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O PATRIMÔNIO CULTURAL DOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ E A

CONSTRUÇÃO DA QUESTÃO

Pedro Teixeira Mendes Cabral1

RESUMO:

Os espaços de discussão sobre as expressões culturais das comunidades tradicionais de


matriz africana sempre foram escassos e conflituosos. A luta pela afirmação das culturas
tradicionais afro-brasileiras é marcada pela opressão do Estado e negação, por parte da
sociedade, da sua influência na formação da identidade nacional. O Candomblé, sistema
religioso formado em solo brasileiro a partir da diáspora africana, se constitui em um cenário
de resistência, organização e estratégias profundas de sobrevivência. As relações construídas
entre os negros escravizados, possibilitaram a formação de um sistema de culto organizado
que preserva a memória ancestral das diferentes etnias africanas trazidas compulsoriamente
para o Brasil. As culturas destes povos deixaram marcas profundas nas múltiplas identidades
construídas em nossa sociedade . Desde a língua até os hábitos alimentares, os brasileiros
revivem a influência africana diariamente. Porém, desde suas primeiras formações
reconhecidas, o Candomblé é alvo de perseguições sociais e políticas que deslegitimam suas
práticas e colocam os seus praticantes à margem da sociedade. Neste contexto, o presente
trabalho pretende analisar a evolução da questão relacionada a patrimonialização dos terreiros
de candomblé, compreendendo suas especificidades, conflitos e apontando experiências
icônicas neste processo, trazendo à tona também os limites entre os aspectos materiais e
imateriais, presentes na perspectiva patrimonial brasileira, e suas relações com as referências
culturais das comunidades tradicionais de matriz africana.

Palavras-chave: Candomblé - Patrimônio - Espaço - Políticas de conservação

1
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Patrimônio, Cultura e Sociedade, da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

e-mail: pedrotmcabral@gmail.com
1
Apresentação

Pensar a relevância da cultura afro-brasileira para a organização social do país, é uma


reflexão fundamental para compreensão de sua formação. A valorização e a luta pela
preservação de suas práticas culturais, constitui papel importante do Estado e da sociedade
como um todo.
As tratativas que buscam aproximar as questões relativas às comunidades tradicionais
de matriz africana para o campo patrimonial, no caso em questão os terreiros de Candomblé,
configuram uma realidade recente. Neste contexto, pretendemos aqui analisar a construção
deste campo conflituoso de discussão sobre a patrimonialização dos terreiros, desenvolvendo
questões relacionadas às especificidades dos terreiros de Candomblé, criando redes de
relações entre seus aspectos materiais e imateriais.
Com isso, não temos aqui o intuito de encerrar a questão, mas sim suscitar reflexões
que possam contribuir para o campo, revelando aspectos desta cultura que precisam ser
analisados a partir da perspectiva dos seus sujeitos realizadores e de suas referências culturais,
para que se possa pensar em estratégias efetivas de preservação dos espaços dos terreiros de
candomblé, compreendendo a sua natureza enquanto tal e as relações entre suas faces material
e imaterial.

A evolução da questão

As discussões que se propõem a trazer luz ao patrimônio cultural afro-brasileiro, mais


especificamente no que tange ao espaço das comunidades tradicionais de matriz africana,
constituem um cenário recente e ainda pouco explorado (OLIVEIRA, 2018). O aspecto
imaterial ou intangível do patrimônio, no contexto das políticas públicas, também foi recém
introduzido no campo patrimonial. Quando nos propomos a uma análise histórica do
desenvolvimento destas políticas, e da forma como a questão se estabelece no Brasil,
percebemos o quanto a concepção de patrimônio cultural refletia uma visão elitista e
conservadora da sociedade. Tal prática preconizava um movimento de valorização das
culturas de origem europeia como elemento principal da formação de uma identidade
nacional, excluindo outras influências fundamentais na sociedade brasileira, como a cultura
dos povos originários e a cultura afro-brasileira.

