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RELATÓRIO ANTROPOLÓGICO DA COMUNIDADE BARRINHA, SÃO

FRANCISCO DE ITABAPOANA/RJ

1. INTRODUÇÃO

Este relatório tem como principal objetivo apresentar algumas

considerações pontuais sobre a situação que envolve a comunidade de Barrinha, objeto

da visita e do trabalho de observação realizado entre os dias 19 e 23 de novembro de

2008 pelo antropólogo João Siqueira, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária, doravante apenas INCRA. A respeito do conteúdo e propósito destas

considerações, trata-se aqui, de maneira ainda bastante preliminar, delinear aspectos que

sejam relevantes não apenas para o esclarecimento da ação que gerou o requerimento

junto ao INCRA-SR/07, ou seja, a identificação da referida comunidade como

quilombola, mas também apontar elementos importantes relativos ao contexto e à

problemática que envolvem este requerimento.

O documento de requerimento acima referido foi assinado por Angélica

Conceição da Penha, que subscreveu na condição de representante legal da comunidade

de Barrinha, e foi protocolado no INCRA/SR-07 sob o nº 54180.000467/2007-92 no dia

20/06/2007. Neste documento é enfatizado o interesse na emissão do título de

reconhecimento de domínio das terras ocupadas pelos moradores de Barrinha, “de modo

coletivo, nos termos do Art. 68 do ADCT, da Constituição Federal, bem como os

termos do Decreto nº 4877, de 20 de novembro de 2003”1. Ainda referente à situação

que embasou o pedido de reconhecimento já manifestado, importa ressaltar ainda que a

permanência de grupos domésticos descentes das primeiras famílias que se instalaram

1
Cf. Requerimento protocolado na Superintendência Regional do Rio de Janeiro- Incra-SR/07 e datado
de 20/06/2007.

2
na localidade foi enfatizada como forma de unidade e de resistência às pressões sofridas

por diferentes modos de exercício do poder local.

1.1. Nota metodológica

A pesquisa que deu origem a este relatório foi realizada por meio de

incursões com a finalidade de observar diferentes momentos da vida social em Barrinha.

Ao todo, foram feitas três visitas na comunidade, sendo que a primeira e a última

contaram com tempo maior de permanência do pesquisador na área – em torno de

quatro dias cada visita - enquanto a segunda foi realizada em tempo de

aproximadamente dois dias.

Por questão de método e para assegurar que a posteriori se tivesse um

conjuto dos fatos constituintes à solicitação demandada, à época da primeira visita,

foram observados aspectos gerais e feitos alguns registros que serviram para uma

primeira reflexão sobre a situação de Barrinha. Além disso, também foi produzido um

documento preliminar que procurava descrever, de maneira ainda suscinta, a natureza

de alguns eventos que pareceram circunstanciais à situação observada. Nesse caso, os

dados e informações que compunham o documento baseavam-se no trabalho de campo

de observação in loco, realizado entre os dias 19/11/08 e 23/11/08, sobre a situação

social que comporta o referido pedido de reconhecimento de terras de quilombo, no

município de São Francisco de Itabapoana, no estado do Rio de Janeiro.

A segunda visita ocorreu entre 24 e 25 de março de 2009 e tinha como

objetivo central colher informações mais detalhadas sobre a natureza da ocupação das

terras pelas famílias de moradores, bem como esclarecer algumas dúvidas em relação à

área que estava sendo pleiteada. Esteve também nesta visita o antropólogo da SR-07

INCRA-RJ, Miguel Cardoso, para esclarecer certos detalhes que deveriam ser levados

em conta por ocasião de eventual requerimento de incorporação de terra naquela área.

3
Além disso também foram realizadas algumas conversas com pessoas de dentro e

também de fora da comunidade acerca do andamento do pedido de reconhecimento.

A terceira ida a campo foi realizada entre os dias 20 e 25 de julho de 2009 e

teve a finalidade de coletar mais dados e confrontar informações já colhidas

anteriormente. Além disso, pretendia-se, com esta última incursão, observar e registrar um

possível posicionamento mais consistente dos moradores acerca do reconhecimento.

Nesta etapa as atividades diárias consistiram em conversas variadas, entrevistas dirigidas,

encontros com pessoas de fora e conhecedoras da situação de Barrinha, registros

fotográficos e de coordenadas geográficas da comunidade por meio de GPS. Embora o

resultado deste último levantamento tenha contribuído para esclarecer questões

específicas sobre demografia, ocupação e produção na comunidade, por exemplo, a

definição ou indicação de uma área que pudesse ser incorporado às terras já existente não

se concretizou. O problema envolvendo esta questão será tratado com maior detalhe mais

adiante no desenvolvimento deste relatório.

Em relação ao aporte teórico e conceitual que orientaram os procedimentos da

pesquisa de campo e a produção deste relatório, não pretendo adotar uma relação

mecânica entre instrumentos teóricos de sentido amplo e os problemas concretos que

foram observados em circunstâncias da pesquisa em Barrinha. No caso, estou

considerando pertinente - com a forte convicção de que isso jamais será confundido como

uma etnografia - descrever as condições em que se coletaram os dados da pesquisa, os

critérios adotados para seleção dos entrevistados e os métodos escolhidos por ocasião da

realização das atividades em campo.

De modo geral, as fontes bibliográficas e documentos que tive acesso e que

de algum modo faziam referência ao grupo de famílias negras de Barrinha - que há pelo

menos cinco ou seis gerações ocupa e usa de forma quase similar aquelas terras - não

4
traziam informações muito detalhadas sobre suas características organizacionais e

produtivas, ou sobre sua formação social no tempo. Nesses trabalhos podem ser

encontradas informações gerais e algumas mais específicas, especialmente em relação

ao jongo e à iniciativa de alguns moradores para se obter o reconhecimento de

comunidade remanescente de quilombo. Sendo assim, procurei fazer a reconstituição,

quando isso me pareceu factível, de alguns períodos da comunidade, especialmente por

meio da história de vida dos mais velhos e da memória que algumas pessoas na

comunidade procuram manter viva de certos acontecimentos envolvendo seus

antepassados. Importa ressaltar ainda sobre esse ponto a valiosa colaboração de pessoas

ligadas à Comissão Pastoral da Terra (CPT), em especial Carolina Abreu, que me

auxiliou não apenas fornecendo informações relevantes sobre a comunidade e os seus

moradores, mas também se tornou uma importante mediadora no processo que envolveu

minha entrada no campo. Considero, assim, que minha entrada teria sido muito mais

trabalhosa - especialmente pela condição de estar ali representando um órgão do Estado

– sem essa espécie de credencial local também muitas vezes necessária para o trabalho

de campo.

No que concerne aos elementos identitários e à reivindicação a que têm

recorrido os atores sociais objetos deste documento, adianto que estes se inscrevem em

seus respectivos sistemas de representação e compreende categorias classificatórias que

dizem respeito às suas próprias condições de existência no presente. Assim, considerando

que o elemento crítico nesse tipo de análise se situa no caráter de auto-atribuição, parto do

suposto por Barth (2000: 32) de que a atribuição categórica é uma atribuição étnica

quando classifica as pessoas em termos de sua identidade básica mais geral,

presumivelmente determinada por sua origem e seu meio ambiente.

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Ademais, estou inclinado a sustentar a interpretação de que o que se encontra

em jogo na luta pelo reconhecimento de Barrinha enquanto comunidade remanescente de

quilombo, tem a ver com um processo de construção de categorias de representação

social, cujas propriedades (estigmas e emblemas) podem ser percebidas quando se dá

atenção ao conjunto de práticas sociais que caracterizam a realidade do grupo. Com a

mesma perspectiva apontada por Bourdieu2, estou incluindo no plano do real a

representação do real que tais atores empreendem a partir de elementos selecionados no

seu mundo social. Em outras palavras, importa aqui registrar e reconhecer o processo

que vem sendo socialmente construído em torno da identidade e da afirmação dos

elementos culturais lhes são pertinentes, como definição legítima das divisões do

mundo social.

Enfim, importa destacar que os registros e informações aqui contidos foram

colhidos, primeiramente, a partir de um “olhar de reconhecimento”, que percorreu a

comunidade de Barrinha e seu entorno - incluindo aí a sede do município de São

Francisco de Itabapoana – e, em seguida, de trabalho de campo junto aos moradores da

comunidade. O objetivo central disso consistiu em tentar responder questões pertinentes

ao processo de identificação de território quilombola. Para tanto procurou-se realizar

algumas atividades elementares como a discussão com pequenos grupos de moradores,

entrevistas com pessoas antigas e de residência longa na comunide, além de tentativas

nem sempre bem sucedidas de convencer novos informantes no local a me fornecerem

mais detalhes sobre a comunidade. Todavia, acredito que o conjunto de dados coletados

aí me ajudaram a esclarecer alguns aspectos relativos ao processo de organização e da

natureza do requerimento reconhecimento solicitado pela comunidade.

2 Cf. Bourdieu (1989: 112).

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2. ASPECTOS GERAIS

2.1. Breve histórico do município de São Francisco de Itabapoana

A história do território do município de São Francisco de Itabapoana está

vinculada à divisão do Brasil em capitanias hereditárias. Em 1536, a extensão de terras

que hoje constitui o território do município passou a integrar a Capitania de São Tomé,

ou Paraíba do Sul, concedida a Pero Góis da Silveira, que recebeu do rei de Portugal D.

João III a doação da referida Capitania, que media 30 léguas de costa entre São Vicente

e Espírito Santo (Paranhos, 2000:21). A partir de 1539, Pero Góis da Silveira se

estabeleceu moradia nessa área, tendo escolhido esta região para implantação do núcleo

da Capitania por considerá-la de solo fértil e também protegida de eventuais ataques dos

índios Goitacazes, que à época dominavam a região. Durante a instalação da sede houve

um aparente entendimento com os indígenas que possibilitou a primeira plantação de

cana-de-açúcar, na área próxima ao Rio Itabapoana. Segundo Oscar (1977) esse

donatário teria se iludido com a aparente passividade dos indígenas que acabaram por

fazer novos ataques às instalações da sede da Capitania, incendiando canaviais e

destruindo instrumentos que lhes caíam às mãos. Bastante desanimado, Pero de Góis da

Silveira teria se retirado com seus familiares para a vizinha Capitania do Espírito Santo

e, em seguida, retornado para Portugal, abandonando as construções já feitas na região.

