano, conhecidos por nós como “Midgard”, porém
separados por oceanos e perigos que os impedem de se conhecer. Os
criadores sempre temeram suas criaturas...
̶ E como minha visão está relacionada a essa história?
̶ Não vê, criança? As Valquírias não vieram desse mundo, portanto não
possuem o destino escrito pelas Nornas. Ágda, você foi escolhida por ser a
mais habilidosa entre todas e é provavelmente a única capaz de reescrever o
futuro.
̶ Posso salvar Midgard? Todas aquelas pessoas? – animou-se a
guerreira.
̶ O Ragnarok é inevitável. – insistiu Mimir. – Todavia, eu assisti por seu
olho a visão que a assola. Se você for capaz de domar o lobo Fenrir e a cobra
Jomungand, manejar a espada de Surt e derrotar Odin, terá cumprido o
Ragnarok; nenhum homem ou divindade precisará sofrer.
̶ Eu serei a portadora do Ragnarok. – anunciou uma decidida Ágda.
̶ Fenrir é prisioneiro em Vanaheim, a terra dos deuses derrotados, e Surt
habita Muspell, o reino de fogo. Jomungand circula os extremos de Midgard,
porém uma parte dela se esconde entre os gigantes de gelo. Presumo que a
fortaleza de Útgard seja um bom começo para a sua jornada. Estarei
observando-os com grande interesse.

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- Ali está. – anunciou Nidhogg, planando o navio sobre um colossal
castelo. Grandes blocos de gelo mesclavam-se com pedra e cristal, dando uma
aparência rústica para a bela construção.
- É quase tão alta quanto a montanha de Midgard – comentou Ico,
referindo-se a passagem da Yggdrasil.
- Fui responsável por muitas mortes dessa espécie – admitiu a guerreira.
– Posso ter perdido minhas asas, mas ainda serei reconhecida como uma
Valquíria.
- Eles nos ajudarão quando contarmos o nosso objetivo – argumentou o
Draug. – Além do mais, você não passava de um fantoche de Odin; eles não
podem te culpar por... Desculpe – pediu o companheiro ao notar as feições
tristes de Ágda.
- Não, você está certo. Fui manipulada a vida inteira por quem eu
confiava com minha vida... Nunca mais.
Ico sorriu.
Nidhogg aterrissou próximo ao portão principal; a nevasca parecia não
incomodar mais o dragão, que recusou-se a acompanhá-los.
- Essa não é o meu propósito – fumegou a misteriosa figura, emanando
fumaça pelas narinas.
Os dois deixaram a embarcação e avançaram até a entrada. Ao
aproximarem-se, os portões do castelo abriram com um pesado ranger,
revelando um salão tão extenso que a fez recordar de Valhalla.
Os gigantes de gelo assemelhavam-se a humanos, entretanto mediam
entre duas a três vezes a altura de um adulto e não possuíam cabelo; já as
barbas (presentes apenas no gênero masculino) eram volumosas e
apresentavam-se comumente nas cores verde-musgo, vinho e azul-celeste. A
tonalidade das peles variava entre gradações de azul, brilho e transparência.
Vestimentas traçadas em couro cobriam-nos apenas da cintura para baixo, pois
a temperatura extrema não os incomodava.
- A que devo a honra de uma visita tão inesperada?
Sentado no trono de pedra envolto em acolchoadas peles, o rei dos
gigantes os fitava.

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- Meu nome é Ágda – apresentou-se, saudando-o de forma cordial. –
Esse é Ico (desengonçado, o Draug pôs-se a imitar o gesto), meu
companheiro. Viemos atrás de informações sobre o paradeiro de Jomungand
sob a tutela de Mimir, o sábio.
- E o que deseja com a serpente do mundo? – questionou o rei. O
restante dos gigantes de gelo no salão cochichavam.
- A levarei junto ao lobo Fenrir até Odin e destronarei o pai dos deuses.
O silêncio foi absoluto.
O rei dos gigantes a encarou por longos segundos. Por fim, sorriu e
disse:
- Mimir não falha em me surpreender. Trazer uma cria de Asgard depois
dos eventos com Thor e Loki requer muita coragem.
- Talvez ele queira começar uma guerra? – comentou um gigante que,
pelo tamanho diminuto, deveria ser uma criança.
- Não há sabedoria em promover a guerra – vetou uma giganta de
aparência sábia e cansada.
- Será que... Mimir a enviou até nós por de fato acreditar nela? –
questionou o único de coloração avermelhada presente, sentado à mesa.
- Derrotar os deuses é impossível – argumentou o soberano.
- Não os deuses, apenas Odin – explicou a Valquíria.
- O que a leva crer que conseguiria vencer o usurpador? – questionou a
giganta anciã.
- Essa é a primeira vez que ouço alguém chamá-lo assim – estranhou
Ico. – “Pai de todos” parece o título mais comum.
- Ele é responsável pela morte de Ymir, o verdadeiro “Pai de todos” –
expôs o rei. – Ao morrer, da carne de nosso ancestral, Odin moldou a terra
chamada Midgard. Dos seus ossos, fez as montanhas e desfiladeiros. Usou os
dentes para a areia e rochas, enquanto que o sangue azul de Ymir tornou-se o
próprio mar e o seu cérebro transformou-se em nuvens. Vê, Ágda? Odin não é
o pai de nada além do sofrimento de nossa linhagem. Ele não passa de um
aproveitador.
- Eu não sabia... – murmurou a guerreira.

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- Ela jamais o vencerá – manifestou o diminuto, observando-a com a
curiosidade característica de uma criança. – Olhem que braços finos!
- Sinto o cheiro do sangue de nossa espécie nela – expôs a anciã, com
os olhos fixos na cicatriz em seu rosto.
- Eu era manipulada a...
- Se a ajudarmos e Odin descobrir, toda Asgard vasculhará Jotunheim
até nos acharem. Nem a nossa magia será capaz de nos manter escondidos –
argumentou o gigante escarlate, silenciando-a.
Ágda estava ereta, em posição militar. Quando Ico notou que os lábios
da amada tremiam inquietos, decidiu intervir:
- Ela foi capaz de se livrar das amarras de Odin, sobreviver a travessia
entre mundos e o frio de Jotunheim. O próprio Mimir reconhece o potencial de
Ágda, e ainda assim a tratam como um soldado qualquer. Mesmo que não nos
ajudem, iremos atrás de Jomungand e destronaremos o seu usurpador.
- Um desafio – sugeriu a anciã após longa ponderação – Os mesmos
que propomos a Thor e Loki seriam justos.
- Não seja tola – vocalizou o avermelhado. – O próprio deus da trapaça
falhou em devorar a ceia mais rápido do que eu.
- Ou me vencer na corrida – complementou o jovem.
Nesse instante, um gato tão grande quando um humano adentrou
elegantemente os salões.
- A sede de Thor não foi capaz de beber do chifre, a sua força não
ergueu o gato e a sua destreza não a derrotou em batalha – acrescentou o rei,
direcionando a fala para a anciã. – Creio que qualquer tentativa de nossa
visitante seja tão infrutífera quanto a dos deuses.
- Ágda é a melhor guerreira que conheço – intrometeu-se Ico. – Ela
certamente vencerá o desafio da batalha.
Os gigantes de gelo se entreolharam.
- Preferia erguer o gatinho – sussurrou a Valquíria para o amado, que
sorriu.
- Que assim seja. Basta vencê-la, e terá a informação que deseja –
decretou o monarca, gesticulando para que a giganta anciã se erguesse. O

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gigante escarlate prontamente a ajudou a se levantar, enquanto o jovem
apressou-se em trazer as armas.
Mesmo idosa, a enorme figura a frente empunhando duas espadas era
deveras intimidadora. Ágda puxou a sua adaga, pondo-se em posição de
combate; os gigantes presentes começaram a urrar e gargalhar com o
espetáculo que se seguiria.
Quando o monarca ergueu as mãos (sinalizando o início do confronto), a
giganta desferiu um golpe assustadoramente rápido, por pouco não decepando
o braço de Ágda.
A Valquíria, armada apenas com a singela adaga, defendia-se como
podia das incessantes investidas; a postura da adversária era impecável, sem
deixar brechas para um contra-ataque.
Enquanto esquivava-se de um corte lateral poderoso a ponto de marcar
o chão, lamentou a ausência das asas; grande parte dos seus golpes dependia
dos membros que compunham as Valquírias. Ao defender um ataque direto ao
seu peito com a adaga, precisou rolar para trás a fim de amenizar o impacto.
Quando tentou recuar novamente da adversária, percebeu que estava
encurralada. A anciã sorriu, erguendo as enormes lâminas enquanto esperava
pela rendição da Valquíria.
Com um movimento inesperado, Ágda correu ao encontro da inimiga.
Antes de alcançá-la, foi capaz de esquivar parcialmente de uma das espadas
(que a atingiu de raspão no ombro); a outra, porém, atravessou-a na faixa da
barriga.
Entretanto, o ferimento supostamente letal não a deteve. Posicionou
rapidamente a adaga na garganta da giganta, ordenando-a que largasse as
espadas. Incrédula, ela o fez, encerrando a luta.
A plateia entreolhou-se, visivelmente confusa enquanto Ágda retirava a
espada do corpo sem demonstrar dor.
- Elli perdeu? – perguntou o diminuto gigante.
- Mas... É impossível – argumentou o de pele avermelhada.
- Agora acreditam nela? – provocou Ico, comemorando.

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- Você deveria ter morrido com o meu golpe – estranhou a anciã,
analisando a ferida que, mesmo aberta, não sangrava.
- Basta – vociferou o monarca, erguendo-se. – Revele o seu truque,
feiticeira! Ninguém vence a velhice, nem mesmo os deuses!
- A velhice? – Repetiu Ico, confuso.
- A não ser... – murmurou a idosa, encarando-a nos olhos. – Que não
haja vida para envelhecer.
- Ela está morta? – quis saber o jovem.
- Eu venci o desafio – vocalizou Ágda, dirigindo a palavra ao rei. – Peço
que honre o acordo e me diga o paradeiro de Jomungand.
- É um truque – berrou um dos gigantes da plateia
- É uma ilusão!
- Feitiçaria!
- É coisa de Loki!
- Silêncio! – esbravejou Ico, de forma tão violenta que assustou a própria
Ágda. – Ela venceu o combate em frente a seus olhos, e ainda assim se
recusam a admitir derrota? Ágda poderia ter matado a sua anciã, e por
clemência não o fez! Digam-nos o que precisamos ouvir, ou eu mesmo
transformarei Jotunheim no novo Hel.
Todos calaram-se.
- Eu gostaria de vê-lo tentar, pequeno Draug – respondeu o soberano. –
Entretanto, tem razão... O combate foi justo. Estamos apenas surpresos com o
resultado, pois nem mesmo Thor e a sua pompa foi capaz de vencer Elli, que é
na verdade a própria velhice.
- Quer dizer que... Você é a deusa da velhice? – perguntou Ágda, ainda
surpresa pela reação do amado que já aparentava a habitual serenidade após
o momento de descontrole.
- Algo assim – sorriu a anciã. – Digamos que, se tivesse me matado,
todas as coisas vivas teriam um fim muito mais abrupto do que desejariam.
- Há muita magia em nós, Valquíria. Logi – e apontou para o gigante
escarlate – é o fogo que queima pelos nove reinos, e Hugi – o gigante mirim
sorriu ao ouvir o seu próprio nome – é o pensamento que permeia pela mente

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de todos. Somos as regras que mantém o mundo, e por isso devemos nos
manter afastados daqueles que desejam por poderes que não podem
compreender, mas, que ainda assim, anseiam por controlar.
- Thor e Loki estiveram em meus salões, enviados pelo fajuto “pai de
todos” que desejava saber nossos segredos. Propus a eles uma série de
desafios, e os humilhamos em cada um deles: nada devora mais que o fogo,
por isso Logi os derrotou facilmente na competição do maior apetite. Ninguém
é tão rápido quanto o pensamento, por isso Hugi os venceu na prova de
corrida... E, supostamente, ninguém deveria ganhar uma batalha contra a
velhice.
O imenso gato encarava Ico fixamente.
- Odin é uma ameaça. Não só para os reinos de Yggdrasil, mas também
para todos do além-mar. Sua incessante ganância já levou muita tristeza e
miséria, e se não for contida, trará ruína ao mundo – revelou Elli.
- Você nos provou que tem chance de derrotá-lo – continuou o rei. –
Portanto, terá o apoio dos gigantes de gelo. Jomungand foi raptada por Odin
ainda filhote, e jogada no mar para que morresse. Fomos obrigados a assistir o
luto de Angrboda, a sua mãe, por séculos antes que finalmente sucumbisse a
loucura e fugisse para terras ermas. Se tivéssemos a achado antes...
O gato miou, lambendo a colossal pata.
- Vocês estão com a cobra? – questionou Ico.
- Parte dela. Odin a mantém em constante vigilância, por isso tivemos
que escondê-la com magia.
- Preciso levá-la comigo – disse uma determinada Ágda.
- E como pretende tal feito? – questionou o rei.
- Eu... – A Valquíria corou. Estivera tão ansiosa por encontrar a serpente
que não fazia ideia de como recrutá-la; de certo, o seu colossal tamanho não
permitiria que a transportasse no navio, sem contar a constante vigília de Odin
(que notaria a ausência do monstro no instante em que desaparecesse do mar
de Midgard).
Hugi sorriu, apontando jocosamente para a envergonhada guerreira.

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No instante seguinte, Ágda foi surpreendida por um forte empurrão nas
costas; ao olhar, deparou-se com o avantajado gato roçando-se em seu corpo.
Notou que o verde nos olhos do felino brilhava tal como vaga-lumes, e que por
debaixo do espesso pelo havia escamas.
- Jomungand diz estar avida pela destruição de Asgard e seus deuses –
traduziu Logi, acariciando o animal.
- O gato é a cobra... – murmurou Ico, como se precisasse repetir em voz
alta para acreditar.
- Nenhum mal caíra sobre o reino dos deuses; levarei a ruína apenas a
Odin – decretou a Valquíria. Ergueu a mão para acariciar a disfarçada
Jomungand que, ao notar a tentativa, se esquivou e correu para outro cômodo.
- Gatos – riu o rei
- Devo retornar a Mimir – vocalizou Ágda. – Ele saberá como proceder.
- Para que ele peça o seu outro olho em troca da informação? De forma
alguma! – contestou Ico.
Instintivamente a Valquíria levou à mão ao rosto, tateando a lacuna
deixada pelo olho perdido.
- Desculpe, eu não quis... – pediu o Draug, ao observar a expressão de
tristeza manifestada no rosto da amada.
- Não será preciso visitar o sabe-tudo – expôs Elli. – Há, entre os elfos
negros, um mago que atende por Osman, o indagador. O seu conhecimento
sobre o oculto é tamanho que nem mesmo Odin foi capaz de aprender com sua
magia. Vá até Nídavellir e procure pelos filhos de Ivandi; os anões saberão
onde encontrá-los.
- Anões? Elfos negros? – estranhou Ico.
- Nídavellir é o lar das duas raças, que se uniram para expulsar os elfos
“puros” do reino e agora o dividem – explicou a anciã.
- Mande os meus cumprimentos aos três irmãos; sem as ferramentas
deles não conseguiríamos erguer esse castelo. Agora vá, e retorne com
Osman!

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NÍDAVELLIR

Ao ouvir que partiram para Nídavellir, Nidhogg rugiu tão violentamente


que emanou fogo pelas narinas.
̶ Há algo errado? – quis saber a Valquíria.
Ao perceber que perdera a compostura, o dragão limpou a garganta e a
respondeu com um singelo “não”.
A viagem até Nívadellir pela árvore da vida não perdurou por muito
tempo. Quando o habitual dourado da Yggdrasil foi repentinamente substituído
por uma imersiva escuridão, sabiam que tinham chegado ao seu destino.
Os olhos demoraram a se adaptarem a falta de iluminação do ambiente.
Nidhogg atracou em meio a colossais rochas que formavam um arco,
escondendo a embarcação de eventuais curiosos. Pouco a pouco, notaram que
se encontravam em uma espécie de gruta; nas paredes, pedras semelhantes a
cristais emitiam uma fraca luz, impedindo que o local fosse plenamente
acometido pelas trevas.
̶ Nívadellir é um reino subterrâneo. – revelou o dragão. – Os elfos
negros e anões vivem em acordo, entretanto não os desrespeitem e, no caso
dos anões, não se apoderem de algum de seus pertences; a mesquinharia
deles é lendária.
- Novamente não nos acompanhará. – questionou Ágda.
- Meu papel é apenas levá-los para onde precisam ir – esclareceu. –
Além do mais, esse reino puído não tem mais nada a me oferecer.
- Então você já esteve aqui. – concluiu um curioso Ico. – O que aconte...
- Vão! – rugiu a criatura, apontando com a unha dourada para frente. –
Desejo que nossa estadia aqui seja a mais breve possível.

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A quantidade de cristais de luz aumentava a medida em que o casal


caminhava pela obscurecida trilha. Logo, o lugar estava tão iluminado quanto
os salões de Asgard a noite.

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Chegaram por fim em uma espécie de praça, ocupada por diminutos
seres. Apesar da estatura infantil, o físico parrudo e troglodita dos anões
evidenciava que não eram uma espécie frágil, até as crianças possuíam braços
mais torneados do que a maioria dos homens em Midgard. Os músculos dos
anões, inclusive os pertencentes ao sexo feminino, de tão rígidos, lembravam
as próprias rochas de mineração.
Trançavam os cabelos e barbas com uma destreza impecável, utilizando
uma espécie de muco regional que os fixavam a ponto de só se desfazerem
quando desejassem. As vestimentas, confeccionadas para protegê-los do
ambiente inóspito, emanavam uma beleza rústica singular; metal e tecido
mesclavam-se de forma quase homogênea, cobrindo-os dos pés aos troncos.
Todavia, a vaidade dos anões evidenciava-se em seus lares: possuíam
formato quadricular, ornamentados por pedras preciosas e ouro. A quantidade
exibida parecia determinar o grau de riqueza de seus proprietários, pois as
casas menos enfeitadas eram também as menores e pouco simétricas. Ágda
procurou pelos elfos negros, todavia não foi capaz de encontrar nenhum.
Avançaram até uma tenda onde um anão anunciava a venda de roupas.
Olhares curiosos seguiram a estranha dupla, contudo ninguém ousou perguntar
a Valquíria e o Draug o que buscavam.
- Com licença. – pigarreou Ico, assustando o vendedor que quase caiu
da cadeira ao vê-los. – Sabe onde podemos encontrar os filhos de Ivandi?
- Depende. – respondeu o anão. – Vocês vão comprar alguma coisa?
- Nada aqui é do meu tamanho. – respondeu Ágda. – E Ico é um
espírito, então...
- Experimente nossas botas, bela dama – insistiu o vendedor. – Nossa
espécie é pequena, mas ficará surpresa com...
Enquanto o anão falava, a atenção da Valquíria voltou-se para um
movimento repentino na construção ao lado:
Uma anã, de aparência franzina (em comparação a seus semelhantes) e
pálida, revirava o lixo despejado momentos atrás. Trajava apenas uma calça
rasgada, tendo os seios à mostra e escoriações espalhadas por todo o corpo.
Os pés descalços, de tão sujos, davam a impressão de que calçava a sola de

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uma bota negra. Sorriu ao encontrar sobras de comida e sem pestanejar pôs-
se a devorá-la.
Os outros anões pareciam acostumados com a cena, pois não
demonstraram qualquer reação além de indiferença.
Ágda avançou até ela, deixando o distraído vendedor falando sozinho.
Ao notar a altiva figura, a anã abaixou os olhos, limpando disfarçadamente a
boca que fedia com o cheiro de alimentos estragados.
̶ Com licença. – pediu Ágda, ajoelhando-se ao lado. – Você poderia me
ajudar?
Surpresa, a pequena figura acenou positivamente com a cabeça.
̶ Estou procurando pelos filhos de Ivandi. Você sabe onde estão?
Sem conseguir manter contato visual, a anã novamente fez gesto
afirmativo.
̶ Poderia levar-nos lá?
O Draug acenou, sendo notado pela primeira vez pela anã que,
assustada, fez menção de fugir com a fantasmagórica presença.
̶ Ele não te faria mal nem se quisesse. – esclareceu a Valquíria,
atravessando com o braço pelo corpo do amado. – Viemos de muito distante
para vê-los. Se nos ajudar, posso te dar... Isso! – e puxou do bolso a fiel adaga.
̶ Você a presenteará com a única arma que possui? – questionou Ico.
̶ É aço de Asgard. – continuou a Valquíria, ignorando o Draug. – O seu
valor é inestimável! Creio que você conseguirá comprar a casa mais bonita
daqui após vendê-la – murmurou.
Os olhos da mirrada anã brilharam. Com um enfático “sim”, ergueu-se e
começou a correr, acenando para que Ágda a seguisse.
Logo as pomposas construções deram espaço a uma série de túneis
pouco movimentada. Durante o trajeto, a Valquíria notou que esporádicas
casas eram visíveis ao longe, lembrando-a do lar que tivera em Midgard.
Chegaram por fim a uma diminuta porta talhada em ferro, com padrões
que formavam a imagem de uma lança. Enormes rochas sobrepunham-se a
sua volta, vedando qualquer outra possibilidade de acesso ao local.