2
Até os anos 2000 o único instrumento de proteção nacional do patrimônio cultural era
o Decreto 25/1937. Nesse particular o referido instituiu em seu texto:

Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis
existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico. (BRASIL, 1937)

Art. 4º O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos
quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a saber:

1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de


arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado art.
1º.

2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interêsse histórico e as obras de arte histórica;

3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira;

4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas,
nacionais ou estrangeiras. (BRASIL, 1937)

Essa visão, em si, se constitui em um reflexo da forma como a política patrimonial


brasileira se desenvolveu a partir desta visão elitista, “uma vez que os critérios adotados para
o tombamento terminam por privilegiar bens que referem os grupos sociais de tradição
europeia, que, no Brasil, são aqueles identificados como classes dominantes” (FONSECA,
2003, p. 63). Depreende-se claramente a vinculação entre patrimonialidade e materialidade na
perspectiva tradicional do instrumento de tombamento.

Desde a década de 1930, a partir da figura de Mário de Andrade e de sua atuação junto
ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), órgão este que viria a dar
origem ao atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
suscitavam-se discussões sobre a diversidade do patrimônio do país. Segundo a autora:

(...) Mário foi, na prática, um pioneiro do registro dos aspectos imateriais do patrimônio cultural, pois
documentou sistematicamente manifestações dessa natureza ao longo de sua vida, deixando para a
posteridade fotografias, gravações e filmes que realizou em suas famosas viagens ao Nordeste.
(SANT’ANNA, 2003, p. 54).

Porém, somente a partir da Constituição Federal de 1988, uma mudança no cenário


passa a ser percebida. No artigo 216 da Carta Magna, oficializa-se o reconhecimento da face
imaterial do patrimônio, além da reafirmação do seu aspecto material, e sua relevância na
formação das identidades dos grupos sociais formadores da nação. Através da Constituição, a

3
ampliação do conceito do que viria a ser o patrimônio cultural brasileiro possibilitou a
expansão da discussão.
Como movimento posterior ao que se iniciou com a Carta Magna, no ano de 2000, a
partir do Decreto Federal 3.551, institui-se o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial:

Art. 1o Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio
cultural brasileiro.

§ 1o Esse registro se fará em um dos seguintes livros:

I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no
cotidiano das comunidades;

II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência
coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;

III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais,
plásticas, cênicas e lúdicas;

IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais
espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.

§ 2o A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade histórica do
bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.

§ 3o Outros livros de registro poderão ser abertos para a inscrição de bens culturais de natureza
imaterial que constituam patrimônio cultural brasileiro e não se enquadrem nos livros definidos no
parágrafo primeiro deste artigo. (BRASIL, 2000).

Esta nova noção e instrumento de preservação, contribui para expansão da


compreensão do patrimônio, além de criar uma nova possibilidade de reconhecimento de bens
culturais invisibilizados pela impossibilidade de seu tombamento. Com o Decreto 3.551/2000,
os mecanismos para a identificação, reconhecimento, inventário e o próprio registro em si,
criaram condições de se articular políticas que de fato dialogassem com as manifestações de
influências não européia. Com a criação dos livros de registro, o instrumento legal prevê a
finalidade para inscrição dos bens nestes livros, da seguinte maneira: “A inscrição num dos
livros de registro terá sempre como referência a continuidade histórica do bem e sua
relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira”
(BRASIL, 2000). Para além, o Decreto também implementa o Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial (PNPI), expandindo as possibilidades de atuação e ampliando estratégias
para efetivação desta nova categoria do patrimônio nacional.

