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Deslocamentos, discursos fundadores e a política da memória visível

nos Jogos dos Povos Indígenas no Brasil.

Liliane da Costa Freitag.

UNICENTRO/BR.

Existem sentidos que regem a criação dos Jogos, dos Povos Indígenas no Brasil tendo
como escopo a análise dos discursos fundadores que dão sentidos às práticas
engendradas no interior destes eventos. Tais narrativas instituídas-instituintes expressam
territorialidades ausentes. As práticas de representações identitárias presentes nas
performances dos grupos que marcam presença a cada edição dos Jogos dos Povos
Indígenas no Brasil sugerem retorno a certa época do ouro dos povos indígenas,
habitantes tradicionais da terra brasilis, práticas de recuperação de ausências, marcas de
ideais românticos inseridos no imaginário social brasileiro sobre as populações
indígenas. É possível atribuir outros sentidos em meio a esta iniciativa política de
memória. De um lado, os diálogos e as negociações sociais que tracejam o evento,
marcam “o lugar indígena” na sociedade. De outro, as práticas identitárias são
reinventadas, são artefatos culturais dinâmicos, resultado de culturas (em disputa)
acerca da relação entre povos indígenas, de projetos nascidos no interior do campo
político bem como de discursos fundadores presentes no ato de criação daqueles Jogos.
Com efeito, os povos indígenas ao incorporarem representações trazidas pelo ideário
romântico querem seja na espetacularização dos corpos, nas tradicionais pinturas
corporais, nos adornos, nas corridas de toras, na prática do arco e flecha, dentre outros.
argumentos que têm sido celebrados ao longo de suas edições: a imagem de um imenso
jardim de história, racionalmente planejado para tornar visível (mesmo que deslocada)
a cultura e a tradição. Essas colocações partem também da existência de um princípio
mimético que rege tais as práticas.

O Brasil desde o ano de 1996 vem se redescobrindo através da experiência dos


Jogos dos Povos Indígenas (JPIs), acontecimento esse, que a cada dois anos vem
marcando a visibilidade desses povos para o conjunto da nação brasileira. Prática essa,
endossada no campo político nacional por meio da Carta Constitucional de
1988,1atualmente em sua XI edição adquiriu ao longo do tempo diferentes

1
O Art. 217 destaca como dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não
formais, como direito de cada um, observados a autonomia das entidades desportivas
dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; a destinação de recursos
pulicos be como a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de
nomenclaturas nas localidades que o tem abrigado.2 Parte da paisagem social no cenário
em que ocorre esse encontro, a finalidade primeira se (re)atualiza na frase “celebrar e
não competir”. Destarte, a celebração é também um encontro ritualizado que expõe uma
memória selecionada e que, paulatinamente vem se construindo como uma política de
memória.3

Podemos assistir ao que nos parece ser um ressurgimento de comunidades que


praticaram ao longo da história do Brasil a sua diversidade cultural e étnica no silêncio e
as escondidas. Ao assumir suas maneiras de ser nos JPIs, mesmo que em um processo
de invenção de tradições no sentido postulado por Hobsbawn (1984), assumem sua
condição indígena, que é algo bem maior que suas identidades particulares. Não
obstante a esta constatação, os JPIs no Brasil, têm se colocado como um espaço
simbólico que busca superar a situação de invisibilidade social indígena junto ao
coletivo da sociedade brasileira.

Essas são em primeira instancia questões que problematizamos ao longo do texto


tendo como base nos argumentos de lideranças indígenas já coletado por pesquisadores,
em falas alocadas no acervo digital do Laboratório de Estudos Avançados em
Jornalismo contidas no banco de dados “ Reconstrução da Trajetória de criação,
Implementação e Difusão dos Jogos dos Povos Indígenas no Brasil (1996-2009), bem
como nos dados obtidos em nossas observações de campo nos Jogos dos Povos
Indígenas no ano de 2005 em Porto Seguro, BR.