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A jovem Anã sorriu animadamente; haviam chegado ao final do seu
destino.
̶ Aqui está, como prometido. – vocalizou Ágda, entregando-lhe a adaga.
̶ Muito obrigada! – agradeceu a Anã, correndo de volta pelo caminho de
onde vieram. Perceberam, pela voz infantil, que era ainda mais nova do que
aparentava.
̶ Você não deveria... – começou Ico, porém a batida repentina de Ágda
na porta metálica o interrompeu.
Silêncio se seguiu. A Valquíria insistiu repetidas vezes, porém sem
sucesso.
̶ Vou derrubar. – brincou o amado, fingindo dar um pontapé na porta (o
membro ultrapassou a barreira, adentrando-o).
̶ Isso pode funcionar. – inferiu o Draug, trespassando o braço e
retirando-o por duas vezes.
̶ Vai logo!
O fantasmagórico ser avançou contra o portão, sumindo em seguida.
Gritos e tombos reverberaram no interior. Somente após um certo tempo
o silêncio prevaleceu, resultando na abertura lenta e ruidosa da porta.
Uma enorme forja apagada tomava mais da metade do cômodo, que
fora transformado em dormitório. Três anões, visivelmente aborrecidos,
saudaram com rispidez a Valquíria que, ao entrar, bateu com a cabeça no teto
e precisou agachar para permanecer no local.
̶ Filhos de Ivandi. – vocalizou Ágda de modo cortês. – É um prazer
encontrá-los. Elli me disse que poderiam nos ajudar a encontrar Osman, o
indagador.
̶ E por raios ela nos enviaria uma serviçal do usurpador para tal feito? –
questionou o mais alto e barrigudo, de bigode avantajado e longos cabelos
negros.
̶ Porque irei destroná-lo. – afirmou.
̶ Eu já lhes disse isso mil vezes. – insistiu Ico.

52
̶ Osman poderá ajudar-me a domar Jomungand e levá-la até Asgard. –
esclareceu Ágda. – O rei dos gigantes também envia por mim seus
cumprimentos e diz que não conseguiria erguer o castelo sem as suas
ferramentas.
̶ Verdade. – concordou o irmão calvo, porém de bigode tão grande que
escondia os seus lábios.
̶ Elli não seria ludibriada por um espião, muito menos revelaria nosso
nome para um inimigo. – interpôs o último dos irmãos, de cavanhaque e cabelo
raspado nas laterais.
̶ Precisei vencê-la em combate para que ela decidisse me ajudar. –
revelou Ágda.
Os anões se entreolharam com uma mistura de surpresa e satisfação.
̶ Muito bem Valquíria, nós te ajudaremos. – decretou o anão careca,
ordenando aos outros que preparassem a fornalha e os equipamentos. – Esse
é Ullo (o barrigudo acenou), aquele é Uddon (disse, apontando para o de
cavanhaque) e eu me chamo Ummo. Agora me diga: quais as dimensões de
suas asas completamente estendidas? Diria que são equivalentes a cinco,
talvez seis cabras?
̶ Minhas asas não estão ocultas – expôs, tocando nas cicatrizes onde
outrora portava os membros. – Foram arrancadas por Odin no dia em que caí
de Asgard.
̶ Então, como faremos os escudos para as penas, se não há penas? –
questionou Ullo.
̶ A elevação será impossível. – proferiu Uddon.
̶ O que é “a elevação?” – quis saber o Draug. – Se for algo relacionado
a voo, nós viemos em um navio que...
̶ Não funcionará. – Interrompeu Ummo. – O caminho para o cume de
Nídavellir é inacessível pela Yggdrasil e as aberturas da caverna são tão
estreitas que até uma criança ficaria sem ar.
̶ Por isso a necessidade de proteger as asas. – complementou Ullo. –
Sem revestimento, elas seriam destruídas pelas rochas.

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̶ E por que preciso ir ao cume de Nídavellir? Me foi dito que Osman se
encontrava aqui, no reino dividido por anões e elfos negros.
̶ Não há elfos negros entre nós. – revelou Ummo. – Não desde o êxodo
para a superfície.
̶ Achei que vocês conviviam em harmonia. – comentou o Draug.
̶ E assim o fazemos. Eles lá, no frio e chuva, dividindo a mata com
monstros, e nós aqui, no quentinho e na segurança de nossas rochas.
̶ Então “o cume” é a saída da caverna. – concluiu Ágda. – E só pode ser
atingido voando por entre rochas estreitas.
̶ Correto. Lá vocês encontrarão os elfos negros e o cortejado Osman.
̶ Vocês já tentaram isso antes? – questionou Ico. – Parecem ter certeza
de que dará certo.
̶ Criamos um par de asas há séculos para nosso primo. – relatou Uddon.
– O aventureiro queria conhecer “o mundo”, pobre coitado. Na subida as asas
se rasgaram, ele despencou e “ploft”.
̶ Chega, irmão. – vetou Ummo. – Após esse episódio, concluímos que a
única forma de chegar até o cume seria criar uma armadura para as penas. Elli
é uma das poucas que sabem de nosso projeto e não foi coincidência enviar
um ser alado até nós. Presume-se que existam asas em uma Valquíria, certo?
Peço desculpas pelo mal-entendido.
̶ E como os elfos negros conseguiram subir sem asas? – indagou o
Draug.
̶ Osman e sua magia. – respondeu Ummo. – Ele levitou um a um. A
maioria sobreviveu apenas com escoriações superficiais…
̶ Por que não criam as asas e as proteções? – sugeriu Ico. – Vocês já
fizeram as asas uma vez, basta repetir a fórmula e acrescentar o revestimento.
̶ Não é tão simples. – explicou. – O mundo ainda era jovem naquela
época, e os materiais que usamos hoje são raríssimos... Talvez até
inexistentes.
̶ Ou será que vocês teriam uma escama de dragão sobrando? – brincou
Ullo.

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̶ Na verdade, temos sim. – respondeu o Draug.
Novamente os anões se olharam, atônitos.
̶ Isso... É fantástico! – comemorou Ummo. – E quanto a lágrimas de
Fossegrim?
̶ Aí já é demais, não acha? – reclamou Ico.
̶ Se nos trouxerem essas matérias-primas, iremos construir as asas
mais resistentes dos nove mundos. – prometeu Ullo. – Nem as chamas de
Muspell ou o frio de Jotunheim fariam mais do que simples arranhões!
̶ Sabemos o que significa vencer Elli em um duelo. – falou Uddon. –
Lágrimas de um espírito melodioso são brincadeira de criança comparado ao
que já alcançou.
̶ Você deseja mesmo voltar a voar, não é? – perguntou Ico, ao notar que
Ágda sorria. – Vamos conseguir, juntos.

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̶ Parece que o apelido de “usurpador” é comum para Odin longe de


Asgard. – comentou o Draug enquanto retornavam pelos túneis. – Você sabe o
motivo dos anões o chamarem assim?
̶ Eles perderam uma disputa, há mais tempo do que posso calcular, para
os lendários Brokk e Sindri; talvez ainda guardem rancor pela derrota.
̶ E o que disputaram? – interessou-se Ico.
̶ Os melhores presentes para os deuses. – revelou a Valquíria. – Tudo
começou quando Loki...
̶ Novamente esse nome. – interrompeu o Draug. – As melhores histórias
parecem ter acontecido graças a ele.
̶ O deus da trapaça instaurou toda a desordem que pôde durante a sua
estadia em Asgard, o seu nome é pronunciado com repúdio por homens e
deuses.

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̶ Talvez ele não seja tão culpado assim, agora que descobrimos que
Odin não é confiável. Mas voltando ao assunto: você estava prestes a me
contar sobre a competição entre os anões.
̶ Sim... – concordou Ágda, imaginando quantas outras coisas o deus dos
deuses pode ter escondido, deturpado ou até inventado. – Certa feita Loki
decidiu pregar uma nova peça em Thor, e para isso, cortou os cabelos de Sif, a
sua prometida. Quando a deusa acordou, sem um fio de cabelo na cabeça, não
demorou até acharem o culpado. Loki gostava demais de ser reconhecido por
suas travessuras, a ponto de não conseguir esconder a sua satisfação.
̶ E o que aconteceu? – questionou o Draug, atravessando uma colossal
pedra como se fosse feito de fumaça.
̶ Thor pretendia matá-lo, porém Odin interveio e decidiram dar-lhe uma
chance. Loki deveria consertar o que fez a Sif e agraciar os deuses pelas
constantes inconveniências, caso contrário não mais regressaria a Asgard. A
divindade da trapaça partiu então para cá, Nídavellir, e buscou os filhos de
Ivandi, os melhores artesãos até o momento. Entretanto, ele sabia que os
anões não o ajudariam, pois já naquela época tinha a pior das reputações. A
fim de conseguir novos cabelos para Sif e ainda oferendas aos deuses,
inventou que Asgard seria a sede de uma competição entre os melhores
artesãos dos nove reinos. Ludibriados, eles decidiram participar.
Sem saber de qualquer outro ser que superasse os dotes dos anões
ferreiros, chamou também a dupla de anões Brokk e Sindri, que ainda era
pouco reconhecida pelo seu trabalho. Para motivá-los a alcançar os melhores
presentes, e sabendo que jamais iriam vencer os já consagrados filhos de
Ivandi, alegou que o prêmio da competição seria a sua própria cabeça.
̶ A cabeça de Loki? Que tipo de pessoa se interessaria em tê-la?
̶ Anões são famosos por coleções exorbitantes. Geralmente buscam por
joias e artefatos, mas exibir a cabeça da personificação da trapaça como troféu
faria qualquer anão delirar apenas com a ideia.
̶ E o que aconteceu? – quis saber Ico, com aparente interesse.

56
̶ Os filhos de Ivandi presentearam Sif com cabelos confeccionados a
partir do mais puro ouro. Deram ao deus Frey um navio alado dobrável por
mágica, cabendo em seu próprio bolso. E reservaram para Odin o melhor dos
presentes: Gungnir, a... – engasgou-se ao pronunciar o nome da lança que lhe
perfurou a barriga.
- Verdadeiras dádivas. – exclamou o Draug. – E ainda assim perderam a
disputa?
- Brokk e Sindri dispuseram de Draupnir, o anel usado por Odin que a
cada nove noites dá origem a mais oito, o javali dourado Gulinbursti, que ficou
aos cuidados de Frey e o martelo Mjolnir, considerada a arma mais poderosa
de toda a existência e brandida por Thor.
̶ Uau.
̶ Creio que os filhos de Ivandi ainda sofram com a decisão de Odin, que
concedeu a vitória a Brokk e Sindri e mesmo assim manteve todos os itens. –
supôs a guerreira, enquanto observava pela segunda vez as isoladas casas.
̶ Loki teve a cabeça arrancada? Ele perdeu a aposta.
̶ O deus trapaceiro é ardiloso. Loki argumentou que a aposta fora
referente apenas a sua cabeça e que os anões só poderiam arrancá-la se não
danificassem o seu pescoço no processo. Claro que eles tentaram, mas...
Antes que pudesse terminar o conto, a Valquíria calou-se ao ouvir um
distante pedido de ajuda vindo do comércio de Nídavellir. Um longo e pavoroso
grito infantil veio em seguida, fazendo com que Ágda disparasse até a sua
origem.
De volta a praça central, se depararam com o diminuto corpo da anã que
os ajudaram no chão. Quando a Valquíria se ajoelhou para ajudá-la, notou um
profundo corte na região da barriga que sangrava copiosamente; a criança anã
havia sido mortalmente ferida.
̶ Precisamos levá-la para Nidhogg – decretou o Draug. – O seu fogo
cauterizará o ferimento, impedindo que ela perca mais sangue. Ágda,
precisamos ir agora!

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A guerreira se encontrava tão nervosa que demorou a entender os
comandos do companheiro. Carregou a desacordada anã nas costas e juntos
puseram-se a retornar ao navio. Para o desprazer de Ágda, percebeu que
outros anões riam e apontavam para ela.

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̶ Nidhogg! – berrou ao retornar ao navio.


O dragão planou do mastro, pousando pesadamente ao lado.
̶ Por favor, salve-a! – pediu a guerreira, revelando o ferimento da
criança.
Nidhogg encarou-as por demorados instantes, como se refletisse sobre
a sua intervenção. Por fim, ergueu a anã até a altura da boca e soprou, da
forma mais delicada possível, chamas na ferida; antes de parar o sangramento,
a infeliz criança despertou, urrando e se debatendo violentamente até perder a
voz e desmaiar.
̶ Conte-me o que aconteceu – rugiu o dragão, ainda com a garota nos
braços.
̶ Ela pediu por socorro, e... – tentou narrar a Valquíria, deveras nervosa
para tal.
̶ Nós demos a ela a adaga em troca da localização dos filhos de Ivandi.
– resumiu Ico. – Enquanto retornávamos para o navio, ouvimos um grito e a
encontramos sangrando no chão da praça; os anões em volta ignoravam-na, e
outros riam. Creio que conheçam o valor da adaga e pretendam dividir o lucro
entre si ao vendê-la.
̶ Venham. – ordenou o dragão, caminhando para o interior do navio.
Pela primeira vez adentraram ao quarto do capitão. Apesar de espaçoso,
quase não existia itens ou decorações além de uma ampla coleção de
manuscritos. Nidhogg deitou-a no leito, formado por uma combinação de peles
e penas, e pôs-se a caminhar para fora.
̶ Cuidem dela até que eu retorne – comandou ao sair.

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̶ Aonde você...
Antes que o Draug pudesse finalizar a pergunta, ouviram-no abrir as
colossais asas e partiu em direção a cidade.
Ofegante, Ágda observou durante um tempo a diminuta figura contrair-se
em dor enquanto dormia.
̶ Pobre criança. – lamentou Ico, quebrando o silêncio.
Receosa, a Valquíria levou a mão até a cabeça da anã. Como que
instintivamente, pôs-se a acariciá-la, cuidando para não prender os dedos nos
desarrumados cabelos.
̶ Você teria sido uma ótima mãe. – comentou o Draug, observando-a.
Ágda sorriu.
̶ Nosso filho nasceria bonitão que nem o pai. – brincou Ico, forçando
uma expressão sensual que a fez rir. – E poderoso que nem a mãe.
̶ E se fosse menina?
̶ Nesse caso, herdaria os seus olhos... – respondeu o amado. – e o
sorriso sem graça que você faz quando a elogio. Esse mesmo, nem tente
esconder!
Ico apontava para Ágda, que rindo, buscava ocultar o rosto com a mão.
De repente um estrondoso som ecoou do lado de fora. Ao correrem para
a proa do navio, a anã permanecia em sono profundo, notaram que fumaça se
espalhava pelo ar. Incrédula, a Valquíria demorou a acreditar que parte da
cidade estava em chamas.
Enquanto Ágda assistia o fogo se alastrar, percebeu que uma rajada de
vento bagunçara o seu cabelo. Virou-se a tempo de presenciar Nidhogg
pousar; com as asas abertas, garras a mostra e fogo emanando das narinas, o
dragão pouco lembrava o culto capitão que os conduzia pelos reinos.
A besta caminhou ameaçadoramente até Ágda, com feições tão
cerradas que Ico, achando que a amada estava em perigo, pôs-se em sua
frente. Ignorando o Draug, o dragão estendeu a adaga perdida, devolvendo-a a
dona que, relutante, a aceitou.

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Ágda quis questionar Nidhogg sobre os inocentes que perderam os lares
(ou até mesmo a vida) em meio ao caos das chamas, entretanto não o fez.
Assistiu junto a Ico o dragão retornar para os aposentos e não ousaram
perturbar o seu descanso, nem para conferir o estado de saúde da jovem anã.

DE VOLTA À MIDGARD

̶ Achei que o Fossegrim fosse apenas um mito para afastar as crianças


das cachoeiras – admitiu Ico, enquanto avançavam pela Yggdrasil de volta a
Midgard. A anã ainda repousava no cômodo do capitão, que se mantinha em
silêncio no leme.
̶ Fossegrims. – corrigiu Ágda. – Existiram vários ao longo da história,
porém foram desaparecendo à medida que os nove mundos se moldaram. Em
Valhalla há uma velha canção que os aponta como criadores dos sons da
natureza.
̶ Não entendi. – admitiu Ico, coçando a cabeça fantasmagórica (os
dedos adentraram o crânio).
̶ O estalar de galhos, tilintar das águas, assobio dos ventos, estrondo
dos raios... Todos eram silenciosos, até os Fossegrims os musicarem.
O Draug elevou as sobrancelhas, surpreso.
- As mães contam que o Fossegrim arranca a língua das crianças que
perturbam a paz das cachoeiras. – compartilhou Ico.
- Que horrível! – vocalizou Ágda. – Não há relatos de violência desses
seres nos anais da história. Entretanto, o Fossegrim em Midgard de fato habita

60
as cachoeiras... Os humanos parecem não estar equivocados quanto a sua
localização, pelo menos.
- E qual o plano para conseguirmos uma lágrima dele? Dedo no olho ou
pisão no pé? – brincou Ico.
- Não faço ideia. – admitiu.
- Música – revelou Nidhogg, sem desviar o olhar do caminho.
- Eu não sei tocar nenhum instrumento. – admitiu a Valquíria.
- Eu até sei, mas... – revelou o Draug, apontando para as mãos.
- Cantem-no algo então. – sugeriu o dragão. – Nosso destino está
próximo.
Um clarão cego-os momentaneamente, o céu tornou-se azul e o som de
pássaros ecoou pelos arredores. Haviam retornado a Midgard.
Pararam o navio próximo a uma singela cachoeira, que apesar de bela,
não aparentava possuir nada especial.
- O Fossegrim está escondido aqui? – indagou Ico, forçando os olhos a
procura pela entidade.
- Não fisicamente. Ao menos, não ainda. – explicou Ágda. – As
cachoeiras estão sob a sua constante vigília; ele virá, se chamarmos sua
atenção.
- Um navio voador feito de unhas, um espírito ambulante, uma Valquíria
e um dragão... – enumerou Ico, apontando para cada um enquanto falava. – Se
não lhe chamarmos a atenção, então nada mais o fará.
- De fato, vocês são um grupo... Singelo – admitiu uma distante voz.
No mesmo instante, o constante fluxo da cachoeira foi interrompido. As
águas começaram a borbulhar, como se chamas a consumissem; do fundo
emanou uma silhueta, que pouco a pouco foi tomando forma humanoide.
Apesar de corpóreo, a transparente pele do Fossegrim lembrava a de
Ico, sendo possível enxergar o seu interior, composto majoritariamente por
água em vez de sangue e sem a presença de órgãos. Os olhos da criatura
brilhavam como a luz do sol e os seus dentes pareciam com os pedregulhos
habitualmente localizados em cachoeiras.

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Um instrumento de corda manifestou-se na mão do Fossegrim,
entalhado em runas tão antigas que nem mesmo a Valquíria conhecia. Ao tocá-
la, o movimento natural das águas retornou, assim como o som da cachoeira.
Ágda e Ico desceram do navio atracado nas pedras, enquanto que o
capitão retornava aos seus aposentos para cuidar da anã. O Fossegrim
flutuava em meio as águas, aguardando pacientemente pelos dois com um
sorriso.
- Olá. – proferiu a Valquíria, com uma reverência cortês. – Me chamo
Ágda e esse é Ico – o Draug imitou o gesto da parceira de forma assertiva.
- Em que posso ajudá-los? – quis saber a entidade, dedilhando o mágico
instrumento.
- Bom... Para simplificar, precisamos de suas lágrimas. – expôs o Draug.
- O simples não me fomenta. – respondeu; ainda que apenas falasse,
parecia que cantava cada letra. – Se desejam lágrimas, sejam de alegria ou
tristeza, primeiro contem-me sua história.
A Valquíria pôs-se a narrar os eventos que os levaram até ali, da forma
mais detalhada que conseguiu. O Fossegrim ouviu os pormenores com
interesse, sem interrompê-la.
- ... E por isso precisamos encontrar Osman, para que ele dome
Jomungand e assim possamos levá-la conosco a Asgard. – continuou. – Porém
a passagem do reino dos anões até o cume de Nídavellir, onde Osman reside
com os elfos negros, é demasiadamente estreita e elevada para que os filhos
de Ivandi possam construir um par de asas para “a elevação” – nesse momento
Ico revirou os olhos, claramente cansado de ouvir esse termo – é necessário
também as suas lágrimas.
- Entendo. – disse por fim o Fossegrim, com um sorriso. – É uma bela
história, entretanto não irei ajudá-la.
- Como?! Por quê? – questionou o Draug.
- Vocês buscam o caos. Se esse tal de “Ragnarok” foi escrito pelas
Nornas, então é o único caminho que deve ser seguido.
- Mas... Tantas vidas serão perdidas. – sussurrou Ágda, lembrando-se
da revelação no poço de Mimir. – Nenhum ser precisará sofrer com o Ragnarok

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além de Odin. Eu não deixarei que aquele futuro se torne real. – decretou. Ico,
ao seu lado, esboçou um enorme sorriso.
- Também me dói saber o nosso destino. – exprimiu o Fossegrim. – Eu
estarei aqui para vê-lo... Porém, o futuro decretado pelas Nornas deve ser
mantido.
- Ele não será. – afirmou Ágda, desembainhando a adaga devolvida por
Nidhogg.
As águas tornaram-se turvas, na medida em que o Fossegrim tocava o
instrumento com violência.
- É uma boa hora para começar a cantar, amor! – gritou Ico.
Um jato avançou contra a Valquíria, que ao defender-se, quase perdeu a
postura; a velocidade atingida pelo projétil aquático era tamanha que a
perfuraria feito uma lâmina.
- Nidhogg! – berrou o Draug, retornando ao navio em busca do auxílio do
dragão.
Mais duas investidas contra Ágda quase a derrubaram. A adaga, mesmo
sendo um instrumento de poder fantástico, mostrou-se pouco eficaz em
defender-se daquelas rajadas de água. Quando notou que o inimigo preparava
mais disparos, resolveu avançar.
Correu com dificuldade por conta da água, até o Fossegrim, esquivando-
se dos ataques da melhor forma que pôde. Ao notar uma abertura, avançou
com a adaga contra o pescoço da entidade.
O golpe, apesar de certeiro, não surtiu efeito. Água jorrou da garganta
do Fossegrim, que arremessou outro projétil de contra-ataque; com a defesa
aberta, Ágda não conseguiu defender-se do jato que perfurou-lhe o ombro.
Durante a queda, desesperou-se ao notar que deixara a adaga cair. O
Fossegrim sorriu, aproveitando o momento de vulnerabilidade da guerreira para
disparar diversas rajadas consecutivas.
Antes que a Valquíria fosse alvejada, uma grande quantidade de fogo se
alastrou pela cachoeira, evaporando grande parte de sua água.
- Não! – berrou o Fossegrim, tentando acertar o dragão que voava
cuspindo fogo.