Somente no início do século XVII seu filho, Gil de Góis, tornou a voltar sua

atenção para a Capitania que herdara. Contudo, este não mais se interessou pelo

repovoamento da vila nas imediações do Itabapoana, deixando-a abandonada. E

somente em 1627, a Coroa portuguesa fez doação de parte da capitania aos Sete

Capitães, que compreendia de Macaé até o rio Iguaçu, hoje rio do Açu, perto do Cabo

de São Tomé, por parte da Coroa portuguesa (Paranhos, 2000: 41). A intenção do então

governador Martim Correia de Sá era povoar a área abandonada, já que se havia

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esgotado o comércio do pau-brasil. Em 1630, foi fundado o povoado de São João

Batista da Paraíba do Sul, atual sede do município de São João da Barra. O núcleo

urbano deste povoado somente foi elevado à condição de freguesia em 1644, o que

ocasionou maior fluxo de colonizadores e, como consequencia, permitiu maior

desenvolvimento para a lavoura canavieira.

Por volta de 1670 a freguesia teve determinada sua autonomia, recebendo o

nome de vila de São João da Praia do Paraíba do Sul. Porém, a vila foi anexado à

capitania do Espírito Santo em 1753, retornando à Província Fluminense em 1832. Em

1995, São Francisco de Itabapoana ganhou sua autonomia, quando foi desmembrado de

São João da Barra, passando a ocupar uma área de 1.111 km² o que o coloca na segunda

posição entre os maiores municípios do Estado do Rio de Janeiro em extensão

territorial, correspondendo a 11,5% da área da região Norte-Fluminense. O município é

atendido pela rodovia RJ – 224, ligando-se a BR-101 no município de Campos dos

Goytacazes. O município ainda é cortado em traçado de via costeira pelas rodovias RJ-

204 além da rodovia RJ-196. Segundo estimativa do IBGE, a população de São

Francisco de Itabapoana, em 2007, era de 44.475 habitantes.

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2.2. Aspectos da escravidão no Norte Fluminense

Durante grande parte do período colonial, as estruturas que sustentavam a

economia, a política e a sociedade em geral na província do Rio de Janeiro, mais

especificamente, na parte que corresponde ao atual Norte Fluminense, assentavam-se no

mesmo conjunto de elementos que caracterizava a estrutura montada pela Coroa

portuguesa para o Brasil colônia. Esta estrutura se baseava na utilização de mão-de-obra

escrava, no latifúndio e na monocultura de produtos tropicais de exportação, em

especial a cana-de-açúcar e seus derivados. Relacionado a esse desenvolvimento da

produção canavieira na região Norte Fluminense, estava o declínio da produção

açucareira no nordeste do Brasil.

A monocultura que caracteriza a produção de açúcar dessa época era

hegemônica. Nesse sentido, em qualquer área de terra cultivável era plantada a cana-de-

açúcar, o que em geral gerava um desabastecimento de gêneros alimentícios. Nesse

contexto, São João da Barra passou a ser fundamental à sobrevivência de diversos

centros produtores de açúcar em função de ser o porto da região. Todo açúcar produzido

na região de Campos era por lá escoado através do rio Paraíba do Sul (Cf. Cardoso,

2009). Apesar de expressiva, esta produção de açúcar só atendia a demanda interna, ao

contrário do Nordeste do país, que visava à exportação.

Com a exportação de açúcar e seus derivados para o Rio de Janeiro e para

outras regiões próximas, os numerosos engenhos da planície do Norte Fluminense ao

mesmo tempo em que progrediam, também vão exigir mais braços, especialmente no

início do século XIX, com a instalação da corte real portuguesa no Rio de Janeiro. O

aumento de cativos na planície foi tão expressivo que, em 1808, só no município de

Campos, do total da população de 31.917 habitantes, 17.357 eram escravos e 14.560

pessoas livres (Cardoso, 2009:22).

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Este aumento da população de escravos também podia ser notado nas

regiões de Macaé, de São João da Barra e de São Fidélis. O interesse despertado pelo

comércio cada vez mais aquecido de escravos, no mercado do Rio de Janeiro, acabou

criando novos entrepostos para o seu funcionamento. Sobre esse ponto, deve-se

considerar que para alavancar a produção de açúcar na região canavieira de Campos dos

Goytacazes, vários comerciantes ligados ao tráfico, notadamente portugueses,

transferiram suas atividades para portos localizados no Norte Fluminense, que passaram

então a receber com regularidade navios negreiros oriundos da África. O quadro abaixo

pode ilustrar esse movimento de saída de escravos do porto do Rio de Janeiro para o

Norte Fluminense entre os anos de 1822 e 1833:

FIGURA 1: Quadro de saída de escravos do porto do Rio de Janeiro para o Norte


Fluminense de 1822 a 1833

Anos Nº de Escravos
1822 446
1823 447
1824 1696
1825 1485
1826 2637
1827 1393
1828 3954
1829 2974
1831 1091
1832 202
1833 40
Total 20843

FONTE: Paranhos, 2000, p. 91.

Considera-se sobre esse aspecto que muitos traficantes obtiveram

significativo destaque nesse tipo de comércio. Boa parte dessas pessoas atuava nos

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arredores de Cabo Frio, de Macaé e de São João da Barra, que, para garantir o esquema

de funcionamento desse serviço, mantinham também agentes em Rio das Ostras, Barra

de São João, Cabo de São Tomé, Ponta de Búzios, Itapemirim, Parati, Marambaia e

Angra dos Reis, além de contar com elementos de ligação no Rio de Janeiro (Cf.

Cardoso, 2009). Nesses termos, o porto de Manguinhos como é conhecido ainda hoje -

uma importante referência da memória dos moradores e da historicidade de Barrinha, e

que nessa época pertencia à vila de São João da Barra - tornou-se importante entreposto

não apenas para os traficantes de São João da Barra, mas também para traficantes de

outras regiões como Quissamã, Bom Sucesso, Ubatuba, Carapebus e parte do Espírito

Santo (Oscar, 1985, p.74). Entre os principais traficantes dessa época estariam os

comendadores André Gonçalves da Graça e Joaquim Thomaz de Faria que em função

de capital proveniente do acúmulo de riqueza, compravam escravos de navios negreiros

e habituava-os em suas fazendas, até serem vendidos novamente a fazendeiros

interessados.

Durante o século XVII, com a crescente produção de açúcar no território de

Campos dos Goytacazes houve também a necessidade de aumentar a mão-de-obra

escrava, intensificando a importação de escravos. No século seguinte, a população

escrava já era o dobro da população de cidadãos livres, de acordo com Oscar (1985: 81).

As informações apontam que quanto mais crescia o número de escravos, mais

desumanos eram os castigos praticados por seus senhores. As condições de vida nesse

contexto tendiam sempre a piorar, já que os escravos, por sua vez, procuravam

intensificar as revoltas contra os senhores.

Nas fugas empreendidas por muitos desses escravos na tentativa de escapar

à truculência de seus senhores, eles não procuravam apenas áreas de encostas, serras

íngremes ou brejos perigosos. Eles também fugiam para matas inacessíveis e planícies

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onde montavam acampamentos ou fortalezas constituídas por escravos fugidos do

cativeiro, nativos e outros que eram marginalizados. Supõe-se que desses esconderijos

costumavam sair na calada da noite ou rumando por caminhos desertos para invadirem

fazendas e praticarem assaltos a viajantes, em busca de mantimentos e provisões.

Esta consideração também pode revelar um elemento complicador e

desagregador do sistema escravista com que passaram a conviver os senhores de

escravos desde então. A partir da intensificação de revoltas e das constantes fugas de

escravos, houve também uma difusão da ameaça e do terror tais fugas representavam o

que colaborou para desgastar o sistema escravista. Além disso, esse desgaste não se

limitava apenas às ameaças de possíveis revides e ataques dos negros, mas também no

fato de que, “afastando-se do processo produtivo, cada negro fugido representava perda

substancial para o capital do senhor, servindo ainda de exemplo, pela unidade de

interesses dos quilombolas, para outros cativos descontentes” (Oscar,1985:172). Em

decorrência principalmente dessas fugas, alguns registros indicam que o número de

quilombos em certas regiões do Norte Fluminense aumentou consideravelmente a partir

da segunda metade do século XIX.

Nesses termos, informações produzidas na época apontavam as serras do

Imbé como uma região de considerável proliferação de quilombos. Na divisa do Norte

Fluminense com o estado do Espírito Santo, também são encontradas referências da

existência desses quilombos. Em outubro de 1948, por exemplo, um senhor chamado

Gaspar Antônio da Costa Leal procurou informar o governo da província do Rio de

Janeiro sobre a existência de um quilombo localizado na cabeceira do rio Moquim,

afluente do rio Itabapoana (Cardoso, 2009). A localidade de Buena - situada

aproximadamente 4 km de onde hoje se encontra Barrinha - por suas características

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geográficas e presença de alagados, brejos, mangues e matas virgens servia na época

como refúgio aos fugitivos destas regiões.

2.3. Histórico e localização de Barrinha

Como já foi informado anteriormente, especialmente durante o século XIX,

a região onde hoje é o município de Campos, no estado do Rio de Janeiro, figurava

como uma das regiões com maior proporção de população escrava do Brasil. Esta região

também se caracteriza por situar-se próxima de uma área montanhosa da Mata

Atlântica, por onde se deslocavam os índios Goytacaz e Puris, que fugiam das missões

dos capuchinhos de São Fidélis (Lifschitz, 2006). No período que corresponde ao final

do século XIX e início do século XX, a imigração européia e as plantações de café

também passaram a figurar como parte da paisagem das serras da região.

As informações mais consistentes sobre a origem de Barrinha relacionam

seu surgimento a um provável desmembramento e venda da posse de terras que antes

pertenciam à fazenda São Pedro. Todavia, alguns relatos de moradores antigos também

fazem referência a uma possível usurpação, por parte de antigos fazendeiros da região,

de terras que há muito eram ocupadas por famílias negras, mas que não tinham

documento oficial que pudesse atestar a legalidade ou o direito da posse. Segundo esses

relatos, procurados por tais fazendeiros os chefes destas famílias teriam sido enganados

e vilmente usurpados por eles - teriam aceitado entregar, sob o pretexto de finalmente

poderem regularizar a posse das terras, alguns papéis que supostamente atestavam a

cessão ou doação das terras. De qualquer modo, seu surgimento parece remontar ao

final do século XIX, e está umbilicalmente ligado à fazenda São Pedro, que à época

pertencia ao traficante de escravos André Gonçalves da Graça (Cardoso, 2009).

Este traficante mantinha relações com os comandantes de navios negreiros

que conseguiam burlar a vigilância da Marinha de Guerra inglesa no Atlântico, trazendo

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para os portos do litoral Norte Fluminense não apenas mercadorias comuns, mas

também escravos que lá seriam negociados. Entre os portos onde esses escravos eram

desembarcados estavam os de Ponta do Retiro, nas proximidades de Buena, e de

Manguinhos, aproximadamente 2 km de distância de Barrinha.

