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o discurso do MEC
Raquel Goulart Barreto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Raquel Goulart Barreto
Univ. do Estado do Rio de Janeiro
Avenida Rui Barbosa, 280/204
22250-020 - Rio de Janeiro - RJ
e-mail: raquel@uol.com.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.2, p. 271-286, jul./dez. 2003 271
Technologies in teacher education: the discourse of the
Ministry of Education (MEC)
Raquel Goulart Barreto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Abstract
Keywords
Contact:
Raquel Goulart Barreto
Univ. do Estado do Rio de Janeiro
Avenida Rui Barbosa, 280/204
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e-mail: raquel@uol.com.br
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Tecnologias na educação determinantes de processos em que também
estão enredadas, como se sua produção pudes-
Antes de tudo, é importante sublinhar se ser pensada fora das relações que as engen-
a oportunidade da focalização de “novas dram. Por outro lado, a produção situada nas
tecnologias e educação”, tema cada vez mais áreas da informação e da comunicação tem
presente nas discussões educacionais. Por ensejado o uso recorrente de imagens como a
outro lado, também é relevante assinalar os do seu “impacto” sobre a educação, metáfora
sentidos da conjunção “e”, que liga os termos bélica que supõe a tecnologia como uma espé-
da expressão utilizada, o qual sugere adição, cie de projétil e a educação como um alvo vivo,
justaposição e, contraditoriamente, reconhe- não dando conta do fato de que
cimento da distância entre eles.
A presente tentativa de aproximação não somente as técnicas são imaginadas,
parte do reconhecimento da distância entre os fabricadas e reinterpretadas durante o seu
termos (novas tecnologias e educação), tendo uso pelos homens, como também é o próprio
como horizonte as relações entre eles, no uso intensivo de ferramentas que constitui a
movimento de analisar os modos pelos quais as humanidade enquanto tal (junto com a lin-
“novas tecnologias” têm sido incorporadas aos guagem e as instituições sociais complexas).
processos educacionais. Daí o subtítulo escolhi- (Lévy, 1999, p. 21)
do (Tecnologias na educação); o recorte a
partir do discurso pedagógico, compreendido Por outro lado, ainda, a referência a
como o conjunto das práticas de linguagem ferramentas tem implicado deslize teórico dig-
desenvolvidas nas e sobre as mais variadas si- no de nota: a concepção das tecnologias como
tuações educacionais; e o foco na formação neutras, prontas para serem utilizadas, indepen-
dos profissionais do ensino. dentemente do trabalho que se pretenda reali-
Nesta introdução, é preciso situar algu- zar (Barreto, 2001a). É a hipertrofia da dimen-
mas questões relacionadas à objetivação das são técnica, a respeito da qual Martin-Barbero
novas tecnologias no contexto educacional. (1997, p. 256) apresenta pelo menos duas
Novas são aquelas tecnologias que não se con- objeções:
fundem com as “velhas”: lousa, caderno, lápis,
caneta, livros didáticos, etc. Novas, assim, são As tecnologias não são meras ferramentas
as tecnologias da informação e da comunica- transparentes; elas não se deixam usar de
ção (TIC), em uma formulação que demarca o qualquer modo: são, em última análise, a
seu pertencimento a áreas não-educacionais, no materialização da racionalidade de uma certa
sentido de produzidas no contexto de outras cultura e de um “modelo global de organiza-
relações sociais e para outros fins (Barreto, ção do poder”.
2002). Tecnologias a serem descontextualizadas É possível, contudo, uma reconfiguração, se não
das suas áreas de origem e recontextualizadas como estratégia, pelo menos como tática (...),
na educação, com todos os apagamentos aí quando a reconfiguração do aparato é impossí-
implicados (Bernstein, 1996). vel, que seja reconfigurada ao menos a função.
