Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Jocastra Holanda Bezerra
2
Marcelo Renan Oliveira de Souza
Resumo: Este texto apresenta um panorama sobre a representação dos povos ciganos
nas políticas públicas para a diversidade cultural no Brasil contemporâneo, destacando a
experiência do I Encontro Regional Nordeste de Ciganos. Apresentamos um breve
histórico das recentes políticas públicas para os povos ciganos no Brasil, cujos
primeiros avanços na conquista de direitos ainda não se efetivam em ações e programas
concretos, sendo assim marcados pela ausência e pela violação dos direitos culturais dos
Povos Ciganos. Para isso, utilizamos da pesquisa documental a partir dos instrumentos
normativos e políticas nacionais de reconhecimento dos direitos culturais dos povos
ciganos e o debate da promoção da diversidade cultural no Brasil.
1. INTRODUÇÃO
Por vários séculos e ainda nos dias atuais, os povos ciganos foram vítimas de
muitos preconceitos, discriminação e perseguição, e, por conseguinte, permaneceram
por muito tempo num cenário de invisibilidade. No imaginário social, os ciganos
tiveram sua imagem historicamente associada à marginalização, à pobreza, à trapaça.
Na última década, a luta de associações de ciganos e intelectuais engajados na questão
vêm desconstruindo essa imagem negativa e de invisibilidade e colocando as culturas
ciganas em pauta na luta por direitos e políticas públicas. Importante ressaltar que
atualmente a luta e o acesso às possíveis políticas também atravessa a problemática de
afirmação identitária dos povos ciganos e, portanto, é uma questão fundamental para o
debate da promoção da diversidade cultural no Brasil contemporâneo.
O desconhecimento acerca das etnias ciganas e suas diferentes origens é um dos
fatores que está na raiz da discriminação e do preconceito. A produção científica (teses,
1
Pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural - ODC. E-mail j ocastrahb@gmail.com
2
Doutorando em Cultura e Sociedade pela UFBA. E-mail: marcelo.renan.souza@gmail.com
artigos e ensaios) sobre os povos ciganos no Brasil ainda é reduzida. Não encontramos
muitas pesquisas antropológicas, sociológicas, historiográficas ou de outras áreas do
conhecimento sobre os ciganos no país, se comparado com estudos sobre outras
minorias étnicas, como índios e negros, que as publicações são bem mais numerosas. Os
próprios ciganos, cujas tradições e repasse dos saberes se baseia na oralidade, também
não deixaram documentos escritos sobre suas origens, seu passado, sua história e seus
aspectos culturais. O que pode ser um desafio aos pesquisadores de cunho etnográfico.
Para citar algumas, a publicação “Anticiganismo e Políticas Ciganas na Europa e
no Brasil” (2012), do antropólogo holandês naturalizado brasileiro Frans Moonen é uma
das mais completas entre os estudos encontrados. Frans Moonen também é coordenador
do Núcleo de Estudos Ciganos de Recife (NEC), no qual catalogou a bibliografia
brasileira e estrangeira produzida até meados dos anos 2000, e disponibilizou na rede
como forma de difusão e auxílio a pesquisadores ciganos e não ciganos3 . Destacam-se
ainda as pesquisas e estudos da cultura cigana do pesquisador Rodrigo Corrêa Teixeira,
autor do livro “Ciganos no Brasil: uma breve história” (2009), da monografia “A
‘questão cigana’: uma introdução” (1993), da dissertação de mestrado em história
“Correrias de ciganos pelo território mineiro (1808-1903)” (1998), e de uma série de
capítulos de livros e artigos em periódicos científicos sobre o tema. Além das pesquisas
do antropólogo, professor e pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
Etnicidade - NEPE da UFPE, Erisvelton Sávio Silva de Melo, que também nos fornece
uma rica bibliografia sobre os povos ciganos no Brasil.
Estudos apontam que os ciganos provavelmente chegaram ao Brasil ainda no
século XVI, durante o período colonial, deportados de Portugal para o Brasil e vindos
da Europa central e oriental (MOONEN, 2011; SOUZA; 2013). Contudo, o Movimento
Cigano no Brasil é recente, começou a se estruturar e dar seus primeiros passos em
organizações e associações praticamente nas duas últimas décadas.
No âmbito institucional e governamental, só recentemente, a partir dos anos
2000, os ciganos passaram a ter seus assuntos tratados nas discussões das políticas
3
Disponível através
do link
<http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/bibliografia_cigana.html>
públicas, sobretudo, nas políticas do campo da diversidade cultural, nosso principal
interesse no presente texto. As culturas ciganas passaram a ser reconhecidas como
culturas que devem ser protegidas e promovidas na diversidade cultural. Assim,
passaram a ser contempladas, pela primeira vez na história do Brasil, em políticas
públicas (de cultura, educação e direitos humanos), e reconhecidas em diversas
convenções internacionais, várias das quais promulgadas também no Brasil. Contudo,
na prática, muitos destes direitos ainda não se efetivam em ações e programas concretos
e são constantemente violados.
