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LEMBRANÇAS ALEATÓRIAS

Por Robson Marques

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Epígrafe –Nossa vida é efêmera como a das borboletas; um simples bater de asas do tempo.
Ou: Nossas vidas são momentos fugazes que nos escapam e caem no precipício de nossas
ilusões.

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Sonhos Diurnos (Absurdo)

Entrou desolada, mais uma tentativa frustrada de sair de casa, mesmo a noite isso não
dava certo, a fase de caminhadas passou, estaria com saudades? Após alguns passos na
calçada de pedras cobertas por um tapete limoso que a porta regurgitava até o portão, dúvidas
desconexas permeavam os escombros daquela mente confusa, as flores nas laterais afastadas
por tufos de relva mal vistos quase foram atropeladas depois da meia volta, as mãos trêmulas
dela tentavam acertar o buraco da fechadura, sem sucesso respirou fundo, conseguiu abrir,
perguntava-se qual o motivo da saída noturna, se fosse para falar com um dos raros amigos
bastaria ligar, mas não era isso, distraída bateu com a coxa na quina de uma mesa próxima da
porta, sempre acontecia quando, às apalpadelas aventurava-se a chegar ao quarto sem acender
as luzes. O hematoma está desaparecendo e dou uma pancada de modo inconsciente, seria
uma forma de punição? No quarto despiu-se, acomodou-as nas gavetas e cabides do guarda-
roupas, desprendeu os cabelos, vestiu as meias listradas e dormiu, ainda não tinha problemas
de insônia, mas da ansiedade incrustada naquela geração ela não escapara.
Os astrirraios demoravam a rasgar as nuvidensas e a cerração atrasava o brilho da
manhã, o solitário girassol ainda dormia cercado por suas fiéis escudeiras, pedras brancas.
Ela acordou de repente, mas não se moveu, abriu os olhos assustados procurando saber
quem era, onde estava e o que precisava fazer, típico comportamento de quem acaba de ter
sonhos estranhos, porém lembrava apenas de fragmentos. Primeiro levantar, segundo manter a
calma, terceiro banho. Olhou para o relógio: acordei na hora exata que pensei antes de dormir,
meu subconsciente gravou a informação e agiu de acordo, sorte minha. Tudo para ir a algum
lugar que, a propósito não sabia onde era mas estava decidida. Acordei no meio do absurdo,
ou sou o absurdo? Perguntava-se nossa desconhecida personagem.
Destravou o cadeado que estava na janela, abriu-a devagar, e o doce cheiro das rosas
fora da casa inundaram o quarto, em seguida veio o ar úmido, inspirou devagar e recebeu uma
lufada, as cortinas incharam, arrepiou-se, fechou-a porque estava sem roupas e pronta para o
banho. Moro em uma cidade com a umidade relativa do ar entre as cinco primeiras do mundo,
por isso alguns metais enferrujam com facilidade, em contato com o oxigênio perdem
elétrons. Substâncias químicas invisíveis interagindo direto com o meio ambiente coabitado.
Química e física são interessantes porque não vejo prótons, quantas, etc., mas existem caso
contrário não estaria pensando, seriam a aparição imaginada da realidade? Ligou a ducha, o
ambiente fechado e quente ficou úmido, a fumaça condensou-se nas frias paredes de concreto
e o espelho ficou baço. Enquanto passava o sabonete sobre a branca e macia pele...

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A plasticidade destes novos é incrível, deixam uma suave camada sobre o corpo,
mesmo depois do enxágue a fragrância persiste, a do xampu é normal o que difere é a
quantidade de espuma, agora vamos ao condicionador... pronto. Secou-se bem, vestiu-se e
enrolou a toalha na cabeça.
Enquanto ela saía do banho, o sol puxado pelos corcéis de fogo de Hélios entrava pela
janela da cozinha, tímido, avançava pela louça suja na pia até alcançar os pés da mesa, dali
não passou, ela havia retirado as cortinas para lavar. Uma pequena mariposa debatia-se no
teto, incólume até encontrar uma delicada rede mortal tecida pela paciente aranha, senhora
Aracne quis desafiar Atena, empataram a disputa, mas a deusa lhe poupou das parcas,
transformou-a em uma fiandeira incansável.
Passou pela sala com algumas coisas encaixotadas, não estava de mudança, guardava
cacarecos de todas as fases da vida, um manequim de braços abertos sem pernas e cabeça
empalado em uma barra de metal estava ao lado de uma velha poltrona azul com desenhos de
traços rápidos, feitos por uma criança talvez, achou-a em uma loja de móveis usados antigos,
resgataram-na sem perder a essência, o estranho manequim que combinava com o contexto
excêntrico da sala na verdade era um abajur que não funcionava fazia dois ou mais meses, a
lâmpada queimou e ela não lia mais ali antes de dormir, acostumou-se a folhear revistas
triviais na cama, nunca percebia quando Morfeu exalava seu hálito e a deixava suspensa na
leveza do sono, atrás da poltrona as cortinas vermelhas chegavam ao chão, fechadas fazia
meses, do outro lado a estante sinuosa de prateleiras retorcidas sem livros não denotava a
vasta cultura que aquela criatura possuía, só o busto de Ares era digno da prateleira mais alta,
suas sobrancelhas tempestuosas e olhos flamejantes desferiam sua mortífera brisa da guerra,
traspassando as rutilantes copas do amanhecer da foto no quadro na parede oposta, os
desenhos das paredes sem quadros eram abstratos, geométricos e coloridos todas as manhãs
entravam em contraste com o humor cinza dela, tudo no cômodo e no restante da casa tinha
um ar démodé. Anos de garimpo em lojas de movéis usados minuciosamente escolhidos. O
carpete tinha marcas de queimado, vítima de cigarros em antigos tempos de festa, naquela
época tinha vários amigos, restaram poucos verdadeiros, as pessoas esquecem umas das
outras em determinados momentos da vida e depois nunca mais se procuram. Às vezes tão
próximas.
Sua mãe morreu há dez anos e o pai logo a acompanhou, viveu sozinha desde então,
não era acostumada a receber amigos, mas gostava de visitas às vezes, recebia-os alegre
mesmo em tempos de tristeza, ao menos os tinha, as paredes do corredor em que agora
passava eram enfeitadas com quadros de desenhos à lapis de seu rosto feitos por um querido

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colega.
Entrou na cozinha, preparou seu lanche da manhã rápido, duas fatias de pão com
geléia, pegou sua caneca preferida, a com desenhos de perspectivas e delicada alça, despejou
o chá quente com as curvas da débil fumaça esmorecendo por todos os lados, em seguida o
cheiro palatável de frutas cítricas encheu o ambiente. Sentou e olhou para a fruteira no centro
da mesa, nada havia ali. Sobre o refrigerador revistas e livros esquecidos, costumava ler
durante a manhã, mas nesta não estava com vontade. Alimentou-se devagar para auxiliar o
metabolismo e posterior absorção de todos os nutrientes ingeridos, depois foi à pia. Hora de
trabalhar.
Quando se aproximou da janela com plantas trepadeiras, desenhadas, o brilho do sol
irradiou seu rosto moldado pelos deuses do Olimpo. Tenho de afastar o refrigerador, ainda
bem que coloquei este suporte com rodinhas, cozinha pequena para tantos móveis. Olhou para
a porta do balcão. Tenho que contratar um marceneiro para consertá-la, está fazendo um
barulho estranho. Ligou o único rádio sobre um balcão longe da pia na estação preferida,
olhou para o relógio na parede. Ainda é cedo. Foi lavar a louça do dia anterior, e sem
esperar... lembranças claras de sonhos obscuros surgiam em uma chuva de flechas noturnas!
Quando o anjo soou a sétima trombeta vi pôneis azuis com asas de pégasus que
cantentoavam odes à fantasia enquanto cavalos marinhos saltavam em pastos verdes de algas
e corriam pelos recifes de corais vistos pela águia que anunciou os ais caçando alimentos
prontos em pratos de prataria valiosa contendo ornamentos orçamentados polidos com lixas
grossas esfregadas por mãos protegidas com luvas estilizadas pelas grandes companhias
sedentas de trabalho escravo em países terceiro-mundistas violando leis trabalhistas e obtendo
mãos de obra econômicas economizadas com cuidado por bancos de pessoas gananciosas com
cofrifortes abarrotados de dinheiro adquirido através de gerações antes e após a idade média
caracterizada pelas batalhas com espadas chocando-se em armaduras e machados evitados por
defendescudos de homens gritando pela dor e pelo ódio movido contra eles mesmos para
sentir o prazer de exterminar com a desculpa de proteger vidas e interesses de pessoas
desconhecidas que também partiam para o submundabismal grego de Hades quando morriam
segundo as crenças da população em deuses imaginários porque não sabiam a quem atribuir
as mudanças da natureza floricolorida pintada em uma tela com dimensões sem importância
no momento e à tinta a óleo pelo Ser que as misturava sobre a própria tela mutilando um dos
ouvidos para pintar um auto-retrato não parecido com a máxima música clássica de outro
gênio inumado indigente debaixo de um temporal enriquecido com robustas rajadas caóticas
de ventos batendo em vários pontos de um rosto melancólico qualquer no meio de uma

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multidão que mal sabe de sua existência valorizada apenas pelo prazer de escrever à
silentinoite empolgado em descobrir na sua imaginação o modo colocar no papel de forma
escrita a elaborada imagem imaginada das pessoas sonhando em realizar seus desejos
recalcados pela consciência emergidos do subconsciente através dos sonhos que todos os
seres humanos têm quando descansam de um intenso trabalho intencionável objetivando
capital no sistema econômico vigente aprisionando-os com correntes invisíveis ligadas à
palavra sobrevivência incomum na estratosfera desprovida de oxigênio e outros componentes
aéreos sem minérios atômicos causadores de inúmeras mortes em um passado obscuro pelo
imenso cogumelo de poeira mortal produzido por humanos sem noção da desgraça causada às
vidas em estados lastimáveis de absorção de radioatividade assentimental propondo à vogal
do neologismo anterior uma negação usada pelos niilistas convictos de que a nadificação total
e a absurdidade são pontos centrais e importantes considerando o conceito de estado político e
definindo a seguinte preposição não assertiva dos conteúdos oníricos obtidos nas
perturbadoras silentinoites em claro formulando teorias para esquizofrênicos pela
intransigente escritora de racunhos absurdos idênticos às situações da vida temporária
arquivada em caixões e gavetas mortuárias inescapáveis até quando como as tentativas futuras
realizarão a proeza de exterminar as parcas tão belas trabalhando com os fiapos da vida
humana importante para todos e sem sentido para os que se intercalam em sua simplicidade
inestudada até uma mente projetora de identidéias surgir nublando ainda mais o ponto
culminante da lacuna da loucura falada em jargões populares indefiníveis resultantes das
várias ramificações linguísticas e das psicodeturpações da alma com uma possível interligação
da significação dos sentimentos da linguagem projetados dos hemisférios cerebrais para o
restante dos órgãos produzindo cargas nervosas prejudiciais em casos provocativos na esfera
do afetado de afeição afetiva no conjunto de lembranças paradas na memória tenebrosa para
alguns e nostálgica para alguns também porque podem ser substituídas por outras no caso de
uma empresa privada comparada ao resultado final de uma boa digestão iniciada com
alimentos de origem animal e vegetal modificados geneticamente para o aumento da produção
e do lucro obtido em vias desconhecidas debaixo de fulgurantes astrirraios em contenda com
o suor surgido dos poros não perfurados com agulhas descartáveis imundas inseridas em
tubiveias para retirada de sangue nos pacientes de hospitais que talvez tenham conteúdos
retroativos cujas retrospectivas não alcançam o ápice coloquial dramático não percebido sobre
uma base emocional elaborada.
Ela volta a si atônita. Essa mente é cheia de labirintos e estratagemas! Prepara-se para
sair mas esquece em que lugar colocou as chaves, procura desesperada embaixo das

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almofadas, dentro das gavetas, no cesto de roupas sujas... sem sucesso vai até o quarto, deita-
se e respira fundo: seria o cúmulo ficar presa depois de quatro dias sem sair de casa, ou pular
a janela como fiz semana passada e quase me espatifei, e na volta? Sente sede e ao abrir o
refrigerador, já afastado da janela, lembra do molho congelado, e vê o molho sobre um
recipiente rosa. O molho foi parar aqui? O congelado deixa, o de chaves leva, não que seja
desorganizada mas o costume de guardar objetos importantes em lugares insólitos é para
exercitar a memória, nesse caso o subconsciente a salvou de uma reclusão quase proposital.
Pega a bolsa, fecha a porta frontal e vê a fraca luz do astro a se espraiar sobre os lindos
jardins violetas azulados no parque à sua frente. Neste momento um grupo de andorinhas
passa sulcando os ares e pousa nos fios de energia, uma fica no cume do poste, chegaram
desferindo seus agudos pios em uma algazarra, olha atenta para a cena... O verão chegou. A
caixa de correio abandonada, nem uma carta. Abre o portão e sai.
Aqui começa a absurda epopéia de nossa sonhadora. Andou mais um pouco e desejosa
de deitar sobre as calátides coloridas não resistiu e se jogou sobre as flores, que não eram
roseiras. A beleza da queda do tempo...
Dessa vez o impacto foi macio, a flexão dos joelhos proporcionou o amortecimento do
choque, porém... Ainda não consigo calcular os resultados da força aplicada, mas as funções
bioquímicas ocorridas no cérebro foram sentidas no estômago, ansiedade transportada pelos
neurônios. Isso pode resultar em úlcera se tiver ataques de ansiedade frequentes durante
minha vida, ainda não havia pensado nessa possibilidade: Provocar situações para incitar
sensações. Lembro que tenho de ir a algum lugar e isso quebra a linha de raciocínio caótico
sobre matemática, física e neurofisiologia que tenho deitada sobre as violetas azuladas do
verdejante jardim.
Levanta-se procurando por vestígios de sujeira no vestido, não sabe em que direção
seguir... Encontra o casal de simpáticas vizinhas, cumprimentam-na com um doce sorriso e
mandam um beijo, brincando, ela sorri e agradace à moda antiga, isso sempre acontece nas
raras vezes que se cruzam.
Aquela dor no interior da minha caixa craniana ressurgiu, tenho a pretensa convicção
de ser um sintoma do acidente sofrido na sexta-feira, as dores no tórax e nos membros
persistem, mas estão desaparecendo conforme há o restabelecimento da circulação sanguínea
e outros fatores. Ainda bem que a dor de cotovelo passou.
Foi um choque quando despertei em uma ambulância com colar cervical, eu tentava
levantar a cabeça desesperada mas estava imobilizada em uma maca com os paramédicos me
perguntando: - Como é seu nome, onde você mora... Eu não sabia responder e pensava: quem

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sou, onde estou, o que está acontecendo, quero ir para casa. O que me impressionou naquele
momento foi algo que não consigo definir por palavras, ações... apenas tive a forte sensação
de estar perdida, foi indescritível renascer com consciência de tudo, que estava presa e
deitada, reconhecendo tudo ao meu redor menos a mim, um choque da volta ao mundo real.
Fui levada até um pronto socorro para receber o belo tratamento que a saúde pública nos
oferece. Enquanto esperava receber alta vi pessoas em situação pior, uma menina chegou com
um braço quebrado e começou a gritar quando a médica disse que ia colocar o osso no lugar,
eu ouvia sua mãe falar: - Não vai doer filha deixe a médica ajudá-la. A levaram para uma sala,
os berros cessaram e logo a menina apareceu calma, fascinada com o balão que ganhara,
acidentados de moto chegavam aos montes, alguns inconscientes, tudo fruto de uma má
educação no trânsito, a maioria dos motoristas estava sob efeito de álcool.
O que aconteceu comigo foi banal comparado àquela loucura, saí de casa para assistir
a um filme e na volta, um menino virou a esquina de um prédio olhando para trás, corria de
alguém, não consegui frear a bicicleta a tempo, bati com o guidão no ombro dele, perdi o
controle e fui de encontro à parede do prédio, o choque foi violento apesar da baixa
velocidade, não foi pior porque eu estava de capacete.
No outro dia os pais dele ligaram pedindo desculpas, disseram que não me
preocupasse, ele só havia sofrido pequenos arranhões.
Aos poucos me reestabeleci, acredito que alguns fatores exteriores estimularam meu
hipotálamo, órgão responsável pelo controle dos hormônios que influenciam sentimentos e
sensações. Procuro entender o funcionamento de meu cérebro porque tenho vários motivos, os
sonhos de hoje por exemplo. Quero compreendê-los mas não consigo!
Novamente uma cena ensandecida do sonho surge:
Uma mulher enforcando-se e eu tentando salvá-la...
Talvez meu real desejo esteja escondido nesse ato inconsciente, aquela peça de teatro
Electra evidencia minhas suspeitas, o desejo inconsciente de possuir o pai e o ódio pela mãe
fecha o ciclo, não devo ruminar o que não tenho certeza, virar à esquerda ao final desta rua...
Um mendigo com as pernas amputadas, sentado em uma cadeira de rodas aparece de surpresa,
vai me pedir esmola... estica o braço e desdobra os dedos com unhas encardidas e mal
aparadas, no entanto... Que surpresa! Sua palma está limpa. Tenho a impressão de que minhas
mãos estão ficando velhas, enrrugadas, mas não têm a pele grossa de quem trabalha com
serviços pesados, quando cumprimento alguém com um aperto de mão sempre noto a
consistência da palma, deduzo que quanto mais rudes e grossas são, maior é o esforço do seu
trabalho. Os mendigos não trabalham, parecidos com estóicos da Grécia antiga no sentido de

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viver impassíveis e livres em uma sociedade desvalorativa e indiferente ao individual. Moedas
soltas no bolso traseiro da minha calça, duas, pronto, ele está feliz e agradece com um pedaço
de papel escrito a mão: O pensamento é um labirinto sem minotauro. Interessante! O mendigo
diz que seu nome é Teseu.
Logo adiante...
Pessoas amontoadas defronte a um comércio de roupas em liquidação, Fechado! Diz a
placa, todos desejam as melhores peças, poucos conseguirão, crianças choramingando querem
sentar no chão sujo, um vendedor ambulante de doces talha a multidão e vem em minha
direção, uma pequena grita: - Quero pirulito mãe, quero pirulito mãe! Sua mãe: - Quieta! Não
tenho moedas para comprar besteiras e daqui a pouco almoçaremos, após a passagem do
vendedor também parto ao meio a multidão afoita, igual a um golpe de machado desferido em
um lago enregelado, mas no meu caso a massa dividida volta à coesão inicial, já ao lado,
pedestres atravessam a rua tranquilos evitando possíveis acidentes passepisando sobre faixas
brancas de tintas frescas, no interior daquela agência bancária filas serpenteiam, dia de
pagamento pelos serviços prestados ou não, quesito principal: Sobrevivência, no caso de
família grande do contratado a exploração do empregador é ainda maior, mão de obra barata
mais necessidade de emprego, igual a lucros altos, um ônibus passa e freia provocando um
barulho agudo, falta óleo nos freios. Atrás, um dos pneus daquele automóvel fura, devem ser
difíceis as onomatopéias para esses sons, fenomenal foi a interjeição que aquele homem usou
para abordar seu provável velho amigo...
Outro barulho arrebenta sua linha de raciocínio: Trimm, trimm, trimm.
Estranho o aparelho telefônico público tocar agora, alguém digitou o número errado
ou foi proposital para que algum pedestre a esmo atenda, aquele outro cidadão se abaixa e
coça onde Aquiles foi atingido, trágico fim, aliás, ainda não vi. Jamais verá. Um herói grego
se dar bem em uma tragédia, até os deuses eram punidos pelos seus deslizes, exemplo notório
do populacho é o ato de rebeldia de Prometeus, que despertou a ira de Zeus, agrilhoado e com
o fígado exposto para ser comido por aves de rapina durante o dia, inimaginável a dor, só um
Deus para suportá-la, Zeus era cruel com quem o enganava, nessas situações o capacete de
Hades talvez fosse uma saída tangível, invisibilidade. Tudo ficou no passado, hoje, tantos
rostos, tantas vozes, todas figuras Prometéicas detentoras do fogo sagrado dos deuses.
Com a criação da humanidade e esse ato, Prometeus revelou o esforço inútil pelos
mortais, o de Sísifo, que não era um deus, era levar uma rocha até o topo de uma montanha e
depois buscá-la, porque ela rolava para baixo sem explicação, o das pessoas é a busca pelo
sentido da existência, do paria até o mais renomado cidadão, todos se perguntam o porquê,

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mas não procuram as respostas, apenas vivem igual a um vácuo no tempo, um vácuo é o que
todos somos, existimos hoje para não existirmos amanhã, esta é a realidade que imaginamos,
talvez um sonho, sonhos são desejos inconscientes que queremos realizar, os desta noite
foram terríveis, não gosto quando penso que estou desperta e na realidade estou em um estado
letárgico, uma ponte entre o despertar e o dormir, um período de pura confusão em que a
realidade se confunde com sonhos e as cenas se repetem começando e finalizando sempre do
mesmo ponto. Culpa de Morfeu? Nesta rua há tantos prédios antigos reformados, ainda bem
que preservam essas raridades arquitetônicas.
De repente surgem bolinhas de sabão vindas não sabe de onde, olha para cima...
Uma menina com um brinquedo rudimentar faz inúmeras bolas de sabão que
dancespiralam desafiando a gravidade, conforme as frágeis globularibolhas voadoras giram,
caem como folhas de árvores secas, os reflexos dos raios solares produzem uma nuance de
variadas cores matizadas em vários pontos de suas tangências, vejo vozes! Vozes
incandescentes no interior das bolhisaponáceas semelhantes a planetas fictícios, ecoam gritos
projetados por um prisma luminoso, o som delas pode ser ouvido a quilômetros de distância,
fenômenos impossíveis? Por quê? Só porque não há explicação racional não significa que
sejam fenômenos impossíveis, ora, a humanidade crê em coisas impossíveis e sem provas, por
que não aceitar a máxima de que podem existir ondas sonoras, talvez vozes, dentro destas
bolhas de sabão que estouram antes de chegar ao chão? Talvez essas vozes sejam palavras
afiadas idênticas a espadas traspassando frágeis réplicas de malhas de bronze pré-
conceituosas.
No fim da rua há um conglomerado de lojas com bandeiras hasteadas no piso
superior...
Corroídas pelo tempespaço ainda flamejam insígnias cintilantes, as extremidades
rasgadas batem-se de modo aleatório, uma mãozinha aparece, o pequeno está no colo de um
dos seus pais, puxa a bandeira e desaparece rápido com um fragmento do que outrora
representava uma cidade, uma nação, agora esquecida, gostaria que o planeta fosse um só,
sem divisões de países. À minha frente uma mulher fuma, não gosto desse cheiro, mas o
movimento lento e delicado de sua mão quando joga o cigarro aceso na lixeira não escapa da
beleza suave do tempo, junto com a lisura alongada da cor do cheiro fumarento branco e a
quentura vermelha incandescente fugidia, que se descolore quando não tem o que queimar. A
cor amarelada do vento acelera o processo de combustão até o último suspiro do fumo que se
apaga aos poucos, nossa existência idem depois de passar pelo presente que se esvai como se
não existissem esses momentos, restando apenas a nostalgia apoteótica.

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Não olho para o rosto das pessoas que passam por mim, talvez porque nossa
arrogância recíproca não permita, somos tão ignorantes que sequer nos compreendemos ou
conhecemos e ainda presumimos ter razão sobre suposições desconexas acerca dos nossos
pensamentos. Seus modos deixam transparecer que estão perdidas em si mesmas, porque
andam para lá e para cá sem saber o que fazem ou por que, alienadas vão atrás umas das
outras, perdidas! Não conseguem estabelecer seu próprio caminho sem sentido, ou tentam
encontrá-lo na próxima esquina, buscas infinitas e cansativas. Estou falando de mim?
Sai em uma avenida...
Cheiro estranho aqui, naquela rua sentia o de verão, consigo sentir o cheiro das
estações, deve ocorrer fenômenos na atmosfera que desencadeiam reações no tempespaço.
Meu vestido está com um cheiro bom, exagerei na lavanda, ontem quando passei em frente a
uma revistaria e senti aquele cheiro peculiar de revistas e gibis novos, lembrei do fascínio que
exerciam sobre mim quando pequena, apalpava-os, tocava aquelas folhas ásperas, apreciava
os desenhos coloridos estáticos que fingiam movimentar-se, seguia a ordem dos quadrados
onde uma estória se desenvolvia, lia todas. Enquanto me perdia na vitrina de lembraças um
homem saía do local contando moedas, fumava um charuto e parecia nervoso.
Sempre que sinto o cheiro doce e leve das estações tenho perguntas, se pudéssemos
voltar o que faríamos? Seríamos capazes de suportar os retornos ao passado eternamente? Não
lembro da primeira vez que percebi esse cheiro, aliás, não deveria esquecer coisas tão
importantes enquanto os outros perdem seu tempo ganhando... Mas ganham o quê na
realidade, um modo de esquecer seus problemas? Elas ganham, eu perco, a cada verão que se
aproxima é um ano que passa, porém, nunca me esqueço da temperatura mudando, das flores
se exibindo...
Isso é apenas o efeito psicológico causado pela perda dos anos carregados de
fragmentos, pedaços rotos de uma vida que relembra no presente e caminha para a incerteza.
Todo ser vivo reluta em vão, eles sabem o que quero dizer, mesmo que não entendam meu
idioma ou ouçam minha voz, por isso estou aqui, para sentir o perfume que a vida me oferece,
provando que as coisas boas e perfeitas são as mais simples, pois esquecemos que a sabedoria
provém da simplicidade. Mas são pessoas muito ocupadas para essas idiotices, no entanto, são
delas que percebemos os lapsos do sentido da vida. Por exemplo: a cena maravilhosa de um
guardanapo que se agita tímido no meio da rua com a passagem dos carros, mas logo uma
rajada de vento provocada por um caminhão faz o papel alçar vôo e revolutear em espiralados
movimentos, uma ave sem vida que pousa plácida no outro lado da calçada.
Ela vai até o papel gofrado com o nome de um restaurante conhecido e o desenho de

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um Deus egípcio, o Deus dos deuses egípcios, todos extintos! Amassa e o joga na lixeira.
Vôou da mesa daquele restaurante que está com as janelas abertas, lá dentro os
movimentos rápidos e suaves dos garçons, e o equilíbrio com que carregam as bandejas com
taças de cristal impressionam. Uma velha com ares de burguesa conversa com um deles,
cochicha em seu ouvido e ele sorri, um sorriso sem vontade, todos os restantes parecem adulá-
la, pudera, ela é a única cliente, cena semelhante àquelas da idade média, quando um batalhão
de serviçais tentava agradar ao seu senhor ou senhora. Vivendo essa existência absurda acho
que estou perdida em mim, diferente dela que sequer sabe, sua existência é um mero
acontecimento, banal como o resto da humanidade, mas ela precisa daquilo, da bajulação dos
outros para que se sinta alguém além daquela máscara que apresenta para a sociedade, deve se
desesperar e chorar muito quando está só, se é que reconhece seu interior, porque para esse
gênero de pessoa só a casca importa, o interior está vazio, será que essa sou eu? Sim, eu sou
fútil, mais do que eles porque aceito e convivo com os meus defeitos e não os encubro com a
máscara hipócrita do status.
Também me importo com o que a sociedade fala ou pensa de mim? Óbvio que sim,
pois sou mais fútil e sem status do que ela. Com certeza as idéias dela não se comparam às
daquele homem soturno encostado a direita do poste com botas de solas grossas e as pontas
pintadas de vermelho escuro, ou seria sangue? Quantos julgamentos precipitados, será? Ele
está com uma jaqueta de couro remendada, fuma um cigarro, cabelos verde-claros, olha para o
chão, procura algo, uma turma vem em direção contrária e o chama, batem-se com os ombros
e inclinam a cabeça para o lado, uma forma de cumprimento, presumo, entram em uma
pequena loja de discos com desenhos de chamas na parte de baixo das paredes pretas, Roma
em chamas! Na vitrina estão dispostos de maneira aleatória: camisetas presas em uma tela
com grampos de metal. Da última vez que vi a foto de uma banda fiquei alguns minutos
paralisada e pensei: isso já acabou, não existe mais... um deles está morto, virou passado... é
inevitável o fim das coisas que gostamos. Abaixo das camisetas discos de vinil e cd's, a
maioria das bandas não conheço mas parecem ser agradáveis, dois rapazes e uma garota ficam
na parte de fora observando as fotos de tatuagens no estúdio anexo à loja, passo por eles
agora. No encontro das esquinas quase bato de frente com uma garota vestida com roupas
Viking sem o elmo cônico.
Isso desperta a lembrança do sonho com a mulher enforcando-se, logo relaciona a
conteúdos míticos.
Os enforcamentos na árvore Iggdrasil para a redenção no Valhalla, ou castelo dos
deuses, não era loucura na cultura escandinava, insensato foi o plano para recuperar o cabo do

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poderoso martelo do Deus do trovão, Thor, eu simpatizo mais com aquele que arrancou um
olho e o jogou em um poço mágico para obter a sabedoria eterna, trocar dores passageiras por
sabedoria permanente talvez fosse vantajoso para ele que era um deus, Odim, para mim,
mortal que imagina e pode criar deuses quando e onde desejar é diferente, a sabedoria
permanece, mas eu faleço, culturas que ficaram no passado com alguns resquícios para provar
sua existência, todas muito interessantes, impérios descarados que ruíram, esse nosso é
dissimulado, espero que rua senão a humanidade desaparecerá do universo, entretanto, há uma
situação que nunca muda: O Ser humano continua desumano.
Dia de sol e aquela mulher leva um guarda-chuva embaixo do braço, segundo a
previsão não vai chover, gosto de ver as pessoas com seus guarda-chuvas pingando nos dias
de temporal, protegidas da H2O que despenca das nuvens do céu cinzescuro. Em dias de
outono também é interessante observá-las, suas faces preocupadas são o espelho da tristeza,
olhares vagos, suspiros distantes, no entanto um simples gesto as torna únicas, diferentes,
peculiares, pena que não percebem isso, porque elas são comuns, se o ser humano esqueceu
de sua própria importância, que dirá dos sentimentos mais profundos? Tudo solapo, enterrado
pelas futilidades sociais. Pensando em enterros... um cemitério...
Um carro negro entra pelos portões frontais seguido por vários veículos.
Cemitério é o local que retrata o escopo da existência humana, algumas coroas de
flores evitam que o carro negro fique mais fúnebre, um dia também estarei ali dentro, o
cadáver devia ser alguém importante a julgar pela quantidade de veículos e pessoas que
acompanham o cortejo, o ar funesto nos rostos dos presentes, as nefastas cadências de cada
passo, mais um corpo desconhecido é levado para a cova.
Quando refletimos sobre a morte prestamos mais valor à vida do que o normal, a
reflexão sobre o não-ser nos faz questionar, faz renascer a angústia da espera. Um retorno
repentino do corpo e do pensamento ao nada, mas será que arriscaríamos mais se
soubéssemos o dia de nossa morte? A morte assusta vários seres humanos porque pensam que
há algo após ela, parece que sinto um cheiro forte de morte, já os mortos não têm cheiro até
certo período, depois alastra-se rápido, eu também estou em decomposição, nasci, cresci e
envelhecerei, minha pele definhará, os músculos ficarão flácidos e meu corpo...
O inconcebível é que alguns seres humanos acreditam que depois de mortos seu
espírito vai para algures além do tempespaço. Eles acreditam no que a igreja profere sobre a
imortalidade, chegam a ponto de fazer cerimônias fúnebres em prol do espírito do defunto,
mas cada um com a sua crença...
Há alguns dias liguei para os cemitérios da minha cidade, queria saber os preços dos