Assim, supõe-se que as famílias negras que outrora ocupavam a área onde

hoje se encontra Barrinha eram, em sua maioria, oriundas da Fazenda São Pedro que,

fugindo dos maus tratos dos capatazes e de seus donos, procuravam aquelas matas com

presença de riachos e alagados para refúgio temporário. Esta característica de mata

virgem fechada que outrora tinha o lugar também foi invariavelmente lembrada em

todas as conversas que fiz com antigos moradores sobre aspectos ambientais da

comunidade na época de seus pais.

De acordo com informações colhidas no local, em princípio, as famílias das

quais descendem os moradores de Barrinha ocupavam terras que faziam parte da

Fazenda São Pedro, portanto, propriedade do fazendeiro que outrora também foi o

senhor destas pessoas. Após vários anos de trabalho na área da fazenda, essas famílias

de ex-escravos, entre elas as famílias Alves e Ferreira, conseguiram adquirir lotes que

eram então colocados à venda pelos novos proprietários da Fazenda São Pedro.

“Essas terras daqui todas foram compradas, elas foram pagas. Essas

terras eram da fazenda São Pedro, a fazenda loteou. Daqui até em

Manguinhos, lá ainda tem a divisão, dali pra cá tudo era da fazenda

São Pedro, até a praia, de fora a fora, até aqui onde tinha essa terra de

um outro pessoal, outra família, o povo Viana, a família do Viana, né?

Então a fazenda São Pedro fazia fundo com esses Viana. Aí uma certa

altura, eles fizeram um rumo e cortaram; deixou a linha pra praia e

lotearam. Teve um senhor que comprou uma parte grande né? E aqui

essa partezinha [área de Barrinha] ele loteou para o pessoal.” (Edmar,

96 anos – Barrinha, 22/11/08)

14
“Aquilo tudo [Barrinha] era dele [Gregório] e do falecido Libório. A
Barrinha era tudo deles dois. Fazia rumo lá pra Samambaia”.
(Carlinhos, 70 anos).

Além disso, outras informações reforçam a relação histórica do porto de

Manguinhos com a comunidade. Boa parte dos relatos colhidos na comunidade toma de

alguma forma esse porto como referência importante no conjunto de memórias dos

primeiros moradores e obviamente para reconstituir a história da comunidade. Ainda

segundo estas informações, o porto de Manguinhos, localidade situada

aproximadamente 2 km de Barrinha, representa uma importante referência na busca –

hoje provavelmente mais do que antes - da reconstituição histórica daquela comunidade.

De acordo com relatos de antigos moradores, no porto eram desembarcados,

selecionados e negociados todos os escravos que iriam trabalhar nas terras da fazenda

São Pedro. Outro aspecto importante para a compreensão da história de Barrinha diz

respeito às estratégias de obtenção e regularização de terras naquela região por

fazendeiros. O problema que emerge nos relatos dos mais antigos sobre a legalização de

terras no Norte Fluminense provavelmente remonta à década de 1950/60 quando houve

novo incremento da cana na região. Nesse caso, o receio de perder parte de suas terras

para comunidades negras de ex-escravos e, também seguindo o exemplo do que já havia

ocorrido na fazenda do Largo nas proximidades de Buena3, alguns fazendeiros trataram

de afugentar vários grupos de ex-escravos que moravam próximo de suas terras. De

acordo com fontes consultadas, nesse empreendimento que resultou na expulsão das

famílias negras das áreas próximas a fazenda, os fazendeiros contaram com inteiro

consentimento do serviço cartorial de São João da Barra.

3
Cf. Abreu (2007) essa área teria recebido um expressivo número de negros oriundos de quilombos do
período da escravidão e lá permaneceram até final da década de 1950 quando foram afugentados por um
fazendeiro da região chamado de Joça Sá.

15
“Essa terra pertencia a Fazenda. Então eles vieram para aqui. Depois

cada um, essa terra pertencia ao meu bisavô: Álvaro Gregório da

Penha, mas só que eu acho que não tinha nome em cartório; aí morreu

o velho e aí o cartório mandou o papel que eles tinham que pagar os

impostos. Na época era muito dinheiro, três contos, três mil réis...O

meu pai trabalhava pra um fazendeiro em Buena e eles não recebiam

em dinheiro, recebiam um papel com os dias que eles tinham

trabalhado e o valor que eles tinham o direito de gastar, então eles iam

naquele estabelecimento pra comprar, mas dinheiro na mão eles não

recebiam. Eles começaram a ter dinheiro quando começaram a plantar

e a colher aí vendiam e recebiam aquelas pataca grande, amarela, as

moedas de vintém, depois era réis. Antigamente dava o centavo e

tinha troco, então foi ai que eles passaram a receber e ter dinheiro pra

pagar. Ele - meu bisavô - tinha muito herdeiro, mas na hora de dividir

a herança ele não dividiu nem fez inventário, então cada filho, aqueles

que puderam pagar, foi como se tivesse comprado, em vez de fazer o

inventário de ter aquele direito que eles tinham, eles compraram um

pedacinho da terra. Então ficou meu pai, a mãe de Magali que era irmã

do pai de meu pai, a mãe e o pai de José Maria, cada um tinha direito

a um pedaço”. (Dona Zezé, 74 anos – entrevista realizada por Carolina

Abreu, 2007)

A relevância de significado e da historicidade desse lugar ganhou

recentemente um importante reforço de cunho científico. Pesquisadores da Universidade

Federal do Rio de Janeiro descobriram ossadas humanas próximo à praia de

Manguinhos, num local de ruínas onde notadamente existiam antigas construções

(figura 2), indicando assim a existência de covas coletivas para sepultamento de

cadáveres e confirmado os relatos dos moradores sobre o destino dos escravos que

desembarcavam naquela região.

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Figura 2: Área do porto de Manguinhos onde foram encontradas ossadas humanas

Fonte: Arquivo pessoal, 2008.

Em relação a sua localização, Barrinha situa-se ao norte de São Francisco de

Itapaboana, aproximadamente 10 km da sede do município, às margens da rodovia

costeira RJ-204, que passa por dentro da comunidade. Ao sul, Barrinha tem como

limites uma fazenda de grande porte, o antigo porto de Manguinhos e a vila de

Guaxindiba; a leste, a comunidade limita-se com o mar; a oeste faz fronteira com a

fazenda São Pedro; ao norte ficam as vilas de Buena e Coréia. A posição geográfica de

Barrinha possibilita o acesso de seus moradores às várias comunidades, vilas e

municípios existentes na região, favorecendo, sobretudo, a manutenção de uma ampla

rede de relações sociais que se estende inclusive para além da fronteira com o estado do

Espírito Santo. A importância dessa extensa rede de relações, em vários aspectos da

vida comunitária, será discutida mais adiante.

2.4. Fazenda São Pedro

De acordo com informações colhidas na comunidade e em seu entorno, a

fazenda São Pedro (figura 3) era, durante o período que funcionou o esquema de tráfico

de escravos na região, o destino inicial para onde a maioria dos negros desembarcados
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em Manguinhos era encaminhada e de onde, posteriormente, algumas famílias sairiam

para fundar a localidade de Barrinha. Esta fazenda que primeiramente pertenceu ao

Comendador André Gonçalves da Graça, conhecido traficante de escravos da região, foi

comprada em seguida por Simão Mansur, que repassou aos seus herdeiros tendo ficado

como responsável Fahid Mansur e que atualmente, segundo informações locais, foi

adquirida por um grande proprietário de terras em São Francisco de Itabapoana.

Figura 3: Foto vista parcial da Fazenda São Pedro

Fonte: Arquivo pessoal, 2008.

Atualmente, no entorno da fazenda São Pedro, ainda vivem várias famílias e

algumas delas continuam trabalhando para o seu último proprietário. A maioria dessas

famílias veio de estados vizinhos e algumas do Nordeste brasileiro para trabalhar na

cana entre as décadas de 1930 e 1960 naquela região. Arregimentadas para permanecer

na fazenda durante a longa temporada que envolvia o plantio e o corte da cana, essas

famílias foram assentadas em pequenas casas alinhadas à margem das estradas de terra

de acesso à fazenda (figura 4). À distância tais casinhas formam uma espécie de vila

arruinada que hoje integra o melancólico cenário da fazenda São Pedro.

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Mesmo vivendo nessas casas há pelo menos três décadas em média, os

trabalhadores da fazenda ou ex-trabalhadores - que já não podendo mais trabalhar e não

tendo outro lugar para ir por lá ficaram – não podem afirmar que têm um lar. Pois não

apenas a casa onde moram, mas também tudo que cultivam no pequeno espaço que

compreende o terreno dessas moradias não lhes pertencem. Além disso, existe o

consenso entre eles de jamais reivindicar algo nesse sentido. O estabelecimento desse

entendimento tácito de não reclamar direitos do dono da fazenda provavelmente está

ligado à forma ainda hoje empregada na contratação desses trabalhadores – trabalho em

regime de semi-escravidão - e às pressões e violências típicas do campo. Sob o número

que consta na plaquinha pendurada na frente de cada casa, também foi inscrita a frase

Propriedade da Fazenda São Pedro. Nas conversas que pude realizar com alguns

moradores dessas casas, eles relataram que ultimamente já não podiam ficar trabalhando

fora durante um dia inteiro. A razão, segundo o relato, era porque estava havendo

constante visita de capatazes da fazenda àquelas residências e quando alguma era

encontrada sem ninguém ela era imediatamente destruída. Informações colhidas no

local indicam que é intenção do atual dono da fazenda remover de vez com essas

marcas históricas da fazenda.

19
Figura 4: Foto de uma das casas nos arredores da Fazenda São Pedro.

Fonte: Arquivo pessoal, 2008.

Sob um olhar sociológico crítico, o cenário onde se desenrolam as histórias

de vida dessas pessoas que ainda vivem na fazenda São Pedro possivelmente seria

traduzido pela idéia de exploração, de violência e, sobretudo, de exclusão social.

Entretanto, na crua realidade que emoldura o cotidiano desse pequeno grupo de homens

e de mulheres – estas geralmente são viúvas e mulheres abandonadas pelo cônjuge –

existe sensibilidade suficiente para elas manifestarem sua fé, praticarem solidariedade

com os outros e até esperarem dias melhores para suas vidas. Foi este aspecto, sem

dúvida, que mais chamou minha atenção durante as horas que passei conversando com

representantes dessas famílias. Ao percorrer recantos longínquos da memória, na

tentativa de reconstituir fragmentos de uma história que nem sempre lhes foi favorável,

esses últimos moradores da Fazenda São Pedro assim como os de Barrinha, esforçam-se

para recontar episódios, reviver imagens, voltar ao tempo onde a fazenda São Pedro

surge como lugar de prosperidade, com grandes armazéns, das festas na fazenda, das

atividades eclesiásticas da igreja local e das rodas de jongo. Sobre esse ponto que

envolve tipos de sociabilidade e trabalho na área da fazenda São Pedro importa

20
acrescentar que se trata de um aspecto fundamental para a compreensão de certas

posturas tomadas por moradores de Barrinha em situações determinadas.

