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Bombas-relógio Litúrgicas

no Vaticano 11

A destruição da Fé Católica por meio


de mudanças no Culto Católico

Essa cópia digitalizada tem finalidade


exclusivamente acadêmica.
Recomendamos que o leitor adquira
um exemplar físico para prestigiar a
Editora por essa edição.
MICHAEL DAVIES

Bombas-relógio Litúrgicas
no Vaticano 11
A destruição da Fé Católica por meio
de mudanças no Culto Católico

Publicado sob permissão dos executores testamentários do autor,


Sr. Adrian Davies & Srª . Maria Davies.

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FLOS CARMELI
EDIÇÕES
Michael Davies
Bombas-relógio Litúrgicas no Vaticano li

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FLOS CARMELI
ED!CÔE.S

Rua Agudos, 229, São Paulo - SP


www.floscarmeliedicoes.com.br

Velha lenha, vinho velho, livros velhos e velhos amigos é que fazem a vida feliz,
diz um ditado português. E dentre os quatro, de fato, são talvez os livros os que
mais podem dar-nos a felicidade, que vem do conhecimento da verdade. E os que
mais podem levar-nos à desgraça de aderir à mentira e ao erro. "Porque os livros
são armas também", diz Dom Basco. E não só armas. São também armadura, como
são também alimento e podem também ser veneno.
O propósito da Flos Carmeli Edições é ajudar aqueles que procuram, nos livros,
bons e fieis amigos que lhes ensinem a verdade e os ajudem a serem melhores. É
contribuir com a formação intelectual e espiritual dos católicos com textos seguros
e bem editados.

Editor André Melo


Tradução Érika Matos
Revisão André Melo, Miguel V. S. Frasson
Diagramação e capa Miguel V. S. Frasson
Título original Liturgical Time Bombs in Vatican II

D255b Davies, Michael (1936-2004),


Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II/ Michael Davies
São Paulo: Flos Carmeli Edições, 2019.
90 p. - 1 ª ed.
ISBN 978-85-93688-07-2
1. Missa. 2. Rito romano. 3. Reforma litúrgica.
4. Concílio Vaticano II. 1. Título.
CDD: 264, 282
Este livro é dedicado à memória de
Walter L. Matt
1915-2002
que, mas que qualquer outro, durante as décadas
desastrosas para a Igreja que seguiram o Concílio Vaticano II,
inspirou e guiou os católicos dos Estados Unidos pelas páginas
do jornal The Remnant, que manteve-se fiel às tradições
recebidas dos antigos Padres e, acima de tudo, à Missa
Tradicional em Latim, descrita pelo Pe. Frederick Faber
como "a coisa mais linda deste lado do Céu".
"Estou convencido de que a crise na Igreja que estamos vivenciando é
em grande medida devida à desintegração da liturgia"
- Cardeal Joseph Ratzinger
(veja página 33)

"As mudanças subsequentes foram mais radicais do que aquelas pre­


tendidas pelo Papa João e pelos bispos que aprovaram o decreto sobre a
liturgia. Seu sermão no final da primeira sessão mostra que o Papa João
não suspeitava do que estava sendo planejado pelos especialistas litúrgi­
cos" - Cardeal John Heenan
(veja página 23)

"Estas 'bombas-relógio' eram passagens ambíguas inseridas nos docu­


mentos oficiais pelos periti ou especialistas liberais - passagens que de­
veriam ser interpretadas num sentido não tradicional, progressista, após o
encerramento do Concílio:' - Michael Davies
(veja página 21)

"Seria falso identificar esta renovação litúrgica com a reforma dos ri­
tos, decidida pelo Concílio Vaticano II. Essa reforma retrocede muito mais
e vai muito além das prescrições conciliares. A liturgia é uma oficina per­
manente." - Pe. Joseph Gelineau
(veja página 40)

"Uma declaração que nós podemos fazer com certeza é que o novo Ordo
da Missa que surgiu agora não teria sido aprovado pela maioria dos Padres
Conciliares." - Mons. Klaus Gamber
(veja página 18)

"Neste momento crítico, o rito romano tradicional, de mais de mil anos


de idade, foi destruído." - Mons. Klaus Gamber
(veja página 60)
1

APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO PORTUGUESA

Caro leitor,

é com especial alegria que lhe apresentamos a edição em língua portuguesa


do livro "Bombas-relógio Litúrgicas no Vaticano II" de Michael Davies.
O momento para essa publicação nos parece deveras oportuno. Neste
ano de 2019 se completam 50 anos da promulgação, pelo Papa Paulo VI,
do missal elaborado por Mons. Annibale Bugnini, o Novus Ordus Missae ou
Missa Nova, evento que dava conclusão a um movimento litúrgico iniciado
mais de um século antes.
De fato, a questão litúrgica, ou "o problema da Missa", está no centro da
crise pela qual passa a Igreja. Ousaríamos mesmo dizer que a grande razão
dessa grave crise, com a consequente falta de fé que se constata fartamente
nos meios católicos, advém da perda das noções de sacrificio e até mesmo
da presença real de Cristo na hóstia consagrada, perdas essas que têm suas
causas ligadas, histórica, doutrinária e pastoralmente à promulgação e di­
fusão da Missa de Paulo VI.
Foi um plano longamente concebido e pacientemente executado.
A leitura de "Bombas-relógio Litúrgicas no Vaticano II" dará a nosso
leitor uma ampla e geral visão das estratégias usadas para execução desse
plano, pois justamente um dos pontos que torna a presente obra particu­
larmente relevante é a descrição que faz seu autor do modus operandi dos
artífices desse plano. Michael Davies descreve como foram deixados nos
textos conciliares elementos (bombas-relógio) que futuramente seriam usa­
dos (detonados) para se obter a destruição da noção católica de liturgia.
O autor praticamente dispensa apresentações. Nascido na cidade inglesa
de Yeovil no ano de 1936, Michael Davies era filho de protestantes. Ainda
na juventude converteu-se ao catolicismo. Foi professor de escolas católi­
cas durante toda a vida, tendo se aposentado em 1992 para então dedicar-se
exclusivamente ao estudo e à escrita. Foi presidente do Una Voce e grande
defensor do Arcebispo Marcel Lefebvre, embora não tendo apoiado as sa­
grações episcopais de 1988.
Faleceu em setembro de 2004 após uma luta contra o câncer.
Michael Davies foi, sem dúvida, um dos maiores escritores católicos
na defesa da Missa de Sempre. Foi, por isso, elogiado pelo então Cardeal
Ratzinger com quem esteve pessoalmente diversas vezes e de quem rece­
beu também este belo elogio fúnebre:
2 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

"Fui profundamente tocado pela notícia da morte de Michael Davies.


Tive a sorte de encontrá-lo várias vezes e o encontrei como um homem
de fé profunda e pronto para abraçar o sofrimento. Desde o Concílio,
ele colocou toda a sua energia ao serviço da Fé e nos deixou importan­
tes publicações, especialmente sobre a Sagrada Liturgia. Mesmo tendo
sofrido com a Igreja de muitas maneiras em seu tempo, ele sempre per­
maneceu verdadeiramente um homem da Igreja. Ele sabia que o Senhor
fundou a Sua Igreja na rocha de São Pedro e que a Fé pode encontrar a
sua plenitude e maturidade apenas em união com o sucessor de São Pe­
dro. Portanto, podemos ter certeza de que o Senhor lhe abriu as portas
do Céu. Nós recomendamos a sua alma à misericórdia do Senhor."

Aproveitamos o ensejo para agradecer a todos aqueles que contribuíram


com sua dedicação para que esta obra viesse a lume. De modo particular
e especial agrademos ao Sr. Adrian Davies e Srª , Maria Davies, que gentil­
mente permitiram que essa tradução fosse realizada e publicada.
Por fim, esperamos que a presente obra contribua neste combate que
presentemente a Igreja Católica enfrenta. Árduo combate na mais dura de
suas batalhas, a batalha da Missa. Que o conhecimento dos planos daque­
les que tanto mal fizeram à Liturgia sirva como motivação e aumento de
empenho a todos aqueles que nesta Terra de Santa Cruz trabalham para o
pleno restabelecimento e difusão daquilo que o nosso próprio Redentor fez,
ensinou, ordenou e incentivou, aquilo que a Igreja realiza há dois mil anos:
a santo sacrificio da Missa.

Boa leitura.
Salve Maria!

André Melo
24 de maio de 2019,
Festa de Nossa Senhora Auxiliadora.
3

BOMBAS-RE-LÓGIO LITÚRGICAS NO VATICANO II

1. Planos para uma revolução litúrgica?

Durante a primeira sessão do Concílio Vaticano II, no debate sobre Cons­


tituição sobre a Sagrada Liturgia, o Cardeal Alfredo Ottaviani perguntou:
"Estes padres estão planejando uma revolução?" O Cardeal estava velho e
parcialmente cego. Ele falou com sinceridade sobre um assunto que o afe­
tava profundamente:
Estamos procurando despertar admiração, ou talvez escândalo entre o
povo cristão, introduzindo mudanças em um rito tão venerável, que foi
aprovado por tantos séculos e agora é tão familiar? O rito da Santa Missa
não deve ser tratado como se fosse um pedaço de tecido que pode ser
remodelado de acordo com o capricho de cada geração 1 .

O Cardeal idoso estava tão preocupado com o potencial revolucionário


da Constituição - e não tendo preparado nenhum texto devido à sua visão
muito limitada - que ultrapassou o limite de tempo de dez minutos para
os discursos. Obedecendo a um sinal do Cardeal Alfrink, que presidia ses­
são, um técnico desligou o microfone, e o Cardeal Ottaviani voltou a seu
assento tropeçando, humilhado. Os Padres Conciliares bateram palmas en­
tusiasmadamente, e os jornalistas - a cuja ditadura, segundo o Padre Louis
Bouyer, o concílio havia se rendido - ficaram ainda mais entusiasmados
quando escreveram seus artigos naquela noite, e mais tarde quando escre­
veram seus livros no fim da sessão2 • Enquanto rimos, nós não pensamos, e
se eles não estivessem rindo, pelo menos alguns dos Bispos poderiam ter se
perguntado se por acaso o Cardeal Ottaviani não teria razão. Ele, de fato,
tinha.
Uma revolução litúrgica tinha sido planejada, e a Constituição do Con­
cílio sobre a Sagrada Liturgia, Sacrosanctum Concilium (CSL), foi o instru­
mento por meio do qual ela seria alcançada. Muito poucos dos 3.000 bispos
1 Michael Davies, Pope John 's Council (Dickinson, TX: Angelus Press, 1977), p. 93. (www.
angeluspress.org)
2"Eu não sei se, como nos disseram, o Concilio nos libertou da tirania da Cúria Romana,
mas o que é certo é que, negligentemente, ele nos entregou (após ter se rendido primeira­
mente) à ditadura dos jornalistas - e particularmente aos mais incompetentes e irrespon­
sáveis" - L. Bouyer, The Decomposition of Catholicism (Chicago: Imprensa Franciscan do
Herald, 1970), p. 3.
4 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

presentes em São Pedro teriam aprovado o documento se tivessem sus­


peitado de sua verdadeira natureza - mas seria surpreendente se tivessem
suspeitado. Em seu livro, o La Nouvelle Messe (A Missa Nova), o professor
Louis Salleron observa que longe de vê-lo como meio de iniciar uma re­
volução, o leigo comum consideraria a CSL como o ponto culminante do
trabalho de renovação litúrgica que vinha acontecendo há cem anos3 .

2. O Movimento Litúrgico

Para que não haja dúvidas, é preciso dizer que havia uma grande ne­
cessidade e um grande escopo para a renovação litúrgica dentro do rito
Romano, mas uma renovação dentro do sentido correto do termo, usando
a liturgia existente em seu potencial máximo. Este era o objetivo do mo­
vimento litúrgico iniciado por Dom Prosper Guéranger e endossado pelo
Santo Papa Pio X. O movimento foi definido por Dom Oliver Rousseau,
OSB, como "a renovação do fervor pela liturgia entre o clero e os fiéis:' Em
seu estudo sobre o movimento litúrgico, o padre Didier Bonneterre escreve:

Em 1903, a pessoa que estava para dar ao movimento um impulso defini­


tivo acabara de ascender à Sé de Pedro - São Pio X. Favorecido por uma
imensa experiência pastoral, este Santo Papa sofria terrivelmente com
a decadência da vida litúrgica. Mas ele sabia que uma tendência para a
renovação estava se desenvolvendo, e decidiu fazer o máximo para ga­
rantir que isso trouxesse bons frutos. É por isso que em 22 de novembro
de 1903, ele publicou seu famoso Motu Proprio "Tra le Sollecitudini,"
restaurando o canto gregoriano. Neste documento ele introduziu a sen­
tença vital que acabou por ter um papel determinante no desenvolvi­
mento do movimento Litúrgico: "Nosso mais caro desejo sendo que o
verdadeiro espírito cristão possa mais uma vez florescer, custe o que
custar, e ser mantido entre os fiéis. Nós julgamos necessário estabelecer,
antes de qualquer outra coisa, a santidade e a dignidade do templo, no
qual os fiéis reúnem-se para... [a finalidade] de adquirir este espirito a
partir de sua fonte primeira e indispensável, que é a participação ativa
nos mistérios mais santos e na oração pública e solene da Igreja." (Tra le
Sollecitudini, 22 de novembro de 1903)4•

3Louis Salleron, La Nouvelle Messe (Paris: Edições Latines de Nouvelles. 1976), p. 17.
4 Rev. Fr. Didier Bonneterre, The Liturgical Movement: Guéranger to Beauduin to Bugnini
(Kansas City, MO: Angelus Press, 2002), p. 9.
2. O Movimento Litúrgico 5

Para São Pio X, assim como para Dom Guéranger, escreve o padre Bon­
neterre, "a liturgia é essencialmente r-eocêntrica; seu objetivo é a adoração
de Deus, e não o ensino dos fiéis. Não obstante, este grande pastor subli­
nhou um aspecto importante da liturgia: ela educa para o verdadeiro espí­
rito cristão. Mas deixe-nos reforçar que esta função da liturgia é somente
secundária."5 A tragédia do Movimento Litúrgico foi que ele faria deste as­
pecto secundário da liturgia o aspecto principal, como se faz manifesto hoje
em qualquer celebração paroquial da Missa Nova. O padre Bonneterre só
tem elogios para os estágios iniciais do movimento: "Nascido do gênio de
Dom Guéranger e da energia indomável de São Pio X, o movimento neste
momento trouxe magníficos frutos de renovação espiritual"6.
A heresia modernista no início do século XX foi forçada a se manter na
clandestinidade por São Pio X7 . O padre Bonneterre afirma que os teólogos
modernistas que não podiam mais propagar suas teorias em público viam
no Movimento Litúrgico o Cavalo de Tróia ideal para sua revolução e que,
a partir da década de 1920, ficou claro que o Movimento Litúrgico tinha
sido desviado de seus admiráveis objetivos originais. Ele escreve:

Foi fácil para todos os revolucionários esconderem-se no ventre de uma


carcaça tão grande. Antes da Mediator Dei [Pio XII, 1947], quem, dentro
da hierarquia Católica, estava preocupado com a liturgia? Que vigilância
foi aplicada para detecção desta forma particularmente sutil de Moder­
nismo prático? 8

Os primeiros líderes do movimento foram, escreve o padre Bonneterre,


"amplamente suplantados pela geração de novos liturgistas das várias co­
missões litúrgicas pré-conciliares". Ele descreve essa nova geração como os
"jovens lobos". Em qualquer revolução é quase rotina que os primeiros re­
volucionários moderados sejam substituídos ou até mesmo eliminados por
revolucionários mais radicais, éomo foi o caso da Revolução Russa, quando
os Mencheviques (maioria) foram expulsos pelos Bolcheviques (minoria).
Assim corno nada poderia impedir a ascensão ao poder dos Bolcheviques,
nada poderia impedir o triunfo dos jovens lobos:
5Bonneterre, p. 10.
6Bonneterre, p. 17.
7 A história da heresia modernista é contada em meu livro Partisans ofErrar (Long Prai­
rie, Minnesota: Neumann Press, 1983). (www.neumannpress.com)
8Bonneterre, p. 93.
6 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Após a Segunda Guerra Mundial, o movimento tornou-se uma força que


nada poderia deter. Protegidos na cúpula por eminentes prelados, os no­
vos liturgistas assumiram pouco a pouco o controle da Comissão para a
Reforma da Liturgia, fundada pelo Papa Pio XII, e influenciaram as refor­
mas idealizadas por esta Comissão no fim do pontificado de Pio XII e no
início do de João XXill. Já tendo dominado, graças ao Papa, a comissão
litúrgica pré-conciliar, os novos liturgistas conseguiram que os Padres
do Concílio aceitassem um documento contraditório e ambíguo, a Cons­
tituição Sacrosanctum Concilium. O Papa Paulo VI, o Cardeal Lercaro e
o padre Bugnini, eles mesmos membros muito ativos do Movimento Li­
túrgico italiano, dirigiram os esforços do Consilium, que culminaram na
promulgação da Missa Nova. 9

O mais influente dos jovens lobos, o grande arquiteto da revolução litúr­


gica do Concílio Vaticano II, foi o padre Annibale Bugnini. O padre Bon­
neterre relata a visita deste liturgista italiano a uma convenção litúrgica
realizada em Thieulin, perto de Chartres, no final dos anos 1940, na qual
quarenta superiores religiosos e reitores de seminário estavam presentes,
deixando claro o alcance da influência dos bolcheviques litúrgicos sobre a
Igreja na França. Ele cita um Padre Duploye como tendo dito:

Alguns dias antes da reunião em Thieulin, eu recebi a visita de um Laza­


rista italiano, padre Bugnini, que tinha me pedido que eu obtivesse um
convite para ele. O padre escutou com muita atenção, sem dizer uma pa­
lavra, por quatro dias. Durante nossa viagem de volta a Paris, enquanto
o trem estava passando ao longo do lago suíço em Versalhes, ele me
disse: "Eu admiro o que você está fazendo, mas o maior favor que eu
posso lhe fazer é nunca dizer uma palavra em Roma sobre tudo que eu
acabei de ouvir:' 1 º

O padre Bonneterre comenta: "Este texto revelador mostra-nos uma das


primeiras aparições do 'coveiro da Missa', um revolucionário mais inteli­
gente do que os outros, aquele que matou a liturgia católica antes de desa­
parecer da cena oficial:' 11

9Bonneterre, . 94.
1
p
ºBonneterre, p. 52.
11
Ibid.
7

3. A ascensão e queda e ascensªº e queda de Annibale Bugnini

Antes de discutir as bombas-relógio nos textos do Concílio, mais especi­


ficamente aquelas na Constituição sobre a Sagrada Liturgia, que conduziria
à destruição do Rito Romano, é necessário examinar o papel de Annibale
Bugnini, o grande responsável por introduzi-las e por detoná-las após a
Constituição ter ganhado o apoio dos Padres Conciliares.
Annibale Bugnini nasceu em Civitella de Lego (Itália) em 1912. Come­
çou seus estudos teológicos na Congregação da Missão (Vicentinos) em
1928 e foi ordenado nesta ordem em 1936. Por dez anos ele fez trabalho
paroquial em um bairro de Roma e em seguida, de 1947 a 1957, envolveu­
se na escrita e editoração das publicações Missionárias de sua Ordem. Em
1947, começou a envolver-se ativamente no campo de estudos litúrgicos
especializados, quando iniciou um período de vinte anos como diretor da
Ephemerides liturgicae, uma das publicações litúrgicas mais conhecidas da
Itália. Ele c�ntribuiu para várias publicações acadêmicas, escreveu artigos
sobre a liturgia para várias enciclopédias e dicionários e tinha vários livros
publicados tanto em nível acadêmico quanto popular.
O padre Bugnini foi nomeado como Secretário da Comissão para a Re­
forma Litúrgica do Papa Pio XII em 1948. Em 1949, foi nomeado Professor
de Liturgia na Universidade Pontifical Propaganda Fide (Propagação da Fé);
em 1955, recebeu uma nomeação similar no Instituto Pontifical de Música
Sacra; foi nomeado como consultor para a Congregação Sagrada dos Ritos
em 1956; e em 1957 foi designado como professor de Sagrada Liturgia na
Universidade Lateranense. Em 1960, o padre Bugnini foi colocado em uma
posição que lhe permitia exercer influência importante, se não decisiva,
sobre a história da Igreja: foi nomeado Secretário para a Comissão Pre­
paratória sobre a Liturgia para o Concílio Vaticano 1112• Ele era o espírito
motriz por trás da elaboração do schema preparatório (plural schemata), o
documento de esboço que seria apresentado aos Padres Conciliares para
discussão. Carlo Falconi, um "ex-padre", que deixou a Igreja, mas mantém
contato próximo com seus amigos no Vaticano, refere-se ao schema pre­
paratório como "o esboço de Bugnini" 13. É importantíssimo ter em mente
o fato de que, como foi salientado em 1972 no periódico do próprio padre

12
Detalhes biográficos do Cardeal Bugnini fornecidos pela Notitiae, nº 70, de fevereiro de
1972, pp. 33-34.
13 Carlo Falconi, Pape John and His Council (Londres: Weidenfeld & Nicholson, 1964), p.
244.
8 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Bugnini, Notitiae (periódico oficial da Sagrada Congregação para o Culto


Divino), a Constituição de Liturgia que os padres aprovaram no final foi
substancialmente idêntica ao esboço do schema que ele tinha encaminhado
por intermédio da Comissão Preparatória. 14
De acordo com o padre P. M. Gy, O.P., um liturgista francês que era
consultor da Comissão pré-conciliar sobre a liturgia, o padre Bugnini "foi
uma escolha feliz como secretário":

Ele tinha sido secretário da comissão para a reforma instituída pelo Papa
Pio XII. Ele era um talentoso organizador e possuía espírito pastoral, de
mente aberta. Muitas pessoas observaram como, juntamente com o Car­
deal Cicognani, ele foi capaz de impregnar a discussão com a liberdade
de espírito recomendada pelo Papa João XXIII. 15

O schema de Bugnini foi aceito por uma sessão plenária da Comissão


Preparatória Litúrgica em uma votação que aconteceu em 13 de janeiro de
1962. Mas o Presidente da Comissão, o Cardeal Gaetano Cicognani, de 80
anos, teve a perspicácia de perceber os perigos implfritos em certas pas­
sagens. O padre Gy escreve: "O programa de reforma foi tão vasto que fez
com que o Presidente, o Cardeal Gaetano Cicognani, hesitasse"16. A menos
que o Cardeal pudesse ser persuadido a assinar o schema, ele seria anulado.
O documento não poderia passar sem a assinatura dele, mesmo que tivesse
sido aprovado por uma maioria da Comissão. O padre Bugnini precisava
agir. Ele fez com que abordagens fossem feitas imediatamente ao Papa João,
que concordou em intervir. Ele convocou o cardeal Amleto Cicognani, seu
Secretário de Estado e irmão mais novo do presidente da Comissão Pre­
paratória, e lhe pediu que visitasse seu irmão e não retornasse até que o
schema fosse assinado. O cardeal obedeceu:

Um peritus da Comissão preparatória litúrgica declarou mais tarde que


o velho cardeal estava quase em lágrimas enquanto balançava o docu­
mento e dizia: "Eles querem que eu assine isso, mas não sei se quero:'
Então ele pôs o documento em sua mesa, pegou uma caneta e o assinou.
Quatro dias depois ele morreu. 17

14 Notitiae, nº 70, de fevereiro de 19 , pp. 33-34.


7?
15
R. Flannery, o Vaticano II: The Liturgy Constitution (Dublin: Sceptre, 1964), p. 20.
16Flannery, p. 23.
17 Fr. Ralph M. Wiltgen, SVD, The Rhine Flows into the Tibre: A History ofVatican II (1967,
RPT. Rockford, II... TAN, 1985), p. 141.
9

4. A primeira queda

O schema de Bugnini tinha sido salvo - e bem a tempo. Em seguida, com


a aprovação do Papa João XXIII, o padre Bugnini foi dispensado de sua ca­
deira na Universidade de Latrão e do Secretariado da Comissão Litúrgica
Conciliar, que supervisionaria o esquema durante os debates conciliares.
As razões que levaram o Papa João a dar este passo não foram divulgadas,
mas devem ter sido de natureza muito séria para fazer com que este Pon­
tífice tolerante atuasse de maneira tão pública e drástica contra um padre
que ocupou uma posição tão influente na preparação para o Concílio. Em
seu livro The Reform of the Liturgy (A Reforma da Liturgia), que, em grande
medida, é uma apologia a si mesmo e uma denúncia de seus críticos, Bug­
nini culpa o Cardeal Arcadio Larraona por sua queda. Ele escreve sobre si
mesmo na terceira pessoa:

De todos os secretários das comissões preparatórias, o padre Bugnini foi


o único Secretário não nomeado à correspondente comissão conciliar...
Este foi o primeiro exílio do padre Bugnini. Ao mesmo tempo em que o
padre Bugnini foi demitido do Secretariado da Comissão conciliar, tam­
bém foi dispensado do seu posto como professor de liturgia no Pontifício
Instituto Pastoral da Universidade Lateranense e foi feita uma tentativa
para tirá-lo da cadeira de liturgia na Pontifícia Universidade Urbaniana.
Essa atividade repressiva emanou diretamente do cardeal Larraona e foi
muito gentilmente apoiada por alguns colegas que queriam servir me­
lhor à Igreja e à liturgia. A base para as demissões foi a acusação de ser
um "progressista", "agressivo" e um "iconoclasta" (insinuações sussurra­
das a meia voz), acusações então ecoadas por sua vez pela Congregação
dos Ritos, pela Congregação dos Seminários e pelo Santo Oficio. Mas ne­
nhuma prova foi oferecida, nem alguma justificativa clara para medidas
tão sérias 18.