Desse modo, buscamos neste texto apresentar um panorama sobre a
representação das culturas ciganas nas políticas públicas para a diversidade cultural no
Brasil contemporâneo, a partir de um breve panorama histórico das recentes políticas
públicas (de educação, direitos humanos e cultura) para os povos ciganos no Brasil,
sobretudo, no que diz respeito a representação dessas culturas nas políticas para a
diversidade cultural. Nesse cenário, destacamos especialmente a experiência do I
Encontro Regional Nordeste de Ciganos, realizado em 2015, em Sousa na Paraíba.
O Art. 215 da Constituição Federal faz duas afirmações que merecem destaque:
a primeira é compreender a cultura como um direito; a segunda é postular o papel do
Estado na garantia da elaboração e execução da política pública de cultura do país. Essa
compreensão norteará as políticas implementadas, sobretudo, a partir da reformulação
do Ministério da Cultura, em 2003, com a gestão dos Ministros Gil e Juca, ampliando a
noção de cidadania cultural e a noção de cultura, agregando novos valores e direitos às
políticas públicas, e fortalecendo a cultura como direito fundamental, diretrizes estas
que vêm pautando a base das políticas públicas de cultura no nosso país.
Nesse sentido, entre as políticas públicas destinadas às populações ciganas,
destaca-se a garantia do acesso à educação a partir do reconhecimento da
particularidade como população itinerante pelo Ministério da Educação. O Conselho
Nacional de Educação (CNE) instituiu a Resolução nº 3, de 16 de maio de 2012, sobre
diretrizes para o atendimento de educação escolar para populações em situação de
itinerância, garantido o direito à matrícula em escola pública, gratuita e sem
apresentação de comprovação de residência, respeitando a liberdade de consciência e de
crença, valorizando notadamente indígenas, ciganos e circenses itinerantes.
Art. 1º (...) Parágrafo único. São considerados crianças, adolescentes e
jovens em situação de itinerância aquelas pertencentes a grupos
sociais que vivem em tal condição por motivos culturais, políticos,
econômicos, de saúde, tais como ciganos, indígenas, povos nômades,
trabalhadores itinerantes, acampados, circenses, artistas e/ou
trabalhadores de parques de diversão, de teatro mambembe, dentre
outros. (grifo nosso)
4
Associação de Ciganos de Condado, e Ranchos de Ciganos de Sousa, ambos na Paraíba.
ciganas e rurais, a Secretaria de Cultura apresenta dados sistemáticos acerca das
manifestações culturais presentes nas dez comunidades ciganas identificadas
(PERNAMBUCO, 2014, p. 29) e catalogadas ao longo da atuação da Coordenação para
Povos Tradicionais e Comunidades Rurais. O estreitamento da Secretaria de Cultura
com os ciganos de Pernambuco contribuiu para o delineamento de diretrizes para o I
Encontro Regional Nordeste de Ciganos.
No relatório da reunião do dia 31 de março de 2015, o coletivo presente
deliberou diretrizes para a realização do encontro nas quais constavam:
1. Que este evento tenha uma dimensão formativa para os
participantes; 2. Que o protagonismo do cigano seja valorizado
enquanto propositor das ações necessárias a esta população; 3. Que o
evento seja de abrangência regional; 4. Que o encontro seja construtor
de uma agenda específica para cada Estado; 5 que seja propositor /
norteador de políticas públicas para a comunidade a população cigana
do nordeste. 6 No final do encontro será aprovada uma carta,
intitulada de “Carta de Sousa”, contendo as
proposituras/recomendações ciganas para as gestões de políticas
públicas. (PARAÍBA, 2015)
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse breve panorama das recentes políticas públicas e, sobretudo, das políticas
no campo da cultura tem como objetivo contribuir para a ampliação do debate acerca da
proteção e promoção dos povos ciganos no Brasil. Existem ainda muitas lacunas,
ausências e falta de efetivação concreta de ações e programas para a garantia dos
direitos culturais dos povos ciganos no país, sobretudo, no que diz respeito ao direito à
igualdade e à diferença, através dos quais poderemos superar os preconceitos e estigmas
sociais.
Além da imprescindível e fundamental importância da realização de ações
políticas e da implementação de políticas públicas, as produções culturais e artísticas,
pesquisas em torno do tema, sobre e, principalmente, protagonizados por ciganos – o
que é ainda mais escasso -, também têm um relevante papel na ampliação das
representações sobre o grupo étnico no país. A exemplo de Pernambuco, que tem
mapeado e incentivado as instâncias da produção cultural das comunidades ciganas no
estado, é necessário que outros estados adotem instrumentos para a identificação e
reconhecimento dos povos ciganos, favorecendo maior integração destes com a cadeia
produtiva local, regional e nacional. Essa instrumentalização favorece não somente o
universo da produção artística, mas também os meios de elevação da autoestima e
afirmação social dessas comunidades.