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terrenos, já que em minha cidade não há crematório, pois bem: até para virar comida de
vermes pagamos caro...
Obcecada pela morte, prevejo os movimentos que farei no tabuleiro da vida, aliás, a
minha é tão absurda que não encontrei o motivo das ligações, não é esperar pelo pior, e sim
aceitar a lei de todo ser vivo: eu não existia e logo não existirei, sobretudo na memória das
pessoas conhecidas ou que ouviram a meu respeito, porque elas também... essa cadeia durará
enquanto subsistir a espécie Homo sapiens, e as outras que talvez tenham guardadas imagens
na memória. Na realidade as civilizações vem e vão como se nunca houvessem existido por
completo, por isso há uma frase que define tão bem a existência: As pessoas são vultos de
ilusões entre a vida e a morte!, mas acho que nem ilusão sou.
O pequeno copo descartável próximo do muro dessa casa seria uma ilusão? Ainda tem
um pouco de café apesar de caído. Estranho encontrá-lo por aqui, já que não há escritórios
próximos, ah!, esqueci que são usados em salas de espera de vários estabelecimentos, não só
escritórios, as oniscientes formigas já circundam o líquido doce, deduzo pela quantidade que
atacou o copo, deixam seus hormônios em tudo que passam, é através dos rastos que encurtam
seus caminhos até a galeria onde se protegem das intempéries do tempo, grandes construções
para elas, feitas de terra, o interessante é que apesar de tantas galerias, tantos buracos
diminutos, quando chove a construção não desmorona e os pingos da chuva não perfuram a
camada exterior, mas a umidade penetra, porém o barro não fica pegajoso, as formigas devem
usar alguma substância para que a terra não amoleça.
Que lindo! Recomeçaram as aulas de música na escola de artes, ouço a música de um
violino perfurando o tempespaço e já imagino meu tímpano vibrando, quantos tons ouvimos e
não notamos a sensibilidade da audição! Se todos soubessem do complicado processo que
ocorre para a percepção... Fico abismada só com o funcionamento mecânico e hidráulico, o
dos neurônios responsáveis pela captação dos movimentos do líquido no interior da cóclea
deve ser mais complexo, o corpo humano é algo sensacional, se a célula, a menor parte do
conjunto possui vida e é fantástica, penso na complexidade do ácido desoxirribonucléico ou
D.N.A. que elas carregam, temos bilhões, trilhões delas.
O mais interessante é que posso gerar imagens de tudo em minha própria cabeça, mas
como a de um avião cabe em minha caixa craniana?
A imagem imaginada e a real são diferentes? Por exemplo: vejo um avião em uma
foto, e um real, posso tocá-los, mas não pego a imagem, seria ela uma camuflagem da
essência do material?
Toco em uma caneta ou na imagem dela? Sabendo que a imagem dos objetos só é

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vista por meio da luz, se me prendessem em uma sala escura com diversos objetos,
reconheceria todos eles? Presumo que não, porque não tendo a imagem na memória, jamais
saberia o que seriam, poderia até arriscar e propor a inexistência dos objetos, pois qual a
certeza dos nossos sentidos se não vemos os átomos, mas sabemos que tudo é composto por
eles? Podemos fazer a pessoa acreditar que aquilo existe, já que algumas têm propensão a
isso...
Onde fica a imagem de um objeto sem a luz? Vi o copinho de café no chão mas não
toquei nele, memorizei a aparição da imagem, quando fecho os olhos reproduzo-a junto com o
tempo e o espaço em movimento.
Só não consigo ver o que sinto, por exemplo: a dor, ou o amor. Não os vemos porque
a percepção de determinada situação é diferente, a recordação os incita, imagens de fatos e
atos do passado, interessante também é que imaginamos o futuro sem estar nele, criando
situações não realizadas, e se acontecerem não terei os mesmos sentimentos de hoje, por quê?
Porque o tempo age! O tempo criado em nossos pensamentos interfere nas nossas vidas, por
isso ainda não o controlamos.
Em situação análoga estão os pensamentos dos pensamentos, não os temos sob
controle porque são imagens geradas e guardadas pelo Eu. Estabelecer a relação do corpo com
os pensamentos e o Eu é o mais difícil dos problemas, não sei o processo de geração ou do
que são feitas as imagens pensadas. Acho tão divertido devanear sobre imagens...
Na calçada pisa em uma tampa de ferro redonda e provoca barulho, lê o nome de uma
companhia de eletricidade.
Deve haver milhares de tubos com fios e cabos por baixo destas tampas, no muro
desta casa uma placa com o aviso de não estacionar com o não quase apagado, no quintal há
uma arvore de Eriobotrya japonica, ou ameixa, da família das rosáceas, em uma das janelas da
casa um sapo de pelúcia dependurado na vidraça, incrível, depois que o vi pensei no ser
humano, o único animal bípede. Caminhando posso ir aonde quiser, desde que não seja além
dos meus limites, é tão simples e os outros animais não têm esse privilégio, inclusive algumas
pessoas, o mendigo Teseu.
Há dias que não saio de casa, por isso fico inspirada, com os carros, com as crianças
que saem da escola, com os ônibus lotados passando... Sou apenas mais uma delas sozinha no
mundo.
De ontem para hoje deixei escapar duas frases importantíssimas, antes de dormir
pensei nas pessoas que vi semana passada sorrindo dentro de uma loja, um sorriso falso igual
ao do garçom no restaurante, na calçada havia uma pessoa fantasiada de coelho que chamava

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a atenção dos pequenos, eles acreditavam que o personagem em questão era real, fato
semelhante é quando cremos em algo e não nos perguntamos o porquê ou para quê...
Não demorei para chegar ao parque com brinquedos rústicos e mal mantidos pelo
governo, artesãos montam seus expositores para começar a trabalhar, uma pequena
acompanhada da mãe brinca com uma boneca, mal sabe que no seu inconsciente quer
substituir a mãe e ter um bebê com o pai, por isso a boneca, quer mostrar ao pai que já sabe
ser responsável e cuidar de uma criança, tudo porque Electra não suportou a morte do pai, a
criança, um eterno polimorfo, tenho que ler isso, expositores montados, pessoas de todas as
idades param, observam a mercadoria e se vão, passam em frente àquela sala comercial,
comércio formal e informal lado a lado, vejo através da vitrinas que há homens e mulheres
pintando as paredes, uniformes branquíssimos iguais aos jalecos de cirurgiões, brancos
porque outra cor não definiria caso a roupa estivesse suja, e talvez para que o sangue pareça
mais contrastante, estripadores que transferiram seu desejo inconsciente de cortar pessoas e
ver sangue alheio em prol de salvar vidas, diferente dos que não superaram o problema e se
tornaram aberrações para o sistema, eu nunca vesti um jaleco, a professora que agora leva
uma classe de primário para brincar no parque usa, ordena todos em fila até os brinquedos, a
agitação entre eles é grande, depois que começam a brincar um menino fica detrás das
balanças só quando as meninas de saias vão, vou passar por ali para saber o que ele faz, mas
que safado! Está olhando as calcinhas das meninas, mas nessa idade?! Não deve ter mais de
nove anos, vendo essas crianças eu lembro de um fato que aconteceu comigo no jardim em
um desses aparelhos, a gangorra, não me segurei firme o bastante e quando a outra criança
mais pesada desceu eu bati com o rosto na ferragem, depois disso não me aventurei mais no
folguedo, cada estímulo visual desse me remete à infância, aliás, tenho todas as idades dentro
de mim, as lembranças idem, apesar de querer apagar meu passado pessoal não consigo, pois
foi através de experiências próprias que penso e vivo no presente, o presente é uma passagem
do tempo para o futuro que não percebemos, mas não quero pensar no tempo, é um fenômeno
muito complexo e não sei se existe, esse prédio ao lado da praça deve ser do século XIX.
Ela ronda a construção e descobre que é uma joalheria.
Minerais lapidados que superam o tempo, e quantas vidas no passado não foram
mortas por esses metais raros? Hoje se matam por meros papéis, a aflição aumenta quando
não conseguem para o próprio sustento e certos indivíduos que não aguentam a carga
psicológica matam outros, o todo reprime o uno, este se sente culpado e sai à caça, não é
preciso dizer mais nada, penso que falo com alguém, falar, ação tão importante para o
relacionamento e exposição de idéias entre os sujeitos conversando de cócoras debaixo

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daquela árvore, o que se abaixou ficou no mesmo nível do outro, uma forma de demonstrar
seu interesse e igualdade, um deles abre a mochila e retira discos de vinil, diz que irá vendê-
los para o proprietário de um sebo, esse tipo de comércio está abarrotado de passado, no
domingo pretendo ir a um deles. Por hora ficamos apenas com o nome da famigerada: Nicole.
No extremo da praça ela está prestes a encontrar:

Os Três Mosqueteiros (Amigos)

Fred e eu permanecemos calados enquanto James aperta uma folha seca, Fred absorto
observa a H2O que jorra do pequeno chafariz.
Antes de sair de casa pensava sobre o que sinto por certas pessoas e aumenta ou
diminui conforme o dia, talvez porque me sinta desconfiado, mas desconfiado por que ou para
quê? Eu estava terminando o café quando de repente ela apareceu na porta da cozinha.
Pena ele não ser Hefesto, que forjava as jóias mais belas para sua Afrodite com o fogo
do monte Olimpo, mas sua atenção já basta.
- Hoje vou às compras querido.
- Tudo bem, vou à praça me encontrar com Fred e James.
- Então resolveu sair?
- Sim, a que horas você quer que eu a busque?
- Antes das doze horas.
- Tudo bem...
Agora volto a me perguntar o que significa desconfiança, faz tempo que não leio mais
o dicionário, perdia horas procurando o significado das palavras nos vários que tinha, e ainda
os tenho, mas voltando à sensação, não consigo definí-la, igual ver alguém regurgitando,
sentimos nojo daquilo, porque quando o instinto é provocado age em instantes sem
percebermos, depois desaparece. Ontem pensei ser motivo de escárnio pelo casal que passou
por mim quando estava voltando da loja. Tive a mesma impressão quando os dois jovens que
conversavam em uma mesa próxima à nossa olharam para mim e riram, por que eu não sei,
estavam longe para eu captar qualquer movimentação dos sons, só ouvia palavras soltas ao
vento, pensei em conspiração, mas já se foram, e sei que frequentam esta praça a algum
tempo.
James, você acha que tenho problemas de adaptação social? Os dois olham para mim
de maneira jocosa e Fred:

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Você quer minha opinião? Opiniões são irrelevantes quando o receptor não aceita, na
minha você está ficando louco! Logo começam a rir em baríltono, as outras pessoas escutam,
perscrutam, mas não se importam.
James pega o isqueiro:
- Acenda Fred, e aponta para a pilha de folhas esmiuçadas sobre o banco, o crepitar é
abafado pelo barulho dos veículos e pessoas, mas me concentro e percebo que ali há a música
da natureza se transformando, assistimos a combustão calados até a última folha virar cinzas,
penso em milhares de coisas: atos, sentimentos, comportamentos, quase ao mesmo tempo, e
de um salto repentino, imitando um bobo da corte Fred inquire:
Vamos abrir o vinho?
- Isso! Retruco de modo abrupto.
Os copos brancos formam um contraste alucinante com o roxo da bebida, à medida
que a despejamos girondula formando um redemoinho, sai com velocidade razoável do
gargalo e vai direto da borda para o centro do recipiente, às vezes a velocidade e a quantidade
são tantas que chega a transbordar. Nossos cálices sagrados de plástico.
Gostaria de informar aos senhores que esse é um dos melhores momentos do dia,
quando venho.
- Seja mais formal, por favor. James satiriza.
Falo do fundo do coração. A seguir coloco as mãos sobre o peito.
- Entendemos caro Encólpio.
Então você leu Fred? Pergunto um tanto surpreso.
- Sim, mas é muita pederastia para meu refinado gosto.
Caímos na gargalhada e James:
- Não comece a ler essas coisas que ele indica senão... De certo foi Petrônio.
Trouxe? Fred pergunta a James, este retira uma caixa pequena do bolso e o maço de
cartas da caixa. No começo eu achava os desenhos das cartas toscos, mas me adaptei.
Melhor de três? Pergunta James embaralhando-as com exímia presteza, - como
quiseres - replicamos, é difícil jogar contra ele porque sabe quando a pessoa mente pelo
titubear da voz, portanto falo com convicção e venço, mas com Fred o jogo se complica...
explico o porquê: ele analisa a pessoa pelos movimentos que executa e descobre quais as
intenções e os mecanismos psicológicos usados em situações cotidianas, isso depois de um
tempo de convivência esporádica com o analisado... Infelizmente para ele eu perco.
Ele está me ensinando a interpretar a linguagem do corpo, uma das premissas básicas é
a prática da observação, pratico nos intervalos do trabalho, mas cada sujeito é único, não

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entendi o método da precisão de Fred, enquanto penso sobre, o duelo de titãs não cessa e
parece que James está levando a melhor, eu ganharia se não vacilasse com o dois de ouro
deixando-o para a segunda rodada, tenho certeza que o infeliz me tapeou, mas é apenas um
amistoso, se bem que as trocas de provocações entre ambos parece mais acirrada já que James
está em vantagem de nove para seis.
Passei bons momentos com essas famigeradas criaturas, lembro do dia em que
decidimos ir à praia.
Combinamos com um dia de antecedência para nos encontramos nesta praça, Fred foi
o primeiro a chegar porque James passou em minha casa antes, tive uma surpresa quando vi
ele junto à namorada que também queria ir, olhava para mim procurando um apoio para fazê-
la desistir, conseguimos depois de várias tentativas, depois de tudo resolvido viemos para cá,
Fred estava impaciente e com razão porque a partir daquele encontro faríamos um pacto para
nunca perdermos contato. Mal sabíamos que teríamos uma das experiências mais marcantes
de nossas vidas.
Pergunto a Fred quantos anos tínhamos quando aconteceu "o episódio da praia".
- A média era de dezoito, mas faz tanto tempo que não tenho certeza.
Fomos até uma rodovia atrás de carona, James estava empolgado e não parava de falar
que não voltaria para casa enquanto não pegássemos, demorou e quando estávamos quase
desisitindo da idéia um carro parou no acostamento e uma mulher simpática nos chamou,
perguntou aonde iríamos, respondemos que para uma praia próxima. Disse que também
estava indo para o mesmo local visitar sua filha, pediu para entrarmos, em seguida disse que
se chamava Laís e perguntou nossos nomes.
Conversamos durante a viagem inteira, eram mais ou menos cento e oitenta
quilômetros de distância, Laís não gostava de viajar sozinha, então oferecia carona e fazia
amizades, questionou onde ficaríamos hospedados, replicamos que não tínhamos idéia e que
não havíamos planejado nada, afinal era apenas um fim de semana, ela animada disse que
costumava fazer o mesmo quando jovem.
Chegando na região central ela nos convidou para visitarmos a casa da sua filha e nos
deu o endereço, mas esqueceu de falar o nome da prole, agradecemos e seguimos à procura de
um hotel, James já conhecia a cidade e não demoramos para achar um que não ultrapassava
nossas rendas, já que não eram demasiadas para nos hospedarmos em um cinco estrelas...
ficamos em um de quinta categoria, ao menos tinha cinco no nome. Logo que pagamos a
estadia e subimos para o quarto começou a trovejar, mas não nos preocupamos porque era
chuva de verão, enquanto não passava ficamos jogando e bebendo, as horas passaram e a

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chuva não, dormimos.
No sábado de manhã o sol brilhava com uma intensidade avassaladora, sem contar o
calor ótimo, fomos para a praia tomar banho, as ondas, a maresia, a água salgada, tudo estava
perfeito e naquele horário havia uma grande quantidade de banhistas.
Os guarda-sóis coloridos cobriam a orla e disputavam espaço na areia tépida e fofa, as
crianças sem noção de arquitetura faziam castelos toscos, ou cavavam até encontrar água, os
salva-vidas sempre atentos em seus postos estratégicos, as ondas irascíveis batiam em um
conjunto de pedras próximo. E ao longe, quase imperceptível, uma ilha se erguia intrépida e
solitária em meio a vastidão do mar afoito.
James entusiasta alugou uma prancha e se aventurou a surfar, não ficava dez segundos
sobre, eu fiquei com a barriga doída de tanto rir quando Fred quase foi atingido por ele, vimos
que aquilo estava ficando perigoso para nós e convencemos James a devolvê-la, tivemos bons
motivos para rir enquanto voltávamos com o sol a pino. Paramos em uma lanchonete à beira
da praia com um sistema de som péssimo, parecia uma rádio fora da estação, escolhemos as
cadeiras e mesas amarelas que pareciam reluzir, não lembro que lanche pedimos, mas
tomamos muita cerveja para saciarmos a sede. Em um muro ao lado havia uma tentativa
fracassada de haicai anônimo:
Começa a chuva fina
deixo pegadas
no chão da esquina.
À tarde ocorreu um fato curioso, fomos a um boteco jogar sinuca e James viu uma
jovem sozinha em uma mesa, perguntou se ela sabia jogar e com a afirmativa convidou-a para
completarmos as duplas, chamava-se Ana Lúcia e no decorrer do jogo surpreendeu-nos
porque jogava melhor que nós três juntos, ganhou o jogo para James, já que era a primeira vez
que nos aventurávamos em uma mesa de sinuca, além dos reflexos atrasados por conta das
bebidas. Aquela tarde ficou divertidíssima com a companhia daquela jovem que mais tarde
nos convidou para irmos à festa que aconteceria em sua casa. Passou-nos o endereço e se
despediu, percebemos que aquele endereço nos era familiar, mas não lembrávamos de onde.
Não tivemos dificuldade em achar a casa por dois motivos: estava situada em uma rua
principal, e a agitação era enorme. Avistou-nos da porta principal abarrotada, e nos levou para
um amplo quintal com piscina na parte de trás da casa onde a maioria dos presentes se divertia
com o som e as bebidas, em uma parte mais afastada assavam carnes, mas o cidadão que
cuidava do churrasco não parecia tão sóbrio, pois estava próximo à barmaid. Ana queria que
ficássemos à vontade, solicitou a barmaid para preparar o que quiséssemos, a moça nos

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prometeu uma bebida especial, depois que descobrimos a mina não arredamos dali, éramos
garimpeiros descobrindo novas preciosidades, também servimos de cobaias segundo ela, mas
queríamos festa, bebidas, som, e tudo estava ali. De repente o pessoal começou a pular na
piscina, e a festa estava só começando...
Fred foi ao banheiro e voltou embaraçado, insitia que tinha visto Laís, caçoamos da
sua sobriedade, mas nos enganamos quando Laís nos pegou desprevenidos e nos deu um
grande susto abrindo um sorriso magnífico em seguida, o receio de Fred foi confirmado.
Vejo que encontraram a casa.
- Jamais imaginaríamos que a encontraríamos aqui, disse James.
Ana Lúcia apareceu e a abraçou.
- Tomem cuidado com essa bagunceira.
- Já os conhecia.
Ana Lúcia dirigiu um olhar indagativo para Laís...
- Ofereci carona para eles.
Ah então foram estes três? Mamãe disse que vocês foram muito simpáticos.
- Obrigado - disse Fred - mas não tínhamos noção de que vocês eram familiares.
Por que, perderam o endereço? Perguntou Laís.
- Não - respondeu James - mas não queríamos incomodá-la, você disse que vinha para
cá desfrutar de momentos de paz, e nós queríamos festa, mas vejo que...
- Ontem você não disse que ela - apontando para a filha - chamava-se Ana Lúcia,
complementei.
- Mas agora sabem quem somos e estão em casa, tratem de aproveitar! Vocês não
imaginam o quanto gostamos disso, disseram as duas alegres.
Aos poucos fomos conhecendo os convidados, mas o movimento era constante, alguns
não permaneciam alegando que iriam para outros lugares, e a festa prometia varar a noite.
Próximo a uma hora da manhã resolvemos ir para o hotel, nos despedimos dos recém
conhecidos e das anfitriãs. No caminho ouvíamos fogos de artifício esporádicos, nos
empolgamos com as comerações de fim de ano e resolvemos entrar na água com roupas, eu
saí correndo na frente, mas James precavido ironizou que não podíamos molhar nossos
valiosos pertences em hipótese alguma, Fred nos esperou na areia e o esquecemos, quando
percebemos não estava lá, de repente surgiu de um mergulho e imitou uma foca, perguntei
onde estavam nossos valiosos bens, respondeu que havia os escondido na areia, já que
ninguém passava por ali ficamos um bom tempo.
Era noite de lua cheia e a cor argêntea refletida sobre as águas tornava-se o espelho de

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Ártemis. Quando estamos no local e na hora certa a natureza nos surpreende com sua infinita
beleza. A luz natural nos incentivou a correr pelados pela praia, mas não fomos muito longe,
próximos de umas pedras James em riste insistiu com Fred e fez dele seu Gitão, não
estávamos em Roma, mas a cena foi digna do império de Calígula, aliás, a decadência
começou com a promiscuidade, seguida dos problemas internos, os bárbaros só ajudaram.
Afastei-me e comtemplei a praia do alto das rochas, não havia um ser vivo no raio de uns dois
quilômetros, o ar salgado entrava pelas minhas narinas e inflava meus pulmões ávidos pelo
cheiro daquele instante.
O atendente do hotel cochilava quando chegamos, um velhinho carrancudo à primeira
impressão, mas conversando com ele descobrimos uma amabilidade maravilhosa para com os
hóspedes.
- Se eu fosse o proprietário desse hotel mudaria tudo! Empolgava-se enumerando as
mudaças...
Olhou de viés para nós, piscou e voltou a dormir, sequer notou o rasto de água que
deixamos no saguão e nas escadas, fomos direto para o banho, o calor exacerbado obrigou-
nos a dormir com as janelas abertas, o único problema foi os mosquitos desferindo
aguilhoadas a torto e a direito e seus irritantes zunidos.
Éramos infatigáveis, acordamos cedo no domingo com várias marcas de picadas
espalhadas pelo corpo nas áreas que ficaram desprotegidas, os insetos tiveram um belo jantar,
ríamos uns dos outros enquanto nos aprontávamos para irmos ao supermercado comprar
comida, nosso hotel de menos cinco estrelas não oferecia café da manhã, na verdade aquilo
era mais um motivo para comprarmos uma boa bebida do que para comermos.
Desfilávamos alterados no supermercado quando nos deparamos com Ana Lúcia
sorridente, ainda não havia dormido, e eu não pude conter o comentário de que ela tinha mais
energia que nós três, agradeceu-me com olhares estranhos, com as bebidas em mãos fomos
até uma panificadora e o resultado não poderia ser melhor: pães de queijo com vinho, café dos
deuses. Aprenderia da pior maneira que essa mistura seria desfavorável a meu organismo.
Depois que Ana convidou-nos para almoçarmos em sua casa aceitamos, já que o hotel
também não oferecia... separamo-nos, e eu tive um princípio de desinteria, logo controlado
por remédios que não necessitavam de prescrição médica.
Pegamos nossos pertences, pagamos a conta e assim que chegamos para o almoço Ana
perguntou-nos se queríamos voltar de carona com a sua mãe, nos fizemos de rogados. A mesa
estava repleta de frutos do mar, Laís havia preparado tudo desde os detalhes nos pratos
principais até a disposição dos talheres, com um erro: exagerou na quantidade de alimento, se

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não fosse por nossa fome... Servi-me de crustáceos, em seguida ostras, podíamos escolher
entre as cruas e as cozidas, as primeiras remeteram-me de imediato à outra coisa, degustei-as
com voracidade... as segundas descartei porque não ficavam tão boas com limão.
Ana foi tão agradável conosco que logo os dois iagos me alertaram do interesse dela
por mim, não havia percebido, à hora da cesta a convidei para caminharmos pela praia, no
meio de um assunto banal olhou para mim e perguntou o que eu estava esperando, depois da
interrogação ficamos um bom tempo abraçados e nos beijando, o calor do sol parecia fundir
nossos lábios e a água nos pés causava arrepios, estimulados, voltamos para a casa dela
possuídos de amores, extravasados em momentos fantásticos de prazer.
Enquanto isso os dois mosqueteiros entravam em um lugar desconhecido, ficaram
desconfiados quando viram várias pessoas nuas, sem querer descobriram uma praia de
nudismo, trataram de tirar a roupa o mais rápido possível para desfrutar das beldades
femininas que lá estavam, apesar do episódio ocorrido na noite anterior, James tinha
namorada e Fred preferia mulheres, apenas não tinham preconceitos quando queriam
satisfazer seus desejos.
Apareceram quando começou a anoitecer, a mãe de Ana também não ficou em casa,
mais tarde todos surgiram ao mesmo tempo, Fred relatou o fato conveniente e Laís contou-nos
que foi assídua frequentadora daquela praia depois que o pai de Ana morreu, não se importava
em falar dele, nós três não fizemos questão de continuar o assunto, de repente todos olharam
para mim e Ana abraçados e James comentou: Vejo que em uma tarde pode acontecer vários
fatos convenientes, e todos riram, a de Laís não tinha sido tão emocionante, mas valeu bons
momentos de conversa ao encontrar uma amiga do passado.
Antes de partirmos eu e Ana trocamos telefones, todos se despediram dela, Laís nos
trouxe até a praça porque pedimos, apesar da insistência de nos levar até em casa. Ainda não
eram vinte e duas horas quando chegamos, mas ficamos comentando sobre as inúmeras
situações em menos de três dias, e foram tantas possibilidades que não hesitamos em aceitá-
las, que fizeram daquele fim de semana inesquecível.
Hoje nos encontramos na mesma mesa, os dois me tiram do transe de lembranças: Ei!
Você estava compenetrado durante dois jogos e não percebeu - disse Fred - James engatou
uma pergunta: Esqueceu de buscá-la?
Desesperado olho para o relógio e coloco as mãos na cabeça... Era para estar lá há
vinte minutos!
- Se quiser ir mais rápido pegue o meu carro, ironiza James.
- Não esqueça que logo a sua está ligando, rebato trocista.

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Sorte que hoje as ruas estão calmas e sem engarrafamentos, esqueci de Ana Lúcia,
pensando bem se ela quisesse já teria me ligado, as mulheres quando vão às compras
esquecem de tudo... Deveria ter deixado o carro com ela assim não me precupava tanto.
Não a vejo no local combinado, será que vou ter de entrar neste antro capitalista? Ana
sabe que odeio isso, mas faz para me provocar e eu adoro, procuro-a nas lojas que costuma ir,
mas nada, onde se meteu essa mulher? Vou esperar lá fora, de repente na esquina de uma loja
nos encontramos:
O que você está fazendo aqui? Pergunta-me surpresa.
- Estava procurando você.
- Não se preocupe, mas já que está aqui... Ainda temos mais duas lojas em vista.
Provoca ela, Margô sua amiga não diz nada, já me conhece, nos cumprimentamos com beijos
e abraços.
- Bom, pensei que estava atrasado, Fred e James até riram da situação.
- Você e suas preocupações - diz ela rindo. Margô vai nos fazer uma visita hoje
querido.
- De novo?
- Ai Ale! você não perde esse senso de humor hein - fala Margô - Fred nem imagina
que estou aqui.
- Então vamos passar na praça para pegá-lo, James nos avisou que vai à casa dos
sogros.
Quando chegamos Fred abre um largo sorriso para Margô:
- Devia ter desconfiado que estavam juntas, por que você sempre sai sem avisar?
- Porque hoje era dia de compras.
James sarcástico:
- Haja Dinheiro! Provocando-as - já vou indo.
- Boa sorte, as duas se vingando.
- Vamos, digo.
A caminho do carro uma jovem de vestido passa por nós perscrutando Fred.
Na mesma praça, obervando de longe também estava...

O Meditador (Revoltado)

Sentado, cabisbaixo passava a mão no queixo. Olhava para os lados sem fixar o olhar,

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a gritaria dos pequenos no parque e as pessoas passando não o incomodavam, apesar da
sociopatia latente. Rodeado de pessoas felizes, sentia-se sozinho e triste, parou para ver as
crianças brincando, assim se distraía, mas a tática não estava dando certo. Pensou em levantar
de repente e dar um grito para mostrar que havia algo de errado.
Mas isso pode assustar os pequenos e não surtir o efeito de uma catarse, esse é o
problema: policio-me usando a psicologia e penso tanto nos efeitos que um simples berro
pode acarretar que não o faço. Imaginação fértil a minha, ou posso estar certo e o berro
poderia assustar uma criança daquelas e talvez traumatizá-la, então o grito de emoção fica
contido no tórax, não em forma poética, mas científica mesmo, pois através dos pulmões e do
sistema respiratório é que minha voz surge, sem ar não existiria voz, claro, descartando as
pessoas que possuem deficiência auditiva ou fonética, essas são especiais, expressam-se com
a beleza dos gestos, suas mãos pairam no ar, revoluteiam, são verdadeiros maestros da voz
sem som, emociono-me ao imaginar mãos dançando.
Adora ver mímicos, as mãos com luvas brancas frenéticas fazendo todo tipo de
movimento é mágico, quando vê um desses artistas na rua faz questão de tirar algum dinheiro
dos bolsos e depositar na cesta ou no chapéu do artista incentivando-o, quando sabe de
espetáculos em treatros, centros culturais, etc., na cidade, vai e fica até o final.
Já que a manhã está medíore, vou ficar aqui, depois decido o que faço, estou saturado
de atividades por hoje...
Ontem vi uma cena comum para as pessoas, mas que tocou meu âmago... um homem
revirava o lixo de uma casa, pensei no momento: o ser humano chegou a um ponto tão
animalesco que pode ser comparado a um cachorro, não no sentido depreciativo do animal,
mas é ilógico o único ser pensante chegar a isso pela causalidade de um sistema criado por
ele.
Será que o ser humano está tão corrompido e podre a ponto de se importar só consigo?
Sei que chegará a um grau tão exacerbado de indiferença que morrerá sufocado pelo seu
egoísmo, não serão necessárias catástrofes naturais. Aniquilar-se-á, é uma pena, mas são
escolhas que está fazendo sem pensar nas consequências. O menino que o ajudava com um
saco cheio de latinhas amassadas sobre seu carrinho divertia-se com toda aquela miséria
depois que achou um telefone, fingia que ligava para sua mamãe pedindo chocolates e balas...
quando ainda não temos noção do mundo que nos cerca somos privilegiados, mas depois que
a realidade cai como uma pedra em nossas cabeças, aprendemos que a vida para algumas
pessoas é feita de desgraças.
Para chegar a essa conclusão desconsiderei a hipótese de que os dois revirando o lixo

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tinham escolhido ou optado aquele modo de vida, mas com certeza aquilo era a mais pura
necessidade de sobrevivência.
Senti-me triste, mas cenas iguais aquela se tornaram tão normais que já estou quase
imune e o nome dessa doença é indiferença! São essas situações que me decepcionam de
maneira gradativa. É uma realidade que muitos não desejam ou nunca viram... Nas épocas de
festas isso fica latente, as pessoas ficam mais eufóricas, mas depois dos momentos de ilusão
voltam para suas casas e para os seus trabalhos como se nada tivesse acontecido, são frutos do
conformismo acomodado, iludem-se tão fácil que às vezes penso se se perguntam.
Por que se preocupam com coisas supérfluas e, às vezes, não percebem que os
problemas da humanidade estão nelas, nas suas atitudes, nos seus gestos, no seu cotidiano, no
seu modo de ser e ver o mundo?... sim, porque vemos o mundo segundo nossas vontades e
não focamos nossos desejos ao outro, primeiro nós, depois eles, admito que sou assim.
Mais egoísta, a pessoa se fecha em seu próprio casulo de desespero, pois tem tudo,
mas não tem a si, isso justifica a busca insana pelos bens materiais, preenchendo de
futilidades o seu Eu desconhecido.
É difícil comentar sobre isso, pois hoje em dia as que não se conhecem sequer trocam
olhares na rua, o ser humano está perdendo sua humanidade, se é que já não a perdeu com o
individualismo, o que fizeram? Substituiram a palavra, mas palavras são substituíveis, o ser
humano não.
Disseram-me que sempre fui meio doente, mas há algum tempo acho que minha
loucura está ficando evidente, tenho de parar com essa mania de dizer que o mundo não
presta, que as pessoas não matam por prazer, que enquanto alguns festejam, outros morrem de
fome, que não roubam, mutilam, fazem guerras por motivos insanos, etc. tenho que parar de
pensar nisso, porque não fazem, todos vivemos em um mundo feliz, não precisamos lembrar
de crianças desnutridas enquanto comemos, pois elas não existem no nosso mundo, então por
que não esquecer tudo isso e me preocupar em qual shopping vou hoje e no que vou comprar
para burlar esse meu vazio e absurdo existencial? Tenho que me envolver com algo e
esquecer que há milhões de pessoas morto-vivas.
Ouço o barulho de portas batendo quando tenho esses questionamentos, batidas em
meus pensamentos que preenchem o vácuo do silêncio, por que as pessoas são insatisfeitas
consigo mesmas?
Elas são iguais em todas as épocas apesar dos avanços tecnológicos, sociais, etc.,
porque não há uma pessoa que não sinta amor, tristeza, alegria, a não ser alguém em coma,
mas não deixará de ser humano, fragilizado pelo tempo, pela vida que escapa entre os dedos e