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Ágda aproveitou o momento de distração, recuperando a adaga
submersa e partindo para cima da furiosa entidade. Dessa vez, atacou o
instrumento de cordas, partindo-o em dois.
Sumariamente as águas se acalmaram e o Fossegrim caiu, misturando-
se a elas. Ao erguer-se, a Valquíria observou que a cachoeira estava em
chamas.
- O fogo dos dragões não se curva a nenhuma água – revelou Nidhogg,
pousando ao seu lado.
- Olhem o que fizeram... – lamentou uma figura enlamaçada. O
Fossegrim, agora deformado, lutava para reassumir uma forma corpórea.
Enquanto o fogo se alastrava, cada vez menos água contemplava o cenário.
O dragão a entregou um jarro e deu-lhe as costas. Ágda caminhou
pesadamente até o moribundo ser, que chorava, mesmo tendo completado o
desafio, não parecia uma vitória.
- Não haverá novos sons em Midgard. – asseverou o Fossegrim
enquanto Ágda recolhia as lágrimas de seu dissolvido rosto. – Nenhum canto
inédito de animais, nem sons para acalmar a natureza... E a culpa é sua,
ingênua Valquíria. Nada de bom surgirá ao se contrariar as Nornas. Você...
Antes que pudesse concluir, o barroso ser voltou a fundir-se com as
águas que ebuliam, dessa vez sem retornar.

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ASCENÇÃO AO CUME DE NÍDAVELLIR

- Não sou o seu serviçal – vocalizou o dragão após um longo período de


silêncio. – Reconheço que luta por uma causa nobre, porém limito-me a
navegar a embarcação de Hel aos destinos solicitados e nada mais. Esse foi o
acordo que fiz com Hel.
- Draupnir, o anel de Odin que a cada nove noites dá origem a mais oito.
“O maior tesouro dos deuses”. – repetiu Ico, em tom de deboche. – Sem a sua
ajuda não conseguiríamos derrotar o Fossegrim e você nunca veria tal joia. Já
pensou nisso?
Nighogg o deu as costas, irritando o Draug que continuou:
- Ágda está arriscando tudo para impedir o Ragnarok que dizimará o
mundo como o conhecemos e você está preocupado com tesouros. Eu tenho
nojo de...
- Cale-se! – berrou o dragão, que de tão enfurecido deixou escapar
baforadas de fogo das narinas.
- Peço que o perdoe. – pediu a Valquíria, ajoelhando-se perante a
aterradora figura que largara o Leme e caminhava em direção ao amado. – Ico
só está agitado pelo combate.
- “Agitado”? – questionou o Draug, rindo nervosamente. – Você quase
morreu novamente. Vamos, mostre-nos o seu ombro.
- O meu... – repetiu Ágda, tocando no membro. Ao tocar na armadura
perfurada, lembrou-se do golpe que a derrubara.

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- Está ferido, não está? Aberto e pútrido, assim como o ferimento na
barriga que Elli lhe causou. E nem irei comentar sobre o seu olho sacrificado
para Mimir, que não voltará nem em Hel.
- Ico... – murmurou Ágda.
- E você preocupado com tesouros. – proferiu o Draug, com semblante
de decepção.
Nidhogg se calou, encarando-os. Antes de retornar ao leme, notou a anã
encostada na cabine.
- Você está bem? – perguntou o surpreso capitão, avançando até ela.
- Sim... – respondeu. A voz era baixa e seca, com um quê de tristeza
percebido por Ágda.
- Deve estar faminta. – continuou o dragão. – Venha. – e a acompanhou
para dentro do convés.
O casal ficou só, enquanto a embarcação avançava pelos galhos de
Yggdrasil.
- Desculpe. – pediu Ico, observando o deslumbrante cenário ao redor.
- E eu achando que você tinha medo de dragões. – brincou Ágda.
- Claro que tenho. Porém, te amo mais do que qualquer medo. – sorriu.
– Ser um espírito que não pode ser ferido também ajuda.
- E se o Fossegrim estiver certo? – questionou a Valquíria. – E se, ao
alterarmos o Ragnarok escrito pelas Nornas, criarmos um futuro ainda pior?
- Pior do que a visão que teve? Do que a aniquilação de inocentes e
destruição de tudo?
- Eu sei, mas...
- Ninguém além de Odin precisa sucumbir ao Ragnarok. – continuou Ico.
– Não esqueça o motivo de nossa viagem, meu amor: estarei com você para
lembrá-la que nosso sacrifício é pelo bem do mundo. E, ao final, ficaremos
juntos pela eternidade... Não consigo conceber um futuro melhor.
A Valquíria sorriu, pondo simbolicamente a sua mão sob a do amado.
- Mal posso esperar para poder tocá-la novamente. – admitiu o Draug. –
E beber uma cerveja.

66
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- Eu posso ficar?! – repetiu a anã, incrédula.


- Sim. – repetiu o capitão. – Eu não a deixaria retornar à cidade depois
do que fizeram com você.
- Se ainda houver cidade para retornar depois do incêndio que causou. –
sussurrou Ico para Ágda.
- Iremos encontrar um lar para você durante as viagens. – afirmou
Nidhogg.
- Obrigado! – celebrou a Anã, abraçando fortemente o dragão que não
soube como reagir.
Pouco tempo depois, Ágda e Ico desembarcaram novamente em
Nídavellir.

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- Olhem que belezuras! – animou-se Ullo.


- São tão brilhantes. – constatou Uddon.
- Essa será nossa obra-prima. – previu Ummo.
- Quanto tempo demorarão para criar as asas? – quis saber Ico,
impaciente com as exageradas reações.
- Não apresse a arte. – vetou Ummo.
- Pode ficar meio quente aqui. – advertiu Uddon, correndo para ativar a
fornalha.
- Não sinto calor. – revelou Ágda.
- Ótimo! – respondeu Ullo, manejando as lágrimas de Fossegrim e
escamas de dragão com meticuloso cuidado. – Agora, por favor, retire a
armadura e roupas e sente-se aqui para...
- De jeito nenhum! – berrou Ico, atirando-se na frente da amada e
surpreendendo a todos.
- Como acha que iremos acoplar um par de asas nela?! – vociferou
Ummo.

67
- Por cima da roupa! – respondeu o Draug com um berro.
- Você está me deixando constrangida. – murmurou a Valquíria.
- Não estou! – insistiu o companheiro. – Ninguém pode ver os seus seios
além de mim!
Após uma fervorosa discussão, e a contragosto de Ico, combinaram em
cobrir apenas os seios de Ágda.
Os ferimentos da Valquíria chocaram os anões, que não conseguiram
disfarçar entreolhares de surpresa. A lâmina de Elli a perfurara na região da
barriga, criando um longo corte horizontal que jamais cicatrizaria. Entretanto, o
machucado do ombro era ainda mais preocupante: o jato d’água do Fossegrim
abrira uma cratera do tamanho de um pedregulho no membro.
- Iremos fundir as asas a sua coluna e braços. – informou por fim Uddon.
– Devido as escamas de dragão, pouquíssimas coisas poderão danificá-las.
- O Mjolnir seria capaz de quebrá-la. – comentou Ummo, iniciando o
processo.
- Gungnir talvez. – acrescentou Ullo. – E claro, a espada de Frey do
mesmo modo. E...
- Eu disse “pouquíssimas coisas” – repetiu Uddon. – e não “nada”.
- Uma mordida de Fenrir. – continuou Ummo, após um momento de
silêncio.
- Definitivamente. – concordou Ullo. – Ou o veneno de Jomungand.
Enquanto enumeravam os potências riscos às asas, continuaram com o
processo de criação. Ágda se surpreendeu quando transformaram as lágrimas
do Fossegrim em um punhado de linhas, que se conectavam as escamas de
dragão (posteriormente destruídas e convertidas em penas escarlates).

----

- Agora tente mexer a asa direita. – pediu Uddon, após o que parecia
uma eternidade.
A Valquíria não pôde deixar de esboçar um sorriso ao perceber que
conseguira movimentar as asas.

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- A da esquerda... Muito bem. As duas ao mesmo tempo... – direcionava
o anão, auxiliado pelos irmãos. Após alguns testes bem-sucedidos, emocionou-
se ao concluir:
- Esse é, indiscutivelmente, o nosso melhor trabalho.
Já ereta, Ágda abriu as asas. Nelas se via que o metal se fundia com
maestria às escamas, agora transmutadas em penas rubras. Estendeu um dos
novos membros até o Draug, que sorrindo fingiu acariciá-la.
- A elevação agora será possível. – afirmou Ullo. – Venha.
Caminharam para fora, até chegarem a um ponto da caverna onde uma
singela luz escapava por uma fresta no alto.
- Ali está uma das passagens até o cume; voe até lá e estará no domínio
dos elfos negros. Osman, o indagador – e fez careta ao repetir o subtítulo – é
uma celebridade entre os de sua espécie. Creio que não será difícil encontrá-
lo.
- Agradeço imensamente pela ajuda. – sorriu a Valquíria, seguido de um
gesto cortês.
- Agora vá e derrote o usurpador por nós. – pediu Uddon.
Com um poderoso bater de asas, Ágda se lançou no ar.

69
O CUME DE NÍDAVELLIR

A fresta que dividia os reinos era de fato minúscula e para ultrapassá-la


foi preciso utilizar as asas como alavancas para projetar-se até o cume,
batendo violentamente contra as rochas no processo.
“De fato, asas comuns jamais aguentariam tamanho impacto” – refletiu a
Valquíria após finalmente alcançar o outro lado.
A natureza do exterior de Nídavellir era intimidadora. Árvores, plantas e
até mesmo insetos eram muito maiores e aparentavam uma ferocidade elevada
se comparados aos de Midgard.
Apesar de ser dia, não havia luminosidade. Uma espécie de manto
pairava sobre a floresta, dando-lhe um ar fantasmagórico.
- Ico! – vocalizou ao lembrar-se do amado. Estava tão absorta com a
sensação de possuir novas asas e em adiantar a missão que esquecera que o
amado não poderia segui-la na busca por Osman.
- Olá! – ouviu em retorno.
Para a sua surpresa, o Draug sorria ao lado.
- Como você chegou aqui? – quis saber.
- Não faço ideia. – admitiu o espírito. – Eu simplesmente desejei te
seguir e quando me dei conta, cá estava.
- Fico feliz que tenha vindo me resgatar. – brincou a guerreira, simulando
um abraço.
- Agora, para onde vamos? – perguntou o Draug. – Não vejo nenhum
sinal dos elfos negros.

70
- Avencemos. – declarou, apontando a asa com um movimento
exagerado para o norte.
- Exibida.
Caminharam por entre um ecossistema que parecia caçá-los a cada
passo. Viram de relance monstruosos animais à espreita e, por mais de uma
vez, a Valquíria desembainhou a adaga crendo que entraria em combate. Por
fim, alcançaram o que parecia uma vila.
Os lares, construídos ao longo das imensas árvores que permeavam o
ambiente, eram talhadas em madeira e outros materiais derivados da própria
selva. Diversas runas adornavam as casas, que se conectavam por pontes
suspensas. Como forma de proteção, os elfos negros quase não desciam ao
térreo, restringindo esses momentos para a coleta de materiais.
Escondida por longos mantos, a pele dos elfos negros variava em tons
de cinza, já os cabelos, tradicionalmente longos e traçados (desde as crianças
até os anciões o utilizavam desse modo), eram negros feito a noite.
Ao se aproximar do povoado, notou que os olhares dos elfos a seguiam.
- Que povo feliz. – ironizou Ico, observando as feições pouco
expressivas. Não demorou até que fossem cercados pelos habitantes, que
murmuravam sobre a Valquíria e o Draug.
- Busco o que chamam de Osman, o indagador. – expôs Ágda,
decididamente.
- O problemático não está mais entre nós. – respondeu um elfo negro de
aparência jovial. A Valquíria estranhou o fato de que, com exceção dos lábios,
nenhum outro membro do jovem se mexeu.
- Preciso encontrá-lo. – insistiu.
Os elfos negros sussurraram, porém nada que fosse audível para os
visitantes. Após incômodos minutos, as vozes se calaram, sinalizando que uma
decisão fora tomada, o jovem continuou:
- O achará na prisão dos elfos em Álfheim. – orientou o inexpressivo
rapaz, que aparentava ter um papel de liderança naquela sociedade.
- Ele está preso? – surpreendeu-se Ico. – O que fez?

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- Em sua busca pela origem dos mundos que circulam Yggdrasil, Osman
utilizou magias maculadas que chamaram a atenção de deuses e criaturas
profanas. Os elfos de Álfheim, temendo as catástrofes que tal conhecimento
poderia trazer, ameaçaram guerrear com Nídavellir caso não o entregássemos
para que fosse silenciado.
- E vocês o entregaram? – perguntou Ico.
- Sim. Para evitar uma guerra que custaria muito aos dois reinos. O
próprio Osman aceitou o seu destino de bom grado e partiu sem resistir.
Ao notar o olhar de desaprovação de Ágda, o líder dos elfos negros
acrescentou:
- Não se engane, Valquíria; não há prazer em revelar o destino de
Osman. Entretanto, respeitamos Odin e o seu reinado pelos nove reinos; não
desejamos guerrear com o pai de todos e por isso a sua presença aqui foi
tolerada. Entretanto, abuse de minha boa vontade e descobrirá que dentre os
elfos negros não apenas Osman dominava magias a muito esquecidas por
outras raças. Agora partam e não retornem.

72
ÁLFHEIM

- Álfheim é conhecido por ser o reino mais pacífico e próspero dentre os


nove – explicou o dragão enquanto velejavam pela Yggdrasil. – Talvez seja um
bom local para você começar uma nova vida.
A anã sorriu. Mesmo após o pouco tempo em que passara na
companhia de Nidhogg, já aparentava estar mais saudável.
- Ele só me contou o paradeiro de Osman porque achou que eu ainda
servia Odin – comentou Ágda. – Não teria chance contra os elfos negros caso
descobrissem que busco destroná-lo; por pouco nossa missão não tem um fim
abrupto.
- Otários. – riu Ico.
- Vocês tiveram sorte. – proferiu o dragão.
- E como acharemos Osman? – quis saber o Draug.
- Como eu disse, Álfheim preza pela paz e serenidade acima de tudo e
seus habitantes orgulham-se da beleza imaculada das terras. Creio que uma
prisão destoaria desses preceitos, ou seja, devem mantê-la oculta... Escondida
em uma ilha, talvez.
Ao alcançarem o reino dos elfos, foram de fato surpreendidos pela
tamanha formosura da paisagem. Ao contrário de Nídevellir e de seu manto
sepulcral, a luz de Álfheim era constante e incidia sobre tudo que aquelas
terras ofereciam. Assim como os elfos negros, construíram a sociedade em
volta da natureza; entretanto, o espaçamento entre as árvores não causava a
sensação sufocante de Nídevellir e criava uma atmosfera muito mais

73
convidativa. Também não havia a necessidade de se construir os lares em
cima das árvores temendo por perigos naturais e predadores, afinal os animais
do reino eram dóceis e muitas das espécies foram domesticadas a ponto de
residirem nos lares com os donos.
Em geral, os elfos possuíam a pele esverdeada, com sutis variação na
tonalidade. Contrastando com os elfos negros e seus cabelos escuros feito
noite, a população de Álfheim portava fios brancos, que poderiam adquirir
coloração loira ou ruiva devido a exposição prolongada ao sol, o que não era
socialmente bem-visto, pois consideravam os fios alvos como padrão estético
(característica que os diferenciava das outras espécies).
Ágda sorriu disfarçadamente ao notar que o dragão demonstrava
conforto na presença da anã, que como criança, o fazia inúmeras perguntas,
como: sobre o navio, reinos, Yggdrasil, o Draug, a Valquíria, e tantas outras. O
único assunto que a diminuta figura não tocara foi a respeito do próprio
Nidhogg e a sua condição como dragão.
- Como devemos chamá-la? – quis saber Ágda, interrompendo uma
explicação do capitão sobre o motivo dos gigantes de gelo terem barbas
coloridas.
- Meu nome é Bera. – revelou timidamente a anã.
- Lindo nome. – comentou a guerreira.
- Significa “ursa valente” na linguagem anã. – revelou o dragão.
- Eu... Não sabia. – admitiu Bera.
- Quantos anos você tem? – quis saber o Draug.
- Trinta e cinco.
Ico coçou a cabeça, confuso.
- Os anões envelhecem lentamente. – explicou Nidhogg. – Trinta e cinco
anos seria o equivalente a dez para os humanos.
- Como sabe tanto sobre os anões? – perguntou o Draug.
Nidhogg não respondeu.
- Olhem! – bradou a anã, apontando para cima.
Muito acima das nuvens flutuava uma isolada ilha.
- Deve ser a prisão onde eles mantêm Osma.n – deduziu Ágda.

74
- Como faremos isso? – perguntou Ico.
- Posso lutar por você. – ofereceu-se Bera.
- Você é apenas uma criança. – vetou Ico.
Em resposta ao comentário, a anã flexionou os bíceps. Os músculos de
seu braço, de tão definidos, pareciam pedregulhos sob a sua pele.
- Ela é três vezes mais forte do que eu fui em meu auge. – murmurou o
Draug.
- Agradeço, ursa valente. – disse Ágda, sorrindo. – Mas não pretendo
ser vista enquanto busco por Osman, pois já estive em mais combates do que
gostaria durante essa jornada. Ico pode atravessar paredes, então me dirá a
localização dos guardas para que eu possa evitá-los.
- Serei sutil como uma brisa. – declarou o Draug, com um gesto
exagerado.
- Irei levá-la nas costas. – disse Nidhogg. – Se nós fossemos com o
navio certamente seríamos vistos. Pronta?
Caso Ágda ainda sentisse dor, de certo reclamaria das escamas do
dragão durante o percurso. Ao chegarem, Nidhogg pôs-se a bater as asas da
forma mais silenciosa possível, sobrevoando baixo a ilha para que Ágda
pudesse pular.
Ao cair, notou a figura de Ico já a esperando.
- Parece que estou mesmo vinculado a você. – brincou o amado.
A flutuante ilha abrigava uma vegetação rasteira e acinzentada; a
natureza de Álfheim não se adaptara aquela altitude. Uma grande construção
petrosa ocupava o centro da ilha, guardada por elfos munidos com clavas e
adagas.
- Não estou vendo um modo de entrar. – constatou Ico, deitado ao lado
da Valquíria enquanto espionavam. As portas, revestidas com duas camadas
de proteção, pareciam altamente improváveis de serem violadas.
- Talvez tenhamos que lutar. – lamentou a Valquíria, instintivamente
tocando na adaga.

75
- Ou você pode se disfarçar. – sugeriu o Draug, apontando para um elfo
que cobria a face com uma máscara branca, armadura dourada e longa capa
verde-musgo.
- Ele deve ocupar uma posição de liderança. – vocalizou a Valquíria ao
observar os trejeitos pomposos do elfo, que gesticulava comandos aos outros
guardas.
- Vamos segui-lo. – propôs Ico.
Assistiram ao mascarado realizar a sua ronda, que consistia em vistoriar
todos que vigiavam o exterior da prisão e penalizá-los no caso de eventuais
falhas.
- Até eu quero me fantasiar dele. – admitiu Ico quando o viu esbofetear
um guarda que dormira no posto.
Ao final da vistoria, o mascarado alongou as costas, pescoço e braços
depois de repreender uma dupla de elfos que conversavam tão dispersamente
a ponto de não o vêr chegar. Para o desespero de Ágda, que esperava uma
pausa entre uma ronda e outra para que pudesse nocauteá-lo e roubar os
trajes, o alvo pôs-se a retornar a posição inicial e reiniciar o demorado ciclo.
- Você precisa atacar agora! – orientou Ico, a despeito dos dois guardas
próximos.
Sem relutar, a Valquíria avançou. Os dois elfos, que amaldiçoavam
baixo o mascarado, viram apenas um borrão escarlate antes de serem
nocauteados por um chute alado que os atingiu na nuca.
Ao ouvir o barulho dos corpos indo ao chão, o elfo mandante virou-se
com uma velocidade surpreendente, já com a espada desembainhada.
Temendo que o adversário convocasse reforços, voou imprudentemente ao
seu encontro.
Antes de atingi-lo em cheio, e consequentemente desacordá-lo com o
impacto, ela notou que uma lâmina perpassava o seu peito.
- Bem... Vencemos, não é? – disse Ico, enquanto a companheira retirava
a espada do corpo.