Jogos dos Povos Indígenas no Brasil: tecendo um enredo

Segundo a Fundação Nacional do Indio, FUNAI, atualmente 450 mil índios


vivem no Brasil e integram cerca de 230 povos. Esses povos originais, falam cerca de
180 línguas. Que pesem a legitimidade das aproximações estatísticas nos importa

criação nacional, dentre outros.Conforme:


http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_05.10.1988/CON1988.pdf
acessado em: 01-04-2013.
2
Jogos Indígenas do Pará, Festa do Indio, Festival das Culturas Indígenas realizado na
localidade de Bertioga no Estado de São Paulo, e Jogos Interculturais de Campos Novos do
Paresi no Estado do Mato Grosso, dentre outros.
3
As políticas do passado articulam a produção, a conservação e a transmissão da lembrança,
de valores, de cognições e representações de uma referida sociedade (memórias sociais e
memórias coletivas), de um fato e de um governo que passarão a ter uma incidência direta
sobre a matriz simbólica de uma sociedade em relação a uma época, ou, então, produzir uma
“instituição imaginária de identidades coletivas” (MICHEL, 1989, p. 5).
destacar que cada povo reconhecido como originário se realiza, na diversidade cultural
brasileira.4
Sabe-se que no conjunto da escrita da história do Brasil o legado dos povos
indígenas, as manifestações das culturas, as habilidades tecnológicas, as relações sociais
e de poder, as ritualizações, as práticas de espiritualidade, são expressões silenciadas.
Processo que ocorre à medida que a população indígena veio sendo gradativamente
dizimada e obrigada a se encapsular em áreas cada vez mais a oeste do território
nacional, deixando para traz as marcas de sua territorialidade.5
Na década de 1950, o Estado Brasileiro via como inevitável a integração ou a
assimilação do indígena na sociedade nacional. Em 1910, a criação do Serviço de
Proteção ao Indio (SPI) já marcava o papel simbólico do governo brasileiro como
mediador da caminhada desses povos para a civilização.6 Criaram-se estratégias de
pacificação, postos indígenas no interior das aldeias enfim, um amplo dispositivo de
poder tutelar que supostamente tornaria o indígena agregado e coeso a sociedade
nacional, sugerindo assim a solução para a nacionalidade: um problema que cercava o
pensamento social brasileiro desde o XIX a qual dá indícios de encontrar uma saída nas
décadas finais do século XX, mas que o século XXI ainda está para resolver.
A prática política tutelar encabeçada pelo Estado desde os anos 1910 estendera
suas ações forjando o conceito de território indígena e também determinando quem é e
quem não é índio. No entanto, contrariando estimativas, - tais como a do antropólogo
Darcy Ribeiro que nos anos 1970, quando da escrita da obra Os índios e a civilização,
propalava que os indígenas não viriam a chegada do século XXI, - esses brasileiros, em

