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O DIREITO ÀS TERRAS NA ERA COLONIAL E A FORMAÇÃO

DOS MUNICÍPIOS NO VALE DO JAGUARIBE1

THE RIGHT TO LAND IN THE COLONIAL ERA AND THE FORMATION OF


MUNICIPALITIES IN THE JAGUARIBE VALLEY

Resumo: Para repensar o problema da terra e da propriedade no Brasil Colonial, o presente estudo
investiga o contexto histórico-jurídico da concessão das terras pela Coroa Portuguesa na região do Vale
do Jaguaribe (Ceará): seu regramento jurídico e sua ocorrência efetiva. Desse modo, a pesquisa também
visualiza a problemática da relação entre colonos e indígenas, compreendendo o acesso destes à terra. A
partir da perspectiva de Paolo Grossi e da Escola de Florença, a pesquisa analisa os pressupostos da
investigação histórica do direito enquanto abordagem interdisciplinar que explora as influências sociais,
culturais e políticas, para além do mero formalismo jurídico. Desse modo, o artigo estrutura-se do
seguinte modo: a) em um primeiro momento, dialogando com os pressupostos teóricos desenvolvidos por
Paolo Grossi, se discute a compreensão do direito de propriedade no Brasil Colonial enquanto categoria
histórico-jurídica; b) na sequência, examina-se a dificuldade de povoamento português nos sertões
cearenses e o contexto da política de sesmarias; c) de modo mais específico, são observadas as políticas
de concessão de terras e sua fiscalização no Vale do Jaguaribe, verificando influências e fatores que
podem ter contribuído para a formação dos espaços urbanos. Por fim, o artigo desenvolve reflexão sobre a
construção maleável do direito de propriedade, considerando as adaptações informais praticadas nos
sertões cearenses.

Palavras-chave: Direito de propriedade; sesmarias; Vale do Jaguaribe.

Abstract: This study delves into the historical-legal framework surrounding land grants by the
Portuguese Crown in the Vale do Jaguaribe region (Ceará, Brazil) to reassess the issue of land and
property in Colonial Brazil. It explores the legal regulations governing these grants and their practical
implementation. Additionally, the research addresses the intricate relationship between settlers and
indigenous populations, providing insights into the latter's access to land. Adopting Paolo Grossi's
perspective and drawing upon the interdisciplinary approach of the School of Florence, the study
critically analyzes the foundational principles of historical legal research. This approach transcends legal
formalism, incorporating social, cultural, and political influences. The article is organized as follows: a)
an initial exploration of the theoretical framework developed by Paolo Grossi, emphasizing the historical-
legal categorization of property rights in Colonial Brazil; b) an examination of the challenges faced by
Portuguese settlers in the hinterlands of Ceará and an analysis of sesmarias policies; c) a focused
investigation into land grant policies and their enforcement in the Vale do Jaguaribe, elucidating
influences and factors contributing to the development of urban spaces. Ultimately, the article offers
reflections on the adaptive nature of property rights, considering the informal practices prevalent in the
hinterlands of Ceará.

Keywords: Property rights; sesmarias; Vale do Jaguaribe.

INTRODUÇÃO

Como o direito de propriedade das terras, centro de discussões políticas da


sociedade, foi compreendido, regulamentado e efetivado na história brasileira? Essa

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito
Santo (FAPES).
questão levanta inúmeros debates, fatores e divergências. Para oferecer uma
contribuição efetiva, discute-se, neste estudo, um cenário mais específico e delimitado
temporal e geograficamente: quais as características do direito às terras na época
colonial, em especial na região cearense do Vale do Jaguaribe?
O critério de delimitação temporal (Era Colonial) foi adotado para favorecer a
observação da formação histórica do acesso à terra pelos colonos e seus descendentes,
observando sua relação com os povos indígenas nacionais. De início, é preciso,
portanto, compreender a regulação da metrópole portuguesa e as adaptações realizadas
no Brasil Colônia em razão das especificidades que foram encontradas.
Além disso, o critério geográfico (região jaguaribana) contribui para a coleta de
fontes específicas e um aprofundamento da discussão bibliográfica sobre as práticas
coloniais. Inicialmente compreendida como uma área pertencente à Capitania do Rio
Grande do Norte, a região jaguaribana passou a fazer parte do território cearense, sendo
considerada uma espécie de berço do povoamento do interior nordestino.
Nas “Capitanias do Norte” (Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba), o acesso às
terras estava inicialmente restrito às decisões da Coroa Portuguesa e do Governo-geral
da Bahia e, posteriormente, submisso à Capitania de Pernambuco. Apesar da pouca
autonomia, a existência do Capitão-mor local e de uma Câmara favoreceu a
intensificação de políticas de povoamento e de combate aos povos indígenas no final do
século XVII. Por isso, uma análise sobre a propriedade de terras nesse período e local
favorece uma compreensão sobre a formação desse direito na realidade brasileira.
O Vale do Jaguaribe, conforme será discutido nas próximas páginas, tornou-se
área estratégica para o povoamento dos sertões, especialmente com o desenvolvimento
da criação de animais e práticas de cultivo. Nesse sentido, para além de um exame
formal da concessão de terras, são observadas relações familiares e sociais que
estiveram presentes na dinâmica local e na formação dos primeiros centros urbanos
sertanejos (não litorâneos).
Nesse sentido, a pesquisa desenvolve um primeiro tópico sobre os pressupostos
teóricos que servem como referencial para a discussão sobre a formação do direito de
propriedade. Assim, dialoga-se com Paolo Grossi da Escola de Florença, no sentido de
que a percepção histórica da propriedade enquanto sensação social de pertencimento
demanda análise das influências sociais, culturais e políticas, para além do mero
formalismo jurídico (tópico 1).
Em um segundo momento, o artigo desenvolve reflexões sobre as dificuldades de
povoamento português nos sertões cearenses e a adoção da política sesmarial (tópico 2).
No terceiro tópico, são examinados os elementos específicos das práticas de
concessão de terras no Vale do Jaguaribe, com a devida discussão sobre sua fiscalização
e suas relações com os povos indígenas da região. Nesse tópico 3, alguns
distanciamentos daquilo que efetivamente ocorria são expostos em contraponto às
normativas coloniais. Tal discussão possibilita a compreensão do direito de propriedade
e acesso às terras em uma perspectiva mais ampla, verificando influências e fatores que
guardam relação com a formação dos espaços urbanos no sertão cearense. Por fim, o
artigo desenvolve reflexão sobre a construção do direito de propriedade enquanto
categoria dinâmica e maleável, permeável por adaptações informais praticadas nos
sertões cearenses.