A referência à origem das novas (grifos do autor)
tecnologias, por sua vez, traz para o centro da
análise a questão de uma suposta “revolução A menção a “tática”, no sentido confe-
científico-tecnológica” como extrapolação rido por Certeau (1994), leva para o centro da
conceitual indevida, motivada pelo deter- cena não apenas os objetos técnicos disponí-
minismo tecnológico (Antunes, 1999; Leher, veis ou disponibilizáveis, mas também os mo-
2000), que passam a ser concebidas como dos da sua utilização, inventados nas artes do
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fazer. Não há manuais de instrução ou outros mais práticas sociais de muitos sujeitos e a
mecanismos capazes de dar conta dos usos possibilidade de acesso de outros tantos (mais
específicos que os sujeitos fazem e podem vir numerosos ainda nas escolas públicas), por
a fazer desses objetos. outro, o conceito de apropriação implica a
A questão central, portanto, diz respeito formulação de questões silenciadas quando se
aos modos de incorporação das tecnologias da adere ao modismo e à perspectiva do consumo:
informação e da comunicação (TIC) aos pro- TIC para quê? TIC para quem? TIC em que
cessos pedagógicos. termos? (Barreto, 2002a).
No presente momento, é possível afir- Objetivar a presença das TIC é um movi-
mar que, nos mais diferentes espaços, os mais mento em direção à análise dos sentidos de que
diversos textos sobre educação têm, em co- essa presença é investida, de modo a afastar os
mum, algum tipo de referência à utilização das riscos de leituras simplistas e simplificadoras.
TIC nas situações de ensino. Das salas de aula Como afirma Martin-Barbero:
tradicionais aos mais sofisticados ambientes de
aprendizagem, as tecnologias estão postas a imagem das “novas” tecnologias educa as clas-
como presença obrigatória. Entretanto, a essa ses populares latino-americanas na atitude mais
presença têm sido atribuídos sentidos tão di- conveniente para seus produtores: a fascinação
versos que desautorizam leituras singulares. pelo novo fetiche (...). Uma das “novidades” que
Parece não haver dúvida acerca de um lugar as modernas tecnologias da comunicação suposta-
central atribuído às TIC, ao mesmo tempo em mente apresentam é a contemporaneidade entre o
que não há consenso quanto à sua delimitação tempo da sua produção nos países ricos e o do
(Barreto, 2001b). seu consumo nos países pobres: pela primeira vez
É inegável a amplitude do território em não estaríamos recebendo as máquinas de segun-
que estão sendo posicionadas as TIC. No limi- da mão! Enganosa contemporaneidade, porém,
te, podem ser postas como elemento estruturante uma vez que encobre a não-contemporaneidade
de um novo fazer pedagógico (Kenski, 2001), entre objetos e práticas, entre tecnologias e usos,
bem como de relações sociais que, por serem impedindo-nos assim de compreender os sentidos
inéditas, dão sustentação a neologismos como que sua apropriação adquire historicamente.
“cibercultura” (Lévy, 1999). No outro extremo, o (1997, p. 255-6)
que as novas tecnologias sustentam é uma for-
ma de assassinato do mundo real, com a liqui- Em contextos marcados por profundas
dação de todas as referências (Baudrillard, 1991). contradições, como o latino-americano – e o
No entremeio, as TIC podem constituir novos brasileiro, em especial –, até mesmo as carac-
formatos para estas, velhas concepções de ensi- terísticas definidoras das TIC devem ser objeto
no e aprendizagem, inscritas em um movimen- de discussão. Como exemplo, é importante
to de modernização conservadora ou, ainda, em pontuar o “seu” sentido de enfrentamento da
condições específicas, instaurar diferenças qua- compressão tempo-espaço “ora” experimenta-
litativas nas práticas pedagógicas (Belloni, 2001; da. Como lidar com esse sentido, considerando
Cysneiros, 2001; Pretto, 2001). a coexistência de tempos desiguais em uma
As condições específicas acima referi- mesma formação econômico-social? (Martins,
das retomam e remetem aos modos de incorpo- 1993; Leher, 1997).
ração das TIC nos contextos educacionais: à A partir de questões como a acima
sua apropriação (Thompson, 1999) pedagógi- mencionada, o presente estudo pretende con-
ca. Se, por um lado, a presença das TIC na tribuir para a (re)constituição da problemática
educação (TV, vídeo, computador, etc.) aponta das tecnologias na educação. Para tanto, assu-
para o não distanciamento em relação às de- me os seguintes pressupostos: (1) em razão
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com os países ricos, a presença de algumas mental e ancorado nos materiais de ensino. Seu
tecnologias. Radicalmente diferente deles, o ponto de partida pode ser uma concepção
modo de incorporação das tecnologias e, por- ampliada de tecnologia, como a explicitada por
tanto, os sentidos que esta incorporação assu- Labarca (1995, p. 165), consultor da Cepal, em
me. Descabida, assim, a associação simplista da nota de rodapé: “Tecnologia no sentido de
presença das tecnologias à modernização. combinação de recursos materiais e humanos.