Cabe ainda ressaltar sobre essas narrativas que elas também revelam aspectos

singulares das relações sociais que ainda prevalece naquela área. Algumas

características das relações e práticas sociais observadas tanto em Barrinha como no seu

entorno tendem a mostrar não uma comunidade fechada ou desenraizada do tempo

histórico. Embora boa parte dos moradores de Barrinha atualmente defenda a

importância de retomar a tradição popular dos seus antepassados, cujo legado central é o

quilombo e a prática do Jongo, estas pessoas mantêm seu modo de vida sintonizado com

seus desafios atuais. Pessoas com idade mais avançadas tornam-se facilmente referência

para as mais jovens e não apenas em termos de reconhecimento no intuito de afirmar

uma identidade social, elas também são influentes na definição de condutas pessoais.

No entanto, como em toda formação social marcada por processos de interação, os

moradores de Barrinha também demonstraram disposição a fortes antagonismos em

certos aspectos da vida social, o que, por sua vez, leva essas pessoas a assumirem

posições contraditórias em situações específicas. Vou retomar a discutição desse ponto

com detalhes mais adiante.

3. ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE BARRINHA

3.1. Aspectos demográficos e grupo doméstico

À época da minha última visita, a comunidade constituia-se de grupo social

formado por sessenta e duas famílias, com total de 164 pessoas entre crianças e adultos,

segundo levantamento da própria associação de moradores. Dados gerais desse

levantamento indicavam que a comunidade possuía uma população formada

predominantemente por adultos, onde mais de 60% dos moradores tinham mais de 20

anos, 21% entre 11 e 19 anos e 18,29% eram crianças de 0 a 10 anos. Não obstante,
21
cabe ressaltar aqui que num estudo feito por Carolina Abreu, em 2007, a população de

Barrinha foi apontada em cerca de 250 pessoas que se distribuíam em 50 grupos

domésticos. Deve-se considerar ainda que a dinâmica do contigente populacional na

comunidade costuma ser marcado por fluxos constantes de saída e retorno de seus

moradores, o que certamente pode imprimir movimentos variados a essa dinâmica

populacional. Também foi feito um levantamento sobre o número de residências

existentes para indicar casas ocupadas e casas desocupadas. As casas efetivamente

ocupadas foram totalizadas em 66 e as desocupadas ou temporariamente desabitadas

correspondiam a 05 unidades. Além das residências, também foram contabilizadas três

pequenas fazendas na comunidade.

Em Barrinha foi observado que tanto as relações voltadas para atividades de

aquisição e reposição de recursos materiais quanto as que caracterizam a reprodução

social propriamente dita, são orientadas principalmente a partir do grupo doméstico.

Este, por sua vez, parece se configurar a partir de um processo, cujos mecanismos de

seu desenvolvimento e dinâmica são produzidos, simultaneamente, tanto no âmbito

interno da comunidade como por meio de movimentos engendrados através de relações

com o meio externo. Sobre as características gerais do grupo doméstico, pode-se dizer

que eles são notadamente extensos, formados por famílias bastante numerosas,

especialmente as mais antigas, que possuem em média 09 filhos. Um dos moradores

vivos mais antigos da comunidade (figura 5), por exemplo, com 98 anos de idade à

época, possuía uma família constituída de 13 filhos, 27 netos, 40 bisnetos e 08

tataranetos. Todavia, como já foi mencionado acima, é muito comum também notar que

em tais famílias muitas pessoas migram, seja para procurar trabalho ou para morar em

casas de parentes, para cidades vizinhas e para grandes centros urbanos como Rio de

Janeiro, São Paulo e Vitória.

22
Figura 5: Foto do Sr. Edmar, 96 anos.

Fonte: Arquivo pessoal, 2008.

Nesse movimento em torno da dinâmica das relações de parentesco

comunitária é comum encontrar pessoas que eventualmente voltam para visitas

esporádicas e outras que já tendo partido há bastante tempo, retornaram alguns anos

depois para refazer morada. Daí deve se considerar que a maior parte dos moradores

encontra-se ainda inserida em redes de parentesco bastante profundas em termos de

ancestralidade. Alguns dos atuais moradores descendem das quatro primeiras gerações e

se convergem em dois grandes troncos familiares, ou seja, Alves e Ferreira. Um

depoimento colhido de uma das mais antigas moradoras da comunidade revela um viés

importante dessa intricada relação:

“Olha menino, aqui nesse lugar, todo mundo é parente. Até esses

amarelos, esses brancos que você vê aí [apontando para casa noutra

extremidade] é parente. Porque a avó deles chamava-se Norata e

Norata era tia de papai. Ela era parenta de papai; agora por quem,

23
como... Eu realmente não sei. Ela era branca do cabelo duro, o cabelo

era igual ao Bombril.” (dona Zezé, 74 anos)

A respeito do grupo doméstico pode-se dizer ainda que uma de suas

características principais refere-se à maneira como ele tem se reproduzido. De fato, o

desenvolvimento do grupo doméstico costuma ocorrer, concomitantemente, por meio de

um processo que articula o campo interno das relações de parentesco a um movimento

que é desencadeado por outras relações sociais que, em geral, são estabelecidas no

entorno ou fora da comunidade. Assim, é possível observar, embora não muito

freqüentemente, que algumas famílias são constituídas a partir de relações mantidas

com pessoas, em princípio, externa à comunidade e, eventualmente, não ligada à

extensa rede de parentesco que tende a caracterizar a constituição do matrimônio nessa

localidade.

3.2. Lideranças e seu reconhecimento pelo grupo

A comunidade de Barrinha possui características que, em vários aspectos, se

assemelham às muitas comunidades rurais negras no interior do Brasil. Também nesta

comunidade, a organização social caracteriza-se por relações sociais específicas, que

entre outras características, estabelece relações hierarquizadas de poder entre seus

membros.

A este respeito, observas-se no caso de Barrinha uma evidente hierarquia no

que se refere tanto às relações entre gênero quanto entre distintas faixas etárias que

comportam a totalidade de seus moradores. Estas disposições hierárquicas, como bem

se sabe, tendem a definir papéis sociais específicos no âmbito das relações sociais no

interior do grupo, muito embora - e isto é de extrema importância ressaltar aqui - seja

fato conhecido também que o desempenho de tais papéis pelos indivíduos é relativo e

varia de acordo com circunstâncias dadas.

24
Nesses termos, a pesquisa de campo realizada em Barrinha revelou, por

exemplo, que no tocante ao reconhecimento de pessoas como lideranças, numa situação

em que o que está em jogo é o interesse do grupo e, por conseguinte, a legitimação da

atuação destas pessoas por uma ampla maioria, existe fatores sociais que são

condicionantes. Estes em geral dizem respeito a certos elementos que são articulados

dentro de uma escala de valores reconhecidos coletivamente e assim produzem o seu

efeito. Esta escala pode ser disposta numa seqüência que, em geral, decresce do

primeiro ao último elemento. Desse modo, fatores como idade, tempo de moradia e

convívio na comunidade, sexo, instrução e habilidades para lidar com o assunto são

elementos essenciais e decisivos para que os moradores atribuam credibilidade ao

indivíduo - o que, por sua vez, pode gerar apenas expectativa de apoio - a qualquer

realização ou atividade empreendida por ele no âmbito da comunidade.

O esclarecimento acima é necessário para que se possas compreender como

mais exatidão determinadas atitudes e condutas pessoais observados entre os moradores

de Barrinha em situações distintas que serão descritas mais adiante. Ademais, é muito

importante considerar o processo histórico de subjugação e as relações sociais

nitidamente assimétricas vividas pelo grupo até o presente momento. Daí decorre

maneiras específicas e muitas vezes diferenciadas de pensar e agir sobre a organização

na comunidade. Contudo, estas podem ser claramente articuladas ao conjunto de fatores

sociais, ambientais e ecológicos que caracterizam a vida comunitária.

Agora passo a descrever alguns desses aspectos. Ao chegar a Barrinha pela

primeira vez, fui apresentado a uma das pessoas que estavam à frente da mobilização

que pretendia requerer do INCRA o reconhecimento de território quilombola. Já

passava das vinte horas de uma quarta-feira, em meados de novembro de 2008, e a

25
maioria dos moradores já se encontrava recolhida às suas casas. Após algumas

informações iniciais trocadas entre o colega do INCRA, que à época me acompanhava e

a representante da comunidade, esta foi informada de que eu seria o responsável pelo

relatório antropológico. Ela então reforçou um convite já feito no início da conversa

para que eu ficasse para a festa do jongo, que aconteceria dentro de poucos dias.

Procurei saber mais sobre a festa e ela ainda me acrescentou alguns detalhes do evento,

antes de asseverar que seria bom eu participar, pois nela eu poderia ver como a

comunidade se mobiliza, além de conhecer quem são as “lideranças antigas”.

Angélica, a representante da comunidade que nos recebeu, devia ter pouco

mais de trinta anos, e, embora tenha vivido todo esse tempo lá, ela deixava entrever na

sua fala que assuntos envolvendo toda a comunidade nunca deveriam ser discutidos

somente por pessoas ainda jovens, como ela e outros que também organizavam o

evento, ou como ela mesma enfatizou “pessoas com pouca experiência”. Percebi então

por essa conversa que as lideranças antigas a que ela se referia certamente não iriam se

manifestar sobre qualquer assunto – sobretudo com um estranho - se elas não fossem,

digamos, ritualmente convocadas para fazê-lo. Aquela realização do Jongo era assim

uma forma não somente de trazer os mais antigos para um debate e ouvir seus pareceres

sobre uma discussão que importava a toda comunidade, mas também de reconhecimento

do funcionamento da própria estrutura social do grupo. Em outras palavras, para a

discussão sobre a reivindicação de território quilombola ir adiante, eram necessários

além do entendimento de um grupo de moradores, o consentimento e o envolvimento

destas pessoas consideradas referências na história da comunidade.