A alegação de Bugnini de que "nenhuma prova foi oferecida" é uma


afirmação gratuita da parte dele. O fato de que ele não viu nenhuma prova
de maneira nenhuma prova que ela não existia. Falconi condena a demissão
do padre Bugnini como um retrocesso, mas acrescenta:

18 Annibale Bugnini, The Reform of the Liturgy, 1948-1975 (Collegeville, Minnesota: The
Liturgical Press, 1990), p. 30.
10 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano ll

Mesmo assim, Bugnini conseguiu fazer com que seu esboço chegasse até
o Concilio, e agora será interessante ver se ele será aprovado, e ainda
mais se o esboço do esquema do proscrito Secretário da Comissão Li­
túrgica abrirá caminho para o sucesso de outros esboços de caráter pro­
gressivo.19

A demissão do padre Bugnini foi um claro exemplo de trancar a porta do


estábulo depois do cavalo já ter fugido. A causa do padre Bugnini teria sido
beneficiada se ele tivesse sido nomeado Secretário da Comissão Conciliar (o
posto foi dado ao padre Ferdinand Antonelli, OFM), pois ele poderia então
ter guiado seu schema através do Concílio - mas isso não era essencial. O
que importava era o schema.
Setenta e cinco schemata preparatórios tinham sido preparados para os
padres conciliares, fruto da mais dolorosa e meticulosa preparação já feita
para um Concílio na história da igreja20. Por fim, o número foi reduzido
para vinte, e sete foram selecionados para discussão na primeira sessão do
Concílio2 1. O schema de Bugnini foi o quinto destes, e a maioria dos bis­
pos presumiu que os schemata seriam debatidos em sequência numérica22.
Mas os outros schemata foram tão ortodoxos que os liberais não poderiam
aceitá-los - nem mesmo como base para a discussão. Por iniciativa do Padre
Edward Schillebeeckx, OP, um professor de dogmática belga na Universi­
dade Católica de Nijmegen, os schemata foram rejeitados com apenas uma
exceção - o schema de Bugnini. Este, disse ele, era "um trabalho admirá­
vel"23. Anunciou-se na segunda congregação geral do Concílio, em 16 de
outubro de 1962, que a sagrada liturgia era o primeiro item na agenda para
exame pelos padres24 . O Notitiae viu isto com considerável satisfação em
1972, comentando que o schema preparatório de Bugnini foi o único apro­
vado sem alteração substancial25 . O padre Wiltgen comenta:

Deve-se notar que o movimento litúrgico tinha se mantido ativo na Eu­


ropa por várias décadas, e que um grande número de bispos e periti pro­
venientes dos países do Reno tinha sido nomeado pelo Papa João à Co-
19Falconi, p. Í24.
20
Wiltgen, p. 22.
21
lbid.
22
lbid.
23
Ibidem, p. 23.
24
Bugnini, p. 29.
25 Notitiae, nº 70, p. 34.
5. A segunda ascensão 11

missão preparatória sobre a liturgia. Como resultado, eles conseguiram


inserir suas ideias no schema e obter aprovação para o que consideravam
um documento muito aceitável26 .

Quanto aos outros schemata, um proeminente Padre Conciliar, o Arce­


bispo Marcel Lefebvre, escreveu:

Agora você sabe o que aconteceu no Concílio. Quinze dias após a sua
abertura nenhum dos schemata preparados permaneceu, nenhum! Tudo
havia sido dispensado, tudo tinha sido condenado ao lixo. Nada perma­
neceu, nem uma única frase. Todos tinham sido descartados.27

Os aliados do Bugnini, que tinham trabalhado com ele na preparação


do schema, agora tinham a tarefa de assegurar a sua aceitação pelos bispos
sem quaisquer alterações substanciais. Eles o fizeram com um grau de su­
cesso que certamente superou seus sonhos mais improváveis. Parece que
eles tinham presumido que os bispos seriam um grupo de "idiotas úteis",
homens que preferiram rir ao invés de pensar. "Era tudo um grande di­
vertimento", escreveu o Arcebispo R. ]. Dwyer, um dos mais eruditos dos
bispos americanos. "E quando a hora da votação chegou, como o sábio Sir
Joseph Porter, KCM., 'Nós sempre votamos segundo manda nosso partido;
nós nunca pensamos em pensar por nós mesmos.' 'Dessa maneira podemos
evitar um grande número de problemas para nós'.''28 O schema de Bugnini
recebeu a aprovação quase unânime dos Padres Conciliares em 7 de dezem­
bro de 1962 e tornou-se a "Constituição sobre a Sagrada Liturgia" (CSL) do
Vaticano II. Mas a Constituição continha não mais do que orientações ge­
rais; portanto, para alcançar a vitória total, o padre Bugnini e seus coortes
precisavam obter o poder para interpretá-la e implementá-la.

5. A segunda ascensão

O grupo do Reno29 fez pressão para o estabelecimento de comissões


pós-conciliares com autoridade para interpretar a CSL. Ele "receava que
26
Wiltgen, p. 23.
27
Marcel Lefebvre, A Bishop Speaks (Kansas City, MO: Angelus Press, 1987), p. 131.
28
Twin Circle, October 26, 1963, p. 2.
29
No prefácio do The Rhine Flows into the Tiber (p.10), o padre Witgen explica que a
"influência predominante" durante o Concílio Vaticano II veio dos padres conciliares e periti
(especialistas) dos "países ao longo do rio Reno -Alemanha, Áustria, Suíça, França, Holanda
- e da Bélgica. Porque este grupo exerceu uma influência dominante no Concílio Vaticano
12 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

as medidas progressistas adotadas pelo Concílio poderiam ser bloqueadas


por forças conservadoras perto do Papa uma vez que os Padres Concilia­
res tivessem voltado para casa" 30. O cardeal Heenan, de Westminster, In­
glaterra, havia alertado sobre o perigo dos periti do Concílio receberem o
poder de interpretar o Concílio para o mundo. "Deus não permita que isto
aconteça!" ele disse aos outros31 . Foi exatamente isto que aconteceu. Os
membros destas comissões foram "escolhidos com a aprovação do Papa, na
maior parte, das fileiras dos periti do Concílio. A tarefa das comissões é co­
locar em prática os decretos do Concílio e, quando necessário, interpretar as
instituições, decretos e declarações do Concílio" 32• Em 5 de março de 1964,
o L 'Osservatore Romano anunciou a criação da Comissão para a aplicação
da Constituição sobre a Liturgia, que ficou conhecida como o Consilium.
Os membros iniciais consistiam principalmente de membros da Comissão
que tinha redigido o esboço da Constituição. O padre Bugnini foi nomeado
para o cargo de Secretário do Consilium em 29 de fevereiro de 1964. O que
levou o Papa Paulo VI a nomear Bugnini para esta posição crucialmente
importante, depois que ele tinha sido impedido pelo Papa João XXIII de
se tomar Secretário da Comissão Conciliar, provavelmente é algo que nós
nunca saberemos.
Em teoria, o Consilium era um órgão consultivo, e as reformas que ele
concebia teriam que ser implementadas pela Sagrada Congregação para os
Ritos ou pela Sagrada Congregação para a Disciplina dos Sacramentos. Es­
sas congregações foram estabelecidas como parte da reforma da Cúria Ro­
mana, promulgada em 15 de agosto de 1967. A influência do padre Bugnini
como secretário do Consilium cresceu quando ele foi nomeado subsecre­
tário para a Sagrada Congregação para os Ritos33. Em 8 de maio de 1969,
o Papa Paulo promulgou a Constituição Apostólica Sacra Rituum Congre­
gatio, que pôs fim à existência do Consilium como um corpo separado; ele
foi incorporado à recém-criada Sagrada Congregação para o Culto Divino

Segundo eu intitulei meu livro The Rhine Flaws ta the Tiber (O Reno deságua no Tibre)". Este
é certamente o livro mais informativo escrito sobre o que realmente aconteceu no Concilio
Vaticano II, e todo católico deveria possuí-lo, e se interessar seriamente pelos eventos que
se sucederam desde o Concilio. Os seis países nomeados foram onde o Movimento Litúrgico
foi mais ativo e nos quais as ideias liberais foram mais manifestas.
3ºWiltgen, págs. 287-288.
31
Ibidem, p. 210.
32
The Tablet (Londres), January 22, 1966, p. 114.
33 Notitiae, nº 70, February 1972, pp. 33-34
5. A segunda ascensão 13

como uma comissão especial que manteria seus membros e consultores e


permaneceria até que a reforma da liturgia estivesse concluída. Notitiae,
o periódico do Consilium, tornou-se o periódico da nova Congregação. O
padre Annibale Bugnini foi nomeado secretário da Sagrada Congregação
para o Culto Divino e se tornou mais poderoso do que nunca. Não é, certa­
mente, exagero afirmar que o que de fato aconteceu foi que o Consilium, em
outras palavras o padre Bugnini, havia assumido a Sagrada Congregação
para o Culto Divino. A edição de abril-junho de 1969 de Notitiae anunciou
a nomeação do padre Bugnini, declarando:

Este número do Notitiae aparece sob a direção da nova Congregação


para o Culto Divino. O Papa Paulo VI, no final do Consistório de 28 de
abril, fez o anúncio e lhe deu caráter oficial com a Constituição Apostó­
lica "Sagrada Congregação dos Ritos" de 8 de maio. A nova Congregação
continuará numa base jurídica mais firme, com mais eficácia e compro­
misso renovado, o trabalho realizado pelo Consilium nos últimos cinco
anos, vinculando-se ao Concílio, à sua comissão preparatória e a todo o
movimento litúrgico. O Consilium continua como uma Comissão espe­
cial da Congregação até a conclusão da reforma.

O padre Bugnini estava agora na posição mais influente possível para


consolidar e estender a revolução por trás da qual ele havia sido o espí­
rito motriz e o princípio de continuidade. Chefes nominais de comissões,
congregações e do Consilium iam e vinham - Cardeal Lercaro, Cardeal
Gut, Cardeal Tabera, Cardeal Knox - mas o Padre Bugnini sempre per­
manecia. Ele atribuiu isso à Divina Providência: "O Senhor desejou que,
desde os primeiros anos, toda uma série de circunstâncias providenciais
impulsionassem-me plenamente e, de fato, de maneira privilegiada, in me­
dia res, e que eu permanecesse lá no comando da secretaria:'34 Seus serviços
seriam recompensados ao ser consagrado bispo e ser então elevado ao posto
de Arcebispo Titular de Dioclentiana, como anunciado em 7 de janeiro de
1972.

34Bugrúni, p. 23.
14 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

6. A imposição do Novo Rito da Missa

O que os especialistas planejavam já havia se tornado claro em 24 de


outubro de 1967 na Capela Sistina, quando o que foi descrito como Missa
Normativa foi celebrada antes do Sínodo dos Bispos pelo próprio padre
Annibale Bugnini, seu arquiteto-chefe. Por ter sido nomeado secretário da
Comissão de Liturgia pós-Vaticano II, o padre Bugnini tinha o poder de or­
questrar a composição do novo rito da missa previsto no schema que ele
tinha preparado antes de sua demissão por João XXII! - o schema que ti­
nha passado praticamente inalterado pelos Padres Conciliares. Como já foi
observado, por que o Papa Paulo VI nomeou para essa posição-chave um
homem que havia sido demitido pelo seu antecessor, é um mistério que
provavelmente nunca será respondido.
Menos de metade dos Bispos presentes votaram a favor da Missa Nor­
mativa, mas a descontente maioria foi ignorada com a arrogância que se
tornaria a característica mais evidente da instituição litúrgica, à qual os
Padres do Concílio tinham sido ingênuos o suficiente para confiar a im­
plementação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia. A Missa Normativa
seria imposta aos católicos do Rito Romano pelo Papa Paulo VI em 1969,
com algumas mudanças, como o Novus Ordo Missae: o Novo Ordinário da
Missa.
Em 1974 o Arcebispo Bugnini explicou que sua reforma tinha sido divi­
dida em quatro fases - em primeiro lugar, a transição do latim para o ver­
náculo; em segundo lugar, a reforma dos livros litúrgicos; em terceiro lugar,
a tradução dos livros litúrgicos; e em quarto lugar, a adaptação ou a "encar­
nação" da forma romana da liturgia para os usos e a mentalidade de cada
Igreja individual35. Este processo (que significaria a eliminação completa
de quaisquer vestígios remanescentes do Rito Romano) já tinha começado,
ele alegou, e seria "buscado com crescente cuidado e preparação"36•

35
Notitiae, nº 92, April 1974, p. 126.
36
Ibid.
15

7. A segunda queda

No exato momento em que seu poder atingiu o apogeu, o Arcebispo


Bugnini foi para todos os efeitos demitido - esta foi a sua segunda queda -
para desalento dos católicos liberais em todo o mundo. O que aconteceu foi
que a Congregação inteira do Arcebispo foi dissolvida e fundida com a Con­
gregação para os Sacramentos sob os termos da Constituição Apostólica do
Papa Paulo, Constans Nobis, publicada no L 'Osservatore Romano (edição em
inglês) de 31 de julho de 1975. A nova congregação foi intitulada a Sagrada
Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. O nome
de Bugnini não apareceu na lista de nomeações. Liberais em todo o mundo
estavam consternados. O Tablet, na Inglaterra e seu análogo extremamente
liberal nos Estados Unidos, o National Catholic Reporter, apresentaram um
relato indignado escrito por Desmond O'Grady:
O Arcebispo Annibale Bugnini, que, como Secretário da extinta Con­
gregação para o Culto Divino, foi a figura-chave na reforma litúrgica
da Igreja, não é um membro da nova Congregação. Nem, apesar de
sua longa experiência, foi consultado no seu planejamento. Ele ficou
sabendo de sua criação enquanto estava de férias em Fiuggi. A forma
abrupta como isso foi feito não augura nada de bom para a linha de
encorajamento para a reforma em colaboração com hierarquias locais
defendida por Bugnini ... Mons. Bugnini concebeu o trabalho dos pró­
ximos dez anos preocupado principalmente com a incorporação de usos
locais na liturgia ... Ele representou a continuidade da reforma litúrgica
pós-conciliar37 .

L 'Osservatore Romano fez o seguinte anúncio em sua edição inglesa, em


15 de janeiro de 1976: "5 de janeiro: O Santo Padre nomeou Núncio Apostó­
lico, no Irã, sua Excelência o Reverendíssimo Annibale Bugnini, MC, Arce­
bispo titular de Dioclentiana:' Isto foi claramente um posto artificial criado
para encobrir o fato de que o Arcebispo tinha sido banido.
Em seu livro The Devasted Vineyard, (O Vinhedo Devastado) publicado
em 1973, Dietrich von Hildebrand corretamente observou em relação a
Bugnini que: "Verdadeiramente, se um dos demônios de Cartas de um Di­
abo a seu Aprendiz, de CS Lewis, tivesse sido encarregado da ruína da li­
turgia, ele não poderia ter feito melhor:'38 Esta é uma afirmação baseada
37The Tablet, August 30, 1975, p. 828
38Dietrich von Hildebrand, The Devastated Vineyard (Chicago: Franciscan Herald Press,
1973), p. 71.
16 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

em uma avaliação objetiva da reforma em si. Não cabe discutir se o Rito


Romano foi destruído deliberadamente ou não: ele foi destruído. (Ver pos­
teriormente neste documento - O Rito Romano foi destruído, p. 60). Se
este resultado é simplesmente a consequência de decisões imprudentes fei­
tas por homens bem-intencionados, o fato objetivo permanece inalterado:
eles não teriam destruído o Rito Romano mais eficazmente se o tivessem
feito deliberadamente. Mas o rigor da destruição levou muitos a se pergun­
tarem se isto pode ser mais do que o resultado de políticas irrefletidas. Não
foi uma grande surpresa quando, em abril de 1976, Tito Casini, principal
escritor católico da Itália, acusou publicamente o arcebispo Bugnini de ser
maçom39 . Em 8 de outubro de 1976, Le Figaro publicou uma reportagem
afirmando que o Arcebispo Bugnini negava ter alguma vez tido qualquer
afiliação maçônica.
Eu fiz minha própria investigação sobre o caso e posso atestar a auten­
ticidade dos seguintes fatos. Um sacerdote romano da mais alta reputação
recebeu evidências que ele considerou que provavam que o arcebispo Bug­
nini era maçom. Ele fez com que essa informação fosse colocada nas mãos
do papa Paulo VI, com a advertência de que, se medidas não fossem toma­
das imediatamente, sua consciência o obrigaria a tornar o assunto público.
O Arcebispo Bugnini foi então removido por meio da dissolução de sua
Congregação inteira. Eu verifiquei esses fatos diretamente com o sacerdote
em questão, e os fatos completos podem ser encontrados no Capítulo XXIV
do meu livro Pape Paul's New Mass (A Nova Missa do Papa Paulo).
Uma importante distinção deve ser feita aqui. Eu não alego poder pro­
var que o Arcebispo Bugnini foi maçom, mas sim que o Papa Paulo VI o
demitiu e o exilou para o Irã porque ele estava convencido de que o Arce­
bispo era maçom. Eu afirmei o mesmo em uma carta publicada na Homiletic
and Pastoral Review de janeiro de 1980, o que provocou um violento ataque
a mim feito pelo arcebispo Bugnini na edição de maio de 1980. Ele negou
que quaisquer dos prelados que, desde o Vaticano II, tinham sido acusados
de afiliação maçônica "já tiveram alguma coisa a ver com a Maçonaria", e
continuou:

E para Michael Davies isto seria o suficiente. [sic] Mas para ele e seus
colegas, caluniadores de profissão ... Eu repito o que escrevi em 1976:
"Eu não possuo nada neste mundo mais precioso do que a cruz peitoral:
39Tito Casini, Nel Fumo di Satana (Florença: Carro di San Giovanni, 1976), p.150.
7. A segunda queda 17

se alguém é capaz de provar honestamente, objetivamente, um pingo


de verdade do que eles afirmam, eu estou pronto para devolver a cruz
peitoral:'

Mas, como já afumei, não o acuso de ser maçom, mas simplesmente res­
saltei que o Papa Paulo VI estivera convencido de que este era o caso, e o
fato de que isto não constitui calúnia é comprovado pelo fato de que Bug­
nini admitiu precisamente o que eu tinha alegado em seu livro The Reform
of the Liturgy (A Reforma da Liturgia). Referindo-se à remoção de seu posto
pelo Papa Paulo VI e à supressão da Congregação para o Culto Divino, ele
escreveu:

Quais foram as razões que levaram o Papa a uma decisão tão drástica,
que ninguém esperava e que pesava tanto sobre a Igreja? Eu disse no
prefácio a este livro que eu mesmo nunca soube com certeza de qual­
quer um desses motivos, mesmo que, compreensivelmente na angús­
tia do momento, eu tenha batido em muitas portas em todos os níveis.
Houve quem atribuísse a mudança à forma "autoritária", "quase ditato­
rial", com a qual o Secretário da Congregação supostamente conduzia
a agência, não permitindo liberdade de movimento para seus próprios
colegas de trabalho e limitando o papel mesmo dos cardeais prefeitos.40
Mas no frigir dos ovos, tudo isso parece ser parte da vida administrativa
comum. Deve ter havido algo mais impactante. Perto do final do verão,
um cardeal que normalmente não era entusiasta da reforma litúrgica
falou-me da existência de um "dossiê" que ele havia visto (ou trazido?)
na escrivaninha do papa e que provava que o arcebispo Bugnini era ma­
çom.41

Embora não se deva falar mal dos mortos - mortem nil nisi bonum [lite­
ralmente, "dos mortos, nada exceto o bem"], em um estudo histórico como
esse, a objetividade exige que se tome claro que a verdade não era uma pri­
oridade para o Arcebispo Bugnini. Em uma tentativa de minimizar o papel
40Em uma nota de rodapé comentando estas reclamações feitas pelos membros da Con­
gregação para o Culto Divino, o Arcebispo Bugnini comenta: "Deficiências humanas são
sempre possíveis, é claro, mas a acusação reflete uma mentalidade que foi periodicamente
revivida entre os membros da Congregação, que por conta de sua ambição ou falhas de
caráter, estavam determinados a criar dificuldades para a secretaria". Este comentário é tí­
pico da insistência do Arcebispo Bugnini ao longo do livro de que nenhuma crítica feita
a ele poderia ser de alguma forma justificada e que aqueles que o criticaram tinham más
intenções.
41Bugnini, p. 91.
18 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

desempenhado pelos observadores protestantes em sua revolução litúrgica,


ele declarou: "Eles nunca intervieram nas discussões e nunca pediram para
falar."42 Como é feito claro no Apêndice I, isto é extremamente falso. Não
há a menor dúvida de que o Concílio Vaticano II foi um motivo de grande
satisfação aos protestantes. Em sua mensagem final ao Concílio, lida pelo
arcebispo Felici em 4 de dezembro de 1965, os Observadores-delegados de­
ram mais detalhes sobre o tema: "Bendito seja Deus por tudo o que nos deu
até aqui por meio do Espírito Santo e por tudo o que nos dará no futuro:'
Oscar Cullmann, o notável teólogo suíço, resumiu seus pensamentos ao
declarar: "As esperanças dos protestantes para o Vaticano II não só foram
cumpridas, mas as realizações do Conselho têm ido muito além do que se
acreditava possível."43

8. Um esquema insuspeito para a revolução

O falecido Monsenhor Klaus Gamber foi descrito pelo Cardeal Ratzin­


ger como "o único estudioso que, entre o exército de pseudo liturgistas,
verdadeiramente representa o pensamento litúrgico do centro da Igreja" 44.
Quanto à reação que os Padres Conciliares teriam tido às mudanças que nos
foram impostas em nome do Vaticano II, Monsenhor Gamber nos informa
em seu livro The Reform of the Roman Liturgy (A Reforma da Liturgia Ro­
mana) que: "Uma declaração que nós podemos fazer com certeza é que o
novo Ordo da Missa que surgiu agora não teria sido aprovado pela maioria
dos Padres Conciliares."45
Por que então esses bispos aprovaram a Constituição sobre a Sagrada
Liturgia? O professor Louis Salleron tem sido citado como tendo declarado
que a CSL pareceu ser o coroamento do trabalho de renovação litúrgica
que estava em andamento há cem anos. Por que isso pareceria ter sido o
caso quando, na verdade, a CSL foi um projeto para a revolução? Os 1922
bispos que deram seus placet ("Sim") para a Constituição em 7 de dezem­
bro de 1962 certamente foram tranquilizados por cláusulas que davam a
impressão de que não havia possibilidade de qualquer reforma litúrgica ra-
42
Notitiae, julho-agosto de 197 4.
43Xavier Rynne, The Fourth Session (London: Herder & Herder, 1966), p.256.
44 Mons. Klaus Garnber, The Reform of the Roman Liturgy (A Reforma da Liturgia Romana)
(Harrison, NY: Foundation for Catholic Reform, 1993), p. 13 (Testemunho de Monsenhor
Nyssen).
45Ibidem, p. 61.
8. Um esquema insuspeito para a revolução 19

dical. O Artigo 4 da CSL certamente dá a impressão de que não há perigo de


qualquer mudança drástica em qualquer um dos ritos existentes de missa,
dentre os quais o Rito Romano era claramente o mais importante: "Este sa­
grado Concílio declara que a Santa Madre Igreja considera todos os ritos
legitimamente reconhecidos como sendo de igual autoridade e dignidade:
que Ela deseja preservá-los no futuro e promovê-los em todos os sentidos."
(ênfase nossa). Mas estas palavras tranquilizadoras são modalizadas pela
diretiva adicional do Concílio de que "onde necessário, os ritos devem ser
cuidadosa e minuciosamente revistos à luz da sólida tradição e que a eles
deve ser dado novo vigor para que possam se adaptar às circunstâncias dos
tempos modernos:' Nenhuma explicação é dada sobre como é possível pre­
servar e promover estes ritos e, ao mesmo tempo, revisá-los para atender a
determinadas circunstâncias e necessidades não especificadas dos tempos
modernos. Tampouco também é explicado como uma revisão poderia ser
realizada à luz da sólida tradição quando a sólida e invariável tradição do
Rito Romano nunca havia passado por qualquer revisão drástica de seus
ritos; uma tradição que perdürava por mais de 1000 anos, e que tinha sito
violada somente durante a Reforma Protestante, quando cada seita herética
concebeu novos ritos para corresponder a seus ensinos heréticos.

O Artigo 23 da CSL exige que, para manter a "tradição sólida", uma cui­
dadosa investigação deveria ser feita antes de rever qualquer parte da litur­
gia. "Esta investigação deve ser teológica, histórica e pastoral". Se isso não
fosse tranquilizador o bastante, o artigo 23 também exige que: "Não se in­
troduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja
o exija, e com a preocupação de que as novas formas como que surjam a
partir das já existentes:'

É um exercício instrutivo ir, passo a passo, através das mudanças que


foram feitas na Missa, começando com a abolição do Judica me e termi­
nando com a abolição do Último Evangelho, ou mesmo as Orações para a
Conversão da Rússia e considerar cuidadosamente por que o bem da Igreja
genuína e certamente exigia que cada mudança particular devesse ser feita.
O bem da Igreja foi realmente aprimorado porque os fiéis foram proibidos
de se ajoelhar no Incarnatus est durante o Credo? O bem da Igreja genuina­
mente, certamente, exige que as orações doutrinariamente ricas do Ofer­
tório sejam abolidas? Para ilustrar essa riqueza doutrinária, apenas uma
dessas orações, o Suscipe, sancte Pater, será examinada dentro do contexto
20 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

de um comentário do padre Pius Parsch, uma das figuras mais conhecidas


do movimento litúrgico".46

Tendo recitado o verso do Ofertório, o sacerdote descobre o cálice, pega


a patena com a hóstia de pães ázimos e, elevando-a até ao nível dos
seus olhos, oferece-a a Deus com a oração Suscipe, sancte Pater: "Rece­
bei, santo Pai, onipotente e eterno Deus, esta hóstia imaculada, que eu
vosso indigno servo, vos ofereço, ó meu Deus, vivo e verdadeiro, por
meus inumeráveis pecados, ofensas, e negligências, por todos os que
circundam este altar, e por todos os fiéis vivos e falecidos, afim de que,
a mim e a eles, este sacrificio aproveite para a salvação na vida eterna.
Amém:'
Esta oração - a mais rica em conteúdo de toda esta parte da Missa
- contém uma verdadeira miríade de verdades dogmáticas. Quem é que
oferece o sacrificio? É o sacerdote como representante de Cristo: "Que
eu, Vosso indigno servo, ofereço:' A quem? Ao Pai, Santíssimo, Deus
todo-poderoso, "o Deus vivo e verdadeiro:' O que oferece? "Esta vítima
imaculada." Ele oferece o pão, mas a expressão hóstia imaculada mos­
tra que os pensamentos do sacerdote nesta oração não repousam ali.
Este pão que ele segura em suas mãos ainda não é nem hostia (vítima)
nem, propriamente falando, immaculata. Porém ele já tem seu destino
em mente. Tornar-se-á a Eucaristia, a Hostia Immaculata verdadeira­
mente, uma consumação já antecipada em pensamento. E por quem é
oferecido? Em expiação pelos "inúmeros pecados, ofensas e negligên­
cias" do próprio sacerdote. Esses termos são, obviamente, sinônimos. A
liturgia frequentemente usa expressões cumulativas para aprofundar a
impressão em nossas mentes. É oferecido também por "todos os presen­
tes" (circunstantes - em pé ao redor do altar do sacrificio), e além deles,
para todos os cristãos "vivos ou mortos". Todos serão beneficiados pelo
sacrificio que tem como sua finalidade última "afim de que, a mim e a
eles, este sacrificio aproveite para a salvação na vida eterna". O propósito
final da missa é, portanto, o mesmo que o Sacrificio da Cruz: a salvação
de toda a humanidade. Esta oração, tão rica em doutrina, poderia servir
como base para um tratado inteiro sobre a missa.47

Como se pode alegar que o bem da Igreja genuína e certamente exige a


abolição desta oração sublime? Por acaso algum católico ao redor do mundo

46É triste notar que ao mesmo tempo em que estava escrevendo uma exposição tão orto­
doxa e mesmo inspiradora da missa (na década de 50), o padre Prasch estava participando
de experimentos litúrgicos não-autorizados (ver Bonnetere, pp. 28-29).
47Pius Parsch, The Liturgy of the Mass (St. Louis: B. Herder, 1961), pp. 184s.
8. Um esquema insuspeito para a revolução 21

se tornou mais fervoroso em sua fé como resultado de sua ausência? Aque­


les na Igreja obcecados pelo falso ecumenismo certamente têm argumen­
tado que esta oração e outras orações removidas da Missa pelos hereges
protestantes do século XVI devem ser removidas da Missa para evitar a
ofensa aos nossos irmãos protestantes. Lutero refere-se a "toda essa abo­
minação chamada o ofertório. E a partir deste ponto quase tudo rescende
a oblação. Portanto, retirando tudo o que tem sabor de oblação em todo o
Cânon, deixe-nos manter aquilo que é puro e santo48." O Cânon inteiro na
verdade foi posto de lado por Bugnini e seu Consilium - mas foi restaurado,
para seu pesar, por insistência do Papa Paulo VI. 49
Seria extremamente esclarecedor que me dissessem o processo exato
pelo qual, por exemplo, as novas orações de Ofertório (baseadas em uma
forma judaica de dar graças antes das refeições) desenvolveram-se a partir
de "formas já existentes". O Consilium presumivelmente interpretou esta
frase como "já existentes na liturgia de qualquer religião".
Há uma ironia profundamente amarga em outra admoestação contida
no artigo 23: "Evitem-se também, na medida do possível, diferenças notá­
veis de ritos entre regiões confinantes:' Hoje é dificil reconhecer que al­
gumas paróquias próximas pertençam à mesma religião, tão grande é o
contraste entre seus respectivos modos de celebrar a missa.
Cláusulas como a do artigo 4 e do artigo 23 teriam certamente tranquili­
zado os bispos de que não haveria nenhuma mudança radical na liturgia da
missa, mas havia outras cláusulas que de fato abriram caminho para uma
mudança radical ou até mesmo revolucionária. O Arcebispo Lefebvre não
tinha dúvida alguma quanto à natureza destas cláusulas. Ele afirmou: "Ha­
via bombas-relógio no Concílio:' 50 Estas "bombas-relógio" eram passagens
ambíguas inseridas nos documentos oficiais pelos periti ou especialistas li­
berais - passagens que deveriam ser interpretadas num sentido não tradici­
onal, progressista, após o encerramento do Concílio. A resposta à pergunta
do Cardeal Ottaviani sobre se os padres estavam planejando uma revolução

48
Citado em F. A. Gasquet, Edward VI and The Book of Common Prayer (London: John
Hodges, 1890), p. 221. O Capítulo XIII desse livro contém um exame muito detalhado das
reformas litúrgicas de Lutero.
49
M. Davies, Papel Paul's New Mass (Dickinson, TX: Angelus Press, 1980), p. 329; Bugnini,
p. 152, nota 30.
50Lefebvre, p. 135.
22 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano ll

(ver página 3) é que a maioria dos padres, os 3.000 Bispos51, certamente não
estavam, mas que alguns dos influentes periti, os especialistas que acom­
panharam os bispos a Roma, definitivamente tinham essa intenção.

