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POVOS CIGANOS NO NORDESTE DO BRASIL:

DIREITOS CULTURAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS

1
Jocastra Holanda Bezerra
2
Marcelo Renan Oliveira de Souza

Resumo: ​Este texto apresenta um panorama sobre a representação dos povos ciganos
nas políticas públicas para a diversidade cultural no Brasil contemporâneo, destacando a
experiência do I Encontro Regional Nordeste de Ciganos. Apresentamos um breve
histórico das recentes políticas públicas para os povos ciganos no Brasil, cujos
primeiros avanços na conquista de direitos ainda não se efetivam em ações e programas
concretos, sendo assim marcados pela ausência e pela violação dos direitos culturais dos
Povos Ciganos. Para isso, utilizamos da pesquisa documental a partir dos instrumentos
normativos e políticas nacionais de reconhecimento dos direitos culturais dos povos
ciganos e o debate da promoção da diversidade cultural no Brasil.

Palavras-chave: ​Ciganos. Diversidade Cultural. Políticas Culturais.

1. INTRODUÇÃO
Por vários séculos e ainda nos dias atuais, os povos ciganos foram vítimas de
muitos preconceitos, discriminação e perseguição, e, por conseguinte, permaneceram
por muito tempo num cenário de invisibilidade. No imaginário social, os ciganos
tiveram sua imagem historicamente associada à marginalização, à pobreza, à trapaça.
Na última década, a luta de associações de ciganos e intelectuais engajados na questão
vêm desconstruindo essa imagem negativa e de invisibilidade e colocando as culturas
ciganas em pauta na luta por direitos e políticas públicas. Importante ressaltar que
atualmente a luta e o acesso às possíveis políticas também atravessa a problemática de
afirmação identitária dos povos ciganos e, portanto, é uma questão fundamental para o
debate da promoção da diversidade cultural no Brasil contemporâneo.
O desconhecimento acerca das etnias ciganas e suas diferentes origens é um dos
fatores que está na raiz da discriminação e do preconceito. A produção científica (teses,

1
Pesquisadora do Observatório da Diversidade Cultural - ODC. E-mail j​ ocastrahb@gmail.com

2
Doutorando em Cultura e Sociedade pela UFBA. E-mail: ​marcelo.renan.souza@gmail.com
artigos e ensaios) sobre os povos ciganos no Brasil ainda é reduzida. Não encontramos
muitas pesquisas antropológicas, sociológicas, historiográficas ou de outras áreas do
conhecimento sobre os ciganos no país, se comparado com estudos sobre outras
minorias étnicas, como índios e negros, que as publicações são bem mais numerosas. Os
próprios ciganos, cujas tradições e repasse dos saberes se baseia na oralidade, também
não deixaram documentos escritos sobre suas origens, seu passado, sua história e seus
aspectos culturais. O que pode ser um desafio aos pesquisadores de cunho etnográfico.
Para citar algumas, a publicação “Anticiganismo e Políticas Ciganas na Europa e
no Brasil” (2012), do antropólogo holandês naturalizado brasileiro Frans Moonen é uma
das mais completas entre os estudos encontrados. Frans Moonen também é coordenador
do Núcleo de Estudos Ciganos de Recife (NEC), no qual catalogou a bibliografia
brasileira e estrangeira produzida até meados dos anos 2000, e disponibilizou na rede
como forma de difusão e auxílio a pesquisadores ciganos e não ciganos3 . Destacam-se
ainda as pesquisas e estudos da cultura cigana do pesquisador Rodrigo Corrêa Teixeira,
autor do livro “Ciganos no Brasil: uma breve história” (2009), da monografia “A
‘questão cigana’: uma introdução” (1993), da dissertação de mestrado em história
“Correrias de ciganos pelo território mineiro (1808-1903)” (1998), e de uma série de
capítulos de livros e artigos em periódicos científicos sobre o tema. Além das pesquisas
do antropólogo, professor e pesquisador do ​Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
Etnicidade - NEPE da UFPE, Erisvelton Sávio Silva de Melo, que também nos fornece
uma rica bibliografia sobre os povos ciganos no Brasil.
Estudos apontam que os ciganos provavelmente chegaram ao Brasil ainda no
século XVI, durante o período colonial, deportados de Portugal para o Brasil e vindos
da Europa central e oriental (MOONEN, 2011; SOUZA; 2013). Contudo, o Movimento
Cigano no Brasil é recente, começou a se estruturar e dar seus primeiros passos em
organizações e associações praticamente nas duas últimas décadas.
No âmbito institucional e governamental, só recentemente, a partir dos anos
2000, os ciganos passaram a ter seus assuntos tratados nas discussões das políticas