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se esvai no passado e no presente, porque somos iguais no ponto de vista da vida. Queria
aceitar as coisas sem questionar mas não consigo... Ostentam ao outro que têm mais,
julgando isso mais importante que a vida? Só temos uma! De outras não posso comentar
poque nunca as tive ou vivi, por isso me agarro à importância desta, do que sou, do que
preciso e do que não preciso....
É tão básico e simples que se torna ridículo preocupar-se com as inutilidades que o
mundo, o sistema nos oferece, são maneiras tolas de aplacarmos nossos desejos individuais,
tão tolas... mas a maioria das pessoas não vê, porque só pensam em sua satisfação pessoal, no
seu status, em sua arrogância, na inveja, nunca vi alguém sentir inveja de mendigos, não
quero generalizar a situação, mas mesmo na condição de não possuir bens o mendigo possui o
mais precioso, a vida! Por mais desgraçada que seja ele não a abandona, prefere sofrer todas
as mazelas e desgostos para ao menos dizer com orgulho: Eu vivi! Mas as pessoas não se
importam com isso, querem conquistar seu espaço e esquecem que estão no mesmo planeta, e
dessa nau ninguém sai vivo. Seus olhos estão cobertos pelo véu de Maia, só vêem o mundo de
suas vontades irracionais e das suas representações.
É incoerente como a risada agonizada de um doente mental preso a uma camisa de
força, a analogia pode ser usada: a humanidade é a loucura e a camisa o mundo, estão presos,
porém o mundo se auto sustenta com a natureza, mas o ser humano pode se extinguir, e do
modo que está agindo com ela, acabará rasgando a camisa se não tratar de aprender mais com
a simplicidade da natureza e da sua existência, uma das mais apaixonantes experiências
depois que crescemos, de aparecer do que antes era nada, a vida, aparece do nada e
desaparece no nada! Mas para quem a experimentou, com suas angústias, provocações,
momentos fugazes de alegrias, fica a memória no passado do segredo, da força que representa
ante o nada, desafiando-o, mesmo com uma grande desvantagem nos débeis momentos, mas
não perde a oportunidade de aparecer de repente, um vulto que adentra a uma casa em uma
noite chuvosa com sua capa molhada pelas lágrimas do tempo, chorando a agonia do espaço
que a tudo abarca, penetra, mas nunca é visto. Porque ele é o vazio, é nele que a graciosidade
da vida se prolifera nas vastas plantações de flores, belas e simples apegam-se à vida como os
seres humanos.
Mas eles, com sua arrogância não prestam mais atenção à simplicidade que justifica o
prazer de estar aqui, de perceber o mundo em todos os seus detalhes. Seus déficts intelectuais
atingiram os cumes da loucura e se entrelaçaram com a vaidade, viraram acéfalos
preocupados com a aparência, só não posso dizer que são fúteis, vazios, porque os julgaria
sem os conhecer, mas quem me impede de pensar? Ninguém, pois todos dessa estirpe se auto

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sabotam porque têm vergonha de falar o que sentem, guardam ressentimentos, angústias...
tudo vai se moldando no passado sem importância desses indivíduos, que vão e vêm aos
milhares sem sentido, porque mesmo pensando são animais, atordoados, querendo dar um
sentido a sua existência, a esperança de que a espécie continue sua absurda jornada para lugar
nem um é a única força que os move.
Não costumo sair de casa porque tenho que superar esse complexo de perseguição e o
sério problema de misantropia, andar pelas ruas desconfiando das pessoas desconhecidas é
preconceito da minha parte, esses acessos de sociopatia começaram quando percebi que a
sociedade perfeita pode existir se o ser humano mudar. Mas se todos estão felizes assim por
que mudar, não é mesmo?
Estamos em uma linda terra encantada, morando em confortáveis arranha-céus,
dirigindo caríssimas caixas de lata com rodas enquanto formiguinhas sustentam tudo, falava a
fada de asas amarelas com sapatinhos de cristal, ria dos pés descalços das operárias andando
lá embaixo, nas ruas, lutando pelo instinto de sobrevivência... aqui em cima comemos geléia
real e desfrutamos a vida! Jamais elas poderiam fazer isso com seus modos grosseiros e mal
educados.
Elogiava a situação das formiguinhas que aos domingos vestiam-se com suas
melhores roupas, perfumavam-se e passeavam com suas famílias nos shoppings, iam às
praças com os filhos, e eram felizes com sua patética e alienada vidinha em sociedade,
iludidas em seu mundo de massificação estética padronizada e consumista, sob a ótica
narcisista fingiam trocar quem eram para se tornar o que tinham, que não era muito. Com a
situação das formiguinhas sob controle não nos importamos se existem milhares delas
infelizes ou sofrendo, porque nossa linda sociedade elitizada passeia com ares de arrogância,
vibrava a fadinha dando voltas no ar, fingimos não nos importar com os outros da nossa casta
mas isso é inevitável, também é importante citar o senso de proteção que os bonecos de farda
oferecem fuçando em nossos cangotes e obedecendo às nossas ordens, não é de hoje que eles
são os nossos cães de guarda. Nosso único defeito é que somos lindos por fora, mas podres
por dentro, lamentava.
Mas logo se animava! O mais importante elas não têm e não são incentivadas: a pensar
e adquirir conhecimento, é isso que nos mantêm no topo da cadeia social. Reproduzem-se aos
montes, assim temos um meio de produção e uma geração de renda infinitas, só temos que
evitar que se matem ou se revoltem, para isso usamos estratagemas simples, o jugo do medo e
das leis, já que estas facilitam o funcionameto da nossa engrenagem, a burocracia, e as
impede de obter seus direitos, pois somos nós que os estipulamos, assim suas mentes ficam

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limitadas e condicionadas desde que nascem. Sendo raros e únicos os casos em que uma delas
se revolta, esses focos logo são apagados porque estão dispersos. No passado uma dessas
formiguinhas quis colocar as operárias no nosso lugar, criou um sistema onde todos seriam
iguais e teriam de trabalhar, mas seu sistema foi usado de forma desvirtuada e matou muitas.
Acusava-nos de sanguessugas, mas eram elas que se submetiam ao trabalho, nunca fomos
oferecer-lhes coisa alguma.
A bandeira que levantavam era vermelha e inofensiva, ao menos conseguiram entrar
para a história. E nós? Continuamos a dominá-los e a gastar. Enquanto compro meus
sapatinhos de cristal e troco as minhas asinhas quando quero, elas trabalham metade de suas
vidas e não conseguem voar.
Nas minhas palavras eu prevejo o fatídico destino das formiguinhas: produzir para
servir à minha casta. Ousadia de minha parte? Desculpe-me.
Essa fadinha vive cortanto meus pensamentos com suas mágicas provocações desde
que a vi em um livro.
A primeira peça de teatro que fui também havia uma, antes vi a apresentação de um
grupo de mímicos, assisti às duas até o até o fim. As luzes se projetaram em direção à uma
atriz vestida de fada, ela sabia que também estava entre os atores da vida real, só que sua face
estava desguarnecida das máscaras hipócritas impostas pela sociedade, ironizava a moral e os
bons costumes. Gravei uma de suas frases: "Ainda não me tornei uma dessas vidas vazias
detrás de máscaras sociais bem sucedidas e influentes, porque cada vez mais pasmo com a
imbecilidade do ser humano no quesito de mostrar o supérfluo por puro prazer e idiotice de
dizer que aquilo lhe pertence..."
A peça chamava-se: Uma Tragicomédia da Realidade...
Ah! Realidade, essa palavra me atormenta com todas as suas possibilidades, situações,
sentimentos, tudo fica confuso e pesado. Foi em um leito de hospital esperando pelo
derradeiro momento que senti esse peso e pensei: se nessa guerra morremos com as armas em
mãos, resta jogá-las ao chão para nos livrar dos tormentos dos vultos do passado, porque não
há mais nada para nos iludir, as ilusões, parceiras dos inocentes alienados ao sistema mata-os
em gradativos e imperceptíveis segundos. Depois de tudo estou bem melhor, só notei a
importância da vida quando a estava perdendo, então cada segundo era um grito de vontade
da vida em querer pulsar no íntimo do meu ser condenado. Descobri naquele momento que na
vida existem milhares de possibilidades, aliadas à liberdade de traçarmos o caminho que
desejarmos. Tenho nada e ao mesmo tempo tudo na cabeça para começar as escolhas. Às
vezes faço-as de modo inconsciente.

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Semana passada na hora do intervalo do trabalho fui pagar uma conta, deduzi que seria
rápido e pagaria na primeira lotérica que entrasse, enganei-me, pois todas estavam abarrotadas
com filas até as portas, mas tinha até dia quinze desse mês para quitá-la, portanto não me
preocupei.
Ontem fui pagá-la e me ocorreu um fato um tanto inusitado. Pasmei com minha
atitude inconsciente, pois agi de forma consciente sem perceber que o subconsciente
comandava a situação.
Entrei na lotérica e fui à máquina de senhas, havia um homem na minha frente que a
olhava, presumi que não sabia operá-la, li rápido o que estava escrito do lado dos respectivos
botões e apertei o de Preferencial. Ali meu subconsciente começou a agir, já que não haviam
gestantes ou idosos entrando no estabelecimento, no entanto havia várias pessoas esperando,
olhei para a minha senha: mais uma vez sou resumido a um número, a fadinha voltou, pensei.
Observei os guichês e percebi que estava com a senha errada, mas já era tarde, pois o painel
indicava o número que estava comigo, quatrocentos e quarenta e nove, e em qual caixa eu
deveria ir.
Olhei para os lados e levantei, ninguém se manifestou, então me dirigi ao caixa com os
olhares confusos dos presentes, enquanto a atendente cobrava disse-me que o caixa era
exclusivo, no exato momento falei sem pensar:
- Eu não prestei atenção quando retirei a senha.
- Mas da próxima vez você já sabe que não deve.
- Tudo bem, respondi.
Recebi o troco e fui embora pensando: esse foi o pagamento mais rápido da história,
talvez da minha. Tudo porque agi sem pensar, mas querendo fazer aquilo, porque meu
subconsciente operou de maneira formidável. Na verdade foi um ato impulsivo, talvez melhor
que um planejado.
Neste lapso captei o absurdo, não sua essência, mas uma das suas facetas espalhadas
na nossa existência.
Em casa uma questão moral veio à tona: Foi errado ou certo o que fiz? A justificativa
para esse dilema foi a seguinte: apenas fui mais prático, já que só eu tive a idéia e os outros
preferiram esperar.
Hoje acordei com uma pergunta ressoando em minha mente: O que estou fazendo da
minha vida? Logo comecei a pensar nas possibilidades do que poderia acontecer e no
resultado das situações a que seria exposto, desde o olhar de uma pessoa, o atender a um
chamado de uma cabine telefônica, o tropeçar em uma escada, ou ficar preso entre as portas

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do metrô. Isso pode acontecer em apenas um dia de uma pessoa anônima, mas me parece que
nem uma delas se dá conta do que é um dia, um segundo de vida, porque depois que acontece
não há volta.
Fora isso o dia começou normal, acordei antes do relógio despertar, segundo meus
cálculos teria tempo para tomar banho e fazer a barba, ganhei quatro minutos em relação aos
outros dias, não pensei em nada enquanto tomava café, observava os delicados movimentos
da fumaça, quieto. Agora me encontro aqui pensando: minha vida ficou chata quando
descobri que o pensamento humano não é capaz de imaginar nada fora do espaço-tempo, a
partir desse momento criei uma tênue linha de vontade que me segura para não cair no abismo
do absurdo.
Quando saí de casa os meninos da minha rua jogavam bola e soltavam pipas, estão em
férias escolares, para eles a felicidade se resume àqueles simples instantes, os gritos, os
chutes, os sorrisos, as corridas, tudo fica impregnado de felicidade, algo tão singelo, brincar,
em todos os cantos, nos quintais, nas ruas, eles ainda não têm noção do jogo de trapaças da
vida.
Um jornaleiro passa...
Corte de cabelo estranho o dele, no dia em que fui à barbearia pensei no filme O
homem que não estava lá... Quando cheguei observei restos de cabelos, lâminas de barbear
quebradas ao meio, uma tesoura pequena e uma lixa de unhas grande sobre o balcão, as
paredes tinham fotos grandes de modelos com cortes variados ou talvez perucas. A porta ficou
fechada, estava calor mas não me preocupei, eu conseguia ver as pessoas que passavam na
rua. O barbeiro, um homem de meia idade tentou ser simpático, perguntou onde eu
trabalhava, falou sobre seus filhos, esses assuntos de pessoas comuns, mas eu não estava com
vontade de conversar. Notei sua insegurança quando o vi com as mãos trêmulas a cada zip-zip
da tesoura que não parava por um minuto. Pedi um tipo de corte e ele fez outro que me
desagradou, quase raspou minha cabeça, quando terminou o corte utilizou a navalha nas
costeletas e a descansou sobre o balcão, era um objeto bonito, dobrável, tinha um cabo de
madeira liso, marrom claro, passou um creme de cheiro estranho no meu cabelo e disse que
estava pronto, paguei e saí revoltado, nunca mais voltei, meses depois passei por lá e vi uma
placa de aluguel dependurada na porta. Vou ler um desses jornais sensacionalistas e
manipuladores.
Chama-o e escolhe um com a foto de um jovem em primeira página e a seguinte
legenda: Detido hoje pela manhã o jovem Gaius, acusado de cometer diversos delitos,
inclusive atos terroristas contra órgãos públicos atulhados.

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A veracidade das informações nunca é pesquisada, assim é fácil dominar os incautos
através de notícias...
Um exemplo prático: a mídia jornalística manipuladora; as pessoas crêem em tudo que
vêem nos jornais sem saber a veracidade da informação. Eu posso ter um jornal e colocar a
notícia de um acidente ocorrido em tal lugar, mas não se perguntarão se é verdade, é
irracional ter a capacidade de pensar, questionar, etc., sobre o que ocorre à sua volta de modo
geral, mas não procurar, é mais cômodo acreditar. Isso é o contrário de pensar sem arreios,
agora me pergunto: o que isso de pensamento livre muda na vida das pessoas? Não sou eu que
tenho de responder, afinal, são elas que têm de começar.
Na página seguinte: Encontrados vestígios de civilização perdida durante escavações.
O ser humano tenta conservar seus claudicantes e débeis anos de existência através de
ruínas do passado. Mas a terra segue seu curso indiferente a toda balbúrdia e mazelas, afinal
só restará... Vejamos a seção de concursos literários. Um texto sem parágrafos?
Re-fluxos Lisérgicos: Seres imaginários movem-se pelas fronteiras subindo e descendo
montanhas em ritmo frenético cometendo guerras e pilhagem, alguns cavalgam segurando
arcos e flechas embebidas em venenos artemísios, estes arqueiros mortais ficam
ensanguentados conforme avançam pelo terreno pantanoso dos mamutes extintos onde
habitantes de tribos pacíficas são decapitados por espadachins de pernas tortas envergadas
com reluzentes armaduras, os que se salvam são forçados a convergir para o terreno inóspito
onde habitam as criaturas carnívoras malfadadas a um temperamento hostil, são os besouros
de cabeças ciclópicas e asas maleáveis vindos de crateras lunares visíveis do planeta azul
perdido no escuro interestelar da galáxia, diferentes dos pêlos dos Cannis lupus lunares com
conteúdos subliminares. Brilhantes tropas de libélulas famintas degustam devagar
desconfiadas um veio de luz da floresta azul. As pretas lilases voam rumo à batalha contra
uma massa compacta de seres imaginários aliados a centauros. Porretes ensandecidos
entrechocam-se com escudos quebradiços de vidro cristalizado. As cabeças dos perdedores
são empaladas no mastro apocalíptico. Em outro mundo a beleza dos plânctons nos mares
gelados de uma terra fria é protegida pelos guerreiros do norte com armas forjadas em
incandescentes subterrâneos de minas. Machados voadores manchados de rubro caídos na
neve imaculada até o instante do encontro de massas corporais insanas em luta por territórios
vagos inférteis de vales ressecados pelos ventos gelados de árvores queimadas pelo frio
escaldante. Enquanto na Grécia berço da filosofia duendes pulam pelas catacumbas que
guardam restos corporais narcisistas. Eles têm pontiagudas orelhas e enfiam seus narizes pelas
fendas quentes dos buracos negros com pêlos das galáxias distantes do meridiano divisor de

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águas e terras vermelhas e amarelas onde se encontram e festejam a saída da floresta para o
descampado fazendo pilhérias dos brutos caçadores que não conseguiam matar irracionais por
prazer, inclusive javalis... Diferentes da raça de cavaleiros solitários que avança pelas águas
lamacentas portando machados afiadíssimos para talhar os ídolos da qual não lhes convém
adorar cortando os ideais-cabeças. Na guerra sem vítimas o bater dos corações deixa na
lembrança a destruição de uma barreira imposta por séculos. Embriagados no panteão dos
deuses os Helenos passam a esmagar no lagar da ira de fogo conforme o livro profético de
procedência duvidosa. Deuses inventados e considerados sérios segundo os olhos vendados e
vedados pela fé intensa dos homens-bomba e a falsa dos padrecos e pastores de bolsos cheios.
Os próprios seguidores confiam na mentira da crença que perdura por séculos pelo medo de
descobrir ou não querer a absurdidade e sem-sentido da existência. Agarram-se a malditos
ideais sem piedade dos joelhos dobrados sobre cascalhos para perdoar pecados jamais
existentes. Nas florestas profundas olhos branco-amarelados guardam cabeças perfuradas por
coroas de espinhos sujos de sangue azul enquanto insetos se debatem por um naco da carne
apodrecida dependurada em um madeiro no outro lado do mundo. As moscas sartreanas
fazem círculos convexos e lucífugos sobre um crânio de minotauro apodrecido abatido em
batalha. Na nossa sociedade diversos preconceitos religiosos e morais impedem de sermos os
antropófagos do passado onde os javalis do mato corriam com presas expostas em paz, então
o cidadão ficou louco e ensinou ao filho a soletrar a frase do javali separada em sílabas
altissonantes idênticas ao guincho, mas a criança cresceu e não escutou o doce som do piano
tocando nas estepes de pastos extensos no escuro das noites imensas e sofreu uma fratura por
falta de fatura ele precisou de uma transfusão, o sorriso sarcástico do doador infectado teve
maior valor do que o egoísmo escondido na compaixão falsa recalcada nas profundezas dos
mares do inconsciente, pois defendeu-se da Persona e sumiu com as criaturas voadoras
noturnas dando sorrisos amarelos e seguindo sempre os malditos padrões impostos da
sociedade repressora do afogado indivíduo desimportante para o coletivo igual as lembranças
familiares não associadas aos conteúdos de sonhos percebidos contra vontade e vice-versa do
rapaz que apontava para a manilha de três de ouro jogada no chão de barro amolecida pela
umidade não foram suprimidas. Subindo aquela encosta do morro com a visão turva teve
medo de desequilibrar o corpo e cair nas linhas apagadas de um caderno escolar feito de
folhas de leituras improdutivas, mas dentro de um caixão observou o absurdo dar sentido à
ação, porque a criatura da foice não cintilante fosca se foi porque repetiram sem parar os
números congruentes relacionados às xilogravuras épicas presas às lápides antigas de seres
extintos. Na parede do novo quarto daquela casa de um andar viu os olhos perfurados do filho

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que zombou do oráculo e matou seu pai rei de surpresa diferente dos habitantes estúpidos da
consumidolândia arrasada e queimada pelo ódio anti-capitalista. Eles não aprovam o canto das
sereias que a menina de nome Lia deitada no chão com medo de cair da cama enquanto tinha
sonhos de fumaça afogando vítimas com sorrisos pequenos dos eternos lutadores de letras e
palavras mexendo sua couraça carcomida e velha de retórica exagerada pelo vento que ondula
a água parada dos girinos cercados por névoas escuras projetadas por um prisma sombrio
manipulados pelos seres de luz vindos de afluentes transcendentais para impedir o barulhento
avanço dos seres imaginários que habitam seus pensamentos.
Ao final do texto uma pequena explicação sobre a narrativa adotada: Relatos oníricos.
Autor: Anônimo. Isso ganhou um concurso? Mas analisando... ficou claro nas
entrelinhas o pensamento do autor. Interessante, vou guardá-lo.
Dobrou-o, colocou em um dos bolsos da jaqueta e começou a obervar as crianças que
desciam nos escorregadores, brincavam na balança... lembrou da fuga do jardim de infância
pela última vez, dos pensamentos premeditados que teve antes do almoço porque a comida lhe
causava diarréia e as outras crianças sempre riam da sua situação.
Esperei a saída de todos da sala, inclusive a professora-madre que fechou a porta,
escondi-me atrás de uma mesa no fundo da sala e fiquei lá até não ouvir mais vozes, fui à
porta, abri e vi que a fila das crianças estava partindo, depois que não havia ninguém fui até o
portão aberto e vi algumas pessoas no ponto de ônibus, sabia que me impediriam se me
vissem saindo, voltei para a sala, e quando ouvi um ônibus freando sabia que estava livre, fui
até o portão e não havia mais ninguém no ponto, então foi fácil chegar em casa da minha tia,
eu havia gravado o caminho, lembro que cheguei chorando e dizia que jamais voltaria àquele
jardim, depois do acontecido as madres não me aceitaram mais, porque aquela tinha sido a
segunda vez, se não me engano... Orgulho-me até hoje da façanha pois foi uma fuga feita por
uma excepcional estrutura mental.
Então não precisei conviver com crianças e me acostumei aos adultos, gostava de
passar o dia todo brincando com meus avós. Lembro-me dos nossos sorrisos nas tardes de
sábado... Foram momentos tão importantes, agora falecidos não tenho a quem recorrer para
resgatar aqueles dias singelos, senão às minhas débeis lembranças em um banco de uma
praça.
Apesar de tudo... sou humanista.

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Aquele rapaz se parece com meu amigo que surrupiava cruzes nos cemitérios a noite.
Pensa Nicole a respeito de Fred. Disse-me que furtou uma do túmulo de uma criança, o objeto
chamou sua atenção porque era grande e reluzente, mas depois que a retirou e viu as datas de
nascimento e morte ficou pensando dois dias na cena, é excêntrico, andava pelos cemitérios
vendo datas e fotos das lápides, tinha várias cruzes e as usava de cabeça para baixo, falava
que era anticristo, mas não sabia que para ser contra algo tem que crer naquilo, não há nexo
ser contra o que não existe, uma vez fui com ele, e não senti repulsa quando o vi urinando
sobre uma cruz com a imagem de cristo, ria como um louco. Aquilo era resultado da
inconstância retroativa dos conteúdos psicológicos subjacentes recalcados, que submergiam
do inconsciente e causavam uma ruptura do ambiente paralelo que separava a realidade da
alucinação, ele sofreu alterações exteriores e estas vieram à tona conforme a situação
apresentada e embaraçosa em sua visão, havíamos tomado algumas garrafas de vinho, e com
aquele ato defendia-se de sua crença arraigada. Meses depois questionou-me: Quando o ser
humano se revoltará contra as suas próprias criações, os Deuses? Afirmando: Dêem as cordas
para os crentes, pois seus próprios deuses se enforcaram com as da inexistência!
O que Rodan tinha necessidade de demonstrar, na realidade era um subterfúgio que
seu inconsciente usava para recalcar a verdadeira fraqueza ou incapacidade de acobertar o
defeito, pois sua falta era sempre transferida para o oposto, por exemplo, a falta de crença
inconsciente é transferida à pessoa consciente de forma doentia e cega.
Depois de algum tempo eu soube que sua inteligência chegou a um ponto tão
exacerbado que acabou em uma clínica psiquiátrica escrevendo livros com uma linguagem tão
confusa e fora dos padrões que o apelidaram de Escritor do Caos.

Rodan (Louco)

Acordei com o eco de marteladas em uma manhã nublada, vinham de todos os lados,
não conseguia evitá-las, em seguida uma serra ligada partia meus pensamentos enquanto me
perguntava antes de escrever esta carta: por que escrevê-la? Para culpar alguém, ou para que a
tenham de recordação? Não! Um dos motivos de escrever é que descubro ou tiro conclusões a
respeito do meu Eu e do Eu das pessoas, por mais patético e banal que seja o conteúdo do
assunto. Tento me agarrar ao mundo fazendo as coisas por fazer, acho que esse é um dos
únicos motivos que me prendem na fina teia da vida. Não culparei ninguém por odiar a

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existência, apenas cometerei o ato porque me desvencilhei dos grilhões de toda hipocrisia
reinante, a moral, a religiosa, a social, e assim vai... Se fosse descrever todos os tipos de
hipocrisia não teria tempo de cometer suicídio: Morreria antes! Aliás, eu também fui hipócrita
em certos momentos de minha vida, muitas vezes não disse o que sentia para agradar os
outros e coisas do gênero. Tudo pelos decoros sociais.
Se fosse provar que o suicídio é um ato de covardia ou coragem para um ser humano
que está com uma arma apontada para a cabeça, apenas daria as costas e sairia, não me
importaria se ele morresse ou não, quando a vítima está com as emoções abaladas e alteradas
pode desviar a arma da cabeça e atirar em você pelas costas, por isso que gosto da indiferença,
não agindo neste caso você faz a pessoa tomar a decisão apropriada de forma natural, sem
imposições.
Pode-se aplicar o exemplo de imposição no caso das crenças religiosas, idiotice provar
ou não a existência de deuses, pois toda crença é uma afronta para o avanço da
intelectualidade humana, esse caminho é inútil mas reconheço que qualquer diálogo ou
discussão sobre isso é uma forma de aprender mais com o interlocutor, entretanto sou
indiferente, o que me interessa são meus pensamentos, só neles eu creio enquanto vivo, e
creio porque os tenho e ninguém mais pode compreendê-los no sentido de interpretar as
imagens ocorridas em minha cabeça...
Ontem me senti melancólico sem motivo, não a melancolia comum, apesar de não
saber a intensidade dos sentimentos de outra pessoa, era angústia mesclada com tristeza, uma
sensação de espera por algo nadificador, arrependo-me de não ter escrito na hora porque
quando escrevo com sentimento minhas palavras transbordam tristeza, mas agora já está na
dimensão do passado, interessante é que nunca fiquei triste a tarde e nunca senti a noite, é
perigoso... Só não entendo por que penso tanto no passado, por que quero tanto voltar ao
passado, seria medo do futuro?, e por que dou tanta importância às lembranças?, Cada
momento é tão importante que jamais deveria ter passado, tenho outro ponto a destacar, se o
passado não fosse tão importante as situações ocorridas não seriam lembradas, gostaria de
saber o que significam todos esses pensamentos no ponto de vista psicológico, desde que
comecei a escrever me pergunto: por que me sinto triste? Sempre lembro de situações
desagradáveis, um exemplo disso foi naquele dia que não queria ir à escola e peguei chuva no
caminho, estudei o dia todo com os sapatos molhados, naquele dia me senti revoltado e
impotente diante da situação, perguntava-me por que aquilo estava acontecendo comigo,
sofrendo, e merecia? Posso passar fome, sofrer acidentes, mendigar, mas ficar um dia inteiro
com os calçados e meias molhadas é insuportável, aquele foi um dos primeiros momentos de

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angústia de que tenho conhecimento, outro foi o de quando eu saí do refeitório daquela escola.
Mas o pior de todos os acessos de melancolia foi quando estava sentado naquele
colchão de molas ouvindo música, aquele foi o ataque mais fulminante que tive, a melancolia
havia voltado e não conseguia controlá-la, essas são as... cenas indispensáveis... que não saem
da minha cabeça.
Agora, deixando de lado sentimentos e emoções irracionais produzidos por impulsos e
estímulos elétricos no cérebro... Hoje pela manhã notei que meus pensamentos seguem uma
forma linear, mas são cortados de repente, não significa que não há conclusão de uma linha de
raciocínio, mas elas se emendam umas às outras. Quando paro de pensar tenho a sensação de
que fica uma lacuna vazia, inútil, poderia ser aproveitada, mas o tempo a consome, o
pensamento que poderia ser genial já foi perdido para o tempo, porque todos são únicos, aliás,
estariam os pensamentos abstraídos do espaço-tempo?
Sei que as situações exteriores que nossos pensamentos estão predispostos a criar e
assimilar, formam uma corrente contínua de aparições no espaço-tempo sem que os sentidos
percebam, considerando um espaço com "n" dimensões para que sejam medidos os
movimentos de qualquer matéria em qualquer tempespaço, portanto: imaginamos o tempo e o
espaço, porque não conseguimos vê-los, mesmo o espaço estando à nossa volta e o tempo
passando a cada movimento que realizamos, só vemos que há espaço entre um objeto e outro,
mas... o espaço é invisível, o tempo idem.
Notei que pela manhã os pensamentos fluem com mais rapidez e criatividade, lembro
do que uma professora disse-me: "pela manhã a cabeça está descansada e os pensamentos se
processam mais rápido", em certos aspectos concordo, pois o corpo fica descansado, mas o
intelecto não, porque eu sonho, e se a imaginação está ativa significa que o cérebro também
está, mesmo inconsciente.
Não me deixei influenciar pela opinião dela, as pessoas se infuenciam porque desejam,
quando você é a influência, pode mudar uma parte do mundo. Além disso quem se deixa
influenciar é porque não tem seu próprio ponto de vista, talvez seja por isso que me sinta
livre, além disso tenho a imparcialidade e a indiferença pelas opiniões e pensamentos alheios,
em vez de seguí-los à risca os uso para meu aperfeiçoamento intelectual e emocional...
compreendendo os outros você se compreende, por isso que tenho a impressão de notar a
brutalidade psicológica de uma pessoa, por mais meiga que ela seja, são níveis que a pessoa
atinge, conforme sobe, descobre capacidades novas nela e nos outros. As minhas eu mino.
Tudo é passado através de influências, depende do que aceitamos, achamos certo ou
errado, seguimos o caminho, mas tudo é questão de escolha... Escolho ser um vulto no tempo!

