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Química Virtual, Novembro de 2010

A série ‘Acidentes Explicados pela Ciência’ tem


por objetivo mostrar os maiores e mais incríveis
acidentes causados pelo homem mostrando es-
sencialmente o que aconteceu sob o ponto de
vista científico. As reações químicas aqui descri-
tas não devem, em hipótese alguma, ser reprodu-
zidas devido ao seu alto grau de periculosidade.

A explosão do ônibus espacial Challenger

A conquista do espaço ficou Quais são as principais par- que externo (ET). Estes foguetes
marcada pela explosão do tes do ônibus espacial e SRB (foguetes propulsores sóli-
dos) são constituídos essencial-
ônibus espacial Challenger. como ele funciona?
mente de alumínio (combustível),
Veremos neste artigo os A conquista do espaço perclorato de amônio (agente oxi-
detalhes científicos que demonstra o quanto a ciência dante) óxido de ferro III em pó
avançou e pode avançar. Em
explicam o acidente. um ônibus espacial temos a
(catalisador) e outros componen-
tes que, juntos, formam uma pas-
aplicação dos mais recentes ta que colabora no processo de
EMILIANO CHEMELLO avanços científicos. Porém, co- queima deste combustível sólido,
chemelloe@yahoo.com.br mo todo o produto produzido reação que tem por objetivo ele-
por humanos, podem existir var os 2 x 106 kg a uma altura
falhas. E este acidente é um superior a 500 km, o que implica
Introdução exemplo desta sempre presente em uma força de 11 x 106 N. E-
possibilidade. quacionando a reação da queima
Tudo aconteceu dia 28
de Janeiro de 1986. E foi rápi- Um ônibus espacial é do combustível sólido, temos:
do: durou apenas 73 segundos. constituído por várias partes, 6 NH4ClO4(s) + 8 Al(s) 
O ônibus espacial Challenger conforme ilustra a Figura 1. O 12 H2O(v) + 4 Al2O3(s) + 3 N2(g) + 3 Cl2(g)
estava pronto para mais uma módulo é impulsionado pelos
missão. Tratava-se de uma foguetes até vencer a força gra-
manhã fria (na noite anterior vitacional que os ‘prendem’ na A quantidade de energia
ao do lançamento, a tempera- Terra. O combustível para o liberada faz os gases e vapores
tura havia chegado a cerca de lançamento é guardado no tan- expandirem, os quais impulsio-
-6 ºC). O lançamento foi retar- nam a estrutura para cima. To-
dado em duas horas, a fim de davia, estes foguetes SRB são
que a temperatura aumentasse responsáveis por cerca de 70 %
para que o gelo formado na da força necessária para elevar a
base de lançamento derretesse. estrutura. O resto é proporciona-
Depois disto, tudo parecia estar do pelos motores principais que
pronto para o ônibus espacial fornecem os 30 % restantes. Es-
Challenger decolar. Porém, a- tes últimos funcionam a partir da
pós 73 segundos, uma grande mistura de hidrogênio e oxigênio
explosão interrompe a alegria (guardados no ET no estado lí-
dos espectadores. Todos os sete quido), resultando em água e
tripulantes morreram no aci- calor, conforme representa a e-
dente. quação abaixo:

O que aconteceu de er- H2(g) + O2(g)  H2O(v)


rado? Será que a baixa tempe-
ratura teve influência no aci- Como você provavelmente perce-
dente? Entenda o que propor- beu, o produto da reação entre o
cionou a trágica explosão do oxigênio e hidrogênio é água. Por-
ônibus espacial Challenger na tanto, nas decolagens de ônibus
sequência deste artigo. especiais, boa parte daquela ‘fu-
*** Figura 1 – Partes principais do ônibus maça branca’ produzida é água.
espacial Challenger.