O discurso que sustenta o apartheid Em educação, o recurso humano decisivo para
educacional tem enfatizado argumentos econô- qualquer cálculo econômico é o docente”. Em
micos, como os analisados por Fonseca: outras palavras, o professor é a “tecnologia” a
ser substituída, expurgada, na medida em que
O ponto central da política do Bird para os anos é cara e pouco eficiente. Segundo esse mesmo
1990 é, sem dúvida, a redução do papel do Estado consultor,
no financiamento da educação, bem como a dimi-
nuição dos custos do ensino. No documento de devido ao uso intensivo do recurso humano, a
1995, a prioridade dos empréstimos é direcionada educação dificilmente pode melhorar sua produ-
para um conjunto de insumos educacionais os tividade. Por outro lado, há obstáculos à modi-
quais, segundo estudos internos do Banco, mostra- ficação das tecnologias pedagógicas: os siste-
ram-se determinantes para o desempenho escolar mas tendem a proteger o monopólio docente na
em países de baixa e média renda; assim, bibliote- transmissão do conhecimento. (Labarca, 1995,
cas, material didático e livros são privilegiados em p. 174)
detrimento de fatores humanos, como formação,
experiência e salário do professor. No âmbito do- Ao professor, nesta proposta, cabe racio-
cente, o que ainda conta é um certo nível de co- nalizar o contato dos alunos (controle do tem-
nhecimento, entendido como capacidade verbal e po destacado) com os “materiais instrucionais”,
escrita dos mestres. Por essa razão, os projetos do dos livros didáticos aos multimidiáticos (Barreto,
Banco deverão privilegiar a distribuição de livros e 2000). Prossegue o consultor:
de outros pacotes instrucionais, assim como o trei-
namento dos professores para a adequada utiliza- Os docentes deixam de ser os principais deposi-
ção dos mesmos. tários do conhecimento e passam a ser consul-
Outras variáveis, como número de alunos por tores metodológicos e animadores de grupos de
professor ou tempo dedicado ao ensino, são trabalho. Esta estratégia obriga a reformular os
desconsideradas como fatores diretos de apren- objetivos da educação. O desenvolvimento de
dizagem, mas são enfatizadas como importantes competências-chave (...) substitui a sólida for-
meios de “recuperação de custos”. Aliás, a ne- mação disciplinar até então visada. O uso de
cessidade de diminuir despesas no ensino públi- novas tecnologias educativas leva ao apagamen-
co constituía, também, a base daquilo que o to dos limites entre as disciplinas, redefinindo
Banco denominava de “inovações educacionais” ao mesmo tempo a função, a formação e o
no início dos anos 1970: os documentos da épo- aperfeiçoamento dos docentes. (Labarca, 1995,
ca recomendavam o uso de alternativas inova- p. 175-176)
doras de ensino, significando a busca de meios
instrucionais mais baratos para diminuir os cus- Assim, os organismos internacionais
tos. (1998, p. 54) concluíram que o dito monopólio do conhe-
cimento detido pelo professor poderia ser
Por outro lado, esse discurso de ordem quebrado por meio da intensificação do uso
econômica veicula um modelo de substituição de tecnologias da informação e da comunica-
tecnológica, fundado na racionalidade instru- ção, assim como se dera nas fábricas pela con-
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(MCT), bem como o seu próprio específicas que, por sua vez, serão objeto de
posicionamento na estrutura governamental. avaliação centrada no produto, em detrimento
No início (1995-6), quando havia apenas o do processo, assim como nos aspectos quanti-
Programa TV Escola, este chegou a ser assumi- tativos, em prejuízo dos qualitativos.