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Apenas um vulto... escondido atrás da história da humanidade. A humanidade... me faz rir... A
partir do momento que surge uma família a máquina começa a funcionar, começamos pela
infância: Quando as crianças nascem não tem a mínima idéia dos fenômenos que ocorrem à
sua volta, assim os adultos responsáveis impregnam-lhe costumes e crenças que a população
local adota, a fase inicial de aprendizado é com a família, a seguir vão à escola, onde a forma
se torna metódica seguindo regras e padrões de comportamento, pois enquanto uns aprendem
a servir, outros aprendem a comandar, assim o indivíduo acostuma-se aos poucos com a vida
em sociedade. Isso é inato no ser humano, não há como negar.
Já que é a última carta que escrevo com conteúdos aleatórios, quero relatar bons
momentos.
Mês passado reencontrei um amigo, foi pela manhã, acordei, tomei banho, estendi a
toalha no varal, tomei uma caneca de café com leite e fui à biblioteca devolver os livros com a
data de entrega atrasada, quando cheguei notei alguém parecido com ele, mas não costumo
olhar para as pessoas, quando coloquei o cadeado na bicicleta alguém me chamou, logo vi
meu amigo maluco, conversamos um pouco e perguntei se beberíamos algo, entrei, renovei os
livros e em seguida fomos a um mercado aberto para comprarmos vinho, depois à praça de
um museu, bebemos, conversamos com uma mulher senil simpática, ao término compramos
quatro coxinhas e comemos em outra praça, conhecida pelas estátuas feitas em homenagem
aos colonizadores da cidade.
Depois, em uma rede de supermercados foram mais duas garrafas de vinho, um tinto
suave e um de morango, nos dirigimos ao cemitério para conversar e beber, em dado
momento passou um carro fúnebre, estava acontecendo um funeral, mas antes disso, um rapaz
sentou em um local próximo ao nosso, só notei a presença do indivíduo um tempo depois,
terminadas as duas garrafas viemos para casa, eu não estava bêbado, mas caí na esquina da
rua principal próxima de casa, prejuízo material não tive nem um de grande importância, mas
meu cotovelo ficou inchado, parecia uma luxação, mais tarde verifiquei que não havia
rompimento das ligações e articulações do braço e antebraço, mas não conseguia esticá-lo e
dobrá-lo ao máximo, porém, tudo valeu pela importância do acaso, encontrei a criatura que
considero um irmão, além de ser o único com quem posso conversar todo tipo de assunto e se
admira com as descobertas psicológicas e filosóficas que faço. Ficamos quase nove horas
falando sobre assuntos de nosso interesse.
Disse-lhe que tinha medo de alguns pensamentos aleatórios, e sabia que cedo ou tarde
mergulharia nas profundezas do meu âmago. Perguntou-me que tipos de pensamentos
aleatórios, então dei um exemplo: Não tenho noção de onde e como começa o tempespaço

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constituído de cordas que não servem para enforcamento precoce de uma morte prematura,
prematuros bípedes nascidos mortos porque não há coisa mais interessante do que observar
partículas de pó de giz mais leves que o vento quando o professor bate com o apagador no
quadro negro. Percebi que ele não entendeu... Pediu-me que escrevesse um conto, assim o fiz
em sua homenagem com o título que tanto pedira:
A Prole piolhenta...
Uma menina de peculiares costumes gerou problemas aos pais desde que, por
vontade própria disseminou uma praga na família, espalhando-a para toda a elite burguesa,
não se sabia como, nem onde adquirira.
Descobriram a gênese do problema depois de um árduo trabalho feito por um detetive
particular seguindo-a dois incansáveis meses. Viu-a entrando em uma casa com crianças mal
nutridas e sujas, descobriu mais tarde que a mamãe dessas criaturas marginalizadas fôra
abandonada pelo marido quando já estava engatilhado o quarto rebento.
Quando Lêndia descobriu aquelas crianças em condições sub humanas começou a se
questionar e resolveu perguntar aos pais, que deram de ombros e disseram que a sociedade
tinha e tem dessas coisas.
Ela não suportava ver a diferença de classes ser tratada com tanto desdém por parte
da sua família, mas como boa burladora de regras que era tratou de ir à desforra, então às
escondidas começou a maquinar o castigo. Depois de muitas perguntas aos empregados, o
solícito, e mais tarde cúmplice motorista a levou em segredo até a periferia, a família evitava
ir aos bairros mais pobres da cidade.
Lêndia disse aos pais que teria uma atividade a mais depois da aula, os genitores não
a questionaram, estavam ocupados. Conheceu a prole mais piolhenta daquele bairro segundo
indicação do motorista e foi ter com ela, era uma menina magra de olhos esbugalhados,
peculiar pelo escorrimento constante das narinas e cabelos loiros não cuidados, usava
sempre um vestido roto e andava descalça, quando ria seus dentes apodrecidos refletiam a
falta de asseio e a miséria em que estava. Naquele dia Lêndia levou roupas para aqueles que
tinham por companhia a desgraça. Abraçou a menina com notável afeto e colou seus cabelos
naquela cabecinha desgrenhada.
Apesar de não querer tomou o café oferecido pela anfitriã. Enquanto comia o pão do
dia anterior, escutava o ronco das barrigas dos pequenos que rodeavam a mesa e eram
enxotados da pobre cozinha, na saída notou que os pequenos brincavam com latas, fingiam
preparar comida.
A hospedeira saiu dali triste e no carro descambou a chorar, pediu ao motorista para

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levar, sempre, algo que alimentasse aqueles ávidos estômagos vazios, chegou em casa, uma
mansão, e foi direto para os quartos passar os cabelos em tudo, desde travesseiros até
toalhas de banho, toda a casa ficou infestada e não demorou para seus pais e parentes
perceberem o mal que estava porvir.
Disseminou tão bem a praga que depois de várias tentativas para exterminá-la a
burguesia conviveu com esse problema por anos, não conseguia tirar nem conter a
proliferação com seus caríssimos xampus, quanto mais coçavam a cabeça tentando achar
uma solução para extirpá-los, mais a situação piorava, pois seus cascos esbranquiçados,
avermelhados sofriam com feridas mal cicatrizadas e purulências constantes, assim, cederam
e transformaram o piolho em símbolo de status na alta sociedade. Quem não os tinha não
podia frequentar os lugares mais seletos. Lêndia não se sentia incomodada porque sabia o
que fazer depois de um tempo, divertia-se com a situação.
Mas quando descobriram que os vis ácaros provinham daquela prole piolhenta e
pobre as coisas mudaram, trataram de puní-la por ser inocente, a quantidade nos cabelos da
elite era tanta que alguns tiveram de raspar a cabeça, sem antes mandar a infeliz da criança
para a forca. Sua mamãe resignada assistiu aos pezinhos debatendo-se no ar. E à
disseminadora? Aplicou-se ao mesmo castigo, quando a família descobriu a cadeira já estava
caída... Fim.
Demorei um dia para terminá-lo, entreguei-o e depois daquele dia não o vi mais, no
outro, peguei um livro de anatomia para estudar, e ver quais as partes do meu braço foram
atingidas na queda, então soube que a medula óssea produz células sanguíneas, aprendi mais
sobre os músculos, as veias, epiderme, etc. Nosso sistema olfativo também é interessante,
gostei do desenho do esquema em vista lateral que mostrava os neurônios receptores dos
odores, mas me interessei pelos ossos do crânio, naquela época pesquisava que ossos da
cabeça um projétil atinge no caso de suicídio, conforme eu projetava os ângulos tinha a
localização exata do osso que seria acertado e os estragos que aquilo causaria. Resultado:
internação em manicômio, descobri que meu amigo nunca existiu, a loucura, a estranheza dos
gestos e as palavras inacabadas soltas no ar era o que me dava a certeza de sua existência, mas
eu estava errado. Fui diagnosticado a tempo segundo minha família.
Meus pensamentos ameaçam ir além da minha compreensão porque foram feitos para
o futuro, estão mesclados e incrustados em minha loucura obsessiva, jamais irão embora desta
mente atormentada e confusa, mas prática para escapar da realidade no momento necessário...
São nesses pequenos esclarecimentos aleatórios que tateio os obscuros sentidos da minha
existência. Por isso que escrevo, os mecanismos de defesa induzem o paciente a canalizar os

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conteúdos reprimidos para uma tarefa ou parte do subconsciente, mas ele não sofrerá com
outros problemas psicológicos já que possui essa tendência?
Nas ruas eu via pessoas correndo, trabalhando, saindo das fábricas, todas faziam
aquilo em troca de dinheiro, todas eram e são um monte de nada, daqui a alguns anos
morrerão, entram e saem de cena em um piscar de olhos do tempo... Aqui olho para meus
cadernos, para estas folhinhas, tudo escrito, tudo, minha vida foi escrita e descrita nesses
meros pedaços de papel, ao menos sei que um dia vivi neste mundo, um vulto apenas, mas um
vulto que se agarrou na escrita, grafando as marcas de sua existência com papéis e canetas,
um simples anônimo que resolveu deixar as marcas de sua passagem para a eterna
inexistência... apesar disso minhas neuroses não foram condensadas em nem um livro...
pensar que nunca mais viverei, estou com vontade de chorar, porque ao mesmo tempo que
acho a vida um absurdo, é única, mas é assim que o tempo passa e eu passo o tempo...
Todos criam suas espectativas perante a vida, mas quando descobrem que são apenas
ilusões, os macaquinhos se sentem tristes, essa é uma das descobertas e também o absurdo da
vida.
É decepcionante quando você descobre que não é nada, não passa de um simples
corpo em decomposição que não retorna, e algumas pessoas têm a pretensão de pensar que
são as melhores, são tão ignorantes! Até onde vai a ignorância do ser humano ainda é uma
incógnita para mim, por isso que a cada dia sinto mais ódio por essa raça fútil, não há como
negar que a maioria é alienada ao sistema, claro que existem exceções, mas não me preocupo
mais com isso, aliás, não dou mais importância para nada, não quero saber se as pessoas se
matam ou morrem, comemoram, estudam, trabalham, nada, não quero saber de mais nada, a
indiferença é a antítese da esperança, e, convenhamos, a esperança é só mais um embuste,
disfarçam-na por metas a serem atingidas antes de morrer. Por que penso tanto em morte?
Porque as pessoas não gostam de falar do inevitável, parece que ficam agarrados ao seu
sistema, iludindo-se... "Como bom cidadão que sou", "sou um cidadão exemplar", "a
sociedade aceita as pessoas do jeito que são"... mentira, tudo mentira! Essa sociedade usa a
máscara da hipocrisia com o seguinte lema na testa: Se tenho, eu sou...
Moldo meus textos como se fossem uma mulher, cada palavra são seus olhos, sua
boca, o cheiro dos cabelos... esforço-me até a exaustão enquanto não consigo deixá-la do
modo que a desejo.
Minha última frase, aliás, cada frase minha equivale a milhares de livros: Na balança
da justiça a pena que me julga é a banalidade da vida.
Quando ele direciona a caneta para a jugular... enfermeiros entram no quarto de

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repente e gritam: Hora do almoço!
Algumas coisas são indiferentes ao caos do destino.
Ele levanta resignado e sai.

******

Nicole aperta o passo e passa pelos casais felizes entrando no carro. Cenas iguais a
essas são tão comuns, mas me perco em teorias que crio e esqueço de gravar esses fatos
simples que vejo nas ruas, preciso sempre lembrar que minha existência física e mental está
desaparecendo a cada suspiro, mas se gravar o que sinto através de uma foto, uma pintura, um
texto... venço e ultrapasso minha existência, a maioria dos autores que leio e li já morreram,
mas estão vivos por meio da escrita, deixaram uma parte deles estagnada no tempo, o tempo
pára naquela passagem.
Um pássaro passa em vôo rasante, viu-me, são ágeis no ar, podem cair se machucados,
qual será o tamanho de seus cérebros? Desiderações inexequíveis... quando e onde li isso?
Este rápido pelotão de ciclistas que passa por mim parece não saber sobre desiderações,
fizeram-me lembrar do dia em que fui a uma oficina de bicicletas para o mecânico consertar a
câmara de ar da minha, o local era escuro e imundo, o mecânico chefe era um robustigordo
com modos grosseiros, usava luvas de lã tão encardidas que pareciam duras, interpelou o que
eu queria, pedi a ele para remendar a câmara, mostrando o provável local perfurado, havia lá
um vasilhame com H2O para testar e comprovar a existência de outros furos, ele colocou ali,
quando vi o estado do líquido tive náuseas, aquilo não era nada parecido à H2O, estava mais
densa e preta que a normal de tanta sujeira acumulada, um rapaz que estava lá não dava
importância e falava sobre o quilo do pão nosso de cada dia, comentava sobre o aumento do
preço, mas acho que ele estava equivocado e em estado alterado de consciência, pois os pães
são vendidos por unidade ou conjunto, ao menos dos que ele falava.
Após os procedimentos do mecânico concluídos eu paguei e fui embora, o interessante
é que lembro das imagens sem precisar falar a ninguém, a da H2O em que ele embebia a
câmara ficou gravada, imagens abstraídas daquele fragmento do tempo, momentos únicos
porque mesmo voltando lá na mesma hora, dia e mês, o ano não será o mesmo, tudo é único,
por isso a importância da vida e do acaso, mas este não podemos controlar, sequer a vida as
vezes conseguimos, desconhecida, o que reconheço agora são lindos desenhos de círculos
concêntricos na calçada. Além dos automóveis e do pelotão que já se foi só eu caminho nesta

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rua.
De repente sai de uma viela uma matilha de cães sarnentos seguindo uma cadela de
pêlos malhados no cio.
Logo serão pêgos pelos homens da carrocinha, enquanto um pequeno tenta cobrir a
fêmea, outro maior revira uma lata com lixo à procura de alimentos, mas corre atrás quando
todos entram em um pequeno pátio com uma estátua feminina do período clássico grego, eis
Atena! A deusa da sabedoria e da guerra.
Com o alarido dos cachorros um decrépito barbudo sai de uma das residências e
enxota os animais com uma bengala, inclusive atinge o lombo de um grande que rosna como
ameaça, mas depois que leva a segunda sai em disparada desesperado, depois o velho entra
em casa resmungando palavras que não entendo, a matilha se espalha e desaparece, a Atena
imponente ali continua, uma deusa para quem acredita, e eu sou eu? Mas como? Pedra
trabalhada, moldada, aos pés dela uma criança chorava, mas se animou ao ver a cena do
decrépito e o alarido dos cães, some em uma das vielas de fuga do pátio seguindo alguns cães.
Em questão de segundos tudo fica silencioso, sem vida, passo desviando da estátua, agora
surge um menino com um pedaço de madeira na mão imaginando ser uma espada, ataca as
criaturas inimigas imaginárias com fúria, emite sons estranhos, ao que parece suas tropas se
deslocam pela direita enquanto ataca o flanco esquerdo da guarnição inimiga, imaginação
fértil, logo também se vai...
Há um papel dobrado na parte de trás da estátua, ela retira, está escrito em ambos os
lados:
As bolhas de sabão tinham o tempespaço preso até serem suprimidas e estouradas sem
som e a esmo estufando barrigudas velas de caravelas agitadas que navegavam a noite,
guiadas pelas constelações de estrelas indicadoras do ondulante trajeto que as batatas quentes
faziam nas bocas alheias queimando a fala dos importunantes guarda-chuvas coloridos e
pretos dos funerais ensolarados e amarelos das flores do desprezo porque senão enterrar o
urubú come a carne podre com a voracidade vermelha de um leão faminto de estômago vazio
atrás da caça propícia para o seu palato refinado igual o do gourmet argentino latino
americano companheiro de um grande experimentador de vinhos italianos que está de
passagem pela costa norte inexistente junto das almas voadoras penadas que suspendem o ar
da mentira e da enganação errado com o substantivo pré-fabricado e reinventado no momento
de embriaguez como fiquei naquele dia quando perdi o equilíbrio e bati entre dois muros
menores que os da China datados do século desconhecido por mim que apesar de conhecer
monumentos arcaicos por fotos gostaria de saber por que nelas o tempo pára sempre que vejo

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a minha de quando era bebê continuarei para sempre estático junto com a dos parentes
falecidos que continuam enganando e burlando o tempo cúmplice de uma arte pós moderna
não convincente e do movimento de um homem só que surgirá depois de sua morte porque os
seres humanos sempre adoram os mortos mais do que os animais pois é fácil falar bem ou mal
do defunto em comum dentro de um caixão levado pelas carruagens do passado escuro ou
pelos atuais carros de funeral de cor preta sendo considerada pelos orientais mais alegre que a
branca porque é interessante saber que existem pessoas tão distantes com culturas milenares
contra ou de exemplo para os povos antípodas instalados em uma terra acima do nível do mar
azul refletindo no céu sua beleza fulgurante para pessoas ignorantes que não têm explicações
para a cor do céu que é um complexo resultado de junções de gases das diversas camadas da
atmosfera falando ou pensando a grosso modo como a mente fica depois de um tempo sem
produzir conteúdos intelectuais prestativos a plena uma hora da madrugada com fome e frio
mesclado com calor e variando a temperatura do corpo conforme o controle da mente é
mantido por pessoas que suportam ambos sem problemas de auguras não existentes como
sortes ou azares todos frutos do acaso que não se cansa de pregar peças nas pessoas parecida
com aquela peça melancólica do príncipe que matou a mãe e o tio em vingança comida morna
e bem servida aplicada naquele caso dinamarquês importante escrito das peças mais
espetaculares entranhadas na alma de um ser humano igual a um mapa com uma abertura da
alma carregada de sentimentos bons e ruins dependentes do estado de espírito ou pensamento
melhor falando e explicando o que é o pensamento e de séculos a séculos permanece austero e
inflexível ao tempo quando respondemos que eu sou eu sem saber o que é o eu com a
psicologia teimosa em descobrir ou rechaçar ou aniquilar ou deixar em pé de igualdade o eu
com os demais conteúdos responsáveis pela boa e comportada convivência em sociedade
patética e alienada atrás de um pedaço de papel que vira e muda o mundo em instantes
destruindo massas em beneficio de apenas alguns burgueses sustentados por proletários que
não se revoltam por apatia mórbida sem aquela garra tão importante antiga do tigre dentes de
sabre encontrados em algumas partes do planeta já que o ser humano só conhece e vive neste
território perdido no tempespaço e nunca viu ou habitou outro semelhante a este com as
condições propícias para a reprodução e alastramento da espécie que mais prejudica e destrói
semelhantes por puro prazer de ver o sofrimento alheio...
O conteúdo é parecido com o dos meus sonhos de hoje! Algumas passagens têm nexo,
outras não. Foi escrito a próprio punho. A magia de escrever a mão é indispensável, a emoção
é passsada pelos símbolos que as letras representam como sua curvatura, elasticidade,
plasticidade, a viajem que a ponta da caneta faz, como movimentos ondulantes e deslizantes

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de uma brisa suave quando bate em pequenas e frágeis plantinhas no nascer e no por do sol ou
como o vento que enverga os ciprestes no cemitério.
Perdida em monólogos interiores nossa amazona anda a esmo pelas vielas...
Pronto! Já sai na rua principal e na lateral daquela construção um andaime enferrujado
sustenta dois homens que não devem ser acrófobos ou não tem noção do perigo a que se
sujeitam. Aí está o trabalhador, o assalariado, suando, mas se eles, a base, ruir ou não for
incentivada pela psicologia barata do trabalho, os outros caem do alto dos seus prédios de
dinheiro.
Ao passar em frente a um prédio comercial com três andares ouve uma palavra cortada
pelas janelas semi-abertas do primeiro andar: Des... Vira na próxima esquima e some.

O Despedido (Decepção)

Des-pe-di-do!... As últimas sílabas ecoaram certo tempo após a porta se fechar atrás
dele com uma leve batida, vários pensamentos se passaram em sua cabeça, pensamentos
duvidosos, era uma pessoa tímida e este foi o seu primeiro emprego. Dez anos na mesma
função, e agora o que fazer?
Quando a pessoa procura por sustentáculos para apoiar-se e não os encontra, descobre
uma das inúmeras absurdidades da vida.
Meu ofício consistia em observar as pessoas, sete horas olhando atitudes, gestos,
situações, Personas mascarando sentimentos e tentando transgredir desejos inconscientes
transpostos para outras atividades, jogando sua alma perdida no Érebus pessoal.
Desce as escadas encaracoladas com as imaginações longe, quase escorrega em um
degrau, mas retoma o equilíbrio, passa pela secretária. Dirijo palavras a ela só se necessário...
dez anos trabalhando sem reconhecimento.
Sua mente e corpo estão tão condicionados à rotina que agora está sem ação, quando
surgem episódios que não estão dentro dos parâmetros que imaginamos controlar, a vida se
transforma em mais do que um simples nascer e morrer. Abre a porta principal e sai em uma
rua deserta, manhã ensolarada.
Quando o tempo fica nublado as pessoas se recolhem, dentro de si, ou do dia, mas
como o tempo ou o dia ficam nublados se não sei o que é o tempo? Posso afirmar que está
nublado ou chuvoso se não o sinto? Posso falar do que ocorre naquele determinado
tempespaço, porque tudo é simultâneo, está interligado, é o mesmo fenômeno com definições

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diferentes, é igual a dar adjetivos de algo que subsiste! Sei que o espaço é feito de pontos e o
tempo de instantes, estes não duram sem os pontos do espaço porque é entre os instantes que
se acha o movimento dos pontos, e sem instantes, movimentos e pontos, tudo que fosse
contido no tempespaço e o próprio, ficariam estáticos, portanto o tempespaço não existiria e
nós idem!
Ao longe uma idosa senta debaixo dos toldos daquele prédio de esquina sem os
pombinhos que costumam pousar na haste presa à parede, só uma brisa a farfalhar míseros
papéis rasgados e sujos na rua. Em um lapso de memória uma frase é esquecida na mesma
velocidade com que aparece... A genialidade está em penetrar na alma das pessoas!... Des...
não quero lembrar da palavra, e pensando bem essa vida que levo não é nada parecida com a
de uma pessoa livre, isso tudo é sem fundamento, não entendo como as pessoas ainda podem
ser felizes, será mesmo que elas não se dão conta de que são quase robôs? Sempre impelidas a
fazer os deveres automaticamente, acho que não sabem e não percebem, se eu pudesse ao
menos experimentar um pouco dessa felicidade, mas não, preferi me vacinar contra esse
veneno ilusório e efêmero. Agora só resta aceitar resignado e continuar o ato dessa absurda
peça existencial sem diretor até o fim... A bem da verdade somos todos parte de um teatro em
que o diretor é o sistema.
Trilho meu caminho de volta, algumas provam que algo não deu certo, parte de minha
vida ficou lá, perdida, agora reconheço o valor do meu tempo perdido, mas por quê? Vamos
recapitular todas as consequências diretas e indiretas que meus atos provocaram, se não
tivesse escolhido estudar naquela escola ginasial o que aconteceria? As possibilidades fogem
à compreensão, até mesmo a uma permutação, melhor não pensar nisso e me distrair com a
arquitetura dos prédios mais altos. Na parte frontal deste, as janelas todas fechadas refletem a
nuvem solitariscura passageira, parece uma pintura, ao lado um elevador panorâmico com
apenas uma pessoa no interior sobe em uma velocidade menor que os convencionais, este tipo
de elevador me causa uma sensação de ansiedade, vejo-me caindo.
Olha para o chão quando uma barata com as patas lépidas e as antenas frenéticas
atravessa seu caminho. E este é o único animal que sobreviveria a uma bomba atômica, pensa
e a persegue com o intento de esmagá-la entrando em um beco sem saída, de repente ouve
algo se espatifar no chão, com o susto olha para trás e constata o motivo da balbúrdia, um
vaso quebrado, segue a direção perpendicular à queda e logo percebe longos cabelos louros
fugindo de uma sacada, ao sair do beco uma chave range na fechadura da porta de entrada do
prédio, a culpada do quase acidente fatal, lívida e mais assustada que a vítima pergunta se
ocorrera algum dano com estilhaços, ele replica que não, acalmada diz:

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- Ainda bem, fui sacudir uma toalha e bati no vaso sem querer, estou nervosa e não
paro de pensar no acontecido do terminal de transporte coletivo...
O que aconteceu?
Você é deste planeta? Pergunta ela sorrindo...
Sou sim, por quê?
- Porque há horas houve um grave acidente com uma criança, foi atropelada por um
ônibus.
Foi no central ou no deste bairro?
- No central, mas não aconselho você a ir, as notícias dos jornais não são nada
agradáveis, a empresa quer evitar ao máximo a presença de curiosos, a área está isolada para o
trabalho dos legistas, e infelizmente a criança chegou sem vida ao hospital.
- Prefiro não ver esse tipo de tragédia, obrigado por me deixar a par dos fatos...
Desculpe-me, mas qual o seu nome?
- Dien.
- Prazer Dien eu sou Nilo.
- Então Nilo, já que saíste ileso do nosso acidente me despeço.
- Até mais Dien... Amigável da parte dela me avisar do acidente, fiquei curioso, mas é
oposto ao meu caminho, também não suportaria ver sangue, para onde a barata terá ido? Se
não fosse por ela e meu instinto assassino nada disso teria acontecido nessa fração de minutos,
ainda bem que não a matei, poderia ser o Sansa...
Ambos não seriam apenas vultos vagando por uma existência incerta? Tudo no
tempespaço exato.
Minutos... o tempo existe no meu corpo porque está dentro das células, dos átomos. O
problema é saber como existe no meu corpo, a envergadura dessa questão produz perspectivas
incalculáveis, outra dúvida: haveria uma forma do ser humano provar a existência do tempo
no Ser do objeto? Acho que sim, mas a falta de capacidade do meu pensamento não consegue
realizar tal proeza, sei que se nada existisse o tempo idem, porque o espaço-tempo depende de
algo concreto, e sendo um fenômeno está e é nos objetos. Tempo... Imprescindíveis quinze
segundos de minha vida perdidos em pensamentos nostálgicos, eternos.
Quando penso em me desvencilhar deles o desespero deixa sentimentos expostos a
mercê da minha compreensão, difícil dominar os inaceitáveis, expô-los nesses tempos
hodiernos é ridículo nas sociedades atrasadas, o populacho ignorante de certos países faz o
indivíduo reprimir o que sente, eles não sabem viver, porque o ser humano deve sentir para
entender o verdadeiro valor da existência mesmo absurda, já que estamos em um amontoado

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de ilusões.
Consegui superar vários problemas psicológicos mas a melancolia arraigou-se no meu
ser, é tão íntima que depois de sentida a primeira vez torna-se indelével na alma, sinto meu
coração pulsar, penso, vivo, sou um ser com vontade própria, tenho opções de escolha,
escolho o sentido da minha existência, perdemos o tempo, as pessoas, mas também estamos
perdidos, pois não há como escapar da morte, porém este é o único impulso para vivermos a
vida total e com intensidade, viver sem nos preocuparmos com nada, mas é difícil, porque
vamos atrás das responsabilidades, dos deveres para dar sentido à nossa existência.
Mas o que sou afinal? Um corpo perdido no espaço procurando respostas, ou algo a
mais que um irracional por que pensa? A beleza da vida de algumas pessoas está em não
descobrir segredos e pressuposições, senão sua vontade de viver desmoronaria destituindo-a
do próprio sentido. Segredos talvez inexistentes, sempre coloco a hipótese de não existência,
mas pressuponho o existente sem a prova concreta, deste modo meu cérebro processa as
informações mais rápido.
Por que se torna difícil dar sentido à vida quanto mais se tem consciência dela? O que
deixa uma pessoa atormentada é a consciência plena de não saber por qual caminho a levar, já
que o acaso e a incerteza são grandes inimigos, implacáveis, seres fatídicos e incertos que se
erguem, invisíveis, ante qualquer situação inesperada, e quantas incertezas não criamos?
Incertezas essas que talvez nunca existam, mas para isso existem as chamadas possibilidades
de perspectivas, traçadas a esmo, como a morte consome as vidas, a esmo...
Às vezes tenho uma sensação de tristeza, acho complexo porque aparece do nada, até
mesmo depois de um momento alegre na qual acabo de sorrir de algo engraçado, parece uma
forma inibidora de minha alegria, sou eu que evito minha própria. Quando tenho esses
sentimentos penso que tudo não faz sentido. As ligações que tenho com o mundo a minha
volta se desfazem e tudo cai no poço do absurdo onde a realidade se desvenda e vejo o quanto
de esforço em vão e inútil emprego na vida, pois é efêmera. Questiono-me do motivo e tudo
volta ao absurdo num ciclo infinito, mas nesse caminho vicioso descubro uma verdade,
passível de contestação: dependo das cartas nas mãos do acaso que joga contra o tempo.
Daqui há mais ou menos um mês é o dia do meu aniversário, mas... as datas, as datas
comemorativas não têm mais importância para mim, aliás, nada, mais nada tem o valor que eu
dava no passado, as lembranças foram esquecidas, passado apagado e futuro ainda não
delineado, também delével, eu, vivo, mas com a amargura e a angústia de existir, me auto-
anulo existindo e inexistindo. As datas sempre me levaram a pensar que tudo mudaria, puro
engano de minha parte, não só minha, porque vejo que outros pensam assim, às vezes a

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verdade parece ser falsa, porque a absoluta não existe, assim as pessoas almejam esperança,
auto afirmações... sofro disso? Sofro do que não imagino, porque sou um ser humano comum,
tão comum a ponto de pensar e dizer coisas incomuns.
Mais um mês de minha vida chega ao final, a vida é uma morte camuflada.
Angustiante você saber que um dia você está pensando, alegre, triste, e depois de algum
tempo tudo isso de sentimentos e pensamentos acaba, independente do que faço hoje ou
amanhã o dia final chegará e não terei como escapar ou burlá-lo, acho que não devo me
preocupar, a vida é bela como muitos dizem, porque cada dia é novo e eu faço deles o que
quiser, faço dos segundos que ouço passando no relógio da cozinha todos os dias quando
tomo café da manhã os mais importantes, porque os segundos voam.
Desesperado tento agarrá-los, pressentindo a perda da vida nas míseras escalas do
tempo inexorável, seco, brincando com as vidas humanas a esmo, esmiuçando sonhos,
destruindo futuros projetados pelo acaso, abarcando todos os instantes, pois ele avança
incansável engolindo o passado e regurgitando o futuro. Mas mesmo implacável depende de
tudo, deste aglomerado de situações com um fim sombrio, onde as idéias borbulham e
impelem a vida ao desafio improfícuo de permanência eterna do ser humano na terra...
Tenho que resgatar as memórias importantes, é difícil correr atrás dos momentos
perdidos sem alcançá-los, preciso apagar as más lembranças com a borracha da vida e rumar
para o futuro inevitável e mais fatal que os estigmas do passado, quando percebo que a
criatura com a foice se aproxima, minha angústia misturada com o presente aumenta e se
torna um martírio, apesar da minha vida ser um contínuo vir-a-ser, tenho de vivê-la a cada
minuto, como se não restasse mais nada, embutindo a esperança nela, a esperança essa eterna
e paciente ilusão que engana tantas mentes instigando a vontade de superar algo já traçado
pela natureza, mas não há conformismo!
Um casal de idosos aparece e o cumprimenta sem conhecê-lo. Os sapatos brancos do
homem estão impecáveis, mas o chapéu preto apresenta marcas digitais brancas, a mulher que
o acompanha usa um vestido amarelo com flores que parecem vivas quando são pêgas pela
brisa, com os raios de sol ganham a resplandescência das cores, ela usa botas pretas sem
adornos, andam de mãos dadas bem devagar. Nosso intrépido hoplita pederasta retribui o
cumprimento e segue pensando...
Despedido! O tom de voz, a estranheza dos gestos, o olhar encoberto pela fumaça do
charuto, e em seguida as palavras decepcionantes, melhor pensar em outra coisa. Um homem
de expressão sisuda sai de uma loja rápido, olha fixo para ele:
Bom dia jovem, tu poderias me auxiliar com uma grande caixa?