76
- Logo no coração... – lamentou a guerreira, analisando o ferimento com
tristeza. Ainda que não sangrasse ou sentisse dor, a ideia de que tivera ferido o
órgão que acreditavam conter o amor a entristeceu.
- Ele deve ser um excelente guerreiro para conseguir acertá-la na
velocidade em que estava. – comentou o Draug, fingindo dar um peteleco na
cabeça do líder elfo.
Ágda não respondeu. Apressou-se em vestir os trajes, tentando
esconder as enormes asas da melhor forma que pôde; ainda assim, ao finalizar
parecia possuir uma singela corcunda.
- Como estou? – quis saber a Valquíria, já utilizando a máscara branca
que esconderia sua identidade.
- Linda? – respondeu o amado.
- Bobo.
- Não desconfiarão que se trata de uma mulher por conta do volume das
asas – explicou Ico. – Entretanto, você precisará ficar de olho na postura para
que ela não a denuncie.
Ágda ajeitou novamente o manto da melhor forma que pôde antes de
prosseguir. Esconderam, após devidamente amarrados e amordaçados com as
próprias vestimentas, os elfos nocauteados pela guerreira e puseram-se a
refazer o trajeto da ronda do mascarado.
- Evite falar. – aconselhou Ico, observando um dos guardas a distância.
– Se precisar se comunicar, urre com a garganta palavras simples, como “sim”,
“não” ou “abra”; estranharão a sua voz, porém creio que o seu disfarce será
preservado.
- Certo. – concordou a Valquíria. – E como você...
Antes que pudesse terminar de perguntar como o fantasmagórico amado
passaria despercebido, percebeu que Ico havia sumido.
O elfo mais próximo estava a menos de vinte metros de distância. Ágda
endireitou a coluna e alongou os ombros antes de avançar.
Para o seu alívio, o guarda abaixou a cabeça ao vê-la. O próximo guarda
fez o mesmo, assim como o seguinte e os demais. Ao passar pelo último, no

77
entanto, pareceu ter chegado a um beco sem saída; havia apenas uma imensa
e lisa parede cinza a frente, sem qualquer tipo de entrada visível.
Ágda analisou a estrutura com atenção, na esperança de encontrar
alguma espécie de alavanca que revelasse uma passagem. Frustrada por não
ter sido bem-sucedida, deixou escapar um urro de decepção antes de dar as
costas.
- Pe-perdão, senhor!
Ao voltar-se para a parede, sorriu ao notar que ela tinha desaparecido.
Em seu lugar, um longo e iluminado corredor se estendia para além da visão.
A sua esquerda, um guarda desculpava-se de cabeça baixa. A Valquíria
observou em sua mão uma espécie de dispositivo com uma grande runa élfica
esculpida em alto relevo.
Ágda se engasgou ao ver Ico atrás do guarda, gesticulando
enfaticamente para que tomasse o objeto para si.
Concentrando-se para não rir com a cena, caminhou até o elfo e
estendeu rudemente a mão; o pobre sujeito não teve opção além de entregar o
dispositivo, que achou ter sido confiscado devido a sua demora em abrir a
prisão para o superior.
Ico, agora parcialmente escondido na parede, apontava freneticamente
para fora. Ágda demorou a entender o que lhe era pedido: para garantir a rota
de fuga, deveria se livrar da segurança no portão. Sem pronunciar palavra, a
guerreira indicou a saída com o dedo, permanecendo com a mão elevada até
que o cabisbaixo elfo deixasse o local.
Sozinha com o amado, pressionou a runa para selar o local.
- Ufa. – vocalizou Ico, aliviado.
- Como chegou aqui?
- Atravessando as paredes, obviamente. – respondeu o Draug. – Agora,
avencemos com cautela.
O casal pôs-se a percorrer o corredor, atento a qualquer sinal de
movimento. Chegaram por fim a um claustrofóbico calabouço, onde a única
cela, claramente feita por anões devido ao esmero do ferro retorcido,
comportava uma disforme figura.

78
Três elfos a guardavam, todos com a mesma vestimenta roubada pela
Valquíria.
- São guerreiros de elite. – comentou Ico, observando-os a distância.
- Não abrirão a cela para mim, mesmo com esse disfarce. – previu a
Valquíria.
- Não com essa atitude.
- Gostaria que houvesse outro jeito... – lamentou Ágda, tocando com
tristeza no peito perfurado.
- Eu tenho um plano. – sorriu o Draug. – Esconda-se aqui e espere pelo
meu sinal.
- O que vai...
Antes que pudesse completar a sentença, calou-se ao ver o amado
voando em direção aos guardas.
- Uuuuh, eu vim de Hel para devorar as suas almas! – urrou o Draug.
Os elfos se entreolharam e em uma fração de segundos puseram-se a
golpear o fantasma.
- Desistam, elfos de araque!
Se não fosse pela urgência da situação, Ágda de certo gargalharia com
a teatral cena criada por Ico, que os distanciava progressivamente da cela.
Aproveitando o momento de distração, correu disfarçadamente até o
prisioneiro. Ao olhar para dentro do cativeiro, não conseguiu distinguir mais do
que um vulto agachado e encoberto por trapos escuros.
- Eu vim te resgatar. – sussurrou, preocupada em não ser avistada pelos
guardas que disparavam incessantemente contra Ico. – Osman, não é?
O aprisionado elfo negro balançou lenta e positivamente a cabeça.
- Preciso da chave. – informou Ágda, analisando os arredores em sua
busca.
Osman dessa vez fez um gesto negativo.
- Não há chave? – perguntou. – Como então...
O prisioneiro virou o rosto para um ponto lateral da cela.
Ágda lançou-se sobre o local indicado, tateando desesperadamente as
grades a procura de algum tipo de fragilidade. Sorriu quando a sua mão

79
atravessou o ferro de forma semelhante a de Ico ao tocar em sólidos. As duas
últimas grades da coluna se tratavam de uma ilusão.
Pela passagem ser próxima ao solo, precisou se arrastar pelo chão até o
interior do cativeiro. Prontamente retirou o manto que cobria Osman,
revelando-o.
O elfo negro possuía as mãos presas por um bracelete dourado, de
forma tão grotesca que não conseguia nem mexer os dedos, sendo que dois
deles estavam quebrados. Correntes nas pernas o impediam de se levantar e
ainda uma venda tampava a sua visão.
Com um golpe da adaga, Ágda rasgou o resistente tecido, que fez um
barulho estrondoso ao cair, como se também fosse feito de aço. Para a
infelicidade da Valquíria, os elfos entretidos por Ico também o ouviram.
O prisioneiro de olhos vermelhos estendeu-lhe os aprisionados braços.
- Minha lâmina não é capaz de cortar essas amarradas – expôs Ágda,
fitando o bracelete. Nesse interim, dois dos guardas já avançavam em direção
a eles, enquanto o terceiro permanecia atacando Ico.
Os olhos de Osman apontaram para a adaga e novamente para os
estendidos braços.
Ágda tentou perfurar o bracelete dourado com a arma, sem sucesso.
Antes que pudesse tentar outra vez, o elfo negro urrou um som gutural que a
fez estremecer. Olhou fundo nos olhos da Valquíria, depois para a adaga e por
fim para os braços estendidos.
- Os seus braços... – concluiu a guerreira. – Você quer que eu os corte.
Osman gesticulou com o pescoço um gesto positivo.
- Cuidado, Ágda! – berrou Ico.
Nesse mesmo instante, os guardas alcançaram a cela. Um deles pôs-se
a apalpar a cinta, à procura de algo.
A Valquíria não perdeu tempo, encarando novamente Osman, que
repetia o gesto positivo e apontava para o braço, com um voraz movimento,
cortou os braços do elfo negro.
Osman rugiu em uma mescla de dor e alegria. O guarda, com o
dispositivo que abriria a cela, semelhante ao que revelara a prisão em mãos,

80
deixou-o cair ao notar Osman sem a braçadeira. O medo deles era visível até
mesmo por debaixo das máscaras. Tentaram correr para longe do prisioneiro,
porém já era tarde.
Magicamente, dois novos pares de mãos brotaram dos decepados
membros. Mais veloz do que os olhos conseguiam captar, Osman pôs-se a
gesticulá-las, surpreendendo a Valquíria ao criar runas de luz no ar; os elfos
que fugiam (e também o que atacava Ico) sumariamente foram ao chão.
Após outros gestos e lampejos de runas, as amarras que prendiam as
suas pernas evaporaram consumidas por fogo. Osman apoiou-se em Ágda
para erguer-se e se não fosse pelo auxílio da mesma não conseguiria
permanecer em pé.
O elfo negro era um ancião. A idade avançada, somada ao tempo em
que permanecera encarcerado o tornaram fisicamente frágil, mesmo que fosse
um dos seres mais poderosos dos nove reinos.
Os olhos, vermelhos feito sangue, demonstravam cansaço. Ao contrário
dos outros elfos negros, o pouco cabelo que o restava era desbotado e
quebradiço. Se Ágda ainda sentisse cheiros como antes, se surpreenderia com
o odor pútrido dos trapos que Osman vestia.
- Ele os matou? – questionou o Draug, observando os inertes corpos.
A pergunta foi instantaneamente respondida quando um dos guardas
roncou, sinalizando que dormia profundamente.
Os três puseram-se a caminhar, morosamente devido a condição de
Osman, que parecia na iminência de desmaiar, para fora da prisão. Quando
chegaram ao encantado portão, Ágda praticamente já o carregava nas costas.
- Assim que apertar a runa, esteja pronta para voar até o navio. –
orientou o Draug, apontando para o dispositivo erguido pela parceira. – Irei na
frente para distrair os guardas mais próximos. – e desapareceu na parede.
A Valquíria rasgou o disfarce élfico com a adaga, revelando as
mecânicas e escarlates asas. Apenas quando ouviu o amado gritar
euforicamente “agora, rápido!”, elevou-se no ar e apertou o botão.
Para a sua surpresa, todos os elfos dormiam esparramados pelo terreno.
Ico sorriu, satisfeito por pregá-la uma peça.

81
RETORNO A JOTUNHEIM

- Bera está fazendo-o companhia agora. – informou o capitão após Ágda


perguntar sobre o estado de Osman. Dias pareciam ter passado enquanto
viajavam de volta para o lar dos gigantes de gelo.
- Acha mesmo uma boa ideia manter uma criança no mesmo cômodo
que o mago mais poderoso dos nove reinos? – indagou Ico. – Ainda acho que
seria mais seguro deixá-la em Álfheim.
- Osman poderia ter matado todos os elfos que o mantinham prisioneiro.
– lembrou-se a Valquíria. – Você lembra a forma desumana que era tratado e,
apesar de não faltarem motivos para se vingar, ainda assim, ele resolveu
poupá-los. E não podemos deixá-la em Álfheim após libertarmos Osman, pois
seria muita coincidência uma anã aparecer no reino logo após o ocorrido. Sem
contar que vimos em primeira mão como os elfos tratam os seus prisioneiros...
- Se ele acordasse, poderíamos conhecê-lo melhor. – resmungou Ico. –
Talvez devêssemos chamá-lo de Osman, o dorminhoco.
- A prisão não acaba simplesmente com a liberdade física. – disse
Nidhogg, manobrando a embarcação. – Estar preso é, acima de tudo, uma
condição mental. Apenas quando Osman for capaz de se libertar dessas
amarras conseguirá melhorar.
- Espero que ele possa domar Jomungand. – suspirou Ágda, observando
a radiante Yggdrasil.
- Ainda não acredito que conseguimos concluir o resgate sem revelar a
sua identidade. – comemorou Ico, sorrindo. – Se Odin descobrisse o que
buscamos, de certo moveria o mundo para nos impedir.

82
- Estamos encobertos pelo véu de Hel. – expôs o capitão. – Ágda e
todos ao seu redor são invisíveis para os deuses. Ainda que toda Asgard
estivesse atrás de nós, não conseguiriam nos encontrar.
- Mal posso esperar para tomar uma cerveja novamente. – lamentou o
Draug.
Os três discutiam sobre a bebida quando ouviram passos emanarem da
cabine do capitão.
Uma figura altiva de feições joviais, longos cabelos negros e finos trajes
roxos se revelou. Cobria-se com um emplumado manto, de coloração vinhosa
e traçados rúnicos. Bera caminhava ao seu lado, visivelmente feliz com a
recuperação de Osman.
O mago pôs-se frente a frente a Valquíria, fitando-a fundo nos olhos. Ico,
desconfortável com a situação, estava prestes a interrompê-lo quando Osman
fez, da forma mais delicada e cortês possível, um demorado gesto de
agradecimento para Ágda.
- Preciso de sua ajuda. – revelou a Valquíria, encabulada com a
situação. – O rei dos gigantes de gelo me guiou até você, para que eu possa
levar Jomungand comigo para Asgard.
Osman cerrou os olhos, confuso. Fitou Nidhogg, depois Ico e, por fim
Bera, que lhe sorriu.
- Bem, você fez o seu cabelo crescer novamente… sem contar que
rejuvenesceu o quê, uns cem anos? Transportar uma cobrinha deve ser
moleza. – brincou Ico.
O elfo negro coçou a cabeça, intrigado com o fantasmagórico sujeito
falante.
- Hel os baniu do submundo para que possam destronar Odin. – expôs
Nidhogg, acertivamente. – Ágda teve uma visão...
O regresso à Jotunheim foi marcado por um grande resumo dos
acontecimentos até então. Os ruborizados olhos de Osman brilharam quando
ouviu os nomes de Hel, Mimir e Elli durante a narração. O elfo negro gesticulou
entendimento durante os relatos, porém não pronunciou sequer uma palavra.

83
- Chegamos na terra dos gigantes de gelo. – anunciou o capitão,
constatando a nevasca que velozmente encobriu o navio.
- Estou com frio! – Berrou Bera ao abraçar Nidhogg, que a encobriu com
a asa e pôs-se a levá-la de volta a cabine. Antes que desse mais do que dois
passos, runas materializaram-se no ar, criando um escudo de fogo em volta da
embarcação que repelia a neve.
- O-obrigado – agradeceu a anã, ainda tremendo. Ágda se surpreendeu
com os músculos do braço da criança, que contraídos lembravam os do próprio
Thor quando novo.
O castelo do rei gigante, lar de Elli (a padroeira do envelhecimento), Logi
(o próprio fogo) e Hugi (a personificação do pensamento) já aparecia no
horizonte.
- E então... Irá nos ajudar? – perguntou Ágda, apreensiva.
O mago a fitou novamente e com um sorriso, acenou positivamente.
- É costume dos elfos negros não falarem? – questionou Ico, curioso
para ouvir a voz do novo companheiro.
Para a surpresa de todos, Osman abriu a boca, revelando uma língua
cortada.
- Sinto muito. – disse a Valquíria.
Osman novamente pôs-se a movimentar as mãos, tão rápido que era
impossível para eles acompanharem, porém quando terminou, apareceram
duas runas sob a sua cabeça, com os dizeres “Estou bem” e “Ajudarei vocês”.

----

- É um grupo e tanto que temos aqui. – proferiu o rei dos gigantes de


gelo, abrindo os braços em sinal de acolhimento.
Ágda, Ico, Osman, Nidhogg e Bera, que, após muito implorar para o
dragão, conseguiu permissão para ir junto à Valquíria ver os gigantes sob a
condição de permanecer em silêncio e em sua supervisão, o saudaram.

84
A Valquíria percebeu olhares de reprovação a suas novas asas, afinal
sob o comando de Odin, fora responsável pela morte de muitos gigantes de
gelo durante o tempo em que fora general.
- Fico feliz em vê-lo bem, meu maior inimigo. – pronunciou Elli, fitando
Osman com um sorriso.
- Inimigo? – estranhou Ico.
- Busca pela imortalidade, reanimar os mortos... Eu e Osman temos uma
longa história. Por isso pedi para que fossem buscá-lo, já que os seus
conhecimentos surpreendem até as leis do mundo. Uma pena para ele que eu
sempre o venço, não é pequeno?
- “Por enquanto”. – dizia a runa conjugada.
Elli sorriu.
- Estamos prontos para Jomungand. – comunicou decididamente Ágda.
- Está mesmo? – questionou o rei. Nesse instante o imenso gato entrou
nos salões, caminhando charmosamente até a Valquíria.
Pela primeira vez desde que o conhecera, Osman demonstrou irritação.
- “Encolhimento impossível.” – revelaram as runas conjugadas. – “Magia
de transfiguração já vigente”.
- Jomungand precisava ser escondida de Odin – revelou o monarca. –
Esse foi o único jeito que encontramos.
- “Encolhimento impossível.” – repetiram as runas.
- Ache uma brecha no feitiço. – aconselhou Elli. – Você é bom nisso.
Osman massageou a têmpora. Por fim, conjurou os dizeres “Preciso de
tempo”.

----

- Isso está delicioso! – berrou Bera, devorando as patas de um bezerro


com volúpia.
- Ela tem a fome de Loki! – Apontou Logi, rindo com os outros gigantes
de gelo que a circulavam.

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- Ela é menor do que a barata em meu quarto. – riu um gigante de barba
esmeralda.
- Que nojo! – berrou a anã de boca cheia, gargalhando em seguida.
Nidhogg assistia a cena, enquanto bebia uma colossal caneca de
cerveja, disfarçadamente arranhava a mesa com as garras.
- Sei o que se passa pela sua mente. – revelou Hugi, sentando-se ao
lado do dragão – Ninguém aqui fará mal a criança. Tente relaxar.
Ágda e Ico fitavam o banquete com tristeza. A Valquíria não sentia fome,
porém as memórias do gosto da carne e cevada ainda eram vividas e
despertavam desejo. Se tentasse beber ou comer, entretanto, para além de ser
incapaz de sentir qualquer gosto, não conseguiria fazer com que os alimentos
descessem pela garganta e acabaria os regurgitando.
Enquanto Osman estudava a cobra do mundo que, transformada em
gato, agia como um felino e por diversas vezes correu do mago e até o
arranhou, o casal ouvia canções e histórias dos gigantes bêbados. Ágda, ainda
que brevemente, se sentiu de volta aos salões de Valhalla, onde a alegria
permeava por todos os presentes.
Não sabia dizer quanto tempo havia passado, pois assim como em
Asgard e Hel, o tempo parecia correr de forma inconstante em Útgard. Distraia-
se com um conto sobre Loki e a origem da rede de pesca quando sentiu uma
mão lhe tocar o ombro.
- Venha, criança. – chamou Elli, a conduzindo até Osman e o gato.
- Conseguiu? – quis saber Ico, sem se aproximar do felino.
- Serei sincero com você. – começou o rei do trono, todos os gigantes de
gelo se silenciaram imediatamente – A única forma possível de transportar
Jomungand longe dos olhos de Odin requererá ainda mais sacrifício do seu
corpo e espírito.
- Não! – vetou Ico. – Olhe para ela e...
- Silêncio – vetou Ágda, encarando o amado. – Estou disposta a pagar o
preço que for.
- A serpente do mundo precisará de um hospedeiro. – continuou o
monarca. – Ela se fundirá a você, tanto em corpo quanto em espírito.

86
- Essa união poderá trazer consequências irrevogáveis. – complementou
Elli, acariciando o gato que, ao toque da giganta, deitou de barriga para cima. –
Jomungand, para além do poder descomunal, tem uma existência sofrível e
condenada. Ao fundirem-se, você também sofrerá com as suas memórias e
carma por nascer um monstro.
- O seu corpo talvez não suporte o poder da cobra. Por exemplo, o
veneno poderá te corroer por dentro, devorando até mesmo os seus ossos –
expôs o rei.
- Ou sua mente poderá se dobrar ao espírito de Jomungand, o que a
permitiria assumir o seu corpo para si. Caso isso ocorra, você será uma
prisioneira eterna. Ainda assim deseje continuar com o seu plano? – perguntou
Elli.
Ágda achou que choraria caso ainda tivesse lágrimas. Tocou no olho
perdido, depois na ferida aberta no peito, na pele morta e branca e por fim nas
asas de metal. Já perdera muito para desistir agora. Ico repetia
incessantemente para que não aceitasse, enquanto uma apreensiva Bera
escondia o rosto em Nidhogg, que bufava chamas pelas narinas.
- Sim. – respondeu.
Os gigantes de gelo murmuravam.
- Que assim seja. – decretou o rei, acenando para que Osman iniciasse.
O mago começou a gesticular freneticamente, tão rápido que os seus
braços se tornaram borrões. Toda a iluminação dos salões de Útgard apagou-
se com a sumária tempestade que circulava Osman. No instante seguinte, de
suas mãos jorraram uma quantidade absurda de runas, que ele direcionou para
a testa da Valquíria.
Tudo ao redor de Ágda ficou escuro. A guerreira gritou por Ico, porém
não houve retorno. Ela estava só.
Ouviu uma voz, tão distante que parecia um sussurro. Gradativamente a
voz se tornou mais forte, voraz e conhecida. Ágda estremeceu ao perceber que
era Odin quem bradava xingamentos e maldições a alguém chamada
Angrboda, que chorava copiosamente.

87
Poderosas batidas fizerem tremer os arredores, apavorando-a. As
súplicas da mulher para que Odin os deixasse em paz doeram o peito da
guerreira, que não pôde deixar de agir.
Ágda avançou até a fonte da voz e para a sua surpresa, não possuía
mais pés. Rastejou para fora da caixa onde fora escondida pela mãe, e sem
pestanejar, mordeu a mão do pai de todos.
Angrboda, do chão, berrou para que fugisse. A bela giganta de gelo
tentou se levantar, porém não teve forças. O seu corpo e rosto sangravam,
com inúmeros hematomas e cortes. Como se via, Odin a torturara.
- Aqui está – vociferou Odin, segurando a cobra com uma mescla de
nojo e desprezo. – Esse monstro que matará meu filho, não é? – e
arremessou-a violentamente na parede.
- Não! – chorava Angrboda, engasgada com o próprio sangue.
- Você e Loki criaram essas duas carniças. – bradou Odin, esmagando
com a bota a pata de um acorrentado filhote de lobo.
- Meus filhos... Não têm culpa... – proferiu Angrboda, com dificuldade. –
Loki... Me enganou...
O pai de todos caminhou até a cobra no chão. Agarrou-a ferozmente
pelo pescoço e enterrou a lança em seu corpo.
- Assim como o irmão, isto não morre. – constatou Odin, ao notar que a
lâmina não perfurara as escamas.
- Deixe-nos... Irei para o além-mar... Meus filhos... Com amor...
- Amor? Essas aberrações? – enfureceu-se o deus. Carregando
Jomungand em uma mão e Fenrir em outra, avançou para fora do cômodo.
- Quebrem as patas e amarrem-no. – ordenou, se referindo ao lobo.
- E quanto ao outro, o que quer que façamos?
- Eu cuido dele.
Odin contorceu o corpo de Jomungand, dando-lhe um nó como se fosse
um laço. Colocou a cobra em um saco, junto a pesadas pedras e ratazanas e a
atirou para os mares de Midgard.