do temporariamente pela então Secretaria de Acerca da avaliação, já em 1998, Fon-
Comunicação Social da Presidência da Repúbli- seca observava:
ca. Na passagem de 1999 a 2000, a iniciativa
da dita “Sociedade da Informação” foi do MCT, No que se refere à avaliação, o Banco [Mundial]
de cujas reuniões para a elaboração do Livro sugere o estabelecimento de critérios gerenciais e
Verde da Sociedade da Informação o MEC es- de eficiência, por meio dos quais busca-se alcan-
teve ausente, e a cujo lançamento oficial no çar a qualidade da educação (...) é interessante
Palácio do Planalto o ministro Paulo Renato notar como os documentos estratégicos do Mi-
não compareceu (Pretto, 2001). nistério da Educação para o período 95/96 indi-
Mesmo sem entrar, aqui, nas questões cam a importância central dessas avaliações. De
de mérito e financiamento da iniciativa acima acordo com o texto, caberia fortalecer institui-
referida, cabe pontuar a posição do MEC na ções de avaliação fora do âmbito do MEC, para
gestão dos projetos de tecnologia na educação. que atinjam padrões internacionais. (p. 56)
A esse respeito, Pretto afirma que, além do
A triangulação em tela, reportada a um
Programa de Informática na Educação (ProInfo), discurso híbrido, concilia movimentos contradi-
desenvolvido pelo MEC, existe um Programa tórios, como a minimização do investimento e
Educação desenvolvido pelo Ministério das Co- a maximização do controle. Parte significativa
municações e tantos outros programas estão sen- desta conciliação pode ser creditada à substi-
do implantados diretamente pelas operadoras, tuição da sólida formação disciplinar inicial por
tendo, como ponto em comum, a ausência de competências e habilidades, noções coerentes
articulação entre todos eles. (2001, p. 46) com a proposta como um todo, analisadas por
Fairclough nos seguintes termos:
Se não há elementos que possam dar
conta das articulações (e da ausência de) em De um lado, o conceito de habilidade tem im-
nível interministerial, não é possível negar que plicações ativas e individualistas: habilidades
as políticas de formação de professores, restri- são atributos apreciados dos indivíduos, estes
tas ou não à certificação, têm sido caracteriza- diferem em tipos e em graus de habilidade, e
das por forte articulação no âmbito do MEC. está aberto a cada um aperfeiçoar as habilida-
Uma grande articulação diz respeito à des ou acrescentar novas habilidades. (A propó-
triangulação que confere materialidade espes- sito, o conceito é também democrático, sugerin-
sa ao discurso dos organismos internacionais, do que todos têm a capacidade de aprendiza-
compreendida por diretrizes curriculares nacio- gem e desenvolvimento, dado apenas o treina-
nais (www.mec.gov.br/cne/default.shtm), avali- mento apropriado.) Por outro lado, o conceito
ação unificada e educação a distância (Barreto, de habilidade tem implicações normativas, pas-
1997). A partir dela, tem sido possível desen- sivas e objetificadoras: todos os indivíduos ad-
volver um discurso híbrido, conjugando os quirem elementos de um repertório social co-
sentidos do termo “diretrizes” com uma pers- mum de habilidades, por meio de procedimentos
pectiva de “flexibilidade”, bem como produzir, de treinamento institucionalizados e supondo-se
em larga escala, materiais a serem veiculados que as habilidades sejam transferíveis a contex-
por meio das TIC, visando a traduzir as diretri- tos, a ocasiões e a usuários de um modo que deixa
zes flexíveis em competências e habilidades pouco espaço à individualidade. (2001, p. 257)
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ao caráter estratégico atribuído às mudanças derando que o tema são as “metas”, a perspec-
propostas. tiva sintética é reforçada.