1. COMPREENSÃO HISTÓRICO-JURÍDICA DO DIREITO DE


PROPRIEDADE NO BRASIL COLONIAL: VISUALIZAÇÃO DA
PROBLEMÁTICA A PARTIR DE UM DIÁLOGO COM PAOLO GROSSI

Na Faculdade de Florença (Firenze), Paolo Grossi emergiu como Professor Titular


de História do Direito Medieval e Moderno, desenvolvendo fortes preocupações com a
epistemologia histórico-jurídica. Ainda que ele não tenha desenvolvido uma pesquisa
robusta sobre a história do direito brasileiro, suas considerações podem ser úteis para
diversas reflexões. Por isso, suas principais obras têm sido traduzidas e publicadas no
Brasil.
Muitas vezes, os textos legislativos e constitucionais são apresentados no mundo
jurídico como elementos que caracterizariam completamente o direito em um contexto
histórico. No entanto, alerta Paolo Grossi (2005, p. 36): o texto é apenas uma parte
visível, mas deve haver um olhar histórico para compreendê-lo no interior do contexto
que lhe originou e lhe imprimiu vida.
No caso do direito de propriedade, está envolvida uma das discussões
fundamentais da sociedade, especialmente porque sua regulamentação influenciará as
relações sociais e econômicas em diferentes aspectos. Compreender sua construção em
um período histórico mais distante, porém, exige um esforço maior para fugir de uma
leitura historicista causal ou de simplificações grosseiras (Costa Filho; Alves, 2018).
Observar a formação histórico-jurídica do direito de propriedade no Brasil
envolve uma tentativa de reconstrução narrativa com a melhor capacidade explicativa a
partir das fontes, dos fragmentos e do atual estágio de conhecimento. A história é, nesse
sentido, uma imagem presente de uma coisa ausente, tendo em vista que o passado já
não existe; porém, ainda que as coisas passadas não existam nos dias atuais, “ninguém
pode fazer com que não tenham sido” (Ricoeur, 2007, p. 294).
Assevera Paolo Grossi (2006, p. 16) que a propriedade nunca é um problema
apenas técnico e formal. É uma “resposta ao eterno problema da relação entre homens e
coisas”, de modo que a investigação histórica deverá, na tentativa de reconstrução das
narrativas, inserir a questão no interior de uma mentalidade e de um sistema fundiário
para fins interpretativos. Em outras palavras, buscar compreender a interação dos
sujeitos e dos fenômenos sociais, considerando todo o conjunto de formas de
pertencimento segundo a organização socioeconômica. Falar em uma análise histórico-
jurídica da propriedade é, portanto, falar de uma mentalidade proprietária inserida em
um determinado sistema jurídico (Grossi, 2006, p. 33).
Tomando esses pressupostos como ponto de partida para uma análise da
propriedade no Brasil Colonial, busca-se realizar uma análise não restrita a aspectos
formais de legislação e atos de concessão de terras.
Nos dois primeiros séculos da colonização brasileira, o sistema de distribuição de
terras ocorreu por um sistema rudimentar de sesmarias, que eram distribuídas com
dimensões muito extensas, o que pode ser explicado pela frágil regulamentação das
Ordenações vigentes, mas também em razão do excesso de terras e o intenso desejo de
torná-las produtivas. Maior grau de burocratização da concessão de terras, com regras
mais específicas e rigorosas, ocorreu, principalmente, durante o reinado de D. Pedro II
de Portugal (1683-1706) – época que coincide com a intensa adoção da política nas
Capitanias do Norte. Desse modo, por exemplo, ficou estabelecido um limite de
extensão (três léguas de comprimento e uma légua de largura em áreas agrícolas,
segundo ordem régia de 1697) e a cobrança de foro nas sesmarias das capitanias do
Norte, segundo provisão de 1699 (Alveal, 2015, p. 249).
Para além dessas questões formais, porém, a política estatal de regulamentação do
direito às terras está envolvida em diferentes nuances, conforme será desenvolvido. Para
uma compreensão melhor dessa dinâmica social, porém, é preciso investigar
inicialmente o contexto geral da dificuldade de povoamento português nas Capitanias
do Norte nos primeiros séculos da colonização.
2. AS DIFICULDADES NA COLONIZAÇÃO E O POVOAMENTO
PORTUGUÊS NOS SERTÕES DAS CAPITANIAS DO NORTE