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88
Por mais que tentasse fugir, o deus dos trovões sempre a encontrava,
rindo enquanto desferia golpe após golpe contra o seu crânio. Por mais de uma
vez Jomungand deixou que Thor a acertasse, na esperança de que finalmente
morresse, entretanto, por mais que sofresse com as investidas, era incapaz de
morrer.
- O que sente, Valquíria? – ouviu uma estranha voz em sua cabeça.
A guerreira demorou até recobrar a consciência e notar que não era
mais a cobra. Mesmo depois de se recuperar, as suas memórias ainda se
confundiam com as de Jomungand.
Ágda estava novamente cercada por escuridão. O som do mar revolto
reverberava com a tempestade que o seguia e a sua frente, uma colossal
cobra, ainda maior do que a própria ponte Bifrost, a encarava.
- Você viu o que vi e sentiu o que eu senti. – expôs Jomungand, com
uma voz lenta e rasgada. – Se o que alega é verdade, te ajudarei a derrubar
Odin e todos os que se opuserem a nós, entretanto, se me trair, usarei o seu
corpo para destruir toda a Asgard e os malditos deuses que a veneram.
- Você tem a minha palavra que Odin caíra. – decretou Ágda.
- Muito bem. – Jomungand parecia sorrir. Escancarou a boca, cada
dente parecia do tamanho de uma montanha, e, para o terror da Valquíria,
avançou com um bote, devorando-a por completo.

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- Alguém faça algo! – desesperava-se Ico, a plenos pulmões.


Ágda vomitada veneno, que corroía até mesmo o revestido piso de
Útgard, forte o bastante para aguentar o incalculável peso dos gigantes de
gelo, ao tocá-lo.
- “Ela vai sobreviver”. – comunicou Osman por meio das runas.
A Valquíria tombou. O veneno agora escorria pelos olhos, nariz e
ouvidos, entretanto não corroía a sua própria pele, que pulsava. Ágda urrava
de dor; não era uma dor física, terminantemente cessada por Hel, pois parecia

89
vir de seu âmago. Nem quando teve as asas arrancadas por Odin e foi
arremessada de Asgard sentira tanto sofrimento.
Ágda, inconscientemente, pedia para que a matassem.
- Por favor, ajude-a. – pediu Ico para Osman.
- “Ela vai sobreviver”. – repetiu as runas.
O único olho da Valquíria se tornou amarelo, e a sua pupila dilatou-se
verticalmente. Em seu braço esquerdo cresceram escamas esmeraldas, em um
padrão idêntico a das cobras.
Subitamente, cessou os gritos. Nidhogg tentou ajudá-la a se levantar,
porém ao quase entrar em contato com o veneno expelido precisou se afastar.
- Estou bem... – murmurou Ágda, ainda no chão.
Uma enorme mão a ofereceu apoio. Ao tomá-la, se deparou com o
próprio rei dos gigantes.
- Você é a esperança dos nove reinos. – proferiu o monarca, de forma
respeitosa.

90
VANAHEIM

- Um olhar petrificante, uma tatuagem linda e um grande passo para a


vitória contra Odin. – disse Ico. – Eu vejo isso como uma vitó...
Ágda chorava. Do único olho reptiliano, desciam lágrimas de veneno que
precisavam ser secadas antes de alcançarem as vestes, pois as corroiriam.
- Por favor... – pediu Ico, com tristeza na voz.
- Estamos próximos a Vanaheim. – anunciou timidamente a anã,
adentrando a cabine do capitão onde o casal repousava.
Ágda passara os últimos dias entocada, sem contato com ninguém além
de Ico. O capitão cedeu de bom grado os seus aposentos, improvisando um
leito para Bera. Osman, por sua vez, dormia em uma espécie de globo de
cristal que o encobria.
A Valquíria enxugou as lágrimas. De certa forma, produzi-las, ainda que
fossem venenosas, era melhor do que não as ter. Porém o olho, o seu único
olho, transformara-se em algo animalesco, que lhe causava repúdio. Na
verdade, a sua forma, pútrida e cada vez mais desfigurada, a fazia querer se
esconder do mundo.
- Vamos. – decidiu por fim, erguendo-se. A mera ideia de ter que passar
pela dor do processo de fusão novamente a aterrorizava a ponto de querer
desistir. Entretanto, a companhia e apoio de Ico a recordavam que no final da
missão permaneceriam juntos pela eternidade, e essa era toda a motivação de
que precisava. Ao passar por Bera, surpreendeu-se quando a diminuta criança
segurou a sua mão e disse:
- Você é linda de qualquer jeito. Nunca se esqueça disso, tá bom?
Ambas sorriram.

91
Nidhogg e Osman conversavam. O mago estava tão habilidoso na
criação de runas que já conseguia se comunicar quase que na mesma
velocidade em que as pessoas falavam, ele contava sobre os perigos de
Vanaheim, o lar dos deuses derrotados.
- Os Vanir vigiam o lobo com afinco. – comunicou o dragão ao vê-la se
aproximar. – Odin os obriga a tal. Como eles são guerreiros formidáveis, sem
estratégia nós pereceremos facilmente.
- Quem são esses mesmo? – perguntou Ico a Ágda, ávido para distrair
um pouco a companheira.
- Ainda durante a confecção dos mundos, houve uma guerra entre os
deuses Aesir, comandados por Odin, e os Vanir, chefiados por Frey. – explicou
a Valquíria. – Ao perderem a batalha, o pai de todos os submeteu a fazerem
um tratado de paz e manterem subserviência a Asgard. Como prova de
lealdade, trouxe os irmãos Frey e Freya para a sua morada em Valhalla.
- Isso me parece mais sequestro do que qualquer coisa – comentou Ico.
- No início sim. – concordou Ágda. – Porém, após inúmeras batalhas em
defesa de Odin, os irmãos ganharam a confiança de Asgard e hoje são livres
para perambular por todos os reinos, inclusive a sua terra natal.
- Chegamos. – anunciou Nidhogg.
As brilhantes raízes da Yggdrasil deram lugar a um mundo deveras
semelhante a Midgard, porém com ainda mais flores e céu esverdeado.
Porém, a principal diferença estava nas construções, já que até o mais
elaborado dos monumentos de Midgard não se equiparava a mais simplória
casa dos Vanir. A singular arquitetura daquele mundo fora copiada por Asgard
após o próprio Odin, maravilhado com as obras, ordenar que os Vanir
reformulassem a morada dos Aesir ao seu bel-prazer.
Enquanto em Midgard havia muitos humanos, a população de Vanaheim
apresentava-se muito mais singela. As casas eram deveras afastadas umas
das outras, e poucas pessoas eram vistas fora de sua morada.
- Olhem! – berrou Bera, apontando para o horizonte.

92
A princípio Ágda achou se tratar de uma montanha ao longe. Apenas
quando a figura moveu as orelhas, ela notou que se tratava de Fenrir, o lobo
filho de Loki e irmão de Jomungand.
- Ao menos foi fácil de localizar. – vocalizou o Draug.
- “Mais perto”. – pediam as runas de Osman. – “Magia requer contato”.
- Contato com aquela coisa?! – espantou-se Ico. – Que, durante o
Ragnarok, irá matar Odin? Pode fazer sua magia daqui mesmo, muito
obrigado.
- “Medroso”. – insultou a runa.
- Precavido.
Com o dedo do meio erguido para Ico, Osman gesticulou no ar até criar
runas que circundaram o navio.
- “Estamos ocultos”.
Nidhogg atracou relativamente próximo ao monumental lobo, tomando
cuidado para não fazer barulho na descida. À frente, uma patrulha de soldados
Vanir guardavam o caminho até a acorrentada fera.
- Será impossível avançar despercebido. – constatou o dragão. – Ágda,
me escute: quando anoitecer, voe com Osman por entre...
Enquanto o capitão falava, Osman revirou os olhos. Sem muito esforço,
manuseou um feitiço que fez todos os guardas entrarem em sono profundo.
- Você não tem criatividade. – reclamou Ico, lembrando-o que utilizara a
mesma técnica para escapar da prisão de Álfheim.
- “Funciona”. – respondeu a runa.
- Vamos. – chamou a Valquíria, esperando por Osman. Após alguns
passos, sorriu ao notar que todos os companheiros a seguiam.
- É perigoso. – murmurou o dragão para a anã, em uma tentativa de
fazê-la esperar no navio.
- Para o lobo, talvez. – retrucou Bera, segurando a sua mão.
Pouco avançaram até que os seus cheiros despertassem a curiosidade
de Fenrir. Limitada por amarras em todas as patas e focinho, a fera fez o
máximo para voltar-se até o grupo cada vez mais próximo.

93
- Meu irmão sofre. – tossiu Ágda. A voz lenta e rasgada deixou claro se
tratar de uma manifestação de Jomungand, que dividia o mesmo corpo com a
Valquíria. Uma gota de veneno lhe escorreu da boca.
Fenrir a encarava com feições tristes. A corda que o prendia, de tão
minúscula, seria invisível caso não brilhasse em tom dourado. Já perto, toda a
equipe avançava com cautela, a exceção da Valquíria que praticamente corria.
Instintivamente, Ágda o acariciou na pata. As garras da besta, grandes
como espadas, se retraíram ao seu toque.
- Pobre monstro devorador de pessoas – brincou Ico, observando as
feridas causadas pelas cordas que o mantinham preso.
- Fique próxima. – orientou Nidhogg a Berna, cobrindo-a com as asas.
- Vai liberar o Au Au agora? – questionou o Draug.
Osman suspirou. Caminhou até Fenrir, que rugiu ao vê-lo; mesmo
amordaçado, o som emitido pela besta era ensurdecedor, obrigando-os a
tamparem os ouvidos.
- O elfo negro é amigo, irmão. – a voz da cobra novamente se fez
presente por meio de Ágda. O olho de serpente cruzou com os de Fenrir,
acalmando-o.
O mago pôs-se a gesticular o feitiço de união. Entretanto, quando
parecia ter finalizado, as finas amarras douradas que prendiam o lobo
brilharam nas cores do arco íris, impedindo que o ritual fosse cumprido.
- Qual é o problema? – quis saber Ico ao notar o frustrado semblante de
Osman.
- “Amarras mágicas “. – responderam as runas.
- Corta as cordinhas, amor! – gritou o Draug para Ágda, fazendo um
sinal de tesoura com os dedos.
A guerreira puxou a adaga e com um golpe certeiro, atingiu o laço que o
prendia na altura da pata; entretanto, ele se manteve intacto.
- “A M A R R A S M Á G I C A S” – soletraram as runas.
- Precisará de tempo para libertá-lo? – questionou Ágda.
O mudo feiticeiro gesticulou positivamente.

94
Horas se passaram. De início, a imponente figura do lobo apavorou
Bera, que -se manteve escondida atrás de Nidhogg. Porém, a medida em que
o tempo passava, a equipe percebeu que o lobo não os oferecia perigo; havia
um quê de inocência em seu olhar e o seu rabo balançava todas as vezes que
a Valquíria se aproximava. Com a devida supervisão de Nidhogg, cujo olhar
pareceu encabular o colossal Fenrir, a anã pôs-se a brincar com a fera que,
mesmo limitada pelas amarras, esforçava-se para responder aos comandos.
O esverdeado do céu de Vanaheim começou a dar lugar a uma noite
púrpura, simbolizando o final do dia. Bera agora dormia na pata do lobo, que
ronronava enquanto Ágda o acariciava.
- “Impossível”. – confessaram as runas. Um desapontado Osman
sentou-se no ar, escondendo o rosto com as mãos.
- Você não pode desistir – vocalizou Ico. – Já estamos tão perto!
O mago se manteve em silêncio, acariciando as têmporas e se servindo
de um copo de vinho que materializara do ar.
- Você transformou um gato em uma cobra e a introduziu na mente de
Ágda! Isso deveria ser fácil. – insistiu o Draug.
- “A cobra ERA o gato” – responderam as runas. – “e Jomungand
concordou com a fusão espiritual, saiba que sem o seu aval, jamais conseguiria
uni-las”.
- Há algo que possamos fazer para ajudar? – quis saber a Valquíria.
- “O nome dessa corda é Gleipnir”. – informou o mago por meio das
runas, enquanto tomava a bebida. – “Foi forjada pelos lendários Brokk e Sindri
sob encomenda do próprio Odin com o único propósito de conter o mais mortal
dos predadores”.
Nesse instante, o lobo ronronou com a língua para fora.
- São os mesmos anões que construíram o martelo de Thor e lança de
Odin. – lembrou-se Ico.
- Mjolnir e Gungnir. – nomeou a Valquíria, em ordem. – Eles também
criaram um javali dourado chamado Gulinbursti e a jóia Draupnir.
Ao ouvir o nome do anel que o fora prometido por Hel após cumprir a
missão, os olhos de Nidhogg brilharam.

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- “A corda é feita da saliva das aves, nervos dos ursos, fôlego dos
peixes, raiz das montanhas, barbas das mulheres e som dos passos dos gatos.
Não há magia forte o bastante que consiga quebrar tamanho feitiço, portanto...”
- A corda foi feita de QUÊ? – berrou Ico, acordando Bera.
- Odin pessoalmente buscou pelos materiais. – esclareceu Ágda. – Por
isso que hoje em dia as aves não possuem saliva, montanhas não têm raízes...
Enfim, como sabe dessa história? O pai de todos adorava contá-la em Valhalla
para os deuses, mas nunca aos humanos.
- “Eu li as memórias de Gleipnir”. – admitiram as runas, enquanto o seu
mestre ainda degustava do vinho.
- Leu as memórias de uma corda? – estranhou Ico. – Olha, desisto de
tentar te entender.
- Há alguma forma de parti-la? – quis saber Ágda, tocando as amarras.
- “Força bruta”.
- O que poderia ser mais forte do que a raiz de uma montanha? –
comentou a anã, acariciando o lobo.
- O Mjolnir? – adivinhou Ico. – Não é essa a arma mais poderosa dos
deuses?
- “Nem mesmo o Mjolnir e a força do próprio Thor com o seu cinto
conseguiriam destruir Gleipnir”.
- Então não há esperança. – concluiu Ágda com pesar.
- Faz sentido. – concordou Ico, encarando Fenrir. – Olhem só para esses
dentes, se nem mesmo essas mordidas são capazes de arrancá-las, nada nos
nove reinos será.
- “Nove reinos... Talvez...” – disseram as runas. Osman subitamente se
ergueu do trono de ar, derrubando o copo de vinho que desapareceu antes de
tocar o chão. De suas mãos emanaram um brilho prateado e sem delongas,
pôs-se a analisar novamente as cordas.
- “O fogo de Muspell”. – concluiu por fim. – “As chamas seriam capazes
de consumir as cordas”.

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- O fogo de Muspell é incontrolável. – comentou o dragão. – Se
tentarmos roubá-lo, é provável que queimássemos toda a Yggdrasil no
processo. A não ser que...
- A espada de Surt da profecia. – murmurou Ágda.
- Mas é claro! – gritou Ico, em alegria.
- “Como assim?!” – questionou a runa.
- Era o nosso próximo passo, se apoderar da espada de Surt. – explicou
Nidhogg. – Não lembra?
- “Vocês NÃO me contaram essa parte”. – a runa que simbolizava o
“não” era absurdamente maior que as outras.
Ágda, Ico e Nidhogg se entreolharam.
- Não? – perguntou o Draug.
- Jurava que sim, no resumo que fiz durante a viagem para Jotunheim. –
comentou o capitão, coçando a cabeça.
- Eu sabia que iríamos para Muspell. – intrometeu-se Bera.
- Tá vendo – apontou Ico. – Você que esqueceu.
- “Ela está com vocês a mais tempo, podem ter contado em outra
ocasião”. – retrucou.
- Tem certeza MESMO que não sabia? – insistiu o fantasma.
- “Não sabia MESMO”.
- Bem... Seria o nosso próximo destino, de qualquer jeito. – deu de
ombros o dragão.
- Trocamos a ordem da receita do bolo, mas tudo bem. – brincou Ico.
- Se despeça de seu amigo que já vamos. – orientou Nidhogg para Bera.
- Mas eu quero brincar mais! – respondeu a anã, com o lobo tentando
uivar, concordando com ela.
- Retornaremos em breve, irmão. – disse Jomungand por Ágda com sua
habitual voz rasgada.
- “ESPEREM”! – clamou a runa.
Todos fitaram Osman, que aparentava desespero.
- Irei derrotá-lo. – decretou a guerreira, confiante.

97
Visivelmente irritado, o feiticeiro pôs-se a continuar se comunicando
pelas runas:
- “Me responda: qual era o tamanho da espada de Surt em seu sonho?”
- Do tamanho... Normal? – vocalizou, confusa.
- “Surt é um gigante de fogo de oito metros. A sua espada deve ter, no
mínimo, dois metros de comprimento” – revelou o mago.
Nesse instante, Ico deixou escapar um palavrão.
- “Mesmo que o vença, não conseguirá manejá-la. Ninguém é tão forte
assim”.
A Valquíria sentou-se novamente na pata de Fenrir, que ronronou.
- É só você lançar uma magia para reduzir o tamanho da espada –
explicou Ico, como quem explica algo a uma criança.
- “O poder elemental da arma não a deixará sofrer qualquer alteração.
Ágda precisaria se adaptar a espada de Surt, não o contrário”.
- Então... Uma magia que a deixe forte como Thor? – sugeriu o Draug.
- O cinturão de Thor! – bradaram a Valquíria e as runas ao mesmo
tempo.

98
MARES DE MIDGARD

- Deixe-me ver se entendi: Thor, depois de beber o equivalente a uma


lagoa em cerveja, foi até a ponte Bifrost para urinar em Midgard; enquanto se
aliviava, acabou puxando demais o cinturão, que caiu no mar. – repetiu Ico.
- “Sim”. – respondeu um irritadiço Osman por meio de suas runas pela
segunda vez. – “E depois o Kraken, sentindo o poder que emanava de
Megingjord, o engoliu”.
- A lula gigante. – complementou Ico.
- “Sim”.
- E o cinturão de Thor tem nome.
- “Sim, Megingjord”.
Ico fez uma careta para a amada, que sorriu.
- E por que Thor não desceu para o recuperar? – continuou.
- O Kraken é uma criatura formidável. – expôs a Valquíria. – Muito é
cantado sobre ele nos salões de Valhalla, a quantidade de guerreiros dignos
que morreram o enfrentando é imensa. Sem a devida urgência, acredito que
Thor estivesse postergando o encontro com o monstro.
- E como que o cinturão de Thor contém a força dele?
- A força de Thor é ímpar; nenhum outro deus, nem mesmo Odin, possui
atributos físicos tão poderosos. Porém, o deus do trovão por demasiadas vezes
depredou os salões de Valhalla e a própria Asgard após bebedeiras e
desavenças com outras divindades. Preocupado, Odin mandou os anões

99
confeccionarem Megingjord e obrigou Thor a armazenar metade de sua força
no cinturão. Mesmo assim, ele continuou destruindo as coisas...
- Então, quem usar o cinturão terá metade da força de Thor – concluiu
Ico. – Você conseguirá quebrar rochas com as mãos e coisas do tipo?
Ágda se manteve em silêncio. Thor, mesmo sem ativar o poder do
cinturão, era um dos seres mais poderosos que existia. Fitou o pútrido corpo
que habitava e as escamas de cobra no braço; um estranho sentimento de
perigo lhe perpassou pela mente.
- Estamos prestes a entrar em Midgard. – anunciou o capitão.
O reino dos homens tomou forma.
- Qual o plano para derrotar a lulinha do mau? – quis saber o Draug.
- “Precisamos fazê-la vomitar o cinto”. – responderam as runas.
- Podemos pedir para ela. – sugeriu Bera.
- O Kraken é uma criatura movida por instinto. – expôs Nidhogg. – Não
domina a fala ou qualquer outro meio de comunicação além da violência.
Teremos de vencê-la em seus próprios termos.
Osman, absorto em pensamentos e planos de como derrotar a fera, não
participou da longa e calorosa discussão entre os membros da equipe que se
seguiu.
- Por isso a ideia da comida estragada é melhor. – defendeu Bera, já
impaciente.
- O Kraken devora madeira, pessoas e sabe-se lá mais o quê. – retrucou
Ico. – O que em toda Midgard seria podre o suficiente para fazê-la vomitar?
- O seu espírito de porco. – respondeu a anã.
- Crianças, se comportem. – vetou o dragão.
- Ela começou! – apontou Ico.
Bera o mostrou a língua.
- Precisaremos matá-lo. – comunicou Ágda, descontente com a ideia de
enfrentar o titã.
- “Não será necessário”.
Osman erguera-se com expressão confiante.
- “Irei colocá-lo em sono profundo”. – anunciaram as runas.