9. O Concilio dos periti

Não é exagero afirmar que os periti liberais sequestraram o Concílio do


Papa João, fato que documentei em detalhes em meu livro sobre o Vati­
cano II52• Douglas Woodruff, um proeminente acadêmico católico inglês,
foi editor do The Tablet durante o Concílio. Em uma de suas reportagens
ele comentou: "Pois em certo sentido este Concílio tem sido o Concílio dos
periti, silenciosos nas sessões, mas muito eficazes nas comissões e nos ou­
vidos dos Bispos:'53 Este é um comentário excepcionalmente perceptivo, e
seria dificil encontrar uma frase melhor do que "o Concílio dos Periti" para
descrever o Vaticano Il. O bispo Lucey, de Cork e Ross (Irlanda) afirmou
que os periti eram mais poderosos do que a maioria dos bispos, embora
não tivessem voto, "porque tinham o ouvido de um cardeal ou chefe de
um grupo nacional de bispos e eram influentes na redação dos esboços dos
documentos do Concílio. O especialista... é a pessoa que detém o poder:'54
As "bombas-relógio" citadas pelo arcebispo Lefebvre eram, como foi ex­
plicado, as passagens ambíguas inseridas nos documentos oficiais pelos pe­
riti liberais que poderiam enfraquecer a apresentação dos ensinamentos
católicos tradicionais: por abandonar a terminologia tradicional, por omis­
sões ou por usar fraseologia ambígua que pode ser compatível com uma
interpretação não-católica. O Cardeal Heenan testemunha: "Um grupo de­
terminado poderia refutar a oposição e produzir uma fórmula passível tanto
de uma interpretação ortodoxa quanto modernista"55. O Arcebispo Lefeb­
vre chegou ao ponto de descrever os documentos do Concílio como "uma
massa de ambiguidades, imprecisão e sentimentalismo, coisas que agora

51
2.860 Padres Conciliares participaram de todas ou de parte das quatro sessões - um
total combinado de 281 dias (Wiltgen, p. 287).
52
Davies, Pape John's Council, Capítulo 5.
53
The Tablet, 27 de novembro de 1965, p. 1318.
54Catholic Standard (Dublin), 17 de outubro de 1973.
55
The Tablet, 18 de maio de 1968.
9. O Concílio dos periti 23

claramente admitem todas as interpretações e que deixaram abertas todas


as portas" 56• Em seu livro A Crown of Thorns, (Uma Coroa de Espinhos) o
cardeal Heenan escreveu:

O assunto mais debatido foi a reforma litúrgica. Poderia ser mais correto
dizer que os bispos estavam sob a impressão de que a liturgia havia sido
totalmente discutida. Em retrospecto, é claro que eles tiveram a oportu­
nidade de discutir apenas princípios gerais. As mudanças subsequentes
foram mais radicais do que aquelas pretendidas pelo Papa João e pelos
bispos que aprovaram o decreto sobre a liturgia. Seu sermão no final da
primeira sessão mostra que o Papa João não suspeitava do que estava
sendo planejado pelos especialistas litúrgicos. 57 (Ênfase nossa).

O que poderia ser mais claro do que isto? Um dos padres mais ativos e
eruditos do Concílio afirma que os peritos litúrgicos que esboçaram a CSL
a redigiram de tal forma que eles poderiam usá-la após o Concílio de uma
forma não prevista pelo Papa e pelos bispos. Para colocar de forma franca,
o Cardeal afirma que havia uma conspiração.
A revolução litúrgica que emergiu da Constituição foi iniciada precisa­
mente com base em uma série de cláusulas cuidadosamente formuladas,
cujas implicações não foram compreendidas pelos Padres do Concílio. Isto
ficou evidente até mesmo para um observador protestante americano, Ro­
bert McAfee Brown, que comentou: "Os próprios documentos do Concílio
tendiam mais para o caminho da mudança do que os Padres do Concílio ti­
nham necessariamente consciência quando votaram:' 58 A este respeito, ele
fez menção especial à Constituição Litúrgica: "A Constituição abre mui­
tas portas que mais tarde podem ser ainda mais abertas e não vincula a
Igreja a uma nova rigidez litúrgica:' 59 Aqueles que obtiveram o controle do
Consilium, o Comitê que implementou a CSL, usaram estas cláusulas pre­
cisamente da maneira que eles tinham a intenção de usá-las quando, como
o Cardeal Heenan assegura-nos, eles as tinham introduzido na CSL como
membros das Comissões Litúrgicas pré-conciliares e conciliares.
A própria Constituição tornou-se letra morta quase que desde o mo­
mento em que ela foi aprovada com euforia pelos padres conciliares. Ela
56
Lefebvre, pp. 109s.
57
John Heenan, A Crown ofThorns (London: Hodder & Stoughton, 1974), p.367.
58
R. McAfee Brown, The Ecumenical Revolution (New York: Doubleday, 1969), p. 210.
59
R. MacAfee Brown, Observer in Rome. (London: Methuen, 1964), p. 226.
24 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

poderia ter sido usada para iniciar uma verdadeira renovação, fiel aos prin­
cípios litúrgicos autênticos endossados pelos papas e expostos em docu­
mentos como a Tra le solicitudini de São Pio X (1903) e o De musica sacra et
sacra liturgia do Papa Pio XII (1958). Até mesmo o arcebispo Lefebvre escre­
veu em 1963: "Deixe-nos então admitir sem hesitação que algumas refor­
mas litúrgicas eram necessárias."60 Mas discutir o que poderia ter sido é a
mais inútil das ocupações; é o que realmente aconteceu o que importa. Toda
a extensão da subserviência episcopal ao ditame dos "especialistas" tornou­
se clara pelas palavras do arcebispo Lefebvre em uma palestra que ele deu
em Viena, em setembro de 1975. Ele explicou que a Conferência episcopal
francesa "realizou reuniões durante as quais eles receberam os textos exa­
tos dos discursos que tinham que fazer. 'Você, Bispo fulano de tal, você vai
falar sobre o assunto tal, um certo teólogo vai escrever o texto para você, e
tudo que você precisa fazer é lê-lo':'61 Este não foi apenas o caso da hierar­
quia francesa. Eu documentei em meu livro The Second Vatican Council and
Religious Liberty (O Concílio Vaticano II e a Liberdade Religiosa) até que
ponto os bispos dos Estados Unidos e outras hierarquias obedientemente
leram os discursos escritos para eles pelo Padre John Courtney Murray em
louvor do esboço da declaração da qual ele era o principal autor. 62 Como
um prelado americano expressou: "As vozes são as vozes dos bispos dos
Estados Unidos, mas os pensamentos são os pensamentos de John Court­
ney MurraY:' 63 O discurso mais celebrado durante o debate sobre liberdade
religiosa, o debate mais disputado do Concílio, foi feito pelo bispo belga
Emile de Smedt em 19 de novembro de 1963. O Bispo de Smedt recebeu um
estrondoso aplauso, a maior manifestação única do Concílio. O discurso,
na verdade, foi escrito para ele pelo padre Murray. 64 De acordo com Ro­
bert Kaiser, que escreveu sobre o Concílio para a revista Time Magazine, a
batalha sobre a CSL foi vencida pelos liberais em 7 de dezembro de 1962
quando o prefácio e o primeiro capítulo foram aprovados com apenas onze
votos dissidentes.

Lefebvre, p. 9.
60

Marcel Lefebvre, Pour L 'Honneru de l'Eglise (Paris: Editions de la Nouvelle Aurore,


61

197 5), pp. 5s.


62M. Davies, The Second Vatican Council and Religious Liberty (Long Prairie, MN: Neu­
mann Press, 1992), pp. 120-125.
63
Ibid., p. 161.
64Ibid., pp. 124-125.
10. Detonando as bombas-relógio 25

Para os progressistas do Concilio, eufóricos com outras batalhas comba­


tidas e ganhas, esta foi uma mensagem doce. É verdade que eles teriam
que votar em outros capítulos, mas seria mera formalidade. "No prefácio
e no primeiro capítulo", um membro da Comissão Litúrgica me disse,
"estão as sementes de todas as outras reformas". Era verdade também
que o papa teria que ratificar a ação. Mas ninguém pensou que ele iria
tentar vetar o que o Concílio tinha levado tanto tempo para alcançar.65

Ele não vetou!

Detonando as bombas-relógio

Um dos primeiros pontos apresentados no prefácio à CSL é que o Con­


cílio pretende "incentivar tudo o que possa contribuir para a unidade de
todos os que creem em Cristo: e fortalecer aqueles aspectos da Igreja que
podem ajudar a convocar toda a humanidade para o seu seio". Ao redigir a
Constituição, o padre Bugnini vislumbrou claramente a liturgia como meio
de promover o ecumenismo. (Veja seu ºcomentário na seção Legalize os Abu­
sos!, p. 51 abaixo.) Segue-se que a Missa Tradicional em Latim, que enfati­
zava precisamente aqueles aspectos de nossa fé mais inaceitáveis para os
protestantes, deveria ser considerada como um obstáculo ao ecumenismo.
Para promover o ecumenismo, seria necessária uma reforma radical.
Houve, é claro, no passado, o desenvolvimento litúrgico dentro do Rito
Romano, como em todos os ritos, mas isso ocorreu por um processo quase
imperceptível de desenvolvimento natural. Em sua introdução à edição
francesa do The Reform of the Roman Liturgy (A Reforma da Liturgia Ro­
mana) do Mons. Klaus Gamber, o cardeal Ratzinger escreveu:

]. A. Jungmann, um dos maiores liturgistas de nosso tempo, definiu a


liturgia da sua época, tal corno ela poderia ser compreendida à luz da
pesquisa histórica, como uma liturgia que é fruto do desenvolvimento...
O que aconteceu depois do Concílio foi algo completamente diferente:
no lugar da liturgia como fruto do desenvolvimento, veio a liturgia fa­
bricada. Nós abandonamos o processo orgânico, vivo do crescimento e
do desenvolvimento ao longo dos séculos e o substituímos, como em um
processo de manufatura, por um produto, um artefato banal produzido
de última hora (produit banal de l'instant).66
65
R. Kaiser, Inside the Council (London: Burns & Oates, 1963), p. 222.
66
Introdução do Cardeal Ratzinger a La Reforme Liturgique en question (Le-Barroux: Edi­
ções Sainte-Madeleine), 1992, pp. 7-8.
26 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

É importante notar que a característica predominante deste desenvolvi­


mento natural foi o acréscimo de novas orações e gestos que manifestavam
ainda mais claramente o mistério guardado na Missa. Os reformadores pro­
testantes removeram orações que tornavam a doutrina católica específica,
sob a desculpa de um pretenso retorno à simplicidade primitiva. O Papa
Pio XII condenou especificamente "certas tentativas de reintroduzir litur­
gias e ritos antigos" sob alegações de que eram primitivas. Em sua encíclica
Mediator Dei ele escreveu:

O desejo de restaurar tudo indiscriminadamente à sua antiga condição


não é sábio nem louvável. Seria errado, por exemplo, querer o altar res­
taurado à sua antiga forma de uma mesa; querer o preto eliminado das
cores litúrgicas e quadros e estátuas eliminadas das nossas igrejas; exi­
gir que os crucifixos não representem o sofrimento amargo do Reden­
tor Divino; condenar cantos polifônicos, mesmo que eles se conformem
com os regulamentos da Sé Apostólica. Esta atitude é uma tentativa de
reviver o "arqueologismo" ao qual o pseudo Sínodo de Pistoia deu ori­
gem; também procura reintroduzir os perniciosos erros que levaram a
esse Sínodo e os que resultaram dele e os quais a Igreja, guardiã sem­
pre vigilante do "depósito da fé" entregue à sua responsabilidade pelo
seu Fundador Divino, tinha todo o direito e razão para condenar. É um
movimento perverso que tende a paralisar a ação santificante e salutar
pela qual a liturgia guia os filhos adotivos pelo caminho que leva a seu
Pai celeste. [§§ 66-68].

Os princípios litúrgicos de Pistoia, um dos quais será explicado a seguir,


foram impostos em todo o Rito Romano como parte da reforma conciliar,
embora não especificamente estipulado pelo Concílio. O CSL forneceu a
porta através da qual eles entraram.
Desde o Concílio Vaticano II, tabernáculos em todo o mundo de língua
inglesa foram removidos do seu lugar de honra no centro do altar-mor. Não
há sequer uma palavra na CSL que sugira essa prática deplorável. Era, no
entanto, parte do programa dos "jovens lobos" do Movimento Litúrgico, e
o papa Pio XII estava bem ciente disso. O grande Pontífice deixou a sua
posição sobre o tabernáculo clara em um discurso em um Congresso Litúr­
gico em Assis, em 1956. Ele insistiu que aqueles que se apegavam de todo
o coração aos ensinamentos do Concílio de Trento não teriam "nenhum
pensamento de formular objeções à presença do tabernáculo no altar". Ele
não tinha dúvidas quanto à verdadeira motivação das pessoas que procu­
ravam mudar a prática tradicional: "O problema não é tanto em relação à
10. Detonando as bombas-relógio 27

presença material do tabernáculo no altar, mas sim a uma tendência, à qual


gostaríamos de chamar sua atenção, de diminuir a estima pela presença e
ação de Cristo no tabernáculo." Este santo pontífice resumiu então a autên­
tica posição católica em uma sentença profunda e perceptiva: "Separar o
Tabernáculo do altar é separar duas coisas que, por sua origem e natureza,
devem permanecer unidas." Se isso era verdade em 1956, é ainda verdade
hoje. 67
Vale ressaltar que as "circunstâncias e necessidades dos tempos moder­
nos", às quais o artigo 4 da CSL alega que a liturgia deve ser ajustada,
ocorreram com grande regularidade ao longo da história. É da natureza do
tempo tornar-se mais moderno com o passar de cada segundo, e se a Igreja
tivesse adaptado a liturgia para acompanhar a constante sucessão dos tem­
pos modernos e novas circunstâncias, a estabilidade litúrgica nunca teria
existido. Se esta necessidade de adaptação da liturgia realmente existir, ela
sempre deve ter existido. O conjunto do magistério pontifício sobre a litur­
gia encontra-se prontamente disponível, mas o magistério pontifício sobre
a necessidade de adaptar a liturgia para acompanhar os tempos modernos
é notável somente por sua ausência - e isso não é surpreendente quando
esta alegada "necessidade" é examinada de forma desapaixonada e racional.
Quando os tempos se tornam modernos? Quanto tempo permanecem mo­
dernos? Quais são os critérios para se determinar a modernidade? Quando
uma modernidade acaba e outra modernidade passa a existir?
A falácia completa desta tese de "adaptação à modernidade" certamente
não passou desapercebida para alguns dos padres conciliares. O Bispo (de­
pois Cardeal) Dino Staffa apontou as consequências teológicas de uma litur­
gia "adaptada" em 24 de outubro de 1962. Ele disse a 2337 padres reunidos:

Diz-se que a Sagrada Liturgia deve ser adaptada a tempos e circuns­


tâncias que mudaram. Neste ponto também devemos olhar para as con­
sequências. Os costumes, a face mesma da sociedade, muda rapidamente
e mudará ainda mais rapidamente. O que parece ir de encontro aos dese­
jos das multidões hoje parecerá incongruente após trinta ou cinquenta
anos. Podemos concluir então que, depois de trinta ou cinquenta anos,
toda ou quase toda a liturgia teria que ser alterada novamente. Isto pa­
rece ser lógico, de acordo com as premissas, parece lógico para mim, mas
67
Uma história detalhada da campanha pós-Vaticano II para remover o Tabernáculo do
altar-mor é fornecida em meu livreto, The Catholic Sanctuary and the Second Vatican Council
(Rockford, IL: TAN, 1997).
28 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

dificilmente de acordo (decorum) para a sagrada liturgia, dificilmente é


útil para a dignidade da Igreja, dificilmente segura para a integridade e
a unidade da fé, dificilmente, favorecendo a unidade da disciplina. Por­
tanto, enquanto o mundo tende a uma maior unidade todos os dias, es­
pecialmente em sua forma de trabalhar ou de viver, nós, da Igreja Latina
vamos quebrar a unidade litúrgica admirável e dividi-la em nações, re­
giões, até mesmo em províncias? 68

A resposta, claro, é que isso é precisamente o que a Igreja Latina faria


e o fez - com as consequências desastrosas para a integridade e a unidade
tanto da fé quanto da disciplina, como o bispo Staffa previra.

11. Omissão do termo "transubstanciação"

Os artigos 5 a 13 da CSL, que lidam com a natureza da liturgia, con­


têm ensinamentos doutrinais muito admiráveis, mas também alguns que
parecem pertm:badoramente isentos de precisão. A presença substancial
de Cristo no Santíssimo Sacramento é mencionada como se fosse simples­
mente a maior (máxima) de suas muitas presenças na liturgia, o que inclui
sua presença espiritual por meio da leitura da Sagrada Escritura ou pelo fato
de que dois ou três estão reunidos em Seu nome. A CSL declarou apenas
que Nosso Senhor está presente "sobretudo sob as espécies eucarísticas"
(Praesen... maxime sub speciebus eucharisticis) (artigo 7 º ).
"Transubstanciação" é o termo católico clássico que a Igreja usa para
expressar a doutrina Católica que na Eucaristia, a substância inteira do pão
é convertida na substância do Corpo de Cristo, e toda substância do vi­
nho é convertida na substância do Seu Sangue, permanecendo apenas as
aparências do pão e do vinho.
Um fato que fica muito claro em meu livro Cranmer's Godly Order (A
Ordem Divina de Cranmer) é que todos os reformadores protestantes con­
cordaram que Cristo estava presente na Eucaristia; o que eles rejeitaram
foi o dogma da Sua presença substancial. Se há uma palavra que foi e é
um anátema para os protestantes, é a palavra "transubstanciação". Protes­
tantes professam a crença na "real presença de Cristo", na Sua "presença
eucarística", Sua "presença sacramental" - luteranos até mesmo professam
a crença na Sua "presença consubstancial" - mas o que eles não aceitam, o
que é um anátema para eles, é a palavra "transubstanciação". É, portanto,
68Kaiser, p. 130.
11. Omissão do termo "transubstanciação" 29

surpreendente observar que esta palavra não aparece em nenhum lugar


no texto da CSL. Isto é urna ruptura quase inacreditável com a tradição da
Igreja Católica Romana, que sempre insistiu na precisão absoluta ao escre­
ver sobre o Sacramento que é o seu maior tesouro, pois nada mais é do que
o Próprio Deus Encarnado.
O contraste entre a precisão tradicional da igreja e a CSL torna-se claro
com apenas um exemplo. Comparado com a formulação da CSL, o texto
a seguir parece ser urna definição extremamente abrangente da presença
eucarística de Cristo: "Cristo está, depois da Consagração, verdadeira, real
e substancialmente presente sob as aparências do pão e do vinho, e toda a
substância do pão e do vinho cessou então de existir, permanecendo apenas
as aparências". Os leitores ficarão surpreendidos ao saber que esta defini­
ção foi condenada pela Igreja corno "perniciosa, depreciativa à exposição de
verdade católica sobre o dogma da transubstanciação, favorável aos here­
ges (perniciosa, derogans expositioni veritatis Catholicae circa dogma trans­
substantiationis, ravens herectis)". Essa definição foi, na verdade, a definição
proposta pelo Sínodo jansenista de Pistoia; foi condenada pelo Papa Pio VI
precisamente por sua calculada omissão da doutrina da transubstanciação e
do termo "transubstanciação", que havia sido usado pelo Concílio de Trento
(1545-1563) para definir a maneira da presença eucarística de Cristo e na
profissão solene de fé, subscrita pelos Padres daquele Concílio (" quam ve­
lut articulum fidei Tridentinum Concilium definivit [v. n. 877, 884], et quae
in solemni fidei professione continetur [v. 997]") 69 • A supressão da palavra
"transubstanciação" foi condenada pelo Papa Pio VI "na medida em que,
por meio de uma omissão não autorizada e suspeita corno essa, omite-se
a menção a um artigo sobre a fé e também uma palavra consagrada pela
Igreja para salvaguardar a profissão desse artigo contra a heresia, e porque
tende a resultar em seu esquecimento, como se fosse apenas urna questão
escolástica."70
Ao discutir este ponto em particular, é impossível não notar o que po­
deria ser descrito corno a correspondência verdadeiramente sobrenatural
entre o que o Papa Pio VI escreveu em 1794 e o que o Papa Paulo VI es­
creveu em sua encíclica Mysterium Fidei em 1965. Esta encíclica suscitou
considerável hostilidade entre os protestantes e os católicos liberais, que

69
H. Denzinger, Enchiridion Symbolorum (edição 31), nº 1529.
70
Ibid.
30 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

não hesitaram em estigmatizá-la como incompatível com o "espírito" do


Vaticano II!
Um observador protestante mencionado anteriormente, Dr. Robert Mc-
Mee Brown, queixou-se:
Na véspera da quarta sessão, ele [Paulo VI] emitiu uma encíclica sobre
a Eucaristia, Mysterium Fidei, que parecia para a maioria dos intérpretes
ser, na melhor das hipóteses, um documento que dava um passo para
trás e na pior das hipóteses um repúdio de muitas percepções criativas
da já promulgada Constituição sobre a Sagrada Liturgia. 71
A Encíclica Mysterium Fidei era, para citar um outro observador protes­
tante, o anglicano Dr.]. Moorman, "decepcionante para aqueles que senti­
ram que o Concílio estava tentando realmente romper com a escolástica e a
teologia tridentina e falar ao mundo moderno na língua em que ele pudesse
compreender." 72 O peritus ultra-liberal Padre Gregory Baum, um judeu con­
vertido, comentou: "Visto que a terminologia do Papa Paulo é tão diferente
da Constituição sobre a Liturgia, não é fácil encaixar harmoniosamente sua
Encíclica no ensinamento conciliar do Vaticano U:' 73 Umas poucas citações
da Mysterium Fidei deixarão claro porque a Encíclica foi considerada pelos
Liberais uma declaração demasiadamente retrógrada do dogma católico. O
Papa Paulo condenou certas opiniões vigentes durante o Concílio:
Tais opiniões referem-se a Missas celebradas em privado, ao dogma da
transubstanciação e à adoração eucarística. Os liberais parecem pensar
que, apesar de uma doutrina ter sido definida pela Igreja, qualquer pes­
soa pode ignorá-la ou dar-lhe uma interpretação que dilapida o signifi­
cado natural das palavras ou o sentido reconhecido dos conceitos.
A Igreja nos ensina, o Papa insiste, que Nosso Senhor "torna-se pre­
sente no Sacramento precisamente por uma transformação extraordinária
de toda substância do pão em Seu Corpo e de toda a substância do vinho
em Seu Sangue. Isto é claramente uma transformação notável e singular e
a Igreja Católica lhe dá o nome adequado e exato da transubstanciação."
O Papa João XXIII afumou em seu discurso de abertura do Concílio: "A
substância da doutrina antiga do depósito da fé é uma coisa, e a maneira em
que é apresentada é outra." O papa Paulo VI parece diferir de seu antecessor
quando escreve:
71Robert McMee Brown, Ecumenical Revolution, pp. 171-172.
72).
Moorrnan, Vatican Observed (Londres: Darton, Longrnan & Tod, 1967), p. 157.
73Herder Correspondence, 1965, p. 359.
12. Participação ativa 31

Esta regra de expressão foi introduzida pela Igreja ao longo dos sécu­
los com a proteção do Espírito Santo. Ela a confirmou com a autoridade
dos Concílios. Tornou-se mais de uma vez o símbolo e o padrão da fé
ortodoxa. Ela deve ser observada religiosamente. Ninguém pode presu­
mir alterá-la à vontade, ou a pretexto de novos conhecimentos. Por isso
seria intolerável se as fórmulas dogmáticas que Concílios Ecumênicos
têm empregado para lidar com os mistérios da Santíssima Trindade fos­
sem acusadas de ser inadequadas para os homens do nosso tempo, e ou­
tras fórmulas fossem introduzidas precipitadamente para substituí-las.
É igualmente intolerável que alguém por sua própria iniciativa queira
modificar as fórmulas com as quais o Concílio de Trento propôs a crença
no Mistério Eucarístico. Essas fórmulas e também outras, que a Igreja
emprega ao propor dogmas de fé, expressam conceitos que não estão
ligados a nenhum sistema cultural específico. Elas não estão restritas a
qualquer desenvolvimento das Ciências, nem a uma ou outra das escolas
teológicas.

