Ainda é cedo, não gosto de vagar a noite fora de casa.
Hoje o ar tem se movido de uma
maneira diferente pelas ruas, é um sussurro que me persegue como uma nota aguda cantada aos pés do abismo. Minha gata deve estar faminta, caçando insetos no chão e na varanda, imperdoável não saber cuidar de um animal. Mas talvez o leve descuido seja necessário e abra espaço para o amor ou quem sabe minha face materna esteja perdida e eu tenha desistido de a encontrar. Se minha mãe ouvisse meus pensamentos, diria que estou louca, que eu deveria ter ficado ali, uma cidade tão violenta e mal iluminada não faz bem para a cabeça. Se eu tivesse ficado teria herdado a casa ensolarada e as belas louças florais, mas também a clausura costurada por anos em palavras afogadas e lágrimas servis. Dou boa noite ao porteiro, passo pelo corredor de concreto acinzentado e quadros mortos, arquitetado para ser apenas uma área de passagem. Chego ao elevador, não funciona. Subo os sete andares pela escada, desenho vertical traçado em espirais como meu pensamento. Mas ao menos ela tem um ponto de destino. As luzes de emergência se apagam antes de eu chegar ao próximo patamar. Vem um sobressalto. Fico dissolvida na escuridão, sem contornos. As escadas sempre me assustaram. Atravesso o hall, chego ao apartamento setenta e quatro. Demoro a encontrar as chaves da bolsa, cheia de quinquilharias: celular, presilhas, identidade, um papel dobrado com senhas, contas a pagar, uma faca para me proteger do medo cotidiano. Destroços de uma vida frágil e adulta. Giro a chave e a porta se abre, mas logo é fechada com violência pela ventania que passa pelas janelas abertas. Abro a porta pela segunda vez. A sala está na penumbra. Um feixe lunar faz um jogo de luz e sombras. Na velocidade de um flash fotográfico, meu olhar se sobressalta ao focar o canto direito da sala. O coração engole a respiração e um grito rouco sai por instinto. Quero correr para fora da casa, mas meus pés estão paralisados. A porta da entrada é de novo fechada com brutalidade pelo vento. Tento abrir, mas me enrosco num desespero ofegante. Com a percepção turva e nublada pelo pavor, identifico em partes o animal à espreita. Da massa escura que me confunde, vejo chifres de touro e olhos de onça em caça. Não há pescoço ou patas, somente algo corpulento ocupando o espaço. Sou uma criança acossada pelo pesadelo da noite, sem a cama da mãe para correr. Meus movimentos são incompetentes. A voz, de tão apavorada, se emudece. À minha revelia, fico petrificada prestes a encarar a fera. Por que não se move? Por que não me movo? Um lampejo me faz lembrar da gata. Não veio me receber na porta, não a encontro. Uma certeza fria corta o meu corpo e logo entendo que ela foi devorada pelo animal. Sou invadida por uma corrente de ódio, pego a faca na bolsa e avanço de encontro a fera. Num movimento desordenado, atinjo a barriga do animal, o bicho solta um gemido e tenta arranhar meus braços. Ferido, me volta um olhar de súplica. A expressão do animal é a de um cavalo de pernas quebradas. A selvagem inocência que me olha não é do reino das palavras. Minha única resposta é um choro doloroso. A casa é um território que não conheço. Estou perdida onde habito e nem os anos vividos ali são capazes de me fazer pertencer àquele espaço. O invasor se tornou presa; a presa, assassina de quem nasceu sem culpa. Respiro como se acabasse de fugir de uma casa incendiada. Não tolero o silêncio e só então lembro de acender a luz. Não há animal nenhum, apenas plantas, manchas de vinho da noite anterior, livros abertos pelo vento. A gata sai debaixo da cama e passeia por minhas pernas. Vou ao banheiro lavar o rosto. Lembro de uma frase que há muito tempo escrevi: é na noite que os diabos do corpo ficam latentes. O espelho iluminado me devolve o mesmo olhar da fera. A noite é uma ardilosa compositora de encontros.