Com as sinalizações da Carta de Sousa, quando comparado a outras
reivindicações dos ciganos no Nordeste brasileiro, percebe-se ainda que o ordenamento
jurídico brasileiro ainda não está amplamente adaptado a às especificidades dos povos
tradicionais. E por mais que haja o pressuposto de adequação nas legislações, como por
exemplo, a Educação Itinerante, os Estados e Municípios não conseguem viabilizar os
meios necessários para o atendimento às comunidades ciganas.
Destacamos aqui, porém, que o estreitamento dos agentes públicos para a
efetivação de condutas afirmativas para os povos ciganos é possível. A mobilização da
Paraíba e de Pernambuco para a realização do I Encontro Regional Nordeste de Ciganos
acrescentou um novo capítulo neste cenário, enquanto que os desdobramentos das
decisões e encaminhamentos a partir da Carta de Sousa devem ser sentidos e observados
e analisados nos próximos anos.
Dessa forma, esperamos que este trabalho contribua para a leitura acerca dos
povos ciganos no país com o destaque para os ganhos políticos e sociais que lhes são
destinados. Outrossim, que se proporcione a diluição da imagem de apatia dos ciganos
quanto à participação na vida política ou ainda de outros preconceitos que marginalizam
seus hábitos e modo de viver, em especial no Nordeste do Brasil, permitindo a
valorização da pluralidade e da especificidade dos ciganos no país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Portal. Políticas Públicas para Ciganos pauta debate organizado pelo governo.
Disponível em
<http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/politicas-publicas-para-ciganos-p
auta-debate-organizado-pelo-governo> Acesso em 02 fev.2017.
BRASIL CIGANO, formado por mais de 500 mil pessoas, ainda é pouco conhecido.
Disponível em
<http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/12/brasil-cigano-formado-por-mais-
de-500-mil-pessoas-ainda-e-pouco-conhecido-da-grande-populacao-1570.html> Acesso
em 02 mar.2017.
MINISTÉRIO DA CULTURA. SECRETARIA DA IDENTIDADE E DIVERSIDADE
CULTURAL Plano Setorial para as Culturas Populares / MINC; SID – Brasília,
2010. Disponível em
<http://semanaculturaviva.cultura.gov.br/linhadotempo/pdf/publicacoes/SID/Plano_Seto
rial_Culturas_Populares_2010.pdf> Acesso em 11 fev.2017.
MINISTÉRIO DA CULTURA. Brasil Cigano – Guia de Políticas Públicas para Povos
Ciganos. Brasília: SEPPIR, 2013. Disponível em
<www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/GuiaCiganoFinal.pdf> Acesso em 02
fev.2017.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, Conselho Nacional de Educação Câmara de Educação
Básica. Resolução Nº 3, De 16 De Maio 2012. Define diretrizes para o atendimento de
educação escolar para populações em situação de itinerância. Disponível em <
http://mobile.cnte.org.br:8080/legislacao-externo/rest/lei/91/pdf> Acesso em 02
fev.2017.
MOONEN, Franz. Políticas Ciganas no Brasil 1988 – 2010. In: Anticiganismo: os ciganos
na Europa e no Brasil, Recife, 3ª edição digital, 2011. Disponível em <
http://bit.ly/1KIrzbA> Acesso em 02 fev.2017.
PARAÍBA. Relatório da Reunião da comissão responsável pela realização do I Encontro
Regional Nordeste de Ciganos/2015. Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade
Humana. João Pessoa, 31 de março de 2015.
_________. Carta Aberta dos Povos Ciganos do Nordeste em Sousa-PB. Sousa, Paraíba,
14 de agosto de 2015.
PERNAMBUCO. No Teritório das Culturas: a experiência da Secretaria de Cultura com
populações tradicionais e povos o campo. Secretaria de Cultura e Fundação do
Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco. Recife, 2014.
SEPPIR. Estrutura. Disponível em <http://www.seppir.gov.br/sobre-a-seppir/estrutura-1>
Acesso em 25 mai. 2017
_______. Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos. Disponível em
<www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/GuiaCiganoFinal.pdf> Acesso em 02
fev.2017.
_______. Políticas de Promoção à Igualdade Racial. Disponível em
<http://www.seppir.gov.br/portal-antigo/noticias/ultimas_noticias/2011/05/24-de-maio-
seppir-comemora-o-dia-nacional-dos-ciganos>Acesso em 02 fev.2017.
SOUZA, Mirian Alves. Ciganos no Brasil: uma Identidade Plural. Mostra Caravana
Cigana. 2013. Disponível em
<http://www.mostracaravanacigana.com.br/textos/ciganos-no-brasil-uma-identidade-plu
ral/>Acesso em 02 fev.2017.