100
- A pronto, um mago que só sabe um único feitiço. – debochou Ico. –
Depois o quê, você vai entrar no intestino do monstro para recuperar o
cinturão?
- Eu não. Ela. – e sorriu, apontando para Ágda.
- Mas nem que... – O Draug pôs-se a disparar inúmeros palavrões e
comparações esdruxulas e sexuais entre humanos e lulas gigantes, tão bem
descritas a ponto de fazerem Nidhogg largar o leme e correr para tampar as
orelhas de Bera.
- Ele endoidou de vez. – riu a anã.
Ágda tentou interrompê-lo diversas vezes, mas sem sucesso. Apenas
quando parecia ter esgotado o arcabouço de xingamentos, foi que ouviu a
parceira pedindo para que parasse.
- “Pronto?” – questionou a runa, que já flutuava por um bom tempo.
Osman estava sentado no ar, tomando o vinho que conjurara e apreciando a
vista do navio.
- Humf... – bufou o Draug.
- “O Kraken estará desacordado e não oferecerá perigo. Ágda voará por
sua boca até o estômago e, assim que recuperar o cinto, voltará para nós”.
- Ele também tem asas. – argumentou Ico, apontando para o dragão.
- “Nidhogg emana magia”. – explicaram as runas. “O Kraken é um ser
antigo; nem o mais profundo dos sonos o manteria desacordado caso sentisse
a sua presença dentro de seu corpo. Já Ágda está encoberta pelo véu de Hel”.
- É só mandar Nidhogg tomar um banho e pronto, o fedor mágico dele
vai embora. – retrucou Ico.
Fogo emanou das narinas do capitão.
- “E ele respira. Morreria afogado ou sufocado”. – decretaram as runas.
- Está tudo bem. – tranquilizou a Valquíria.
Ico a encarou, com semblante preocupado.
- “Ele está aqui”. – alertaram as runas. – “Silêncio!”.
Ao observar a água, a Valquíria surpreendeu-se quando vislumbrou um
vulto grande feito uma montanha criar tsunamis ao se mover embaixo d’água;

101
sobrevoavam o mar acima das nuvens e ainda assim se sentiram ameaçados
quando a água das ondas respingou em seus rostos.
Osman pôs-se a gesticular o feitiço, tão rápido que raios emanaram dos
dedos; o elfo negro suava, visivelmente preocupado com as ações que se
seguiriam.
Após uma runa com o comando “Durma” eclodir nos céus, o Kraken
urrou ao revelar-se, utilizando os colossais tentáculos para emergir. O
ensurdecedor som fez com que a equipe tampasse os ouvidos em dor. Sabiam
que se estivessem próximos a fera, certamente teriam a audição
comprometida.
- Por que ele não está dormindo? – berrou Ico, apontando para a
monstruosidade que os encarava.
Uma nova runa, ainda maior que a anterior, ordenava “Adormeça”.
A anã bocejou, esticando os braços.
- Não é pra você! – reclamou o Draug.
Para o desespero do grupo, o Kraken novamente guinchou, dessa vez
tão alto que fez Bera ruir ao chão do navio com os ouvidos sangrando.
Fumaça emanou pelas narinas de Nidhogg ao ver a cena. Em um
movimento inconsequente, abandonou o leme e pôs-se a voar em direção a
besta.
- Continue tentando! – orientou a Valquíria, puxando a adaga e partindo
em direção ao amigo.
- Não! – suplicou Ico, porém já era tarde. As escarlate asas bateram
assim que se atirou do navio, partindo em perseguição ao dragão.
Os ouvidos de Osman também sangravam, entretanto ele continuava a
mexer compulsivamente as mãos em busca de um feitiço mais poderoso.
Já próximo ao Kraken, quase perto o bastante de sentir o bafo da
criatura, que faria qualquer humano desmaiar, Nidhogg pôs-se a lançar uma
rajada de fogo em seu corpo, enquanto desviava-se dos tentáculos que o
atacavam.

102
As chamas do dragão pareciam incomodar a fera, porém não a ponto de
machucá-la, visto que o Kraken continuava com suas investidas sem se
preocupar em defender-se das rajadas.
- Espere! – pediu Ágda, com dificuldade em alcançá-lo.
Ao notar a nova presença, metade dos tentáculos foram lançados contra
a Valquíria, que começou a utilizar a adaga para golpeá-los enquanto lutava
para se esquivar. Se sentiu como uma abelha ferroando um humano, os seus
ataques conseguiam repeli-lo, contudo passavam longe de serem letais.
Nidhogg planou ainda mais próximo ao Kraken, dessa vez exalando
ainda mais fogo. O urro do monstro ao se queimar desorientou o dragão, que
colidiu com um dos tentáculos. Aproveitando-se da oportunidade, a fera
desferiu um poderoso golpe contra o capitão, que caiu como uma pedra no
mar.
A Valquíria vocalizou um palavrão muito usado por Ico. Sem pestanejar,
atirou-se nas águas em busca de Nidhogg.
A água estava preta, fruto das toxinas liberadas pelo titã. Inicialmente
desnorteada, Ágda logo notou um ponto brilhante que gradativamente
afundava, bateu as asas e começou a segui-lo, por pouco escapando de ser
esmagada por um dos tentáculos.
O brilho se tornava mais claro na medida em que se aproximava,
revelando ser o fogo armazenado na boca do dragão que não conseguira
liberá-lo a tempo. Ágda tentou puxá-lo, porém o peso do desacordado capitão
era demais para ela.
A Valquíria pensou em outro palavrão enquanto desferia um golpe com a
adaga contra outro tentáculo. Para a sua surpresa, esboçava um sorriso no
rosto por lembrar-se do amado.
“O que Ico faria para acordá-lo”. – questionou-se, adentrando ainda mais
nas profundezas enquanto chacoalhava o capitão na esperança que
despertasse.
A fantasmagórica imagem de Ico ao seu lado reproduziu o gesto de
alfinetar Nidhogg com a adaga.

103
O susto foi tamanho que, ao gritar, deixou uma grande quantidade de
água entrar pela boca. O Draug fez um gesto para que se acalmasse e,
lentamente, repetiu o gesto com a mão.
Sem tempo para processar se tratava-se de uma alucinação ou não,
cravou a adaga no ombro do dragão.
Despertando com aparente fúria, Nighogg segurou o braço de Ágda com
força e, com um bater de asas, avançou para a superfície.
Os tentáculos que tentaram bloquear o caminho foram contornados pelo
dragão, que se movia com uma velocidade absurda para o seu peso e ainda
por cima submerso. A Valquíria golpeava todas as investidas que vinham pelos
lados, concentrada em qualquer vibração visível na água, já que a visão estava
deveras comprometida por conta das toxinas.
Após o que pareceu uma eternidade, conseguiram emergir, deparando-
se com os assustadores olhos do Kraken que os esperava.
- Precisamos recuar! – arfou Ágda. – O plano fracassou!
Contrariado, Nidhogg por fim aceitou a derrota. Ao se desviar de mais
uma investida, assoprou suas chamas no olho direito do monstro, que chiou.
Aproveitando o momento de distração, puseram-se a voar de volta ao navio,
quando o som de tentáculos atingindo a água os fez esperar.
- “Agora!” – comandavam as runas; Osman finalmente conseguira
adormecer o Kraken.
Ágda fitou o dragão, que mais calmo, suspirou ao perceber que
sobreviveram a tamanho embate. Antes que o capitão pudesse agradecê-la por
resgatá-lo, formou-se uma brilhante aura ao redor da Valquíria, emanando
tanta luz que o fez cobrir os olhos. Ágda sorriu para a runa de Osman acima de
sua cabeça com os dizeres “ilumine as trevas”.
Apenas os olhos do Kraken, cerrados pela mágica do elfo negro, se
encontravam fora d’água. Tentando não pensar no que poderia dar errado no
plano, a Valquíria mergulhou.
A boca do Kraken tinha um tamanho colossal. Repleta de dentes em
formatos estranhos, notou ao aproximar-se que também eram runas; o monstro

104
era de fato antigo e a maldade que emanava do simbolismo cravado em seus
dentes parecia querer feri-la a todo o custo.
Adentrou a nauseante boca por uma enorme brecha na lateral. Nesse
ponto a escuridão já era absoluta, e se não fosse pela runa de Osman que a
acompanhava, não conseguiria avançar.
Percorreu o aparente esôfago da criatura, que de tão largo a remeteu as
cavernas de Nídavellir. Líquidos viscosos e coágulos se espalhavam pelas
paredes, que se moviam de acordo com a respiração do monstro. Manteve a
adaga erguida.
Chegou por fim em uma área repleta de fluidos tóxicos, que
borbulhavam em enormes e espaçadas poças. Mesmo coberta pela luz da
runa, a grande quantidade de fumaça encobria os arredores, obrigando-a a
avançar cautelosamente com receio de pisar no efervescente líquido, e das
gotas que periodicamente caiam do “teto”.
“O cinturão de Thor deve estar por aqui”. – pensou, encarando os restos
de uma embarcação assustadoramente bem conservada.
Enquanto procurava pelo mítico adorno, Ágda se deparou com os mais
variados objetos e seres que tiveram a desventura de terem sido engolidos
pelo Kraken. A madeira dos navios era o material mais comum, porém diversos
tecidos, ossadas, corais e até mesmo armas se espalhavam pelo estômago da
besta.
Horas se passaram e nem sinal do cinturão. Frustrada, pensou em
desistir quando uma gota a atingiu na palma da mão, corroendo-a até tornar o
osso visível. Estranhamente, desejou que sentisse aquela dor.
- O seu nome é Ágda, não é mesmo? – o susto foi tamanho que por
pouco não desferiu um golpe à criatura que a chamava.
- Gulinbursti?! – estranhou a Valquíria.
A sua frente, um javali de pelos dourados a encarava.
- Gostaria de acreditar que Asgard finalmente deu por minha falta, mas
sei que está aqui por conta do cinturão. – expôs o animal, apontando com o
focinho para um leito improvisado que fizera com madeira e tecidos; o

105
famigerado cinturão de Thor se encontrava entre os lençóis. – Francamente
não me importo com o desdém dos deuses, desde que me tire daqui.
Havia muito a explicar, porém o iminente desejo em deixar o interior do
Kraken era tamanho que tudo que fez foi acenar positivamente para
Gulinbursti, colocar o cinto de Thor e carregar o animal para fora.
Erguera o robusto javali com a mesma facilidade com que erguia uma
caneca de cerveja, por isso, sorriu ao notar que os efeitos do cinturão já
vigoravam.

MUSPELL

Ouvir o barulho do mar a acalmou. O Kraken, profundamente


adormecido, não percebeu quando ela voou de sua boca, retornando vitoriosa
ao navio.
̶ Meu amor voltou! – comentou Ico ao vê-la, erguendo comicamente os
braços. – E trouxe a janta!
̶ Não sabia que Odin mantinha palhaços em Valhalla. – retrucou o javali,
pulando do braço de Ágda.
̶ O bicho fala?! – estranhou o Draug.
̶ Pessoal, esse é Gulinbursti – apresentou a Valquíria. – Ele guardava o
cinturão de Thor.
̶ Pelas barbas de Odin, quem são vocês? – quis saber o animal ao
encarar Nidhogg, Osman e Bera, que sorria.
̶ Agora que saímos de dentro daquela coisa, preciso te contar a verdade
– expôs a guerreira, agachando para ficar na altura do animal. – Eu não sirvo
mais a Odin, na verdade, o cinturão me ajudará a destroná-lo e evitar o
Ragnarok, evento que levaria catástrofe ao mundo. Sei que você é leal a

106
Asgard, todavia não somos inimigos. O deixaremos em um local seguro, para
que possa...
̶ Conte comigo para colocar fogo naquele lugar – animou-se Gulinbursti,
com um guinchado característico da espécie.
̶ Eu não entendo – respondeu Ágda. – Você não é Gulinbursti, criado
pelos anões Brokk e Sindri como presente para Frey?
̶ O próprio.
̶ Ah sim! – berrou o Draug ao se lembrar da história. – Mas por que
deseja destruir o próprio lar?
̶ Fiquei anos na barriga do Kraken sem nem notarem o meu sumiço –
revelou o animal – Sabia que, impreterivelmente, viriam em busca, não de mim,
mas do cinturão de Thor, por isso o mantive próximo. Além disso, preciso me
redimir com Saehrimir.
̶ Quem? – quis saber Ico.
̶ Saehrimir é o javali imortal. – explicou a Valquíria. – Em todas as
refeições ele é sacrificado diversas vezes, pois assim que o último filete de
carne é retirado de seus ossos ela volta a crescer; Saehrimir é o motivo de
Valhalla ter um estoque ilimitado de comida.
̶ Ele me suplicava por ajuda. – vocalizou Gulinbursti. – “Somos da
mesma espécie, você precisa me salvar desse tormento”, ele me pedia, em
segredo.
̶ Não havia como ajudá-lo. – consolou Ágda, observando as feições
tristonhas do animal. – Saehrimir é mantido em constante vigilância, pois é um
dos bens mais valiosos de Asgard.
̶ Ele não é um “bem”. – retrucou o animal.
A Valquíria se calou.
̶ E como você foi parar na barriga do Kraken para início de conversa? –
perguntou o Draug. – Osman disse que Thor foi urinar em Midgard e por
descuido derrubou o cinturão.
̶ O deus do trovão gostava de minha companhia. – revelou Gulinbursti. –
Éramos amigos... Ao menos era o que eu achava. Eu também mija... Me

107
aliviava. – abrandou o termo ao notar que Bera o encarava – na hora, quando
Thor desequilibrou-se, derrubou o cinto e ainda me chutou para fora da ponte
Bifrost. Eu estava tão ébrio que desmaiei na queda e lembro vagamente do
monstrengo me engolindo como uma uva; se não fosse a minha pele mágica,
eu jamais teria sobrevivido.
̶ “Brokk e Sindri são excepcionais.” – comentaram as runas de Osman.
Nidhogg resmungou algo inaudível, direcionando a embarcação pelas
ramificações da Yggdrasil.
̶ Estamos indo rumo a Muspell? – quis saber Bera. – Chutar o bumbum
do monstro de fogo?
̶ Olha o vocabulário. – vetou o dragão.
̶ Deixe disso, ela só disse “bumbum”. – interveio Ico. – Nem “bunda” foi.
O olhar de reprovação de Nidhogg fez com que Ico e Bera abaixassem
as cabeças.
̶ Você é bem-vindo em nossa jornada. – proferiu por fim Ágda, tocando
na pata do javali. – E prometo tentar resgatar Saehrimir quando estiver em
Asgard.
̶ Agradeço, capitã das Valquírias. – comemorou Gulinbursti.
̶ Posso te chamar de Guli? – pediu a anã.
̶ Claro. E você é...?
̶ Bera – revelou a criança, acariciando timidamente o pelo do animal.
̶ A viagem para Muspell será longa. – informou o capitão. – O reino de
fogo foi sabiamente apartado durante a criação, já que as suas chamas
conseguiriam facilmente incendiar toda a Yggdrasil caso a tocasse, levando os
nove reinos a ruína.
̶ “Eu nos protegerei da temperatura.” – afirmaram as runas.
̶ E o que raios iremos fazer em Muspell além de virar carne assada? –
indagou Guli.
̶ Agora que tenho o cinto de Thor, conseguirei bradar a espada de Surt
contra as amarras que prendem Fenrir para que Osman possa inserir o seu
espírito em meu corpo,como já fez Jomungand, e com isso levá-lo até Odin.

108
O boquiaberto javali a encarou, incrédulo.
̶ É sério. – murmurou o Draug em seu ouvido.

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Os galhos da Yggdrasil tornavam-se mais e mais acinzentados e menos


floridos na medida em que a embarcação se aproximava de Muspell. Para
adentrarem o reino das chamas foi preciso que Osman criasse uma barreira
rúnica não apenas na embarcação, mas em cada um dos membros.
O fogo consumia tudo em Muspell, desde o solo até as pedras. O céu,
também vermelho, encobria-se com nuvens negras que pouco lembravam as
nuvens de Midgard. A Valquíria se surpreendeu quando notou que, em meio
aquele caos, havia vida; pássaros voavam pelo inóspito céu, assim como
animais se espalhavam pela terra. Os corpos, revestidos por rocha e escamas,
pareciam feitos sob medida para sobreviverem ao reino. Uma rala vegetação,
composta por plantas e árvores de baixa estatura, provia o necessário para a
sobrevivência das espécies que compunham a fauna de Muspell.
Não enxergou, entretanto, nenhum ser que aparentasse inteligência.
Sobrevoaram as colinas por horas até que finalmente avistaram um enorme
palácio que, pelo tamanho, lembrava Útgard (a fortaleza dos gigantes de gelo)
̶ Surt será um oponente formidável. – expôs Nidhogg, aproximando o
navio da construção.
̶ “Precisaremos atacar em conjunto.” – orientaram as runas.
̶ Eu estou fora dessa – Anunciou Guli.
̶ Está com medo de virar porco assado? – provocou Ico.
̶ Cuide de Bera em nossa ausência. – pediu Nidhogg.
̶ Nem parece o mesmo dragão que disse “não sou o seu serviçal”. –
comentou o Draug, se referindo a antiga postura do capitão em querer se ater
apenas ao transporte da Valquíria.
̶ Farei isso por ela, não por vocês. – admitiu, fitando Bera.

109
̶ Agradeço pela ajuda, meu amigo. – sorriu a Valquíria, tocando no
ombro do dragão.
̶ Eu quero ir! – vociferou a anã.
̶ De jeito nenhum. – vetou Nidhogg.
̶ Eu posso ajudar! – Insistiu.
O javali dourado gargalhou.
̶ Eu vou! – decretou, batendo o pé. – E vou jogar em sua cara que...
Adormeceu antes que pudesse terminar a sentença; em sua testa, se
materializou uma ruma de Osman com os dizeres “durma”.
̶ Você precisa variar o catálogo das magias com urgência – disse Ico.
̶ “Funciona que é uma beleza.” – responderam as runas.
̶ Vai colocar Surt para dormir também?
̶ “Talvez”.
̶ Estamos próximos – alertou o capitão. – Vamos descer.

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Se não fosse pelo cinturão de Thor e a descomunal força que ele


propiciava, a Valquíria não conseguiria abrir os colossais portões que vedavam
os aposentos de Surt.
Surt era ainda maior do que os gigantes de gelo e apresentava-se de
forma muito mais grosseira. Dois grandes e assimétricos cifres adornavam a
sua cabeça, e os olhos completamente negros pareciam dois buracos
arrancados do rosto. Uma grande cauda balançou do trono negro com a
chegada da equipe e o par de asas (cerca de oito vezes maiores do que a de
Nidhogg) esticou-se. A rubra pele da criatura flamejava e as unhas das mãos e
pés eram ainda mais intimidantes do que a própria adaga de Ágda.
̶ Bem-vindos. – saudou Surt, com voz profunda e gutural.
̶ Surt. – vocalizou Ágda, forçando um movimento cortês.
̶ De fato, é um grupo incrível. – sorriu o gigante de fogo. – E pensar que
ainda faltam uma anã e um javali de ouro.

110
̶ Como sabe de Bera? – quis saber Nidhogg, avançando.
Um esquilo, grande como um gato, acenou do ombro de Surt.
̶ Ratatoskr. – rugiu o capitão com desprezo.
̶ Um roedor? – estranhou o Draug.
̶ Um roedor fofoqueiro. – insultou Nidhogg. – Com o poder de andar
livremente pela Yggdrasil, cria discórdia por onde passa.
Ratatoskr sorriu, orgulhoso.
̶ Que coisa fofa! – ouviram um grito infantil. Ao viraram-se, perceberam
que Bera e Guli os haviam seguido.
̶ “Mas como?” – questionaram as runas.
̶ Digamos que seu feitiço não é muito eficaz contra flatos. – explicou o
javali.
A anã tampou o nariz como se ainda sentisse o cheiro que a fizera
despertar.
̶ Fantástico! – comemorou Surt, mexendo animadamente os dedos.
̶ Viemos pela sua espada. – expôs a Valquíria. – Não sairemos até
que...
̶ Ah, já a deixei separada para você, está logo ali. – e apontou para a
gigantesca arma encostada na parede, coberta por uma capa preta. – A
proteção é feita das pedras de Muspell e mantém as chamas contidas, só a
retire nas batalhas.
̶ É... Podemos pegar? – perguntou Ico, apontando para ela.
̶ Claro.
̶ Deve ser um truque. – sussurrou para Osman, que disfarçadamente
concordou.
̶ Sem truques, meu caro Ico. – riu Surt, acariciando a cabeça de
Ratatoskr.
̶ As lendas que ouvi a seu respeito não condizem com suas ações. –
vocalizou Ágda. – Viemos preparados para lutar pela espada.
̶ Vocês perderiam essa luta. – sorriu Surt. Os seus dentes, negros e
afiados, assustaram Bera, fazendo-a agarrar o braço de Nidhogg.

111
̶ Convencido. – murmurou o Draug.
̶ Por que nos ajudar? – insistiu Ágda.
Surt a fitou por um longo minuto.
̶ Muspell arderá para sempre. – revelou. – Eu sou o seu senhor, e
portanto, também o farei; pertenço a esse lugar. Aqui sou indestrutível, por
isso, Odin e os outros deuses sabem disso, e não ousam me perturbar. Assim
como vocês, eles pereceriam pelas minhas mãos se tentassem.
Ratatoskr se espreguiçou.
̶ Entretanto, quanto mais longe de meu reino eu estiver, mais fracas
queimarão as chamas que nos compõem. A ambição de Odin jamais descansa
e, impreterivelmente, chegará o dia em que ele fará o impossível para me
afastar daqui.
̶ Você receia que o pai de todos consiga – concluiu a Valquíria.
̶ Ele seria o único em todos os nove reinos capaz de algo assim.
̶ Nos entregar a sua espada é o mesmo que garantir que você jamais
morrerá. – concluiu Nidhogg.
̶ Supondo que a campeã dentre as Valquírias seja mesmo capaz de
derrotar Odin, claro – concordou Surt. – Ratatoskr me contou sobre os seus
feitos; ele acredita que sairão vitoriosos, e eu acredito no julgamento dele.
Portanto, possuem o meu apoio e minha espada.
O gigante de fogo fez um gesto para que Ágda avançasse até a arma,
que era ainda maior do que ela esperava. Ao segurá-la, a Valquíria retirou a
proteção que mantinha as chamas sobre controle, revelando uma lâmina
vermelha que queimava incessantemente.