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Sim, onde se encontra?
- No interior da loja.
Entro e vejo vários homens vestidos com aventais e luvas adornadas prontos para
levantá-la, um ancião que estava na porta do bar ao lado percebe a movimentação e corre para
nos auxiliar, mexe um palito de dentes entre os lábios, usa suspensórios e uma calça de linho
com listras finas brancas verticais, um rapaz que estava conversando com ele se prontifica a
ajudar, está com uma jaqueta preta brilhosa igual a seu sorriso de dentes perfeitos, agora que a
caixa está na rua me despeço e continuo minha caminhada, a luz do sol desaparece, fraca, a
demissão novamente, não!
Interessante... ele não sabe o que fazer porque é uma pessoa condicionada. Mas por
que quer, é obrigado ou não tem coragem de dizer não?
Seus castelos de ilusões ruíram e ele caiu em um dos fossos da vida... São essas
decepções que o fazem menos humano a cada dia que passa porque não consegue achar um
sentido para a vida e tudo o que os seres normais fazem, apenas fazem sem se perguntar o
porquê.
Tenho que evitar esse pensamento, pensar em algo alegre, por exemplo, aquele dia que
pseudo filosofei sobre uma placa de trânsito sinalizando a travessia de pedestres na faixa,
comecei a pensar nas possibilidades das cores das placas do mundo, mas vi naquela a essência
de todas, porque podem ser de qualquer tamanho, formato ou cor e mesmo assim serão placas
de sinalização, primeiro pensei em uma cor azul, mas azul não ficaria bem, laranja claro sim,
pensei no roxo e no roxo claro, imaginei ela mudando de cor como um camaleão. Não era
apenas uma placa, era a que eu vi naquele dia e instante, hoje ela continua lá, mas nós não
somos os mesmos, o tempo já nos tornou diferentes daquele momento para o agora, que
naquele dia seria o futuro, eu não tenho piedade dizia o tempo e ainda continua... Me sinto
como se estivesse levado uma pancada na cabeça, pois o futuro nos ilude tanto quanto o
presente nos atormenta com o passado deixando-nos indecisos pelas escolhas erradas que
tomamos...
A cada vez que pegava na chave da sala onde trabalhava pensava: ela se desgasta junto
com minhas mãos mas seria possível desgastar todo metal do mundo? O ser humano produz,
transforma, manuseia, mas não cria, as pessoas não conseguem fazer o ferro, o ouro, a prata, o
mercúrio, o cromo, elas só os transformam, podem criar outros, mas sempre a partir do que já
existe, no entanto é impossivel tudo isso, entenda-se natureza, tudo que é vivo, surgir do nada,
ou de uma caoticidade de moléculas, e se for, de onde vieram as moléculas, a força que as
impeliu? O ser humano não sabe de suas próprias origens, então do que ele se gaba? Viver

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sem saber de onde e quando tudo surgiu é sem sentido, acho que é por isso que as pessoas
escolhem, ou criam motivos para não pensar nisso, a carga de dúvidas aumenta conforme a
complexidade e a infinidade de respostas que podemos dar a uma pergunta dessas: como e
quando a raça humana e as demais que habitam esse mundo vieram parar aqui?
Empolgo-me com isso, primeiro porque cada cultura inventava e/ou acredita em um
ou mais seres superiores, e ainda são usados quando não há uma explicação racional para
determinado fenômeno, como o surgimento do universo por exemplo, até hoje ninguém
demonstrou provas concretas de como surgiu, agora os humanos, dão suas explicações. Outra
pergunta: Será que somos os únicos seres do universo conscientes de que existimos? Se sim,
podemos criar nosso próprio universo, mas para depois morrer? Não há sentido em nada
então! Um universo tão imenso, mas tão imenso... e só nós do planeta Terra existimos?!
Agora eu concordo com aquele meu amigo que disse: somos pensamentos do nosso Eu, deu
um exemplo: meu corpo e o resto material é a aparência do pensamento do Eu, mas nesse
sentido ele só transformou o ser humano em um deus, porém... somos os pensamentos dos
pensamentos, o primeiro é o concreto imaginado pelo segundo abstrato, ele só não entrou em
campos psicológicos para não complicar... para mim parecia mais uma teoria metafísica. Ele
dizia: É uma teoria abstrata, mas que oferece bases para a substancialidade real do concreto.
Homens reviram uma massa de concreto dentro da caçamba de um caminhão com pás
e outras ferramentas próprias para trabalho pesado. Quanto maior o esforço do corpo, menor a
remuneração, a sociedade hodierna preza e tem maior apreço à inteligência, porque é parte
fundamental da tecnologia. Um exemplo prático: os cálculos dos engenheiros civis, sem eles
não haveriam obras, claro que é necessária a força da mão-de-obra, por isso existem pessoas
que nascem com estas predisposições, outros: para nada, são os parias no termo pejorativo,
pois na casta hindu paria significa o ser mais baixo, o mais vil, seria o mendigo do ocidente?
Não fazendo nada eles têm uma utilidade: a existência, eles existem como aquela garrafa...
Uma garrafa de cerveja vazia jogada no chão, próxima de um muro, as gotas restantes
de H2O no casco reverberam a fraca luz astrisolar.
600 ml, tudo que vejo à minha volta foi construído e calculado por alguém, não há
como escapar dos números, estão em tudo, nas construções, nos automóveis, nas coxinhas
daquela lanchonete, sem a quantidade certa de ingredientes jamais seriam feitas, a natureza
em geral não é feita de números, ou seja, tudo que é vivo, frustrante descobrir que a essência
do que é produzido pelo ser humano é feita de números. Mas admiro as pessoas que os
dominam, mas o número um será só um e pronto! Nada muda isso. Nas letras é diferente, se
fosse definir uma palavra como amor, escreveria centenas de palavras e ainda assim não a

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definiria.
Garrafa não mais intacta, à frente uma lixeira laranjada de plástico, preciso jogá-la
aqui, som estranho vidro contra plástico, além da lixeira vazia o que provoca as ondas sonoras
é a combinação das situações.
A simultaneidade das situações é que faz daquela obra que ele leu um clássico, um
fenômeno como este, baixar, elevar, jogar, som, pensar para fazer tudo isso, incrível este
estado extraordinário das cores nos objetos provocado pela luz, relativo, conjunto, absoluto,
unidade, mas uma unidade pode conter um conjunto e vice-versa, tempespaço e seus
pensamentos também são fenômenos, mas abstratos, os objetos percebidos pelos sentidos são
fenômenos concretos, mas ambos se coadunam formando assim a realidade...
Pára em um ponto e logo um ônibus aparece, procura um banco vago, senta e viaja...
Ontem pela manhã passei por duas meninas que pulavam alegres em uma cama
elástica em um dia triste que anunciava chuva. As árvores choravam folhas, fragmentos... os
meus percorrem o tormento eterno do tempo à espera do momento, restará a angústia da
lembrança de um amplexo, nada mais além do instante.
Pombinhos alimentavam-se no telhado do moinho, as migalhas de grãos em volta de
uma chaminé pareciam neve, o ônibus passou rápido, mas aquelas cenas ficaram vagando,
lentas, pelos subterrâneos do meu inconsciente, quando a natureza começou a chorar percebi
que mais um ciclo se completava, as gotas aletórias feriam um rio morto, ao lado da avenida,
as várias pontes que o cruzavam estavam vazias, as pessoas olhavam os pingos atingindo as
janelas fechadas, no outro lado do rio, espelho de Narciso, os carros enfileirados
premeditavam um engarrafamento, os motoqueiros passavam afoitos, cavaleiros do futuro, o
ônibus fez uma curva fechada e os corpos dos passageiros submeteram-se à fúria das forças da
física, mais alguns metros e outra curva oposta fez-me deparar com um banheiro público
abandonado, ali trabalhava um rapaz deficiente físico muito gentil.
As construções iam passando rápido junto com os guarda-chuvas e as sombrinhas
armados que andavam impacientes cedendo às marquises e lutando contra a chuva, círculos
coloridos em contraste com a grande parede laranja do ginásio de esportes deixando escapar
ecos de uma platéia aficcionada.
As paradas nos pontos eram frequentes, apertavam as campainhas e uma luz se
acendia sobre as portas, estas se abriam e o povo marcado era descarregado. Naquele ponto
um garoto com um boné camuflado esperava o próximo ônibus, abriu sua carteira e eu
consegui ver as escassas notas que comprariam sua passagem, levava uma bolsa a tiracolo
com desenhos de Zés e Marias-palito, uma mulher passou devagar com um carrinho de bebê

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rosa, falanges pequeninas despontavam do meio de um amontoado de cobertas e em vão
tentavam alcançar uma bolinha verde dependurada no teto do carrinho, sua mãe entrou em um
estacionamento, colocou-a no assento especial para bebês no banco traseiro do seu pequeno
veículo, dobrou e guardou o carrinho no porta malas, e saiu sinalizando para a esquerda, mais
adiante uma jovem e sua colega observavam entusiasmadas a vitrina de uma loja de calçados,
apontavam para as sandálias monocromáticas prateadas, os marmanjos que estavam em um
bar próximo prestavam atenção às pernas bronzeadas, apesar do frio a dupla vestia mini-saia,
passaram rebolando e deixaram os índices de testosterona dos presentes no ponto máximo,
para provocá-los, entraram no bar, pediram gomas de mascar, saíram fazendo bolas e dando
piscadelas para um velho barrigudo que estava na porta, dois sátiros embriagados pela beleza
das ninfas e pelas maravilhas que o álcool proporciona levantaram-se cambaleantes, pagaram
a conta e saíram atrás delas, depois disso o motorista arremeteu o ônibus e a cena foi sugada
pelo furacão do passado, uma mulher com várias bolsas passou a catraca e meio
desequilibrada procurava por um apoio, sentou ao meu lado, o local do cobrador estava vazio,
fora substituído por uma máquina, uma a mais, um emprego a menos, foi o que aconteceu
comigo...
As pessoas estavam próximas e ao mesmo tempo tão distantes umas das outras, havia
um precipício entre elas, o precipício do silêncio, dos olhares furtivos, das janelas baças, e eu
em um torvelinho de emoções sem ter a que me agarrar, afundando-me e deixando me levar
pelas paisagens fortuitas dos lugares que passava. De repente ouvi um assobio tímido, foi se
desenvolvendo e se tornou uma velha cantiga, virei-me para ver de onde surgira aquela
ciranda e vi uma menina de uns nove anos quebrando o silêncio enregelado dos adultos, ela
estava feliz naquela atmosfera pesada de preocupações. Levantei-me, fui até as portas e notei
que a graxa dos mecanismos era nova, parecia doce de leite, após um bom tempo agrega
resíduos e fica preta, confunde-se com as borrachas das laterais, embaixo, um tipo de escova
limpava o último degrau, com a chuva ficou deplorável porque acumulou lama nos cantos,
apertei a campainha e desci no meu ponto de parada com a melodia ecoando nas ruínas da
minha mente. Andei até meu trabalho, no caminho uma mancha de óleo coloria o asfalto
negro próximo de um semáforo, as cores não primárias se mesclavam em linhas sinuosas,
derivado de petróleo que não se misturava à H2O, um dia foram seres vivos, hoje são
queimados para gerar energia. Um motoqueiro passou e deixou uma fina linha reta no asfalto
logo apagada.
As praças estavam desertas e as lanchonetes abarrotadas, além da chuva estava frio,
as pessoas que não levavam guarda-chuva se protegiam andando debaixo das marquises com

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as mãos escondidas nos bolsos das jaquetas ou das calças, outras com luvas, o local onde
ficavam os artesãos estava deserto, até a praça onde vários idosos se divertem jogando
dominó estava vazia, em dias dias de sol fica cheia, colocam mesas e cadeiras de ferro a mais,
porque são muitos jogadores, falam, riem alto, começam a aparecer à tarde, mas os mais
aficcionados chegam pela manhã e sentam às mesas de concreto com a superfície de granito
ostentando desenhos de tabuleiros de xadrez, jogos de trilha... Havia tantas árvores naquela
praça, todas cortadas, substituídas por um chão de concreto sem vida. Em algumas ruas as
raízes das árvores ainda lutam contra a invasão do cimento, desesperadas rompem as calçadas
e saltam em um grito pela vida, mas o ser humano implacável com a sua urbanização vai
desmatando e transformando tudo em pedra.
Os prédios erguiam-se nas laterias das ruas formando um corredor de caixas de
concreto que me sufocava, dezenas de pessoas já estavam ocupando suas salas cumprindo seu
papel naquela hora, trabalhando, presas a uma atividade para evitar o tédio, indiferentes aos
pensamentos e perguntas que passarelavam em minha cabeça, mas se suicidavam antes de
chegar ao outro lado porque as esquecia em um lapso, logo interrompidos pelo barulho de
uma latinha de cerveja suicida que dançava no meio da rua, cessou seus movimentos quando
um veículo a deformou.
As lojas estavam todas abertas e as atendentes esperavam os escassos clientes com
sorrisos e as mãos para trás, em uma enorme de calçados com uma escada semi-circular, duas
estavam na porta, nunca vi alguém comprar lá, na loja da esquina nem ligaram o aparelho,
costumavam deixar as caixas de som na entrada, a vitirina ostenta eletrônicos e derivados...
esse tipo de tecnologia massifica o indivíduo. Na banca de revistas alguns meninos
disfarçavam, olhavam as de jogos, mas estavam interessados nas com mulheres nuas, em um
estabalecimento de lavação de carros os rapazes estavam de braços cruzados também
esperando, nos tempos de chuva nunca trabalham.
Ao passar pelo posto médico não vi o pote de coleta com a tampa azul que sempre
sustentava uma das janelas, e sim uma pedra lisa com uns dez centímetros de altura, na parede
de uma das salas do andar superior uma janela aberta deixava à mostra um quadro de
dimensões médias com uma velha foto amarelada, as de baixo também abertas, mas
protegidas por grades demonstravam as enfermeiras trabalhando tranquilas, o movimento
estava fraco. Sempre via ambulâncias de cidades próximas estacionadas na calçada em frente
porque o pátio era pequeno, vivia lotado, uma casinha menor que uma gragem ocupa a vaga
de dois ou mais carros, até ontem não descobri por que a construíram e qual sua finalidade.
Uma mulher esperava alguém no portão com a sombrinha em punho e uma bolsa de plástico,

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pensei na hora: mais de dois mil anos para se decompor. Um homem com uma tosse
característica de tuberculose saiu e falou com ela, não consegui ouvir nada porque atravessei a
rua. Retiraram a faixa da campanha feita contra a doença semana passada. Pixadores deixaram
uma marca horrível na parede pintada semana passada, auto afirmação de alguém, qual o
sentido de deixar uma marca na parede? Se fosse uma pintura ficaria bonito, mas só
rabiscaram.
No outro lado várias placas de sinalização quase no meio da rua com as mensagens:
Desculpe-nos pelo transtorno, estamos trabalhando por você, protegiam um buraco na calçada
feito por uma retroescavadeira com seu braço parado, os carros passavam devagar pela região
porque mais à frente policiais realizavam vistoria... No salão de beleza reformado, mulheres
aprimoravam sua estética cortando os cabelos, limpando a pele, pintando as unhas,
maquilando-se...
Na esquina da mesma rua uma placa de ferro bem trabalhada identificava um
consultório de odontologia com vários nomes de especialistas, no alto do prédio com paredes
chapiscadas um símbolo cinza reinava sozinho, composto de uma serpente sinuosa e um cetro.
Ao lado onde era um terreno inóspito construíram um hotel, vi todo o processo, durou no
mínimo três anos, plantaram pequenas palmeiras à frente, sempre que voltava do intervalo via
as mulheres que trabalhavam lá indo embora, calculei sua jornada de trabalho, deviam
começar cedo, agora não vou vê-las com tanta frequência.
Quando trabalhava aos domingos não as via, não tinha muito o que fazer nas horas de
intervalo, a biblioteca ficava fechada, eu vagava pelas ruas por uma hora, passava em frente
às livrarias fechadas, olhava as vitrinas para ver se achava algo de interessante e depois
voltava sempre transtornado porque só encontrava livros que não me agradavam.
Na vitrina da loja de tintas substituíram o quadro com uma paisagem bucólica e uma
casa amarela ao fundo, por um de quatro cavalos correndo dentro de um riacho.
O prédio dos correios estava fechado, escrever cartas era algo tão comum, hoje
conheço poucas pessoas que fazem isso. Costumava comprar os selos mais baratos com
desenhos de frutas amarelas quando mandava cartas aos meus pais, demoravam mas sempre
respondiam relatando fatos incomuns e corriqueiros do que acontecia na cidade bucólica onde
nasci, lá o tempo não passava. A última vez que os visitei passeei pela praça central, mas não
havia ninguém, parecia que tudo estava abandonado... Boas lembranças... todas afogadas pela
onda do tempo.
Passei do meu ponto! Mas esse é o menor dos problemas comparado ao choque de
hoje.

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Cortou caminho pela feira de artesanatos, homens e mulheres passavam entre as
barracas enfileiradas com o mesmo tamanho e cor, mas poucos paravam para apreciar os
excepcionais trabalhos, toucas, meias, alguns ficavam pendurados do teto, as toalhas
bordadas, peças únicas de um trabalho espetacular eram mais caras, não se comparavam ao
valor do tempo que os artesãos dispendiam, os chapéus, pulseiras, bonecas de cera, de gesso e
de biscuit ficavam sobre as bancadas, as vendedoras passavam o tempo fazendo aquilo
enquanto não apareciam fregueses. Interessante é que conhecemos a maioria das civilizações
extintas através da arte, é o que sempre resta. Nilo pensava nisso quando uma menina deixou
cair um pacote de papel com objetos desconhecidos, ele ouviu um barulho mole espatifando-
se, a menina o ajuntou desconfiada com os olhos esgios premeditando frémitas lágrimas e
com a boca trêmula, olhou para a mãe, abriu o pacote e viu que sua boneca bailarina quebrara
uma perna, havia mais coisas lá dentro que Nilo não consegiu ver, a genitora passou a mão
sobre sua débil cabecinha, pegou-a no colo deu um amplexo carinhoso e a beijou, para
acalmá-la disse à princesinha de tez negra e acetinada que compraria outra, a expressão de
alegria irradiou aquela face tristonha que transluziu um gracioso sorriso.
A cena durou menos de um minuto, e no exato instante que ele captava todos os
pormenores um balão amarelo cheio de ar desprendeu-se da marquise de uma loja de
brinquedos, voou em lânguidos movimentos e parou ao lado do pneu azul de uma bicicleta,
ele passou por ambos, mas teve a idéia de presentear a menina, quando se virou com o balão
na mão para oferecê-lo as duas já não estavam mais lá, deu-o à jovem fantasiada de fada na
porta da loja, rápida fixou-o junto aos outros.
Enfim em casa... Na cozinha, perdidos sobre a mesa com uma toalha amarela, uma
garrafa térmica, um vidro com biscoitos, um pacote de pão aberto e migalhas espalhadas no
lugar onde havia comido.
Ontem estava com dificuldade de abrir os nós dos pacotes não sei se eram meus dedos
ou os nós muito apertados, tudo resultado da força aplicada nos extremos. Hoje não tive
porque não abri nem um, ando notando tantas coisas pequenas que a vida se torna uma coisa
imensa, difícil de perceber tudo. O café passa queimando pelo seu esôfago. O gosto dele é
sempre o mesmo, apenas entra pela boca e desaparece, os biscoitos estão bons, não são
aqueles doces enjoativos, mas o que deveria ser lembrado de interessante, esqueci...
Regar as violetas do vaso verde da sala de visitas, coloquei minhocas para maior
produção de húmus e longevidade, às vezes escarifico a terra para melhor absorção da H2O
nos vasos espalhados dentro e fora de casa, gostaria de cultivar várias espécies mas o
empecilho principal é a adaptação ao clima.

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Vai até a sala e liga seu aparelho de som, escolhe o vinil e de modo sutil a heróica
começa...
Quase não me contenho de tanta emoção, um júbilo gradativo toma conta de minhas
entranhas. Claro que isso é resultado de hormônios que agem no meu corpo e me fazem sentir
tudo na psique, depois dizem que não é importante, deveriam saber que é ela quem regula
todo o corpo, o velho, mas incontestável clichê: mente sã, corpo são, é mais real e válido do
que muitas teorias paranormais dissimuladas... Tenho pensado nos sentimentos desconhecidos
que surgem das áreas profundas separadas do Cogitatus, penso em sentimentos, mas não sinto
os pensamentos.
Essa música me remete a isso, às vezes busco no presente o que não tinha no passado
através da música, mas por que busco lembranças? As condições e situações mudam e o
tempo não volta, é uma busca e uma luta em vão, para que isso serve, seria a compensação de
abrandar estigmas e traumas de infância? Óbvio que muitos sentem desejos, mas a sociedade
impede a pessoa de os exprimir, e com a repressão desses conteúdos importantes alguns
indivíduos se tornam violentos, não aguentam a carga de conteúdos que seu subconsciente
guarda por muito tempo, assim extravasam de modo específico para atingir a sociedade,
porque o subconsciente afetado busca uma fuga pomposa e demonstrativa que foi e está
sofrendo com as situações exteriores, aquele psicanalista foi esperto em inventar uma maneira
de desalienação pelo subconsciente da pessoa através da análise, assim o paciente expõe os
conteúdos reprimidos como se pudesse expor na realidade da maneira desejada, talvez em
atos cruéis, já que o ser humano comete tantos e sua hipocrisia os acoberta de maneira
descarada usando embustes para escapar de uma situação desfavorável: vejamos um exemplo:
enquanto pessoas morrem de fome, outras jogam alimentos no lixo, e se dissermos para estas
últimas que fazem algo sem razão, responderão ou afirmarão que não tem nada a ver com o
sofrimento de outros esfaimados, apesar de se sentirem tristes não fazem nada, tornando
assim o mundo pior.
O ser humano de hoje é o mais egoísta comparando-o com as populações anteriores,
este será o grande mal para a humanidade, o individualismo.
Só percebemos que estamos melhores quando comparamos a nossa situação com a dos
outros, assim ficamos alegres, não por nós, mas por eles estarem em situação pior, nosso
inconsciente nos engana mais do que com nosso círculo de pensamentos redutivo imagina...
É interessante descobrir mais sobre minha personalidade, às vezes é bom saber do que
não gostamos para ter maior noção do sofrimento e da pateticidade humana, mesmo que não
seja conosco, porque não sofrendo sei que estou sem sentido, não vejo nexo nas atitudes do

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ser humano em geral. As pessoas são tão alienadas, tão manipuladas que crêem que a vida
delas tem um sentido, pura ilusão, fazem de tudo para sobrepujar o tédio da vida, mas não
conseguem adiar a morte, mesmo não sabendo o dia. A humanidade tem medo dela, se não
tivesse, opções não faltariam para alcançá-la por caminhos mais curtos e rápidos, mas não
fazem porque sua situação melhorará, quando? Não sei...
É isso que me causa angústia.
Vou até a papelaria comprar uma resma.

******

...pedido, acho que alguém foi despedido, mas não há como saber, há várias pessoas
trabalhando neste prédio. Ouço um barulho cada vez mais nítido, e não é daqui. Talvez
provenha daquele beco, uma porta com uma placa indicando o nome do local, parece ser um
Clube.
... Não entrarei, vejo uma pessoa com roupas brancas saindo daquele hospital.
Lembro-me de que esses dias fiquei em um estado de sonolência insípida de repente caí em
um sonho, não me machuquei, mas quando levantei estava em um lugar onde o espaço todo
era branco, não havia chão, teto, paredes, mas me sustentava como se pisasse em algo
concreto, que por fim confirmei ser a cor branca, as únicas coisas concretas eram eu e o
espaço branco, nem o tempo estava lá... Ontem comecei a refletir sobre isso, quando estou
sonhando e caio de algum lugar, ou escorrego, sinto que pulo na cama, porque após o ato eu
acordo e me sinto como se caísse. Acho que minha mente está confusa e estou com sono, vi-
me na cama daquele hospital, soldados marchavam em minha homenagem, a cidade, ou
algumas pessoas, não lembro, comemoravam algo que eu havia feito, faziam homenagens
antes de eu morrer, ouvia o barulho uníssono dos coturnos nas pedras do pátio do hospital, eu,
eu sabia que algum dia antes de minha morte reconheceriam meu esforço, mas que esforço?
Além disso foram as pessoas erradas que o reconheceram, uma vez li o livro do soldadinho de
chumbo, no final ele era jogado na fogueira e morria, fiquei triste, lia-o sempre embaixo da
mesa, quando procurava por gibis o encontrava por acaso, como estava com a capa furada
pelas traças deixava-o de lado. Esses dias eu fui à uma papelaria comprar algumas canetas e vi
um exemplar, só que a capa era diferente, relembrei de partes interessantes, pensei em
presentear Adrien, não sei quando vou encontrá-la, mas o trago sempre na bolsa. Osvaldo
sempre o escolhia...

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Nos seus pensamentos surgiam vagas lembranças do primo.
Coitado! Acusaram-no de quebrar e sujar as oftalconvergilentes fracas do arcaico
microscópio do ginásio, dizia-me que nunca teve contato intenso com o aparelho tênue e
delicado que logo deixou de ser usado como o muro de Berlim na qual mostraram um vídeo,
na ocasião ninguém da sua idade entendia o sistema político que acabara de ruir e por que
derrubavam o muro com marretas, máquinas e não o dinamitavam como fazem com as rochas
para abrir caminho e construir autoestradas de asfaltinegro nas serras que continuam seu
trajeto até o ponto quase final utilizadas por duendes azuis que viajam em ondespiraladas
dimensões da imaginação propostas pelo cogumelo falante alucinógeno com alto poder
destrutivo neural igual aquele que olvidou o nome e ainda está o procurando em uma figura
do nervo cortical seccionado distinto no óptico receptor e transmissor das imagens
imaginadas. Não sei o que é o certo com a certeza da convicção das imagens captadas ou
produzidas pelo pensamento que despontam do subconsciente como lâmpadas acesas
desenhadas nos balões de fala dos gibis com várias onomatopéias de Zs representando o sono
da personagem com os oculariórgãos fechados e fáceis de abrir diferentes dos cofres
trancados por segredos de números protegendo uma quantia de capital que não pode comprar
capitais responsáveis pelos interiores dos estados dos carros-fortes quase indestrutíveis de
latarias espessas diferentes dos quelônios de espécies extintas que escondem as cabeças dos
copos de polietileno injetado não nas tubiveias vermelhas de flores desenhadas em notas de
músicas indeléveis dançadas com diversos pares de sapatos de couro animal passepisando em
áreas africanas escaldantes de dunas transferidas pelo vento levantando vôo da capa cintilante
pretamarrotada e rasgada pelo tempo de permanência nessa iminência secular.
Sem querer, mais lembranças dos sonhos ressurgiram ao pensar em Osvaldo!
Um pote de sorvete derramado na calçada, isso me remete àquela pintura dos relógios
derretendo do homem escafandro, sim, sim! Aquele mesmo, não sei se era niilista como meu
amigo necrólatra que tinha mania de visitar... A coloração do sorvete é creme misturado com
verde claro, parece catarro cuspido por um pneumônico, disseram-me que algumas pinturas
do homem escafandro representavam pederastia, aliás tudo relacionado a escorrimento.
Excesso de leitura resulta nisso: de um simples recipiente com sorvete para hipóteses
psicanalíticas.
Na escada daquele prédio escorre H2O, a umidade brota das rachaduras do granito, à
minha frente um casal caminha, há uma mamadeira na bolsa da mulher que carrega a criança
no colo enquanto fala com o homem, o aspecto do pequeno é sombrio, está com o olho
esquerdo coberto com um curativo, a casa em que entram há uma lâmpada incandescente

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acesa, o trabalho conjunto da energia elétrica com gases inertes e filamento de tungstênio
produzem a luz, algumas substituem mais de cem velas, interessante é que para se fazer algo
tão pequeno, porém tão útil, um homem teve de pensar muito...

60
PARTE II
(INTERDEPENDÊNCIAS) Página única

61
O Banquete (Conexões)

Minha vida é um acúmulo de dúvidas entre a existência e a morte, com isso erijo meu
castelo de incertezas diante de meus pensamentos. O vento passa e ele ouve um doce som,
parecido com o das conchas pêgas na areia da praia. Traz um cheiro amargo e úmido de
túmulos limosos. Nos dias nublados este local fica mais tétrico e solitário. Indeléveis
lembranças de um cemitério que ficam na memória.
Pessoas vindas de um funeral passam, conversam, vivas, examinando as horas do
relógio para seu fim. Aqui as parcas reinam. Algumas visitam os que faleceram, eu sentado
observo apenas, fui aos túmulos prediletos como de praxe, mas há muito barulho para um
local que deveria ser tranquilo, os raios solenérgicos flexeiam entre os galhos das poucas
árvores do local, jazigos cinzas, o tempo os tocou. Preciso buscá-la...
Ventos setentrionais perdidos na imensidão do tempo, ele, perdido na absurdidade da
existência, examina a estática imagem em um cartaz de uma agência de viagens, falida,
enquanto a espera. Pergunta-se como viveria em um local frio, inóspito... Gostaria de ir, mas
não posso, desenho opaco, descolorocarcomido.
O sinal toca, criaturas pequenas afoitas correm todas em direção ao portão principal,
sabem a qual adulto responsável recorrer, lá vem ela, sorri para uma amiga, fala que gosta de
mim, rápidos olhares para os lados, avista-me, corre saltitante e salta, abarca meu pescoço,
todos os dias desta semana fez isso, está no primário, sete anos, ajudo-a com as lições
escolares quando posso, muito inteligente para sua idade, como ficará ela quando morrer?
Relata empolgantes episódios ocorridos em sala de aula, desconexos, quase neologismos,
sobre etimologias não sabe, mas aprenderá, seus dedinhos apertam minha mão, outras
crianças a cumprimentam, ansiosos pelo dia de amanhã para se reverem, será? Esqueceram
que amanhã é sábado? Quando somos crianças perdemos noção do tempo, depois de adultos
temos noção, mas perdemos o tempo, porém, não é o tempo que passa, somos nós que não
conseguimos pará-lo, ela quer sorvete justo agora que o local está abarrotado.
A pequena insiste, persiste, não desiste. Pronto, lá se vai seu almoço, estômago cheio
de sorvete agora mais almoço rejeitado depois, igual a reclamações dos pais dela, casa e
escola, lugares próximos.
- Próximos. Diz ela concluindo uma oração...
Lê meus pensamentos ou coincidência do acaso? Alertei-a semana passada: nunca
devemos esperar nada do acaso, porque somos mais improváveis e imprevisíveis, retiro a
mochila dos seus ombros, excesso de peso igual a problemas na coluna vertebral no futuro,

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nunca tive esses problemas. Tenho de inventar uma evasiva para irmos... Como enganá-la?
Direi que comprei um pote de sorvete de manhã, e que se formos rápido para casa ela pode
tomar tudo. Ele a convence e vão embora.
No caminho, noto que ela aperta algo no interior do bolso da calça. Pergunto o que
procura, esta retira um fragmento de papel amassado-reciclado e expõe. Aponto uma pequena
lixeira e ela corre em direção ao receptáculo fazendo os movimentos típicos de um jogador de
basquete, ao contrário da alegria irradiandte dela, hoje o dia está sem graça, ao menos para
mim, mas quando acordei me deparei com a seguinte questão: Por que os objetos concretos e
abstratos tem a mesma imagem? Com essa pergunta a realidade entra em xeque! Várias
toalhas felpudas de banho coloridas estendidas nos varais daquela residência, bandeiras de
territórios corporais passadas em frente e atrás.
Aprendi que são pequenas formas de pensar e analisar o que faço que mudam o meu
dia-a-dia e me fazem suportar a rotina, pois tudo depende dos nossos pensamentos e do
próprio modo de ver a vida, se todos os dias pensar em morte, ou o contrário, esses
pensamentos me influenciarão no âmbito emocional.
A pequena chama sua atenção e aponta para um rapaz adiposo que pratica corrida em
torno de uma praça.
Imagino os impactos amortecidos pelas solas sintéticas dos seus calçados, notórios
pela marca conhecida, enquanto ele corre um mendigo cantentoa músicas alegres da minha
época de infância, nostalgia dos pés descalços em contato direto com a terra, o que me
surpreendeu foram os adultos correndo na grama descalços, sorriem porque estão felizes!
Divertem-se como crianças, esquecidas e livre de todos os seus problemas...
Ainda lembro dos meus pés pisando na grama macia, do cheiro verde dela e alcalino
da terra, foram épocas boas em que só me preocupava em brincar no tempo que restava do
presente e no dia seguinte, não havia e não importavam diferenças de classes, raças, religiões,
etc., vivia o presente e não sabia o que o futuro me preparava, das artimanhas do jogo sujo do
tempo!
Esse fenômeno que muda tudo, as civilizações, as sociedades, os costumes, e nos
fragiliza porque rouba nossas roupas da vida e nos deixa gelados, nós a desperdiçamos
quando fazemos o que não queremos...
Alguns indivíduos comportam-se de maneira diferente, vivem em função de manter as
aparências com tudo o que têm, no entanto, não têm a si mesmos. Mas mostrar isso para
algumas pessoas e tentar convecê-las que buscam compensar suas carências afetivas e
psicológicas através das futilidades de uma vida patética para aplacarem o vazio existencial

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dentro de si é quase loucura, importo-me com o que sou, aliás não sei quem sou, sei que tenho
um nome registrado em cartório e mais nada, tanto faz minha condição humana, isso não vai
alterar meu Eu em nada.
Chegando em casa Adrien pergunta sobre o prometido sorvete, ele pede para que
primeiro vá ao banho, em seguida almoce, então terá o almejado sorvete de sobremesa.
Quando abre a janela da sala vê uma jovem passeando sozinha na rua.
Mas aquela é Nicole! Não creio!
- Nicole! Ei Nicole!

...Sou uma devaneante caminhando em estradas sombrias do meu interior ...


Andando sobre paralelepípedos equilibra-se com as mãos no ar.
Alguém me chama, mas não reconheço a voz do indivíduo. Olha para trás e o vê
acenando da janela...
- Venha comer pão com mel Nicole!
Meu querido! Não percebi que estava na rua do seu prédio.
- Já estou subindo...
- Não vá tropeçar nos degraus... Diz ele rindo.
As estátuas de mármore em frente à larga escada de entrada eram de Eros não de Hera,
os amores de asas intactas seguravam dardos com as pontas quebradas, eram pequenos mas
chamavam a atenção pela suavidade dos movimentos e placidez dos contornos. Esperavam as
Psiques. Não sabe por que trabalhos tão frágeis estavam sob ameaça das intempéries, sujos,
antes de entrar encarou-os e se sente triste pelas obras de arte, mas não pode fazer nada
porque os amores com seus arcos e alforjes estão fundidos ao corrimão. As aves que ali
pousavam deixavam sua incontestável marca.
Avista o tapete da entrada que nunca mudaram desde a primeira vez que visitou Lúcio,
limpa os sapatos, observa os grandes vasos sem plantas ao lado da porta, grudados às paredes
não atrapalham a passagem, sem gravuras nem pinturas em alto relevo, barro cozido sem
proteção, adiante os números das caixas de correspondência quase apagados, o prédio antigo
não aparenta ter tantos apartamentos a julgar pela quantidade, passa pelos corredores mal
iluminados e sente-se observada pelos olhos mágicos das portas, no final de cada corredor há
uma janela para a circulação do ar, todas incluindo as portas não podem ser modificadas,
ordens expressas, as cores e a arquitetura interior simples têm de continuar sempre
conservadas.
Prefiro às escadas ao elevador, as paredes estão com marcas pretas, talvez dos triciclos

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das crianças que brincam aqui, algumas arrastam o guidão por não terem noção de espaço, os
meninos principalmente, esses tempos um deles tentou uma manobra mais ousada e caiu na
minha frente, começou a chorar, achei engraçada a cena mas não ri, levantei-o e o levei até
seu apartamento, sua mamãe preocupada tentava saber como aconteceu a queda, a irmãzinha
dele também começou a chorar, com tanto pranto expliquei rápido, a mulher insistia para que
eu entrasse e tomasse um café, recusei e disse que estava visitando um amigo meu, ela não o
conhecia porque fazia pouco tempo que morava ali, a troca de apartamentos e casas é comum
quando o aluguel começa a aumentar. Lembro-me nitidamente do cheiro ocre do menino.
Nicole pula de dois em dois degraus mas pára com medo de tropeçar e cair, quando
pequena, tentou pular três e quase perdeu os dentes, o susto foi grande na época mas não
chegou a bater com a boca no piso, ia com o seu pai visitar um amigo, ele avisou que não era
para subir correndo mas ela fez que não ouviu. Antes de chegar ao apartamento de Lúcio, cada
andar que alcança alguém sai do elevador, o prédio está movimentado, vê antigos e novos
moradores.
Lúcio a espera ansioso na porta e a recebe com um aconchegante abraço, beija-a.
- Sempre acontecem coisas insólitas quando venho à sua casa, espero que hoje tudo
corra normal.
Não se preocupe com isso, estava passando pela rua e nem veio me dar um oi?
- Desculpe-me, hoje saí sem destino.
Leva-a até a cozinha.
- Ainda tem um pouco de café com leite se você quiser.
Tudo bem, onde está sua sobrinha?
Como você soube que Adrien está aqui?
- Encontrei-me com Aevin por acaso semana passada em uma livraria, mas
conversamos por pouco tempo, ela estava com pressa.
- Adrien está no banho.
Sentam à mesa e degustam o delicioso néctar das abelhas.
- Lembre-se sempre Nicole: a cada mordida desse pão e cada gole desse café
delicioso, milhares de pessoas morrem de fome. Pode ser radical mas... para você viver
pessoas exploradas perdem a vida trabalhando para sustentar seus, nossos caprichos, é difícil
conviver com isso quando se tem alguma noção da importância e ao mesmo tempo, da
desimportância da vida. Eu sofro quando penso na situação em que desfruto de um gostoso e
suculento alimento enquanto crianças moribundas são comidas por abutres por não ter o
comer.