4
De acordo com Monteiro (1994), qualquer estimativa acerca da população indígena deverá
levar e consideração fatores históricos relacionados a guerras de conquista, os efeitos das
doenças sobre as populações indígenas e os movimentos espaciais em decorrência do contato
entre outras questões. Conforme: MONTEIRO, Jonh. A Dança dos Números. In: Tempo e
presença, São Paulo: CEDI, ano 16, 273,1994.
5
A dizimação de muitos povos indígenas por conflitos armados, as epidemias a
desestruturação social são processos de depopulação e que, portanto não podem ser tratados
como fatos sem levar em conta as características históricas e internas de cada grupo. Análises
sobre os impactos de uma mesma epidemia tem diferentes sociedades indígenas ainda estão
para ser realizados assim como as relações entre os povos e as diferentes agências
indigenistas ou frentes de colonização e seus impactos na dinâmica dessas populações
também não foram estudados. Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/quantos-
sao/quantos-eram-quantos-serao . acessado em:15-05-13.
6
O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) ou Serviço de Proteção aos Índios e Localização de
Trabalhadores Nacionais, parte constituinte do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio
(MAIC), consiste em um órgão público criado durante o governo do Presidente Nilo Peçanha no
ano de 1910objetivando prestar assistência à população indígena. Foi organizado pó Marechal
Rondon e foi extinto e substituído pela FUNAI no ano de 1967.
meio a seus contornos e contrastes ainda redesenham sua história e sua geografia na
paisagem social brasileira. De lá para cá, delinearam-se novas possibilidades em face as
lutas sociais dos indígenas pelo direito ao reconhecimento de suas garantias legais e em
decorrência da forma como vem se pensando e como se reconhece hoje a condição
indígena.
Via de regra, o contexto da Carta Constitucional brasileira de 1988, foi uma
época em que organismos políticos e sociais, lideranças e grupos de representação
indígena passam a adquirir visibilidade na reivindicação da terra como seu direito
original. A partir daquele período, os indígenas, passando a compartilhar direitos
universais constituem-se oficialmente como cidadãos que, portanto, devem ter
garantidos o direito de que esses serviços respeitem suas organizações culturais, sociais
e políticas.
Na prática sabe-se que o acesso e a qualidade de tais serviços oferecidos de
direito não são satisfatórios, contudo, existem e demarcam as políticas nacionais. Em
linhas gerais esses princípios foram uma conquista da mesma forma que a aplicação dos
mesmos ainda é um desafio.7 Outro desafio diz respeito a afirmação da sua diferença e a
busca por espaços de reconhecimento para suas identidades.
Os anos 1970 marcam a ocorrência de embates do movimento indígena no Brasil
e na América Latina, região enclausurada por regimes militares. No Brasil, a luta
travada pelo retorno da democracia contribuirá para a condição indígena: protestos
carregavam a marca da luta em prol dos direitos indígenas à educação, saúde, a
autodeterminação e ao território.
Pode se dizer que na contemporaneidade o movimento indígena vem se
destacando pelo coletivo de ações, articulações, e direcionamentos perfilhados,
conforme destacado por ( SANT‟ANA, 2010, p.20 ) nas “[...] especificidades de cada
etnia, pelas relações particulares destas com o Estado, com as agências de apoio, pela
inserção maior ou menor no contexto da sociedade nacional, entre tantas outras
particularidades.” (Sant‟Ana, 2010, p.20 ). Desse modo, não é uma ação uníssona que
segue uma ordem linear, mas sim movimentos que oscilam entre avanços e refluxos,
7
Referimo-nos como por exemplo a demarcação das terras indígenas. A Constituição brasileira
de 1988 prevê a legitimidade do direito a terra. O Brasil teria cinco anos para demarcar todas
as terras indígenas. Até os dias de hoje isso não ocorreu e em grande parte muitos desses
territórios se viram confinados em meio a extensas áreas de monocultura. Acrescenta-se a
essa questão a criação de hedrelétricas, abertura de estradas as quais perpassam projetos de
mineração, fazendas de gado dentre outras. Conforme discussões entabuladas por Clarice
Cohn em Relações de diferença no Brasil Central: os Mebengokré e seus outros, dissertação
defendida na USP no ano de 2006.
cujos contextos influenciam nos impactos e resultados diferenciados. Destarte,
pesquisas interdisciplinares e estudos etno-historicos destacam a capacidade dos povos
indígenas de reformularem suas culturas, mitos e a sua visão de mundo para refletir as
novas realidades: povos que historicamente haviam sido reduzidos a escravidão e
marginalizados pela sociedade reconstituíram seus significados e rearranjaram suas
culturas.
Na mesma linha de interpretação, estudos têm afirmado não existir tradição
estática e por mais violenta que tenha sido o processo de contato, sempre há um ato
criativo por parte dos índios e longe de povos sem história estiveram e estão sempre
engajados com a sua história interpretando e reinterpretando o mesmo contato,
fortalecendo-se assim como coletividade8.
Uma prática contemporânea de atitude é o chamado associativismo étnico.
Recente na história das mobilizações e inserções políticas indígenas e tem se revelado
como possibilidade que se engendra em meio a debates e alianças entre indígenas e
poder tutelar tendo como escopo a cidadania. Em meio a isso, as agremiações indígenas
representam uma fissura que se abre e se amplia em diferentes setores da sociedade,
inclusive elegendo práticas corporais como um dos objetivos iniciais e com o tempo
vem se ampliando para objetivos políticos como, por exemplo, os Jogos dos Povos
Indígenas no Brasil.9
Nessa direção, a condição indígena vem se restaurando. Constituído como um
espaço simbólico para a expressão da territorialidade indígena, tal evento foi gestado ao
longo de 16 anos, período em que lideranças indígenas da etnia Terena deram início a
amplas negociações sociais percorrendo os espaços de poder politico buscando alianças
para levar a cabo uma olimpíada indígena. 10
A paternidade dos Jogos dos Povos Indígenas no Brasil é tributada a uma
iniciativa indígena brasileira, através do chamado Comitê Intertribal - Memória e
Ciência Indígena (ITC), com o apoio do Ministério do Esporte do Brasil. Este Comitê