4
Dentro da discussão que aqui se pretende, ressaltamos um elemento elencado no
instrumento em questão, que reconhece, para além de outras práticas, o papel dos “Lugares”,
entendidos no instrumento legal como “feiras, mercados, santuários, praças e demais espaços
onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas”. Este elemento em
específico, possibilita um olhar que abraça a espacialidade dos espaços e territórios próprios
das comunidades tradicionais de matriz africana, e criam possibilidades para sua compreensão
patrimonial. Neste contexto, as discussões envolvendo as comunidades tradicionais de matriz
africana passam a ganhar volume.
Poderíamos aqui citar o movimento pioneiro para o tombamento do Ilê Ásè Iyá Nassô
Oká, conhecido como Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, que se concretiza em
19862. Esta seria a primeira vez em que o Estado Nacional reconheceria oficialmente as
tradições afro-brasileiras no campo patrimonial (VELHO, 2006). O processo de tombamento
do Engenho Velho fora envolto em um cenário conflituoso e em embates relacionados mais
uma vez aos modelos consagrados do tombamento, visto que os uma parte considerável dos
técnicos e dos grupos envolvidos no processo não reconheciam valor no conjunto
arquitetônico em questão, pois suas referências não se relacionam com os fundamentos da
arquitetura tradicionalmente reconhecida. Tal postura é reflexo da visão elitista sobre o
patrimônio cultural brasileiro, em que valores externos à cultura hegemônica não são
reconhecidos, e por muitas vezes são desprezados. Gilberto Velho, relata sua participação
enquanto relator neste processo em seu trabalho “Patrimônio, Negociação e Conflito”, em que
o próprio autor reconhece este processo de desvalorização por parte de algumas parcelas
envolvidas: “No entanto, não posso evitar mencionar que em alguns casos poderia haver um
certo desprezo pelo que considerávamos importantes manifestações culturais da nação
brasileira.” (VELHO, 2006)
Outras questões que permearam o processo em questão, também são reincidentes
ainda hoje nas lutas pelo espaço dos terreiros de Candomblé. Segundo Gilberto Velho, o
Engenho Velho passou por enfrentamentos e pressões imobiliárias resultantes do interesse da
indústria da construção civil em seu terreno. As pressões e influências que o mercado induz
sobre o território, pesam de maneira considerável em grupos sociais com uma vulnerabilidade
maior. “(...) vêem no patrimônio uma ocasião para valorizar economicamente o espaço social
ou um simples obstáculo ao progresso econômico” (CANCLINI, 1994)
Tal realidade reproduz processos sociais de desigualdade no campo do patrimônio de
maneira geral. Práticas e bens culturais de grupos sociais pertencentes às classes menos
2
Esse movimento é também abordado no trabalho de Otair Fernandes: (OLIVEIRA, 2018, p.20).

5
favorecidas, são colocados à margem da questão e desvalorizados na formulação de políticas
e práticas de preservação. Canclini nos traz uma reflexão de como tal processo de
desigualdade se reproduz na realidade do patrimônio cultural:
“O patrimônio cultural serve, assim, como recurso para produzir as
diferenças entre os grupos sociais e a hegemonia dos que gozam de um acesso
preferencial à produção e distribuição dos bens. Os setores dominantes não só
definem quais bens são superiores e merecem ser conservados, mas também
dispõem dos meios econômicos e intelectuais, tempo de trabalho e de ócio, para
imprimir a esses bens maior qualidade e refinamento.” (CANCLINI, 2006,pág.
97)

Porém, é a partir dos anos dois mil que a política patrimonial brasileira efetivamente
passa a reconhecer estes patrimônios fundamentais na formação histórico-social do país, e
ampliar as discussões que os considerassem e refletissem suas particularidades frente a
formação do que se entende como patrimônio cultural no país. Podemos citar o caso do IPAC
(Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia), com a instituição do registro especial
para patrimonialização dos terreiros baianos. O instrumento criado considera particularidades
envolvendo o limiar entre material e imaterial nestes espaços e garante, para além do registro,
mecanismos de proteção para o território em questão. Através deste registro, 10 terreiros da
região do Recôncavo foram inscritos no “Livro do Registro Especial dos Espaços Destinados
a Práticas Culturais e Coletivas”. A experiência do IPAC no caso citado, trouxe um avanço
para a questão pois protege, além da materialidade do espaço, as práticas imateriais que se
processam no lugar, como os ritos e a própria culinária.