A conquista dos sertões é um dos episódios mais emblemáticos das antigas


Capitanias do Norte. Até meados do século XVII, o sertão cearense era povoado
basicamente por indígenas. As primeiras tentativas de adentrar os sertões restaram
frustradas. Após o domínio holandês em 1654, a capitania do Ceará recebe tropas de
Portugal no antigo Forte (atual região de Fortaleza) para estabelecer o controle da faixa
litorânea (Souza, 2014, p. 66-67). Como registra Raimundo Girão (1984, p. 81-82), a
distribuição de sesmarias no Ceará foi intensificada a partir dos anos 1680.
Mas, por que ocupar os sertões das Capitanias do Norte na segunda metade do
século XVII?
Os motivos podem ser vários. Por um lado, havia a necessidade de
aproveitamento econômico da grande quantidade de terras sertanejas, pois o ciclo do
açúcar que havia sido tão bem sucedido estava se esgotando diante da concorrência
internacional. As guerras contra holandeses também destruíram engenhos e
infraestrutura.
Antes da concessão oficial de terras, porém, é provável que muitos colonos das
Capitanias do Norte tenham estabelecido fazendas no sertão, especialmente em razão
das guerras contra os holandeses (1630-1654) no litoral (Lima, 1997, p. 132).
Outro motivo é a dificuldade de ligação entre os centros das Capitanias do
Maranhão e Pernambuco, um aspecto que dificultava a estrutura administrativa colonial.
Povoar o território, garantido a fixação segura dos colonos e o desenvolvimento
agrícola, era, portanto, fundamental para a estratégia da colonização.
Por outro lado, surgia, ainda, a necessidade de espaços mais amplos para a criação
de gado, uma vez que a região litorânea estava predominantemente voltada para
atividades açucareiras e marítimas. As fazendas para criação de animais demandavam
menos custos, em comparação com outras atividades. Por essa razão, buscando regiões
com ribeiras e riachos, houve a gradativa marcha para expansão da pecuária no interior
das Capitanias do Norte (Girão, 1984, p. 81).
Para expandir a técnica de criação de gado, não era necessário um ostensivo
instrumental tecnológico. Especialmente pela criação extensiva de animais, bastava que
o fazendeiro tivesse alguns vaqueiros, currais e pastos próximos às águas fluviais.
Posteriormente, também açudes que represavam água para que os animais bebessem em
tempos de seca e a cultura de vazantes (Abreu, 1998, p. 19). Havia grandes fazendeiros
com milhares de cabeças de gado, mas também pequenos criadores. Com a prosperidade
dessas atividades, foi possível desenvolver aquilo que Capistrano de Abreu chamou de
“Civilização do Couro”, de modo que a vida girava em torno da criação de gado (Forte,
2011, p. 31-35).
Esse processo de expansão da pecuária com a passagem de gado se deu,
fundamentalmente, por duas rotas principais: a) “Sertões de dentro” (partindo do
recôncavo baiano, seguindo pelo Rio São Francisco até o Ceará e sudoeste do
Maranhão); b) “Sertões de fora” (partindo do litoral pernambucano e da Paraíba até o
oeste cearense) (Abreu, 1998, p. 205).
Pela rota do “sertão de fora”, os colonos provenientes de Pernambuco e do Rio
Grande iniciaram o processo de povoamento do Ceará na região do Vale do Jaguaribe.
Ora pelo litoral potiguar, ora pelos sertões de Piranhas (Paraíba) ou do Apodi (Rio
Grande do Norte). Por isso, grande parte das solicitações de terra nesta época (século
XVII) está relacionada à criação de gado.
Capistrano de Abreu (1960, p. 261) registra duas fases fundamentais do
povoamento no Ceará, ambas marcadas por tragédias, lutas e sofrimento: na primeira
fase, homens ricos de outras regiões requereram e obtiveram sesmarias, mandando seus
vaqueiros com “sementes de gado” para a região. Durante esta fase, os fazendeiros
dificilmente chegariam a visitar suas propriedades com frequência. Mas,
posteriormente, surgiu uma nova fase com o estabelecimento de fazendeiros em suas
propriedades do interior sertanejo, época em que será acelerado o processo de
povoamento no interior.
No sertão de Icó, que somente foi elevado à condição de Vila em 1736, há
registros de fazendeiros com mais de 4.000 (quatro mil) cabeças de gado em 1719. A
região da ribeira do Jaguaribe, considerada rica na pecuária, serviu estrategicamente
para o desenvolvimento do Ceará desde o século XVII (Lima, 1997, p. 128).
Além dessas características, o processo de povoamento colonizador nas
Capitanias do Norte ocorreu com forte resistência indígena, o que incluiu organização
de confederações (Confederação dos Cariris) e alianças diversas. A interiorização desse
processo colonial encontrou dificuldades justamente pelo enfrentamento dos povos
nativos em regiões mais afastadas dos grandes centros. No final do século XVII, esse
conjunto de conflitos sangrentos foi chamado pelos historiadores mais antigos como “a
guerra dos bárbaros”. Dentre as reações portuguesas, o Governador Geral da Bahia
fortaleceu o efetivo militar e convocou ferozes bandeirantes de São Paulo como
Domingos Jorge Velho e Matias Cardoso de Almeida (Pompeu Sobrinho, 1956, p. 198).
A região da ribeira do Jaguaribe, no leste cearense, mantém diversos topônimos
dessa época como o “Riacho do Sangue”, local onde o trucidamento indígena tingiu de
vermelho as águas fluviais do Ceará. Naquela época, as Capitanias do Norte estavam
“convulsionadas”, de modo que os colonos costumavam erigir Fortes para enfrentar os
indígenas, nem sempre conseguindo usufruir a posse efetiva das terras (Pompeu
Sobrinho, 1956, p. 199-200).
Esses fortes, porém, não eram sempre grandes estruturas. No Vale do Jaguaribe,
por exemplo, há registros de uma Fortaleza de São Francisco Xavier e de Casas Fortes
(em geral, com munição de armas de fogo e pólvora) para proteger os colonos e servir
estrategicamente no combate aos indígenas. Na região jaguaribana, porém, os resquícios
dessas construções já não são encontrados (Rocha, 1976, p 37-39).
O povoamento do sertão cearense, entretanto, não tinha apenas uma dimensão
econômica, administrativa e militar. Por vezes, as concessões de terras foram utilizadas
como forma de atribuição de uma mercê, ou seja, um reconhecimento pelos relevantes
serviços militares ou administrativos prestados por um sujeito ou sua família em prol da
Coroa portuguesa (Silva; Carvalho, 2021, p. 2). Além de terras, também era costume
atribuir uma patente como “sargento-mor”, “tenente”, “capitão” ou “coronel”. Assim, os
indivíduos que combatiam significativamente os povos indígenas contrários à
colonização poderiam ser recompensados com sesmarias de terras e patentes, o que
estimulava uma espécie de milícia nos sertões.
A partir de uma pesquisa empírica sobre as solicitações de sesmarias em algumas
Capitanias do Norte (Paraíba e Pernambuco) até 1650, é possível constatar a tendência
de justificativas como o cultivo nas terras (24%) ou a construção de benfeitorias,
mosteiros ou fábricas (24%). Também aparecem outros motivos como criação de gado
(16%) e construção ou ampliação de engenhos (16%). Além disso, muitos solicitantes se
apresentavam como combatentes nas “guerras das conquistas” ou nos combates a
estrangeiros ou indígenas contrários à Coroa. Caso curioso, por exemplo, é a solicitação
da Aldeia indígena de Jacoca que alegou a possibilidade de “igualdade com os brancos”
se conseguissem a carta de sesmaria e que lutaram “ao lado dos brancos”. Tais
indígenas haviam lutado ao lado dos portugueses (Costa Filho; Alves, 2018, p. 43-44).
Por isso, evitando qualquer reducionismo equivocado, é preciso não simplificar as
relações entre colonos e indígenas como se fosse sempre algo conflituoso, pois houve
tribos indígenas aliadas e não apenas rivais da colonização.
No caso das atuais terras cearenses, entre 1701 e 1720, foram 256 requisições na
ribeira do Jaguaribe e apenas 48 na ribeira do Ceará (atual região de Fortaleza). Nesse
sentido, a diferença quantitativa pode servir como indício sobre o interesse econômico
relacionado à criação de gado e cavalos (Silva, 2016, p. 67).
Diante da relevância estratégica da ribeira do Jaguaribe, localizada atualmente na
divisa leste com o Rio Grande do Norte, e compreendendo sua função no processo de
colonização e povoamento dos sertões, é possível avaliar os principais fatores
envolvidos na dinâmica social local para verificar as características do direito às terras
naquele contexto histórico.