Não obstante a deplorável ausência do terll!o transubstanciação na CSL,


os artigos 5 a 13 contêm muita doutrina ortodoxa, doutrina essa que teve
uma grande influência em levar os padres conservadores a aprovar a Cons­
tituição e a desviar a atenção das bombas-relógio presentes no texto. O
Concílio de Trento é citado em termos de que "A vitória e o triunfo da
morte de Cristo são feitos outra vez presentes" sempre que a Missa é ofere­
cida (Artigo 6), e é outra vez citado ao se afirmar que a missa é oferecida por
Cristo: "o mesmo que se oferece agora por meio do ministério dos padres,
que Se ofereceu anteriormente na cruz" (Artigo 7). "Justamente então, é a
liturgia considerada como um exercício do ofício sacerdotal de Jesus Cristo"
(Artigo 7). É "o cume na direção do qual toda a atividade da Igreja é dirigida;
ao mesmo tempo é a fonte da qual todo o seu poder flui" (Artigo 10).

12. Participação ativa

No Artigo 11 aparece um dos temas-chave da CSL. Os Pastores de al­


mas são instados a certificarem-se de que durante a missa "os fiéis partici­
pem consciente, ativa e frutuosamente:' Admoestações semelhantes estão
presentes na Mediador Dei do Papa Pio XII (1947), mas tanto na Encíclica
quanto na CSL a palavra latina que foi traduzida como "ativa" é "actuosus".
Há uma palavra latina "activus" que é definida no dicionário de latim Lewis
and Short como ativo, prático, opondo-se a "contemplativus", mas o mesmo
32 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

dicionário explica "actuosus" como significando atividade atrelada à ideia


de zelo, impulso subjetivo. Não é fácil fornecer um equivalente exato de
"actuosus"; a palavra envolve uma sincera participação interior (talvez in­
tensa) na missa - e é sempre para esta participação interior que deve ser
dada consideração principal. O papel dos gestos externos é o de manifestar
esta participação interior, sem a qual eles são totalmente sem valor. Estes
sinais devem não só manifestar, mas ajudar a participação interior que eles
simbolizam.
Nenhum gesto aprovado pela Igreja é sem sentido ou valor - o bater
no peito durante o Confiteor; o fazer o sinal da Cruz na testa, lábios e co­
ração no início do Evangelho; o fazer uma genuflexão no Incamatus est
do Credo e no Verbum caro factum est do último Evangelho; o ajoelhar-se
em certas partes da missa - no Canon em particular, curvar-se em adoração
nas elevações, participar dos cantos e respostas apropriadas: todas estas são
manifestações externas apropriadas da participação interna que os fiéis de­
vem ser ensinados a fazer consciente e frutuosamente. Mas o Papa Pio XII
aponta na Mediador Dei que a importância desta participação externa não
deve ser exagerada, e que cada católico tem o direito de assistir à missa da
maneira que ele julgar mais benéfica:
As pessoas diferem tão amplamente em caráter, temperamento e inteli­
gência que é impossível que todas sejam afetadas da mesma forma pelas
mesmas orações, hinos e ações sagradas. Além disso, as necessidades e
disposições espirituais não são as mesmas em todos, nem estas perma­
necem inalteradas no mesmo indivíduo em momentos diferentes. Deve­
mos, pois, dizer - como teríamos que dizer se tal opinião fosse verda­
deira - que todos esses cristãos são incapazes de participar do sacrificio
eucarístico ou de gozar de seus beneficias? Claro que são capazes, e de
maneiras que muitos consideram mais fáceis: por exemplo, devotamente
meditando sobre os mistérios de Jesus Cristo, ou realizando outros exer­
cícios religiosos e outras orações que, embora diferentes em forma das
orações litúrgicas, estão, por sua natureza em sintonia com elas (§ 115).
Como o Papa Pio XII explica longamente em sua Encíclica, o que real­
mente importa é que os fiéis unam-se com o padre no altar no oferecimento
de Cristo e se ofereçam juntamente com a Vítima Divina, com e por meio
do próprio Divino Sacerdote. Esta é o modo mais elevado de "participação"
na missa.
Há uma mudança clara de ênfase entre a Mediator Dei (1947) e a CSL
(1964), que afirma que "na restauração e promoção da liturgia sagrada, a
12. Participação ativa 33

participação plena e ativa de todas as pessoas é o objetivo a ser considerado


antes tudo o mais, pois é a fonte primária e indispensável da qual os fiéis
devem derivar o verdadeiro espírito cristão" (Artigo 14). Como é o caso
desta citação, o "actuosus" tem sido traduzido invariavelmente pela palavra
"ativa", que é interpretada em seu sentido literal. A necessidade de fazer,
como o Artigo 14 direciona, da participação congregacional plena e ativa
a principal consideração na "restauração e promoção da sagrada liturgia"
resultou em que a congregação se tornasse o foco da atenção, ao invés de
a Vítima Divina. Desde o Concílio, é a reunião da Comunidade o que mais
importa, não a razão pela qual eles se reúnem; e isto está em harmonia com
a tendência mais óbvia dentro da Igreja pós-conciliar - substituir o culto
de Deus pelo culto do homem. O Cardeal Ratzinger observou com grande
clareza em 1997:

Estou convencido de que a crise na Igreja que estamos vivenciando é em


grande medida devida à desintegração da liturgia... quando a comuni­
dade de fé, a unidade mundial da Igreja e sua história e o mistério do
Cristo vivo não são mais visíveis na liturgia, onde mais, então, a Igreja
se torna visível em sua essência espiritual? Então a comunidade está
celebrando somente a si própria, uma atividade que é totalmente infru­
tífera.74

Uma vez que a lógica de fazer da participação ativa da congregação a


consideração principal da liturgia é aceita, não pode haver nenhuma res­
trição à intenção dos autointitulados especialistas de promoverem sua total
dessacralização.
É importante ressaltar aqui que em nenhum momento durante a reforma
os desejos dos leigos foram levados em consideração. Assim como na União
Soviética o Partido Comunista "interpretava a vontade do povo", da mesma
forma os "especialistas" interpretam os desejos dos leigos. Quando, já em
março de 1964, um grupo de leigos na Inglaterra deixava claro que não
gostava nem desejava que as mudanças litúrgicas fossem impostas, um dos
mais fervorosos apóstolos da inovação litúrgica da Inglaterra, Dom Gre­
gory Murray, OSB, colocou-os em seus lugares nos termos mais claros pos­
síveis em uma carta para o The Tablet: "A alegação de que os leigos, como
um grupo, não querem as mudanças litúrgicas, seja no rito ou na lingua­
gem, não é, eu declaro, de forma alguma pertinente:' Ele insiste que "não
74
Joseph Ratzinger, Milestones (San Francisco: Ignatius Press, 1998), pp.148-149.
34 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

se trata do que o povo quer; trata-se do que é bom para eles:'75 Os autoin­
titulados especialistas litúrgicos tratam com desprezo completo não só os
leigos, mas também o clero paroquial - cujos bispos insistem que aceitem
os ditames - "diktat" - destes peritos, aos quais, na maioria dos casos, es­
ses mesmos bispos abdicaram de sua autoridade em questões litúrgicas. O
Monsenhor Richard]. Schuler, um experiente pároco em St. Paul, Minne­
sota, explicou a situação do clero paroquial muito claramente em um artigo
escrito em 1978, no qual ele fez o comentário muito pungente, que tudo o
que os especialistas ordenam que eles façam é levantar o dinheiro para pa­
gar por sua própria destruição:

Mas então vieram os intérpretes e implementadores pós-conciliares que


inventaram o "Espírito do Concilio". Eles introduziram práticas nunca
sonhadas pelos padres do Concílio; livraram-se de tradições e costumes
católicos que nunca se pretendeu perturbar; fizeram mudanças em nome
da mudança; inquietaram as ovelhas e aterrorizaram os pastores.
O padre de paróquia, que é para a maioria dos católicos o pastor a
quem eles procuram por ajuda ao longo do caminho para a salvação,
caiu em tempos dificeis após o Concílio pastoral. Ele é o pastor, mas ele
se viu suplantado por comissões, comitês, peritos, consultores, coorde­
nadores, facilitadores e burocratas de todos os tipos. Um mero pároco já
não tem mais importância. Ele é informado de que, se foi educado an­
tes de 1963, então não possui o conhecimento profissional necessário,
deve ser atualizado, recauchutado e doutrinado por meio de reuniões,
seminários, workshops, retiros, conferências e outras sessões de lava­
gem cerebral. Mas lá no fundo, ele realmente sabe que sua única fun­
ção é recolher o dinheiro para sustentar a sempre crescente burocracia
que cada diocese criou para servir às necessidades "pastorais" do povo.
Enquanto as paróquias lutam para sobreviver, a tributação que lhes é
imposta quase as esmaga. A anomalia de ter que pagar pela sua própria
destruição transforma-se na provação de um pastor e de suas ovelhas
que lutam para se adaptar à "liberdade" e às opções dadas pelo Concilio.

O Mons. Schuler concorda certamente com o Mons. Gamber que a re­


forma do modo que a temos não seria endossada pela maioria dos padres
do Concílio. Ele continua:

Não foram de menor importância, entre os golpes recebidos por um pas­


tor e por seu rebanho, as inovações litúrgicas impostas pela burocracia
75The Tablet, 14 de março de 1964, p. 303.
13. Rebaixando a Liturgia ao nosso nível 35

de Washington. A maioria das mudanças que nós testemunhamos desde


1965 nunca foram sonhadas pelos padres conciliares, e dificilmente al­
guma delas foi reivindicada pelo povo católico. Mas com a nova liber­
dade dada, devemos ter opções, e devemos usar opções, particularmente
as opções que os liturgistas propõem. A posição liberal significa que se
é livre para concordar com a posição Liberal e nenhuma outra. Con­
sequentemente, assim que as opções são introduzidas, tornam-se em
breve a norma, e qualquer exercício de escolha é logo rotulado como
dissidente.76

13. Rebaixando a Liturgia ao nosso nível

A demanda de que a plena e ativa participação da Congregação "seja


considerada antes de todo o resto" é uma bomba-relógio de poder destru­
tivo virtualmente ilimitado colocada nas mãos daqueles investidos com o
poder de aplicar na prática os detalhes de uma reforma que o Concílio auto­
rizou, mas que não explicitou em detalhes. Assim, embora o Concílio diga
que "em igualdade de circunstãncias", ao canto gregoriano deveria se dar
lugar privilegiado em serviços litúrgicos (Art. 116), os "especialistas" po­
diam e efetivamente argumentaram que este não era certamente um caso
de igualdade de circunstâncias, pois o uso do canto gregoriano impedia a
participação ativa do povo. A música do povo, a música popular, a música
pop é, dizem os "especialistas", o que é mais agradável para eles e mais
provavelmente promove sua participação ativa - que, em obediência ao
Concílio, deve "ser considerada antes de todo o resto". Isso levou à abomi­
nação da "Missa Folclórica", que certamente tem tanto em comum com a
genuína música folclórica quanto com o cantochão. Isso também ilustra a
ignorãncia e o desprezo pelos fiéis comuns manífestados por esses autoin­
titulados "especialistas". Por que a dona de casa ou o trabalhador manual
ouvem música pop para aliviar a monotonia da rotina do dia, isto não sig­
nifica que eles são incapazes de apreciar algo melhor, ou que desejam ouvir
o mesmo tipo de música na igreja no domingo. O mesmo é igualmente ver­
dadeiro com relação aos jovens: se a liturgia é reduzida ao nível de imitar
o que estava sendo ouvido na discoteca no ano anterior, então os jovens
logo não verão a necessidade de estar presentes. Dietrich von Hildebrand
corretamente definiu essa questão da seguinte forma:
76
The Wanderer, 2 de novembro de 1978.
36 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

O erro básico da maioria dos inovadores é imaginar que a nova liturgia


traz o santo sacrificio da missa para mais perto os fiéis, que a missa, des­
falcada de seus antigos rituais, agora faz parte do cerne das nossas vidas.
Pois a pergunta é se nós melhor encontramos Cristo na missa ao nos ele­
varmos até ele, ou ao arrastá-lo para baixo em nosso mundo cotidiano,
banal. Os inovadores substituiriam a Santa intimidade com Cristo por
uma familiaridade imprópria. A nova liturgia realmente ameaça frus­
trar o encontro com Cristo, pois desencoraja a reverência em face do
mistério, impede o temor, e quase que totalmente apaga o sentido de
sacralidade. O que importa, certamente, não é se os fiéis sentem-se em
casa na missa mas se eles são tirados de suas vidas ordinárias e levados
ao mundo de Cristo - se sua atitude é a resposta de máxima reverência:
se eles estão embebidos da realidade de Cristo77•

O Professor von Hildebrand emitiu este alerta contra a direção clara


que a reforma litúrgica estava tomando em 1966, uma direção à qual es­
tava sendo guiada por "especialistas" que alegavam saber o estilo de ce­
lebração necessário para assegurar que a Congregação pudesse participar
ativamente - e isto, eles poderiam salientar, foi o que o Concílio tinha de­
cretado que deveria "ser considerado antes de todo o resto". O professor
von Hildebrand denuncia essa atitude em termos bastante severos:
Eles parecem não estar cientes da importância fundamental da sacrali­
dade na religião. Logo, eles obliteram o sentido do sagrado e, consequen­
temente minam a verdadeira religião. Sua abordagem "democrática" os
faz desconsiderar o fato de que em todos os homens que anseiam por
Deus há também um anseio pelo sagrado e um senso de diferença en­
tre o sagrado e o profano. O trabalhador ou o camponês tem este sen­
tido tanto quanto qualquer intelectual. Se ele é católico, desejará en­
contrar uma atmosfera sagrada na igreja, e isto é verdadeiro ainda que
o mundo seja urbano, industrial ou não. Muitos padres acreditam que
substituindo a atmosfera sagrada que reina, por exemplo, nas maravi­
lhosas igrejas da época medieval ou barroca nas quais a missa latina era
celebrada, por urna atmosfera profana, funcional, neutra, rotineira, eles
permitirão que a Igreja acolha o homem simples com caridade. Mas isto
é um erro fundamental. Isto não vai satisfazer seu anseio mais profundo;
apenas lhe oferecerá pedras no lugar de pão. Em vez de combater a irre­
verência, tão difundida hoje, esses sacerdotes realmente estão ajudando
a propagar essa mesma irreverência. 78
77Triumph magazine, de outubro de 1966.
78D. von Hildebrand, Trojan Horse in the City of God (Chicago: Franciscan Herald Press,
1969), p. 135.
37

14. Uma Liturgia em permanente evolução

A próxima bomba-relógio situa-se no Artigo 21. Ele afirma que "a litur­
gia é constituída de elementos imutáveis, instituídos por Deus, e de elemen­
tos sujeitos a mudanças". Isto está perfeitamente correto - mas isso não sig­
nifica que, porque certos elementos poderiam ser alterados, eles devam ser
mudados. Toda a tradição litúrgica do rito romano contradiz tal afirmação.
"O que podemos chamar os 'arcaísmos' do Missal", escreve Dom Cabrol,
um "pai" do movimento litúrgico, "são as expressões da fé de nossos pais, o
que é nosso dever zelar e entregar para a posteridade". 79 Da mesma forma,
em sua defesa da bula Apostolicae Curae (1898), os Bispos da província de
Westminster insistiram que:

Ao aderir rigidamente ao rito que nos é transmitido, podemos sempre


nos sentir seguros... E esse método seguro é o que a Igreja Católica
sempre seguiu... subtrair as orações e cerimônias em uso anteriormente
e até mesmo remodelar os ritos existentes da maneira mais drástica é
uma proposta da qual não conhecemos nenhum fundamento histórico,
e que parece-nos absolutamente inacreditável. Desta forma, Cranmer,
ao tomar este caminho sem precedentes, agiu, em nossa opinião, com a
mais inconcebível precipitação. 80

A CSL tem uma visão diferente, é uma ruptura tão surpreendente e sem
precedentes com a tradição que parece pouco crível que os padres a te­
nham aprovado. O Artigo 21 afirma que elementos que estão sujeitos à
alteração "não só podem, mas devem ser alterados com o passar do tempo
se recursos que são menos harmoniosos com a natureza íntima da liturgia
por acaso tenham se infiltrado, ou se os elementos existentes tenham se
tornado menos funcionais:' Estas normas são tão vagas que o escopo para
interpretá-las é virtualmente ilimitado, e deve-se manter em mente conti­
nuamente que aqueles que as elaboraram seriam os homens com o poder de
interpretá-las. Não é dada nenhuma indicação sobre que aspectos da litur­
gia são considerados aqui; não é dada nenhuma indicação do significado de
"menos funcional" (quanto menos é "menor"?), ou se "funcional" refere-se
à função original ou a uma nova que tenha sido adquirida.
79Introdução à edição Cabrol do Missal Romano.
80 A Vindication of the Buli "Apostolicae Curae" (Londres: Longmans, Green e co., 1898),
pp. 42s.
38 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

O Artigo 21 refere-se, naturalmente, à liturgia em geral, mas referência


específica é feita à missa no artigo 50:

O rito da missa deve ser revisado de forma que a natureza intrínseca e


o propósito das suas várias partes, como também a conexão entre elas,
possam ser mais claramente manifestos, e a participação ativa e devota
dos fiéis possa acontecer mais facilmente. Para este propósito, os ritos
devem ser simplificados, enquanto o devido cuidado é tomado para pre­
servar sua substância. Elementos que, com o passar do tempo, vieram a
ser duplicados, ou foram adicionados com apenas uma pequena vanta­
gem devem agora ser descartados. Onde a oportunidade assim permite
ou a necessidade exige, outros elementos que tenham sido prejudica­
dos pelos acidentes da história deverão ser agora restaurados à norma
anterior dos Santos padres.

Aqueles que leram meu livro Cranmer's Godly Order vão ficar imediata­
mente impressionados pelo fato de que o próprio Thomas Cranmer poderia
ter escrito esta passagem como base para a sua própria "reforma" da liturgia
católica - ou seja, a criação do culto de oração Anglicano. Não há nenhum
ponto aqui que o Arcebispo apóstata de Cantuária (1489-1556) não tenha
alegado implementar. Um observador anglicano no Concílio Vaticano II,
o Arquidiácono Bernard Pawley, elogiou a maneira com que a reforma li­
túrgica após o Concílio Vaticano II não só corresponde, mas até mesmo
ultrapassou, a reforma de Thomas Cranmer81 . Existe uma correspondên­
cia muito próxima entre as orações que Cranmer considerou terem sido
acrescentadas à missa "com pouca vantagem" (quase invariavelmente ora­
ções que tornavam explicito o ensino católico) e aquelas que os membros
do Consilium, que implementaram as normas do Vaticano II [com a ajuda
de conselheiros protestantes], também decretaram terem sido acrescenta­
das "com pouca vantagem" e "devem ser descartadas". A correspondência
entre a reforma de Thomas Cranmer e aquelas do Consilium do padre Bug­
nini fica clara no capítulo XXV do meu livro Pape Paul's New Mass (A Nova
Missa do Papa Paulo), onde as duas reformas são colocadas em colunas pa­
ralelas com o Missa Tradicional em Latim codificada perpetuamente por
São Pio V (1566-1572).
O Artigo 21 da CSL, juntamente com tais artigos como o 1, 23, 50 e 62,
têm servido como um mandato para o objetivo supremo dos revolucioná-
81B. Pawley, Rome and Canterbury through Four Centuries (Londorn: Mowbray, 1974), p.
349.
14. Uma Liturgia em permanente evolução 39

rios litúrgicos - uma liturgia em permanente evolução. Em setembro de


1968 o boletim da Arquidiocese de Paris, Presence et Dialogue, fez um apelo
a uma revolução permanente nas seguintes palavras: "Já não é possível,
em um período em que o mundo está se desenvolvendo tão rapidamente,
considerar os ritos como definitivamente fixos de uma vez por todas. Eles
precisam ser regularmente revisados:' Esta é precisamente a consequência
contra a qual o bispo Staffa alertara como inevitável no Concílio Vaticano II,
no discurso de 1962 citado acima (Detonando as bomba-relógio, p. 28). Uma
vez que a lógica do artigo 21 é aceita, não pode haver nenhuma alternativa
a uma liturgia em permanente evolução.
Os periti do Concílio estabeleceram o periódico Concilium, que foi, para
todos os efeitos, seu porta-voz oficial (o periódico não deve ser confundido
com a Comissão, Consilium, que é escrita com um "s"). O Cardeal Heenan
comentou:

O Magistério ordinário do Papa é exercido em seus escritos e discursos.


Mas hoje o que o Papa diz é de nenhuma maneira aceito como autori­
dade por todos os teólogos católicos. Um artigo no periódico Concilium
tem pelo menos igual chance de ganhar o respeito deles quanto uma en­
cíclica papal. O declínio do Magistério é um dos desenvolvimentos mais
significativos na Igreja pós-conciliar. 82

O Cardeal fez este comentário em maio de 1968, e sua precisão foi de­
monstrada dramática e deprimentemente dois meses mais tarde quando a
Encíclica Humanae Vitae (25 de julho de 1968) foi rejeitada e desprezada
publicamente por centenas de teólogos católicos ao redor do mundo, os
quais, em quase todos os casos, mantiveram suas posições como professo­
res oficiais da Igreja Católica. Escrevendo no Concilium em 1969, o padre
H. Rennings, decano de estudos do Instituto Litúrgico de Trier, declarou:

Quando a Constituição afirma que um dos objetivos é "adaptar mais ade­


quadamente às necessidades dos nossos tempos as instituições que estão
sujeitas à alteração� (Art. 1; ver também Arts. 21, 23, 62), ela exprime
claramente os elementos dinâmicos presentes na ideia de liturgia do
Concílio. As "necessidades do nosso tempo" podem sempre ser melhor
compreendidas e, portanto, exigem outras soluções; as necessidades da
próxima geração podem novamente levar a outras consequências para
o modo como o culto deveria operar e ser adequado à atividade global
82The Tablet, 18 de maio de 1968.
40 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

da Igreja. O princípio básico da Constituição pode ser resumido como a


aplicação do princípio de uma Igreja que está constantemente em estado
de reforma (ecclesia semper reformanda) à liturgia que está sempre em
estado de reforma (liturgia semper reformanda). E a renovação implícita
não deve ser entendida como limitada à eliminação de possíveis abusos,
mas como aquela renovação sempre necessária de uma Igreja dotada de
todo o potencial que deve levar à plenitude e pluriformidade. É um erro
pensar a reforma litúrgica como um movimento de limpeza ocasional
que resolve problemas litúrgicos seguindo-se de um outro período de
repouso.83

Isso dificilmente poderia ser mais explicito. É claro que o Cardeal Hee­
nan não falava inteiramente em tom de brincadeira quando comentou:

Há uma certa justiça poética na humilhação da Igreja Católica nas mãos


dos anarquistas litúrgicos. Os católicos costumavam rir dos anglicanos
por causa de sua divisão entre "alta" e "baixa"... A velha jactância de
que a missa é a mesma en:i toda parte e de que os católicos ficam felizes
com qualquer padre que a celebre não é mais verdade. Quando em 7 de
dezembro de 1962 os Bispos votaram esmagadoramente (1922 contra 11)
a favor do primeiro capítulo da Constituição sobre a Liturgia, eles não
perceberam que estavam iniciando um processo que, após o Concílio,
iria causar confusão e amargura em toda a Igreja.84

O Padre Joseph Gelineau foi descrito pelo Arcebispo Bugnini corno um


dos "grandes mestres do mundo litúrgico internacional"85• Em seu livro
Demain la liturgie, o padre Gelineau nos informa que:

Seria falso identificar esta renovação litúrgica com a reforma dos ritos,
decidida pelo Concílio Vaticano II. Essa reforma retrocede muito mais e
vai muito além das prescrições conciliares (elle va bien au-delà). A litur­
gia é uma oficina permanente (la liturgie est un chantier permanent). 86

Este conceito de urna liturgia em permanente evolução - "a liturgia é


urna oficina permanente" - é de importância crucial. O ideal de São Pio V
da uniformidade dentro do rito romano está agora sendo deixado de lado,
para ser substituído por um ideal de "pluriformidade" em que a liturgia
83Conciliurn, fevereiro de 1971, p. 64.
84Heenan, p.367.
85Bugnini, p. 221.
86]. Gelineau, Demain la liturgie (Paris: Les Editions du Cerf, 1977), pp. 9s.
15. A instrução ofusca a adoração 41

deve ser mantida em um estado de fluxo constante, resultando inevitavel­


mente no que o Cardeal Ratzinger descreveu com perfeita precisão como
"a desintegração da liturgia".
O desejo do padre Rennings de uma liturgia semper reformanda - "uma
liturgia sempre a ser reformada" - é uma interpretação legítima da CSL?
Quando ele fala na "ideia conciliar de liturgia", ele quer dizer, claro, a ideia
da Comissão do Bugnini, que esboçou a CSL e o Consilium do Bugnini,
que foi oficialmente incumbido de implementá-la. Na prática isto converge
para a mesma coisa, poderia-se mesmo dizer para a mesma pessoa: Pa­
dre Bugnini. Como secretário do Consilium, pode então utilizar as bombas­
relógio que tinha inserido em seu esboço do schema precisamente como
havia pretendido utilizá-las, para impor mudanças radicais não pretendi­
das pelo Papa João XXIII e pelos bispos que aprovaram a CSL.