Na manhã do dia seguinte, fui procurar outra integrante da então recém-

criada comissão de discussão sobre o projeto quilombo de Barrinha. Mônica, a segunda

moradora da comunidade com quem conversei, tinha aparentemente menos idade que

26
Angélica e como esta, demonstrou a mesma deferência e profundo respeito às pessoas

mais antigas da comunidade diante das indagações que eu fazia. Essas lideranças mais

jovens consideram que para seguir adiante com a proposta de criação de comunidade

quilombola, será necessário ter o apoio das pessoas que, segundo elas, de fato

representam a comunidade. E embora freqüentemente elas destacassem que eram

grandes as dificuldades que enfrentavam na ocasião para ganhar apoio de outros

moradores, Mônica se mostrava confiante que quando tivesse a anuência dessas pessoas

estas dificuldades seriam mais rapidamente superadas.

Em geral, quando se reportava às pessoas mais velhas, algumas destas já

falecidas, Mônica o fazia com grande deferência pessoal, procurando enaltecer suas

virtudes e o papel de cada uma delas na luta para resistir a um tipo de aniquilamento da

comunidade. Ao fim da conversa, lancei uma proposta de reunião para que eu pudesse

ser formalmente apresentado aos moradores e assim explicar para mais pessoas o que eu

estava fazendo lá; ao concordar com a reunião, Mônica pediu que esta fosse realizada

no início da noite para tivesse tempo de comunicar as outras pessoas na comunidade.

Por volta das dezenove e trinta minutos do dia 20/11/2008, conforme

combinado, segui em direção ao local para a reunião então convocada pela diretoria

recentemente criada para tratar da questão do reconhecimento. A pauta, estava claro,

iriam discutir a criação da associação de moradores, o reivindicação do território e, com

minha participação, esclarecimentos de detalhes relativos ao processo envolvendo

identificação, delimitação e titulação de território quilombola. Percebi poucas pessoas

no enconto; e ainda esperamos um pouco mais até uma das organizadoras alertar que

niguém mais apareceria. Passei a vista rapidamente nas pessoas que se acomodavam

exprimidas numa pequena sala de cerca de 4m² cedida por uma das participantes para a

reunião; ao todo, não passavam de sete pessoas no encontro; dessas sete pessoas, duas

27
eram crianças com idade entre cinco e dez anos. Quase todos ali presentes eram jovens

mulheres. Apenas um rapaz compareceu ao encontro. Este, que se chamava José Maria,

exercia também a função de fiscal da diretoria que pretende criar a associação

quilombola de Barrinha; também foi o único dentre os demais homens com quem

conversei à época na comunidade que se mostrava entusiasmado com a idéia de criação

do território quilombola. Quando procurei saber porque havia tão pouca presença de

homens no movimento que pretendia ser de organização da comunidade, Mônica Alves,

que coordenava o setor de documentação da futura Associação Quilombola de Barrinha,

explicou a quase exclusividade de mulheres no processo de organização da comunidade

da seguinte forma: “Aqui somos nós que tomamos a frente desta luta. As mulheres aqui

têm que ser revolucionárias. O envolvimento dos homens nessas questões é muito

raro”. Ainda intrigado e procurando ir mais fundo para saber o que relamente se passava

na comunidade fui atrás de mais informações.

À época, pelos poucos dados que dispunha sobre a comunidade, cogitei que

o fato do pouco interesse demonstrado pela maioria dos moradores na questão

envolvendo o reconhecimento do território como remanescente de quilombo, fosse

consequência da combinação de dois fatores, em geral, muito comum nessas

circunstâncias: inexperiência das organizadoras, que por sinal eram todas bem jovens, e

falta de articulação para mobilizar os moradores. No entanto, nos dois dias que se

seguiram à minha chegada em Barrinha, uma indiferença ainda mais clara e intrigante

pelo assunto se fez presente no conteúdo das conversas que tentei inúmeras vezes

manter com outros moradores.

Durante esse período, a não ser as conversas já acertadas previamente entre

mim e duas representantes da comunidade, não consegui registrar nenhum outro

encontro ou discussão que tivesse o assunto como pauta. Todas as conversas que ouvi

28
na comunidade e também em seus arredores giravam em torno da realização do jongo.

Por outro lado, as tentativas de alongar uma conversa - quando isto me parecia possível,

visando uma apreensão melhor daquela situação - eram invariavelmente interrompidas

por um brusco “sei disso não” ou “não sei, agora preciso ir” logo que o tema território

ou terra de quilombo surgia. Isto ocorreu sobretudo com moradores adultos do sexo

masculino que, em geral, demonstravam inquietação ou desconfiança diante do meu

interesse no assunto.

A partir dos dados que consegui coletar, considero que a organização social

em Barrinha possui características específicas das comunidades negras rurais no interior

do Brasil. Como destaca O’Dwyer (2005), ao abordar as distinções que emergem no

contexto destas formas organizacionais da chamada “região interior”, não é só pela

procedência comum, o uso da terra, dos recursos ambientais e a ancianidade da

ocupação de um território comum, que as comunidades negras rurais “remanescentes de

quilombo” diferenciam-se e invocam seus direitos constitucionais (2005: 101). Esta

invocação tende a trazer à luz dos discursos de organização social.

Desse modo, o domínio que se exerce sobre um determinado território é

também simbolizado pelos relatos sobre pessoas influentes na comunidade e

acontecimentos com significado histórico relevante. De fato, pode-se dizer que no que

se refere à organização do grupo, Barrinha apresenta um conjunto de elementos que

podem variar ou serem combinados - ancialidade, conhecimento e uso de plantas

medicinais, figuras como parteira, jongueiro, etc. - para em determinadas circunstâncias

assumirem papéis socialmente reconhecidos e relevantes na organização do grupo.

29
3.3. Sinais da violência: o silêncio e a indiferença

Em geral, todos os relatos colhidos relacionam, de algum modo, o

surgimento de Barrinha à resistência empregada por pelo menos duas famílias de ex-

escravos que ao deixarem a Fazenda São Pedro, em fins do século XIX, passaram a

ocupar aquelas terras. Como já foi relatado anteriormente, essas famílias ocupavam

terras que supostamente faziam parte da fazenda São Pedro, portanto, continuaram a

compartilhar com proprietários que posteriormente vieram a adquirir a fazenda um

espaço físico que era desde já permeado de significados e notadamente de história

social. Assim sendo, a comunidade de Barrinha não pode ser vista apenas como

ambiente que resulta da construção social que lhe confere forma no tempo e no espaço.

Ela é sobretudo produto e, ao mesmo tempo, fonte de recriações socioculturais que

esses significados e o processo histórico tem imprimido sobre a realidade daquele grupo

social.

Neste capítulo tentarei descrever sobre aspectos da vida social de Barrinha

que estão diretamente ligados com esse processo social de elaboração e afirmação de

identidade através do território historicamente ocupado. As conversas que mantive com

vários moradores invariavelmente cessavam quando o nome da fazenda São Pedro

vinha era pronunciado. Às vezes essa referência à fazenda surgia no momento que os

próprios moradores teciam suas narravas. Em outros casos, provocada por alguma

pergunta que eu fazia sob o pretexto de um esclarecimento maior. Nesse caso, muito

raramente a conversa seguia o mesmo rumo. Em tentativas desse tipo, moradores mais

antigos que sabidamente tinham mais informações sobre a situação da fazenda, em geral

calavam-se ou faziam comentários evasivos, com frases curtas:

“Tio Edmar conta que os pretos daqui não podiam nem passar na

porteira; nem pra tomar água na porteira que eles botavam uns

cachorros pra correr com ele de lá.” (Dona Zezé, 74 anos)

30
É possível, contudo, depreender daí que a memória que dá origem e refaz os

percursos dessa história envolvendo seus antepassados pode também revelar

sentimentos que ainda acompanham os moradores de Barrinha do presente. Num

exercício de olhar mais demorado para o fundo dessa história é possível perceber, por

exemplo, que o longo silêncio que costumava se interpor nos diálogos estabelecidos

com moradores mais antigos, podia muito bem ser pela recusa de continuar dando vida,

ainda que só na lembrança, à brutal violência sofrida nas dezenas de anos de cativeiro.

Assim, não gostavam de se referir à fazenda São Pedro; quando falavam procuravam

não dizer muito; e se diziam, o faziam com indiferença. O silêncio era a fala. E a fala no

silêncio expressava a resistência e também a dor dos antepassados4.

Além disso, tudo indica que eles sempre evitaram trabalhar para os

proprietários da Fazenda São Pedro, mesmo já sendo estes novos proprietários que não

tiveram escravos5. Assim, por um lado, recusam implacavelmente dar vasão à

lembrança do tempo no cativeiro que ainda atormenta suas vidas; e por outro, parece

também quererem rejeitar a possibilidade de pisar na propriedade que escravizou seu

ancestrais.

Os motivos para muitos moradores de Barrinha evitarem comentários acerca da

fazenda São Pedro, parece realmente estar associado à história de cativeiro e de trabalho

escravo vivido por seus ancestrais. Mas há, contudo, uma outra narrativa que relata

processos de apropriação, expulsão e violência no campo praticados por proprietários de

fazendas sobre famílias negras de pequenos agricultores naquela mesma região. Esta por

sua vez refaz, por meio dos recursos próprios da memória, caminhos que ora se

4 Lifschitz em seu trabalho sobre a comunidade Machadinha, também situada no norte fluminense, faz
referência a esses longos espaços de silêncio deixados por seus entrevistados ao que ele interpreta como
sendo mais uma tentativa de expressar um sentimento que construir uma narrativa (2006:124).
5 Carolina Abreu também descreve esta resistência dos moradores de Barrinha e destaca o fato destes
sempre terem resistido em trabalhar para os proprietários da Fazenda São Pedro.

31
entrelaçam e ora se tornam multifacetados para encorporar subjetividades e significados

da história de vida de seus autores.

“Meu tio vivia naquela fazenda; existia lá abandonada... eles

chegaram como dono e não se aproximaram ao pessoal com papo

agradável. Chegaram e quer tirar na marra de qualquer maneira... O

pessoal se revoltaram. Criado na roça, pouco argumento, se

revoltaram com aquilo. O que fizeram eles? Foram lá pegaram

policiamento e trouxeram para aí. A cavalo, bem armado, e foi aquela

ignorância. Várias vezes eu vi o pessoal, casa pegando fogo ali do

lado e o dono da casa debaixo do pé de árvore, chovendo, com a

família debaixo do pé de árvore. Tremenda covardia, que aquilo não

se faz com animal que não raciocina, imagina com quem raciocina? ...

Chegavam naquelas casas.... entravam pra dentro dos quartos e

tiravam gente totalmente despida. Não existia o menor respeito com

os moradores. Alem de arrasarem com a roça, botavam fogo nas

casas.” (Osíris Neves da Penha, 1995, em entrevista para revista

Piracema apud ABREU, 2007:21).

Assim, algumas pessoas relatam que as terras pertenciam aos seus

antepassados e que só depois os fazendeiros chegaram, trazendo boi, tombando árvores

e expulsando os negros que lá viviam. Em outros relatos, o que ganha ênfase são as

pessoas que teriam fundado a comunidade e que foram dono de uma grande faixa de

terra que ultramassaria a área hoje ocupada por Barrinha.