3. A MENTALIDADE SERTANEJA EM FACE DAS PRÁTICAS DE


CONCESSÃO DE TERRAS E SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DOS
NÚCLEOS URBANOS

Nos tópicos anteriores, foram discutidos os pressupostos teóricos para uma


investigação histórica sobre o direito de propriedade e as nuances sociais em torno da
dificuldade de colonização dos sertões cearenses até o final do século XVII.
Considerando a concessão de terras na ribeira do Jaguaribe como a principal estratégia
para adentrar os sertões, a investigação passa a avaliar aspectos centrais sobre a política
sesmarial e sua dinâmica na região jaguaribana.
Como registra Thomás Pompeu Sobrinho (1956, p. 204-205), o povoamento de
colonos no interior do Ceará ocorreu a partir da ocupação das terras do Baixo-Jaguaribe,
consideradas integrantes da Capitania do Rio Grande nos momentos iniciais. Estas
primeiras famílias seriam as principais a realizar a ocupação de outras regiões como o
Cariri. E a principal formalidade observada inicialmente era a estratégia sesmarial.
Diferente do que ocorrera em Portugal, a técnica das sesmarias tinha
peculiaridades no Brasil Colônia. Assim, os pedidos de sesmarias tanto foram
solicitados ao governador como deferidos, na prática, pelo Capitão-mor da respectiva
capitania, o que também resultou em conflitos de jurisdição em alguns casos. No
momento em que os sesmeiros (pessoas beneficiadas com a doação da terra) recebiam
seus lotes (chamados, na época, de ‘datas’), aqueles ficavam sujeitos a deveres como a
obrigação de povoar a terra e torná-la produtiva. No caso de as terras permanecerem
sem utilidade, os sesmeiros poderiam perder a posse e o usufruto da propriedade,
podendo retornar ao domínio estatal para futura nova doação (Alencar, 2013, p. 4-5).
Portanto, é possível concluir que não havia uma alienação absoluta da propriedade das
terras, mas sim uma relação condicional. Ainda que o sesmeiro passasse a povoar
aquela terra, em tese, a Coroa portuguesa poderia entender que não havia sido suficiente
e que as terras deveriam retornar ao domínio efetivo do Estado.
Ao fazer uso efetivo da terra, muitos sesmeiros passaram a adotar a mentalidade
de propriedade definitiva. Em alguns casos, até mesmo tentavam alienar as terras antes
de perderem para a Coroa. No processo de alienação das terras, não apenas relações de
compra e venda, mas também permutas e outras práticas podem ter sido realizadas, não
restando isso claro nos documentos formais.
Apesar da possibilidade de um rigoroso sistema de fiscalização sobre o uso das
terras, a Coroa teria optado por flexibilizar determinadas normas ou simplesmente
“fazer vista grossa” sobre o que ocorria no interior brasileiro, principalmente durante a
intensificação do combate e extermínio aos indígenas na região. Em 1708, por exemplo,
o jurista Cristóvão Reimão denunciava à Coroa Portuguesa que várias mulheres
indígenas estavam sendo sequestradas de suas famílias e aldeias, com a conivência do
Capitão-mor do Ceará, Gabriel Lago. No ano seguinte, porém, a resposta do Conselho
Ultramarino foi dar ciência ao Governador de Pernambuco para que ele tivesse atenção
com essas questões (Silva; Carvalho, 2021, p. 6).
Caso curioso sobre a maleabilidade das leis portuguesas ocorreu no governo do
Capitão-mor André Nogueira da Costa (1708-1711), no Rio Grande do Norte. O
governante sugeriu à Câmara da Capitania que não deveria liderar os combates aos
povos indígenas, por entender que a legislação portuguesa era contrária aos cativeiros e
massacres dos povos. A Câmara, porém, se manifestou com unanimidade pela
continuidade das lutas, o que indica forte receio e animosidade dos moradores.
O sistema de sesmarias passou por diferentes adaptações e reformas jurídicas.
Ainda que tenha origens no período medieval, a prática foi modificada na época das
colonizações. Inicialmente voltada para o desenvolvimento de cultivos agrícolas na
Europa, o sistema passou a funcionar em razão de novas necessidades econômicas e
sociais. Na época de sua regulamentação em 1375, durante o reinado de D. Fernando I,
o cenário era de aproveitamento das terras rurais em razão do êxodo urbano, de uma
possível crise de abastecimento e em prol do aproveitamento de terras não produtivas
(Ribeiro, 2022, p. 72-73).
Desde então, ao longo dos séculos, diferentes monarcas portugueses reformaram o
instituto por novos regimentos, ordens régias e alvarás. Uma das principais alterações
tardias foi a obrigação de demarcação por uma autoridade estatal (remunerada, porém,
pelos sesmeiros) e por maior controle e fiscalização das terras (Dias, 2016, p. 90).
A questão de aperfeiçoar os mecanismos de controle, em conjunto com um
processo de burocratização da concessão de terras, pode ter relação com o argumento de
Paolo Grossi (2006, p. 51-54) acerca da mentalidade proprietária. Ainda que este
historiador tenha voltado os olhos para as transformações europeias, seu argumento é
que uma das mentalidades que ganha relevo na Alta Idade Média é a primazia da
efetividade ou uma “mentalidade possessória”, que se manteve forte por séculos. No
caso específico do Brasil Colonial, a adoção de um sistema mais rígido e burocrático