15. A instrução ofusca a adoração

Uma outra bomba-relógio está contida no Artigo 33: "Embora a litur­


gia sagrada seja acima de tudo o culto da Divina Majestade, ela do mesmo
modo contém abundante instrução para os fiéis:' Preste bastante atenção
na palavra "embora". A natureza essencial da liturgia como um ato solene
de adoração oferecida ao Pai Eterno parece estar salvaguardada - mas na
prática, pouco mais se ouviu falar de "o culto da Divina Majestade", porém
muito se ouve sobre a "instrução abundante do fiel:' Como foi mencionado
anteriormente, a tragédia do movimento litúrgico foi o fato de que ele tor­
naria este aspecto secundário da liturgia o aspecto principal.
Para o protestante, é a palavra escrita da Bíblia que é de suma importân­
cia na adoração; é para receber essa palavra escrita em leituras e pregação e
reagir, louvando a Deus em orações e hinos que os protestantes se reúnem.
Por outro lado, o católico participa da missa primeiramente oferecendo,
adorando e então recebendo o próprio Verbo Incarnado. Aqueles que de­
sejam mudar a missa por causa da convergência ecumênica têm podido
utilizar o Artigo 33 para adicionar ênfase considerável à parte de instrução
da missa, enquanto a proeminência dada ao sacrificio tem sido considera­
velmente diminuída. Xavier Rynne, que escrevia para o New Yorker, aponta
com satisfação que a CSL

estabelece a função da Palavra de Deus na adoração litúrgica, colocando


ênfase nas Escrituras, como compreendido pela teologia bíblica moderna,
42 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano fI

e fornecendo desse modo uma ponte realística para um diálogo com as


igrejas Protestantes, cuja a adoração foi sempre bíblica e não sacramen­
tal. 87

A conclusão de Rynne conforma-se perfeitamente com o que foi expli­


cado no começo deste livro: a tragédia do Movimento Litúrgico foi que
transformaria o aspecto pedagógico, ou educativo da liturgia no aspecto
principal.
O Artigo 34 da CSL afirma que a liturgia reformada deve ser "distin­
tiva por uma nobre simplicidade:' Não há, não é necessário dizer, nenhuma
tentativa de explicar precisamente o que constitui "uma nobre simplici­
dade". A liturgia deve ser "curta" - mas o quão curta? A liturgia deve ser
"sem repetições inúteis" - mas quando é que uma repetição se torna inú­
til? (As monótonas repetições na Missa Nova, que foram introduzidas no
Salmo Responsorial e na Oração dos Fiéis são, portanto, presumivelmente
repetições úteis.) O Artigo 34 também insiste que os novos ritos devem "es­
tar dentro da capacidade de compreensão do povo". O que significa aqui
a palavra "povo"? Universitários, analfabetos ou um meio-termo entre es­
ses grupos? Qualquer coisa que alguém não consiga compreender deve ser
excluída? A amplitude que este artigo deu para o Consilium dificilmente
precisa de explicação.
O Artigo 37 afirma que "a Igreja não deseja impor uma uniformidade rí­
gida em assuntos que não envolvem a fé ou o bem de toda a comunidade".
Ele explica que qualquer coisa no modo de vida de raças e povos variados
que "não é indissoluvelmente ligada à superstição ou erro, ela [a Igreja]
estuda com simpatia e, se possível, preserva intacta. Às vezes, na verdade,
ela admite que tais coisas sejam introduzidas na liturgia em si, desde que
se harmonizem com seu verdadeiro e autêntico espírito". Em termos prá­
ticos, isto significou uma pluriformidade sem restrições - com uma única
exceção. E neste caso a mais rígida uniformidade prevalece na esmagadora
maioria das dioceses do mundo ocidental. É a rígida uniformidade de não
permitir a Missa Tradicional em Latim ("Tridentina") codificada por São
Pio V, apesar do apelo aos Bispos do mundo feito pelo Papa João Paulo II
em seu Motu Proprio Ecclesia Dei, de 11 de julho de 1988:

A todos os fiéis católicos que se sentirem ligados a formas litúrgicas e


disciplinares anteriores da tradição Latina, quero manifestar a minha
87X. Rynne, A Segunda Sessão (Londres: Herder & Herder, 1964), p. 305
16. O protestantismo e a Missa 43

vontade de facilitar sua comunhão eclesial mediante medidas necessá­


rias para garantir o respeito a suas legítimas aspirações. Nesta matéria,
peço o apoio dos bispos e de todos os que estão empenhados no ministé­
rio pastoral da Igreja... além disso, em toda a parte deverão ser respei­
tados os sentimentos de todos aqueles que se sentem ligados à tradição
litúrgica latina, mediante uma ampla e generosa aplicação das diretri­
zes, já há tempos decretadas pela Sé Apostólica, para o uso do Missal
Romano segundo a edição típica de 1962.

O Santo Padre não poderia ter feito sua vontade mais clara, mas tal é a
falta de respeito pelo Papa pela esmagadora maioria dos Bispos do mundo -
e o que pode ser descrito também com precisão como o ódio pela tradição -
que a missa de acordo com o Missal de 1962 (isto é, a Missa Tradicional em
Latim, também chamada Missa Tridentina) é permitida por eles em menos
de um por cento das paróquias católicas de Rito Romano em todo o mundo;
e mesmo onde os Bispos autorizam tais celebrações, estas às vezes são agen­
dadas em uma localização inconveniente em uma hora inconveniente e só
uma vez por mês ou uma vez por trimestre e muitas vezes nem mesmo no
domingo. De fato, de acordo com a Comissão de Cardeais de 1986, criada
para examinar o funcionamento do indulto de Quattuor Abhinc Annos de
1984, nenhum sacerdote do Rito Romano precisa de permissão para usar o
Missal de 1962 ao celebrar a Missa em latim. 88

16. O protestantismo e a Missa

A Missa Tradicional em Latim parece ser a única coisa no modo de vida


de tantos povos católicos em todo o mundo que está tão "ligada à supers­
tição e ao erro" que quase todos os bispos consideram que não pode ser
admitida na liturgia. Esta tem sido historicamente a opinião unânime de
toda seita protestante - mas alguns agora têm uma visão muito diferente
quando se trata da "liturgia reformada".
A Igreja Ultra Evangélica da Confissão de Augsburg/Alsácia-Lorena emi­
tiu um comunicado após a reunião de seu Consistório Superior em 8 de de­
zembro de 1973, permitindo que seus membros recebessem a sagrada co­
munhão em igrejas católicas: "Damos grande importância ao uso das no­
vas orações [da liturgia católica], com as quais nos sentimos em casa, e
que têm a vantagem de dar uma interpretação diferente do que estávamos
88Veja o Apêndice III.
44 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

acostumados a atribuir ao catolicismo à teologia do sacrifício. Estas orações


convidam-nos a reconhecer uma teologia evangélica do sacrificio."89 Dr. M.
G. Siegvalt, professor de Teologia Dogmática na faculdade protestante da
Universidade de Estrasburgo, testemunhou que "nada na missa renovada
º.
precisa realmente incomodar um protestante evangélico"9 O teólogo pro­
testante Roger Mehl escreveu na edição de 1O de setembro de 1970 do Le
Monde:

Se levarmos em conta a evolução decisiva na liturgia eucarística da Igreja


Católica, da opção de substituir o Canon da missa por outras orações eu­
carísticas, de expurgar a ideia de que a missa é um sacrificio e da possi­
bilidade de receber a comunhão sob ambas as espécies, então não existe
justificação mais para igrejas reformadas proibirem seus membros de
participar da Eucaristia em uma Igreja Católica.

Um bispo anglicano, Dr. John Moorman, comentou: "Ao ler o schema


sobre a Liturgia, e ao ouvir o debate sobre ele, não pude deixar de pensar
que, se a Igreja de Roma continuasse a aperfeiçoar o Missal e o Breviário
por tempo suficiente, um dia inventariam triunfalmente o Livro Comum de
Oração:'91 A justiça da observação do Dr. Moorman pode ser demonstrada
se considerarmos as principais diferenças que teriam sido notadas antes do
Vaticano II entre a Missa católica e um Culto de comunhão protestante:

1. A Missa Católica - latim. Culto de Comunhão Protestante - vernáculo.

2. Católica - muito da liturgia inaudível. Protestante - todo o culto au­


dível.

3. Católica - apenas duas leituras. Protestante - geralmente três leituras.

4. Católica - nenhum leitor leigo. Protestante - presença de leitores lei­


gos.

5. Católica - claramente realizando ritos solenes sobre um altar vol­


tado para o leste. Protestante - uma refeição servida sobre uma mesa,
voltada frequentemente para a congregação. (A celebração da missa
voltada para o povo é uma pura inovação e uma ruptura completa
89L'Eglise en Alsácia, de janeiro de 1974.
90Le Monde, 22 de novembro de 1969.
91Moorman, p. 47.
17. A proibição de ajoelhar-se para a sagrada comunhão 45

com tradição católica tanto no rito romano quanto no oriental. Não


é exigido, recomendado ou mesmo mencionado na Constituição do
Concílio Vaticano II para a Sagrada Liturgia. Veja The Catholic Sanc­
tuary and the Second Vatican Council.)
6. Católica - ajoelhado durante longos períodos da cerimônia, particu­
larmente para a recepção da comunhão. Protestante - pouco tempo
ajoelhado; a comunhão é frequentemente recebida em pé.

7. Católica - o povo recebe a Sagrada Comunhão na boca. Protestante


- a comunhão é dada na mão.

8. Católica - Comunhão recebida somente sob uma espécie. Protestante


- comunhão recebida sob ambas as espécies.

9. Católica - frequente referência litúrgica à doutrina do sacrificio e


da Presença Real. Protestante - nenhuma referência ao oferecimento
de algum sacrificio além daquele da congregação oferecendo-se a si
mesma. Algumas referências ao Corpo e Sangue de Cristo que pode­
riam dar a impressão de crença na Presença Real.

17. A proibição de ajoelhar-se para a sagrada comunhão

Nenhuma dessas diferenças seria aparente em uma típica celebração pa­


roquial católica nos Estados Unidos hoje. No que se refere ao nº 6 - receber
a comunhão de pé - no final de 2002, a Conferência Episcopal dos Estados
Unidos decretou, aparentemente em deferência ao princípio de uma liturgia
em permanente evolução, que os fiéis devem receber a Sagrada Comunhão
de pé. Decisões de uma conferência episcopal não são vinculativas para
bispos individuais, mas mesmo bispos relativamente conservadores como
o arcebispo Charles Chaput, de Denver, curvaram-se à conferência, que por
sua vez foi levada por seus chamados especialistas litúrgicos, seus periti, a
impor esse ditame. A edição de 5 de fevereiro do Denver Catholic Register
trazia uma exortação de banalidade quase heroica do Arcebispo:

Na revisada Instrução Geral sobre o Missal Romano, a Santa Sé indicou


que a uniformidade de gestos deve ser respeitada neste momento de uma
maneira específica. O gesto específico seria determinado pela Conferên­
cia Espiscopal apropriada, e isso tem sido feito nos Estados Unidos. Os
46 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Bispos determinaram que não se deveria ajoelhar ou fazer genuflexão.


Nós recebemos a comunhão em pé. Antes de receber, nós curvamos a ca­
beça em adoração, e podemos dizer "Amém" e receber o corpo de Cristo
na língua ou na mão. Isto será visto como novidade por muitos dos fiéis,
porque o ato formal de reverência não foi amplamente promovido no
passado. Este ato nos ajuda a evitar a indiferença em receber a Sagrada
Comunhão. Permite-nos reconhecer o que estamos prestes a fazer: to­
mar sob a forma de pão e vinho, o corpo ressurreto e o sangue de Cristo.
Se nós nos tornamos distraídos durante a procissão, o gesto nos ajuda
a nos lembrarmos. Embora o ato de reverência seja novo para alguns,
pode ser "diferente" para os outros. No passado, poderíamos fazer um
sinal da Cruz, uma reverência profunda (dobrando a cintura), uma ge­
nuflexão ou simplesmente ajoelhar-se como nosso ato de adoração. A
Igreja agora nos pede para submeter nossa preferência pessoal à sabe­
doria dela. Alguns de nós precisará de tempo para lembrar-se de fazer
isto. Outros podem não querer mudar o gesto de reverência que estão
usando. Em todos os casos, precisamos mostrar deferência para com a
Igreja.

Raramente vi tantos non sequitur em um espaço tão curto. Se ficar de pé


nos ajuda a evitar a indiferença em receber a Sagrada Comunhão, ajoelhar­
se promove a indiferença? Se ficar de pé permite-nos reconhecer que esta­
mos prestes a tomar sob a forma de pão e vinho, corpo e sangue de Cristo
ressuscitado, ajoelhar nos impede tal reconhecimento? Se ficar de pé nos
ajuda a lembrar-nos, ajoelhar inibe a lembrança? O Arcebispo nos informa
que "o ato de reverência será novo para alguns". Que disparate absurdo!
Permanecer de pé não é um ato de reverência e nunca foi um ato de reve­
rência. Seria proveitoso para o Arcebispo ler um artigo escrito pelo padre
Regis Scanlon, OFM, na edição de 1994 de agosto-setembro da Homiletic
and Pastoral Review. O teólogo franciscano nos lembra:

Há uma boa razão para a Igreja reservar a genuflexão para seu ato ofi­
cial de reverência para o Santíssimo Sacramento. Não é qualquer ato que
pode ser usado para um ato de adoração. Por exemplo, não seria possível
usar o ato de ficar de pé como um ato de adoração em nossa cultura nem
na cultura oriental. Nós ficamos de pé quando um bispo ou o presidente
dos Estados Unidos entra no recinto, mas nós não adoramos nenhum
deles. Similarmente, hoje, muitos curvam-se na presença de dignitários
importantes e da autoridade humana, mas não os adoram. Isto também
acontece nas culturas orientais hoje em dia... o ato de dobrar o joe­
lho diante de Jesus Cristo não é apenas um ato circunstancial, ou um
18. Um outra bomba-relógio - "variações e adaptações legítimas" 47

ato que é baseado puramente na cultura. Ao contrário, ele transcende a


cultura porque é um ato que tem significado bíblico, tradicional e cós­
mico. Deus Pai, diz, por meio de Isaías: "A mim todo joelho se dobrará"
(Isaías 45:23). E São Paulo diz, "porque está escrito: 'Como eu vivo, diz o
senhor, todo joelho deve dobrar-se diante de mim "' (Rom 14:11). Nova­
mente, São Paulo afirma: "em nome de Jesus todo joelho deve dobrar-se
nos céus, na terra e debaixo da terra" (Filipenses 02:10). E este "ajoelhar­
se", ou "dobrar o j oelho;' é o ato de adoração do Santíssimo Sacramento
que se desenvolveu na tradição da Igreja e que os fiéis adotaram através
dos tempos. São Francisco de Assis, por exemplo, disse em uma carta no
século XII a todos os superiores dos frades menores: "Quando o padre
estiver oferecendo o sacrificio no altar ou o Santíssimo Sacramento es­
tiver sendo transportado, todos devem ajoelhar-se e dar louvor, glória e
honra a Nosso Senhor e Deus, vivo e verdadeiro."

18. Um outra bomba-relógio destrutiva -


"variações e adaptações legítimas"

O princípio enunciado no Artigo 37 da CSL é expandido no Artigo 38 e


constitui uma bomba com capacidade de destruição quase equivalente ao
princípio da permanente evolução litúrgica. "Desde que seja mantida a uni­
dade substancial do Rito Romano, a revisão dos livros litúrgicos deve permi­
tir variações legítimas e adaptações para diferentes grupos, regiões e povos,
especialmente em terras de missão:' (Excluindo, claro, qualquer grupo que
deseje manter a Missa Tradicional em Latim, codificada por São Pio V em
1570.) A menção das terras de missão aqui é altamente significativa, pois
a maioria dos padres presumiria que era onde essas adaptações acontece­
riam. No entanto, o texto cuidadosamente redigido não diz "apenas", mas
"especialmente" em terras de missão. O Artigo 38 realmente afirma que "a
unidade substancial do rito romano" deve ser mantida, mas não se indica
o que "unidade substancial" significa. O Concílio deveria decidir, e para os
membros do Concílio (como para Humpty Dumpty), as palavras significam
o que quer que eles queiram que elas signifiquem.92

92
"Quando uso uma palavra;• disse Humpty Dumpty, num tom bastante desdenhoso, "ela
significa apenas o que eu escolho que signifique - nem mais nem menos." (Lewis Carroll,
Through the Looking Glass, Capítulo VI).
48 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Uma vez que este princípio de adaptação é aceito, não há nenhuma parte
da missa que pode ser considerada imune à mudança. Mesmo as palavras
da consagração foram alteradas para deixa-las muito próximas da fórmula
adotada por Thomas Cranmer em sua reforma93 .
O Artigo 38 não encerra de maneira alguma o assunto da adaptação.
Sem dar a menor ideia do que se quer dizer com "variações e adaptações
legítimas", a CSL passa ao Artigo 40 em que afirma que em "alguns lugares
e circunstâncias, entretanto, uma adaptação ainda mais radical da liturgia
é necessária:' Sem explicar o que significa uma "adaptação radical", a ne­
cessidade de uma "adaptação ainda mais radical" é postulada! Mais radical
do que o quê? Uma vez que a bomba explodiu, a devastação que se desen­
cadeia não pode ser controlada. Os Padres Conciliares, como o cientista
Victor Frankenstein, deram vida a uma criatura que tem vida e vontade
próprias e sobre a qual eles não têm poder.

19. Abusos litúrgicos fora de controle

Já em 1965, o cardeal Lercaro, chefe (ou testa-de-ferro) do Concílio, achou


necessário enviar uma carta aos bispos do mundo implorando-lhes para
conter a onda de adaptações radicais não autorizadas que colocavam em
risco o que ele considerava ser a reforma oficial adequada. Ele pode ho­
nestamente não ter compreendido que essas adaptações não oficiais eram
simplesmente a extensão lógica das adaptações radicais oficiais consagra­
das nos artigos da CSL que foram citados. O Consilium estava - o cardeal
assegurou aos bispos - engajado em "uma reforma geral da liturgia que
atingia as suas próprias fundações". Tal reforma "não poderia ser concluída
em um só dia". As novas normas tinham sido "concebidas com uma certa
elasticidade, que poderia permitir a adaptação e consequentemente grande
eficácia pastoral. Isso não significava que todo sacerdote estava livre para
inventar qualquer ritual que o agradasse". Cardeal Lercaro afirmou que ele
não desejava que "o sentido de fraternidade, de uma familia reunida" - que
já tinha feito progressos e que deveria se desenvolver ainda mais - sufo­
casse o "sentido de hierarquia na Igreja". De uma forma ou de outra os
Bispos precisavam "colocar freios em experimentos arbitrários, nesta va­
riedade descontrolada e mesmo no perigo que os leigos... lamentassem e
93M. Davies, Cranmer' Godly Order (Ft. Collins, CO: Roman - Roman Catholic Books,
edição 1995), apêndice III.
19. Abusos litúrgicos fora de controle 49

murmurassem como fizeram os filhos de Israel contra Moisés e Arão:' Ele


não quis, é claro, insinuar que "a unidade consistia em sufocar ou eliminar
a variedade" - dificilmente poderia insinuar isso, já que a CSL pedira varie­
dade e seu próprio Consilium já estava interpretando esse pedido com uma
liberalidade muito além de qualquer coisa com que a maioria dos Padres
pudesse ter sonhado. No entanto, o Cardeal Lercaro insistiu que não se de­
veria permitir que esta variedade degenerasse "em incoerência". O Cardeal
pediu paciência, instando os bispos a pôr fim às

experimentações pessoais, prematuras e nocivas, à quais Deus não aben­


çoa e que, em consequência, não podem resultar em frutos duradou­
ros; pelo contrário, elas ferem a piedade dos fiéis e a renovação que
tem sido tão devotamente empreendida. Elas também prejudicam nossos
próprios esforços, porque são iniciativas gerais, arbitrárias, que acabam
lançando uma luz desfavorável sobre o trabalho realizado com cautela,
com senso de responsabilidade, com prudência e com uma verdadeira
compreensão das necessidades pastorais.94

Nota-se que estas surpreendentes admissões foram feitas em 1965 e que


até naquela época o princípio de uma liturgia em constante evolução e le­
gitimamente variada estava se espalhando com uma fúria desenfreada por
toda a Igreja Latina. Mais uma vez: há uma semelhança impressionante
com a reforma de Cranmer, ou neste caso, com a situação imediatamente
antes da introdução do Livro de Oração de 1549. Na Inglaterra do século
16, numerosos ataques ao ensino tradicional eucarístico foram publicados,
que foram criticados pelas autoridades, mas contra os quais não foram to­
madas medidas efetivas. O Conselho do rei emitiu ordens de restrição a
inovações na liturgia, ao mesmo tempo em que deixou transparecer que
tais inovações não lhe eram desagradáveis. O rei, como o Cardeal Lercaro,
até mesmo achou necessário emitir uma proclamação pedindo aos refor­
madores radicais para "aquietarem-se e ficarem em silêncio com relação às
nossas instruções - e não se precipitarem e por causa de sua imprudência
tornarem-se os maiores empecilhos da mudança" 95.
O Consilium, assim como o Conselho do rei Edward VI, tomou pouca ou
nenhuma ação contra os inovadores "não oficiais" - na verdade, como po­
deria ter feito isso? Os inovadores oficiais e não oficiais seguiam a mesma
94
Notitiae, nº 9-10, Set-out de 1965, p. 257 ff.
95
cf. Cranmer's Godly Order, Capítulo XI.
50 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

linha, no mesmo campo, perseguiam os mesmos objetivos por rotas conver­


gentes. Não havia nenhum desacordo com relação ao princípio; não havia
nenhuma discordância de que deveria haver variedade, adaptação e evo­
lução contínuas. A divisão em matéria de princípio encontra-se entre os
inovadores oficiais e não-oficiais por um lado, e os Tradicionalistas do ou­
tro, que desejavam manter a unidade do Rito Romano.

20. Legalize os abusos!

A carta do Cardeal Lercaro não fez nada para deter a propagação de "ini­
ciativas arbitrárias". Roma adotou a tática de acabar com inovações ilícitas
tornando-as lícitas e oficiais. A comunhão era dada na mão ilicitamente
- que seja dada na mão oficialmente! A comunhão era ilicitamente dis­
tribuída por leigos - nomeiem-se então leigos ministros extraordinários
da sagrada comunhão. Aqueles que consideravam que a essência da Missa
consistia em ser uma refeição comum começaram (não sem lógica) a re­
ceber a Comunhão em mais de uma Missa no mesmo dia -, então deixe
que isto seja permitido em muitas circunstâncias. Os sacerdotes começa­
ram usando ilicitamente orações de improviso - então deixe a oração de
improviso ser prevista pela reforma oficial. Orações eucarísticas não ofici­
ais foram compostas - então que se providenciem três novas orações eu­
carísticas. A composição das orações eucarísticas não-oficiais continuou -
portanto, acrescentem-se mais cinco. A comunhão era dada sob as duas es­
pécies na missa dominical, desafiando a legislação do Vaticano - a prática
foi legalizada, e agora não se podia alegar que a lei relativa à comunhão, sob
ambas as espécies, estava sendo desafiada. A lei litúrgica foi desobedecida
ao permitir que as mulheres acolitassem no santuário. Acólitos femininos
foram legalizados, então a lei permitindo somente acólitos masculinos já
não estava sendo desobedecida - a disciplina litúrgica havia sido restau­
rada!
A lógica dessa política não poderia passar despercebida pelos inovado­
res não-oficiais: deixe-os introduzir e disseminar suas fantasias litúrgicas,
e o Vaticano acabaria por legalizá-las. Mesmo que Roma não legalizasse
os abusos, a possibilidade de medidas serem tomadas contra os inovadores
não-oficiais era remota, particularmente após a introdução da Missa Nova
em 1969. Após essa data, havia alguns padres que "ilicitamente" continu­
aram a rezar a Missa Tradicional em Latim, então aqueles no Vaticano e
20. Legalize os abusos! 51

em outros lugares com uma propensão para a repressão foram capazes de


encontrar amplo escopo para satisfazer seus desejos, perseguindo estes sa­
cerdotes para fora de suas paróquias.
A declaração do Cardeal Lercaro de "circunspecção, um senso de res­
ponsabilidade, prudência e uma verdadeira compreensão das necessidades
pastorais" assume um sentido vazio agora que os frutos da sua reforma ofi­
cial estão disponíveis para qualquer um ver. Estes frutos foram descritos
em termos mordazes mas realistas pelo Monsenhor Gamber:
A reforma litúrgica, recebida com tanto idealismo e esperança igual­
mente por muitos sacerdotes e leigos, acabou por ser uma destruição
litúrgica de surpreendentes proporções - um desastre que piora a cada
ano que passa. Em vez da esperada renovação da Igreja e da vida ca­
tólica, assistimos agora ao desmantelamento dos valores e da piedade
tradicionais sobre os quais repousa a nossa fé. Em vez da fecunda reno­
vação da liturgia, o que vemos é uma destruição das formas de missa que
haviam se desenvolvido organicamente ao longo de muitos séculos. 96

As bombas-relógio inseridas na CSL explodiram com um poder destru­


tivo muito superior ao que os revolucionários que as plantaram poderiam
ter se atrevido a esperar. Suas reverberações continuarão a se espalhar en­
quanto sobrar alguma coisa à qual o nome "oficial" possa ser anexado. O
padre Bugnini foi recompensado por sua parte na reforma com a mitra de
arcebispo. Ele afirmou em 1974 - e quem poderia contestar sua afirmação
- que "a reforma litúrgica é uma grande conquista da Igreja Católica, e tem
dimensões ecumênicas, desde que as outras igrejas e denominações cris­
tãs vejam nela não somente algo para ser admirado em si, mas igualmente
como um sinal de ainda mais progresso no porvir"97. Como sempre acon­
tece, cada concessão aos revolucionários é seguida por demandas novas
e mais radicais. Poderia se imaginar que em 1971 já tivesse havido bas­
tante variedade e adaptação legítimas para todos os gostos. Longe disso!
Escrevendo no Concilium, o Padre Andrew Greeley, embora lamentando a
"loucura ocasional" da liturgia "subterrânea", considera a liturgia renovada
"uma criação de quem quer na sua experiência litúrgica mais daquilo que
se pretendia transmitir pelo simbolismo litúrgico originalmente - ou seja,
uma íntima e intensa amizade:' Entre os exemplos de "loucura ocasional"
citada pelo Padre Greeley estão a "missa da maconha, missa com bolachas
96
Gamber, p. 9.
97
Notitiae, nº 92, April 1974, p. 126.
52 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

e uísque utilizados como elementos para a consagração, missas para ado­


lescentes com Coca-Cola e pães de cachorro-quente". No entanto, a posição
básica dos participantes de missas subterrâneas é, afirma o Padre Greeley,
"irrespondível". Ele afirma que "o subterrâneo é um julgamento nosso, so­
mos julgados por nossa incapacidade de compreender as implicações do
simbolismo da Eucaristia como uma refeição em familia. Se não fornecer­
mos uma refeição em familia para um número crescente de católicos, eles
fornecerão uma para si mesmos". 98
Como um exemplo final de uma bomba-relógio no texto da CSL - tornar­
se-ia tedioso enumerá-las todas - deve-se notar que embora afirmando que
o regulamento da liturgia é uma responsabilidade reservada à Sé Apostólica
(Artigo 22), autoridades eclesiásticas locais são positivamente incentivadas
a propor as "adaptações" que considerem necessárias (Artigo 40). Eles são
lembrados das limitações dos seus poderes de iniciativa, mas a possibilidade
desses poderes serem estendidos é mais do que implícita (Artigos 22 e 36).
Isto resultou em hierarquias de países como França e Holanda tornando-se,
para efeitos práticos, os únicos árbitros do que se ·vai ou não se vai permi­
tir - o que, de novo, na prática, significa que irão permitir tudo, menos a
Missa Tradicional em Latim. Os Bispos indianos, sob o pretexto de incul­
turação, na verdade "hinduizaram" a missa em seu pais. Eles trataram com
desprezo os protestos angustiados dos leigos; apelações a Roma por leigos
angustiados foram ignoradas.

21. A abolição do latim

Um obstáculo aparentemente intransponível para a revolução que as


bombas-relógio na CSL pretendiam iniciar foi o uso do Latim na liturgia.
Enquanto a língua latina permanecesse a norma, não poderia haver revo­
lução de fato. A língua Latina tem sido, como Dom Gueranger advertiu
em suas Instituições Litúrgicas (Vol. 1, eh. IV, 1840), um alvo principal dos
hereges litúrgicos:

O ódio à língua latina é inato no coração de todos os inimigos de Roma.


Eles a reconhecem corno o laço que une de católicos em todo o universo,
corno o arsenal da ortodoxia contra todas as sutilezas do espírito sectá-
98Concilium, de fevereiro de 1971, p. 66.
21. A abolição do latim 53

rio. Ternos de admitir que é um golpe de mestre do protestantismo ter


declarado guerra à língua sagrada. Se alguma vez conseguissem destrui­
lo, estaria bem a caminho da vitória.