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- Tenho noção disso, aliás, hoje tive sonhos com imagens de exploração humana...
melhor não lembrar.
- Então evitemos esse assunto. Enfático.
- Esse pão está delicioso!
- Preparei a massa.
- Não tenho vocação para cozinhar.
- São anos de prática. Diz irônico, ambos riem.
Terminado o lanche, Nicole:
- Ontem um pensamento me atormentou o dia inteiro:
- Vultos com o passado perdido vêem seus reflexos apagados nos espelhos de Alice e
Narciso. Achei sem nexo, mas apareceu do nada.
- Interessante! Boa analogia, mas e ele não morreu?
- Mas nasceu uma flor no lugar. Rebate ela.
- Exato, e ela atravessou a imagem... Mas quem são os vultos?
Preciso explicar? Pergunta franzindo o cenho.
- Não, mas estava na dúvida até você responder com outra pergunta. São as pessoas.
- Você já sentiu medo de se afogar na sua imagem?
- Obrigado pelo elogio indireto, medo dessa situação nunca tive, mas tenho de várias,
sinto as diversas faces do medo, se uma pessoa me falar que jamais sentiu medo, não é
humana, até os anjos sentem medo.
- Você acredita em anjos?
- Usei uma metáfora, nosso medo é um freio inconsciente que impede, e, às vezes
empurra-nos para a resolução de determinada situação, um exemplo prático do medo que
coage era o usado pelos clérigos da idade média, incutiam-no nas pessoas, associo a palavra
incutir com cutelo, porque este é um instrumento que fere, corta a carne, a palavra incutir faz
isso nos pensamentos.
- Outra excelente analogia, hoje as pessoas ainda se submetem a esse medo e não se
questionam sobre os métodos empregados, assim dependem psicologicamente dos padres ou
pastores, lembrando que detesto falar esses nomes, não são dignos da minha saliva.
Isso não seria uma forma de preconceito? Inquire ela.
- Claro que sim, mas criaturas dessa estirpe, que enganam as pessoas em troca de
dinheiro sou radical a ponto de odiar citá-los, e da morte, você tem medo?
- Ela é como o anjo negro exterminador daquela película.
As artes retratam as épocas, mas, ah! esses nossos contemporâneos... gênios

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desprezados de um lado e bestas ovacionadas de outro.
- A película citada foi uma crítica à realidade de uma classe social?
- Sim, e falando em realidade... Imagine agora quantas realidades estão acontecendo
fora daqui, realidades simultâneas de vidas únicas que se encaixam, sonhos reais que se
enquadram, pessoas vivem a realidade neste momento como se estivessem conectados no
mesmo sonho, e quando sonham, ficam com a sua realidade mais íntima.
- Lembro da realidade de ontem - diz ele - do barulho dos pratos batendo na cozinha
da lanchonete em que fui tomar uma bebida, da janela eu observava a chuva que molhava as
telhas de uma casa de forma aleatória no início depois todas ficaram úmidas, das pequenas
lajotas brancas e amarelas dispostas de forma xadrez em uma das paredes, do barulho irritante
do ventilador, mas aquela realidade compartilhada com os presentes já está impregnada no
quadro do passado, agora só tenho as cenas móveis do presente e a tela branca, onde delineio
com movimentos leves e precisos minha vida para depois emoldurá-la no vazio do futuro...
- Tenho fragmentos rotos da realidade na infância. Via vários morcegos que passavam
rente à minha cabeça, tentava pegá-los sem sucesso, mas nas épocas de calor caíam alguns
filhotes do forro, fora da casa, capturava-os para ver seus caninos, eram engraçados, pareciam
sorrir, arrependo-me de ter matado um filhote afogado e...
- Não fique triste com isso Nicole, você era uma criança, conte-me como foi.
- Achei-o do lado da casa, estava encolhido, tratei de pegar um recipiente de vidro
com tampa para colocar o mamífero dentro, fui até a torneira em frente da casa onde nunca
faltava H2O, abri o registro e o frasco começou a se encher, o desespero do animal começou,
debatia-se, mesmo pequeno sem saber o que estava acontecendo lutava para libertar-se, lutava
pela vida, ao mesmo tempo em que me sentia triste achava belo o bater de asas dele dentro da
H2O, era magnífico, com a densidade do líquido os movimentos tornavam-se lentos, ele ficou
alguns minutos assim até parar devido ao esforço... Joguei a H2O e o depositei sobre um
caibro sem tocá-lo, já estava morto, estendi suas asinhas com gravetos e o deixei, no dia
seguinte fui vê-lo, não estava com um cheiro agradável, mas o alimento das formigas estava
garantido para o inverno, as asinhas estavam corroídas, naquele caso a cadeia alimentar havia
se invertido, pois aquela espécie de morcego não era hematófago, os que se alimentam de
sangue, alimentavam-se de frutas e insetos, depois de alguns dias havia só seu esqueleto,
lembro-me com detalhes porque não queria matá-lo por ódio, queria apenas ver a beleza do
bater de asas, mas como para toda vaidade há um preço, o dele foi a morte, o meu, o
arrependimento.
- Você era uma menina que brincava com morcegos?

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- Sim, gostava dos bichinhos, tinha medo dos morcegos, mas me causavam interesse,
só não gostava de abrir os animais, isso uma amiga minha adorava fazer nas rãs, hoje ela é
cirurgiã.
-Falaste sobre vaidade...
- Sim, aliás, o que não é vaidade?
- Essa pergunta me remete a um livro. Observa ele alisando o queixo.
- Sei de qual você fala, a cultura ocidental o tem como base religiosa, mas não passam
de palavras, como as que eu falo, porém, as minhas desaparecerão como todas as vozes e
pensamentos não grafados ou gravados, e voltando à vaidade, eu não quis fazer alusão
alguma, mas confesso que naquele livro pessimista ela é bem empregada.
- Concordo.
- Quando cheguei em casa ontem me diverti com um livro de arquitetura das antigas
construções gregas, e senti que a fragilidade tem uma forte ligação com o belo, enquanto o
dórico era robusto, cúbico, o jônico suave, belo, e essa beleza levou ao aperfeiçoamento dos
capitéis, o nome dado ao estilo foi o Coríntio, uma maravilha de capitel esculpida em rocha.
- Desculpe-me a ignorância, mas o que seria capitel?
- É a parte superior de uma coluna grega. As outras partes são a base e o fuste, este é a
coluna, entendeu?
- Sim, obrigado...
- Nos meus devaneios sempre relaciono o dórico com o cubismo, e o jônico com o
surrealismo, e subdivido-os em consciente e inconsciente, estranha relação não acha?
-Talvez seja, mas você fez um entrelaçamento interessante entre a psique e a arte.
Eu deveria ter escolhido Eros a Apolo, mas arte é fascinante, é a forma mais pura da
estética ou não? Fiquei em dúvida, às vezes não me compreendo, penso em assuntos mais
complexos e não consigo responder a uma simples pergunta.
- Arte e estética são dependentes, pois estética é a base da arte.
Ambos intercalam entre goles de café com leite e conversa, mas em determinado
momento ela se expressa de forma efusiva e bate com o braço na caneca, ambos se assustam e
agem com o reflexo atrasado, a vítima não chega a cair no chão.
- Sorte que estava vazia. Diz ela.
- Isso acontece não se preocupe.
- Estou preocupada com quem me ligou...
Quem?
- A Anim, disse que Eslel foi para a clínica outra vez, ficou estranha quando perguntei

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sobre a despedida.
Quanto tempo você ficou com ele?
- Até a hora que percebi que a loucura era toda minha, respondeu.
- Não entendi o que ela quis dizer e respondi: - Sinto muito.
Você acha que vão se separar?
- É provável que não, apesar de Anim lutar contra os sentimentos não consegue
esquecê-lo. Eslel devia se aperceber disso, ele nunca comenta nada conosco, tem amigos que
se importam, mas faz questão de se sentir inferior a todos, deixa claro no que escreve, mesmo
com a tal da indiferença...
Algumas pessoas têm tudo, no entanto, nada compra seu tempo perdido... talvez seja
isso que ele queira, e o que resta? Restam apenas suas lembranças.
É na memória que fazemos a ligação de vidas e a reconstituição dos momentos pelos
tênues fios das nossas lembranças.
A sobrinha dele sai do banho e diz que está com fome.
- Ajude-me a preparar uma refeição bem gostosa para essa menina linda Nicole?
- Com certeza. Responde, piscando para a pequena, que sorri e senta à mesa, enquanto
ele procura algo para preparar na dispensa. Depois que decidem, começa a preparar, Nicole
senta defronte à menina e começa o inquérito normal sabendo de antemão algumas respostas
Quantos anos você tem meu anjo?
- Sete - responde Adrien de modo tímido.
Por que está tímida?
- Ela costuma ficar assim com pessoas que não vê há tempos. Responde ele, cortando
as verduras rápido.
- Hoje foi a segunda semana de aula dela.
- Nossa! Parabéns Adrien!
- Depois de várias tentativas na primeira essa ela foi sem relutar.
Que menina aplicada, você fez amigos na escola?
- Tenho uma amiga que se chama Marta, ela gosta de brincar com quebra-cabeças,
ontem fui à casa dela e tinha um monte em quadros, ela montou sozinha.
Quebra-cabeças emoldurados você quis dizer?
- Isso...
Ele ouve a conversa sem interromper, pensando: em questão de minutos já estão
conversando, é fácil de contagiar uma criança pelo lado emocional, mas quando querem algo
convencem mais rápido que qualquer adulto. Preciso de mais cenouras, vejamos...

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- Nicole, preciso comprar cenouras, você toma conta de Adrien por alguns minutos,
por favor?
- Óbvio, ela vai contar seus segredos de menina, não é mesmo Adrien?
A pequena sorri de modo tímido tapando a boca com as mãos.
No momento em que ele desce as escadas encontra Aevin e Lot.
- Trouxemos verduras e frutas, vimos que sua dispensa estava vazia.
- Esqueci de ir ao supermercado ontem, mas vocês não deviam se preocupar.
- Sentimo-nos gratos pela ajuda, é nossa retribuição. Diz ela.
Quem está com Adrien? Pergunta Lot.
- Nicole...
Nossa! Ela resolveu aparecer?
- Sim, vou comprar cenouras.
Estamos trazendo, não é preciso.
- Tudo bem. Mas ainda faltam as batatas.
No setor de legumes, grandes sacos de amendoim, arroz, feijão, lentilhas.
Grãos que não acabam, quando era pequeno me imaginava nadando, mergulhando em
grãos, a sensação deve ser gostosa, mais adiante nos congelados há peixes não muito frescos,
minha avó quando viva ensinou-me a escolhê-los.
- Olhe para os seus olhos, se estiverem vermelhos, não é fresco. Não esqueci da
premissa simples e prática...
No balcão ao lado estão as carnes...
Carne? Pergunta o açougueiro.
- Não, obrigado.
Trabalham o dia todo com pedaços de animais. O cliente chega, escolhe o tipo de
carne e sai com pedaços de cadáveres em sacolas, carnívoros... Preciso comprar as batatas e
alguns tomates, é uma fruta gostosa. Nos alto falantes uma voz feminina anuncia os preços de
determinados produtos com uma música de fundo, as pessoas passeiam com seus carrinhos de
compras entre os diversos corredores, a temperatura está na faixa de vinte graus Celsius, o
estabelecimento fica quase vazio na hora do almoço, imagino quantas pessoas no mundo estão
fazendo o mesmo que eu agora.
A moça do caixa passa os produtos de modo robotizado, usa os pronomes de
tratamento adequados e os cumprimentos conforme a rotação da terra em torno do sol, óbvio
que ela não se importa com isso, mas quando perguntei a ela o porquê dos pólos terrestres
serem regiões congeladas, respondeu-me: - A incidência dos raios solares é menor.

70
Esses dias ela me perguntou por que algumas frutas não eram cultivadas no nosso
país, respondi que, devido às condições climáticas, à morfologia da terra, à periodicidade
pluvial e uma infinidade de outros fatores, não nasciam, a não ser em estufas, porém pensei
que quanto mais tentava explicar, menos ela entendia, mas a subestimei, encontrei-a em uma
amostra de cinema de filmes com profundidade filosófica extraordinária, falou sobre as idéias
dos diretores, as mensagens, as temáticas, etc., disse-me que sabia o porquê de não cultivarem
as frutas e perguntou para me testar, fiquei sem palavras e senti-me atordoado, a partir
daquele dia comecei a admirá-la, não como à Nicole.
Apresentei-as esses tempos, e vi o carisma de duas mulheres inteligentes conversando,
após alguns dias ficaram íntimas, ou seja, viraram amigas e ao contrário da maioria das
mulheres, falsas, elogiam-se mesmo distantes...
O casal chega e encontra Nicole auxiliando Ariam com os deveres da escola.
Olá Nicole, como você está?
- Estou bem.
- Não deixe Adrien mal acostuma. Fala Lot sorrindo.
Você pode nos ajudar a guardar as compras?
- Com prazer.
O que ele estava preparando? Aevin pergunta levantando a tampa da panela.
- Sopa de legumes, presumo.
- Esqueceu as batatas. Fala em tom pejorativo.
- Encontramos os três mosqueteiros juntos enquanto caminhávamos hoje pela manhã.
Quem são os três mosqueteiros Lot?
- São jovens que todos os dias jogam e bebem sempre a mesma marca de vinho em
uma praça aqui perto, um deles aparece às vezes.
Acho que os vi, estavam com camisetas? Ficam naquela praça com um chafariz?
- Sim. Respondem ambos.
A menina a chama...
Acabou?
- Sim...
- Deixe-me ver... Excelente Adrien! Vocês têm uma filha genial em casa hein?...
Ao sair do supermercado alguém bate no ombro de Lúcio, ele vira e larga as bolsas no
chão surpreso, permanecem um bom tempo abraçados...
Você está bem Anim?
- Não tão bem... Eslel internou-se.

71
Eslel e Anim (Amor)

Depois de um frívolo abraço despediram-se sem lágrimas ou sorrisos, viraram as


costas e não olharam para trás. Ele estava indiferente ao momento e à despedida, ela, sua
namorada, sentia uma leve sensação de perda, claro que para uma estória romântica são
necessários clichês de para sempre, eu te amo, etc., mas sabiam que aquilo estava
acontecendo na realidade, realidade que Eslel sempre detestou e a solução foi peculiar:
afastar-se dela.
Anim acabara de deixar os portões altos da clínica, na avenida o barulho ininterrupto
dos carros não era problema, pois o terreno onde ficava o prédio era imenso com lindos
jardins em torno de chafarizes de cisnes lapidados com esmero, elegantes.
A última vez que Eslel estivera ali descobriu os ângulos exatos para ver a água e os
raios de sol produzir as cores do arco-íris, mas naquela noite só queria ir para o quarto,
descansar e tentar parar de pensar no que acontecera.
Neste momento ela deve passar pela vitrina da loja de ursinhos de pelúcia, lembro-me
daquele dia de inverno quando passeávamos e paramos em frente, assim que ela viu o ursinho
mais feio pediu, entrei, comprei, e quando dei a ela, recusou, mas falou de modo tão
indiferente que me surpreendeu, adora me pregar peças.
Enquanto Anim passava pela loja lembrou do que disse a Eslel: - Agora você sabe
como me sinto quando você fica indiferente. Ficou surpreso e depois sorriu... as pessoas que
passavam sérias com seus rostos melancólicos achavam absurda nossa atitude porque de
repente tivemos um ataque de riso, peguei o bichinho de pelúcia e dei para uma menina que
passava com a mãe, seus traços eram tão parecidos que surpreendiam, elas agradeceram e
desapareceram na esquina seguinte.
A cena nostálgica congelou ela diante da vitrina que não era tão enfeitada, mas as
luzes coloridas piscavam e cediam um ar alegre aos ursinhos deixando-os radiantes na noite
para chamar a atenção dos pequenos, mas àquela hora deviam estar deitados, sonhando.
Estou cansado, deitarei e apoiarei os pés na parede, isso ajuda na circulação
sanguínea... mas por que me colocaram em um quarto com janelas tão divididas? Ao entrar
não notei, parece que a paisagem fica quebrada, um mosaico da natureza, não gosto de objetos
fragmentados, já estou satisfeito com meus pensamentos, retalhos antagônicos entre a
realidade e a imaginação, pedirei para mudar de quarto, apesar de parecidos, pois têm a
mesma quantidade de mobília: uma cama e um guarda-roupas.

72
Eslel chamou o enfermeiro e apresentou suas reivindicações, mas seu antigo quarto
estava ocupado, porém o enfermeiro disse que conversaria com o hóspede e proporia a troca.
Depois de alguns minutos uma garota depressiva apareceu na porta acompanhada do
enfermeiro, entraram, ela olhou ao redor, tocou nas paredes...
- As paredes são geladas. Foi até a janela com as cortinas abertas, examinou os
vidros...
- Gostei desta janela.
O enfermeiro colocou as malas dela sobre a cama e pegou as de Eslel, que perguntou a
ambos se havia alguém nos corredores, imitando de modo burlesco o andar do diretor, a
menina respondeu que não e começou a rir, o enfermeiro fez questão de demonstrar
negligência com o ato, após a apresentação Eslel saiu desconfiado.
No seu antigo quarto sentiu uma tênue ansiedade quando reviu aquelas janelas com
enormes vidraças, as paredes pintadas de verde-claro transmitiam tranquilidade, a cama ainda
era a mesma, era o único que ficava na ala dos depressivos, eles não depredavam os móveis,
em compensação o corpo... o enfermeiro despediu-se e fechou a porta, Eslel foi até um dos
pés da cama para ver se a frase estava apagada.
Não lixaram! Abriu a mala, retirou um estilete... Não analisaram o conteúdo da mala,
será que não revisam mais? Vou escrever neste outro pé.
De repente abriram a porta, Eslel ouviu uma voz rouca e velha:
- Verifique sempre na entrada.
Logo despontaram os sapatos brancos do enfermeiro e a voz rouca soou no quarto:
- Dê-me este estilete.
Como o diretor sabe que estou com isso, esqueci o estojo sobre a cama? Entregarei-o
para evitar desavenças. O diretor colocou o estilete no estojo e resvalou para o bolso do jaleco
enquanto o enfermeiro fazia a inspeção:
- Nada além do estilete senhor.
Tudo bem, mas nunca esqueça da vistoria, certo?
- Não esquecerei doutor.
Depois da vistoria o diretor abriu um grande sorriso e os braços, conversaram por
alguns minutos como velhos amigos, o diretor perguntou se o hóspede não precisava de nada,
com a resposta negativa deixou Eslel descansar.
Anim atravessava a avenida junto com outras pessoas e parava em uma esquina: será
que volto e digo a Eslel que não quero mais vê-lo, ou essa raiva que sinto por ele é
passageira? Essa despedida foi a única que não expressamos sentimentos, apesar de amá-lo

73
deveras. Estimo-o tanto, só ele não percebe isso com aquela tal de indiferença patética, depois
que começou com aquilo mudou, mas não deixa de ser especial, único, porque me mostrou
que também sou assim, aprendi o que sequer imaginava. Agora tudo é passado, porém,
aumentei minha bagagem de conhecimento, será que pego meus pertences em nossa casa e
divido o apartamento com Dien pela segunda vez já que tanto insiste? Não quero fugir do
passado me mudando de cidade, vou enfrentá-lo, quando precisar de Eslel sei onde o
encontrar depois que sair da clínica, espero não precisar, às vezes para esquecer de uma
pessoa precisamos fazer sacrifícios, nada que nos impeça de viver, penso na possibilidade de
me separar, em momentos de raiva sempre penso em separação, mas não conseguimos. Só
não entendi porque ele agiu daquela maneira ontem, estava descontrolado e não queria me
dizer, a falta de comunicação dos homens as vezes me irrita, ainda bem que falamos por eles.
Só amamos uma pessoa quando nos esquecemos de nós mesmos, o amor é uma
renúncia de si mesmo, eu a amo porque me faz esquecer de tudo, paro de pensar para sentir,
será que alguém vive sem pensar? Dessa vez ela se foi, presumo, mas o importante foi o
aprendizado e as experiências que adquirimos e desfrutamos, algumas não agora, mas no
futuro sempre são postas em prática, é a vivência total de nossas vidas, não podemos
desanimar e deixar que o passado de situações ruins tome conta do presente porque o futuro
chega a cada segundo, construímos um futuro através de sonhos que jamais devem ser
minados, pois quem não sonha não vive, é um robô sem perspectivas de futuro, claro que
existem diferenças entre sonhar e fazer, os que correm atrás dos seus sonhos realizam-se, os
outros apenas se perdem em seus labirintos de dúvidas, afogando-se nas profundezas de suas
incapacidades.
Sinto que essas reflexões são necessárias para evitar possíveis males, assim me sinto
como no dia em conheci Anim, por incrível que possa parecer a conheci em um dos locais
mais insólitos que alguém pode imaginar, em um cemitério, pois minhas idas àquele local
silencioso, calmo e convidativo a reflexões eram frequentes quando não tinha inspiração para
escrever e pensar em casa. Sentava em um banco na parte alta do terreno e as idéias fluíam.
Entretanto, em um dia que pensava sobre a morte, já que o local era propício, senti alguém se
aproximar e parar alguns metros a meu lado, no princípio relutei em olhar, mas sentia que era
observado, ao olhar direto para a figura feminina que estava ali julguei ser Vênus de Milos, e
não era estátua, aquela tinha os braços e segurava uma garrafa dentro de um pacote de pão.
Notou meu embaraço e eu me fiz de indiferente, parecia curiosa, intercalando goles de bebida
de minuto em minuto, percebi que ela contava os segundos batendo a ponta do pé esquerdo no
chão. Guardei a caneta e o papel ainda em branco, depois daquele instante meus pensamentos

74
petrificaram-se, levantei-me e ouvi uma voz flautica, como bom sátiro reconheci a ninfa que
sempre sonhei:
Espere! Você é escritor?
- Escrevo o que penso.
Direta e concisa: - Primeiro: chamo-me Anim. Vi você em outros locais praticando o
mesmo ritual, se é assim que posso definir, qual seu nome?
- Eslel, não é ritual, é hábito, gosto de ir às praças mais calmas.
- Interessante saber, estou indo à casa de uma amiga e passando pelo cemitério senti
saudades de algumas pessoas, entrei e fiquei observando os túmulos, você quer um gole de
bebida?
Não sabia o que era mas aceitei, e daquele ponto em diante sabia que era capaz de
amar alguém e a mim mesmo, algo que nunca havia experimentado.
Começamos a conversar sobre assuntos banais regados a um bom vinho, mas Anim
deixou evidente o preciosismo de sua oratória mesmo avariada pela bebida, o que me
impressionou deveras, aos poucos ela notou minha indiferença, logo perguntou se eu não
gostaria de acompanhá-la até sua amiga para assistirmos a um filme. Disse-lhe sim sem
perguntar nada.
No caminho fui agraciado com sua voz melíflua que pairava pelos ares, entrecortada
por sorrisos que terminavam em um tom melancólico. A suavidade dos lábios e os olhos
grandes faziam me perder em infinitos devaneios, afundei-me em um mar verde e vítreo no
instante em que olhei para aquelas íris hipnotizantes. Os movimentos das sobrancelhas e o
fechar vagaroso dos olhos denotavam a delicadeza daquela deusa com cabelos pretos na altura
do queixo, tão brilhantes que ofuscavam meus pensamentos, a franja que escapava de trás dos
ouvidos com brincos pequenos, e o jeito que ela a recolocava me deixava perdido, fez um
movimento elegante ao se virar, e ao ver sua nuca senti um ímpeto desmedido de beijá-la, mas
consegui manter o controle. Quando ela tentou uma aproximação com as mãos eu evitei de
princípio, mas minha curiosidade não resistiu e quando senti o toque daquelas palmas sobre
meus braços, uma mescla de impotência e perplexidade surgiu diante de tanta ternura.
Anim apertou a campainha, logo surgiu uma mulher de cabelos compridos e Loiros,
usava um brinco colorido, apresentou-nos:
- Este é um amigo que fiz hoje, chama-se Eslel.
- Olá Eslel, sou Dien, vamos entrar.
Entramos com a garrafa em punho, mas não havia mais vinho, a anfitriã pegou-a e
jogou na lixeira da cozinha, o apartamento era confortável, ideal para duas ou três pessoas, a

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sala era simples, com almofadas de diversas formas e um tapete grosso, não havia assentos, os
móveis eram novos e escassos, alguns envernizados e brilhantes, ao entrar senti um cheiro
agradável de flores, mas não sabia onde estavam, perto da janela ficavam os aparelhos
eletrônicos em que veríamos o filme ainda mantido em segredo, foi então que ao olhar para a
sacada através das finas e brancas cortinas paradas, não havia vento, achei vasos com flores
estrategicamente colocados para se banharem pelo sol matinal.
- Vamos ver o filme, disse Dien.
- Primeiro: Alguém se importa de pegar uma bebida na cozinha?
Ofereci-me para tal ato e ao abrir o refrigerador... havia tantas bebidas que não sabia
qual escolher, optei pelo vinho.
O filme começou e percebi de imediato qual era, fiquei impressionado ao saber que
apreciavam clássicos, tratava-se da evolução da espécie humana, uma pérola com bases
antropológicas incríveis, dirigida por um gênio da sétima arte, demonstrei total interesse.
Depois do filme perguntei se poderia usar o toalete, Dien me indicou a direção, quando entrei
notei várias roupas e acessórios sadomasoquistas, inclusive falos de borracha no chão, mas
não me surpreendi, quando cheguei na sala, Dien pediu desculpas, já que não teve tempo de
guardar os objetos do banheiro, foi pega de surpresa quando a viu acompanhada, falei que não
achava incomum e não me importava, mais relaxada pelo efeito da bebida sentiu-se à vontade
para esclarecer seu prazeroso trabalho, explicando com clareza os tipos de parafilia e suas
vertentes, enfatizando que era uma dominadora, eu desconhecia a existência de tantas
ramificações, era profunda conhecedora do assunto na teoria e prática, Anim só ouvia sem
opinar, mas a troca de olhares entre as duas era peculiar, não manifestei nem uma pergunta,
falou-me dias depois que morou e namorou com Dien.
Antes de Eslel partir, um pouco avariado pela bebida, pedi seu telefone, e ele, para que
eu não hesitasse em ligar, achei-o estranho, soturno, provocou-me interesse instantâneo, típico
de personalidades curiosas, dois dias depois liguei, houve um diálogo conciso:
- Alô.
Boa tarde, Eslel?
- Sim, Anim?
- Sim, gostaria de conversar em algum lugar.
- Podemos ir a uma lanchonete se você preferir.
Tudo bem, qual?
- A lanchonete Azul,conhece?
- Sim, estarei lá em uma hora.

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- Certo. Em seguida despedimo-nos.
Escrevia uma frase quando recebi a ligação: Sinto-me atraído a escrever sobre a
condição atual da miséria da alma humana, mas minha linha de raciocínio desmoronou-se,
não conseguia pensar em nada além da voz dela, não escrevi mais nada naquele dia, fui
caminhando porque era próximo da minha casa, no caminho vi um cachorro descansando na
sombra de um táxi, o sol estava resplandecente, um taxista tinha um rosto de sono com as
maçãs descoradas, elogiou a beleza da garota que passou por nós comendo uma maçã do
amor, os outros que estavam no ponto vibravam com um jogo de futebol que passava na
televisão, em uma lixeira próxima avistei outra amarronzada com várias marcas de dentes,
devia estar há dias ali, nunca vi tantas maçãs em um só dia, cheguei e ela não estava, sentei,
pedi um chá e esperei, a lanchonete não era lá essas coisas, mas era limpa, havia uma mulher
sentada na mesa ao lado que comia uma macarronada com molho branco, este escorria pelos
cantos da boca sem segundas intenções, um homem velho no balcão degustava sua cerveja e
conversava com o garçom. Minha mesa dava para a rua e eu apreciava o movimento, senti
fome e pedi um pastel de palmito, os pastéis de palmito têm gosto de vômito pensei, mas são
gostosos, azedos, a que horas ela virá?
Parece que os minutos duram uma eternidade quando você quer ver alguém agradável,
esperei meia hora e nada. Foi quando um fluxo de pensamentos advindos de repente
impressionou-me, retirei minha caneta, um pedaço de papel amarrotado e comecei a escrever,
acho que o nervosismo de esperá-la provocou aquela torrente de idéias, contudo pensava: Não
conhecemos nossos passados, porém há uma compatibilidade de idéias e sentimentos.
Depois que passei tudo para o papel fiquei mais calmo e comecei a degustar o pastel
tão esperado e gorduroso, coloquei um pouco de pimenta para completar o atentado contra o
organismo, não estava com muita fome e assim que terminei Anim surgiu, simples, daquele
jeito radiante. O cheiro dos seus cabelos ficaram impregnados nos espectros das minhas
lembranças. Sentou-se e com um gesto suave afastou o porta guardanapos que ficava entre
nós, olhou-me nos olhos e me desconcertou, mas não desviei, sorriu sem jeito e começou:
Preciso lhe contar algo
- Diga.
Sabe o dia em que o encontrei no cemitério?
- Sim, faz dois dias.
- Não vinha me sentindo bem há alguns dias, estava depressiva.
Por quê?
- Sei que você pode não concordar, mas... não via mais sentido na vida, então naquele

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dia soube que através do acaso situações boas podem aparecer de modos imprevistos.
- Mas não fale que posso ser um bom motivo, além disso penso que cada pessoa pode
fazer o que quiser com sua vida, pois a ética consiste na avaliação da consciência que ela faz
de e para si mesma, as pessoas escolhem os caminhos que querem independente de suas
questões culturais, econômicas, sociais, etc., as que crêem em si podem modificar o mundo, a
humanidade já teve vários exemplos, inclusive déspotas.
- Eu sabia que você entenderia, no entanto, jamais imaginaria que seu embasamento
fosse retirado da moral! Mini aula de moral.
Falando isso ela deu uma risada de satisfação tão natural que me deixou em êxtase.
Fazia tempo que eu não falava de ética com alguém, ela me empurrava para esses velhos
caminhos esquecidos, despertando aquela nostalgia de quando eu era menino e tudo queria
saber, talvez ela também fosse assim, eu disse que não acreditava em destino me referindo ao
dia do encontro.
- Eu também não, disse emendando: - Quando você falou sobre déspotas foi sua moral
e não o ponto de vista de quem fez as atrocidades, para o déspota era o certo a se fazer.
- Tens razão, essa é a ética, a consciência de cada um.
- Vejo que você não alterou sua consciência ainda, está tomando café com leite.
Sim, comi um pastel antes de você chegar, você quer tomar o quê para alterar sua
consciência? Depois da pergunta ela sorriu e me levou às nuvens.
- Na verdade não sou adepta a bebedeiras homéricas em bares, bebo as vezes.
O velho que estava no balcão ameaçou acender um cigarro quando o garçom apontou
para uma placa de proibido fumar, o velho se virou, olhou para a placa como se não estivesse
enxergando e fez um sinal de continência ironizando a situação: - Sim senhor!
Anim viu a cena engraçada e ficou aliviada, não falei nada, meu rosto deixava
transparecer o motivo da dúvida.
- Não fumo e não gosto da fumaça de cigarros, irritam minhas narinas, antecipando-
me à sua questão.
O jeito dela era tão especial que eu poderia observá-la por dias sem sair dali, disse que
sentia uma admiração imensa pelo seu jeito.
- Mas você sequer me conhece. Replicou.
No fundo se sentiu lisonjeada como qualquer pessoa, só que a reação simples e doce
dela transformou o momento em uma cena indelével. Fez um sinal ao garçom e disse que
queria chá, perguntada sobre o sabor respondeu:
- De laranja. Olhamos um para o outro e ela piscando:

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- Para acompanhá-lo, o importante é a conversa. Enquanto conversávamos, pessoas
passavam na rua apinhadas de bolsas achando que a felicidade estava em comprar, notei que
não precisava daquilo porque me sentia felicíssimo apenas trocando idéias com uma mulher
magnífica, comentei para ver a reação dela, impressionei-me: Citou que Sêneca havia escrito
sobre isso há mais de mil anos em um muro na Grécia antiga. Corrigi-a porque confundiu
Sêneca com Epicuro e reforcei dizendo que a base de sua filosofia era uma tríade: amizade,
liberdade e tempo para pensar, as pessoas pensavam que comprando teriam os três, mas se
enganavam como acontece hoje, perguntei onde havia lido sobre o assunto.
- Dien me emprestou um livro básico de filosofia.
Mas não importava se ela sabia ou não sobre Sêneca e Epicuro, quanto mais descobria
que tínhamos gostos parecidos, mais atração eu sentia.
Eslel foi gentil comigo na lanchonete, mas não deixei de notar certo afastamento,
achei estranho que de início evitava contato físico, sem abraços, beijos no rosto, até para
amizade o seu jeito era distante, só que se esforçava para me tratar da maneira mais agradável,
porém quando toquei em seu braço sentiu-se desconcertado, mas o resultado de algo tão banal
ainda surgiria. Tomamos os nossos chás naquela tarde e fomos passear em um jardim
próximo, elogiou-me e em um gesto rápido me olhou, abraçou e beijou, seus movimentos
foram previamente calculados, não tive tempo, e não queria me desvencilhar.
A sensação de frio na barriga, as pernas bambas, o coração acelerado, nada mais
existia além de Anim naquela tarde.
Depois de algum tempo decidimos namorar com uma condição recíproca: liberdade,
ninguém pertencia a ninguém, concordei porque gostava dele, no fundo tinha a mesma
opinião, mas as vezes a sociedade condena os que pensam e agem diferente. Nos momentos
íntimos todos os nossos desejos eram satisfeitos, porque quando se ama não existem regras, se
eu não estava preparada para tal ato avisava-o, que fazia todas as minhas vontades com
prazer.
Prometemos que aos poucos faríamos uma retrospectiva de nossas vidas, foi difícil
acreditar que Eslel teve problemas psicológicos, havia sido internado uma vez, então descobri
porque era tão peculiar, superou várias fazes, mas recorreria sempre a uma clínica quando
percebesse a perda de controle emocional, as que aconteceram foram bem administradas e não
houve motivo. Foram prescritos remédios que ele tomava conforme os horários adotados,
ficou mais apático que o normal, queixava-se de efeitos colaterais, mas passou aquela fase e
superou a dependência inconsciente dos remédios, depois de algum tempo o psiquiatra falou
que eram placebos. Apesar de ser uma pessoa plácida a agitação estava em sua cabeça, o que

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não era aparente. Técnica semelhante é usada por pessoas fúteis e vazias, mas ao contrário,
aparentam ser o que nunca serão.
É tão absurdo, deixá-la sem dizer nada... apenas olhá-la daquele jeito meigo. Sabia que
cedo ou tarde voltaria, minha família havia falado com o diretor, disse que tudo dependeria de
mim, espero que ninguém tenha desconfiado do teatro que fiz. Aqui me sinto seguro, fico
longe da loucura do mundo e em paz para me ocupar com os meus pensamentos.
Amanhã quero visitar Rodan, desde a última vez que estive aqui não converso com
alguém tão inteligente e controverso, não entendo como é tão entusiasta com suas teorias em
um local onde a maioria dos internos vive sob efeito de remédios tão fortes, calados em uma
sociedade doente, enquanto ele esbanja idéias e destila confusão no meio de mentes
atormentadas. Soube que dias depois de minha última temporada estava prestes a cometer
suicídio com uma caneta na jugular.
Conhecemo-nos na biblioteca da clínica em uma tarde fria, percebi que no corredor ao
lado alguém ria, estava na sala de romances filosóficos, parei onde havia um grande espaço
entre os livros da estante e então Rodan: - Leia esses dois depois venha falar comigo, colocou-
os na estante que nos separava e foi embora, peguei-os e li nas capas: O Estrangeiro e A
Náusea.
Ele havia escrito comentários e críticas fantásticas nas margens das páginas, procurei-
o pelos corredores um dia depois de terminada a leitura perguntando a internos e enfermeiros,
mas ninguém sabia ou queria falar seu paradeiro, os psiquiatras não queriam nosso
envolvimento, mas uma bondosa enfermeira chamada Tânia me indicou o número do quarto,
em troca ela exigiu visitas ao meu, duas por semana para ser preciso, contei o episódio a
Anim, pois nosso relacionamento sempre foi franco.
A clínica era imensa e demorei para achá-lo, quando cheguei Rodan não estava, um
rapaz apontou em direção ao pátio da sua ala, encontrei-o por acaso no corredor, pegou os
livros, deixou-os no quarto e empolgado falava de Berta, achei que fosse uma de suas
alucinações, mas fui apresentado a uma notável anciã que estava trabalhando em uma tela,
tentava reproduzir uma árvore centenária e insistia que seus traços eram iguais aos de
Michelangelo, no entanto era uma figura abstrata, parecia Kandinski, ficou chateada depois
que falei, porque ela não gostava desse pintor, mas assumiu que a primeira pintura abstrata foi
dele, Berta pintava sempre ouvindo obras de Wagner, sua preferida era a cavalgada das
Valquirias, quando eu pedi que colocasse Strauss e seu Assim falou Zaratustra ela desabou em
gargalhadas, aliás essa era uma de suas peculiaridades, conversamos sobre arte a tarde toda,
no outro dia de manhã Rodan batia em minha porta desesperado, chorava.