está relacionada com o avanço de posseiros informais nas ribeiras do sertão brasileiro.
Por isso, um argumento relevante apresentado na literatura nacional é a questão de
saber se o principal motivo para a adoção de sesmarias seria realmente promover o
acesso às terras ou se seria fornecer maior controle da colonização (Dias, 2016, p. 91).
Assim, na Europa medieval, a sensação de pertencimento foi crucial para
compreender o fortalecimento de vassalos em suas terras concedidas por seu soberano.
Por isso, o sistema de concessão e distribuição de terras esteve relacionado a uma
questão pública, mas a forma de uso aparece, gradativamente, como uma questão
privada, de foro íntimo – ainda que condicionada pelas exigências econômicas e sociais
do regime político. Raciocínio semelhante pode servir como hipótese ou conjectura para
refletir o sistema português de sesmarias praticado no Brasil.
Carmem Alveal (2015, p. 251) destaca que a nova regulamentação das sesmarias e
concessões de terras alterou os direitos de propriedade. Isso porque, tradicionalmente, a
concessão de terras estava condicionada à efetiva exploração da terra (geralmente para
povoar, cultivar ou estabelecer edificações). Apesar dessas mudanças, os donos de terra,
na prática, se comportavam de modo distinto, gerando incertezas nas autoridades
coloniais, especialmente quanto à fiscalização e à nova concessão de terras.
Em 23 de novembro de 1700, o Rei D. Pedro II de Portugal expediu Alvará, com
força de lei, ordenando que todos os ouvidores do Brasil fossem responsáveis pela
demarcação de terras, de aldeias de índios e missões nos sertões do Brasil. Por isso, o
português Cristóvão Soares Reimão, desembargador e ouvidor geral da comarca da
Paraíba, ficou encarregado de realizar a demarcação e “tombamento” das terras nas
Sesmarias da Ribeira do Jaguaribe (Ceará) e da Ribeira do Assú (Rio Grande).
Cristóvão Reimão era um jurista formado pela Universidade de Coimbra que, até 1701,
foi responsável por administrar a Jurisdição da Comarca da Paraíba, a qual abrangia
quatro capitanias: Paraíba, Itamaracá, Rio Grande e Ceará (Dias, 2016, p. 88-89).
O sistema português da sesmaria envolvia custos, burocracia e pagamento de
taxas. Pelo menos desde 1603, há registros de pagamentos de tributos em razão de uma
concessão ou até para que qualquer documento fosse selado e registrado. Assim, os
selos das cartas também eram pagos pelos sesmeiros ou solicitantes de terras. Além
disso, o desembargador responsável pela demarcação das terras deveria ser pago pelos
sesmeiros, além de ser apoiado, militar e administrativamente, pelo Capitão-mor e pela
Câmara da respectiva Capitania. Por isso, um simples lavrador teria muita dificuldade
em se tornar sesmeiro, sendo mais frequente que se tornasse um posseiro na ilegalidade
(Dias, 2016, p. 91-92).
As primeiras sesmarias oficiais para povoamento dos sertões cearenses ocorrem
entre 1681 e 1683: a) baixo-jaguaribe (atualmente entre Aracati e Castanhão), concedida
aos aliados do Capitão Manuel Abreu Soares; b) nas ribeiras do Salgado (entre Icó e o
Cariri); e c) nas ribeiras do Banabuiú (Lima, 1997, p. 132).
No caso da primeira sesmaria, na ribeira do Jaguaribe, foram 15 datas distribuídas
ao capitão Manuel de Abreu Soares e seus companheiros (Lima, 1997, p. 110), todos
moradores da Capitania do Rio Grande e que solicitaram ao Governador Geral da Bahia
Roque Barreto em 1681 com a alegação de “não ter sido nunca povoado de brancos o
mesmo rio”. Alegaram que eles atuaram em favor da Coroa nas guerras e que as terras
eram devolutas. Esses solicitantes haviam combatido e continuaram combatendo a
população indígena nas Capitanias do Norte. Nesse sentido, o capitão Abreu Soares
havia sido Capitão-mor do Rio Grande do Norte (1657-1660) e posteriormente
coordenou significativa expedição em 1686, com 120 homens de ordenança e índios
aliados, para perlustrar a região do Apodi, fundando o Arraial de Açu no ano seguinte
(Girão, 1948, p. 15-16).
Não se sabe ao certo qual a participação efetiva de cada um destes sesmeiros nas
guerras (contra os indígenas) do século XVII, mas havia laços familiares significativos
nesta primeira sesmaria da ribeira do Jaguaribe. Teodósio Gracisman (sesmeiro da 2ª
Data), de sangue holandês, era pai do sesmeiro Gregório Gracisman (7ª Data) e cunhado
do coronel Cipriano Lopes Pimentel (3ª Data) e de Florência Dornellas (8ª Data). Além
disso, esses tinham como cunhado o Sargento-mor Manuel de Abreu Frielas (5ª Data),
que era filho do capitão Manuel Abreu Soares (1ª Data). Dentre outras conexões, o
coronel Cipriano Pimentel era primo de Theodósia Rocha, casada com o sesmeiro
Manuel da Costa Rego (15ª Data), irmã de Tomé Leitão Navarro (4ª Data) e provável tia
de Carlos Barbosa Pimentel (9ª Data). Possivelmente, todos os quinze sesmeiros
possuíam algum grau de parentesco entre si (Lima, 1997, p. 110-122).
Esse dado indica que o processo de análise da distribuição de terras não
apresentava um escrutínio rigoroso sobre essas questões familiares, uma vez que, em
tese, uma mesma família poderia burlar o limite territorial máximo da sesmaria ao