“Tenho na base de 80, setenta e tantos anos. Tinha muita gente

morando lá. Sou nascido e criado aqui em Barrinha. Lá tinha um

bocado de gente. Plantavam milho, feijão, farinha. Cada um tinha sua

roça e vendia em Gargaú. Levava no cavalo, boi, burro. Eles faziam

que eles queriam. Fazia de contra que o dono do município de São

João da Barra era ele, Joça Sá... Eles pegavam boi e botava dentro da

32
roça. O que botava a mandioca pra fora era o boi lavrador e o que

comia era o tarefeiro. Expulsaram muita gente. Eles já chegavam

feitos, chegavam na casa e dizia que estava na terra dele. Houve um

assassinado. Mataram o João Maruí.” (Francisco Alves. Fonte:

Piracema, 1995:16 apud ABREU, 2007:22).

Grande parte desses depoimentos, alguns colhidos por pesquisadores

preocupados em coletar dados sobre aspectos culturais e históricos da comunidade para

reativar a prática do jongo, em geral tende a destacar a trajetória de resistência e de luta

daquelas famílias na perspectiva de manter uma unidade, seja por meio do reavivamento

de tradições culturais específicas, seja no plano mais elevado e complexo da

constituição do território quilombola. Neste último caso, podem ser observados alguns

elementos que apontam para um processo intricado que envolve, ao mesmo tempo,

projeto de construção de identidade e posições que no plano individual mostram-se

inteiramente refratárias a esse constructo social. Vou voltar a esse ponto mais adiante

quando expor sobre o processo de construção da identidade. Por ora, deve se destacar

que no atual contexto sociopolítico de Barrinha figuram diversos grupos que atuam de

forma diversa como colônias de pescadores artesanais, assentamentos do MST, grandes

fazendeiros, comerciantes, proprietários de imóveis de veraneio, indústria de minérios, e

outros. Importa, sobretudo, destacar que no campo de interação em que se posicionam

os moradores de Barrinha, há diferentes interesses e capacidades de ação, e as pessoas

nesse contexto argumentam muitas vezes a partir de visões de mundo distintas e até

divergentes sobre determinado fato ou situação.

3.4. A terra como marcador de pertencimento

Em Barrinha dificilmente pode ser encontrada uma terra ou terreno - como

são chamados os lotes de terra pelos moradores - que tenha como proprietário apenas

33
uma pessoa. Tão difícil quanto isto é também não supor imediatamente, por habitual

abreviação do olhar externo, que tal maneira de posse e uso da terra não gere algum tipo

de desentendimento ou desavença interna. Em geral todo e qualquer espaço que a

comunidade ocupa - áreas destinadas ao cultivo, à pequena lavoura e área de residência

– é compartilhado por vários membros de uma e até mais famílias, cujas regras e

direitos podem ser sustentados e admitidos pelos próprios moradores a partir de um

campo realmente intrincado na relação de parentesco. Em outras palavras, poderia se

afirmar que em Barrinha vigora o uso comum das terras como forma de apropriação e

de uso dos recursos disponíveis. No entanto, algumas observações com base no trabalho

de campo revelam ambigüidades que também podem ser interpretadas como

características inerentes ao tipo de organização social da comunidade.

Esta forma de admissão e sustentação de direitos pelos moradores em

relação à posse e ao uso da terra, em síntese, apóia-se essencialmente na complexa rede

de relações de parentesco e num conjunto de normas coletivamente aceitas no interior

da comunidade. Desse modo, um “pedaço de terra” sob os cuidados de uma ou mais

famílias, que lá fixou residência e mantém sua plantação, por exemplo, possui em geral

uma relação de donos tão extensa quanto forem os membros da família que aquela terra

representa. E este é um elemento fundamental na organização do grupo. A terra tende a

representar efetivamente o conjunto dos grupos domésticos e, com base nesse

mecanismo discricionário, os moradores reconhecem direitos e auto-atribuem uma

identidade social. Quando indagados sobre a quem pertence um determinado terreno, é

comum ouvir dos moradores respostas que reafirmam esta característica indivisa que a

terra possui na comunidade. Numa das entrevistas quando procurei saber, por exemplo,

sobre a possibilidade de algum membro da família aceitar oferta de compra do seu lote

34
por um dos fazendeiros ali vizinho ou outra pessoa de fora da comunidade, seguiu-se

então este comentário:

“Houve um tempo que essa comunidade tinha muita gente. E toda essa

gente ia na praia pegar ostra pro almoço, pra janta... Durante a maré

de lua toda a gente daqui ia, colhemos muito. Nessa época, não se

vendia ostra e a pessoa só ia tirar pro seu sustento. Essa comunidade

maior tinha muita gente. Tinha um pessoal desse lado que foi pra Rio

das Ostras e hoje estão doido pra ver se consegue voltar. Porque eles

venderam a terra pra fazendeiro e o fazendeiro deu aquele preçozinho,

agora valorizou; e as pessoas não têm esse dinheiro pra comprar de

volta. Por isso eu tenho dito que é difícil vender esses terrenos aqui

onde estamos... Por essa experiência. Além disso, quando a pessoa sai

daqui sabe que sempre pode voltar. Minha irmã saiu passou um

tempão, eu pensei que não ia mais voltar e voltou. Então a gente

entende isso. Porque já veio uma, daqui a pouco pode vir a outra,

porque sabe que aqui onde plantar uma casinha vai ser nosso. Nós

vivemos aqui tomando conta, mas o direito deles é sagrado. Por isso

não precisa nem comprar; vem aqui faz o orçamento dele e planta uma

casinha.” (Nevinha Alves, 68 anos).

No depoimento acima há referência a uma “comunidade maior” que

teria antecedido a atual e desta se diferenciava principalmente em termos de

tamanho e população. Alguns relatos colhidos sobre essa “comunidade maior”

indicam que nela havia número muito maior de famílias ocupando uma área que

também era bem mais extensa que os atuais 84 hectares aproximadamente que a

comunidade ocupa (ver croqui em anexo). O tamanho exato da área que essa

antiga comunidade possuía bem como a população que nela habitava não chegou

a ser apontado em outras conversas sobre o assunto; moradores mais jovens e até

35
um informante que me indicou os limites de Barrinha também desconheciam a

chamada “comunidade maior”.

A observação de outro aspecto que marca a forma de domínio coletivo da

terra em Barrinha pode esclarecer melhor o comentário descrito acima. Entre a geração

mais recente, a certeza de possuir direito a um “pedaço de terra” em geral é confirmada

pela linha de parentesco, ainda que esta não seja explicitada por meio de documentos

que ateste a extensão da área e a natureza do domínio. A posse e o acesso a tais

documentos ou “papéis” da terra como chamam os moradores é exclusividade dos mais

antigos. Ao que me pareceu eles ficam em poder do patriarca ou da matriarca da

família, e, ao que tudo indica, é repassado a outro membro por ocasião de doença e

morte deste. Sobre a materialidade e o conteúdo de tais “papéis” não encontrei ninguém

que pudesse fornecer detalhes a respeito; também não pude ter acesso a esses

documentos exatamente pelo que já foi exposto. Devo acrescentar, contudo, embora eu

não tenha registrado diretamente esse aspecto e tenha apenas ouvido comentários, que o

controle dos chamados “papéis” que representam a legalização da posse da terra,

também gera descontentamento entre alguns membros da família.

Os motivos da existência desse controle absoluto sobre documentação de

terras por certos membros da família também podem ser depreendidos do que já foi

exposto sobre a história de violência e práticas abusivas do poder local. Por outro lado,

devo destacar que, muito embora o esforço pessoal, minha condição de funcionário do

INCRA e visitas muito curtas não podiam naturalmente me colocar em situação da qual

eu pudesse gozar de algum grau de confiabilidade maior com os moradores. Por isso,

recorri a estratégias que melhor poderiam me ajudar nessa aproximação com o grupo.

Nesse sentido, farei a seguir um breve relato de minha participação na realização da

36
festa do jongo, cuja finalidade aqui é continuar discorrendo sobre o processo identitário

em construção por atores da comunidade com colaboração de agentes externos.

3.5. O Jongo no jogo do processo identitário

O jongo praticado em Barrinha constitui um traço singular da memória e da

manifestação de sociabilidade do grupo. Ele representa tanto expressão de musicalidade

e de dança quanto capacidade de reorganização e inovação daquela comunidade negra a

apartir de elementos centrais da sua cultura.

Também conhecido como caxambu ou tambu, o jongo é concebido como

uma dança e um gênero poético-musical característico de comunidades negras de zonas

rurais e da periferia das cidades do sudeste do Brasil (Pacheco, 2007). Em geral o jongo

é praticado como diversão, mas pode também comportar aspectos religiosos e encenar

manifestações de valorização das características culturais do grupo. A origem do jongo

está associada às danças realizadas por escravos nas plantações de café no Vale do

Paraíba, nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, e também em fazendas de algumas

regiões de Minas Gerais e do Espírito Santo. Um elemento comum na prática do jongo é

o uso de tambores.

37
Figura 6: Tambores do jongo de Barrinha

Fonte: Arquivo pessoal, 2008.

Em geral, são dois ou mais desses instrumentos feitos de troncos de árvores

escavados, cobertos de couro em uma das extremidades e afinados com o calor do fogo

(figura 6). Em relação à musicalidade, o jongo em Barrinha é desenvolvido em estilo

vocal livre, com frases curtas cantadas por um dos solistas e repetidas ou respondidas

pelo coro que se forma em torno da fogueira. O canto contém uma linguagem poética

metafórica e a dança possui passos sincronizados que podem ser executados de forma

performática por duas ou várias pessoas formando círculo, a chamda roda de jongo

(figura 7).

Infelizmente não poderei reproduzir aqui trechos com letras do canto do

jongo, pois o áudio com que gravei alguns cantos não ficou bom. Além dessas

características, pode ainda ser observada em outras regiões a presença da umbigada,

passo de dança característico em que dois dançarinos encostam o ventre, conforme

assinala Pacheco (2007:16). Todavia, durante a noite de jongo que presenciei em

Barrinha não observei a realização dessa performace pelos dançarinos.

38
Figura 7: Roda de jongo em Barrinha

Fonte: Arquivo pessoal, 2008.

Importa destacar que as considerações realizadas nesse capítulo são apenas

para efeito de informar sobre aspectos gerais do jongo enquanto expresão de arte e de

cultura da comunidade. Não se poderá jamais encerrá-lo nessas observações de

superfície. Em termos de descrição desse elemento cultural, o que pretendo é tão

somente fazer um breve registro da sua significância no processo identitário do grupo.