Palavras proféticas de fato! A eliminação virtual da língua latina do Rito


Romano não só não era pretendida pelos padres de Concílio, mas a possibi­
lidade disso acontecer como resultado da CSL não teria sido levada a sério
por eles caso alguém a sugerisse. A este respeito, pelo menos, parece que
eles tinham feito suas intenções explícitas. O Artigo 36 afirma:

1. A lei particular permanecendo em vigor, o uso da língua latina deve


ser preservado nos ritos latinos.
2. Mas [e corno é importante esse "mas"] corno o uso da língua ma­
terna, seja na missa, na administração dos sacramentos, ou em outras
partes da liturgia, pode ser frequentemente de grande vantagem para as
pessoas, os limites de seu emprego podem ser estendidos. Esta extensão
será aplicada em primeiro lugar a leituras e diretivas e a algumas das
orações e cânticos, de acordo com os regulamentos sobre este assunto a
serem estabelecidos separadamente em capítulos posteriores.
3. Cabe à autoridade territorial competente mencionada no Artigo
22.2 decidir se e em que medida a língua vernácula deve ser usada de
acordo com estas normas; seus decretos devem ser aprovados, isto é,
confirmados pela Sé Apostólica. E, sempre que o procedimento pare­
cer ser necessário, esta autoridade deve consultar os bispos de regiões
adjacentes que utilizam a mesma língua.

Outras condições foram estabelecidas também, mas os pontos chaves


estão expressos aqui.
Um outro aspecto do Artigo 36 que sustenta o uso continuado do Latim
foi indicado pelo professor Louis Salleron. Não somente o Artigo 36 indica
especificamente que o Latim deve ser mantido nos ritos latinos (in ritibus
latinis servetur: o imperativo subjuntivo "servetur" indica um comando),
mas pode-se também dizer que indica isto de maneira negativa. Se os três
parágrafos citados pretendiam que o vernáculo se tornasse a norma, es­
creve o professor Salleron, "a construção do texto deveria ser invertida".
Teríamos então algo do gênero: "O uso de línguas vernáculas será intro­
duzido no rito latino.. . " e todas as exceções ou reservas a favor da língua
latina teriam então sido listados.99
99
Salieron, pp. 19-20.
54 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Esta observação é reforçada pela instrução no Artigo 36.3 que afuma


que a autoridade territorial competente pode decidir se e em que medida
o vernáculo deve ser usado, de acordo com as normas estabelecidas. O uso
da palavra "se" deixa bastante claro que o vernáculo não tem nunca a ne­
cessidade de ser utilizado. Similarmente, o Artigo 116 afirma:

A Igreja reconhece o Canto Gregoriano como próprio da liturgia ro­


mana: consequentemente, em igualdade de circunstâncias, terá primeiro
lugar nas ações litúrgicas. Outros tipos de música sacra, especialmente a
polifonia, de modo algum são excluídos das celebrações litúrgicas, desde
que estejam de acordo com o espírito da ação litúrgica, como estabele­
cido no Artigo 30.

Muito mais poderia ser escrito sobre este tema - mas com pouco propó­
sito. Talvez o latim, o canto gregoriano e a polifonia tenham quase desapa­
recido da maior parte das igrejas porque eles eram considerados obstáculos
para a participação ativa do povo, que a CSL tinha decretado que deveria
ter prioridade sobre todo o resto.

22. Resultados das reformas litúrgicas

Deus não permita, advertiu o Cardeal Heenan, que os periti tenham


o controle das comissões estabelecidas após o Concílio para interpretá-lo
para o mundo. Mas foi precisamente isto o que aconteceu! Os liberais ti­
nham forjado a Constituição sobre a Sagrada Liturgia como uma arma com
a qual iniciar uma revolução, e os Padres do Concílio tinham colocado esta
arma nas mãos dos revolucionários que a tinham forjado. O Arcebispo R.
]. Dwyer de Portland, do Oregon, observou, com o beneficio da visão em
retrospecto, que o grande erro dos Padres do Concílio foi "permitir que a
execução do Constituição caísse nas mãos dos homens que eram ou ines­
crupulosos ou incompetentes. Esta é a chamada 'Instituição Litúrgica', uma
vaca sagrada que age mais como um elefante branco que espezinha os es­
tilhaços de uma liturgia despedaçada com um notável abandono". 1 ºº
O Cardeal Heenan esteve presente na Capela Sistina para a demonstra­
ção do padre Bugnini de seu recém inventado rito experimental da missa
em 1967 (Missa Normativa), e ficou consternado com o que testemunhou.
Ele comentou:
1ººThe Tidings, 9 de julho de 1971.
22. Resultados das reformas litúrgicas 55

Em casa é não são só mulheres e crianças, mas também os pais de famí­


lias e rapazes que vêm regularmente à missa. Se fôssemos lhes oferecer
o tipo de cerimônia que vimos ontem na Capela Sistina nós logo ficaría­
mos com uma congregação em sua maioria de mulheres e crianças. 101
O Cardeal provou ser um verdadeiro profeta. Em 1976, um relatório
sobre o estado do catolicismo na outrora florescente arquidiocese de Li­
verpool admitiu que em muitas de suas igrejas as congregações consis­
tiam principalmente de crianças de escolas primárias, paroquianos de meia­
idade e idosos. "Um número vasto de jovens entre as idades de 15 e 25 che­
garam à conclusão de que a missa de domingo, do modo que ela é rezada
na maioria das paróquias, não tem nada a lhes oferecer:' 102 A profecia do
Cardeal Heenan foi confirmada também no Artigo 69 do documento de tra­
balho fornecido para o sínodo dos bispos europeus em Roma em 1999. Co­
mentando sobre as respostas recebidas de bispos na pesquisa pré-sinodal,
o artigo afirmava:
Certas respostas mencionam situações um tanto problemáticas. Em mui­
tos países do Ocidente, as celebrações litúrgicas são frequentadas quase
exclusivamente por crianças e idosos, especialmente mulheres. Os jo­
vens e pessoas de meia-idade são um número reduzido. Tal situação
corre o risco de projetar uma imagem de uma Igreja que é somente para
as pessoas idosas, as mulheres e as crianças.
Dificilmente é preciso comentar isto! As igrejas fechadas e a diminuição
das congregações são o fruto inegável da revolução litúrgica. Estatísticas
detalhadas que ilustram o colapso no comparecimento à missa no mundo
ocidental são fornecidos no Apêndice II.
A liturgia tradicional que formou a base da piedade popular foi varrida
em nome de uma mania insensata de novidade e convergência ecumênica.
A capacidade de destruição comum a todos os revolucionários não vem
acompanhada de nenhum talento comparável para a construção, mas isso
é algo que eles se recusam a admitir. Sua cegueira foi bem descrita pelo
professor James Hitchcock em um dos livros mais perspicazes já publicados
sobre o colapso da fé e da prática católica que se seguiu ao Concílio, um
livro que é tanto mais notável porque foi publicado em 1972, apenas três
anos depois da introdução da Missa que se destinava a regenerar uma Igreja
que, de fato, não precisava regenerar:
101 Este é um excerto do texto completo da sua intervenção que me foi dado pelo Cardeal.
2
10 The Tablet, 21 de fevereiro de 1976.
56 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Em geral, os radicais e muitos progressistas consideram a velha liturgia


da mesma forma que consideram a antiga piedade popular - desdenho­
samente - como uma coleção de práticas arcaicas, supersticiosas e ir­
relevantes que necessitam ser severamente purificadas e reestruturadas
por especialistas. A maioria dos reformadores litúrgicos, no entanto, se
eles alguma vez entenderam os mecanismos da liturgia antiga, não os
compreendem agora. Eles ignoram o fato de que este pretenso deserto
religioso atraiu um número maior de pessoas a observâncias diárias vo­
luntárias do que os ritos mais novos, um fato que pode ser explicado
somente por supor que os leigos piedosos são tolos irracionais. 103

O fato de que mesmo em 1966 o próprio Consilium ainda sustentava que


a permissão para um Cânon vernáculo nunca seria concedida a ninguém
indica que a revolução litúrgica havia feito uma conquista ainda mais rá­
pida durante e imediatamente após o Concílio do que havia sido planejada
pelos revolucionários litúrgicos. Um dos liturgistas radicais mais conhe­
cidos da França admitiu: "Nada na Constituição sobre a Liturgia nos deu
qualquer razão para supor que, quatro ou cinco anos mais tarde, um único
documento tornaria possível introduzir o Cânon em línguas modernas". 104
No prazo de dez anos havia também oito "orações eucarísticas oficiais"
adicionais em línguas modernas. Com o beneficio da visão retrospectiva,
lembrando o esmagador voto dos bispos em favor da Constituição sobre a
Sagrada Liturgia, o Arcebispo R] Dwyer lamentou:

Quem sonhou naquele dia que dentro de alguns anos, muito menos de
uma década, o passado latino da Igreja seria quase que completamente
expurgado, que ele seria reduzido a uma memória desvanecendo-se a
médio prazo? Esse pensamento teria nos horrorizado, mas parecia tão
além do reino do possível que chegava a ser ridículo. Então nós não o
levamos a sério e rimos dele. 105

23. Um desastre pastoral

Os efeitos das reformas se manifestam agora para todos verem - e o


mais evidente desses efeitos tem sido um declínio na frequência à missa, o
103]. Hitchcock, The Decline and Fall of Radical Catholicism (New York: Doubleday, 1972),
p. 178
104
Nouvelles Instructions pour la Reforme Liturgique (Paris, 1967), pp. 12s.
105Twin Circle, 26 de outubro de 1973.
23. Um desastre pastoral 57

que piorou na medida em que as reformas foram tornando-se mais radicais.


A frequência caiu de 41 % da população da França que frequentava a missa
em 1964 para 8% em 2002 - e, entre os jovens, apenas 2% assistem à missa
hoje106. Certamente seria impossível provar que todo o católico que deixou
de assistir à missa assim o fez porque não gosta das reformas litúrgicas. Os
liturgistas progressistas afirmam que muitos católicos não vão porque gos­
tariam que as reformas fossem ainda mais radicais! O que qualquer soció­
logo certamente poderia ter salientado é que interromper completamente
os costumes estabelecidos de qualquer comunidade de maneira tão drástica
e abrupta, particularmente uma comunidade na qual a estabilidade sempre
foi uma característica tão importante, certamente deve afrouxar os laços
que mantêm seus membros unidos.
Pastoralmente, a reforma foi um fiasco, um desastre. Que tipo de sucesso
pode ser atribuído a medidas pastorais que são seguidas por uma grande
proporção do rebanho - a quem elas pretendem ajudar - deixando o re­
dil para procurar novas pastagens? Tudo isso foi feito no interesse de uma
forma espúria d.e ecumenismo que não deixou a verdadeira unidade reli­
giosa nem um passo mais próxima. "Todas essas mudanças não têm senão
uma justificação", comentou o arcebispo Lefebvre, "um aberrante ecume­
nismo sem sentido que não vai atrair um único protestante para a fé, mas
que fará com que inúmeros católicos percam-na e instilará total confusão
nas mentes de muitos outros, que já não vão saber o que é verdade e o que
é falso".1º7 A completa precisão da avaliação do Arcebispo Lefebvre sobre
a natureza e os efeitos da reforma fica clara em um artigo escrito por um
jovem prelado italiano, Monsenhor Domenico Celada. Suas observações
apareceram no jornal italiano lo Specchio em 16 de maio de 1969. Desde
aquele dia, a situação que ele descreveu agravou-se - ano, após ano, após
ano:

A destruição gradual da liturgia é um fato triste já bem conhecido. Den­


tro de menos de cinco anos, a estrutura milenar do culto divino, que ao
longo dos séculos tem sido conhecida corno o Opus Dei foi desmante­
lada. O início foi a abolição do latim, perpetrada de forma fraudulenta.
1 6
º La Croix, 24 e 25 de dezembro, 2002. O mesmo relatório revela os fatos alarmantes de
que, enquanto em 1962 52% dos sacerdotes da França tinham menos de 50 anos de idade,
em 2000 a porcentagem foi de apenas 11 %. Em 1960, 595 padres foram ordenados; em 2000,
o número foi de 142.
107 World Trends, maio de 1974.
58 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

O Concilio tinha de fato claramente previsto que "o uso da língua latina
deve ser preservado", permitindo o uso do vernáculo em certos lugares,
em certos casos e em certas partes do rito. Contudo e desafiando a au­
toridade do Concílio, o latim foi suprimido em praticamente todos os
lugares, em todos os momentos e em todas as partes do rito. A língua
da Igreja foi abandonada, mesmo em funções litúrgicas internacionais.
Defende-se que a universalidade da Igreja deve ser salientada pelo uso,
em tais ocasiões, de tantas línguas quanto possível. O resultado é que - a
menos que estes sejam utilizados simultaneamente - todas as partes do
rito que não são no idioma do fiel, tornar-se-ão incompreensíveis para
ele. É o inverso de Pentecostes: enquanto em Jerusalém, o povo ex omni
natione, quae sub caelo est [de todas as Nações debaixo do céu] com­
preendeu as palavras dos Apóstolos, que estavam falando apenas uma
língua, hoje, quando todas as línguas diferentes são faladas, ninguém
pode entender nada. Em vez de Pentecostes, deveríamos falar de Babel.
Temos visto, durante estes últimos anos, a abolição daqueles gestos su­
blimes de devoção e piedade, tais como sinais da Cruz, ósculos no altar
que simboliza Cristo, genuflexões etc., gestos que o Secretário da Con­
gregação responsável pela reforma litúrgica, padre Annibale Bugnini, se
atreveu publicamente a descrever como "anacronismos" e "atos externos
cansativos". Em vez disso, uma forma pueril de rito foi imposta, ruidosa,
grosseira e extremamente entediante. E hipocritamente, nenhuma aten­
ção foi dada à perturbação e desgosto dos fiéis. O estrondoso sucesso
atribuído ao novo rito deveu-se ao fato de que uma parcela dos fiéis foi
treinada para repetir mecanicamente uma sucessão de frases que, pela
repetição, já perdeu seu efeito. Testemunhamos com horror a introdução
em nossas igrejas de paródias hediondas dos textos sagrados e de me­
lodias e instrumentos mais adequados a uma taverna. E o instigador e
defensor persistente destas chamadas "missas de juventude" não foi ou­
tro senão o padre Annibale Bugnini. Recorda-se aqui que ele insistiu em
continuar as "missas yea, yea" em Roma e fez do jeito que queria apesar
do protesto do Vigário-geral de Roma, Cardeal Dell'Acqua. Durante o
pontificado de João XXIII, Bugnini havia sido expulso da Universidade
Lateranense, onde era professor de liturgia, precisamente por ter tido
tais ideias - apenas para se tornar, mais tarde, secretário da congrega­
ção que lida com a reforma litúrgica.

24. A Missa e os sacramentos reformados por um maçom?

Seria impossível enfatizar demais o fato de que o arcebispo Bugnini foi


o espírito motriz por trás de toda a reforma litúrgica - um ponto que, com
24. A Missa e os sacramentos reformados por um maçom? 59

surpreendente falta de discrição, o L 'Osservatore Romano enfatizou quando


tentou camuflar o motivo de sua demissão abrupta, elogiando-o. O Arce­
bispo Bugnini foi, explicou o jornal do Vaticano, o coordenador e instigador
que havia dirigido o trabalho das comissões. 108
É preciso também salientar que a reforma litúrgica não estava preocu­
pada apenas com a missa, mas foi estendida a todos os sacramentos, não
hesitando em interferir em alguns casos na própria matéria e forma desses
sacramentos. A natureza grosseira e drástica dessa reforma constitui uma
ruptura com a Tradição sem precedentes na história da Igreja e o fato de que
o coordenador e instigador que a dirigiu foi removido de sua posição por­
que o Papa Paulo VI acreditava que ele fosse um maçom deve justamente
dar a todos os fiéis católicos motivos de alarme. Este livro tem se preocu­
pado principalmente com a missa, mas as alterações feitas em alguns dos
outros ritos sacramentais dá igual motivo de preocupação. As modifica­
ções feitas no Rito de Ordenação são ainda mais graves do que as feitas na
Missa109• O próprio Papa Paulo teve que intervir e pessoalmente corrigir as
deficiências muito graves na nova Instrução para o Batismo das Crianças,
que tinha sido promulgada com sua aprovação em 1969110. Isso fornece ou­
tra demonstração do fato de que textos litúrgicos que têm a aprovação do
Papa não são e não devem ser isentos de críticas - particularmente quando
eles envolvem mudanças nos ritos tradicionais. Se o Papa não tivesse sido
alertado da grave inquietação que fora despertada pela nova Instrução de
Batismo para Criariças, ele poderia não a ter reexaminado e feito as revisões
importantes que ele promulgou em 1973.
Finalmente, algum conforto pelo menos pode ser tirado do fato de que
as citadas associações maçônicas do Arcebispo Bugnini foram descobertas
a tempo de impedi-lo de executar totalmente a quarta e última etapa de sua
revolução. Ele tinha dividido esta revolução em quatro fases - em primeiro
lugar, a transição do latim para o vernáculo; em segundo lugar, a reforma
dos livros litúrgicos; em terceiro lugar, a tradução dos livros litúrgicos; e
em quarto lugar, como ele explicou em seu periódico Notitiae, "a adaptação
ou a 'encarnação' da forma romana da liturgia nos usos e nas mentalidades
de cada Igreja individual está começando agora e será prosseguida com

1 8
º L'Osservatore Romano, 20 de julho de 1975.
109
cf. M. Davies, The Order of Mechisedech (Harrison, NY: Rornan Catholic Books, 1993).
110 N
otitiae, nº 85, julho-agosto, 1973, pp. 268-272.
60 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

crescente cuidado e preparação:'111 O Arcebispo Bugnini gabou-se disto


em 1974 e em alguns países, a Índia em particular, a quarta fase já estava
bem avançada quando ele foi removido de sua posição em 1975. Só o tempo
irá revelar se foi possível conter ou até mesmo reverter esse processo de
adaptação - e em que medida o desejo de reverter isso existe no Vaticano.

25. O Rito Romano foi destruído

O padre Louis Bouyer, arrasado pelo contraste entre o que, como um


membro importante do movimento litúrgico, tinha esperado que a execu­
ção do CSL conseguisse, e o que foi alcançado de fato, teve a integridade de
afirmar:

Nós devemos falar claramente: não há praticamente nenhuma liturgia


digna desse nome hoje na Igreja Católica. 112

O Mons. Gamber resume o verdadeiro efeito da reforma pós-conciliar


numa frase devastadora:

Neste momento crítico, o rito romano tradicional, de mais de mil anos


de idade, foi destruído. 113

Ele está exagerando? De modo algum. Sua afirmação é endossada do fim


oposto do espectro litúrgico por esse "'grande mestre do mundo litúrgico
internacional", o padre Joseph Gelineau, que observa com uma honestidade
louvável e nenhum sinal do pesar:

Deixe aqueles que como eu conheceram e cantaram uma missa solene


em latim com canto gregoriano lembrarem-se dela se puderem. Deixe-os
compará-la com a missa que agora temos. Não só as palavras, as melo­
dias e alguns dos gestos são diferentes. Para dizer a verdade, é uma li­
turgia da missa diferente. Isso precisa ser dito sem ambiguidade: o Rito
Romano como o conhecíamos já não existe mais (le rite romain tel naus
l'avons connu n'existe plus). Ele foi destruído (il est détruit).114

111 Notitiae, nº 92, abril de 1974, p. 126.


112
Bouyer, p. 99.
113Gamber, p. 99.
114 Gelineau, pp. 9s.
26. A perda da Fé 61

A CSL já foi citada para afirmar que: "Este sagrado Concílio declara que
a Santa Madre Igreja considera todos os ritos legitimamente reconhecidos
como sendo de igual autoridade e dignidade: que Ela deseja preservá-los no
futuro e promovê-los em todos os sentidos." Como preservar e promover
algo por meio de sua destruição é algo que até mesmo o arcebispo Bugnini
pode ter achado difícil de explicar. O Arcebispo, é claro, insistiu que ele era
responsável, não pela destruição, mas pela restauração e que a partir de
1948 passou "vinte e sete anos dedicados à restauração do esplendor e do
charme, da beleza juvenil, do espírito crítico e da doce fragrância da oração
pública da Igreja:'115 Aqueles que recordam como era a liturgia, ou que têm
a boa sorte de frequentar hoje a Missa Tradicional, terão que discordar do
Arcebispo Bugnini e concordar com o Mons. Gamber:
A verdadeira destruição da missa tradicional, do rito romano tradicio­
nal com uma história de mais de mil anos, é a destruição da fé sobre a
qual ela foi baseada, uma fé que tinha sido a fonte da nossa piedade e da
nossa coragem para dar testemunho de Cristo e de sua Igreja, a inspi­
ração de incontáveis católicos durante muitos séculos. Alguém, algum
dia, poderá dizer a mesma coisa sobre a nova missa? 116
Certamente que não! A incompatibilidade total de qualquer reforma ra­
dical da liturgia católica com o ethos e as tradições da Igreja é bem expressa
pelo Professor James Hitchcock:
A alteração deliberada e radical do ritual leva inevitavelmente à altera­
ção radical da crença também. Essa alteração radical causa uma perda
imediata de contato com o passado vivo da comunidade, que passa, em
contrapartida, a ser um fardo sufocante. O desejo de livrar-se do fardo
do passado é incompatível com o catolicismo, que aceita a história como
um desenvolvimento orgânico de raízes antigas e expressa esta aceita­
ção em um profundo respeito pela Tradição. 117

26. A perda da Fé

O exemplo mais evidente do fato de que a alteração radical do ritual leva


à alteração radical da crença é, naturalmente, a reforma do apóstata Thomas
Cranmer. Em sua história clássica da Reforma na Inglaterra, Monsignor
Philip Hughes explica:
115 Bugnini,p. xxiii.
116
Gamber, p. 102.
117
James Hitchcock, The Recovery of the Sacred (New York: Seabury Press, 1974), p. 59.
62 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

De forma inconsciente, com o passar dos anos, as crenças reverenciadas


nos ritos antigos - e agora fora de uso - e mantidas vivas por estes ritos
nas mentes e afeições dos homens, desapareceriam, sem a necessidade
de um esforço missionário que pregasse contra elas. 118

Assim, no reinado de Elizabeth I (1558-1603), a maioria dos católicos in­


gleses, e quase todos os seus filhos, perderam a fé na Presença Real, não por
uma campanha de pregação contra ela, mas por participar, durante déca­
das, de uma liturgia da qual os sinais rituais de reverência, que mantinham
essa crença viva em suas mentes e afetos, haviam sido removidos. Que a
alteração radical e deliberada do ritual da Missa desde o Vaticano II levou
inevitavelmente à alteração radical da crença na Presença Real ficou claro
na edição de fevereiro de 1995 da Homiletic and Pastoral Review. Um ar­
tigo de Germain Grisez e Russell Shaw lamentou o fato de que a crença
na Presença Real nos Estados Unidos "não apenas simplesmente diminuiu,
mas, aparentemente foi extinta:' Os dois autores culparam algumas mudan­
ças na liturgia regulamentadas ou autorizadas desde o Concílio Vaticano II,
tais como o uso do inglês na oração eucarística, a multiplicação das for­
mas desta oração, a ênfase na Comunidade celebrante, a redução do jejum
eucarístico, a comunhão na mão e a troca do ósculo da paz antes da co­
munhão. A conclusão de Grisez e Shaw é que "Na crise geral da Igreja nos
EUA, nenhuma crise individual é mais grave e urgente do que esta." 119 A
pesquisa na qual eles basearam este juízo mostrava que a maioria dos cató­
licos americanos hoje descrevem o pão consagrado e o vinho na missa como
"lembretes simbólicos" de Cristo, ao invés de substâncias que são transfor­
madas no corpo e no sangue de Cristo. Apenas entre os católicos de 65 anos
ou mais, uma estreita maioria - 51 % - diz que na missa o pão e o vinho são
transformados no Corpo e Sangue de Cristo ao invés de serem meramente

118 Philip Hughes, The Reformation in England, vol. II (Londres: Hollis & Carter, 1953), p.
111
119Na Missa Tradicional em Latim, somente as mãos consagradas de um padre podiam
tocar os cálices sagrados ou a Hóstia. Os leigos recebiam a sagrada comunhão de joelhos, na
boca e somente das mãos consagradas de um padre. Em uma típica paróquia hoje, a sagrada
comunhão é recebida na mão, de um ministro extraordinário (leigo), por um fiel de pé. Isto
significa que todo sinal tradicional de reverência foi abandonado ou tornou-se opcional, e
a crença na Presença Real foi abandonada juntamente com esses sinais de reverência. Os
inovadores substituíram, como Dietrich von Hildebrand afirmou, a santa intimidade com
Cristo por uma familiaridade imprópria, uma reverência desanimada em face do mistério,
desprovida de temor e quase que destituída do sentido de sagrado. Veja a p. 35 acima.
27. A Missa que não morrerá 63

lembretes simbólicos de Cristo. Entre os católicos nas faixas etárias de 18 a


29 e de 30 a 44, 70% consideravam a Hóstia Consagrada e o Precioso Sangue
como meros "lembretes simbólicos".
Durante os 45 anos de reinado de Elizabeth I, a crença na Presença Real
entre os católicos ingleses foi transformada em crença na ausência real. Este
já está se tornando o caso no mundo de língua inglesa em quatro décadas do
que um amigo meu monsenhor chama de Segundo Desastre do Vaticano.

27. A Missa que não morrerá

A beleza, o valor, a perfeição da Missa Tradicional em Latim da Igreja


Católica, tão universalmente reconhecida e admirada, foi descrita pelo pa­
dre Faber, em seu livro The Blessed Sacrament (O Santíssimo Sacramento)
como "a coisa mais linda deste lado do céu:' E ele continua:
Ela floresceu da grande mente da igreja e nos elevou da terra e de nós
mesmos, e nos envolveu numa nuvem da doçura mística e da sublimi­
dade de uma liturgia mais do que angelical e nos purificou quase a des­
peito de nós mesmos, e nos encantou com um encanto celeste, de modo
que nossos próprios sentidos parecem descobrir visão, audição, olfato,
paladar e tato além do que a terra pode nos proporcionar. 120

O arcebispo Bugnini pretendia consignar esta liturgia angélica ao es­


quecimento. No entanto, este rito da missa, que o Cardeal Newman disse
que poderia assistir para sempre e não se cansar, tem provado ser a missa
que não morrerá. Ela é celebrada mais frequentemente a cada dia que passa,
e todos aqueles que têm um verdadeiro sensus catholicus, um instinto cató­
lico, concordarão com o Mons. Gamber:

No fim das contas, isto significa que no futuro o Rito Tradicional da


Missa deve ser mantido na Igreja Católica Romana como a forma litúr­
gica principal para a celebração da missa. Deve tornar-se uma vez mais
a norma de nossa fé e o símbolo da unidade católica em todo o mundo,
uma rocha da estabilidade em um período de turbulências e mudanças
sem fim. 121

12
°Citado em N. Gihr, The Holy Sacrifice of the Mass (St. Louis, MO: B. Herder, 1908), p.
337.
121
Gamber, p. 114.
65

Apêndice 1. A participação dos protestantes


na compilação dos novos ritos litúrgicos católicos

Em 3 de maio de 1970, La Documentation Catholique publicou o texto


de um discurso feito pelo Papa Paulo VI para os membros do Consilium. A
capa desta edição retratava o Papa Paulo VI posando com os seis observado­
res protestantes que tinham sido convidados a participar nos trabalhos do
Consilium. Esta fotografia foi uma fonte de espanto e até de escândalo para
um grande número de fiéis, que não tinham ideia de que os protestantes
tivessem desempenhado algum papel na compilação dos novos ritos sacra­
mentais católicos. Isto resultou em controvérsia pública em vários países,
o que foi seguido por desmentidos oficiais de que os observadores tinham
de fato desempenhado qualquer papel na compilação dos novos ritos. Essas
negações têm sido citadas desde então pelos apologistas da reforma oficial
como "refutações" da alegação de que os observadores protestantes tenham
tomado parte ativa na sua compilação. Há, no entanto, uma diferença consi­
derável entre uma negação e uma refutação, e estas negações em particular
são totalmente gratuitas e contradizem as evidências disponíveis.
Na edição de julho-agosto de 1974 do Notitiae, o periódico oficial da
Sagrada Congregação para o Culto Divino, o Arcebispo Bugnini (seu Se­
cretário) afirmou que os observadores limitaram seu papel a simplesmente
observar (pp. 249s). Aqui estão suas exatas palavras:

Qual o papel dos "Observadores" no Concílio? Nada além do que o de


- "Observadores". Em primeiro lugar, eles só participaram das reuniões
de estudo. Em segundo lugar, eles se comportaram com discrição im­
pecável. Eles nunca intervieram nas discussões e nunca pediram para
falar.