Materialidade e imaterialidade: dualidade em questão

A partir do desenvolvimento e da instituição da figura do Patrimônio Imaterial e do


reconhecimento das diversas influências na formação da identidade nacional, a reflexão sobre
a interface entre o que se estabelece na conceituação desta nova categoria patrimonial e o que
de fato tange às especificidades das comunidades tradicionais, aqui especificamente na figura
dos terreiros de candomblé, nos leva a criar algumas tessituras sobre a natureza destes
espaços.
Quando pensamos dentro desta categorização dicotômica entre material e imaterial,
alguns aspectos parecem não encerrar a questão a partir da compreensão dos terreiros na visão
dos sujeitos que o compõem e que lhe atribuem sentido. Para tanto, é preciso pensar a partir
de suas referências culturais. Neste sentido, compreendemos enquanto referência cultural os

6
“sentidos e valores atribuídos pelos diferentes sujeitos a bens e práticas sociais” (FONSECA,
2012, p.113). A forma como os espaços dos candomblés se organizam, e as dinâmicas
envolvidas desde a sua formação até a sua utilização, parecem impossibilitar uma dissociação
entre a materialidade e a imaterialidade que ali se processa. Como elucidado por Fonseca, a
existência de um suporte físico, em determinados bens culturais, é imprescindível para sua
existência. (FONSECA, 2003, p. 68).
Em um processo simbiótico, a forma como estas comunidades se relacionam com o
espaço, fazem dele um suporte indispensável para realização não apenas dos ritos, mas em um
sentido mais amplo, como meio que possibilita toda a existência daquela comunidade. Muniz
Sodré, em sua obra “O terreiro e a cidade”, traz uma reflexão pontual para compreensão do
que aqui se propõe: “Por meio do sagrado, os negros refaziam, em terra brasileira, uma
realidade fragmentada” (SODRÉ, pg. 71, 2019). Esta reflexão revela o caráter fundamental
deste espaço/território enquanto elemento condensador de toda uma visão de mundo do
Candomblé. Um terreiro, por essência, se propõe a recriar um espaço sagrado de
materialização da memória dos ancestrais ali cultuados. E é a partir desta memória ancestral,
que seus praticantes orientam sua conduta social e também orientam aquele espaço. Um
espaço orientado por símbolos que comunicam a dinâmica daquela comunidade e seus
preceitos orientadores.
Tomaremos aqui como exemplo ilustrativo a tradicional Fogueira de Nzazi3,
festividade celebrativa que se processa anualmente no terreiro Omariô de Jurema, casa de
candomblé de tradição Angola/Congo, localizada no município de Barra Mansa, no interior
do Rio de Janeiro.
A cerimônia ritual dedicada ao nkisi4 Nzazi, patrono daquela comunidade, se inicia no
dia 29 do mês de Junho, onde nas primeiras horas do dia já se percebe a movimentação no
local. Neste dia, no cômodo da casa dedicado ao patrono, as limpezas rituais são realizadas e
o kuxikama5 daquela divindade é preparado para receber as oferendas que ali se processarão.
Também durante o dia, são preparadas as comidas votivas na rifula6 do terreiro. No processo
do preparo, todos os membros se congregam em respeito a este espaço sagrado, dividindo o
mesmo ambiente e compartilhando tarefas que são determinadas pela Mam’etu ria Nkisi7.

3
Divindade de origem bantu, componente do panteão do candomblé de tradição Angola/Congo, associada ao
fogo e aos trovões.
4
Em uma tradução livre do Kimbundu, entende-se a palavra nkisi como divindade
5
Receptáculo onde se depositam variados símbolos que representam a materialização da divindade junto a
comunidade
6
Cozinha ritual
7
Sacerdotisa do Candomblé de nação Angola/Congo

7
Ao anoitecer, é acesa uma primeira fogueira na área externa da casa, em que são
apresentadas as oferendas do Santo, e posteriormente todos se dirigem para o salão, em frente
à kubata8 de Nzazi. Ali são oferecidas as comidas rituais para a divindade e durante doze dias
são realizadas rezas dedicadas àquele nkisi. Durante esse período, todos os membros da
comunidade estarão presente integralmente ou parcialmente no terreiro, e suas rotinas
passarão a seguir os preceitos determinados pela liturgia que está se processando.