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̶ Não vamos falar em como a magia de Osman foi facilmente burlada por
conta de uma bufa de javali? – questionou Ico enquanto retornavam a
embarcação.
̶ Um javali mágico. Respeito, por favor – retrucou Guli.

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̶ “Utilizei a versão mais fraca do feitiço também.” – disseram as runas. –
“Não queria que ela adormecesse por dias, apenas que tirasse um cochilo”.
̶ Sei. – duvidou o Draug.
̶ Estamos a um passo do confronto contra o pai de todos. – vocalizou
Ágda, que carregava a espada de Surt nas costas (de tão grande, a arma
precisou ser presa de forma perpendicular para que não arrastasse no chão ao
andar). – Após liberarmos Fenrir, estaremos prontos.
- Sim – sorriu o Draug.

RETORNO À VANAHEIM

Com exceção de Guli que tagarelou durante toda a viagem, a tripulação


manteve-se em silêncio. O iminente confronto com Odin garantiria não apenas
o futuro de Ágda e Ico no além vida, mas também pouparia o mundo do
Ragnarok. A Valquíria estremecia quando pensar sobre as consequências dos
eventos que se seguiriam.
Ico, sempre ao seu lado, parecia tão distante quanto a amada. Sorria
esporadicamente, porém ainda que disfarçasse, não conseguia esconder o
nervosismo.
Bera dormira nas asas de Nidhogg que as chacoalhava como uma rede.

113
“Ela te lembra alguém” – afirmaram as runas de Osman ao lado. O
mago, sentado de forma pomposa no ar, desfrutava de um vinho enquanto
encarava a bela Yggdrasil.
̶ Minha neta. – revelou o dragão.
̶ “A Valquíria sabe?” – dessa vez, as runas se formaram tão minúsculas
que apenas Nidhogg fora capaz de lê-las.
̶ Não. – admitiu.
̶ “Nem desconfia?”
O dragão suspirou.
̶ “O desejo por tesouro corrompe até o mais nobre dentre os anões. Foi
assim desde a criação e sempre será”.
Silêncio.
̶ E então eu disse: Thor, se você for mesmo se disfarçar de noiva, ao
menos faça a barba. Mas não, ele teve que...
As narrações de Guli sobre suas aventuras em Midgard só cessaram
quando os galhos da árvore da vida os transportaram para Vamaheim.
̶ Deixe eu adivinhar, soneca para todos os guardas? – perguntou Ico em
tom de desdém.
̶ “Pode acreditar. “ – responderam as runas.
De tão imenso, Fenrir já era visível no horizonte.

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Avançaram até o lobo sem a resistência dos guardas que, como


profetizado pelo Draug, dormiam profundamente. Ao vê-los, Fenrir pôs-se a
abanar animadamente a cauda, latindo por entre a focinheira.
̶ Arranjamos um cachorro de estimação, amor. – brincou Ico, fazendo-a
sorrir.
̶ “Há algo errado.” – avisaram as runas de Osman.
O grupo parou, confuso.

114
̶ Você soltou outro pum e acordou algum guarda? – perguntou Ico a
Guli, que fez um muxoxo.
̶ Quem é aquele? – apontou Bera.
De trás de Fenrir emergiu uma figura altiva, de longos cabelos negros e
barba presa. Portava uma armadura, também negra, com detalhados entalhes
rúnicos em prata. Na mão esquerda, carregava um massivo cetro. Ágda não
precisou confirmar a ausência de sua mão direita, pois sabia se tratar de Tyr,
deus relacionado a justiça e combate.
̶ Eu não quis acreditar... – começou Tyr, com uma voz
surpreendentemente suave para alguém de seu porte. – nas coisas que ouvi na
primeira vez que estiveram aqui. Achei, para o bem de todos, que não
retornariam de Muspell.
̶ Honrado Tyr. – anunciou a Valquíria. Ao verem-na abaixar a cabeça em
sinal de respeito, o restante do grupo repetiu o gesto.
̶ Você já teve alguma coisa com ele? – questionou um enciumado Ico.
̶ Alegro-me em vê-la. – continuou Tyr. – Entretanto, me entristece a
ocasião.
Osman mexia discretamente os dedos, pronto para utilizar magias.
̶ Testemunhei em seu favor nos dias que se seguiram a sua queda. –
revelou a divindade, cada vez mais próxima. – Pelos céus de Asgard, defendi o
seu retorno por meses a fio.
̶ Odin me expulsou por falar livremente. – argumentou Ágda. – Algo que
as Valquírias não nasceram para fazer.
Tyr encarou Bera, que encabulada, sorriu.
Uma tossida ecoou do chão.
̶ Gulinbursti? – estranhou Tyr, ao notar o javali pela primeira vez.
̶ O próprio. Também testemunhou pelo meu resgate nos salões de
Valhalla?
̶ Thor disse que estava morto. – Afirmou. – Que ao tentar roubar o seu
cinturão caiu da ponte Bifrost.

115
Nidhogg precisou segurar a boca do companheiro para que cessasse
com os palavrões.
̶ É... Um prazer vê-lo também. – expressou Tyr por fim. – O levarei de
volta a Asgard, onde é o seu lugar, e farei com que Thor se explique em frente
a todos.
̶ Ele tem esse poder todo mesmo ou está só se exibindo? – sussurrou o
Draug para Osman. O mago acenou positivamente com a cabeça.
̶ Ágda, eu peço... Não, eu imploro, que abdique do seu plano e parta
com a sua equipe.
̶ Não posso – alegou a Valquíria. – Eu irei pôr um fim no Ragnarok e no
reinado de caos e massacre de Odin.
̶ Você está me soando exatamente como o seu pai. – respondeu Tyr. –
Cego por profecias antigas e disposto a sacrificar todos no processo de realizá-
las.
̶ Desejo evitar a morte dos nove reinos e não glória e poder. – vociferou
Ágda. – Eu e ele não temos NADA em comum!
̶ “Tyr” – chamaram as runas de Osman. – “A causa de Ágda é justa. Nos
ajude”.
Fenrir uivou, como se chorasse.
̶ Vocês mexem com forças maculadas. A cobra Jomungand dividindo o
corpo com você? Imagine o estrago que esse monstro fará em Asgard, a sua
terra! Acha que ela ou essa besta – e apontou para o enclausurado Fenrir –
derrotarão somente Odin e mais ninguém? Acredite em mim Ágda, não há
como confiar no mau – e ergueu o braço, revelando a mão ausente.
̶ Ele não me parece mau – expôs Ico. – Muito pelo contrário, o lobo
emana inocência. Já a forma que está preso, isso sim é maldade.
Fenrir tentou se levantar, mas as cordas não o permitiram. Em dor,
continuou tentando se erguer.
̶ Não se domestica a natureza, se vive com ela. – continuou o Draug. –
Me responda: ele arrancou a sua mão enquanto você o judiava ou enquanto o
alimentava?

116
Ágda não pôde deixar de conter um sorriso com a fala do amado.
̶ Acreditem no que quiserem. – proferiu Tyr, depois de um momento de
silêncio. – Entretanto, não deixarei que brinquem com a vida dos outros.
Osman e Nidhogg se preparavam para o iminente combate, avançando
até a Valquíria.
̶ Ágda, eu a desafio para um duelo. – anunciou, apontando-lhe a clava.
– Se acredita mesmo que a sua causa é justa, prove-a para mim.
̶ Rápido, faz ele dormir. – murmurou Ico para Osman.
̶ Eu aceito o desafio – concordou a guerreira, avançando.
̶ Não se arrisque à toa. – pediu o Draug. – Estamos na vantagem e
ainda temos o gás de Guli como arma secreta!
̶ Não seria justo. – respondeu a Valquíria, sorrindo para o companheiro.

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̶ Você emana destruição. – comentou Tyr, com repúdio. – Olhe para


você!
O seu único olho de serpente observava o adversário.
̶ Venha Valquíria. – clamou a divindade, movendo a clava no ar. –
Expurgarei o mau que a corrompe.
Rápido como o vento e feroz como um urso, Tyr lançou-se contra Ágda.
A guerreira sacou a imensa espada de Surt com facilidade, devido a
força proveniente do cinturão de Thor. A lâmina, que queimava com o fogo de
Muspell, atingiu em cheio a clava de Tyr, destroçando-a.
A expressão de surpresa no rosto do deus fez Ico gargalhar.
̶ Como? – questionou Tyr. Devido ao impacto, alguns dedos de sua
única mão pareciam ter quebrado.
̶ Eu irei impedir o Ragnarok. – decretou, fitando-o de cima.
̶ Não minha cara... Não haverá Ragnarok, pois você mesma destruirá a
todos antes dele.

117
Ágda nada disse. Dando as costas ao derrotado o deus (que, ao sentar-
se no chão, pôs-se a praguejar lamentos), avançou com Osman, Bera e Ico até
Fenrir. Enquanto isso, Nidhogg e Guli ficaram para trás, vigiando Tyr.
O lobo balançava a cauda com a vivacidade de um filhote. Com cautela
para não o atingir, a Valquíria golpeou as mágicas cordas que o aprisionavam
enquanto Bera o tranquilizava. Ao notar que estava livre, Fenrir correu
alegremente pelos arredores, derrubando todas as árvores que estavam em
seu caminho.
̶ Ele não passa de um neném. – comentou Ico, observando a gigantesca
besta deitar-se de barriga para cima e língua de fora.
Ágda suspirou, encarando o céu com pesar.
̶ A hora se aproxima. – disse Ico, após observá-la. – Vamos lá dar umas
porradas em Odin e salvar os nove reinos da destruição.
A Valquíria sorriu, passando simbolicamente sua mão por cima da dele.
̶ Mal posso esperar para tomar cerveja escaldante por toda eternidade
com você.

----

Entardecia. Fenrir e Bera brincaram por horas, assistidos pelo restante


da equipe. Tyr não ofereceu resistência quando Osman utilizou parte das
cordas que prendiam Fenrir para amarrá-lo. Prometeram que o libertariam
assim que destronassem Odin, já que, se o deixassem livre, o deus poderia
alertar Asgard do plano.
O lobo, visivelmente cansado e feliz, avançou até Ágda. Encarou a
Valquíria por um longo minuto, até que finalmente abaixou a cabeça na altura
de sua mão.
̶ “É chegado o momento” – anunciaram as runas.
Ágda suspirou, lembrando-se da insuportável dor que sentira ao unir-se
com Jomungand; mesmo com o medo corroendo-a por dentro, não poderia
desistir.

118
Uma enorme runa (com rudimentares símbolos traduzidos como “besta”,
“devorador” e “caos”) a envolveu por completo, sufocando-a. Sentiu que uma
cratera se abria em seu peito, roubando-lhe todo e qualquer sentimento bom ou
minimamente prazeroso que já tivera.
As trevas apossaram-se não apenas de sua visão, mas também do
coração.

----

̶ Ela acordou! Osman! - berrou Ico.


Ao despertar, notou estar nas instalações do capitão, onde Bera se
recuperara do incidente na cidade dos anões.
O mago se lançou velozmente contra o quarto, analisando-a
minuciosamente.
̶ “Como se sente” – perguntaram as runas.
A Valquíria encarou o amado, que por sua vez desviou o olhar.
Algo estava errado.
̶ Estou deformada? – exigiu saber, assustando-se ao notar que sua voz
adquirira um timbre gutural e tornando-a irreconhecível.
Ico tentou balbuciar algo, mas foi interrompido por um gesto do mago.
̶ “Jomungand e Fenrir coexistem em seu corpo. O poder dos dois… É
seu” – contaram as runas.
Ico a sorriu com o canto da boca.
̶ “Porém…” – continuaram. – “Tamanha fusão, em apenas um corpo…”
Ágda ergueu-se. Sem pestanejar, se apossou de uma parte da própria
armadura e encarou-se na superfície espelhada.
O olho de reptil, proveniente da sua união com a serpente do mundo,
derramou uma dolorosa lágrima de veneno.
Todo o seu cabelo, inclusive o da sobrancelha, havia caído. Os seus
dentes haviam se transformado em presas e as unhas garras; mais do que
nunca, soube que se tornara num monstro.

119
̶ Essas mudanças… Irão comigo para o além vida? – quis saber,
prendendo o choro a cada palavra.
̶ Apenas o olho perdido não voltará – respondeu Ico. – Osman, diga
que…
O mago encarava o chão.
̶ Diga a ela que ela não passará a eternidade assim. DIGA! – vociferou
Ico.
̶ “Não há como saber.” – revelaram as runas. – “São mudanças…
Espirituais, não apenas físicas. Eu…”.
Os tristes gritos de Ágda foram ouvidos por toda a embarcação, mas
ressoaram por todos os nove reinos.

VIAJEM À ASGARD

120
̶ Ela continua uma gata para mim. – comentou Guli, se referindo a Ágda.
Ao notar os olhares de reprovação, tossiu discretamente.
̶ Você deveria ter nos avisado. – acusou Ico.
A Valquíria ainda não saíra do quarto e não permitiu a entrada de
ninguém (exceto a do amado).
- “Eu não fazia ideia do nível de junção entre eles.” – admitiu Osman por
suas runas. – “Quando a uni com Fenrir, pude sentir Jomungand entranhada
em seu âmago.
Osman observou os companheiros ao seu redor com pesar antes de
continuar:
- “Ágda deveria ser apenas a hospedeira das criaturas; ao chegarmos em
Asgard, elas seriam liberadas de seu corpo e juntas venceriam Odin. Creio que o
plano original possa não ser mais possível.”
- Então foi tudo para nada. – lamentou Ico.
Ao suspirar em frustração, chamas escaparam pelas narinas de Nidhogg.
- Nada mudou. – rugiu uma voz.
Altiva, a Valquíria avançou até o mago.
- Eu possuo o poder dos dois em mim, correto? – questionou.
- “A força de Jomungand e Fenrir são suas, sim.” – afirmaram as runas.
– “Eles aceitaram-na por completo, por isso o poder dos dois é seu”.
Ágda sacou a fiel adaga que a acompanhou por toda a sua trajetória
como líder das Valquírias; antes que alguém pudesse ter qualquer tipo de
reação, ela a esmigalhou em milhares de pedaços com um simples fechar de
mãos.
- Eu sou a portadora do Ragnarok. – decretou. – O plano continua o
mesmo.

----

- Estamos nos aproximando de Asgard – anunciou Nidhogg,


aproximando-se de Ágda que contemplava a vista de Yggdrasil do navio.

121
- Odin cairá hoje. – profetizou a guerreira. Voltou-se para o capitão,
colocando uma mão (as garras adquiridas da fusão com Fenrir eram ainda
mais afiadas do que as do próprio dragão) e continuou: – Não conseguiríamos
sem você. A recompensa que Hel te prometera será sua, arrancarei o anel
Draupnir das mãos de Odin eu mesmo para dá-lo a ti.
Ao notar a animalesca mão, Ágda a retirou dos ombros do amigo com
rapidez.
- Ninguém mais do que eu sei o que é virar um monstro minha cara. –
admitiu Nidhogg ao assistir a cena. – E é por isso que não ficarei com o anel.
Peço apenas algumas cópias dele para Bera, para que ela possa viver bem
onde desejar.
O capitão forçou um sorriso. Ele já lhe dava as costas quando ouviu:
- Espere – pediu Ágda. – Eu… Gostaria de saber mais sobre como… –
soluçou. – Como você…
O dragão olhou ao redor; Guli fazia par com Osman em um jogo de
cartas, tendo Bera e Ico como adversários. Por não possuir forma material, o
fantasma dependia da anã para jogar por ele, assim como o javali dependia do
mago para manter as cartas organizadas, já que com suas patas não
conseguiam manejá-las corretamente. Por diversas vezes reclamou que a anã
não seguia suas instruções adequadamente.
- Eu fui ambicioso. – confessou Nidhogg. – Comandava uma
embarcação de anões que peregrinava em busca de novos postos de
mineração por Midgard. E, antes que pergunte, as cavernas de Nídavellir são
mágicas e pouco exploradas. Descobri ainda jovem uma trilha que conectava o
meu reino e o reino dos homens sem ter que passar por Yggdrasil.
- Então você era um anão?
- Sim. Eu era um anão e era feliz. Tive dois filhos e uma neta, até
corromper o meu coração.
Ágda permaneceu em silêncio, atenta a Nidhogg.
- Encontrei a maior e mais valiosa mina dos nove reinos – proferiu. – O
seu esplendor era tamanho que nem em meus mais loucos sonhos achei que
algo assim existia.

122
- E o que aconteceu? – quis saber a Valquíria.
- Eu… Abandonei minha tripulação. Enquanto comemorávamos a
descoberta, os envenenei com uma mistura anã, ela é famosa por deixar quem
a bebe ébrio por semanas. Os levei para uma longínqua ilha e parti sozinho
com o navio de volta para a mina.

Ágda tentou não o encarar nesse momento, pois o seu reptiliano olho
emanava condenação.
- Me arrependo dessa decisão todos os dias, Valquíria. Ao chegar na
mina, ninguém menos que Odin me esperava. Acontece que os seus corvos,
Munin e Hugin, mantinham a área em vigilância e presenciaram minhas ações.
O deus caolho me condenou a morrer na mina, selando para sempre a sua
entrada.
- Entendo – comentou Ágda.
- Infelizmente, isso não foi tudo. Dias depois, enquanto eu morria de
desidratação e fome, Odin retornou. Ordenou que eu observasse os olhos de
Munin, que segundo ele, viam o mesmo que Hugin via naquele exato momento.
E assim eu o fiz; assisti, pelos olhos dos corvos, a mesma tripulação que eu
abandonei retornar para Nídavellir. Foram direto para a minha casa me
procurar, onde assassinaram a minha esposa que não tinha ideia da atrocidade
que eu cometera. Depois foram ao lar de minha filha, e a mataram junto ao
noivo. Por fim, eles… – a voz do dragão desafinou, indicando profunda tristeza.
– Foram em busca de meu filho, o último lugar onde acharam que eu me
esconderia. Ele não sabia de mim, Valquíria… Torturaram minha neta, uma
criança, para que ele me contasse. Ele não sabia…
Nidhogg precisou limpar as lágrimas que se formavam involuntariamente
nos olhos.
- O que fizeram com ela… Não há palavras. Odin me obrigou a assistir
tudo e antes de partir, creio que tenha visto-o sorrir.
- E como você escapou da mina? – perguntou Ágda.
- Não escapei, eu morri. Hel me recebeu em seus salões que sabendo
de minha história prometeu me levar de volta a vida se eu jurasse servi-la.

123
Quando retornei para Nídavellir nessa forma monstruosa, enterrei minha família
e fui atrás dos responsáveis por suas mortes. Matá-los me fez ainda mais
infeliz. Tentei regressar a Hel, mas…
- A deusa do submundo não te recebeu.
- Tínhamos um pacto, e eu precisaria cumprir a minha parte do acordo.
Por mais tempo do que consigo lembrar, perambulei pelos reinos da Yggdrasil
a serviço de Hel, até que finalmente fui enviado para Nilfheim e ordenado para
que esperasse.
- Achei que ela te prometeu um tesouro pelo seu serviço.
- “O maior tesouro que eu pudesse desejar” – citou o dragão, tocando
nas unhas fundidas em ouro. – Não achei que fosse verdade, porém não tive
escolha a não ser cumprir o meu papel. Até que...
Nidhogg olhou para Bera, que ao notá-lo, sorriu e acenou, enquanto Ico
gritava para ela focar no jogo e não olhar para a lagartixa superdesenvolvida.
̶ Ela me lembra a minha neta – confessou o dragão, retribuindo o sorriso
e gesto para a anã. – Vê-la feliz foi o meu tesouro, Valquíria.

124
ASGARD

̶ Precisamos de um plano melhor do que chegar “quebrando tudo” –


retrucou Ico, após ouvir a sugestão de Guli.
̶ Vai colocá-los para dormir, então? – perguntou Bera.
̶ “Valhalla possui proteções contra magia” – afirmaram as runas. –
“Feitiços amplos serão impossíveis de serem realizados”.
̶ Pé na porta e soco na cara. – insistiu o javali.
̶ Devemos criar uma distração – sugeriu Nidhogg.
̶ “Sim” – concordaram as runas.
̶ Não.
A voz de Ágda tornara-se tão gutural e pesada a ponto de assustar Bera.
̶ Isso! Porrada neles! – comemorou Guli. – Saehrimir vai nos ouvir
chegando para o seu resgate da cozinha!
̶ Tinha esquecido dele. – admitiu Ico.
̶ Eu o resgatarei. – jurou a Valquíria, erguendo-se. – Nenhum de vocês
precisa me acompanhar.
A equipe se encarou, confusa.
̶ Sem vocês, eu jamais conseguiria chegar até aqui. – continuou. – Serei
eternamente grata e derrotarei Odin em nome de todos. Eu já estou morta,
enquanto que vocês, possuem toda uma vida pela frente. Deixem que apenas
eu enfrente Valhalla e o pai de todos.
Os momentos de silêncio foram quebrados pela gargalhada de Guli, tão
contagiante que fez com que todos (com exceção da Valquíria) também rissem.
̶ “Minha cara, estaremos com você até o fim.” – anunciaram as runas.
̶ Eu não perderia isso por nada no mundo. – expôs o javali, em meio a
risos.
̶ Não irei abandonar quem me devolveu um propósito para viver. –
afirmou Nidhogg.

125
̶ Olhe bem para mim, amor… não estou muito vivo também – brincou o
fantasma, flutuando. – E, mesmo que eu ainda fosse humano, lutaria contra o
próprio Odin por ti.
̶ E eu…– começou Bera.
̶ Você não. – vetou o dragão.
̶ Ah, mas eu vou sim – insistiu a anã.
̶ Você não vai.
̶ “Eu criarei um escudo de proteção para ela.” – comunicaram as runas.
– “Ninguém a machucará.”
̶ Não! – bradou o capitão.
Bera passou o restante da viajem tentando convencê-lo a deixá-la
participar do ataque a Valhalla, sem sucesso. Apenas quando a ponte Bifrost já
era visível ao longe foi que Osman, depois de diversas promessas (e ameaças
de Nidhogg) conseguiu a sua aprovação.