8
Refiro-me a estudos tais como Almeida (2003), Vainfas (1995),Oliveira (1999) , Meliá (1988),
Viveiros de Castro (1992), dentre outros.
9
Por exemplo o time de futebol denominado União das Nações Indígenas em Brasília, além da
Associação dos Trabalhadores Terena do Iriri -ATITI que revigorou a Dança das Emas, e
também a Associação Grupo Te‟ que divulga danças tradicionais como a Kohixoti Kipa.
Conforme Ferreira,(ano, p. 14). http://www.uel.br/grupo-
estudo/processoscivilizadores/portugues/sitesanais/anais14/arquivos/textos/Mesa_Coordenada
/Trabalhos_Completos/Maria_Beatriz.pdf . acessado em 14-05-2013.
10
No total já foram mais de 150 povos indígenas brasileiros reunidos, tais como Xavate, Pareci,
Bororo, Guarani, Kadiwéu, incluindo-se as chamadas delegações estrangeiras indígenas do
Canadá e da Guiana Francesa.
surge no interior da Eco-92, Conferência Internacional no Rio de Janeiro, espaço em
que houve uma participação política dos Povos Indígenas. Nesse evento tal entidade
multiétnica tem os Jogos dos Povos Indígenas como uma de suas principais realizações.
Os JPIs por sua vez, passam a se constituir como locais onde são conjugados os
conhecimentos ancestrais, os conhecimentos técnico do poder público e, o
conhecimento científico.11

A frente das negociações sociais os personagens indígenas da etnia Terena


destacam-se como agentes responsáveis pelas articulações junto aos povos indígenas e
governo brasileiro.12 Marcos e Carlos Terena, são sujeitos conhecidos e reconhecidos
como legítimos representantes dos povos indígenas no Brasil, - pelos pares e pela
sociedade, - para levar a diante tal empreendimento. Transitam no campo político
nacional em decorrência do capital simbólico incorporado e adquirido ao longo do
tempo de interlocução com órgãos governamentais brasileiros a fim de que a idéia de
um evento que congregasse os povos indígenas através do esporte fosse levada a frente.

Segundo referendado por aquelas lideranças, o esporte seria uma possibilidade


de tornar visível “a verdadeira cara dos índios” visando a conquista de simpatia por
parte da sociedade nacional, mas também visando o engajamento de setores sociais
junto as questões ambientais e culturais.

O entendimento dessa questão passava pela luta indígena no país. À medida que
os Jogos vão se destacando no cenário político e recebendo atenção midiática a questão
se desdobra passando pela visibilidade étnica, a recuperação da historicidade indígena,
atingindo questões do acesso a terra ao direito ao livre exercício da cidadania. Por fim,
recoloca-se o indígena como legítimo filho da terra brasilis.

Com a amplitude adquirida pelo empreendimento ao longo de suas onze edições,


a demanda territorial e de sobrevivência vem a público de forma legítima e legitimada
pelo campo político institucional um vez que envolve vários setores do governo

11
As diferentes performances corporais tornam-se paulatinamente objetos da ciência do
desporto, a qual fez das edições dos Jogos dos Povos Indígenas um espaço legítimo para o
exercício da sua prática.
12
Referimo-nos aos irmãos Carlos e Marcos, nascidos no posto indígena do distrito de
Taunay, no município de Aquidauana, no estado brasileiro do Mato Grosso do Sul,
pertencentes a à etnia indígena Terena. Fundamentais nas negociações sociais que cerca o
empreendimento, os Terena, são expoentes cujo nome, obra e suas lutas vêm se fundindo com
a trajetória dos Jogos dos Povos Indígenas no Brasil. Dentre o coletivo de atributos que
recebem, está aquele que os aloca como idealizadores dos Jogos dos Povos Indígenas no
Brasil.
brasileiro tais como Ministério do Esporte, Ministério do Turismo, da Cultura, Funai,
Ministério da Saúde, Secretaria da Igualdade Racial, dentre outros órgãos além do já
citado Comitê Intertribal memória e Ciência Indígena.

Creio que a visibilidade dos povos indígenas, projeto sonhado pelos conhecidos
pais fundadores, Marcos e Carlos Terena, finalmente parece estar se concretizando: a
diversidade nacional é posta em cena mostrando o caldeirão étnico constitutivo da
nacionalidade brasileira.