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- Berta morreu - dizia sem parar e soluçava.
Quando chegamos no velório só havia o enfermeiro dela em prantos, o caixão era
simples e as velas bruxuleavam quando a porta da sala improvisada às pressas era aberta, nos
aproximamos do caixão e pensei: ontem estava tão feliz e hoje eu encontro um corpo sem
vida, gelado, não me contive e chorei porque naquele momento reconheci que bastam
algumas horas para que uma pessoa fique eternamente em nossas lembranças.
A sala era fria, não havia flores no caixão, mas o último vestido cinza com detalhes
dourados que Berta usava era imponente, típico do século XVIII , achou-o em um brechó
antes de ser internada, guardava-o a sete chaves para seu funeral e disse só para o enfermeiro
onde encontrava-se a chave do grande baú que tinha em seu quarto, luvas brancas cobriam
suas mãos de movimentos frenéticos quando pintava. O enfermeiro nos disse que demorou
para deixar o penteado do modo que ela desejava mas conseguiu.
O diretor foi visitá-la a tarde e não permaneceu muito tempo, eu soube que ela foi uma
das primeiras internadas, mas a ala dela ficava tão distante da minha que não a conhecia.
Berta foi cremada e suas cinzas foram jogadas ao pé da grande árvore como desejava.
Rodan ficou depressivo por dias, não queria sair da cama, mas ia visitá-lo todas as
manhãs.
Depois que o conheci melhor soube que era amigo de Nicole: - Loucos se atraem! -
afirmava, ficou menos desinibido e começou a mostrar seus textos de sarcasmo e acidez
inigualáveis, eu só ria mas sabia que estava diante de um exímio escritor que jamais
publicaria suas obras, odiava publicações, não sei se continua assim.
Pedi a tela da árvore para o enfermeiro de Berta, que me perguntou se eu queria só
aquele, pois os outros iam para o lixo, já que a família tinha abandonado Berta e Rodan era o
único paciente que conseguia conversar com ela. Dividimos as telas. Hoje a tela da árvore está
em nossa sala, outras três estão espalhadas pela casa, Anim passa horas a observá-las.
Para tentar compreender Eslel começou a ler psicologia, descobriu coisas
interessantes: ele era do tipo introvertido com poucos contatos pessoais, mas intensos, ela
tinha vários, a maioria supérfluos, personalidades diferentes tem grandes probabilidades de se
atrair devido a compensação de carência de afeto entre ambos, era isso que ligava o casal.
A primeira vez que Eslel foi à minha casa eu estava na sala, falou algo mas não
respondi porque não distingui as palavras, quando cheguei à porta da cozinha vi que ele
gesticulava e falava com alguém que não existia, levei um susto e voltei para a sala, depois de
algum tempo me acostumei.
Eslel apagou a lâmpada, abriu as cortinas enfeitadas com desenhos alegres de cores

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suaves e a lua surgiu retumbante... Em noites frias vejo tantas estrelas. Os meteorologistas
previram que o inverno não será rigoroso esse ano, mas a natureza tem as suas surpresas,
trouxe casacos grossos. Deitou e fechou os olhos... Agora sozinho no escuro procuro meu
destino, necessitando do nada e querendo tudo: da coragem no leão, do coração na lata, do
cérebro na palha... Espero que Anim chegue incólume em casa, ela não costuma perambular
pelas ruas a noite. Hoje a lua está magnífica... cheia e brilhante...
Naquele momento ela chegava em casa e destravava a porta, quando jogou as chaves
na gaveta de um balcão próximo à entrada ouviu um barulho metalizado que lhe feriu os
tímpanos, retirou seu casaco e o jogou sobre o sofá adquirido naquela semana, pensou em
ligar para Dien, mas era tarde, deitou, ligou o rádio, tocava sua música preferida.
Sobre a mesa de centro estavam alguns papéis e CDs de Eslel, organizados.
Não me atrevo a mexer, ele saberia, deve ter criado um ponto de simetria entre seus
pertences e qualquer objeto ou móvel da sala, essas coisas ele não divide comigo, gostaria de
rasgar tudo e quebrar esses discos, mas isso não o atingiria, o mais importante levou consigo,
ontem o vi separando tudo com cuidado. Acho que o ato da televisão foi um embuste mas não
comentei. Será que ele fez isso para provocar uma separação temporária, ou por que não me
ama mais? Não gosto de pensar nessas hipóteses, a mente humana é tão confusa e não dá para
descobrir o que ele pensa.
Abriu a janela da sala... lá embaixo os escassos carros com seus faróis acesos
vagavam pelas ruas tortuosas, as calçadas que ficavam abarrotadas durante o dia estavam
vazias, do outro lado da rua viu um grupo de pessoas entrando em um restaurante chinês.
Ontem comi uma carne saborosa ali, fizeram rodízio, perguntei ao garçom de que
animal era, respondeu-me: - De cachorro. Continuei a refeição e pensei: Essa civilização
chinesa tem gostos muito peculiares, porém, é uma das culturas mais ricas e antigas do
oriente. Foi lá que em um passado remoto construíram uma imensa muralha para evitar a
invasão das tribos do norte, inclusive os mongóis, liderados por um homem, um desses
grandes vultos que passaram pela terra, enquanto eu faço da minha passagem uma absoluta
anonimidade...
Na clínica Eslel relembrava da infância e de dias recentes... Quando pequeno escutava
o barulho dos carros passando na rua principal longe da minha casa, isso sempre no inverno.
Quando jovem comecei a pensar que isso acontecia porque as pessoas se recolhiam em suas
casas cedo, diferente do verão. Esses dias eu soube que o som se propaga mais rápido a uma
temperatura próxima dos vinte graus Celsius. Como são diferentes os fenômenos quando se é
ignorante acerca deles! Parecem não ter explicações, depois que você as descobre, tornam-se

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desvendadas e mais interessantes.
Saudades daqueles tempos, disseram-me que saudades são lembranças de assuntos não
resolvidos.
Semana passada resolvi sair, estava enjoado de ficar em casa, coloquei a caneta, bloco
de notas e carteira na pochette, peguei a bicicleta. Estava com vontade de ir ao cemitério,
passei pela frente, mas desisti, segui a rua, contornei e acabei parando na praça de praxe, lá
estavam os estudantes burgueses de sempre, conversando, porém havia um homem no outro
lado que aparentava ser um mendigo pelas trouxas de roupa que carregava e pela garrafa de
bebida alcoólica que esvaziou com um último gole e a depositou sobre um banco, estendeu
uma toalha na grama, deitou-se, e eu sentei em um banco afastado de todos, retirei meu bloco
de notas e escrevi, depois notei que eram sentenças sem nexo.
Chamou-me atenção uma folha roxa no chão, as que estavam na planta eram cor de
vinho, mais escuras, de repente em meio às observações realizadas do ambiente a pergunta
que surgiu deixou-me atônito, sem resposta: O que estou fazendo aqui? Depois dessa
indagação não replicada fiquei sem sentimentos e pensamentos, desliguei-me da realidade em
alguns segundos e descobri que meu vazio existencial era maior do que uma pessoa fútil,
porque elas usam a futilidade para existir, eu nem isso.
Foi o casal de jovens que passava pela segunda vez atrás de mim que me fez despertar,
pois o perfume de um deles era forte e doce, o da moça. Fiquei mais alguns minutos
escrevendo e fui para casa sem saber o que tinha de resolver.
Dias depois fui decidido, passei em frente à lindas casas antes de chegar, pensei no
caminho: prefiro mil vezes ser lembrado para sempre do que ter uma casa dessas. No
cemitério havia vários velórios, a entrada das capelas estava cheia de carros. Sentei no banco
e ouvia o eco dos carros passando, dos cachorros latindo, o vento no topo dos ciprestes, nas
flores das sepulturas, enfim, harmonioso. Antigamente pensavam que fazer túmulos em forma
de casa transmitia ao morto o descanso em paz. As pessoas acreditam em tantas coisas sem
sentido e esquecem do bem mais importante: a própria vida... única e irreversível, começo a
notar que nada se compara a emoção de viver uma só vez, sentir e pensar tudo ao mesmo
tempo, estranho é saber que tudo se acaba e vamos parar onde eu estava, naquele local feito
de pedras, concreto, areia, terra... Ninguém terá outra chance, sinto que meu tempo está se
acabando quando vou até lá. Aquele dia estava nublado, perfeito para desfrutá-lo em um
cemitério, a calma reinava absoluta, as palavras viravam poesias, os pássaros pousavam no
chão, uma flor amarela murchava sobre a lápide de um jazigo, fora das muralhas um ancião
passeava com seu canzarrão pela calçada, uma bandeirola no alto de uma casa era remexida

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pelo vento...
Vi que tudo estava interligado, os processos e as situações faziam parte de uma cadeia
parecida com a da bomba atômica, mas construtiva. Pensei nas relações entre as pessoas a
partir de métodos de conversação, movimentos corporais, sentimentos, olhares e tudo que os
sentidos proporcionam, são milhões de ligações, por exemplo: eu jamais teria nascido se não
houvesse guerras, revoluções, descobertas, esse é o inconsciente coletivo para a manutenção
da espécie...
Se naquele dia que conheci Anim eu não estivesse com o bloco de notas e a caneta nas
mãos, talvez ela não perguntasse nada, e se eu não fosse às praças escrever ela nunca teria me
visto, enfim, isso segue uma cadeia infinita que atinge a tudo que está no planeta, quando sigo
essa linha de raciocínio paro e penso: será que tudo isso é real ou criamos nosso mundo? Pois
se eu resolvesse ser um andarilho minha visão de mundo seria diferente, minha vida mudaria
porque os bens que possuo não teriam valor, nada seria mais importante do que minha vida,
viveria todos os dias com mais intensidade e jamais cairia no poço da rotina, por que não
faço? Porque ainda não sou livre e tenho medo, estou acorrentado às lembranças que me
apegam à vontade de viver e a chave da liberdade é auto anular-se perante si mesmo no
presente. Chega-se a um conhecimento tão profundo de si que você começa a notar a
superficialidade das pessoas ao seu redor, mas elas não percebem isso.
Falou-me falou que nosso nascimento foi importante para completar a ligação entre
tudo, e reforçou: Se não nascessem as grandes mentes que contribuíram com a evolução
intelectual, social, etc., da humanidade, onde estaríamos hoje? Várias interligações
aconteceram e acontecerão depois que deixarmos de existir porque a vida tem essa
necessidade.
Há dois dias ele me deu flores dentro de um pacote de pães, uma atitude que
considerei tão natural e importante, afinal toda mulher gosta de ganhar presentes de quem
ama, pelas características das flores imagino que foram surrupiadas do jardim da casa azul, há
alguns meses que a proprietária, uma anciã, morreu de câncer de mama. Câncer é uma doença
incógnita: células que crescem de forma desorganizada destruindo tudo que está próximo,
definição tosca e geral que tenho, mas o básico sobre doenças basta. Só não entendi porque
Eslel fez aquilo ontem, nem vou tentar, tudo isso me deixou com fome, vou preparar um
lanche.
Depois de satisfeita Anim trocava de roupas, escovava os dentes e adormecia, calma.
A algumas quadras dali Eslel não conseguia, receoso com a descoberta do seu embuste, já
arrependido...

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Exagerei agindo daquela maneira, deixei-me levar pelos sentimentos a muito
guardados e a catarse foi devastadora, assustei-a com tudo aquilo, o dia começou incerto, ao
acordar tive pensamentos anormais, não falei nada para ela e logo esqueci, sempre os tenho
nos dias que trabalho, e foi no caminho que aconteceu uma catástrofe, senti minha camisa
úmida e quando olhei para trás estava vermelha. O molho vazou, pensei, estava levando
camarão ensopado com arroz e não queria parar para ver o estrago, quanto mais tentava
arrumar a alça da mochila para emparelhar, mais a maldita sujava minha camisa, quando
minha mão ficou suja e pegajosa parei de mexer, pois estava de bicicleta, para minha sorte
não havia quase ninguém nas ruas, era domingo de manhã, ao chegar abri a mochila... havia
uma poça de molho, tirei a camisa e a lateral posterior estava toda avariada, na hora pensei em
como a lavaria, já que não há lavabo onde trabalho, avistei o balde que é usado para limpeza,
coloquei água mineral e um pouco de detergente para quebrar a tensão superficial da água,
lavei-a e adeus mancha, fiz o mesmo com a mochila, só que tive de usar a camisa até secar,
usar roupa molhada causa um incômodo imenso...
O que faltava para completar o lindo e adorável dia era chover a hora que eu fosse
embora, foi o que aconteceu, aquilo foi a gota d’água, claro que não era o verdadeiro motivo,
mas ajudou a compor o embuste.
Cheguei ensopado e descontrolado, pensei no que mais detestava, avistei a televisão
desligada...
Apesar de não assistir Eslel nutria um ódio incondicional das imagens coloridas e
felizes apresentadas nos comerciais, via sorrisos amarelos e forçados de relance quando
passava pela sala com ambas assistindo novelas, mas... se era divertido e Anim gostava...
Puxei-a com força para romper o cabo de energia e joguei-a contra a janela com toda
força e ódio contidos em meu ser, o barulho de vidro quebrando foi surpreendente, acho que
se tirassem uma foto do momento do arremesso eu a mandaria a um jornal para publicá-la, de
tão perfeitos que foram meus movimentos, mas... eu caí, tropecei em uma maldita pilha de
livros que estava próxima do sofá. Ela veio do quarto, desesperada sem saber o que estava se
sucedendo e começou a chorar, perguntando repetidas vezes:
- O que você fez?
As luzes das casas e apartamentos contíguos acenderam-se lentas, como se os vizinhos
acordassem com preguiça.
Levantei-me com dores nas mãos, soturno, fui até o banheiro e joguei água no rosto.
Anim chegava próxima, fazia os gestos de quem vai tocar alguém para acalmar mas fica em
dúvida, e chorava...

85
Após alguns minutos batidos frenéticos na porta foram ouvidos, ela abriu e lá estavam
o síndico do prédio e alguns vizinhos, todos com olhares assustados, cabelos desgrenhados,
roupas de dormir, perguntando o que havia acontecido, não conseguia explicar, chorava, eles
entraram, Eslel estava tranquilo no sofá e não esboçou nem uma reação ao ver todos em torno
dele. Olharam a janela quebrada estupefatos e o síndico perguntou a ela se estava bem;
respondeu que estava confusa.
A polícia apareceu seguida da minha família, que explicou aos policiais a situação,
mas tivemos de ir até a delegacia porque alguém me acusava de perturbação da ordem
pública, quando saí vi a proporção do estrago, o local onde a televisão havia caído estava
isolado e os curiosos olhavam receosos tecendo teorias sobre o acontecido.
Não foi preso, na volta seus pais perguntaram se ficaria bem, respondeu-lhes que sim
de modo apático depois disso foram embora, sentaram-se frente a frente...
Você pode me explicar o que aconteceu, por favor, pois ainda não entendi?
- Também não sei, estou confuso, foi um acesso de fúria, precisava fazer aquilo.
Responde de modo perturbado.
Você pensou nas consequências? Poderia ter matado alguém que passava na calçada.
- Eu sei, mas naquele momento perdi o domínio da razão para o ódio e agi por
instinto. Minha mente estava sobrecarregada...
- Não precisa me explicar, eu entendo.
Você entende?!?! Desconfiado de seu plano ter ido por água baixo...
- Chega um ponto que todos explodem até por motivos banais, quando isso acontece
arrumamos uma válvula de escape, quando a pessoa não consegue suprimir a demanda que a
oprime age de modo irracional, é o último ato, e isso fica claro para todos.
Desculpe-me por hoje Anim, não queria assustá-la. Emenda aliviado.
- Não há porque pedir desculpas, o ato foi feito e se você pensasse antes, nada teria
acontecido. Você é tão egoísta que não pensa nas pessoas que se preocupam com você.
- Presumo que a solução seja me internar.
Por quê? Pergunta aflita.
- Porque cheguei ao limite, tenho que ficar uns tempos sob tratamento na clínica.
Quando você vai?
- Durante o dia para conversar com o diretor e a noite me instalar.
Tudo bem, agora vamos dormir. Disse ela de modo triste.
Passados alguns dias Anim decidiu visitá-lo, ambos não aguentavam a distância.

86
******

- Na próxima visita à clínica quero ir com você Anim.


- Claro, sem problemas, agora preciso comprar umas frutas.
- Faça isso depois, vamos almoçar antes, depois ajudamos você.
- Ajudamos?!
- Sim, Nicole está lá em casa.
- Não creio! Fala surpresa e ansiosa.
- Está esperando o almoço que estou a preparar.
- Ainda não acredito que Nicole tenha saído de casa, tenho de vê-la, vamos, vamos,
dê-me algumas bolsas.
- Eu a vi passando pela rua quando abri a janela da sala, andava sobre paralelepípedos,
parecia perdida, e claro, devaneando como sempre.
- Liguei para ela e falei sobre a internação de Eslel, ela disse que sentia muito e
desligou.
- Ah! Anim, você a conhece melhor do que nós e sabe como ela é.
- O cérebro dela parece funcionar diferente do nosso.
- Eu sei, formula teorias e gera informações sobre um copo de café. Os dois riem.
- Antes de eu vir para o supermercado ela estava falando sobre arquitetura grega, fez
uma conexão com cubismo, surrealismo, consciente e inconsciente que não consegui captar.
- Amo esse jeito dela Lúcio, só não sei por que ainda não estão juntos.
- Nossa relação é de ternura, e além do mais você sabe que eu não conseguiria.
- Eu sei, eu sei - repete decepcionada - não precisa entrar em detalhes, só acho
desperdício você não se relacionar com alguém.
- Eslel pode saber disso. Ambos riem e Anim:
- Não somos propriedade das pessoas, segundo as palavras dele.
- Sei disso, mas você não tem noção do quanto ele te ama, o problema é que não
consegue falar isso olhando em seus olhos, e sei o porquê, tem um medo descomunal de
perdê-la.
Por que ele se internou então?
- Não sei, mas algo ele está planejando.
Suas bolsas estão pesadas?
- De modo algum.
Atravessam a rua...

87
Chegamos!
Longe não? Comenta irônica.
Engraçadinha... Quer que eu suba com as bolsas?
- Não se preocupe com isso, vamos logo, estou ansiosa para vê-la.
- Será uma surpresa para ela também.
Não há ninguém na sala, Aevin vem da cozinha e Lúcio pergunta por Nicole, ela
aponta para a outra sala.
- Com licença, Lot e Nicole venham ver quem encontrei.
- Os dois olham-se de maneira equivocada, Nicole tenta imaginar quem é do seu
diminuto e seleto grupo, quando a vê esperando-a na porta fica atônita, muito apegadas,
abraçam-se e beijam-se efusivas.
- Que saudades querida.
- Eu também estava Nicole.
Por que agiu daquela maneira quando dei a notícia sobre Eslel?
- Estava em uma daquelas fases.
- Ah Nicole! Não é bom pensar em certas coisas, principalmente quando se mora
sozinha.
Lúcio chega à cozinha e vê o fogão desligado.
- Desliguei porque você sabe que as batatas demoram a cozinhar.
- Obrigado.
A pequena desponta na sala, Anim abaixa-se de braços abertos.
- Venha cá meu anjo. Adrien grita de alegria e corre para abraçá-la.
Na cozinha... não vamos almoçar aqui Lúcio.
Por quê? - Estou fazendo isso para Adrien.
- Nós já preparamos o almoço antes de buscá-la, Lot precisa ir mais cedo, e essa sopa
vai demorar... Obrigado por prestar esse grande favor, estamos te devendo mais essa.
- Não se preocupem, só fiquei triste porque vocês não ficarão para o almoço.
- Oras... Você está com duas ótimas amigas hoje, aproveite!
- Claro, mas estava preparando o almoço para Adrien, hoje foi o último dia que fui
buscá-la.
Amanhã à tarde estarei livre, você também?
- Sim. Conciso.
- Então vamos passá-la juntos.
- Temos que ir Adrien.

88
Por quê? Perguntam Anim e Nicole.
- Vou começar o trabalho mais cedo hoje. Diz Lot.
Já pegou a mochila? Pergunta para a pequena olhando de maneira estranha para Anim.
- Sim papai.
Os três despedem-se e vão.

O crápula (Canalha)

Antes de ir para casa decidem parar em uma loja de brinquedos, Adrien fica
deslumbrada e perdida como a maioria das crianças quando entra em um local desses, escolhe
um quebra-cabeças com o desenho de uma princesa presa em uma torre de cristal, segue o
conselho de Marta:
- Primeiro os com peças grandes! Já que sua amiga é experiente no assunto e ela está
começando... Aevin e Lot estavam orgulhosos da filha por se comportar nas horas que ficava
com Lúcio, por isso decidem presenteá-la.
A família chega em casa e ela vai para a mesa da sala se divertir, sua mãe quer ajudá-
la mas ela quer aprender sozinha, o pai vai direto para a poltrona e se refestela. Após alguns
minutos o barulho da campainha é ouvido na sala, mas é Aevin que vem do quarto para
atender, presume que é a vizinha do andar de cima, mas para sua surpresa é o estudante do
andar de baixo que não costumava falar com as pessoas do prédio.
Bom dia, vim conversar sobre um assunto delicado e constrangedor, mas não tive
outra opção.
- Esclareça. Diz perplexa, ele retira algo do bolso.
Vim entregar esta peça íntima que caiu ontem em minha sacada, veio do seu
apartamento. Houve festa essa semana inteira e não consegui estudar para testes
importanstíssimos, seu marido trouxe várias meninas da igreja durante as manhãs, relatei a
situação ao síndico, mas deu de ombros porque Lot é orador da igreja dele, você também deve
gostar de festas, não? Pergunta sarcástico, retira-se depois que ela agradece em estado de
choque...
Recuperada a traída aparece na sala com olhar malévolo segurando a calcinha nas
pontas dos dedos com desgosto e logo começam as perguntas:
É isso que você me oferece em troca da minha fidelidade?
Onde você conseguiu isso? Nunca cobrei fidelidade de sua parte.
- Comece a explicar já. Rebate ela.

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- Você sabe que a religião abre várias portas e pernas...
- Não me venha com gracejos, não sou uma dessas incautas e ignorantes que você
domina com sua psicologia de igreja. Você não tem noção de que enquanto trabalho você se
diverte em orgias em nossa própria casa?
- As garotas não recusam meus convites e vêm de livre e espontânea vontade e esse
seu trabalho deve ser um engodo.
- Além de trair você me acusa?
- Não a acuso, só não descarto a possibilidade. Galhofando.
- Ah! Era só o que me faltava...
Ela levanta o objeto de toda discórdia.
- Diga-me como a calcinha de uma fiel foi parar na sacada do vizinho?
- Esta branca deve ser da Luana - observa ele - deixe-me ver. Hilário.
Ela treme de raiva com tamanha insolência e joga a peça íntima no rosto dele, que
cheira e diz com cara de deboche: o cheiro ainda persiste.
Quem lhe deu isso foi aquele intelectual fracassado? Decidiu se vingar depois que o
peguei observando a vizinha do apartamento da frente com um binóculo, aquele safado é
voyeur.
Não é sobre ele que estamos falando. Você teve coragem de trazer garotas aqui
enquanto Lúcio cuidava de Adrien, e agora Lot o que a menina vai pensar vendo isso?
A menina olha a discussão assustada, não entende o que está acontecendo, nunca viu
seus pais alterados, pensa em correr para o pai quando ouve sua mãe desesperada bradar: -
Rua! Rua! Mas fica paralisada e impotente diante da situação.
Lot se levanta e pergunta se ela fala sério, em seguida começa uma série de ataques
psicológicos que não surtem efeito:
- Não sei onde estava com a cabeça quando me casei com uma mulher-sistema, sequer
controla sua histeria, você chega a ser patética com essa demonstração escandalosa de ciúmes,
isso só expõe o quanto você é insegura.
No meio de toda confusão e gritaria, a campainha toca e Lot já na porta abre-a, eis que
surge o estudante.
- Aí está o safado!
O estudante ruborizado vê o que causou, vira-se e vai embora sem contestar.
- Não interessa diz Aevin. - Rua! Rua! Repetindo sempre as mesmas palavras.
Pedirei para o Lúcio pegar meus pertences amanhã, tudo bem? E não pense que vai
ficar com todos os bens.

90
Vai até a filha lívida e a beija: - Até outro dia filha.
- Saia! Saia seu, seu crápula! Grita apontando para o corredor.
Ainda não acredito que o pivô de nossa separação tenha sido uma calcinha, e o
insolente a deixou aqui.
Vai até a lixeira mais próxima joga a calcinha com raiva e desaba a chorar.
A menina olha para a mãe abalada e não sabe o que fazer, para tentar distrai-la
pergunta desnorteada:
O que é voyeur mamãe?
Acalmando-se pega a filha no colo.
- É uma pessoa que se esconde para observar outra em sua intimidade e sente prazer
neste ato.
Prazer?
Vou explicar o que é prazer de maneira geral para que você entenda certo? Quando
você toma sorvete o que você sente?
Sinto-me alegre porque ganhei sorvete, é gostoso.
- Essa é uma das formas de prazer filha, você associa o sorvete com uma emoção, ou
seja, sabendo que sorvete é bom você sente prazer em tomá-lo.
É só isso mamãe?
- É mais complexo, mas agora mamãe não está em condições de falar de prazer, já
tomou banho querida?
Sim, fiquei na água até minhas mãos e pés enrugarem, o tio Lúcio deixou.
- Você aproveitou hein?... Seu tio a deixa mal acostumada.
- Vou ligar para Anim filha, pode brincar no seu quarto se quiser.
Tudo bem mamãe.
A menina vai preocupada olhando para trás com desconfiança.
No corredor sem o mínimo de remorso Lot pensava: Palavras vazias transmitidas pelo
ar.
- Há anos enganando Aevin e um estudantezinho de... consegue estragar tudo em
menos de meia hora com uma prova incontestável - fala em voz alta - devia ter pego algumas
roupas, mas antes tenho que abrir uma reserva em um hotel, passar na igreja para ver qual o
rendimento de ontem e pegar a minha parte, pobres fiéis, dão o que têm e eu aproveito, tudo
que um hedonista necessita. Pega o carro.
Sobe as escadas até atingir as grandes portas frontais da igreja, um homem varre entre
os assentos, vê o púlpito ou altar a alguns metros...