3
Disponível ​através
do link
<http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/bibliografia_cigana.html>
públicas, sobretudo, nas políticas do campo da diversidade cultural, nosso principal
interesse no presente texto. As culturas ciganas passaram a ser reconhecidas como
culturas que devem ser protegidas e promovidas na diversidade cultural. Assim,
passaram a ser contempladas, pela primeira vez na história do Brasil, em políticas
públicas (de cultura, educação e direitos humanos), e reconhecidas em diversas
convenções internacionais, várias das quais promulgadas também no Brasil. Contudo,
na prática, muitos destes direitos ainda não se efetivam em ações e programas concretos
e são constantemente violados.
Desse modo, buscamos neste texto apresentar um panorama sobre a
representação das culturas ciganas nas políticas públicas para a diversidade cultural no
Brasil contemporâneo, a partir de um breve panorama histórico das recentes políticas
públicas (de educação, direitos humanos e cultura) para os povos ciganos no Brasil,
sobretudo, no que diz respeito a representação dessas culturas nas políticas para a
diversidade cultural. Nesse cenário, destacamos especialmente a experiência do I
Encontro Regional Nordeste de Ciganos, realizado em 2015, em Sousa na Paraíba.

2. POVOS CIGANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS NO BRASIL


Por trás da diversidade cultural e étnica brasileira há um Brasil cigano que ainda
é pouco conhecido. Atualmente, os ciganos podem ser encontrados em todo o território
brasileiro, mas ainda são poucos e imprecisos os dados oficiais sobre o número de
ciganos vivendo em nosso país, uma vez que a etnia não é reconhecida pelo censo
demográfico nacional. Segundo dados da Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR), do Governo Federal, estima-se que haja mais de 500 mil
ciganos no Brasil e 291 acampamentos desses povos (dados de 2011), distribuídos em
21 estados brasileiros, sendo que a maioria concentra-se nos estados de Minas Gerais
(58), Bahia (53) e Goiás (38). Associações ciganas indicam a existência de um número
maior, entre 800 mil a 1 milhão de ciganos no país. Contudo, ainda que estejam
presentes em 21 Unidades da Federação, conforme destaca a SEPPIR dos 291
municípios que abrigam acampamentos ciganos, apenas 40 desenvolvem políticas
públicas para o segmento, o que corresponde a 13,7% do total. Dentre as quais,
destacamos algumas dessas políticas no breve panorama a seguir.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 não menciona os povos ciganos,
como traz expresso outras minorias étnicas como indígenas e afro-brasileiros.
Entretanto, alguns artigos dizem respeito também a esta etnia, como o direito a
não-discriminação, o nomadismo (livre locomoção) e os direitos culturais. Entre eles,
destacamos os últimos que dizem respeito à proteção dos direitos culturais presentes nos
artigos 215 e 216:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiará e incentivará a
valorização e a difusão das manifestações culturais. 1 º - O Estado
protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório brasileiro.

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de


natureza material e imaterial, tomados invidualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I –
as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as
criações científicas, artísticas e tecnológicas. 3 º - A lei estabelecerá
incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores
culturais.