Ao dirigir o olhar para a organização da festa em torno do jongo constatei

que, enquanto elemento de expressão cultural daquela localidade, praticamente nenhum

dos moradores com quem conversei preocupou-se em falar do jongo em termos de sua

essência ou como elemento definidor da cultura na comunidade. As pessoas que

arriscaram a dar definição desse tipo, com alguma propriedade, eram aquelas que já

vinham há algum tempo colaborando com a realização da festa ou agentes que

representavam entidades convidadas. E estas eram notadamente pessoas de fora da

comunidade. É provável que preocupação deste tipo não haja realmente entre os

“jongueiros” - aqueles que praticam e vivem livremente o encanto desta tradição que

39
entrelaça dança com saber ritual e religioso. Quando insitentemente interrogados,

limitam-se apenas a repetir, reiteradamente, que “jongo vem de longe”; “tem a ver com

a alma”; que “a pessoa sente o jongo e por isso canta e dança com ele”. Mas o jongo é

também percebido como importante aliado na reivindicação de território e um suporte

da própria identidade étnica. Algumas pessoas de dentro da comunidade e que atuavam

na organização da festa também falavam de resgate do jongo como forma de

organização e de mobililização com vistas a acionar políticas de ação afirmativa no

âmbito Estado.

A organização do jongo, como já foi mencionado, conta com a colaboração

de pessoas de fora da comunidade e a participação na festa é livre com presença de

convidados de muitos lugares. No evento sobre o qual estou discorrendo, por exemplo,

havia vários grupos de dança representando diversas comunidades com as quais

Barrinha mantém contato frequente. Na maioria dessas comunidades o jongo é também

praticado como dança investida na tradição das comunidades negras rurais, com

recriações que evocam a particularidade de cada situação. A análise desse tipo de festa

popular, no entanto, muitas vezes é feita sob a visão dicotômica de tradicional e de

moderno, o que, por certo, reduz significativamente a complexidade dos elementos que

a constituem, limitando assim sua ação no universo das relações sociais.

Desse modo, por exemplo, Javier Lifschitz ao focar sua análise no jongo de

Machadinha - comunidade situada também no norte fluminense – sugere que a

confluência das ações empreedidas por diversos atores para co-produzir a “comunidade

tradicional” constituiria um processo que ele chama de neocomunidades (Lifschitz,

2006: 116). De acordo com essa visão, os atores de fora da comunidade seriam agentes

modernos que, em coperação com pessoas de dentro da comunidade, operam de forma

organizativa, material e simbólica no sentido de co-produzir um tipo de “comunidade

40
tradicional”. Nessa perspectiva, as chamadas neocomunidades se situariam em um

lugar ambíguo entre a tradição e a modernidade. E por estabelecer relações de mútua

dependência entre os pólos moderno e tradicional esta ambigüidade seria a

característica estrutural de tais comunidades. Percebe-se, entretanto, que no caso de

Barrinha a natureza de conformidade auto-explicativa dessa noção de neocomunidade

seria insuficiente para uma adequada compreensão dos arranjos que são constituídos em

termos de ação social. Pessoas de fora e de dentro da comunidade tendem a assumir,

concomitantemente, atividades e posições que muitas vezes apresentam-se invertidas

dentro da tipologia que o termo neocomunidade enuncia. O pressuposto dicotômico que

sugere distinção de comportamento e de interesses entre agentes moderno e agentes

tradicionais torna-se assim imperceptível nesse campo de relações sociais. Algumas

anotações da pesquisa de campo foram de grande importantância para reforçar esse

ponto de vista. O depoimento reproduzido abaixo foi registrado durante uma conversa

aberta envolvendo pessoas que cooperam para a realizaçãodo jongo.

“O jongo aqui fizeram uma pressão muito grande porque o pessoal

tava querendo levantar o passado pra frente, né? Teve um cabeça dura

que achou que esse pessoal que vinha entrevistar e gravar aqui

qualquer verso, ia levar aquele verso pra vender. Vocês vinham aqui

pra levantar, pra nós fazer o jongo, gravar apresentação e levar pra

mostrar que a gente sabe dançar. Ele achava que vocês vinham aqui

pra gravar, pra filmar pra levar pra vocês fazer livro, fazer cd pra

vocês vender e ficar com dinheiro pra vocês, vendendo a gente.

Porque se esse pessoal fosse unido, esse negócio tava mais animado...

Porque a gente quer unir e ela [referindo a certa pessoa na

comunidade] está sempre se afastando. Eu luto pra esse jongo ir pra

frente um pouco... Agora que tão se empolgando mais um pouco, que

Loca vai algum lugar. Já foi em Cacimbinha duas vezes, foi em Lagoa

Feia, agora que ele tá se empolgando. Mas no começo teve gente que

41
botou na cabeça dele que esse jongo tava sendo vendido, nós tava

sendo vendido; e ele se afastou muito, muito mesmo. Isso pra sair

Carol lutou, você pode crer. Ela teve que ter muita paciência.” (dona

Nevinha, 68 anos)

No centro da questão que gera desabafos como esse que dona Nevinha

protagonizou ou reforça a desconfiança de outros a respeito da utilização rentável

do jongo por terceiros, está uma ampla rede de relações desencadeada pelo jongo,

que envolve sempre uma variedade de atores que se articula em vários níveis. A

complexidade desse arranjo por si só tende a dificultar o olhar dos próprios

moradores sobre o projeto do qual o jongo é parte essencial.

Em geral, tanto as informações obtidas dos moradores quanto as impressões

obtidas na observação do jongo, podem remeter o interlucutor a uma pluralidade de

referências que vão desde evocações espirituais e rituais, passando pela memória

coletiva da vida em cativeiro, da emoção dos encontros e desencontros, do infortúnio e

da prosperidade de conhecidos até a celebração da vida em sua plenitude. Tudo isso

pode ocorrer ao mesmo tempo; são tempos e espaços diferentes que no jongo se

fragmentam para se recomporem contínua e sucesivamente.

Retomando a aguda leitura feita por Lifschitz, o jongo não pode ser

considerado apenas como dança. Trata-se de um saber ritual e religioso que se transmite

entre as gerações. Além disso, relatos colhidos indicam que antigamente os praticantes

aproveitavam a rebeldia das noites de jongo para fomentar as fugas de escravos, definir

estratégias de resistência e as ações que deveriam ser realizadas para manutenção dos

quilombos. Num breve relato sobre alguns aspectos envolvendo sociabilidade no jongo

Carolina Abreu enfatiza que as pessoas “também usavam esse momento para expressar

alegria e contentamento, disfarçar as dores, inspirar versos e romances, animar as rodas

42
de conversa e dançar até a fogueira se apagar.” Assim, por meios dos vários relatos e

das interpretações que tomam o jongo como importante manifestação sociocultural da

comunidade, pode-se abstrair que ele é também um elemento central na discussão sobre

o processo de construção da identidade étnica em Barrinha.

4. ASPECTOS AMBIENTAIS E ATIVIDADES PRODUTIVAS

4.5. Ambiente e produção

Por estar situada em região próxima ao litoral, a área ocupada pela

comunidade possui relevo e clima comuns a este tipo de paisagem que cobre boa parte

da costa brasileira, com presença de terreno pouco acidentado, enseadas, áreas

alagadiças e praias. Em termos de composição já bastante alterada pela ação humana

ainda apresenta algumas áreas cobertas por vegetação de restinga, mata ciliar ocupando

as margens dos riachos que cortam a região e vegetação de mangue. Ao redor da

comunidade, especialmente nos sentidos norte, sul e oeste, há predominância absoluta

de pastos e canaviais. No sentido leste, exatamente ao fundo da comunidade, é possível

notar fragmentos de vegetação de mangue contornando pequenos riachos que deságuam

no mar.

Em relação às atividades produtivas desenvolvidas na comunidade, pode se

afirmar que os moradores cultivam uma pequena variedade de produtos que se destina

quase inteiramente para o consumo interno. Com exceção de produtos como a cana, o

abacaxi, aipim e feijão, cultivados principalmente para comercialização, os demais são

consumidos dentro da comunidade. A cana, plantada pelas famílias em parcelas de terra

bem mais extensas que outros produtos, notadamente é a que mais gera renda para seus

produtores. Os principais compradores desse produto são usinas localizadas nos

43
municípios de São Francisco de Itabapoana e Campos. O abacaxi ocupa o segundo lugar

em termos de plantação e comercialização. Em menor, mas com parte da produção

voltada também para venda, estão ainda produtos como aipim, feijão e banana.

A respeito dessa negociação e os ganhos obtidos com a venda desses

produtos, alguns moradores comentaram com certa indignação sobre a dificuldade de se

alcançar preços mais justos para seus produtos. Na visão desses moradores, quem

realmente mais fatura no tipo de negociação estabelecida para a venda desses produtos

seriam os atravessadores. Este agente geralmente compra o produto ainda de seus

produtores na comunidade e o transporta até a sede do município onde será novamente

negociado. Em conversas realizadas sobre a forma de transação desses produtos, um

morador me informou que recentemente tinha conseguido vender algumas caixas de

aipim ao preço de R$ 4,00 cada. Ele afirmou ainda que este talvez fosse o valor mais

alto que se podia conseguir com a venda desse produto na comunidade, pois ele também

reconheceu que alguns atravessadores pagavam, em média, R$ 3,00 por caixa. Na

relação que envolve a venda desses produtos agrícolas na comunidade, ficou patente

que os moradores de Barrinha não conseguem impor um preço que eles consideram

justo.

Além dos produtos acima referidos, também são cultivados na comunidade

o milho, a abóbora, o quiabo e hortaliças em geral. Juntamente com essas atividades

agrícolas, havia ainda, até em 2008, uma importante atividade de coleta de mariscos que

era realizada inteiramente por mulheres da comunidade.

44
Figura 6: Foto de feijão colhido com plantação de abacaxi ao fundo

Fonte: Arquivo pessoal, 2009.