1
Este ET é feito de alu- O que é e quais os constitu- H2C C CH CH2
mínio e contém dois tanques intes da borracha?
CH3
que guardam, separadamente,
o oxigênio do hidrogênio. Isola- As borrachas são um isopreno
do com uma grossa camada de tipo de material com proprieda-
espuma, o ET encontra-se a des únicas! Imagine um materi-
uma temperatura muito baixa, al que é comprimido, esticado, e H3C H H3C H
suficiente para liquefazer o quando esta ação exterior cessa, C C C C
hidrogênio e o oxigênio. o material volta à forma inicial.
.... CH2 CH2 CH2 CH2 ...
Estas são as borrachas! Mas
esta história de puxa e estica borracha natural
Uma das etapas mais
não é tão simples assim. As
perigosas de uma viagem é a
borrachas desgastam-se e seu Figura 3 – Isômero e estrutura polimé-
decolagem. Parecia estar tudo rica da borracha natural.
comportamento depende de
certo, pois o Challenger havia
algumas variáveis, mas princi-
decolado e preparava-se para de que se repete várias vezes. No
palmente da temperatura. Ve-
entrar em órbita, mas após 73 caso da borracha natural, trata-
jamos um pouco da estrutura
segundos, observou-se algo se de um polímero com o monô-
atômica da borracha para en-
inesperado: uma grande explo- mero chamado de isopreno (nome
tendermos como ela funciona.
são. Estão lembrados a respei- usual para o menos usual porém
to do frio? Pois este frio preju- O principal componente oficial nome “2-metil-buta-1,3-
dicou a correta funcionalidade da borracha é o látex, o qual é dieno”), conforme ilustra a Figura
dos anéis elastoméricos (juntas obtido da conhecida seringueira 3.
anulares de borracha) presen- (Hervea brasiliensis) que, con-
tes no foguete SRB. Como eles forme o nome oficial sugere, A natureza encarrega-se
não selaram as junções devi- encontra-se aqui no Brasil na de transforma o isopreno em lá-
damente, durante a subida forma nativa. O látex só virou tex, mas este último sem o enxo-
gases quentes escaparam atra- borracha quando Charles Good- fre não comporta-se como a bor-
vés de uma destas junções. year aqueceu, em um forno: racha que conhecemos. É preciso
Como um maçarico, os gases látex, pó de enxofre e um pouco adicionar enxofre para que suas
cortaram o ET e fizeram reagir de óxido de chumbo II. Obteve- cadeias se conectem e que surja a
o hidrogênio com o oxigênio. se pela primeira vez a borracha força responsável por fazer a bor-
Isto promoveu a explosão do como a conhecemos e este pro- racha voltar ao tamanho inicial
tanque combustível, conforme cesso foi batizado por Goodyear após ser comprimida ou esticada.
mostra a Figura 2. de vulcanização. A presença do enxofre e as liga-
ções entre as cadeias podem ser
Os químicos chamam de vistas na Figura 4.
elastômeros os polímeros que
possuem elevada elasticidade. Já na Figura 5 temos
Um polímero é um tipo de mate- uma comparação entre a borra-
rial constituído por uma unida- cha não vulcanizada (a) e a vul-

Figura 2 – A explosão do Ônibus


espacial Challenger depois de 73
segundos da decolagem.

Afinal, por que as jun-


tas de borracha não fizeram
sua função naquele dia de frio
intenso? Para responder a esta
pergunta, precisamos saber o
que é uma borracha sob o pon-
to de vista microscópico e, a-
pós, analisar as mudanças de
suas propriedades em função
da temperatura.