O Art. 215 da Constituição Federal faz duas afirmações que merecem destaque:
a primeira é compreender a cultura como um direito; a segunda é postular o papel do
Estado na garantia da elaboração e execução da política pública de cultura do país. Essa
compreensão norteará as políticas implementadas, sobretudo, a partir da reformulação
do Ministério da Cultura, em 2003, com a gestão dos Ministros Gil e Juca, ampliando a
noção de cidadania cultural e a noção de cultura, agregando novos valores e direitos às
políticas públicas, e fortalecendo a cultura como direito fundamental, diretrizes estas
que vêm pautando a base das políticas públicas de cultura no nosso país.
Nesse sentido, entre as políticas públicas destinadas às populações ciganas,
destaca-se a garantia do acesso à educação a partir do reconhecimento da
particularidade como população itinerante pelo Ministério da Educação. O Conselho
Nacional de Educação (CNE) instituiu a Resolução nº 3, de 16 de maio de 2012, sobre
diretrizes para o atendimento de educação escolar para populações em situação de
itinerância, garantido o direito à matrícula em escola pública, gratuita e sem
apresentação de comprovação de residência, respeitando a liberdade de consciência e de
crença, valorizando notadamente indígenas, ciganos e circenses itinerantes.
Art. 1º (...) Parágrafo único. São considerados crianças, adolescentes e
jovens em situação de itinerância aquelas pertencentes a grupos
sociais que vivem em tal condição por motivos culturais, políticos,
econômicos, de saúde, tais como ​ciganos​, indígenas, povos nômades,
trabalhadores itinerantes, acampados, circenses, artistas e/ou
trabalhadores de parques de diversão, de teatro mambembe, dentre
outros. (grifo nosso)