Com base nessas pistas dimensionadas Analisando a síntese apresentada pela
pelos objetivos, algumas conclusões merecem SEED, algumas perguntas são inevitáveis. Uma
destaque. A principal delas diz respeito à verifica- delas diz respeito ao lugar da suposta explicação
ção de que o MEC, na sua formulação, levou o ou conclusão (“pois”) no parágrafo introdutório.
discurso dos organismos internacionais às últimas Teria sido ele retirado de outro texto, mais exten-
conseqüências, posicionando as tecnologias no so, analítico, sem qualquer adaptação? A pergun-
lugar do sujeito. Tal deslocamento sintático, ra- ta, que fica em aberto, é acompanhada por outras,
dical, identificado nas linhas de ação da SEED, relativas às metas estabelecidas. A formulação é
sustenta uma relação direta, mecânica, entre “um feita no plural, ainda que o predicativo seja singu-
sistema tecnológico” e “um novo paradigma para lar: a meta é. E qual é a meta? “Levar para a es-
a educação brasileira” (<www.mec.gov.br/seed> cola pública” implica algo a ser transportado: algo
Acesso em 28 de junho de 2002): que não está na escola. A escola é qualificada
(pública) e, assim, põe em jogo a que não o é (pri-
As metas da SEED são, pois, levar para a escola vada). A qualificação, no caso, remete à priorização
pública toda a contribuição que os métodos, téc- de um desses espaços (escola pública) ou, ainda,
nicas e tecnologias de educação a distância po- à distinção entre eles (esse algo já estaria na escola
dem prestar à construção de um novo paradigma privada ou seria desnecessário lá).
para a educação brasileira. Para encaminhar a nova pergunta, é
A Secretaria de Educação a Distância - SEED preciso indagar acerca desse algo a ser levado:
foi criada em dezembro de 1995, coerente com “toda a contribuição que os métodos, técnicas
a política global do MEC de compromisso com e tecnologias de educação a distância podem
a qualidade e eqüidade do ensino público, com prestar à construção de um novo paradigma
a valorização do professor como agente funda- para a educação brasileira”. A formulação supõe
mental no processo de ensino-aprendizagem e a existência reconhecida e reconhecível desses
com o reconhecimento da escola como espaço métodos, técnicas e tecnologias (as TIC redu-
privilegiado da atividade educacional. zidas?), bem como lhes atribui papel central na
escola pública. Trata-se de uma contribuição
Na análise dessa relação, algumas con- fundamental, a ser levada por inteiro (“toda”),
siderações discursivas são necessárias. Entre ainda que não seja, em princípio, identificada
elas, é importante assinalar que, para além das ao ensino presencial praticado nas escolas (pú-
lacunas sempre possíveis – visto que a lingua- blicas e privadas).
gem é caracterizada pela incompletude –, e das Na medida em que contribuir implica
relações que possam ser estabelecidas entre o remissão (“para”), a meta tem que ser desta-
dito e o não-dito, comumente concebidas como cada: “a construção de um novo paradigma
entrelinhas, importam os pressupostos e os para a educação brasileira”. Sem qualquer
implícitos do que é dito, tendo como horizon- outra especificação, o “novo” paradigma pare-
te o que seria dizível em cada contexto histó- ce apenas apagar o “velho”, a partir dos “mé-
rico e situacional concreto. todos, técnicas e tecnologias de educação a
Para pensar os dois parágrafos retirados distância”.
da SEED, também é preciso considerar as con- O parágrafo seguinte a este data a criação
figurações textuais que cabem em páginas de da SEED, acrescentando modalização curiosa
abertura na internet. São esperados textos sin- (“coerente”). Ao fazê-lo, traz à tona a incoerên-
téticos introdutórios, como uma espécie de cia como possibilidade: “coerente com a po-
convite à consulta aos links disponíveis. Consi- lítica global do MEC”. Esta “política global”,
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denota o esvaziamento da formação, podendo de fora e de cima, com os computadores, os novos
mesmo sugerir a possibilidade de superar uma projetos de comunicação como o TV Escola, sendo
velha dicotomização: formação inicial x conti- mais uma vez instrumentos – mais modernos! – de
nuada. Entretanto, como afirma Torres (1998, verticalização do sistema, no sentido de se monta-
p. 176): rem grandes bancos de dados e programas à dis-
tância para serem consumidos, numa apregoada
Hoje, ao se falar de formação ou capacitação interatividade que coloca professores e alunos ape-
docente, fala-se de capacitação em serviço . A nas num patamar da chamada qualidade mínima.
questão mesma da formação inicial está se dilu- Não se vê nessas políticas, a vontade de promoção
indo, desaparecendo. O financiamento nacional de uma formação básica sólida que possibilite (aos)
e internacional destinado à formação de profes- professores, usando as tecnologias, readquirirem o
sores é quase totalmente destinado a programas seu papel fundamental de lideranças dos processos
de capacitação em serviço. (grifos da autora) educacionais.