acrescentar parentes como solicitantes no mesmo pedido. Além disso, sendo da mesma
família, era comum que fossem feitos negócios jurídicos para venda de parte das terras.
O capitão Abreu Soares e muitos de seus companheiros não ocuparam as terras da
ribeira do Jaguaribe, razão pela qual tais terras seriam consideradas devolutas pelo
desembargador Cristóvão Reimão na demarcação de 1708. Para evitar que essas terras
retornassem à Coroa, terras foram vendidas como ocorreu na aquisição de posses por
Manuel Carneiro da Cunha (Dias, 2016, p. 94).
No Brasil Colonial, o papel desempenhado pelo desembargador responsável pela
demarcação era sensível às questões sociais e econômicas de cada contexto. Por
exemplo, no processo de demarcação das terras da ribeira do Jaguaribe, repercutiu a
notícia de que Cristóvão Reimão teria retirado parte das terras do sesmeiro Gregório
Gracisman para a construção de uma capela com os indígenas, sendo tal conduta
posteriormente censurada (Lima, 1997, p. p. 111).
Patrícia Dias (2016, p. 105-107) observa que os sesmeiros, ao usufruir
efetivamente das terras, atuavam como se tivessem o domínio efetivo (que pertencia ao
Rei português). Por isso, compravam e vendiam sesmarias, apossavam-se de terras
adjacentes e praticavam condutas na ilegalidade. Nesse sentido, narra a ocorrência de
sesmeiros armados reunidos na casa de João de Sousa Vasconcelos, na atual cidade de
São João do Jaguaribe, para pressionar o desembargador Cristóvão Reimão por sua
demarcação das terras no início do século XVIII. Tal episódio alinha-se com a
explicação de Paolo Grossi, no sentido de que esses sesmeiros, em razão do uso efetivo
das terras, se considerariam donos, ainda que formalmente estas pertencessem à Coroa.
Uma distinção entre posse e propriedade não estava clara para os moradores.
Esse tipo de cenário, em que as forças sertanejas pressionam a aplicação do
direito, poderia sugerir a importância das instituições informais no período colonial. Ou
seja, para além das regras formais estabelecidas na Metrópole portuguesa, o
fundamental seria a prática política efetivamente adotada nos sertões, distantes dos
grandes centros urbanos. Mas também pode sugerir uma lógica maleável do sistema
administrativo da América portuguesa, envolvendo processos de negociação e espaços
de autonomia, especialmente em regiões distantes e inacessíveis pela Coroa portuguesa
(Silva, 2016, p. 65-66).
Pelo menos até 1700, não havia qualquer vila na Capitania do Ceará. O governo
local era exercido pelo Capitão-mor da Capitania, sendo, por essa razão, muitas vezes
acusado de absolutismo, excessos e arbitrariedades. No ano anterior (1699), surge a
Ordem Régia de 13 de fevereiro que estabeleceu a fundação da Vila litorânea de
Aquiraz (efetivamente instalada em 1700), com a eleição de juízes ordinários para
compor a Câmara da Vila e, assim, melhor administrar a justiça. Nesse sentido, as
instituições administrativas formais ganham força na região apenas no século XVIII,
alterando as disputas políticas no sertão. No entanto, conforme reclamação do Capitão-
mor Manuel Francês em 1722, a Câmara funcionava em uma casa de palha em Aquiraz,
tendo havido pouco desenvolvimento urbano nas primeiras duas décadas. Em meio a
diversas reclamações, foi criada uma segunda vila próxima ao Forte (atual Fortaleza)
em 1725 (Silva, 2016, p. 69-71).
Mesmo com a criação das Vilas de Aquiraz e de Fortaleza, a distância para as
terras sertanejas do interior continuou sendo um fator para a maleabilidade da aplicação
da lei. Durante o processo de demarcação das terras da primeira sesmaria da ribeira do
Jaguaribe, o desembargador Cristóvão Reimão acusava, no ano de 1708, que a distância
entre a sede da capitania e o povoamento sertanejo facilitava a prática de crimes e
desordens, proporcionando o descumprimento da lei pelos fazendeiros sertanejos.
Assassinatos, invasões de terras e disputas políticas eram resolvidas, na prática, pela
força bélica e política dos próprios moradores (Silva, 2016, p. 75-76).
Em 1716, sertanejos do Vale do Jaguaribe reivindicaram o estabelecimento de
uma Vila na região da Fazenda de João de Sousa Vasconcelos, por conta da necessária
organização de um sistema de segurança pública. Em 1722, consta que se iniciou a
tentativa de fundar uma Vila de São João Del-Rei naquelas terras, o que não se efetivou.
(Lima, 1997, p. 261-263).
Como nem sempre os sesmeiros tomaram posse efetiva de suas terras, algumas
dinâmicas sociais podem ser observadas. Exemplo disso é a chegada do já mencionado
capitão João de Sousa Vasconcelos, combatente de índios e criador de gado que veio
das margens alagoanas do Rio São Francisco, provavelmente de Penedo. Atuando
contra os índios na ribeira do Jaguaribe no final do século XVII, solicitou terras
prescritas na região em 1687, seis anos após a primeira solicitação de sesmaria.
Construiu uma capela de São João e quatro Casas Fortes, fortalecidas com pólvora,
munição e homens para combater indígenas entre 1687 e 1712 (Lima, 1997, p. 134).
Uma das práticas informais no acesso à terra ocorre na relação entre sesmeiros e
novos donos de terra. Por exemplo, o primeiro sesmeiro do Banabuiú, Lourenço