Embora o direito esteja garantido na Resolução, na prática, as famílias ciganas,


assim como as famílias circenses, relatam a dificuldade para matricular os filhos em
escolas públicas, além de serem submetidos a cenas constantes de discriminação por
alunos e professores.
Em 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial - SEPPIR, no âmbito das políticas para os direitos humanos com o objetivo de
“promover a igualdade e a proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos
afetados pela discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase na população
negra” (SEPPIR, 2011). Contudo, a própria SEPPIR destaca que a Secretaria daria
atenção especial à população negra, em detrimento das demais minorias (indígenas,
ciganos). No âmbito do debate dos povos ciganos, talvez um dos principais avanços
mediados por esta Secretaria foi a composição do Grupo de Trabalho Interministerial
Cigano e a instituição, em 2006, do Dia Nacional dos Ciganos, através de decreto
presidencial, marcando o reconhecimento à contribuição da etnia cigana na formação da
diversidade cultural brasileira.
Desde 2007, os ciganos são protegidos pela Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, no qual é
garantido o direito e inclusão desses povos em diversos programas sociais, como o
direito ao cartão nacional de saúde, permitindo o acesso a toda unidade pública de
saúde, também podem ser incluídos no cadastro único do governo para todos os
programas sociais. Contudo, a efetivação desses direitos fundamentais na prática ainda
não tem ocorrido, como relatam as famílias ciganas ouvidas em reuniões e eventos
promovidos pela Secretaria de Políticas Públicas de Igualdade Racial (SEPPIR) e​
entidades estaduais afeitas às causas ciganas.
No âmbito das Políticas Culturais, a inclusão das culturas ciganas em ações
específicas só ocorreu efetivamente em 2007, com o Prêmio Culturas Ciganas.
Sintomático, nesse sentido, é a criação em 2003, durante o governo Lula, da Secretaria
da Identidade e da Diversidade Cultural (SID) – integrada posteriormente à Secretaria
de Cidadania e Diversidade Cultural (SCD) –, que seria responsável por importantes
ações de fomento à diversidade cultural brasileira. A SID foi criada com o propósito de
atender aos grupos sociais e culturais até então desconsiderados nas políticas culturais,
notadamente composto por segmentos sociais e expressões culturais não hegemônicos e
oriundos de minorias sociais e culturais, como as culturas tradicionais e populares,
indígenas, ciganas, movimentos da diversidade sexual, culturas rurais, ou ainda relativas
à diversidade etária e à saúde mental.
Nesse sentido, a SID realizou seminários e editais destinados às expressões da
diversidade cultural, entre eles a primeira edição do Prêmio Culturas Ciganas, em 2007.
A segunda edição foi realizada em 2010, como resultado da parceria entre Ministério da
Cultura, Ministério da Saúde, SEPPIR, SDH e Pastoral dos Nômades do Brasil. Em
2014, o Ministério da Cultura realizou a terceira edição do Prêmio Culturas Ciganas. O
Prêmio contempla iniciativas culturais, individuais ou de grupos ciganos, que
fortaleçam as expressões culturais ciganas. A ação integra o Programa Brasil Plural,
criado pela extinta SID, e resulta das propostas do Grupo de Trabalho para as Culturas
Ciganas, criado em janeiro de 2006 pelo Ministério da Cultura, e das diretrizes
propostas pelo Grupo de Trabalho Interministerial Cigano, coordenado pela SEPPIR.
Como parte do novo processo de construção das políticas públicas em diálogo
com a sociedade civil, em 2013, foi realizado o Brasil Cigano – I Semana Nacional dos
Povos Ciganos, no Distrito Federal, promovido pelo Governo Federal, por meio de
diversas secretarias e ministérios, entre eles a SEPPIR, MinC e SDH, além de
associações e entidades representativas dos povos ciganos. Em agosto de 2015, foi
realizado o I Encontro Regional Nordeste de Ciganos, sobre o qual falaremos mais
adiante, que foi promovido pelo Governo do Estado da Paraíba, em parceria com o
Governo de Pernambuco e Associações Ciganas do Nordeste, reunindo representantes
das etnias ​Calon, Sinti ​e ​Rom para discutir propostas para o acesso dos povos ciganos às
políticas públicas estaduais e federais. Os encontros representam importantes espaços
para o exercício da cidadania, da participação e do protagonismo dos povos ciganos,
além do fortalecimento do debate acerca da proteção e promoção das tradições e da
cultura da etnia cigana no Brasil.
No âmbito institucional da cultura, os povos ciganos estão citados no Plano
Nacional de Cultura (2010) e no Plano Setorial para as Culturas Populares (2010), como
integrantes das Comunidades e Povos Tradicionais, juntamente com indígenas, povos
de terreiro, entre outros. Contudo, ainda não possuem um Plano Setorial próprio como
outras minorias étnicas, como o Plano Setorial para as Culturas Indígenas (2012) e o
Plano Setorial para a Cultura Afro-brasileira (2014)​.
Também não há Colegiado de representação das Culturas Ciganas no Conselho
Nacional de Políticas Culturais – CNPC, o que vem sendo criticado e reivindicado por
organizações e associações de ciganos. Atualmente, o CNPC possui dezessete
colegiados setoriais: arquitetura e urbanismo, circo, dança, música, arquivos, arte
digital, design, patrimônio material, artes visuais, livro e leitura, patrimônio imaterial,
artesanato, moda, teatro, cultura popular, cultura afro-brasileira e cultura indígena.
Portanto, não há representação cigana no CNPC. Ressalta-se que há o Grupo de
Trabalho para as Culturas Ciganas, criado pelo MinC em 2006. Já os primeiros registros
da articulação para a instituição do Colegiado de Culturas Ciganas datam de 2010, a
partir da organização de diversas Associações de ciganos, da Embaixada Cigana no
Brasil e até por meio de abaixo-assinado online cobrando a garantia da representação do
Colegiado no CNPC. No entanto, até agora o Colegiado não foi instituído.
Atualmente, o documento institucional que reúne diretrizes para as políticas
públicas para os povos ciganos é o Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos
(2013), publicado pela SEPPIR, como resultado dos debates ocorridos na I Semana
Nacional dos Povos Ciganos e na Conferência Nacional de Igualdade Racial, com as
principais demandas apresentadas e orientações para o acesso dos ciganos a diversos
programas sociais e políticas existentes, divididas em quatro eixos: políticas sociais e
infraestrutura; direitos humanos; acesso à terra; e políticas culturais. O documento é
resultado da participação de 30 delegados ciganos, que discutiram propostas para a
criação e efetivação de instrumentos para fortalecer a cidadania e os direitos
fundamentais dos povos ciganos.
Outras questões importantes e mais complexas, como habitação e terra, que
envolvem a garantia de terrenos públicos dotados de infraestrutura básica para uso das
comunidades nômades ciganas; saúde e educação, através da garantia da ampla
assistência e acesso; e trabalho e renda, por meio de programas que fomentem a geração
de renda das comunidades ciganas; são ainda mais ausentes ou inexistentes nas políticas
públicas para os povos ciganos. E, portanto, ainda mais urgentes.
No âmbito internacional, as culturas ciganas estão contempladas nas convenções
promovidas pela UNESCO que dizem respeito à diversidade cultural. Embora não
sejam citadas expressamente dado o caráter universalista destas convenções, podemos
compreender que elas constituem a diversidade de expressões culturais e como
patrimônio cultural imaterial. São elas: a Recomendação da UNESCO para a
Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore (1989); a Convenção para a
Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (2003), e a Convenção sobre a Proteção e
Promoção da Diversidade das Expressões Culturais e Artísticas (2010).