É preciso considerar que, para além dos méritos e das intensas lutas travadas
para a consecução dos Jogos dos Povos Indígenas, que hoje adquiriram importância
nacional e visibilidade internacional, ainda são enormes as distancias a serem superadas
para o pleno exercício dos direitos de cidadania para os povos “da floresta” em
particular,mas também para os povos ‘da cidade” que vivem a margem do Estado de
direito na nação brasileira.

Avançando as conquistas indígenas por meio da criação dos Jogos dos Povos
Indígenas no Brasil queremos problematizar algumas questões. A primeira delas é a
presença de um enredo que nega a competição. Esse princípio é destacado com poucas
variações da seguinte forma: não é a conquista que interessa, não são as medalhas, o
pódio, o importante é brincar , celebrar.

O reforço as práticas espirituais, ao patrimônio imaterial, ao contexto espiritual


dos jogos, a festividade da vida, ocorre na mesma medida que se avigora a idéia de que
o “espírito de competição” não é da natureza indígena e sim que está “no meio dos
brancos.” 13

“[...] nós não incentivamos um atleta Carajá ou Xavante brigar


entre si por causa de uma medalha porque isso não é importante
pra gente [...] porque o espírito de competição, ele ta no meio do
branco ele não ta no meio dos indígenas [...] se você for numa
aldeia de Uca Uca você não vai ver o campeão de corrida de
tora, [...].14

13
Essas falas se fazem presentes, com poucas variações no conjunto das entrevistas
coletadas por pesquisadores do Laboratório de Antropologia bio-cultural da Unicamp, e no
acervo digital do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo contidas no banco de
dados “ Reconstrução da Trajetória de criação, Implementação e Difusão dos Jogos dos Povos
Indígenas no Brasil (1996-2009), bem como nos dados obtidos em nossas observações de
campo nos Jogos dos Povos Indígenas no ano de 2005 em Porto Seguro, BR.
14
Entrevista concedida a Diana Ruiz pela liderança Carlos Terena no ano de 2009 e citada por
Gruppi, (2013, p. 84-5).
Refuta-se, portanto a competição e por extensão o conflito entre os pares
sugerindo o apagamento das diferenças e da herança histórica engendrada no habitus
guerreiro dessas populações. O que implica em uma visão que simplifica, enrijece,
reduzindo a um número cada vez menor de traços que se tornam diacríticos. Tais sinais
diacríticos para Manoela Carneiro da Cunha (1992) consistem em sinais distintivos que,
segundo a pesquisadora podem ser escolhidos conforme a necessidade de se estabelecer
o contraste entre grupos diferentes.

Por um lado, o princípio da distinção conforme entabulado por Bourdieu (1997,


1999) é um princípio fundamental de diferenciação, sobretudo os signos distintivos na
culinária, nos ritos de passagem e na espiritualidade por exemplo. Por outro, o coletivo
de praticas discursivas e não discursivas que expõem muito mais o que os grupos
indígenas, possuem em comum, concorrem para um novo silenciamento de sua história
que se revela ainda no conceito de Jogos Indígenas formulado pelo Ministério do
Esporte como sendo um grande

[...] intercambio esportivo-cultural entre os diferentes povos


indígenas brasileiros revelando ao público o universo que traduz
a harmonia e equilíbrio das sociedades tribais, manifestado
através da dança, cantos, pinturas corporais [...] o autentico
ritual do esporte de criação nacional [...] (BRASIL, 2003, p. 21,
Apud Gruppi, 2013, p. 91)

Sabe-se que o imaginário brasileiro sobre o índio oscila entre duas visões
herdadas da filosofia européia. A primeira delas destaca o atraso desses povos e a
segunda destaca a pureza e se revela na sociedade e no interior de falas tais como a
apresentada anteriormente. É fato que vem perdurando na sociedade, doses variadas
dessa ambígua impressão, porém, os JPIs vem tecendo uma imagem positivada acerca
dessas populações.

Os ritos e as práticas corporais indígenas no âmbito dos JPIs, não causam


espanto, - tal como destacado na carta de Américo Vespúcio em 1512, - mas em parte
geram um reencantamento. A teoria do bom selvagem ressurge e toma corpo nas falas
das lideranças indígenas a frente dos Jogos dos Povos Indígenas no Brasil. O índio
inocente, puro em harmonia com a natureza contra criminosos desmatamentos e
hidrelétricas que destroem a fauna e a flora, esse cenário original da nacionalidade
brasileira.
Esta imagem ganha destaque na imagem que o líder Terena(2009) destaca de si
e de seu povo.