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Antigamente eram oferecidos sacrifícios para agradar ou aplacar a ira dos deuses. Hoje
vou fazer vários para me divertir.
Desvia para uma porta lateral e aparece na sala onde retira sua parte, exige mais do
que os presentes e sai em meio à discussões acaloradas. Não importa a religião, todos fazem
parte da mesma corja, pensa. Na saída encontra Nilo que voltava da papelaria com uma
resma, íntimos há tempos cumprimentam-se e Lot lhe oferece uma carona relatando a situação
da separação.
Avisei-o que isso acabaria mal. Nilo mordaz.
- Ela sabe de algo sobre nós?
- Sequer desconfia, chamou-me de crápula repetidas vezes.
- Não foi à toa. Nilo rindo - hoje fui despedido - emenda.
- Que azar, e agora?
Não sei... Vou começar a viver de modo intenso, quer morar lá em casa por uns
tempos? Afinal nossa relação não é apenas de amizade...
- Agradeço, mas vou reservar um quarto de hotel.
- Não é preciso, durma em minha casa hoje eu insisto.
- Vou me aproveitar da situação unindo o útil ao agradável. Lot de modo trocista.
- Não me subestime porque o amo.
- Estava sendo sarcástico, vou passar no apartamento do irmão da Aevin antes, preciso
de um favor dele.
Além de tudo você vai pedir favores ao irmão dela? Nilo boquiaberto - é muito
descaramento.
- Eu não consigo evitar.
Vamos parar em algum lugar para berbermos algo?
- Isso, preciso relaxar, você indica o caminho.
Depois das cordenadas fornecidas por Nilo chegam em um bar com uma fachada
tosca, Lot pede para que deixe a resma no carro.
- Desculpe, estou tão perdido com a história da demissão, não sei porque comprei isso,
talvez um pretexto para sair de casa.
Entram e sentam ao balcão, no final deste há uma série de vidros com aperitivos em
conserva. Na parede alguns defumados protegidos e pendurados.
Não há ninguém para atender? Lot inquire.
De repente surge detrás de uma cortina um ancião quase sem cabelos com uma cara
inchada e vermelha adiantando para Nilo:

92
- Temos aquele licor que você tanto gosta filho.
Obrigado senhor Ruez, pode nos trazer por favor?
- Esperem um momento.
- Ele tem o costume de chamar os mais jovens de filho.
Acho que já estive aqui, mas faz tanto tempo, naquele canto não havia uma máquina
caça-níqueis?
- Sim, mas foi retirada há mais de cinco anos.
- Então era aqui, vim com amigos depois de uma festa.
Você e suas festas, viu no que elas resultaram?
- Mas isso não importa, estava com Aevin para manter as aparências e além disso não
me divorciava porque não queria ferir a princesinha. Referindo-se a Adrien.
- Então fez da pior maneira.
- Não, da melhor, um estudante me ajudou em troca de favores. Aevin é muito
apegada à família, então teve de ser uma separação abrupta para que ela ficasse com raiva, e
magoar a pequena foi inevitável, afinal temos que sacrificar algumas peças para obter
vantagem no jogo da vida, concorda? Pergunta Lot triunfante.
E agora para comemorar essa separação bem sucedida vamos até um prostíbulo?
- Você tem cada idéia Lot, eu vou para casa, só me prometa que vai para lá depois.
- Sim, Sim, sem problemas, vou visitar uma velha conhecida, tem certeza que não quer
vir?
- Não.
Após algumas doses de licor ele leva Nilo em casa, em seguida parte para o luxuoso
alcoice, as dançarinas ficam afoitas com sua chegada, manda fechar o estabelecimento para
que o festim comece - Não entra ou sai ninguém! Bebidas à vontade! - Os presentes adoram a
idéia. Na sala principal a única testemunha de tal façanha é uma fraca luz esverdeada. Nos
confortáveis sofás vermelhos, sobre o palco, mesas, corpos se entrelaçam desvendando os
segredos de Dioníso, os casais e trios que saem dos quartos são surpreendidos e por ali ficam,
a proprietária no auge da festa grita: - É meu melhor cliente, é meu melhor cliente! E torna a
encher a boca, Lot emplogado: prefiro um meretrício de idéias a uma igreja de embotamentos!
As bacantes incansáveis o deixam exausto depois de horas, deixa a diversão seguir e aproveita
para sair pela porta dos fundos.
Desde a semana passada não faço uma festa assim - repetia para si mesmo com o carro
em alta velocidade - agora vou ao apartamento de Lúcio.

93
******

Precisa de ajuda Lúcio?


- Não por enquanto.
- O cheiro está bom.
- Logo ficará pronto. Não creio que encontrei vocês duas no mesmo dia, estou tão
emocionado.
- Não há necessidade de ficar em polvorosa. Diz Anim rindo.
- Eu sei, mas faz tanto tempo que não via vocês, temos que nos reunir mais vezes,
quando Eslel sair, por exemplo! Seria um bom motivo...
Você trocou os pisos?
- Há quase quatro meses.
- Então fazia tempo que não os via. Diz Nicole.
- Quando fui comprar, a vendedora disse-me que a melhor opção seriam os
esmaltados, porque estes contêm uma camada a mais que evita o desgaste precoce.
- Ainda bem que seu hipocampo está em plena atividade.
- Essa é a parte responsável pela memória, Nicole?
- Sim.
Por que colocaram esse nome? Pergunta Anim.
- Porque ele tem formato curvo semelhante a de um cavalo marinho, além disso, é uma
palavra de etimologia grega. Os hipocampos carregavam as ninfas do mar nos passeios do
Deus dos mares: Posídon.
Há também um osso da nossa coluna vertebral que leva o nome de um deus grego,
Atlas é a primeira vértebra que segura nosso crânio, assim como ele segurava o mundo, no
meu caso uma galáxia.
- Convencida - diz Lúcio - mas eu tenho a minha contribuição:
- Diga-nos.
- O nascimento de Afrodite: Uma das versões diz que ela nasceu da espuma das ondas
depois que os órgãos genitais de Uranos foram arrancados e jogados ao mar.
- Nossa você está expandindo seus estudos Lúcio, e eu estou tendo uma aula de
mitologia grega! Pondera a espectadora Anim.
- Interessei-me por um livro de mitologia que achei ao acaso em um sebo próximo do
mercado municipal, ao passar pela rua de trás do mercado deparei-me com ratazanas

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zanzando por ali, uma estava cambaleante.
- Resolveu sair do esgoto então, esses bichos tem várias doenças, ainda bem que não
vivi na época da peste negra ...
O que você sabe sobre a peste negra Anim?
- Não tenho um conhecimento apurado, só o que aprendi com Eslel, ele é fascinado
pelas máscaras bicudas e roupas que os médicos usavam. A metade da Europa foi dizimada na
época segundo ele.
Igual em Oram? Nicole brinca.
- Não entendi.
- Esqueça... vi uma matilha de cães em uma viela à duas quadras do sebo que você
falou Lúcio, às vezes vou lá ver as novas raridades.
Por que não adotou um, já que o cão é o melhor amigo do ser humano?
- É errado dizer isso, pois há uma explicação para o afeto do cão pelo ser humano.
- Não é preciso explicar, sei por meio de um livro que Lúcio me emprestou, só que o
excesso de informações deixou-me atordoada.
Eu não consegui passar da primeira parte. Lúcio desanimado.
- Havia tantos assuntos que o autor discursou até de formação das pérolas.
- Então nos fale.
- Qualquer grão mineral que entra na ostra irrita-a e é logo envolvido por uma
substância criando camadas que se solidificam em torno do invasor, após um tempo a pérola
surge. Mas essa é uma explicação geral.
- Não precisa entrar em detalhes, você nos deu o básico - Nicole rindo - eu já sabia.
Sinto-me estranha quando tenho mais informações que outra pessoa.
- Vou ver se os legumes estão cozidos. Interrompe ele.
- Oras Nicole, você cobra demais de si, tenha em mente que ninguém sabe sobre tudo,
é impossível, e o mínimo que você faz é compartilhar seu conhecimento, com isso
aprendemos mais, as relações de aprendizado não se dão só com os livros, o convívio com as
pessoas ajuda.
Ela olha para Anim e fala em tom alto para Lúcio escutar:
Não gosto de especulações, mas Lot e Aevin estavam estranhos hoje, vocês
perceberam?
- Sim. Diz Lúcio da cozinha.
- Afastamento e desconfiança do Lot. Quando pegou a mochila de Adrien percebi uma
mensagem canalha no seu olhar, presumo que algo não vá bem entre o casal, mas não gosto

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de tirar conclusões precipitadas. Acrescenta Anim.
O telefone dela toca...
- Com licença Nicole, vou atender no quarto. Sem saber de quem era a ligação.
- É um lobo em pele de cordeiro disse Aevin em prantos.
Por que, o que aconteceu? Perguntou Anim atônita.
- Crápula! Repetia cerrando um punho e andando de um lado para o outro irritada,
após insultá-lo com todos os adjetivos possíveis começou a explicar:
Aquele safado trazia garotas para nosso apartamento e dizia que ia para a igreja
enquanto eu trabalhava.
Como você soube?
- O vizinho do andar de baixo veio reclamar, pois não conseguiu estudar a semana
toda com a bagunça gerada, sem contar que uma delas jogou a calcinha pela janela e caiu em
sua sacada.
- Nossa! Então isso fica pior que um bordel. Anim arregala os olhos do outro lado da
linha.
- Sim, e não deixava vestígios o pulha. Quando eu ligava para cá ninguém atendia. O
vizinho disse que isso ocorreu a semana toda e a baderna estava tomando proporções
estrondosas, mas os outros moradores nunca comentaram.
Você tem certeza que ele fazia isso, onde ele está agora Aevin?
- Não sei, disse-me que iria para o apartamento do Lúcio.
- Nicole e eu ainda estamos aqui...
- O incrível é que segundo o estudante são garotas da igreja.
- A separação é inevitável! Frisa Anim.
- Vou tomar as devidas providências o quanto antes sobre esse assunto. Tenho que
desligar porque Adrien está chamando, ainda está assustada com a discussão.
Você não quer levá-la para minha casa?
- Não é preciso.
Então mais tarde você me conta os detalhes se quiser e vamos ajudá-la no que
necessitar.
- Tudo bem, muito obrigada Anim.
Depois de alguns minutos ela desliga e olha para os presentes decepcionada:
- Aevin acabou de falar que Lot a traía.
Como ela está?
- Estava nervosa e chorava, não conseguia conversar com calma. Vamos comer e

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depois vamos até lá Nicole?
- Sim.
Depois que Anim conta com detalhes o que aconteceu Lot aparece cambaleante com
um cheiro forte de perfume barato e bebidas, que Lúcio sente ao abrir a porta.
Da soleira cumprimenta as duas e pergunta com a dicção avariada: - Você pode, por
favor, pegar minhas coisas no apartamento da Aevin amanhã e levar nesse endereço Lúcio?
Você só pode estar de brincadeira comigo, olhe o seu estado, vai passar a noite onde?
- Na casa de um amigo, só preciso que você faça esse favor.
O que você vai fazer a respeito dos bens?
- Vou à justiça, pois casamos com separação parcial.
Lot, você é mesmo um pulha... depois de tudo que fez para Aevin ainda quer partilha
de bens e vem me pedir favores?
Então ela já deu a notícia? Bom, faço o que quiser, presumo que você não pegará
meus pertences amanhã.
- Não farei isso com ela.
- Tudo bem, entendo, já que são irmãos você precisa apoiá-la, obrigado. Agradece
com um sorriso sarcástico, apertam as mãos e ele se vai pensando: Vou aproveitar o dia e a
noite até não aguentar, voltarei para o bordel...
- Mas que sujeito insolente. Profere Lúcio com raiva.
Minutos depois...
- Pronto! O almoço está servido, apesar do atraso, aproveitem e bom apetite.
- Obrigado e idem. As duas.
Depois da refeição Nicole vai para a sala...
Que filme é esse Lúcio?
- Assista...
O filme:
O silêncio foi quebrado pelos seus passos sobre as folhas secas de outono. Na névoa
que pairava entre as árvores avistou o tênue brilho de faróis vindo em sua direção. O carro
parou, desceram dois trogloditas e perguntaram o que estava acontecendo.
- Estou perdido na obscuridade da loucura, justifica com um sotaque carregado.
Um dos homens o pega pelo braço e pede seus documentos, procura nos bolsos da
calça e nada acha, percebendo a impaciência dos homens, diz que não sabe como foi parar
ali.
Um deles, o mais baixo com o uniforme em melhores condições do que o do outro

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afirma:
- Soubemos por meio de uma denúncia anônima que havia imigrantes ilegais nesta
área.
- Eu não sei o que está acontecendo e onde estou, a última coisa que lembro foi
adormecer com minha mulher e agora me vejo em pé nesse nevoeiro de ilusões.
- Você não está tendo ilusões e sim no mundo real, venha conosco, diz o mais alto.
- Vocês são da polícia?
- Somos da administração.
Mas o que é essa tal de administração? Pergunta indignado.
- Logo você vai conhecê-la.
Olha para si e nota que está apenas de cuecas. Mas acabei de procurar meus
documentos nos bolsos, pensa em voz alta.
- Você não estava de calças, diz um dos policiais o jogando no carro.
Que criaturas estranhas não demonstram sentimentos.
De repente uma voz feminina perfeita:
Já estão com o elemento?
- Sim, respondem.
Perscruta o interior do carro e não acha os alto-falantes, assusta-se quando vê o
painel sem botões e volante, olha para o pára brisas e um mapa surge, não entende como o
carro é dirigido.
- Não se espante, diz o administrador da direita.
Mas não falei nada.
- Conseguimos ler os pensamentos
É impossível!
Cena seguinte:
Paciente três perdido, diz o médico.
Nome? Pergunta a enfermeira com uma plaqueta nas mãos.
- Mande esse para a sala da Usina de Sonhos, complementa o cirurgião, vejamos o
que seu cérebro pode produzir.
No interior do carro:
- Sinto-me como se fizesse parte de um dos contos do advogado tchecoslovaco.
- Esse autor é irrelevante para nossa cultura, seus dados foram queimados, vivemos
em um Estado com bases platônicas.
Então vocês regrediram?

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- Evoluímos, porque algumas leis foram suprimidas.
Em que ano estamos?
Ano? Perguntam os administradores perplexos.
- Sim, ano, mês, dia...
Não temos conceito de tempo, aqui você vive eternamente, não tem o direito de
morrer, só o dever de existir.
Mas então como estamos inseridos no espaço?
- Essa duo-unidade que você citou é obsoleta e a premissa Kantiana de que não existe
nada fora do espaço-tempo foi extinta.
Mas isso é absurdo! Pare o tempo que eu quero descer!
Tenta abrir as portas, mas estão travadas...
- Você pode sair do carro, mas não do mundo das idéias, ironiza um deles.

Depois disso Nicole desliga a televisão e sai da sala agoniada.


O que foi? Indaga Anim.
- Essa película me mostrou o quão incerta é a vida, agora sinto na pele a relatividade
das situações contingenciais. Não é o que irá acontecer mas o que a situação representa, já que
a contingência pára na barreira criada pelo outro, ela tem um fim no outro, por isso o preço de
toda a liberdade que tenho me corrói, deixa-me perdida no espaço com tantas opções de
escolha, e eu tenho a sina de optar sempre pela mais inconveniente.
- Mas do que você está falando?
Antes pensava que a realidade era absurda, mas generalizava, porque para algumas
pessoas a delas é apropriada, descobri que a minha é absurda devido à minha liberdade.
Quando falo em liberdade, refiro-me à liberdade interior, a liberdade de ser independente das
coisas que julgo fúteis, só que isso é subjetivo, minha vontade e liberdade não podem ser
aplicadas a todos.
- Começou - brinca Lúcio - esqueça isso Nicole, vamos até a casa de Aevin ver se ela
está bem, depois... Anim, você não ia comprar frutas?
Sim, que tal Nicole? Inquire ela com olhar angustiado.
Ela olha para ambos:
- Ainda não sei aonde ir.
- Você vem conosco - dizem - e tente esquecer essas suas loucuras por um minuto, por
favor...
Chegam e a encontram abatida, a pequena corre para o tio, desconfiada, Nicole e

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Anim se abaixam para falar com ela e perguntam o que viu.
- Depois que o rapaz de baixo veio aqui papai e mamãe brigaram, e ele foi embora.
- Mas não se preocupe querida, tudo vai ser resolvido. Fala Nicole.
Quer ver o quebra-cabeça que ganhei hoje? Pergunta empolgada.
- Sim, vamos lá.
As duas vão para o quarto, e Lúcio:
Ele passou no meu apartamento e pediu para que eu pegasse suas roupas.
- Eu não creio que ele teve coragem de fazer isso!
Anim confirma mexendo a cabeça.
Depois de sete anos de casado resolveu mostrar quem é. Eu não faço idéia de quanto
tempo ele fazia essas canalhadas escondido.
- Calma Aevin, ele não vai sair incólume dessa.
Na partilha de bens ele vai perder tudo e se quiser a guarda de Adrien não conseguirá,
se ela quiser morar com ele terá de fazê-lo depois de completar doze anos, mas não se
preocupe eu auxiliarei você com os trâmites legais e toda a burocracia.
Como é bom ter uma amiga advogada, viu Lúcio?
- Eu nunca vou me meter com ela...
Aevin sorri de modo descontraído.
- Ele vai mandar alguém aqui, depois do que aprontou não vem buscar as próprias
roupas.
- Depois dessas podemos esperar qualquer atitude descarada de Lot. Lúcio ríspido.
- Vamos esquecer isso e ver o que as duas estão aprontando no quarto.
Abrem a porta devagar evitando barulhos, encontram Adrien na cama com o quebra-
cabeças montado e Nicole elogiando o belo trabalho com um olhar pensativo.
Vamos fazer o seguinte, eu ainda tenho que comprar aquelas frutas, quem vem
comigo? Anim animada.
Lúcio não gosta muito da idéia, fazer compras com mulheres é sinônimo de muita
paciência, mas para animar a irmã ele concorda.
Na volta param em um semáforo, uma ambulância anuncia passagem em alta
velocidade com a sirene e as luzes ligadas.
Perceberam o efeito Doppler? Nicole empolgada.
- Hoje percebi o efeito borboleta pilhéria Aevin.
Enquanto todos conversavam a pequena tentava ordenar um cubo mágico, rodopiava-o
para todos os lados, mas não conseguia, parou e começou a ouvir Lúcio relembrando dos

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tempos que ia para o sítio de seus tios.
O caminho até a casa deles não era curto, e até chegar lá passávamos pelas pequenas e
simples casas de madeira, os barrigudinhos que moravam ali quando viam pessoas
desconhecidas corriam com seus pezinhos descalços até as toscas cercas de madeira e
abanavam as mãozinhas. Raras vezes passei pelo campo de futebol mal cuidado e vi um jogo,
mas quando havia as pessoas que moravam por perto prestigiavam com bandeirinhas os times
de várzea, o vendedor de algodão doce buzinava e atiçava os remelentos sem camisas e só de
cuecas, atrás do carrinho de pipoca criava-se uma enorme fila, era uma festa entre todos da
comunidade.
Ninguém tinha carro por aquelas bandas, os automóveis que tentavam chegar até a
casa dos meus tios entravam e saíam com dificuldade pela estrada de chão de uma terra fina e
preta.
Quando andávamos descalços tínhamos de lavar os pés com buchas que minha tia
retirava de uma árvore, lembra Nicole?
- Sim, e do poço?
- Lembro do poço sim... tinha um medo descomunal de cair lá dentro, uma vez que fui
sem você vi ele vazio, uma boca feita na terra, minha tia nunca deixava aproximar-me.
Lembra-se que corríamos livres pelos pastos?
Sim, eu sempre furava os pés com os capim-roseta secos, você estava quando caí
daquela árvore e quase quebrei o braço?
Se eu não saísse debaixo a tempo teria sido esmagada, não foi naquele dia que
montamos a cavalo?
Foi, meu tio o guiava, um dia e tanto porque os amigos que moravam perto visitaram-
nos.
Neste dia eu também estava. Pondera Aevin.
- Sim! fomos brincar de pega-pega no meio do milharal.
Não Nicole, esse foi outro dia em que um deles foi picado por uma cobra. Meus tios
ficaram apreensivos até o menino sair do hospital, esperaram-no com os pais dele.
Não lembro seu nome, mas soube que morreu ano passado, ficava um bom tempo
batendo nas dorme-dorme espinhentas para ver as folhas recolherem-se, enfim... são coisas
que não voltam mais, diz melancólico.
- Pensei ser a única que me afogava nas areias movediças do passado.
- Isso acontece com todos, não tenha dúvidas Nicole.
Hoje está tudo diferente de certo, faz uns dois anos que não vou para lá, você não nos

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convida mais Lúcio?
Semana que vem vou falar com meus tios, vamos fazer uma festa lá, que tal?
- Acho que não estou em vias de fazer festa.
- Vamos sim Aevin, esqueça o mais rápido possível o episódio de hoje.
- Falar é fácil.
Todos ficam em silêncio, Nicole pensativa:
Depois de tudo que aconteceu não notei que cresci, quando me dei conta já estava
longe da infância, dei o último adeus, virei as costas e parti resignada ao mundo sem graça
dos adultos, ela chorava porque não queria me abandonar, então para alegrá-la aceitei trazer
fragmentos daquela tenra idade cuidada com carinho. Quando nos tornamos adultos perdemos
a realidade mágica de criança.

Epílogo

Começa a anoitecer quando chegam ao apartamento de Lúcio.


Você vai conosco Nicole? Indaga Anim enquanto descem.
- Não, prefiro andar.
- Acho que não é seguro andar sozinha à noite. Adverte Anim.
- Mas eu vou.
- Você e sua teimosia hein...
Despede-se de todos na saída do prédio, a pequena lhe dá um apertado abraço, da
janela Lúcio manda um beijo para todas.
- Não vai cair Romeu - brinca Aevin- as três entram no carro e desaparecem.
Após algumas quadras avançadas por nossa destemida Ártemis, rainha dos bosques de
concreto, começa a cair uma chuva fina.
Não há quase ninguém pelas ruas, ando alguns metros e encontro um tufo de pessoas
em um ponto de ônibus, precipitam-se em atravessar um sinal aberto para os carros, mas não
há nem um, ficaram para trás, passo por lojas de roupas femininas e masculinas,
padronizadas, vitrinas bem iluminadas e produzidas demonstram os produtos que depois serão
usados por produtos do consumismo exagerado. Naquela de roupas de bebê uma luz rosa na
fachada transmite um tom de tranquilidade incrível.
O restaurante que estava vazio de manhã agora está abarrotado de famílias

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conversando, passo e ouço uma babel de tons, vozes, uma risada mais alta aqui, outra acolá,
um cheiro de gordura atravessa o ambiente, há um espaço reservado ao ar livre para quem
gosta, uma linda menina procura alguém em volta da mesa ocupada por uma família grande,
um menino maior esconde-se e entra na área coberta, ela o persegue e começa a correria entre
as mesas, os presentes não se preocupam. De repente Nicole reconhece uma voz no meio das
vozes:
- Garçom, mais uma cervejaaaaa - arrotando em seguida.
Não pode ser! Lot totalmente bêbado com três mulheres na mesma situação, parecem
não saber onde estão, a mesa farta de bebidas e alimentos, um casal de velhinhos observa
atônito toda a tragicomédia da situação.
- Hoje ultrapassarei os sete pecados capitais! E ria empilecado com as ninfas ao seu
redor.
No prédio adiante embaixo de uma marquise, um casal de namorados escondido se
beija apaixonado, nasci de uma situação parecida, todos nós. Engraçado é que procuramos
suprir nossas carências nos outros, assim escapamos da ilha que somos, mas quando
encaramos a solidão nos afogamos nas águas rasas da tristeza, seria mais fácil realizar os doze
trabalhos de Hércules do que tentar compreendê-la.
No outro lado da rua um bar com músicas agitadas, lá dentro as pessoas dançam,
sombras de mãos se agitam, seguram garrafas e copos, cigarros acessos, fumaça, um casal sai
e começa a dançar no meio da rua, começa a chover, eles estão felizes, sinto-me igual por
presenciar a cena, melhor por estar viva e a caminho de casa.
Há algo turvando meus pensamentos, mas não consigo definir, acho que senti com
mais intensidade enquanto Aevin pagava as mercadorias no supermercado, pensei sobre o
dinheiro que estava usando, pode-se ter muito, mas ele não compra os momentos mais felizes
que passei nem o tempo de volta, não compra minhas alegrias nem minhas infelicidades. A
seguinte frase que ecoou em meus longínquos devaneios foi esta: o dinheiro jamais poderá
comprar o conhecimento, a base para uma pessoa saber, no mínimo quem é. Podem me
despojar de tudo, mas o conhecimento jamais arrancarão de meu espírito, só se me decapitar,
aliás, estou um tanto bitolada, expando-os só na esfera das humanas, mas será que existe outro
tipo de conhecimento além desse que o ser humano tem? Questões epistemológicas são
terríveis.
Amanhã preciso ir àquele café ao lado da biblioteca, o ambiente é aconchegante,
apesar de não gostar das toalhas, têm um tecido estranho que demora a absorver os líquidos, e
muitos furos, qualquer coisa fica engatada nelas, será que convido Lúcio? Estava tão

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apreensivo hoje com a história de Aevin, quando chegar eu ligo, adoro café com leite e uma
boa conversa, ele não tem muito conhecimento, mas é um bom ouvinte. Preciso de um
cigarro, mas por que se não fumo? As indústrias de cigarros faturam milhões, mas fuma quem
quer. Não sei por que estou pensando sobre isso. A chuva está passando, mas as ruas
continuam desertas, gosto de ver tempestades, à noite ficam belas com seus infinitos pingos
caindo sobre carros, casas, prédios... pérolas jogadas do céu chocando-se, dividindo-se e
ricocheteando para os lados.
A última que vi aconteceu de dia, quando fui comprar pães tive de parar no caminho, a
água que corria dos telhados era tanta que transbordava as calhas, encostei-me a uma parede e
fiquei. Ninguém retrocedia ou avançava ao local que estava, os bueiros não davam conta de
tanta água e as ruas próximas de um rio poluído começaram a encher, mesmo assim as
chaminés de uma fábrica trabalhavam a todo vapor, eu estava em um local mais alto onde
conseguia ver boa parte da cidade, vim parar em aragens ignotas, pensava, de repente:
- O céu está desabando! - comentou um velhinho que estava em uma fila à minha
frente, afirmei em silêncio com um gesto de cabeça, quando olhei por entre aquelas rugas e
me deixei mergulhar naqueles olhos cinzas sob sobrolhos esbranquiçados captei uma vida de
sofrimento, comecei a conversar com ele sobre as topadas que damos com o passado, então
me olhou fixamente e de súbito proferiu:
- Não te preocupes filha, todos nós construímos uma história, os que não conseguem,
estudam as dos outros.
Fiquei atônita porque estava diante de uma pessoa que não possuía muita instrução,
mas era um sábio que proferindo uma simples sentença dardejou minha alma com um virote
de palavras. Eu sentia o peso do passado, depois daquele instante vi que o fardo me serviu
para adquirir experiência, a partir daquela tarde resolvi colocar aquele velhinho na História,
não fazia idéia de como, mas faria. As roupas velhas e as sandálias que ele usava naquele dia
frio me deixaram triste, ele notou e disse não se importar porque, acostumado à tempestades,
frio, era pescador e viera de uma cidade costeira ao norte para fazer um empréstimo e comprar
outro barco para seu filho que não conseguira uma vida medíocre em uma grande e
longuínqua cidade, estava calmo, pois o gerente do banco já o conhecia, pescava com ele às
vezes.
Depois da longa conversa tive certeza de que qualquer pessoa, mesmo desconhecendo,
é uma filósofa, toda filosofia é um modo de vida, levava-a da maneira que mais lhe aprazia,
admirei-me. A tempestade passou e cada um seguiu o seu caminho, não é preciso ir muito
longe para obtermos conhecimento, pensei.

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Ainda há um bar aberto próximo do terminal de ônibus, uma goma de mascar ajudaria
a suprimir essa ansiedade que apareceu agora, só um cliente, e ainda bêbado ao extremo, a
boca do indivíduo parece travada, fala como se estivesse a discursar para um grande público:
de mosquitos. Um homem com barba branca chega e pede café, despeja mais açúcar no copo
do que eu em um mês! Leva uma mochila com remendos grosseiros preta a tiracolo. Preciso
utilizar o banheiro, pergunto onde fica e o atendente me mostra uma placa no final do
estabelecimento, espero que esteja em condições plausíveis de uso, são deploráveis no quesito
de higiene, passo por uma coluna grega de engradados de cerveja, na parede oposta
marcações de jogos anteriores com giz colorido, a mesa de sinuca não está ocupada, mas
serve de encosto a dois homens semiescondidos que bebem cerveja em um local reservado na
qual eu não tinha visto, um carteado abandonado sobre uma mesa com a toalha vermelha e um
cinzeiro velho vazio, a porta range ao abrir, nada mal, mas não vou sentar aqui, onde está o
papel? Deveriam colocá-los em lugares menos inusitados para que o cliente não ficasse
procurando, o atendente bate na porta e:
- Esqueci de oferecer o papel.
Mas que situação! Peço para deixar sobre a parede divisória dos banheiros. Pronto!
Agora posso seguir aliviada, o mesmo rapaz me dá o troco em moedas. Da última vez que fiz
uma parada rápida aqui e comi um salgado a massa parecia crua. Um tanto doce esta goma,
mas está boa, com certeza haverá liberação de suco gástrico no estômago e o apetite vai
aumentar, apetite derivado do francês? Está frio, este meu vestido deveria me proteger melhor
das intempéries do tempespaço e suas dezenas de dimensões com centenas de possibilidades
acontecendo, química, medicina, matemática, filosofia, história. Faço parte da história, e
quantas pessoas fizeram e sequer existiram? Desapareceram como o som de um estralar de
dedos.
Naquele dia quando estava a caminho do prédio onde trabalhava o sol enfraquecido da
tarde batia em meu rosto, tive uma sensação tão intensa, me senti feliz porque percebi que
estava viva e que deveria fazer alguma coisa, mas não sabia o que, só teria de fazer. Hoje
andei a esmo para ver o que aconteceria. Tive a mesma sensação: a de que eu existo, estou
viva! E tenho a realidade absurda toda para estudar, perder-me em seus meandros que
transbordam conhecimento, ter sede de conhecimento para quem se aventura nesta jornada
sem sentido e interessante que é a vida, é um incentivo para captar as artimanhas do labirinto
do pensamento. Se Dédalo não o construísse jamais Ariadne teria se apaixonado. Tudo que
acho interessante eu estudo, assim desconstruo a realidade. Estava pensando em mudar de
emprego, será? Só não posso adiar as metas que não tenho em mente e as coisas interessantes

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que tenho de descobrir: ser inteligente é uma delas, vi a cabeça de Hermes com seu elmo de
asas enfeitando a parte mais alta daquele prédio e associei, parece que ele quer sair e voar.
Garotas que esperam sentadas no terminal de ônibus estão com camisetas estampadas
com capas de disco, reconheci-os de longe, Alucinação e Construção, grandes obras da
música. Ainda bem que a chuva parou, sinal de que isso vai durar a semana inteira, fui pega
de surpresa. As luzes dos postes entre as árvores produzem sombras estranhas na calçada
molhada, a estátua de Atena agora está iluminada, luzes projetadas do chão dão um ar de
pomposidade incrível, algumas gotas caem sobre as luminárias, estão tão quentes que a H2O
evapora em segundos com um chiado em seguida.
O decrépito que tocou os cachorros fuma um cachimbo na varanda, cheiro de
chocolate, na última vez que andei pelas ruas à noite pensando, vi-o sentado no muro em
frente à sua casa chupando cana-de-açúcar, difícil era ele assobiar ao mesmo tempo. Há uma
mesinha ao seu lado onde repousa uma jarra de vidro fechada com café, da xícara sai um fio
de fumaça não comparável à nuvem do cachimbo, quando vou à casa de Lúcio volto sempre
pelo mesmo caminho, hoje vou variar, faz tempo que não faço isso, ontem sequer consegui
sair, antes pensava que andando nas ruas à noite pudesse fugir de mim mesma, descobri que
ao menos diminuo meus problemas à medida que acho as peças que faltam no quebra-cabeça
da vida. Talvez nos escombros do meu inconsciente tateio nas ruínas dos sonhos uma saída.
No outro lado da rua uma figura estranha e solitária passa afoita.
Veja se não é aquele artista plástico conhecido... deveriam inventar uma lei para que
artistas e filósofos pudessem repousar e se alimentar nas casas que desejassem, como os
soldados da República. Se substituíssem as guerras pelas letras e pela poesia tudo seria
diferente. A verdadeira arte no seu ponto máximo é uma arma de contestação que mostra a
podridão da humanidade.
Sempre o via vagando pelas ruas próximas da minha casa nos finais de semana,
atravessa a rua e vem em minha direção... pergunta se tenho um cigarro, digo que não fumo,
ele se foi, às vezes precisamos dividir nossa solidão com um desconhecido nas ruas semi-
escuras da vida, porque todos somos parecidos. Ele ajunta jornais molhados na calçada
deformados pela chuva, já são uma obra feita pela natureza, talvez tenha deixado ali de
propósito. Foi aqui que sofri o acidente naquela sexta, o dia estava tão amarelo, uma cor
tristonha do tempo que me escapou e levou parte de minha vida, mas ainda há muita coisa
para ser vivida, preciso de cada momento para manter minha lucidez. A absurdidade da
situação cria a realidade, preciso me agarrar a ela para que a vida tenha sentido já que as
variações são infinitas como a quantidade de vértices dentro de um círculo.

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Vôos transcendentais da minha imaginação, só espero não perder minhas asas como
Ícaro extasiado pelo brilho do sol. Sol, conhecimento tanto de Platão quanto de Diógenes.
Estaria ele indo de encontro ao conhecimento?
Captei uma cena a ponto de ir até em casa pensando nela, senti-me com o olhar de
Medusa. Se Perseu estivesse ali seria decaptada. Uma gota de água caiu do pára-choque desse
carro ao mesmo tempo em que a motorista de botas alaranjadas colocou os pés no chão,
petrifiquei-a em minha memória de um ângulo tão preciso que desconfio ser mais uma das
peripécias da contingência, estranho é que a mulher está com roupas masculinas e
suspensórios e o homem que estava no banco do carona está de saia, achei a explicação: vão
àquela festa à fantasia na boate ali na frente, ando vendo muitas fantasias ultimamente, daqui
a pouco viro a Alice, estou mais para Perséfone, por isso minhas estações mudam tão devagar.
Pensar nessas coisas não ajuda muito, tenho de fazer algo para sair desse outono de
fragmentos, Deméter há de me ajudar com os detalhes da primavera, pena que na minha caixa
de pandora de onde saíram meus males, até a esperança já escapou.

Joinville
Maio de 2006 – Novembro de 2008

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