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O chute no imenso portão que guarda os salões de Valhalla foi tão


violento e poderoso que todos os guerreiros e deuses que cantavam e bebiam
a plenos pulmões se calaram, assustados.
̶ Que momento lindo. – sorriu Guli, visivelmente emocionado.
Estar de volta ao local em que vivera por inúmeras vidas humanas a
trouxe diferentes sensações. Enquanto observava os arredores, reconheceu o
rosto de diversos guerreiros que ela mesma trouxera para aqueles salões (que
a encaravam com perplexidade); porém, apesar da nostalgia, não sentiu
saudade. Ela não pertencia mais aquele lugar.
Quando o primeiro humano se ergueu, empunhando a sua espada
contra o grupo, Nidhogg esbravejou para que se sentasse com uma poderosa
rajada de fogo que momentaneamente cegou a todos e aumentou a
temperatura dos salões.
̶ Que afronta é essa em meus salões?

126
A voz de Odin reverberou como um terremoto.
O olhar do deus dos deuses ao se deparar com Ágda revelou surpresa e
medo. Ico não conseguiu esconder um grande sorriso com a cena.
̶ Como? Eu a bani! – vociferou o deus caolho. – Como…
E calou-se.
As mecânicas asas escarlates, produzida pelos filhos Ivandi, se abriram.
O olho serpentino, consequência da junção com Jomungand, focara em Odin,
enquanto sentia as escamas do braço arderem. Utilizando as garras que
adquirira de Fenrir, retirou a capa que protegia a espada de Surt, que
instantaneamente pegou fogo.
̶ Entendo… – murmurou Odin ao notar a ausência de um dos olhos.
̶ Meu cinturão! – berrou uma voz do portão.
Thor, o deus do trovão, retornara de uma caçada carregando um enorme
urso pardo no ombro.
A divindade derrubou a caça no chão, danificando o piso com o impacto.
Possuía longos cabelos e barbas castanhos, a estatura de dois homens
corpulentos e músculos tão definidos que eram visíveis até por debaixo da
armadura dourada.
̶ Seu? – provocou Guli. – Achei que eu o tinha roubado.
O deus do trovão cerrou os olhos, erguendo o famigerado Mjolnir.
̶ Vim pôr um fim em sua tirania, usurpador! – bradou Ágda, apontando a
colossal espada de Surt na direção de Odin. – Enquanto vocês comem e
bebem feito porcos, se esquecem da própria família, filhos, mulheres e maridos
que deixaram para apodrecer em Hel! – Ágda gritava a plenos pulmões. – Se
acham merecedores? Só estão aqui para serem usados por ele em uma
batalha perdida que destruíra o mundo!
Inaudíveis murmúrios irromperam pelo salão.
̶ Pai... – chamou Thor, segurando Mjolnir com tanta força que parecia
querer quebrá-lo. – Que loucura é essa que ouço?
Odin suspirou, massageando a têmpora. Frey, Freya e Frigga, que se
mantinham ao seu lado, também esperavam por uma resposta.

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- Eu vi o Ragnarok. – continuou a Valquíria, apontando para o buraco no
local de onde havia o seu olho. – Sei o que acontecerá com todos que estão
nessa sala se o Ragnarok acontecer! Você, Thor – e voltou-se para o deus do
trovão – morrerá envenenado por Jomungand após matá-la.
̶ Ridículo! – cuspiu Thor. – Eu jamais perecerei por um inimigo tão
medíocre!
̶ Vocês também morrerão. – insistiu Ágda, encarando os guerreiros com
repúdio. – Cada um de vocês, até não restarem mais nenhum. E o grande Odin
– nesse momento, a raiva a tomara por completo – será dilacerado por Fenrir.
Estou errada, pai de todos?
̶ Diga algo! – desesperou-se Frigga.
̶ Valquírias! – chamou Odin.
O exército que Ágda comandara por toda a vida avançou pelas portas,
cercando a ela e o grupo com lanças em mão.
Brenna, agora a líder das valquírias, a encarava atentamente.
̶ Fui banida de Asgard por falar livremente – expôs Ágda, enfurecida. –
Humilhada em meu próprio lar, pelo meu próprio pai, em frente a todos. Vocês
– e voltou-se para as valquírias. – como puderam deixá-lo fazer isso comigo?
Uma lágrima de veneno formou-se em seu olho.
Brenna tremeu, abaixando os olhos.
̶ Pai! – berrou Thor, impaciente.
̶ Matem todos! – ordenou Odin.
As valquírias relutaram. Voltaram-se para Brenna, que mantinha os
olhos baixos.
̶ Agora! – vociferou Odin.
Nesse instante Thor avançou contra Ágda. Ao verem-no correndo com o
Mjolnir em mãos, os humanos e as valquírias o seguiram, atacando o grupo e a
batalha pelo destino do mundo havia começado.
Com facilidade, Ágda desviou de todas as investidas das valquírias,
afinal ela as treinara. Utilizou a espada de Surt para desarmá-las (a arma era
tão poderosa que com um simples toque conseguia esfarelar as lanças), porém

128
tomando cuidado para não as ferir. Quando a última valquíria tombou, ficou
frente a frente com Brenna. Envergonhada, receosa e incerta, a antiga
companheira a encarou por um longo minuto enquanto a batalha continuava.
Por fim, jogou a lança no chão e fez um gesto para que seguis.
O feitiço de proteção lançado por Osman em Bera funcionou, pois a anã
foi a primeira a ser atingida por um golpe de espada. Nidhogg, furioso com o
ataque, deu uma baforada de fogo no homem que a atacou, carbonizando-o.
A magia que Osman utilizava para proteger Bera era deveras poderosa,
o que exigia muito de sua capacidade e o limitava. Porém, mesmo sem uma
parte significativa dos poderes, o mago era capaz de lançar raios de luz com as
mãos que desacordava instantaneamente quem os tocava.
Guli avançou contra Thor, mordendo-o na perna pouco antes que o deus
conseguisse atingir Ágda. Contrariado, Thor tentou chutá-lo, porém a
surpreendente velocidade do javali o impediu de acertá-lo.
̶ Babaca! – insultou Guli, mordendo-o novamente na perna.
O deus dos trovões ergueu o martelo, canalizando toda a força antes de
desferir um golpe que de certo ceifaria a vida do javali. Agindo rapidamente,
Bera golpeou a face de Thor; para a surpresa da divindade, o soco que
recebera foi tão forte que o fez ruir ao chão.
̶ Como? – questionou o deus, cuspindo sangue.
Ao observar as mãos da anã, Guli notou que ela amarrara pedaços
partidos de Gleipnir (a mágica corda que mantinha Fenrir preso) por entre os
dedos, utilizando-a como uma espécie de soqueira.
Sem pestanejar, Thor atirou-se contra a anã com Mjolnir em mãos.
Se fosse um pouco mais alta, o golpe que se seguiu a acertaria na
cabeça. Esquivando-se como podiam, Bera e Guri lutavam para sobreviver a
ira de Thor.
Ágda, que caminhava em direção a Odin e nada sentia da chuva de
golpes que recebia no processo, não viu quando, por um triz, o Mjolnir não
explodira o crânio da garota; mesmo protegida pelo encantamento de Osman,
um golpe do martelo seria mortal.

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Quando o deus dos trovões finalmente encurralou Bera, desferiu um
ataque que a acertaria no rosto, surpreendeu-se, entretanto, ao notar que
involuntariamente parara a investida a poucos centímetros do alvo. Thor
demorou a entender que Osman utilizava todas as forças que tinha para
mantê-lo preso com sua magia feito uma estátua; o esforço do mago era
tamanho que um filete de sangue escorreu pelo seu nariz, enquanto tremia
violentamente os braços.
̶ Maldito! – bradou Thor, que lutava para mover-se. – Eu irei matar a
todos! Vocês…
Antes que pudesse terminar a frase, gritou em dor. Nidhogg, mais
animalesco e aterrorizante do que nunca, cravara as unhas no deus, erguendo-
o até que tirasse os pés do chão. Com toda a fúria, lançou sem restrições no
rosto de Thor as chamas de dragão que tanto lutara para controlar. Os homens
que ainda guerreavam contra a equipe, ao verem o poderoso Thor ter o rosto
consumido por fogo, abaixaram as armas.
Quando as chamas cessaram, o rosto da divindade estava escurecido
como carvão. Thor, o mais forte dentre os deuses, continuava vivo, porém fora
derrotado.
̶ Faça algo! – clamou Frigga, enquanto Ágda se aproximava.
̶ Você traz a destruição de Asgard – proferiu Odin, encarando a
Valquíria.
̶ Não. Eu trago a sua destruição, e a esperança dos nove reinos.
̶ Basta! – vociferou Odin, atirando-se contra a guerreira com a lança
Gungnir.
Ágda rebateu o golpe com a espada de Surt, desviando-se para
esquerda. Antes que a Válquiria tivesse tempo de se posicionar para a batalha,
foi surpreendida por outro ataque do deus, aparado por pouco. Já sem
equilibro, tentou se posicionar de frente ao inimigo, sem sucesso; o golpe que
se seguiu quase a decapitou.
Odin passara a vida (um tempo imensurável para os humanos) em
busca de poder. O deus lutava com uma técnica impecável, além de dominar a
magia e usá-la para o tornar ainda mais forte e veloz. A lança Gungnir parecia

130
uma extensão do seu próprio corpo, dada a naturalidade com que a manejava
e a sua força era tamanha que nem mesmo a espada de Surt parecia danificá-
la.
Ágda não tinha tempo para atacar, apenas de defender. A agilidade com
que Odin a atacava era inacreditável até mesmo para ela e se a luta
continuasse assim, impreterivelmente perderia.
O deus não demonstrava sinal algum de cansaço, e, na verdade, a cada
investida parecia ganhar ainda mais força.
̶ Esquerda! Direita! Se abaixa! – gritava Ico, tentando ajudá-la.
Quando pela segunda vez a lança passou perto de cortar o seu pescoço,
chegando até a p aranhar superficialmente, notou que precisava agir. Quando
Odin utilizou a lança para golpeá-la na barriga, deixou que o golpe a
atravessasse.
Um pouco a cima da cicatriz da primeira vez que Gungnir a empalou, o
golpe deu a Ágda a abertura necessária para finalmente atacar o pai de todos.
Com um movimento rápido e preciso da espada de Surt, atravessou Odin na
linha da cintura; com um grito, o deus caiu.
̶ Um monstro… Você se tornou um monstro – proferiu Odin ajoelhado,
enquanto sangrava.
Veneno escorria do ferimento da lança. Ágda retirou Gungnir de dentro
de suas entranhas com um puxão que fez jorrar ainda mais do veneno de
Jomungand; ainda que não sentisse dor física, a memória da primeira vez que
a arma a feriu fez com que a sentisse vividamente. Em ira, utilizou toda a força
para partir Gungnir ao meio, arremessando-a com desprezo no chão.
̶ Eu fiz o que era necessário para salvar a todos do Ragnarok. –
retrucou, retirando a espada de Surt de dentro do deus (que urrou).
̶ O Ragnarok é inevitável. – confessou Odin. Todos no salão já haviam
cessado o confronto e acompanhavam a cena.
̶ Inevitável apenas para você. – frisou Ágda. – O próprio Mimir viu esse
futuro; eu evitei o Ragnarok.
Ico comemorava a plenos pulmões, dirigindo ofensas e xingamentos a
Odin.

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̶ Então mate-me, criatura hedionda. – vociferou o deus.
Ágda se viu refletida na espelhada lança que tanto a ferira. Sem nenhum
cabelo no corpo, com um único e reptiliano olho, presas ao invés de dentes,
escamas e garras de lobos na mão, também se achou uma criatura hedionda.
̶ Mate-me! – insistiu Odin.
̶ Não.
Ico parou de comemorar.
̶ Fenrir e Jomungand estão satisfeito em vê-lo cair, e eu também. A
partir desse momento eu banirei você de Asgard, Valhalla não é mais o seu lar.
Vá embora, deus caído e não retorne.
Odin abaixou a cabeça, humilhado. Frey, Frigga e Freya choravam,
enquanto os humanos assistiam boquiabertos o deus de todos os deuses ser
destronado.
̶ Ágda – chamou Ico. – Ele merece morrer.
̶ Não – insistiu a guerreira. – Está acabado.
̶ Mate-o agora! – berrou Ico.
A Valquíria o encarou, confusa. Emanando fúria, Ico começou a rir
maniacamente.
̶ Amor, você está bem? – perguntou Ágda.
̶ Tola.
No instante seguinte, a caricata figura do fantasma deu lugar a um
homem pálido, de longos cabelos loiros e vestes finas.
̶ Loki! – berrou Odin.
Ágda não entendeu o que estava acontecendo.
̶ Olá, irmão de juramento. – saudou o deus das trapaças.
̶ Ico? – chamou a Valquíria.
̶ Ico é um excelente nome, não acha? Iria me chamar de “Ikol”, que é
literalmente “Loki” ao contrário, entretanto achei que seria um tanto óbvio.
̶ Mas…
Com um assustador sorriso estampado no rosto, o deus continuou:

132
̶ Mas o quê? Mas cadê Ico? Mas você é Ico? Mas você não me ama? –
debochou Loki, rindo.
Nidhogg, Osman, Bera e Guli avançaram até a Ágda.
̶ Estúpida. Tão frágil, tão mal amada e manipulável.
̶ Eu… – a cabeça da Valquíria rodava. A perna fraquejou, e se não fosse
por Bera e Osman que a apoiaram, iria ao chão.
̶ Eu retirei o controle de Odin sobre você naquele campo de batalha –
expôs Loki. – Aquela criança? Era euzinho. Cuspi em sua cara uma quebra de
feitiço, o que te deu livre arbítrio. Eu sabia que, hora ou outra, você iria se
rebelar contra a genial ideia de levar apenas “guerreiros valorosos” para
Valhalla, enquanto todo o restante é condenado a Hel.
̶ Por quê ela? – perguntou uma ressentida Bera.
̶ A renomada líder das Valquírias, o mais perfeito e poderoso ser que
não é um deus. Obviamente, ela era a melhor escolha.
̶ Vivemos juntos...– balbuciou Ágda.
̶ Eu sou um deus, sua imbecil – continuou Loki. – Passamos o quê,
trinta, quarenta anos juntos em Midgard? Já levei mais tempo que isso
pescando.
Ágda chorava.
̶ A sua insegurança era tanta que não deu o menor trabalho para te
conquistar – debochou o deus. – Daí então, foi só fazer você se suicidar para
me encontrar em Hel e prosseguirmos com o plano.
̶ Eu morri por você – lamentou a guerreira.
̶ Você lembra do bilhete? “Gostaria que houvesse um jeito de
passarmos a eternidade juntos”. Admito que fiquei com medo de você não ter
entendido, visto que não é muito inteligente, porém, achei que te devolver a
adaga eventualmente te direcionaria a mim.
̶ Minha visão era falsa. – concluiu Ágda.
̶ Completamente forjada. Coloquei um feitiço na adaga, para que a visse
enquanto morria. Você não é especial, pois nunca foi destinada a destronar
Odin, liberar Fenrir ou nada disso. Você apenas não tinha um destino pronto.

133
Fui eu que a moldei para esse momento, “amor”. Sabia que com Fenrir,
Jomungand e a espada de Surt ao seu lado seria imbatível. Pelos raios do
energúmeno Thor, eu consegui enganar até Mimir!
Ágda chorava com ainda mais intensidade. Nidhogg tentou confortá-la
pondo a mão em seu ombro.
̶ Acha que, por um grande acaso, sentamos bem ao lado de Baldur, que
te levou diretamente a Hel? Que piada! – gargalhou o deus. – Pense em
quantas vezes eu a “ajudei” em nossa jornada, quanta “motivação” eu te dei…
̶ “Você é um monstro” – disseram as runas de Osman.
̶ Admito que o meu plano foi meio vago algumas vezes, mas não dá
para pensar em tudo. A necessidade do cinturão de Thor para erguer a espada
de Surt quase colocou tudo a perder. Mas todos vocês – e encarou a equipe
que apoiava Ágda – cumpriram bem o seu propósito. Desde a pequena e
indefesa anã, que amoleceu o coração do dragão ferido, até o mago que
colocava a todos para dormir e facilitou muito nossa jornada, vocês foram úteis.
Menos você Guli, você foi um completo inútil.
O javali o xingou.
̶ Todo esse trabalho apenas para me matar? – questionou Odin,
assistido por Frigga.
̶ Você não é tão importante para mim quanto acha, irmão. – respondeu
Loki. – Matá-lo me faria deveras feliz, contudo o meu objetivo era outro.
- Impedir a sua morte no Ragnarok. – afirmou Ágda.
- Precisamento. – continuou o deus da trapaça. – E claro, governar
Asgard depois da morte de vocês. – e apontou para Odin e Ágda.
- Asgard jamais será sua, imundo! – vetou Odin, cuspindo sangue.
- Bom, sua já não é. – riu Loki. – E sim, será minha.
No momento em que Loki estalou os dedos, a escuridão tomou conta de
Ágda.

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134
O colossal casal de irmãos, Jomungand e Fenrir, estava na sala em que
Ágda tivera a visão de sua captura por Odin; assim como na visão, ambos
estavam pequenos.
- Nosso pai nos chama, Valquíria – proferiu a serpente do mundo.
Fenrir a encarava, com feições sérias.
- Ele irá tomar Asgard para si com a força de vocês. – previu a guerreira.
- Sim. – concordou Jomungand. – E você morrerá no segundo em que
sairmos do seu corpo.
- Loki me usou. – lamentou a guerreira, com lágrimas nos olhos.
- É o que a trapaça faz.
Fenrir uivou, incomodado com o choro de Ágda.
- Não pude matá-lo. – admitiu a guerreira. – Tive Odin sob os meus pés,
mas não consegui fazê-lo.
- Para Odin, perder o trono é muito pior do que retornar ao caos. Você
fez bem.
Os corpos de Jomungand e Fenrir ficaram translúcidos por um instante.
O filhote de lobo uivou intensamente, até que a cobra passou o corpo em sua
pata, acalmando-o.
- O pai nos chama, Valquíria. – insistiu a serpente do mundo.
- Ele trará a destruição de Asgard e também de outros reinos – previu a
Valquíria. – Há algo que eu possa fazer para…
- Não. – vetou Jomungand. – Não há absolutamente nada que você
possa fazer. Entretanto, nós podemos.
O lobo caminhou até Ágda e deitou confortavelmente ao seu lado.
- Não iremos responder ao chamado. – decretou a serpente. – Com
você, podemos ser livres, estamos finalmente juntos e em casa. Seremos para
sempre uma parte sua, desde que nos aceite.
Ágda esquecera momentaneamente que a sua aparência fora alterada
com a fusão dos dois gigantes em seu corpo.
- Eu os aceito, de coração aberto. – afirmou a Valquíria, acariciando
Fenrir.

135
- Não deixe que o poder a corrompa, Valquíria; caso se torne uma
versão de Odin, não hesitaremos em enviá-la de volta a Hel. Confiamos em
você.

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Nidhogg a segurava nos braços. Ao abrir o olho, sorriu para Loki, que
calou-se.
- Onde estão meus filhos? – quis saber a personificação da trapaça.
- Comigo. – respondeu secamente, erguendo-se.
- Não… – lamentou Loki, perplexo. – Eles escolheram continuar com
você?
- Eu vi o que Odin fez com a mãe deles. – revelou a Valquíria. – Mas
também soube que você enganou Angrboda e os abandonou, assim eles não
virão para você.
Ágda segurou a espada flamejante de Surt, caminhando lentamente até
Loki.
- Eu deveria reinar. – vociferou o deus. – Eu fiz tudo isso acontecer!
- Parabéns. – parabenizou a Válquiria, golpeando-o.
Antes que a espada pudesse tocá-lo, Loki evaporou em uma névoa
cinzenta.
- Ele morreu? – quis saber Bera.
- Sempre haverá trapaça no mundo. – respondeu Odin, erguendo-se
com a ajuda de Frey.
- Vou ali resgatar Saehrimir – anunciou Guli, deixando o salão em
direção a cozinha. Logo, gritos de alegria e liberdade eclodiram e contagiaram
o ar; o Ragnarok havia sido evitado e Odin, que tanto lutara pelo poder, havia o
perdido.
Exausta, Ágda novamente tombou. Nidhogg a segurou antes que fosse
ao chão, murmurando um quase inaudível “vencemos”.

136
O dragão a carregou até um assento, para que a guerreira pudesse
descansar. As outras Valquírias a saudaram durante a trajetória, com um gesto
de respeito com a cabeça.
Quando Nidhogg a posicionou da forma mais delicada que conseguiu,
demorou a perceber que se sentava sobre Hlidskialf, o trono mágico que
permitia a Odin enxergar os nove mundos. Os lobos Geri e Freki avançaram
cautelosamente até Ágda, cheirando-a as mãos e logo em seguida dentando
sob os seus pés. Hugin e Munin, os corvos que vistoriavam os reinos para
Odin, pousaram um em cada ombro seu.
̶ “O que faremos agora?” – questionaram as runas de Osman, que
apesar de felizes, aparentavam preocupação.
Ágda observou os arredores; os humanos já bebiam com naturalidade e
criavam novas canções em sua homenagem. Odin, Thor e os demais deuses
eram obrigados a atravessar um portal criado por Osman, que os impediria de
retornar a Asgard. Guli, já na companhia de Saehrimir, Bera, Nidhogg e as
Valquírias a encaravam, esperando por uma resposta que não veio.

Os nove reinos estavam livres do comando dos deuses e os portões de


Asgard abertos a todos que de fato o merecessem.

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