Em 25 de fevereiro de 1976, o diretor da Sala de Imprensa do Vaticano


deu a seguinte resposta à pergunta do jornalista Georges Huber sobre se
os Observadores Protestantes haviam participado da elaboração da Missa
Nova: "Os observadores protestantes não participaram da elaboração dos
textos do novo Missal." Esta negativa foi publicada na La Documentation
Catholique em 4 de julho de 1976.
Em contraste com isto, o bispo W. W. Baum (agora Cardeal Baum), um
fervoroso ecumênico, fez a seguinte declaração em uma entrevista pessoal
para o Detroit News em 27 de junho de 1967:
66 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Eles não estão lá simplesmente como observadores, mas como consulto­


res também, e eles participaram plenamente nas discussões da renovação
litúrgica católica. Não teria muita importância se eles apenas ouvissem,
mas eles contribuíram. (Ênfase nossa).

Para colocar esta declaração em seu contexto correto, deve ficar claro
que, na época que fez esta afirmação, o bispo Baum era diretor-executivo
da Comissão dos Bispos americanos dos assuntos ecumênicos e o primeiro
porta-voz católico convidado a discursar no Sínodo geral da Igreja Unida
de Cristo, uma denominação protestante americana. Durante seu discurso,
ele revelou aos delegados que estudiosos protestantes "tiveram voz" na
revisão da liturgia católica. Como consequência desta revelação, Harold
Acharhern, correspondente religioso do Detroit News, obteve a entrevista
com o Bispo Baum a partir da qual eu fiz a citação.
O relato dado pelo Cardeal Baum e as negações do Arcebispo Bugnini
e da Sala de Imprensa do Vaticano são claramente contraditórias. A fim de
descobrir a verdade, eu escrevi para um dos observadores, o cônego Ronald
Jasper. Antes de dar sua resposta, é necessário explicar a maneira em que
o Consilium fez seu trabalho. Primeiramente, houve as sessões de estudo,
durante as quais os detalhes práticos da reforma foram trabalhados, discu­
tidos e modificados. Então houve as reuniões (plenárias) formais durante as
quais os esboços que tinham sido compilados nas sessões de estudo foram
debatidos e votados. Em minha carta ao cônego Jasper, expliquei que estava
trabalhando em uma série de livros sobre a reforma litúrgica e que desejava
particularmente saber se os observadores tinham tido voz na formulação
dos novos ritos da missa e da ordenação. Em sua resposta, datada de 10
de fevereiro de 1977, ele explicou que os observadores receberam todos
os documentos dos esboços dos novos ritos da mesma maneira que outros
membros do Consilium. Eles então estiveram presentes nos debates quando
os novos ritos foram apresentados pelos periti e debatidos pelo Consilium,
mas os observadores não foram autorizados a participar do debate.
À tarde, contudo, eles sempre tinham um encontro informal com os pe­
riti que tinham preparado os esboços, e nessas reuniões, eles certamente
foram autorizados a comentar e criticar e fazer sugestões. Cabia então aos
periti decidir se valia a pena levar alguma de suas colocações aos debates
gerais quando o Consilium fosse retomado. Mas, explicou o cônego Jasper,
concluindo, estas reuniões informais eram uma completa balbúrdia e havia
uma troca muito franca de pontos de vista.
I. A participação dos protestantes na compilação dos novos ritos 67

Exatamente o mesmo processo aconteceu no decurso do Concílio Va­


ticano II. Os observadores protestantes, apesar de não poderem falar nas
sessões plenárias, foram capazes de participar ativamente nas discussões
informais onde o verdadeiro trabalho de elaboração dos documentos foi
feito. Sua influência é visível nos próprios documentos finalizados, e a evi­
dência é fornecida no Capítulo IX do Concílio do Papa João. Além desta
evidência, os testemunhos a seguir também são relevantes.
O Arquediácono Pawley, um observador anglicano, revela que "no de­
curso do próprio Concílio a máxima cortesia e oportunidades para comuni­
cação e intercâmbio foram permitidas aos observadores em todas as fases,
e vestígios do processo podem ser reconhecidos nos próprios documen­
tos:•122
Robert McMee Brown, um observador presbiteriano, observa

Particularmente durante a discussão sobre o ecumenismo, era evidente


que muitos bispos queriam saber quais as reações protestantes às decla­
rações no schema sobre o Protestantismo e queriam obter a opinião dos
protestantes de como o schema poderia ser melhorado. Consequente­
mente, apesar de não termos "voz" na sessão do Concílio, nós tínhamos,
de fato, voz indireta por meio dos muitos contatos que eram possíveis
com os padres e seus indispensáveis e fortes braços direitos, os periti. 123

O Dr. R. McMee Brown também revela que houve ocasiões em que os


Observadores conseguiram ter uma voz direta nas sessões. "Há alguma
coisa que vocês observadores querem que seja dito na sessão do Concílio
sobre De Oecumenismo?" um bispo perguntou 124 . Os Observadores então
colocam seus pontos de vista por escrito, para serem incorporados em in­
tervenções escritas feitas em seu nome pelos bispos.
Portanto, embora possa-se argumentar que, oficialmente, os observado­
res não tiveram nenhum papel na elaboração dos documentos conciliares,
pois não podiam votar nem falar nos debates, é claro que eles foram capa­
zes de influenciar o formato final destes documentos. Isto é precisamente
o que ocorreu com a formulação dos novos ritos litúrgicos pelo Consilium
pós-Conciliar.

122
B. Pawley, Rome and Canterbury through Four Centuries (London: Mowbray, 1974), p.
343.
123
R. McAfee Brown, Observer in Rame (London: Methuen, 1964), pp. 227s.
124
Ibid., p. 173
68

Apêndice II. Os frutos da reforma litúrgica

Tanto a Santa Sé quanto as hierarquias nacionais negam enfaticamente


que uma revolução litúrgica desastrosa tenha ocorrido na Igreja Católica,
especialmente na liturgia, desde o Concílio Vaticano II, e insistem que os
fiéis católicos são os beneficiários afortunados de uma renovação frutuosa.
Esta visão oficial foi expressa pelo papa João Paulo II em sua Carta Apos­
tólica Vicesimus Quintus Annus em 4 de dezembro de 1988, comemorando
o vigésimo quinto aniversário da Constituição sobre a Sagrada Liturgia do
Concílio Vaticano II. O Papa explicou, citando a própria Constituição, que
os objetivos da reforma eram "fomentar a vida cristã entre os fiéis, adap­
tar melhor às necessidades do nosso tempo as instituições susceptíveis de
mudança, promover tudo o que pode ajudar à união de todos os crentes em
Cristo, e fortalecer o que pode contribuir para chamar a todos ao seio da
Igreja" (§1). O papa continuou: "A grande maioria dos pastores e do povo
cristão aceitou a reforma litúrgica em espírito de obediência e de fervor
jubiloso. Por isso, devemos agradecer a Deus pelo movimento do Espírito
Santo na Igreja que a renovação litúrgica representa" (§12).
Em seu sermão de Pentecostes de 2001, o Papa João Paulo II prestou
homenagem a João XXIII por ocasião do 38 º aniversário da sua morte 125 :

O Concílio Vaticano Il, anunciado, convocado e inaugurado pelo Papa


João XXIll, estava consciente desta vocação da Igreja. Bem pode-se dizer
que o Espírito Santo foi o protagonista do Concílio a partir do momento
em que o Papa o convocou, declarando que ele tinha acolhido como
vinda dos céus uma voz interior que se impusera sobre o seu espírito.
Esta "brisa suave" tornou-se um "vento violento" e o evento conciliar
tomou a forma de um novo Pentecostes. "É, de fato, da doutrina e do
espírito de Pentecostes", afirmou o Papa João, "que o grande evento que
é um Concílio Ecumênico extrai sua substãncia e a sua vida." (Discorsi,
p. 398).126

Em 5 de março de 2000, o The Catholic Times (London) relatou que o papa


afirmara que a pequena semente plantada pelo papa João XXIII tornara-se

125
Foi nesta ocasião que os restos mortais do falecido Papa foram expostos na Praça de
São Pedro e, depois da cerimônia, foram escoltados em procissão até o Altar da Confissão
na Basílica do Vaticano para serem expostos para a veneração dos fiéis.
126
Documentation Catholique, 1 º de julho 2001, nº 2251.
II. Os frutos da reforma litúrgica 69

"uma árvore que espalhou seus majestosos e poderosos ramos sobre a vinha
do Senhor". Ele acrescentou que "Ela nos deu muitos frutos nestes 35 anos
de vida, e nos dará muito mais nos próximos anos".
Com todo o respeito que é devido ao Santo Padre, o fato de que não
houve nenhuma renovação não pode ser alterado simplesmente porque ele
gostaria de urna renovação tivesse acontecido 127 . Se os frutos da reforma
litúrgica do Concílio Vaticano II devem ser comparados a urna árvore, S.
Mateus, capítulo 7, versículos 16-19, vem imediatamente à mente: Afruc­
tibus eorum cognoscetis eos - "Pelos seus frutos os reconhecereis. Colhem-se
uvas dos espinheiros, ou figos das ervas daninhas? Assim sendo, toda ár­
vore boa produz bons frutos, mas a árvore ruim dá frutos ruins. Uma árvore
boa não pode dar maus frutos; nem uma árvore má dar frutos bons."
Em sua encíclica Ecclesia de Eucharistia, de 17 de abril de 2003, o Papa
João Paulo II insistiu mais uma vez que a reforma litúrgica do Concílio Va­
ticano II foi acompanhada por urna renovação, ao invés de uma revolução,
por bons frutos, ao invés de fruto� maus:

O compromisso do Magistério de proclamar o mistério eucarístico tem


sido acompanhado por crescimento interior no seio da comunidade cristã.
Certamente a reforma litúrgica, inaugurada pelo Concílio tem contri­
buído para uma participação mais consciente, ativa e frutuosa no santo
sacrificio do Altar por parte dos fiéis. Em muitos lugares, a adoração
do Santíssimo Sacramento é também uma prática diária importante e
se torna uma fonte inesgotável de santidade. A devota participação dos
fiéis na procissão eucarística na solenidade do corpo e sangue de Cristo é

127 Um católico é de maneira alguma desleal para com a Igreja se ele se sente obrigado a
discordar com o Papa em uma questão factual. Muitos católicos devotos tendem a aceitar
cada uma das instruções dadas por um papa como se fosse um pronunciamento infalível.
Que este não é o caso foi deixado claro pelo Cardeal Newman no seu livro Certain Diffi­
culties Felt by Anglicans in Catholic Teaching. (Londres: Pickering, 1876, p. 325). Newman
explica: "Ele fala ex cathedra, ou infalivelmente, quando fala, em primeiro lugar, como o
professor Universal; em segundo lugar, em nome e com a autoridade dos Apóstolos; em
terceiro lugar, sobre um ponto de fé ou moral; em quarto lugar, com o objetivo de vincular
todos os membros da Igreja a aceitar e acreditar em sua decisão. Estas condições, é claro,
restringem consideravelmente o alcance de sua infalibilidade. Portanto, Billuart, falando a
respeito do Papa diz, 'nem na conversa, nem em discussão, nem na interpretação das Escri­
turas ou dos Padres da Igreja, nem em consultas, nem ao dar as suas razões para o ponto
que ele definiu, nem respondendo cartas, nem em deliberações particulares, supondo que
ele está estabelecendo a sua própria opinião, é o Papa infalível'."
70 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

uma graça do senhor que anualmente traz alegria para aqueles que par­
ticipam dela. Outros sinais positivos de fé eucarística e amor também
podem ser mencionados. (Ênfase nossa).

Mais uma vez, com todo o respeito ao Santo Padre, deve-se insistir que
se houve de fato um "crescimento interior dentro da comunidade cristã",
certamente ele não é refletido no colapso catastrófico da vida católica nos
países de primeiro mundo, que é documentada, acima de qualquer dúvida
possível, nas estatísticas que se seguem. Apesar de a inauguração da ado­
ração perpétua em algumas paróquias e capelas nos últimos anos ser um
desenvolvimento admirável, deve-se olhar o estado geral da Igreja: na ver­
dade, como Germain Grisez e Russel Shaw deixaram claro acima, a crença
na Presença Real no Estados Unidos "não simplesmente diminuiu, mas, apa­
rentemente, foi extinta". Na edição de 3 de setembro de 1999 do britânico
Catholic Herald, foi relatado que, pouco antes de sua morte, o Cardeal Ba­
sil Hume de Westminster tinha lamentado o fato de que os católicos na
Inglaterra tinham perdido a devoção à Eucaristia, que está no cerne da fé
católica. Ele pôs a culpa da falta de devoção eucarística no "modo como os
adultos ensinam a fé para as crianças". Esta é uma afirmação surpreendente
tendo em conta o fato de que, como seus colegas Bispos, ele tinha imposto
livros didáticos nos quais o ensino tradicional foi ignorado.
Então, no que parece ser uma mudança de opinião, o Santo Padre ad­
mite que, em alguns lugares, pelo menos, a disciplina eucarística e mesmo
a fé estão sofrendo problemas muito sérios, e ele fornece uma lista dos des­
vios e abusos litúrgicos contra os quais os Católicos tradicionais têm pro­
testando desde que as primeiras mudanças foram impostas aos fiéis. Estes
abusos ocorrem, o Santo Padre nos diz, juntamente com as luzes às quais
ele referiu-se, mas ele não nos diz onde estas luzes estão brilhando:

Infelizmente, ao lado destas luzes, existem também as sombras. Em al­


guns lugares, a prática da adoração eucarística foi quase completamente
abandonada. Em várias partes da Igreja, os abusos ocorreram, levando
à confusão em relação à fé e à doutrina católica sólidas a respeito desse
maravilhoso sacramento. Às vezes, encontramos um entendimento ex­
tremamente redutor do mistério eucarístico. Despojado de seu signifi­
cado sacrificial, é comemorado como se fosse simplesmente um ban­
quete fraterno. Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, fun­
damentada na sucessão apostólica, às vezes é obscurecida, e a natu­
reza sacramental da Eucaristia é reduzida a sua mera eficácia como uma
II. Os frutos da reforma litúrgica 71

forma de proclamação. Isto levou aqui e ali a iniciativas ecumênicas que,


embora bem-intencionadas, cedem a práticas eucarísticas contrárias à
disciplina pela qual a Igreja expressa sua fé. Como podemos não expres­
sar profundo pesar por tudo isto? A Eucaristia é um dom muito grande
para tolerar ambiguidade e depreciação. É minha esperança que a pre­
sente carta encíclica efetivamente contribuirá para banir as nuvens es­
curas de doutrina e prática inaceitáveis, para que a Eucaristia continue
a brilhar em todo seu mistério radiante. (Ênfase nossa).

Estes deploráveis abusos não existiam antes da reforma litúrgica do


Concílio Vaticano II, e dificilmente pode-se negar que eles de fato são os
verdadeiros frutos da reforma. Na verdade, devemos orar para que esta en­
cíclica, que contém muitos ensinamentos eucarísticos admiráveis, contri­
bua "para banir as nuvens escuras de doutrina e prática inaceitáveis", mas
infelizmente, estas nuvens têm agora se tornado tão arraigadas na vida pa­
roquial que, a menos que haja um milagre, elas não serão erradicadas. A
burocracia litúrgica bem entrincheirada no primeiro mundo ignora com­
pletamente admoestações de Roma que entrem em conflito com sua agenda.
Eles tratam o Vaticano e o próprio Papa, com o que pode ser descrito com
precisão como desprezo jocoso. Em novembro de 1997 o Vaticano publi­
cou um documento intitulado Instrução acerca de algumas questões sobre a
colaboração dos fiéis leigos no sagrado Ministério dos sacerdotes. Pretendia­
se conter abusos tais como a infestação de santuários católicos por uma
praga desnecessária de ministros extraordinários da Sagrada Comunhão.
O Catholic World Report (Relatório Católico Mundial) de fevereiro de 1998
trazia um editorial mordaz intitulado "üne More Document" (Mais um do­
cumento), com o subtítulo "Se a disciplina na Igreja nunca é aplicada, quão
importante são as declarações formais?" O editorial comentou a reação à
Instrução:
Ao observarmos o cenário católico, não vemos qualquer tipo de mu­
dança. Nas paróquias onde esses abusos ocorreram no ano passado, eles
ainda estão ocorrendo hoje... Estes e outros abusos litúrgicos foram no­
vamente condenados. As condenações não têm efeito prático ... Em uma
família comum quando as crianças agem mal, o pai por acaso promulga
uma declaração de diretivas - e então quando ignoram suas palavras,
emite uma outra nova declaração em resposta a cada transgressão repe­
tida? ... Há uma hora em que se deve agir.
Como foi mostrado acima, a ação que se segue à rebeldia a uma ordem de
Roma para corrigir um abuso tende a ser a legalização do abuso; a rendição
72 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

abjeta na questão das meninas acolitando a missa é um exemplo evidente.


O fato de que algumas práticas que começaram como os abusos tenham
se tornado agora a norma foi admitido pela Congregação para o Culto Di­
vino em seu periódico Notitiae em 1992. Em um editorial intitulado "A Cre­
dibilidade da Reforma Litúrgica" ( Credibilità della Riforma Liturgica), que
praticamente não foi difundido, admitiu-se que "a credibilidade da reforma
litúrgica está sendo posta em risco após trinta anos de aplicação não ho­
mogênea" ( la credibilità della riforma liturgica venga posta in pericolo... ) e
que:
As malformações nascidas nos primeiros anos da aplicação ainda per­
duram e, gradualmente, à medida que as novas gerações se sucedem,
quase poderia se tornar a regra (esse potrebbero diventare quasi una re­
go/a). Assim, a letra e o espírito da reforma litúrgica permanecem em
alguns casos nas sombras, e criam-se costumes que certamente se origi­
naram após a reforma litúrgica, mas não em seu sentido genuíno e com
consequências mais negativas para a formação litúrgica do que aqueles
costumes ligados a práticas anteriores ao Concílio Vaticano II. 128

É extremamente significativa a admissão pela Congregação de que estes


abusos não existiam antes do Concílio.
O cardeal Paul Poupard, presidente do Conselho Pontifical para a Cul­
tura, afirmou francamente em janeiro de 2000: "A descristianização da Eu­
ropa é uma realidade"129. Isto dificilmente é uma "indicação do crescimento
interior no seio da comunidade cristã". O cardeal Daneels de Bruxelas, Bél­
gica, declarou em uma entrevista para o Catholic Times de Londres em 12 de
maio de 2000 que a Igreja na Europa está enfrentando a sua extinção. Ele
lamentou a crise de vocações no Ocidente e observou que "sem sacerdo­
tes a vida sacramental da Igreja desaparecerá. Tornar-nos-emos uma igreja
protestante sem sacramentos. Seremos um outro tipo de igreja, não Ca­
tólica."130 Durante o Sínodo dos Bispos Europeus em outubro de 1999, o
arcebispo Fernando Sebastian Aguilar de Parnplona fez a seguinte análise,
melancólica mas realista, do catolicismo espanhol:
Por 40 ou 50 anos, a sociedade espanhola tem se afastado da Igreja e do
reconhecimento explícito dos tesouros do Reino de Deus. A seculariza­
ção cultural e espiritual afetou muitos membros da Igreja. O resultado
128Notitiae, 315, vol. 28 (1992), pp. 625-628.
129
Le Spetacle du Monde, janeirn de 2000.
13°Catholic Times, 12 de maio de 2000.
II. Os frutos da reforma litúrgica 73

disso foi o enfraquecimento da fé e da revelação divina, o questiona­


mento teórico e prático da moral cristã de ensino, o abandono massivo
da assistência à missa de domingo, a não-aceitação do Magistério da
Igreja naqueles pontos que não coincidem com as tendências da cultura
dominante. As convicções culturais em que se assenta a vida social são
solapadas e são mais ateias do que cristãs.

A situação na Espanha não é diferente da do resto da Europa e de todo


o Primeiro Mundo, principalmente em países de língua inglesa. Isto é par­
ticularmente verdadeiro quando se trata do ensino dado em instituições
educacionais católicas em todos os níveis. As burocracias catequéticas cri­
adas pelas hierarquias eliminaram o catecismo tradicional e substituíram­
no por uma série interminável de novos textos. Tendo ensinado em uma
escola católica durante os trinta anos que se seguiram ao Concílio, posso
atestar que esses textos logo alcançaram o ponto em que dificilmente pode­
riam ser denominados, ainda que minimamente, católicos. Novos métodos
de ensinar a religião católica foram substituídos pela exigência de se ensi­
nar uma nova religião que não era católica. Pais, sacerdotes e professores
que protestaram foram tratados como neandertais. Inúmeros protestos fo­
ram feitos a Roma, mas eles foram ignorados. A política do Vaticano tem
sido apoiar a autoridade do bispo diocesano, mesmo quando ele está usando
essa autoridade para destruir a fé. Em 1977 um bom amigo meu, o falecido
Cônego George Telford, renunciou à sua posição como o vice-presidente
do departamento de catequistas da Inglaterra e do País de Gales porque,
ele me assegurou, não havia nem ao menos um bispo no país que estivesse
ao menos interessado em se assegurar de que as crianças nas escolas ca­
tólicas fossem instruídas na fé católica. Em sua carta de renúncia afumou
abertamente: "A catequese moderna encontra-se teologicamente corrom­
pida e espiritualmente falida. Suas estruturas e inovações são irrelevantes
e sem significado para a fé católica e não podem conseguir nada além de
sua diluição gradual." 131
O periódico católico mensal australiano AD 2000, em sua edição de ja­
neiro de 2003, relatou um discurso feito pelo Professor Denis McLaughlin
da Universidade Católica Australiana (ACU), na Conferência Nacional dos
diretores australianos de ensino secundário, em outubro de 2002. Seu pú­
blico certamente não ficou satisfeito com o que ele tinha a dizer. Seu dis­
curso relatava os resultados de uma pesquisa que ele tinha conduzido sobre
131Christian Order, abril de 1977, p. 205.
74 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

crenças, valores e práticas de estudantes de licenciatura católicos. A pes­


quisa constatou que a maioria dos estudantes não aceitava o ensinamento
da Igreja em áreas como a Eucaristia, o aborto, a contracepção e a ordena­
ção de mulheres, e não houve diferenças significativas entre as visões dos
alunos do primeiro ano e do último ano. Esse tipo de pensamento, segundo
o professor McLaughlin, também pode ser encontrado entre os professores
de escolas católicas, indicando que a espiral descendente de crença e prática
na população católica em geral não mostra nenhum sinal de estagnação:

O culto do individualismo e do subjetivismo, tão predominante na cul­


tura ocidental moderna, teve seu impacto na educação religiosa. Isto
conduziu à atual ignorãncia generalizada dos princípios básicos da fé e
de seus fundamentos intelectuais e históricos, tomando uma situação
já dificil para qualquer compromisso com a fé religiosa quase que im­
possível. Não é de admirar que muitos católicos tenham feito as pazes
com o secularismo e o materialismo sob um fino verniz de catolicidade
cultural. Suas visões sobre os direitos dos "gays", o divórcio, o aborto ou
o sacerdócio feminino não são diferentes das do resto da população.

A própria pesquisa da ACU confirma descobertas de outras fontes, tais


como a Catholic Church Life Survey (Pesquisa da Vida da Igreja Católica) e
o irmão Marcellin Flynn:

Os dados obtidos pelos pesquisadores da ACU em Sydney mostravam


que 97% dos jovens católicos abandonaram a prática de sua fé dentro de
12 meses após o térmíno do Ensino Médio ... Ou seja, apesar de terem
até 13 anos de instrução religiosa, a maioria dos jovens católicos rejeita
os próprios fundamentos da Fé.

As descrições do Cônego Telford e do Professor McLaughlin sobre o es­


tado abismal do ensino religioso na Grã-Bretanha e na Austrália são igual­
mente aplicáveis aos Estados Unidos. Alcançou-se um estágio onde, se os
pais desejarem que seus filhos conheçam a fé, eles devem ensiná-lo eles
mesmos, uma tarefa que, na verdade, é seu principal dever. Ao fazê-lo, é
imperativo que eles próprios estejam completamente certos das doutrinas
que ensinam, e um grande serviço para os pais preocupados foi fornecido
pela TAN, Inc 132 quando reeditou aquele que é provavelmente o melhor
compêndio da Fé em nível popular disponível em inglês: This Is The Faith
(Esta é a Fé) do Cônego Francis Ripley, que havia trabalhado em estreita
132 (http://www.tanbooks.com/)
II. Os frutos da reforma litúrgica 75

colaboração com o Cônego Telford em sua campanha fracassada para ter


a fé católica ensinada em escolas católicas. Este livro foi amplamente utili­
zado em aulas de instrução religiosa e deve ser familiar a todos os católicos
adultos. 133
As estatísticas relativas à Inglaterra e ao País de Gales e aos Estados
Unidos estão anexadas para demonstrar que o que estamos testemunhando
não é um novo Pentecostes, mas um declínio desastroso e aparentemente
terminal. Estas estatísticas são semelhantes em todos os países do que é co­
nhecido como o Primeiro Mundo. É verdade que tem havido um aumento
no número total de seminaristas e ordenações desde o Vaticano II, mas este
aumento ocorreu principalmente nas áreas de terceiro mundo, como África
e Ásia e, quando examinado com cuidado, não pode ser atribuído à influên­
cia do Concílio, mas a fatores sociológicos, que não serão examinados neste
apêndice, que se preocupa apenas com o Primeiro Mundo. Vou dar apenas
um exemplo derivado de uma visita a um seminário indiano em 1988. O se­
minário estava completamente cheio e poderia ter sido preenchido quatro
vezes mais; mas na Índia a ordenação dá um certo status social e uma renda
garantida, que vem em grande parte do exterior, o que permite dar apoio
financeiro à sua familia. A formação doutrinária dada no seminário era
de uma ortodoxia muito duvidosa. Perguntei ao reitor, que não usava ne­
nhuma vestimenta sacerdotal, se os seminaristas estudavam Santo Tomás
de Aquino, e ele caiu na gargalhada. As paredes de seu escritório eram de­
coradas com fotos de cantoras country americanas seminuas. Eu perguntei
a razão, e o reitor respondeu que isso permitia aos seminaristas se conec­
tarem com ele.