2.1. I ENCONTRO REGIONAL NORDESTE DE CIGANOS

Frente às dificuldades governamentais em compreender e aplicar os princípios


básicos das políticas públicas no âmbito da cultura, educação ou saúde pública, voltados
aos povos ciganos, o Governo da Paraíba, em 2015, através da Gerência Executiva de
Equidade Racial da Secretaria de Estado da Mulher e da Diversidade Humana,
articulou-se com representantes de diferentes entidades representativas dos povos
ciganos desse estado4 para organizar o que viria a se tornar o I Encontro Regional
Nordeste de Ciganos. Desde a mobilização inicial o Estado de Pernambuco esteve
representado pela Associação de Ciganos de Pernambuco e também pelas Coordenações
para Povos Tradicionais e Comunidades Rurais e de Cultura Popular da Secretaria de
Cultura, e pela Coordenadoria de Patrimônio Imaterial da Fundação do Patrimônio
Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe.
A proposta inicial do Governo da Paraíba contemplava o convite aos nove
estados do Nordeste, contudo, uma vez que as reuniões aconteciam na cidade de João
Pessoa, na sede do Conselho Estadual de Educação, a logística para os encontros
inviabilizaria a participação direta de mais representantes governamentais e
principalmente dos representantes dos povos ciganos de outros estados, o que
concentrou a organização dos encontros entre Pernambuco e Paraíba.
Além das instituições acima citadas participavam das reuniões as representações
da Secretaria de Estado e da Defesa Social da Paraíba – SEDS, Secretaria Executiva do
Orçamento Democrático Estadual – ODE, Secretaria de Segurança Alimentar e
Secretaria de Estado da Educação Paraíba; o Departamento de antropologia da UFPB; e
também o Projeto ciganos, vinculado ao Centro de Educação da UFPB coordenado pela
professora Janine Marta Coelho Rodrigues, que, na condição de presidenta do Conselho
Estadual de Educação da Paraíba também representava esta entidade. Vê-se dessa
diversidade de representações que se buscava a integração de áreas a fim de contribuir
para a organização do evento, além de sinalizar a transversalidade entre áreas
fundamentais que atendam à complexidade de uma política para os povos ciganos:
educação, saúde, cultura e segurança social.
Neste cenário, Pernambuco se destacava por ter feito de forma pioneira o
mapeamento de comunidades ciganas por meio de sua Coordenação para Povos
Tradicionais e Comunidades Rurais, e publicado o relatório de atividades intitulado ​No
Território das Culturas: a experiência da Secretaria de Cultura com populações
tradicionais e povos o campo (2014). Na publicação, além de apresentar as bases
estruturantes para o trabalho na área cultural com comunidades quilombolas, indígenas