Cordeiro, cedeu parte de suas terras para Gabriel Barbosa Mendes, fazendo divisa com
as terras de João de Sousa, Antônio Vieira de Barros e Manuel Barbosa. Este, por sua
vez, solicitou a confirmação de sua posse para formalizar sua propriedade em 1706
(Lima, 1997, p. 133). Inexiste registro, porém, sobre a motivação da cessão, se houve
procedimento de alienação, doação ou sucessão hereditária, em desacordo com a
legislação formal da época.
Em 1701, também foram doados terrenos para a fazenda e convento de São Bento.
A doação foi feita por Manuel Nogueira Ferreira e sua esposa. Nos anos seguintes, os
beneditinos adquiriram mais terras e ampliaram seu domínio até sua venda definitiva em
1909 e 1910 (Lima, 1997, p. 261-263).
Na época do Império, o Estado brasileiro determinou que os proprietários de terra
fizessem declaração de suas posses em cartório. Assim, por volta de 1856, perante o
vigário Joaquim Domingues Carneiro na Paróquia de Russas, foram registradas diversas
propriedades em Limoeiro. Curioso notar que as centenas de proprietários nem sempre
estão diretamente ligados aos primeiros sesmeiros daquelas terras (primeira sesmaria da
ribeira do Jaguaribe). Na região de Limoeiro, apenas foi erguida a capela em 1845, mais
de 150 anos depois da primeira concessão de terras aos colonos, a partir da doação de
terras dos novos proprietários. Dentre os sobrenomes registrados, a presença das
famílias Nogueira Ribeiro, Alves Bezerra, Lopes de Andrade, Gadelha, dentre outros,
sugere a descendência dos primeiros povoadores (Lima, 1997, p. 213). Tudo isso
fortalece a hipótese de que os próprios moradores praticaram atos negociais entre si,
nem sempre observando as formalidades da legislação vigente. Por volta do ano 1700,
por exemplo, o capitão André Nogueira Ribeiro estabelecia uma famosa Fazenda no
Sapé e o capitão Caetano de Barros Bezerra estabelecia outra entre as regiões de Danças
e Jatobá, mas nenhum dos dois aparece na primeira sesmaria que abrangia esses locais.
Com o extermínio e a assimilação dos povos indígenas pelos moradores
jaguaribanos, o estabelecimento da propriedade das terras passou a funcionar de acordo
com as necessidades dos grandes fazendeiros, mas nem sempre participando
diretamente da vida política na época colonial. Na segunda metade do século XVIII e
nos primeiros anos do século XIX, a região leste era a mais próspera de toda a Capitania
do Ceará, especialmente pelas vilas de Santa Cruz do Aracati (1748), Icó (1736) e São
Bernardo de Russas (1801), que participavam do ciclo pecuarista. Aracati localizava-se
na foz do rio Jaguaribe, para onde seguia a Estrada Geral do Jaguaribe, que passava por
Russas e seguia até Icó, que permitia comunicação com o Cariri e com uma estrada de
boiadas que se ligava ao Piauí. Era o percurso fundamental das criações de gado e da
produção da carne seca (Lima, 1997; Jucá Neto, 2012, p. 143).
Na América portuguesa, a autonomia municipal era geralmente construída depois
da criação da Paróquia (ato do Poder Público). Por isso, a implantação de capelas era
um primeiro passo para a formação de um núcleo político-administrativo. Após a
criação paroquial, a povoação poderia ser elevada à vila e, por fim, dependendo de sua
importância e população, poderia ser considerada cidade. Desse modo, mesmo que se
tratasse de uma capela de barro, essa costumava ser uma das primeiras medidas a ser
tomada pelos sesmeiros das capitanias do norte (Lima, 1997, p. 217). Mas, como
afirmado acima, alguns povoados como o de Limoeiro tiveram um processo tardio na
formação paroquial, o que não impediu sua rápida transformação em vila, quando
comparado com outros municípios vizinhos.
Assim, por exemplo, o Capitão da ribeira do Jaguaribe em 1793, o Sr. Manuel da
Cunha Pereira, solicitou permissão à Rainha D. Maria I de Portugal para edificar uma
ermida para Nossa Senhora das Dores na sua fazenda (Boqueirão), na freguesia de
Russas, pois a capela mais próxima era cerca de seis léguas de distância (Jucá Neto,
2012, p. 140).
Essa dinâmica indica que, em razão da adoção de uma religião oficial do Reino
(catolicismo), a Coroa repassava o dever de construir edificações religiosas aos
moradores das capitanias, fazendeiros e sesmeiros. A partir das doações destes,
autorizadas ou não pela Coroa, eram constituídos patrimônios religiosos que também
tinham a função de induzir o povoamento da região, formando núcleos urbanos iniciais.
Além disso, por mais que a legislação colonial formal não permitisse práticas de
dizimação da população indígena ou que terras devolutas permanecessem sob o domínio
dos sesmeiros, os moradores locais adaptavam a aplicação do direito às próprias
necessidades econômicas e sociais. No primeiro caso, em geral sob o pretexto de uma
“guerra justa” para proteção dos moradores; no segundo caso, desde que as terras não
fossem solicitadas futuramente por um novo sesmeiro, a propriedade permanecia com o
primeiro sesmeiro que costumava realizar negócios jurídicos com familiares ou aliados
para obter algum patrimônio, prestígio e poder local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da presente investigação, se buscou compreender o quadro geral da