[...] a gente tem o lado educativo dos jogos, [...] a gente busca
ensinar um pouco a meneira mais correta de não sujar o rio [...]
a gente fala que o importante pra nós é a gente brincar entre nós,
celebrar, vamos celebrar a vida, celebrar a comida, celebrar a
natureza [...] (Apud, Gruppi, 2013, p.85).

Com efeito, ao celebrar um suposto encontro de iguais em harmonia , os povos


indígenas expõem representações de si para si e para os outros, - os expectadores, -
como um ato produzido em meio ao ideário romântico que cercam o imaginário a
respeito de tais grupos quer seja na espetacularização dos corpos enredados em pinturas
corporais ou adornos, quer seja nas corridas de toras, na prática do arco e flecha, dentre
outros.

Com esse argumento é que entendemos que os JPIS no Brasil ao longo de suas
onze edições têm sido solenizados encenando um imenso jardim de história, porém, um
cenário racionalmente planejado para tornar visível (mesmo que deslocada) a cultura e a
tradição.

Enredado em uma teia de investimentos públicos, os Jogos dos Povos Indígenas


segundo as falas que cercam o evento, adquirem um efeito de lugar outro, de espaço
heterotopia no sentido Foucaultiano do termo15.

As representações sociais extraídas do coletivo de discursos que apresentamos


revelam o ideário que vem encantando o público: um povo diferente e solidário uns aos
outros sem fissuras sociais ou econômicas decidindo seus assuntos políticos em
conjunto. Foram esses os detalhes do povo relatado por Tomas Morus no contundente
livro Utopia publicado em 1516 e que influenciou todo o sonho utópico do Ocidente.

15
Esses espaços outros, as heterotopias tem como raiz termonológica: aglutinação, de
hetero = outro + topia = espaço. Elaborado por Michel Foucault que descreve lugares e
espaços que funcionam em condições não hegemônicas,Foucault usa o termo heterotopia para
descrever espaços que têm múltiplas camadas de significação ou de relações à outros lugares
e cuja complexidade não pode ser vista imediatamente. No curso de sua história,cada
sociedade faz funcionar de uma maneira muito diferente uma heterotopia. Cada heterotopia
tem uma função interior sociedade e pode, de acordo com a sincronia da cultura na qual
ocorre, ter uma função ou outra. Análises em torno da questão podem ser encontradas em:
http://analobocrispi.files.wordpress.com/2009/05/michelfoucaultheterot_carmela.pdf acessado
em 15-05-2013.
http://foucault.info/documents/heteroTopia/foucault.heteroTopia.en.html acessado em 15-05-
2013
Contudo, a sociedade perfeita é uma heterotopia de compensação ou de ilusão.
Isso ocorre porque o evento Jogos dos Povos Indígenas é um lugar real em que se
justapõem diversos lugares simbólicos mesmo que incompatíveis: a celebração e a
competição, a harmonia e o conflito, as fissuras e as continuidades históricas, o presente
e o passado.

É assim que os Jogos dos Povos Indígenas fazem encadear sobre a arena em que
o cerimonial de abertura ocorre com uma pajelança, colocando em cena toda uma série
de lugares estranhos onde desfilem de forma semelhante a abertura de jogos olímpicos,
onde há a entrada da tocha, seguida das etnias com roupas típicas.

Estranhos uns aos outros, e ao mesmo tempo tão próximos, público e povos
indígenas encontram-se em mediados pelo espaço circular no interior da qual circundam
diferentes etnias indígenas com seus adereços e seus corpos tracejados pelas pinturas
corporais como uma espécie de (re)colocação do tempo. O passado ressurge no presente
trazendo a tona uma imagem ausente. As performances sugerem imagens-espelho que
recupera existências passadas visando um futuro que venha fazer as pazes com a
história dos povos indígenas que constituem a história da nação brasileira.

Mas talvez a idéia mais contundente destas heterotopias em forma de lugares


contraditórios seja a do jardim. O Jardim, forma de heterotopia feliz e universalizante.
Um lugar onde todos completam a sua perfeição simbólica16.