4
Associação de Ciganos de Condado, e Ranchos de Ciganos de Sousa, ambos na Paraíba.
ciganas e rurais, a Secretaria de Cultura apresenta dados sistemáticos acerca das
manifestações culturais presentes nas dez comunidades ciganas identificadas
(PERNAMBUCO, 2014, p. 29) e catalogadas ao longo da atuação da Coordenação para
Povos Tradicionais e Comunidades Rurais. O estreitamento da Secretaria de Cultura
com os ciganos de Pernambuco contribuiu para o delineamento de diretrizes para o I
Encontro Regional Nordeste de Ciganos.
No relatório da reunião do dia 31 de março de 2015, o coletivo presente
deliberou diretrizes para a realização do encontro nas quais constavam:
1. Que este evento tenha uma dimensão formativa para os
participantes; 2. Que o protagonismo do cigano seja valorizado
enquanto propositor das ações necessárias a esta população; 3. Que o
evento seja de abrangência regional; 4. Que o encontro seja construtor
de uma agenda específica para cada Estado; 5 que seja propositor /
norteador de políticas públicas para a comunidade a população cigana
do nordeste. 6 No final do encontro será aprovada uma carta,
intitulada de “Carta de Sousa”, contendo as
proposituras/recomendações ciganas para as gestões de políticas
públicas. (PARAÍBA, 2015)