regulamentação do direito de propriedade das terras no Brasil Colonial e as dinâmicas
reais no cenário do sertão cearense (Vale do Jaguaribe).
Com uma posição contrária à postura conceitualista ou formalista do direito, o
artigo se propôs a desenvolver uma análise do direito de acesso às terras enquanto
categoria histórico-jurídica permeável por dinâmicas sociais informais. Por isso, a
pesquisa inicia com a apresentação dos pressupostos teóricos presentes na Escola de
Florença. Não na tentativa de realizar uma ampla crítica sobre esse modo de pensar, mas
sim para fortalecer a transparência sobre o ponto de partida da pesquisa.
Na sequência, o artigo realiza uma ampla análise sobre o acesso às terras nos
sertões das Capitanias do Norte (Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte), em especial no
interior cearense. As divisas entre tais capitanias eram muito fluídas, de modo que todas
elas estiveram, durante algum tempo, submetidas ao Governo de Pernambuco.
Considerando as tentativas frustradas de ocupação do interior sertanejo, o artigo discute
a prática econômica pecuarista e a política de adoção das sesmarias para a colonização
das terras na segunda metade do século XVII. A partir disso, as principais rotas de
povoamento e distribuição das terras são examinadas, considerando também os conflitos
com os povos indígenas.
Por fim, o artigo desenvolve significativa reflexão sobre o tratamento do direito
de propriedade na região do Vale do Jaguaribe, inicialmente considerado como parte
integrante do Rio Grande e que passou ao domínio da Capitania do Ceará. Ao observar
a prática jurídica e política da concessão de terras naquela região, são observados não
apenas elementos meramente formais da regulação jurídica, mas também fatores
informais produzidos pelos moradores e pelas autoridades locais. Além disso, o artigo
verifica como a mentalidade possessória jaguaribana está relacionada às principais
atividades econômicas da “Civilização do Couro” e à formação dos primeiros centros
urbanos da região.

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