Assim o lugar ocupado pelos povos indígenas no interior da sociedade brasileira


se atualiza pelo imaginario que os unifica contrariando as dessa forma, as
especificidades que marcam a diversidade desses povos originários, cuja sociedade é
regida em meio a tensões, conflitos, disputas, e estratégias simbólicas de poder.

16
No oriente o jardim, uma admirável criação milenar, teve densos significados superpostos. O
jardim dos povos Persas consistia em um lugar sagrado que devia reunir no interior de seu
retângulo 4 partes representando as 4 partes do mundo, com um espaço ainda mais
sacralizado que os outros. Como o umbigo do mundo em seu centro (o vaso e a fonte de
água); e a vegetação do jardim devia ocupar este espaço, como um microcosmos. Os tapetes
eram originalmente reproduções de jardins. O jardim é portanto, como um tapete onde todos
completam sua perfeição simbólica, e o tapete, ao mesmo tempo, possui a condição de jardim
que pode se mover através do espaço. O jardim é a menor parcela do mundo e assim a
totalidade do mundo. Desde a antiguidade o jardim era uma espécie heterotopia feliz e
universalizante (nossos jardins zoológicos nascem daí)
Segundo nosso entendimento, em cada novo encontro o que reverbera é a
conjunção entre diferentes, contrariando assim apelos imagéticos que anunciam a
identidade una para o coletivo dos povos indígenas lá (re)apresentados.

Não cabe aqui aprofundar essa discussão mas é importante ressaltar que é
impossível recuperar o passado na sua concretude. Não é possível resgatar a memória e
dada tradição original. Os rituais, os jogos tradicionais que se reapresentam nos Jogos
dos Povos Indígenas no país são tentativas de recuperar uma ausência, são
representações, são sinais de identificação.

Tais sinais de identificação por um lado, podem ser vistos na prática da


canoagem, corrida de toras, o Xikunahity, prática conhecida como futebol de cabeça,
pelos índios paresis, nambikwaras e enawenê-nawês. Essa prática, assim como a corrida
de toras ou o xikunahaty re-representadas nos JPIs, são imagens refratárias e por isso
mesmo, inacessíveis no presente.

É importante destacar quanto xikunahaty, conhecido como futebol que em lugar


do chute, a bola é empurrada com a cabeça dos participantes, é disputado disputado por
equipes de dez atletas em um campo de dimensões próximas ao do campo de futebol.

Percebe-se nessa prática a conjunção entre passado e presente.Uma prática


tradicional abarcada pela noção de esporte contemporâneo.

Hagré Gavião é um guerreiro jovem da etnia paraense gavião


parkatejê. Tem 18 anos e venceu a modalidade natação dos
Jogos Indígenas. Saiu em primeiro lugar, decidido, braçadas
longas, e não foi alcançado por ninguém. Apesar da pouca
idade, ele já ganhou várias provas nos jogos anteriores. O
campeão diz que adora morar na tribo. Gosta de caçar e de
pescar para a sua sobrevivência e a da família. Hagré pratica
essas atividades quase todos os dias e, por esse motivo, é
insuperável nas águas. Na aldeia, que fica em Marabá, ele
pratica natação no Rio Tocantins. 17

Mas, de forma geral, como resume Lopes (1995) o esporte para Elias e Dunning
(1992), assim como o teatro para Aristóteles aparece como simulacros da guerra e
simulacros dos dramas sociais. Estas simulações produzem nos participantes e também
nos espectadores um efeito catártico: a mimesis da excitação agradável e controlada por
regras, com respeito à vida e difundida onde quer que haja esporte.

17
http://www.brasilescola.com .
Além disso, a mesma sociedade que retira da cena a prática dos Jogos Tradicionais e
cria o esporte moderno, se vê diante da possibilidade dos re-arranjos tecidos pela
contemporaneidade pela sensação ou presença de deslocamentos, perdas ou
fragmentações das identidades sociais, se coloca como mediadora na recuperação de
supostas “identidades perdidas.” Exemplo desse empreendimento é a ênfase dada às
culturas indígenas quando da re-criação ou institucionalização de jogos tradicionais
indígenas, i.e. aquilo que Fassheber (2006) conceituou de etno-desporto 18.