Il.1. O incrível encolhimento da Igreja na Inglaterra e País de Gales


A característica mais evidente da Igreja Católica na Inglaterra e no País
de Gales é que ela está encolhendo a uma velocidade incrível e encontra-se
naquilo que podemos chamar de estado terminal de declínio. O The Offi­
cial Catholic Directory (Diretório Oficial Católico) documenta um aumento
constante em todos os aspectos importantes da vida católica até meados
dos anos sessenta: em seguida, o declínio se instaura. O número de ca­
samentos e batizados não é simplesmente alarmante, mas desastroso. Em
1944, houve 30.946 casamentos, em 1964, o número tinha aumentado para

133Fr. Francis Ripley, This Is The Faith (Rockford, IL: TAN edition, 1951/2002).
76 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

45.592 - mas até 1999 tinha diminuído para 13.814, menos de metade de
1944. O número de batismos pelos mesmos anos são 71.604 (1944), 137.673
(1964) e 63.158 (1999). Com menos filhos nascidos de casais católicos a cada
ano, o número de casamentos inevitavelmente continuará a diminuir, com
um consequente número ainda menor de crianças nascidas - e assim por
diante. Além disso, não se pode presumir que nem ao menos metade das
crianças batizadas vão estar praticando sua fé quando atingirem a adoles­
cência. Um exame dos dados de uma típica diocese indica que menos da
metade das crianças que é batizada é crismada, e um relatório no The Uni­
verse em 1990 deu uma estimativa de que apenas 11% dos jovens católicos
estão praticando sua fé quando deixam o ensino médio.
Além de casamentos e batizados, o comparecimento à missa é o guia
mais preciso para mensurar a vitalidade da comunidade católica. Os núme­
ros despencaram de 2.114.219 em 1966 para 1.041.728 em 1999 e continua
caindo a uma taxa de cerca de 32.000 por ano.
Em 1944, 178 padres foram ordenados; em 1964, 230; e em 1999 somente
43 - e no mesmo ano 121 padres morreram.
Em 1985, vinte anos após o Concílio Vaticano II, bispos de todo do mundo
reuniram-se em Roma para avaliar o impacto do Concílio. Isto lhes deu a
oportunidade de admitir que a sua implementação tinha sido desastrosa, e
que medidas drásticas deveriam ser tomadas para dar à fé um futuro viável
nos paises de Primeiro Mundo.
O Cardeal Basil Hume de Westminster insistiu, em nome dos bispos da
Inglaterra e do País de Gales, que não deveria haver nenhum retrocesso nas
políticas que eles tinham adotado para implementar o Concílio. Um relató­
rio no The Universe em 13 de dezembro de 1985 informou-nos que o Sínodo
tinha adotado a posição do Cardeal Hume sem uma única voz dissidente. A
sentença final deste relatório pode ser descrita como ironicamente profé­
tica: "Enquanto isso o povo de Deus tem um mandato firme de continuar o
Êxodo ao longo da rota traçada pelo Concílio Vaticano Ir' Se substituirmos
a letra maiúscula "E" do êxodo pela letra minúscula "e", êxodo, teremos o
que realmente aconteceu - e o êxodo continuará até que o catolicismo na
Inglaterra e no País de Gales desapareça no esquecimento no prazo de trinta
anos, talvez até antes. Sem uma intervenção divina, a "segunda Primavera"
da fé católica na Inglaterra prevista pelo Cardeal Newman (1801-1890) vai
acabar no mais sombrio dos invernos.
II. Os frutos da reforma litúrgica 77

II.2. O incrível encolhimento da Igreja nos Estados Unidos

Em março 2003 foi publicada em St. Louis o que é certamente a pes­


quisa estatística maís importante da Igreja nos Estados Unidos desde o Va­
ticano II: Index of Leading Catholic Indicators: The Church Since Vatican II
(Índice dos Principaís Indicadores Católicos: A Igreja desde o Vaticano II)
de Kenneth C. Jones. 134 Ela fornece estatísticas meticulosamente documen­
tadas de cada aspecto da vida católica sujeito à verificação estatística, e é
ilustrada com gráficos que descrevem de uma maneira visual dramática o
colapso catastrófico da vida católica nos Estados Unidos desde o Concílio.
Com a publicação deste livro, nenhuma pessoa racional poderia discordar
do padre Louis Bouyer que, "A menos que estejamos cegos, nós devemos
mesmo afirmar francamente que o que nós vemos parece menos com a
esperada regeneração do catolicismo do que com sua acelerada decompo­
sição:'135
O senhor Jorres me deu sua permissão para citar a introdução de seu
livro, mas antes de fazê-lo, preciso citar uma notícia da edição de 23 de
março de 2003, do London Universe. Sob o título "En Suite Monastery", ele
relata: "Espera-se que um antigo monastério carmelita irlandês seja trans­
formado em um hotel em estilo de clube de campo depois de sua venda a
um empreendedor imobiliário. A ordem carmelita tinha fechado sua casa
no Castle Martyr, em Cork, no ano passado após 73 anos por causa da queda
nas vocações:' Este é somente um dos milhares de exemplos similares dos
frutos reais, diferentes da fantasia, do Vaticano II. Na página 100 do livro
do Sr. J ones há um gráfico que revela que o número de seminaristas carme­
litas nos Estados Unidos diminuiu de 545 em 1965 para 46 em 2000 - um
declínio de 92%. Estes números parecem positivamente saudáveis quando
comparados com o gráfico na página 99, relativo aos padres de La Salette,
que revela um declínio no número de seminaristas no mesmo período de
552 para apenas l. Os números e os gráficos para cada importante ordem
religiosa são demonstrados no livro, e seria difícil discordar com o Sr. Jorres
que "as ordens religiosas logo serão virtualmente inexistentes nos Estados
Unidos". Na introdução de seu livro ele escreve:

134K. Jones, Index ofLeading Catholic Indicators. Endereço postal de KennethJones: 11939
Rd., #217, St. Louis, MO 63131. (www.catholicindicators.com)
135L. Bouyer, The Decomposition of Catholicism (Chicago: Franciscan Herald Press, 1970),
p. 1.
78 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Quando o papa João XXIII abriu o Concílio Vaticano II em 1962, a Igreja


Católica na América encontrava-se no meio de um período de cresci­
mento sem precedentes. Os bispos estavam ordenando um número re­
corde de padres e construindo dezenas de seminários para acomodar
o aumento das vocações. Mulheres jovens aos milhares abdicavam de
uma vida de conforto pela austeridade do convento. Estas freiras ensi­
naram milhões dos estudantes no enorme sistema de escolas paroquiais
e privadas.

As fileiras de católicos avolumavam-se conforme os pais traziam seus


filhos para serem batizados e adultos conversos reuniam-se ao rebanho
da Igreja. As filas fora dos confessionários eram longas, e segundo algu­
mas estimativas, três quartos dos fieis iam à missa nos domingos. Dado
este cenário favorável, alguns católicos perguntavam-se na época se um
Concílio ecumênico seria oportuno - não cutuque o leão, eles diziam.

O Santo Padre repreendeu essas pessoas em seu discurso de aber­


tura do Concílio: "Nós sentimos que devemos discordar daqueles profe­
tas do apocalipse que estão sempre prevendo o desastre, como se o fim
do mundo estivesse à nossa porta." Quarenta anos mais tarde, o fim do
mundo não chegou. Mas estamos agora enfrentando o desastre.

Mesmo alguns dentro do Vaticano reconheceram isso. O Cardeal Jo­


seph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, disse:
"Certamente os resultados [do Vaticano II] parecem cruelmente opos­
tos às expectativas de todos, começando com as do papa João XXII! e
então as do papa Paulo VI .. . "

Desde que o Cardeal Ratzinger fez estas observações em 1984, a crise


na Igreja acelerou-se. Em cada área que é estatisticamente verificável -
por exemplo, o número de padres, de seminaristas, de paróquias sem
padres, de freiras, de comparecimento à missa, dos conversos e das anu­
lações - o "processo de decadência" é aparente.

Eu recolhi essas estatísticas no Index of Leading Catholic Indicators


(Índice dos Principais Indicadores Católicos) porque a magnitude da
emergência é desconhecida por muitos. Além de uma vaga compreen­
são de uma "crise de vocações", tanto os fiéis quanto o público em geral
não têm ideia do quão ruim as coisas estão desde o encerramento do
Concílio Vaticano II em 1965. Aqui estão alguns fatos gritantes:

Padres. Após disparar de cerca de 27.000 em 1930 para 58.000 em 1965,


o número de padres nos Estados Unidos caiu para 45.000 em 2002.
II. Os frutos da reforma litúrgica 79

Até 2020 136 , haverá aproximadamente 31.000 sacerdotes - e so­


mente 15.000 terão menos de 70 anos. Agora há mais padres com
idade entre 80 a 84 do que os com idade entre 30 e 34.
Ordenações. Em 1965 houve 1.575 ordenações sacerdotais e em 2002,
450, um declínio de 350%. Levando-se em conta as ordenações,
mortes e partidas, em 1965 houve um ganho liquido de 725 padres.
Em 1998, houve urna perda líquida de 810.
Paróquias sem padres. Aproximadamente 1% das paróquias, 549, es­
tava sem um padre residente em 1965. Em 2002 havia 2.928 pa­
róquias sem padres, aproximadamente 15% das paróquias nos Es­
tados Unidos. Em 2020, um quarto de todas as paróquias, 4.656,
não terá nenhum padre.
Seminaristas. Entre 1965 e 2002, o número dos seminaristas caiu de
49.000 para 4.700 - urna redução de 90%. Sem alunos, seminários
em todo o país foram vendidos ou fechados. Havia 596 seminários
em 1965 e apenas 200 em 2002.
Irmãs. 180.000 irmãs eram a espinha dorsal dos sistemas de saúde e
educação católica em 1965. Em 2002, havia 75.000 irmãs, com idade
média de 68 anos. Em 2020, o número das irmãs terá caído para
40.000 - e destas, somente 21.000 terão 70 anos ou menos. Em
1965, 104.000 irmãs estavam ensinando, enquanto em 2002 havia
somente 8.200 professoras.
Irmãos. O número de irmãos professos diminuiu de aproximadamente
12.000 em 1965 para 5.700 em 2002, com urna queda adicional para
3.100 projetada para 2020.
Ordens religiosas. As ordens religiosas logo serão virtualmente inexis­
tentes nos Estados Unidos. Por exemplo, em 1965 havia 5.277 pa­
dres jesuítas e 3.559 seminaristas; em 2000 havia 3.172 padres e 38
seminaristas. Havia 2.534 padres Franciscanos OFM e 2.251 semi­
naristas em 1965; em 2000 havia 1.492 padres e 60 seminaristas.
Havia 2.434 Irmãos Cristãos em 1965 e 912 seminaristas; em 2000
havia 959 irmãos e 7 seminaristas. Havia 1.148 padres Redentoris­
tas em 1965 e 1.128 seminaristas; em 2000, havia 349 padres e 24
seminaristas. Cada importante ordem religiosa nos Estados Uni­
dos espelha estas estatísticas.

136
As projeções para o número de padres, paróquias sem padres, irmãos e irmãs em 2020
são fornecidas pelo Dr. James R. Lothian, professor de Finanças na Universidade Fordharn,
e são baseadas em números históricos juntamente com a média das idades e tendências.
80 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Escolas de ensino médio. Entre 1965 e 2002 o número de colégios di­


ocesanos caiu de 1.566 para 786. Ao mesmo tempo o número de
estudantes caiu de quase 700.000 para 386.000.
Escolas Paroquiais. Havia 10.503 escolas paroquiais em 1965 e 6.623
em 2002. O número dos estudantes caiu de 4.5 milhão para 1.9
milhões.
Vida Sacramental. Em 1965 havia 1.3 milhão de batismos infantis; em
2002 havia 1 milhão. (No mesmo período o número de Católicos
nos Estados Unidos subiu de 45 milhões para 65 milhões.) Em 1965
houve 126.000 batismos de adultos - conversos - em 2002 houve
80.000. Em 1965 houve 352.000 casamentos católicos e em 2002,
256.000. Em 1965 houve 338 anulações e em 2002, 50.000.
Comparecimento à Missa. Uma pesquisa do Gallup de 1958 relatou que
74% dos católicos iam à Missa de domingo em 1958. Um estudo da
Universidade de Notre Dame em 1994 mostrou que a taxa de com­
parecimento era de 26,6%. Um estudo mais recente feito pelo pro­
fessor da Universidade de Fordham James Lothian concluiu que
65% dos católicos iam à missa no domingo em 1965, enquanto a
taxa caiu para 25% em 2000.

O declínio no comparecimento à missa destaca outro fato significa­


tivo; cada vez menos pessoas que se intitulam católicos realmente se­
guem as regras ou aceitam a doutrina da Igreja. Por exemplo, uma pes­
quisa do National Catholic Reporter em 1999 mostra que 77% dos entre­
vistados acreditam que uma pessoa pode ser um bom católico sem ir à
missa no domingo; 65% acreditam que bons católicos podem se divor­
ciar e se casar novamente, e 53% acreditam que católicos podem fazer
um aborto e continuar sendo um membro respeitado da Igreja. Somente
10% dos professores leigos de religião aceitam os ensinamentos da Igreja
sobre métodos artificiais de controle de natalidade, de acordo com uma
pesquisa de Universidade de Notre Dame feita em 2000. E uma pesquisa
do New York Times/CBS revelou que 70% dos católicos com idade en­
tre 18 e 44 anos acreditam que a Eucaristia é meramente um "lembrete
simbólico" de Jesus.
Dadas essas alarmantes estatísticas e pesquisas, pergunta-se por que
os Bispos americanos ignoram a profunda crise que ameaça a própria
existência da Igreja na América. Afinal de contas, não pode haver Igreja
sem padres, não pode haver Igreja sem leigos que tenham filhos e pra­
tiquem a fé católica. Contudo, em suas conferências anuais, os bispos
reúnem-se para emitir declarações de peso sobre armas nucleares e eco­
nomia. Então, retornam para casa para "consolidar" paróquias e fechar
II. Os frutos da reforma litúrgica 81

escolas. Como o Cardeal Ratzinger disse, o período pós Concílio Vati­


cano II "foi definitivamente desfavorável para a Igreja Católica". Este
Index of Leading Catholic Indicators é uma tentativa de narrar a crise
contínua, na esperança de que uma compilação de estatísticas sombrias
- de uma maneira clara, objetiva e fácil de entender - estimule a ação
antes que seja tarde demais.

- Kenneth C. Jones, janeiro de 2003

O Sr. Jones, eu temo, é por demais otimista em esperar que as estatísti­


cas em seu livro "estimulem a ação antes que seja tarde demais". Na Igreja
pós-conciliar hoje parece que há um, e apenas um, absoluto, e ele é - para
repetir as palavras do papa João Paulo II - que a pequena semente plan­
tada pelo papa João XXIII se transformou em "uma árvore que espalhou
seus ramos majestosos e poderosos sobre o vinhedo do Senhor" e que "nos
deu muitos frutos nestes 35 anos de vida, e dar-nos-á muito mais nos anos
por vir". Não consigo imaginar qualquer bispo no mundo, não importa o
quão ortodoxa seja sua crença pessoal, não importa o quão generoso ele
seja com os católicos tradicionais autorizando a celebração da Missa Tradi­
cional em Latim, que teria coragem de discordar da insistência do Cardeal
Basil Hume de que não deve haver nenhum retrocesso nas políticas adota­
das para implementar o Concílio.
Como o Sr. Jones provou, estamos testemunhando não a renovação, mas
a "acelerada decomposição do catolicismo". Este é um fato e continua a ser
um fato, não importa quantas vezes e o quão insistentemente aqueles com
autoridade na Igreja afirmem que estamos nos aquecendo ao sol de um
novo Pentecostes. Não se pode deixar de lembrar como, nos anos que se
seguiram à Revolução Russa, quando a coletivização forçada da terra levou
a Rússia à beira da fome, os boletins oficiais asseguravam ao povo russo
semana após semana, mês após mês, ano após ano, que nunca antes, em
sua história, tinham desfrutado de um padrão de vida tão alto.
Em Bombas-relógio Litúrgicas eu aleguei não mais do que foi alegado
pelo Cardeal Ratzinger quando ele escreveu: "Estou convencido de que a
crise na Igreja que estamos vivenciando é em grande medida devido à de­
sintegração da liturgia" (ver acima "Participação Ativa", p. 31). No seu dis­
curso aos Bispos do Chile, em 13 de julho de 1988, o Cardeal explicou:

O Concílio Vaticano II não foi tratado como uma parte do todo que é
a Tradição viva da Igreja, mas como o fim da Tradição, um novo co-
82 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

meço a partir do zero. A verdade é que este Concílio particular não de­
finiu nenhum dogma, e escolheu deliberadamente permanecer em um
nível modesto, como um Concílio meramente pastoral; no entanto, mui­
tos tratam-no como se tivesse se transformado numa espécie de super­
dogma que remove a importância de todo o resto. Essa ideia é reforçada
por coisas que estão acontecendo agora. Aquilo que antes era conside­
rado mais sagrado - a forma como a liturgia era transmitida - de repente
aparece como a mais proibida de todas as coisas, a única coisa que pode
com segurança ser proibida.

Todo católico dedicado à Missa Tradicional em Latim deve rezar todos os


dias pelo nosso Santo Padre, e rezar para que ele remova todas as restrições
à celebração do rito da missa que o Cardeal Newman afirmou (em Loss and
Gain) que ele poderia assistir para sempre e não se cansar, e que o Padre
Faber descreveu como "a coisa mais linda deste lado do céu".
83

Apêndice III. O direito de qualquer Padre do Rito Romano


oferecer a Missa de acordo com o Missal de 1962

Em uma carta - Protocolo Nº 500/90 - da Comissão Pontificia Eccle­


sia Dei, assinada pelo seu primeiro Presidente, o Cardeal Augustin Mayer,
enviada para a Conferência Nacional dos Bispos Católicos (EUA) em 20 de
março de 1991, foi explicado que: "Uma especial' Commissio Cardinalitia ad
hoc ipsum instituta' [Comissão de cardeais instituída para esta finalidade
específica] incumbida de rever a utilização do indulto de 1984 [Quattuor
abhinc annos] reuniu-se em dezembro de 1986. Naquela época os cardeais
unanimemente acordaram que as condições previstas no Quattuor abhinc
annos eram demasiado restritivas e deveriam ser alargadas:' Esta Comissão
especial dos cardeais estabeleceu uma série de normas em relação ao uso do
Missal, afirmando a quarta que quando celebrar em latim, cada sacerdote
é livre para escolher entre o Missal de Paulo VI (1970) 137 e o de João XXIII
(1962) e em qualquer caso as rubricas e o calendário do Missal escolhido
devem ser utilizados. (Missal de 1962 é, em todos os aspectos essenciais, o
Missal de 1570 - o Missal Tradicional em Latim do Rito Romano, o Missal
"Tridentino" emitido pelo Papa São Pio V.)
O Cardeal Alfons Stickler era membro desta Comissão de nove cardeais,
e durante uma palestra dada na região de Nova York em maio de 1995, ele
afumou que os nove cardeais confirmaram por unanimidade que o bispo
não pode proibir um padre do uso do Missal de 1962 ao celebrar a missa em
latim. (V er a revista The Latin Mass, verão de 1995, p. 14.) Nas faculdades
concedidas à Comissão Ecclesia Dei em 18 de outubro de 1998, a Comissão
de cardeais é citada diretamente. À Comissão Ecclesia Dei é dada "... a fa­
culdade de conceder aos que a procuram o uso do Missal romano segundo
a edição de 1962 e de acordo com as normas propostas em dezembro de
1986 pela Comissão de cardeais constituída para este propósito, o bispo di­
ocesano tendo sido informado." Assim, fica claro que qualquer sacerdote
do Rito Romano tem o direito de recorrer ao Missal Tradicional de 1962 em
Latim.
137
O Novo Ordinário da Missa (Novus Ordo Missae) foi promulgado pelo Papa Paulo VI,
em 6 de abril de 1969 e entrou em vigor em 30 de novembro de 1969, mas ainda não era
um Missal completo; o calendário e todos os Próprios do Missal de 1962 estavam ainda em
uso. O Missal completo do Papa Paulo VI foi promulgado em 26 de março de 1970, mas sua
introdução foi adiada para 20 de novembro de 1971. O Missal de Paulo VI é referido como
o Missal de 1970.
84 Michael Davies - Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II

Em 24 de maio de 2003 ocorreu um dos eventos mais importantes na as­


censão do Rito Romano desde sua proibição virtual mas ilícita em 1970. O
Cardeal Dario Castrillón Hoyos, prefeito da Congregação para o Clero, ce­
lebrou uma missa Pontifical, para uma congregação de milhares, de acordo
com o Missal de São Pio V, na Basílica de Santa Maria Maior - onde se en­
contra o túmulo de São Pio V, um ponto enfatizado pelo Cardeal em sua
homilia: "Hoje uma providencial coincidência nos permite render culto a
Deus de acordo com o Missal romano de São Pio V, cujos restos mortais
estão enterrados nesta Basílica."
O Cardeal assegurou à Congregação que não se pode considerar que o
rito de São Pio V - a Missa Tradicional em Latim - tenha sido extinto (ter
sido revogado): "Non si puà considerare che il rito detto di San Pio V sia es­
tinto". Ele citou o artigo 4 da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, que
afirmava: "Este sagrado Concílio declara que a Santa Madre Igreja consi­
dera todos os ritos legitimamente reconhecidos como sendo de igual auto­
ridade e dignidade: que Ela deseja preservá-los no futuro e promovê-los em
todos os sentidos... " Para grande prazer da vasta congregação, ele lhes as­
segurou: "O antigo rito romano conserva na Igreja seu direito de cidadania
no seio da pluriformidade dos ritos católicos, tanto latinos como orientais
(L 'antico rito romano conserva dunque nella Chiesa il suo diritto di cittadi­
nanza in seno alia multiformita dei riti cattolici sia Latini che orientali):'
Estas declarações parecem ser uma admissão clara, no mais alto nivel,
da conclusão da Comissão de Cardeais de 1986 de que, quando celebrar em
latim, cada sacerdote do Rito Romano tem o direito de escolher entre os
missais de 1962 e de 1970.
Esta também é a opinião do Cardeal Medina Estevez, que se aposentou
como prefeito da Congregação para o Culto Divino e Sacramentos em 2003.
Em uma entrevista publicada na edição da Primavera de 2003 da revista The
Latin Mass Magazine (página 9), o Cardeal afirmou:
O Papa exorta os bispos a serem generosos e abertos aos católicos [tradi­
cionalistas] que não devem ser marginalizados ou tratados como mem­
bros de "segunda classe" da comunidade católica. Eu pessoalmente acre­
dito que amplas garantias deveriam ser dadas aos católicos tradiciona­
listas, cujo único desejo é seguir um rito aprovado e legítimo. Em um
momento da história em que "pluralismo" goza de um direito de "cidada­
nia", por que não reconhecer o mesmo direito para aqueles que desejam
celebrar a liturgia do modo como foi feito por mais de quatro séculos?
Eu estudei cuidadosamente a questão da revogação do rito de São Pio V
III. O direito de qualquer Padre de usar o Missal de 1962 85

após o Concílio Vaticano II. Com base na minha pesquisa, eu não posso
concluir que o rito de São Pio V 138 já tenha alguma vez sido revogado.
Alguns acham que foi. Outros têm uma visão diferente. E assim como
diz o ditado latino, in dubiis, libertas [onde há dúvida, há liberdade].

138Deve-se sublinhar que a Missa Tradicional em Latim tem muito mais do que quatro
séculos de idade e que o Papa São Pio V não promulgou um novo rito da Missa (Novus Ordo
Missae) em 1570. A essência da reforma de São Pio V foi, como a do Papa Gregório Magno
(590-604), o respeito pela tradição. Em urna carta ao The Tablet publicada em 24 de julho
de 1971, o padre David Knowles, que foi o mais ilustre estudioso católico da Grã-Bretanha
até sua morte em 1974, apontou: "O Missal de 1570 foi realmente o resultado de instruções
dadas em Trento, mas foi, de fato, no que diz respeito ao Ordinário, Canon, Próprio da época
e muito mais, uma réplica do Missal Romano de 1474, que por sua vez repetiu em todos os
aspectos essenciais a prática da Igreja Romana da época de Inocêncio III [1198-1216], que
derivou do uso de Gregório Magno e seus sucessores no século VU:' Além disso, há provas
incontestáveis de que o núcleo do nosso Canon tradicional, do Quam oblationem (a oração
antes da consagração), incluindo a oração sacrificial depois da consagração, existia já no
final do século 4. Ver páginas 16 e 39 do meu folheto A Short Story of the Roman Mass.
87

SUMÁRIO

Apresentação da edição portuguesa .. . 1


1 Planos para uma revolução litúrgica? 3
2 O Movimento Litúrgico . . . . . . . 4
3 A ascensão e queda e ascensão e queda de Annibale Bugnini . 7
4 A primeira queda . . . . . . . . . . . 9
5 A segunda ascensão . . . . . . . . . 11
6 A imposição do Novo Rito da Missa. 14
7 A segunda queda . . . . . . . . . . . 15
8 Um esquema insuspeito para a revolução . 18
9 O Concílio dos periti . . . . . . . . . . 22
10 Detonando as bombas-relógio . . . . . 25
11 Omissão do termo "transubstanciação" 28
12 Participação ativa. . . . . . . . . . . . 31
13 Rebaixando a Liturgia ao nosso nível . 35
14 Uma Liturgia em permanente evolução . 37
15 A instrução ofusca a adoração . . . . . . 41
16 O protestantismo e a Missa . . . . . . . 43
17 A proibição de ajoelhar-se para a sagrada comunhão 45
18 Um outra bomba-relógio - "variações e adaptações legítimas" 47
19 Abusos litúrgicos fora de controle. 48
20 Legalize os abusos! . . . . . . . . . 50
21 A abolição do latim . . . . . . . . . 52
22 Resultados das reformas litúrgicas 54
23 Um desastre pastoral . . . . . . . . 56
24 A Missa e os sacramentos reformados por um maçom? 58
25 O Rito Romano foi destruído 60
26 A perda da Fé . . . . . . . . . . . . . . 61
27 A Missa que não morrerá . . . . . . . 63
Apêndices
I A participação dos protestantes na compilação dos novos ritos 65
II Os frutos da reforma litúrgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
II.l O incrível encolhimento da Igreja na Inglaterra e País de Gales . 75
II.2 O incrível encolhimento da Igreja nos Estados Unidos 77
III O direito de qualquer Padre de usar o Missal de 1962 . . . . . . 83

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