***
Figura 4 – Pontes de enxofre entre as cadeias poliméricas da borracha.

2
canizada (b), ambas sendo esti-
cadas horizontalmente. Após
esta alteração, na borracha
vulcanizada, o material volta ao
tamanho inicial, enquanto que
na borracha não vulcanizada, o
tamanho final é maior que o
inicial.
***
Como os elastômeros com-
portam-se com a variação
da temperatura?
Nomeamos em ciência
por ‘grandeza’ tudo aquilo que
pode ser medido. A temperatu-
ra é uma grandeza, que medi- Figura 5 – Em (a) temos um exemplo de borracha não vulcanizada. Em (b) temos a
mos por meio, por exemplo, de borracha vulcanizada. Quando ambas passam por um estiramento na horizontal, as
um termômetro. A temperatura pontes de enxofre (destacadas em vermelho) fazem com que a borracha vulcanizada
volte ao tamanho inicial.
é uma grandeza associada ao
quantidade de movimento das
entidades que compõe um dado após ser comprimida ou estica- quebradiça. Os gases em altas
material (papo de cientista: da. Porém, se a borracha é temperaturas que escaparam dos
átomos, moléculas, etc). submetida a temperaturas infe- foguetes SRB tornaram-se um
riores a sua Tg, ela passa de verdadeiro maçarico. Estes foram
Estudamos na escola os flexível para dura e frágil como o capazes de danificar o ET fazendo
estados físicos da matéria. A- vidro. Isto relaciona-se direta- vazar o combustível líquido até
prendemos que o estado sólido mente com o acidente do ônibus que, depois de 73 segundos após
é mais organizado que o estado espacial Challenger. Vejamos o lançamento, ocorresse a explo-
líquido, que por sua vez é mais como. são do tanque de combustível
organizado que o estado gaso- juntamente com todas as outras
so. Porém, alguns materiais são ***
partes do ônibus espacial.
sólidos amorfos, ou seja, não O que deu errado com o
são sólidos com organização A NASA constituiu uma
ônibus espacial Challen- comissão para apurar os motivos
estrutural, mas sim desorgani-
ger? do desastre. Nesta comissão des-
zados (amorfo significa ‘sem
forma’). São exemplos de sóli- Nos foguetes SRB do ô- taca-se a presença do ilustre físi-
dos amorfos o vidro, plásticos nibus espacial Challenger, utili- co teórico ganhador do prêmio
e... adivinhem? Sim, as borra- zou-se um fluorelastômero (um Nobel Richard P. Feynman, con-
chas também são sólidos amor- complexo copolímero – polímero forme é ilustrado na Figura 6.
fos. formado por vários monômeros)
que possuía boa performance
Os sólidos amorfos não
em altas temperaturas, tais co-
mudam de estado físico como
mo as atingidas nos foguetes.
os sólidos cristalinos. Quando
No entanto, quando submetida
aquecidos, eles atingem uma
a baixas temperaturas ela não
certa temperatura especial,
comporta-se tão bem, pois a-
chamada de ‘temperatura de
proxima-se da temperatura de
transição vítrea’ (Tg). Cada ma-
Tg, a qual faz com que ela se
terial tem sua Tg, a qual rela-
torne dura e quebradiça, que
ciona-se com a passagem do
são propriedades indesejáveis
estado vítreo para o estado e-
para ela no foguete.
lastomérico, ou seja, tentando
explicar estes nomes com pala- Provavelmente você nun-
vras mais simples: a passagem ca colocou recipientes plásticos
do estado de sólido amorfo para impróprios no forno, pois se o
um estado desordenado no fizer eles amolecerão como man-
qual as cadeias poliméricas teiga. É exatamente o contrário
possuem uma mobilidade mai- o que aconteceu com a borracha
or (um comportamento de bor- de vedação do foguete SRB do
racha não vulcanizada). A bor- Challenger. Esta borracha, na
racha já constitui este ‘estado temperatura baixa daquele dia,
não efetuou a vedação adequa- Figura 6 – O físico Richard. P. Feynman e
desorganizado’, que tem nas
sua demonstração da borracha mergu-
pontes de enxofre a o recurso damente entre as seções do fo- lhada em um copo com gelo para explicar
para voltar ao tamanho inicial guete SRB pois tornou-se dura e o acidente com o Challenger.

3
Estavam dentro do ôni-
bus espacial sete pessoas, seis
astronautas e uma civil, a pro-
fessora Christa McAuliffe, a
qual foi selecionada entre 11
mil profissionais para estar
presente no ônibus. Ela era a
primeira civil que iria participar
de uma viagem espacial. Uma
foto dos tripulantes logo antes
do embarque está presente na
Figura 7.

Figura 7 – Foto dos tripulantes do ônibus espacial Challenger. Sentados, da esquerda


para direita: Michael J. Smith, Dick Scobee, Ronald McNair. Em pé, da esquerda para
direita: Ellison Onizuka, Christa McAuliffe, Gregory Jarvis, Judith Resnik.

***

Para saber mais:

O Emiliano Che-
 Report of the Presidential mello é licenciado
em química pela
Commission on the Space Shut-
Universidade de
tle Challenger Accident Caxias do Sul e
Mestre em Ciência
http://science.ksc.nasa.gov/sh e Engenharia de
uttle/missions/51- Materiais pela mes-
ma instituição.
l/docs/rogers-
Leciona em escolas de ensino médio e
commission/table-of- pré-vestibular na Serra Gaúcha.
contents.html
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