O principal produto dessa atividade era a ostra retirada de viveiros naturais

formados por cadeias de pedras de grande porte. Segundo informações das moradoras,

uma parte do produto coletado era destinada à venda para efeito de complementação da

renda familiar. Outros frutos do mar também eram coletados pelas mulheres, mas esses

eram basicamente para incrementar a dieta alimentar das famílias. Estas informações

foram obtidas ainda durante minha primeira ida em 2008. Em julho de 2009, em minha

última visita, fui informado que as mulheres haviam parado com essa atividade em

razão das ostras terem praticamente acabado. A explicação para esse desaparecimento

repentino das ostras na comunidade em geral segue a mesma percepção do comentário

abaixo:

Hoje já deu vontade de ir lá na praia ver umas ostras, mas nem sei se

vou encontrar. Não tem mais ostras nas pedras. Mas não foi o pessoal

que acabou não. Sabe o que acabou as ostras? Química. Depois que

instalou essa Petrobrás aí, e de um certo tempo pra cá essa industria

45
nuclear ali [apontando em direção à comunidade Buena] acabou com

tudo. Acabou mangueira, acabou ostra, acabou mangue, acabou com

tudo. Essas químicas brabas que cai, você vê essa química que caiu lá

na fábrica de papel, foi lá em Minas Gerais. Eentão aquele resíduo

saiu veio tombando pelo rio caiu no mar; atingiu Espírito Santo e

passou por aqui, passou aquele lodo que a água não batia; e as praias e

os mariscos morreram tudo; quando a maré secou, que ela puxa aquele

negócio, ela enterra na areia; ela não deixa voltar não aquele resíduo

ela enterra na areia e aí acabou com uma porção de raça de peixe,

porção de raça de marisco. Daqui pra lá [Guaxindiba] tinha três

pedreiras que tinha ostra, dessa época pra cá nunca mais nasceu uma

ostra. Tinha em Manguinhos e em Guaxindiba, mas nem sei se ainda

tem por lá ostra. (Dona Nevinha, 68 anos)

Como demonstra o comentário acima, os motivos para que as ostras tenham

acabado ou como na versão dos próprios moradores “os mariscos morreram tudo” é

explicado pela intensa poluição que teria afetado as praias de São Francisco de

Itabapoana. Esta poluição seria resultado de alguns empreendimentos que nos últimos

anos foram instalados inclusive nas redondezas da comunidade, sobretudo, de indústrias

que exploram minerais pesados e petróleo nas proximidades do litoral norte fluminense.

Uma das indústrias constantemente lembrada pelos moradores é a Unidade de Minerais

Pesados de Buena, da Indústria Nuclear do Brasil (INB). Segundo informações da

própria UMP de Buena, esta unidade é encarregada da prospecção e pesquisa, lavra,

industrialização e comercialização, dos minerais pesados conhecidos popularmente

como "areias monazíticas". Moradores da comunidade que já trabalharam nesta

indústria descrevem a característica do minério retirado da areia como sendo um pó

escuro, brilhante e muito pesado. Eles também acrescentam que há um controle muito

grande sobre os funcionários que trabalham nessa indústria para se evitar possíveis

46
saídas de amostras desse produto das dependências da Unidade. Em relação aos

produtos que são retirados das areias, a UMP de Buena informa que estes seriam:

ilmenita (titanato de ferro); rutilo (dióxido de titânio); zirconita (silicato de zircônio) e

monazita (fosfato de terras raras).

A despeito da desconfiança que demonstra boa parte da população local

com a segurança dessa atividade de exploração mineral, a UMP de Buena informa em

seu site que por se tratar de reservas minerais formadas pela regressão do mar,

conhecida como paleopraia, a lavra do minério e a recomposição do solo lavrado são

realizadas concomitantemente, garantindo uma exploração “sem nenhum impacto

ambiental significativo”. A indústria sustenta ainda que, no caso da recomposição do

solo, ele ocorreria tão imediatamente que não se poderia distinguir a área trabalhada

pela indústria das demais existentes, liberadas para plantio, pastagens e outros fins. Ao

que tudo indica, informações como essas, restritas e carregadas de termos técnicos,

dificilmente podem surtir efeito esclarecedor entre os moradores. Além disso, existe

para fins de explicação dos danos ambientais observados uma interpretação local que

relaciona a contínua atividade de mineração com empobrecimento do solo e morte de

espécies de origem animal e vegetal.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que em termos de produção as famílias de

Barrinha realizavam até recentemente uma combinação entre agricultura de tipo familiar

e a coleta de frutos do mar. Estas atividades voltadas principalmente para abastecimento

e consumo dentro da comunidade, mas com uma parte da produção destinada também à

comercialização, constitui uma das duas principais fontes de obtenção de recurso

material dos moradores. A outra fonte de recursos está ligada aos trabalhos temporários

47
e permanentes realizados, em geral, por moradores do sexo masculino nas fazendas e

casas de veraneios situadas no entorno da comunidade.

4.6. Aspectos do trabalho da lavoura.

Ao falar sobre as atividades que são voltadas para a produção de alimentos e

para aquisição de recursos materiais e outros bens de uso na comunidade, boa parte dos

moradores com quem conversei invariavelmente introduziam outros assuntos. Assim,

uma conversa sobre o preço pago pela cana na região e os custos com seu cultivo e

corte, por exemplo, podiam vir acompanhados de comentários sarcásticos sobre

relacionamentos amorosos de conhecidos, da sorte ou infortúnio na colheita ou

reclamações sobre atitudes de parentes. Mas quase todo trabalho realizado nas pequenas

lavouras tende a ser desenvolvido por membros da família ou parentes próximos; ainda

que para a realização de algumas atividades como plantio e colheita (figura 7) estas

pessoas recebam algum tipo de recompensa.

Figura 7: Colheita de feijão por moradores de Barrinha

Fonte: Arquivo pessoal, 2009.

48
Em alguns casos, a terra é arrendada para um parente ou para um conhecido

morador das redondezas. No caso de terra arrendada, o produto a ser cultivado tende a

ser um dos que são geralmente comercializados. Em geral, a terra arrendada representa

30% ou 50% da produção nas mãos da família dona do terreno, como enfatizado pelo

depoimento abaixo:

“A gente planta um pouco de feijão, um milho, uma abóborazinha, um

quiabozinho a gente colhe não todo ano direto; porque as terras aqui

são muito falsificadas sabe, qualquer vento acaba tudo. Eu não tô

plantado mais nada não; pra tocar quase é os outros que toca pra mim,

porque não tenho mais condições, aí dou pra uma pessoa trocar meia,

trinta por cento... Agora o homem plantou ali um aipim, 30%. Eu cedo

a terra pra plantar pra não ficar parada, porque eu não tenho mais

condições de plantar. E se a gente botar uma camarada pra trabalhar é

prejuízo na certa por que ninguém quer mais se esforçar, só quer botar

preço. Quando chega no final da colheita, não dá pra pagar o dinheiro.

Quando eu podia trabalhar, eu botava, ajudava, tava ali sempre

trabalhando. Agora eu não posso mais.” (dona Nevinha, 68 anos)

Para a realização do contrato envolvendo o arrendamento da terra são

geralmente escolhidas pessoas conhecidas e de confiança do dono da terra. Pessoas que

moram na própria comunidade, em Buena e nas proximidades dessa localidade tendem

a constituir os principais arrendadores das terras disponíveis em Barrinha. Além da

cana, como já foi exposto anteriormente, feijão, abacaxi, milho e aipim são os produtos

cultivados com maior freqüência no estabelecimento desse tipo de parceria. O milho e o

feijão são plantados normalmente nos meses de fevereiro e março e a colheita se dá a

partir do final de julho até início de setembro. O aipim é plantado durante o ano

seguindo sempre os períodos após as chuvas. No caso da cana, sua produção tende a

seguir a média de duas safras por ano.

49
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomando todas as informações geradas pelos dados da pesquisa de campo e

as considerações feitas neste relatório, pode-se afirmar que a comunidade de Barrinha

possui dinâmica social, política e cultural típica das chamadas comunidades negras

rurais remanescentes de núcleos organizativos de resistência à escravidão. Em relação

ao uso da terra, embora este não possa ser inteiramente caracterizado na forma de uso

comum, há fortes indícios de que sua importância coletiva esteja justamente na

manutenção das porcelas de terra que cada famíla preserva. As pequenas propriedades

que constituem o território de Barrinha encontram-se fracionadas em lotes ou terrenos

que, em geral, encontram-se tituladas em nome do (a) chefe de família. Todavia, no

plano das relações sociais estabelecidas com vistas à produção, estas aparentemente são

de hierarquia e de gênero6, com base na unidade familiar, e centrada nas relações de

parentesco.

Observou-se também o exercício de uma relativa autonomia em relação à

pequena produção familiar, em geral realizada por meio da articulação e de mobilização

familiar para efeito de incremento da renda familiar. Em relação às características da

produção, Barrinha apresenta cultivo de alguns produtos com base na lavoura, entre

eles, o abacaxi, o milho, a banana, a cana de açúcar, as hortaliças e outros alimentos

para consumo na própria comunidade. Além disso, podia ser observado até o segundo

semestre de 2008 uma importante atividade de coleta de mariscos que era realizada

basicamente por mulheres. Em 2009, conforme já relatado, essa atividade começou a

perder força em função de escacez dos frutos do mar até deixar de ser praticada como

alternativa de sustento.

6
Cf. observa Woortmann ao estudar aspectos lógicos e simbólicos do trabalho em lavoura camponesa.

50
Cabe destacar que a presença dos elementos identitários aqui reportados,

experimentados em geral de forma coletiva, insere esta localidade numa problemática

comum que se encontra diretamente relacionada à afirmação de direitos fundamentais e

ao reconhecimento destes pelo Estado brasileiro. Nesses termos, importa também

enfatizar que já há algum tempo está em curso um processo de mobilização interna com

vistas ao fortalecimento desses elementos étnicos distintivos e consequentemente o

reconhecimento público da identidade social do grupo. Nesse sentido, consta entre as

prioridades dos agentes que organizam tal processo, como já foi mencionado no

decorrer deste relatório, obter da Fundação Cultural Palmares o reconhecimento do

território como remanescente de comunidades quilombolas e, em seguida, requerer do

INCRA/SR-07 a sua respectiva identificação e delimitação.

Por fim, é de fundamental importância que se considere, para efeito de

utilização das informações contidas neste relatório, as questões inerentes aos processos

sociais em situação como as que foram descritas aqui. Em Barrinha, uma decisão

consensual em torno da indicação do território quilombola, por exemplo, não chegou a

se concretizar ao longo dos doze meses em que se trabalhou com essa expectativa. Do

mesmo modo, as discussões sobre reconhecimento da condição quilombola da

comunidade e a mobilização para implementar projetos que visem destacar sua

especificidade sócio-cultural tendem a caminhar muito lentamente quando não são

bruscamente freados. Assim, é imprescindível que esse caráter muitas vezes

contraditório das formas de organização social que Barrinha tem apresentado seja

também tomado como elemento comum constituinte das práticas elaboradas em

contextos de interação social.

51
Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2009.

JOÃO SIQUEIRA
Analista em Ref. e Des. Agrário/Antropólogo -SR/15
SIAPE 1317382

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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resistência ou resistência da cultura? Um estudo inicial das comunidades
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WOORTMANN, E.F. O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa.
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CROQUI DE BARRINHA

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