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As tecnologias da informação, no designado cia, por sua vez, remete à apropriação crítica
capitalismo informacional, estão integrando o dos diferentes meios disponíveis para tanto.
mundo em redes globais de instrumentalidade, Requer-se a apropriação crítica das tecnologias
gerando as comunidades virtuais, no espaço de da informação e da comunicação, de modo a
fluxos. No entanto, em um mundo de fluxos glo- instaurar as diferenças qualitativas nas práticas
bais de riqueza, poder e imagens, há a tendência pedagógicas sugeridas na introdução deste
da construção da ação social e de políticas em artigo. Compete ultrapassar o gesto mecânico
torno de identidades primárias, enraizadas no de ligar os aparelhos nas tomadas; recusar
tempo e no espaço de lugares . Nesse sentido, analogias possíveis com a imagem do monitor
surgem novos sujeitos e novas identidades, pelas (solucionando dúvidas previstas em forma de
quais os atores sociais se reconhecem, com base “perguntas formuladas com freqüência” – FAQ,
em atributos culturais inter-relacionados, que na linguagem da Microsoft –, mostrando o que
prevalecem sobre outras fontes de significado e as interfaces permitem); e redimensionar as
experiência. Presencia-se, assim, uma oposição práticas de ensino inventando novos usos para
fundamental entre o instrumentalismo universal as tecnologias disponíveis e, também, instru-
abstrato e as identidades particularistas, histo- mentos e ferramentas alternativos para fazer
ricamente enraizadas, ligadas, por exemplo, a frente à indisponibilidade das TIC. Entre as suas
raças, etnias, crenças, nações. [grifos da autora] competências, não podem estar apenas novos
formatos para os velhos conteúdos, mas novas
No discurso oficial, está posto o “ins- formalizações.
trumentalismo universal abstrato”, com a apolo- Retomando o apartheid educacional
gia das ferramentas às quais é atribuída uma “re- mencionado, o que está em jogo é a apropria-
volução educacional”. Como se o trabalho docen- ção das tecnologias, para muito além do aces-
te, assim como os demais, pudesse ser pensado so limitado à condição de consumidor. Reto-
apenas em função das ferramentas e instrumen- mando o discurso do MEC, a reversão necessá-
tos para a sua realização, independentemente da ria implica a formalização de políticas e práti-
matéria a ser trabalhada. Um encaminhamento cas centradas na presença de tecnologias e nas
que ratifica e reforça, nas políticas de formação, suas múltiplas possibilidades para os sujeitos.
“a construção da identidade do professor so- Sem as reduções mistificadoras, sem a distân-
brante” (Kuenzer, 1999, p.163), inscrevendo-o cia como condição e, na perspectiva da subs-
como “tarefeiro, chamado de “profissional” (...) a tituição tecnológica, como eufemismo para a
quem compete realizar um conjunto de procedi- ausência. Sem que o lugar dos sujeitos venha
mentos preestabelecidos” (ibid., p.182). a ser atribuído a “um sistema tecnológico (...)
Compete aos professores o ensino de cada vez mais barato, acessível e de manuseio
matérias que devem dominar, e essa competên- mais simples”.
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UNIREDE. Educação pública, gratuita e de qualidade ao alcance de milhões. Disponível em <http://unirede.br>. Acesso em 31 out.
2000.
Recebido em 21.07.03
Aprovado em 02.09.03
Raquel Goulart Barreto é doutora em Educação, professora-visitante da Faculdade de Educação da UERJ e pesquisadora do CNPq.
É autora do livro Formação de professores, tecnologias e linguagens: mapeando novos e velhos (des)encontros. (Loyola - 2002);
organizadora de Tecnologias educacionais e educação a distância: avaliando políticas e práticas. (Quartet - 2001).