Figura 01: Fogueira de Nzazi, 2022, fotografia digital, 12,9 x 8,6cm. Acervo Omariô de Jurema. Crédito da
imagem: Leonardo Avelino.

Ao fim do décimo segundo dia, momento em que se realiza o festejo público, uma
grande fogueira é erguida em uma praça existente em frente ao terreiro, e todos os presentes
se reúnem para cantar e dançar junto a Nzazi, que neste momento se manifesta através do
transe nos membros iniciados para esta divindade.
A partir desta experiência narrada podemos perceber o quão simbiótica é a relação que
se constrói entre o material e o imaterial no contexto dos terreiros de candomblé. O terreiro é
um suporte que recebe e interage com toda tradição e a memória ancestral daquele grupo. É
referência para todos os seus membros, como veículo que conduz suas ações e condutas. A
tradição e a memória se cristalizam no espaço e criam laços indissociáveis.

8
Cômodo reservado para as divindades, destinado a abrigar os seus objetos rituais

8
A partir da narrativa percebemos, por exemplo, que um simples cômodo, passa a
ganhar uma outra conotação por ser o abrigo da representação maior da divindade que orienta
aquela comunidade, e com isso determina toda dinâmica dos rituais que ali se processam. É
notório que o fato de se processar uma cerimônia naquele espaço, reflete na conduta social e
na rotina coletiva de todos os membros daquele grupo. A estadia em um determinado local,
pela significação que este espaço contém, molda a forma como os indivíduos se comportam e
interagem ali. O espaço orienta as dinâmicas culturais daquele grupo, mas é também orientado
por ela e se dinamiza e transforma a partir do movimento daquela tradição. Esta
exemplificação, traz luz às relações que se constroem dentro da perspectiva destas
comunidades, entre o que se entende por material e imaterial, e como a compreensão da
materialidade por estes grupos possui uma conotação própria.

Considerações Finais

Após a compreensão da formação do cenário histórico, político e social envolvendo o


surgimento do conceito de patrimônio cultural imaterial e suas relações com as práticas
culturais afro-brasileiras, torna-se evidente que este ainda constitui um campo de tensões e
conflitos. Apesar dos avanços ainda existem desafios profundos. Necessitamos pensar em
políticas que privilegiem e reconheçam a perspectiva dos sujeitos detentores daquela prática e
compreendam suas referências culturais. A partir desta compreensão é possível a construção
das relações ora propostas entre o material e o imaterial no contexto dos terreiros de
Candomblé.
Fundamentalmente, para que se possa avançar em posteriores discussões, a
compreensão de que essa relação dicotômica entre materialidade e imaterialidade precisa ser
diluída para uma leitura razoável destes espaços, é um passo fundamental. Entendemos aqui
que os aspectos materiais e imateriais dos terreiros e de suas práticas culturais se relacionam
em um processo simbiótico, e que a compreensão de um destes aspectos em detrimento do
outro, constitui uma tarefa fadada ao fracasso. A memória veiculada por estes espaços através
de suas simbologias e representações, é o elemento que realiza de fato este entrelace entre a
materialidade e a imaterialidade deste sistema religioso. A experiência do IPAC demonstra
como é possível avançar neste sentido.
Porém é preciso expandir. Expandir no sentido de revelar mais profundamente as
especificidades destes espaços e como estes se constituem. Expandir na perspectiva de seus
9
sujeitos, e na elaboração de estratégias que de fato efetivem a preservação plena destes
espaços, salvaguardando, assim, sua existência e reconhecendo seus valores independente da
visão hegemônica do patrimônio cultural.

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