Das definições iniciais, guardados os seus desdobramentos até a realização do


evento, observamos aqui as condutas relativas à participação direta da comunidade
cigana na definição de políticas públicas a seu respeito como efeito dos direitos
garantidores que citamos na primeira parte deste trabalho, o que garante maior
relacionamento entre as demandas apresentadas e aos receptores destas. Assim, a partir
dessas diretrizes o coletivo presente organizou comissões que passaram a tratar de
questões operacionais da realização do evento. Contudo, adiantaremos estas questões
considerando pertinente destacar o que, para nós, trata-se como o elemento de destaque
no âmbito das decisões e encaminhamentos das políticas públicas para os povos ciganos
do Nordeste – a Carta de Sousa.
O evento ocorrido na cidade de Sousa, no sertão da Paraíba, entre os dias 13 e 14
de agosto de 2015, reuniu comunidades ciganas e representantes da sociedade civil e
governamentais de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Além das comunidades ciganas também participaram representantes governamentais de
diferentes estados, sobretudo das áreas da saúde, cultura, educação e segurança social.
As discussões promovidas ao longo dos dois dias de evento permitiram que os não
ciganos ouvissem diretamente das diferentes etnias ciganas presentes as principais
queixas que recaem diretamente no modo de vida das comunidades ciganas, sejam elas
comunidades sedentárias, semi sedentárias e nômades. Conforme previsão para o
evento, no último dia elaborou-se coletivamente o documento síntese das discussões. A
Carta Aberta dos Povos Ciganos do Nordeste, conhecido também como Carta de Sousa,
como foi denominado o documento em virtude do local de sua assinatura, apresenta
reivindicações nos seguintes eixos: 1) identidade; 2) proteção e preservação da cultura
cigana; 3) saúde; 4) educação; 5) trabalho; 6) habitação; 7) cidadania.
Considerando os dispositivos elencados na Carta de Sousa e analisando a
complexidade do atendimento aos ciganos quando pautado no universalismo das
políticas públicas, destacamos três informações que refletem o caráter diferenciado no
atendimento aos ciganos.
Do eixo 2, sobre a proibição do ensino dos dialetos ciganos aos não ciganos.
Trata-se de um ponto relevante nos processos de afirmação identitária uma vez que as
línguas e dialetos falados entre os ciganos configuram-se como meio de transmissão dos
saberes nos processos geracionais, e também são utilizados como instrumento de
proteção dos segredos das comunidades, assim, ensinar aos não ciganos ou registrar
grafologicamente os dialetos ciganos, é para muitos dos seus representantes uma forma
de fragilizar essa proteção e unicidade dos ciganos em suas comunidades.
No eixo 3, Saúde, vê-se com atenção a saúde da mulher cigana, que segundo os
hábitos culturais ciganos deve ser atendida somente por médicas e enfermeiras
mulheres. A presença de médicos homens nas comunidades ciganas é apontada muitas
vezes como motivo da baixa procura de mulheres ciganas aos serviços de saúde, em
especial os atendimentos ginecológicos e obstétricos.
De todos os eixos os que chamam mais a atenção pela quantidade de
reivindicações são respectivamente os eixos 4, Educação e o eixo 7, cidadania.
Entendemos que a natureza das reivindicações nesses dois eixos são muitas vezes
complementares, portanto, relacionáveis, como a desburocratização dos processos legais
para a emissão de documentos dos ciganos, haja vista muitas vezes a ausência de
residência fixa, ou residências em mais de um estado. A ausência de documentos
relaciona-se com a dificuldade de matricular crianças nas escolas bem como nos
registros em prontuários médicos. Por motivos análogos é ainda muito baixa a
quantidade de ciganos regularmente matriculados no ensino superior ou em postos
formais de trabalho. Entre as reivindicações desses eixos está a busca por garantias de
formação e capacitação técnica para jovens ciganos na intenção que eles possam ocupar
postos formais de trabalho e também cotas e bolsas para o ingresso e permanência no
ensino superior. Ainda no eixo de Cidadania destacamos a reivindicação para a
formação e treinamento das instâncias policiais nos estados para impedir a invasão de
ranchos ciganos.
Observa-se em linhas gerais que muitas dessas reivindicações encontram-se
arvoradas no que já prescreve o texto do Guia Cigano (2013), que traz as orientações
sobre os cadastros no CAD Único, no Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, entre
outros cadastros de programas sociais. Entretanto, a recorrência dessas solicitações
percebidas na instância de um Encontro Regional de Ciganos revela que persistem as
dificuldades e inoperâncias de alguns desses sistemas garantidores da participação dos
ciganos na efetivação das políticas públicas, em especial as políticas públicas de cultura.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse breve panorama das recentes políticas públicas e, sobretudo, das políticas
no campo da cultura tem como objetivo contribuir para a ampliação do debate acerca da
proteção e promoção dos povos ciganos no Brasil. Existem ainda muitas lacunas,
ausências e falta de efetivação concreta de ações e programas para a garantia dos
direitos culturais dos povos ciganos no país, sobretudo, no que diz respeito ao direito à
igualdade e à diferença, através dos quais poderemos superar os preconceitos e estigmas
sociais.
Além da imprescindível e fundamental importância da realização de ações
políticas e da implementação de políticas públicas, as produções culturais e artísticas,
pesquisas em torno do tema, sobre e, principalmente, protagonizados por ciganos – o
que é ainda mais escasso -, também têm um relevante papel na ampliação das
representações sobre o grupo étnico no país. A exemplo de Pernambuco, que tem
mapeado e incentivado as instâncias da produção cultural das comunidades ciganas no
estado, é necessário que outros estados adotem instrumentos para a identificação e
reconhecimento dos povos ciganos, favorecendo maior integração destes com a cadeia
produtiva local, regional e nacional. Essa instrumentalização favorece não somente o
universo da produção artística, mas também os meios de elevação da autoestima e
afirmação social dessas comunidades.
Com as sinalizações da Carta de Sousa, quando comparado a outras
reivindicações dos ciganos no Nordeste brasileiro, percebe-se ainda que o ordenamento
jurídico brasileiro ainda não está amplamente adaptado a às especificidades dos povos
tradicionais. E por mais que haja o pressuposto de adequação nas legislações, como por
exemplo, a Educação Itinerante, os Estados e Municípios não conseguem viabilizar os
meios necessários para o atendimento às comunidades ciganas.
Destacamos aqui, porém, que o estreitamento dos agentes públicos para a
efetivação de condutas afirmativas para os povos ciganos é possível. A mobilização da
Paraíba e de Pernambuco para a realização do I Encontro Regional Nordeste de Ciganos
acrescentou um novo capítulo neste cenário, enquanto que os desdobramentos das
decisões e encaminhamentos a partir da Carta de Sousa devem ser sentidos e observados
e analisados nos próximos anos.
Dessa forma, esperamos que este trabalho contribua para a leitura acerca dos
povos ciganos no país com o destaque para os ganhos políticos e sociais que lhes são
destinados. Outrossim, que se proporcione a diluição da imagem de apatia dos ciganos
quanto à participação na vida política ou ainda de outros preconceitos que marginalizam
seus hábitos e modo de viver, em especial no Nordeste do Brasil, permitindo a
valorização da pluralidade e da especificidade dos ciganos no país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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