Destarte, no coletivo das falas que cercam a criação dos Jogos dos Povos
Indígenas no país, é contundente a vontade política de expor os JPIs aos não índios
usando para tal intento a mimesis da organização de eventos esportivos próprios das
sociedades não índias. Feito em cidades esse evento atrai a mídia de toda parte do
mundo. Como lembra-nos Vianna (2000),

Inverte-se, assim, o sentido espacial, geográfico, costumeiramente ligado à


expressão contato interétnico: de um contato que se concretiza na forma
“brancos vão da cidade para a ‘selva’ e encontram índios”, passa-se a um
outro, em que temos índios indo “da ‘selva’ para a cidade” e encontrando
“brancos. (www.socioambiental.org).
A rápida retomada da mimesis e seus efeitos, o processo de esportivização dos
jogos indígenas é tema que também se evidencia quando analisamos a página do
Ministério do Esporte do governo brasileiro. Lá estão descritos os procedimentos (ou
melhor, regras) não apenas da corrida de toras, mas também de todos os jogos
tradicionais e não tradicionais elencados nestes eventos. Ou seja, a mimesis ocorre da
necessidade de grafar tradições ágrafas e, não obstante, padronizá-las sob a forma de
regras e regulamentos. Lá também estão grafadas a história da organização e o
regimento dos JPIs, incluindo os critérios de participação e escolhas de grupos
representantes 19.

18
É a prática das atividades físicas tanto sob a forma de jogos tradicionais específicos e a
mimesis que dinamiza estes jogos, quanto sob a forma de adesão ao processo de “mimesis do
esporte global” da sociedade Fóg. Em outros termos, é a capacidade de cada povo indígena de
adaptar-se aos esportes modernos, sem, contudo, perder sua identidade étnica (FASSHEBER,
2006, p.33, Apud; FASSHEBER, FERREIRA e FREITAG, 2008, p.3).
19
Essas considerações foram extraídas do trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira
de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho de 2008 em Porto Seguro, Bahia,
Brasil. O texto Jogos dos Povos Indígenas: um “lugar” de negociações sociais foi produzido a
seis mãos por José Ronaldo Mendonça Fassheber, (UNICENTRO)Liliane da Costa Freitag
(UNICENTRO)e Maria Beatriz Rocha Ferreira, na época vinculada a UNICAMP. Quanto as
regras e os dispositivos destacados na citação, esses foram extraídos em:
www.esporte.gov.br em seu link para os Jogos dos Povos Indígenas. Considerações extraídas.
O papel do Evento com seus rituais e práticas corporais como objetos simbólicos
de identidade reside na garantia de continuidade, legitimidade, enraizamento espaço-
temporal e confirmação da própria identidade indígena. Sem dúvida, é um lugar de
memória. Os lugares de memória são formas e ocasiões de demonstrações, de
exteriorização das memórias. Os mesmos acabam tornando-se lembranças visíveis que
condensam a imagem de um passado evocador, que quer transcender que faz um apelo
ao pertencimento, ao radicamento de tradições e de crenças; representação pública e
objetiva da memória, de comunidades; uma forma de ritualizar a tradição (NORA,
1997)

Existe, portanto toda uma lógica da memória que compõe o cenário para as
práticas corporais indígenas que ultrapassam a tradição e se expandem pela mimesis
entre tradição e esporte próprios das sociedades não índias. Da mesma forma constui-se
uma memória que assume o enredo roconclusão romantica que apaga a diferença e
sugere a redescoberta dos povos indígenas a partir do enredo que romantiza as práticas e
que apaga o conflito. As falas revelam que a imagem do bom selvagem ainda
permanece com profundidade e serve de inspiração para a imagem que os indígenas tem
de si e do grupo ao qual pertence. Precisamos ultrapassar essa idéia-imagem. Indígenas
são seres históricos e tem atitudes históricas e possuem portanto especificidades e
portanto, vivem na e em sociedade, assim como a infinidades de povos e das etnias que
fazem a cltura brasileira. Podem, portanto, viver na natureza mas também a modificam
criando novos meio ambientes agregando excedentes economicos, recriando suas
relações sociais e reelaborando seus mitos e ritos segundo as suas especificidades e
segundo suas demandas na contemporaneidade. Só assim poderemos vislumbrar certo
ressurgimento dos povos indígenas como constitutivos do mosaico étnico brasileiro.

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