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É O FIM DA FALÊNCIA?

GUSTAVO OLIVA GALIZZI


Mestre em Direito Comercial pela UFMG
Master of Laws (LL.M.) pela
University of Texas School of Law
Advogado

LEONARDO NETTO PARENTONI


Mestre em Direito Empresarial pela UFMG
Professor de Direito Civil e Empresarial
em cursos de Graduação e Pós-Graduação
Procurador Federal

SUMÁRIO – Delimitação do tema. Introdução. Parte 1 – Breve análise dos argumentos


expostos em The End of Bankruptcy. 1. Inexistência de aviamento na empresa moderna. 1.1. A
aplicação da teoria coasiana por Baird e Rasmussen. 1.2. Os elementos constitutivos da empresa
segundo Baird e Rasmussen. 1.2.1. Bens tangíveis. 1.2.2. Bens intangíveis. 1.2.3. Força de
trabalho. 1.3. Conclusão parcial. 2. Procedimento concursal vs. contratos. 3. Mercado de fusões
e aquisições. 4. Recuperação da Pequena Empresa: um novo instituto com velhos defeitos. Parte
2 – Demonstração da relevância contemporânea do Direito Concursal. 1. A necessidade do
instituto falimentar. 2. O interesse público na recuperação da empresa. Conclusões. Referências
Bibliográficas.

Delimitação do Tema

Em artigo intitulado “O Fim da Falência” (The End of Bankruptcy)2, os


juristas norte-americanos Douglas G. Baird e Robert K. Rasmussen partem de uma
análise histórica e empírica para concluírem que a falência, compreendendo, na
conotação que lhe empresta o Direito norte-americano, os institutos da recuperação
judicial e liquidação de empresas, perdera a utilidade que lhe caracterizara no passado.
Como se demonstrará ao longo do texto, tais autores sustentam existir, atualmente,
mecanismos jurídicos e econômicos que dispensam o procedimento concursal,
tornando-o um instituto caro e obsoleto.

1
Este texto deve ser citado como: PARENTONI, Leonardo Netto; GALIZZI, Gustavo Oliva. É o fim da
falência? In: CASTRO, Moema Augusta Soares de; CARVALHO, William Eustáquio de (Coord.).
Direito Falimentar Contemporâneo. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008.
É expressamente vedada a utilização comercial, reprodução ou transferência deste texto, por qualquer
meio, sem prévia e expressa autorização por escrito dos autores.
2
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002.

1
O presente texto pretende tecer considerações críticas sobre as idéias de
Baird e Rasmussen, confrontando-as com a realidade brasileira no contexto da nova Lei
de Falências (Lei n° 11.101/2005).

2
Introdução

Tem-se assistido, nos últimos anos, a uma série de reformas na legislação


falimentar de diversos países. Apenas para ilustrar, mencione-se a reforma da legislação
francesa3, em vigor desde o dia 1° de janeiro de 2006, as alterações na lei de falências
italiana, de número 2264, bem como as recentes reformas alemã e portuguesa5.
Acrescente-se, ainda, a modificação do sistema concursal brasileiro, implementada por
meio da Lei n° 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, conhecida como a nova Lei de
Falências.

Tal mobilização legislativa revela uma tendência mundial em repensar os


institutos da falência e recuperação de empresas, a fim de promover sua adequação aos
novos tempos. E é justamente na contramão dessas reformas que se posiciona o artigo
“O Fim da Falência” (The End of Bankruptcy), de autoria de Douglas G. Baird e Robert
K. Rasmussen, questionando a utilidade e necessidade dos procedimentos judiciais de
recuperação e liquidação de empresas. Os argumentos expendidos pelos referidos
autores, que serão analisados, com mais vagar, na seqüência deste artigo, podem ser
sintetizados da seguinte forma:

(i) os estudiosos do Direito Concursal6 deveriam aplicar os pressupostos da


teoria da empresa de Ronald Coase para investigar a efetiva necessidade de
assegurar a manutenção (no caso da recuperação) ou alienação conjunta (em

3
A norma citada é a Lei n° 2005-845, de 26 de julho de 2005, conhecida também como a nova “Loi des
procédures collectives”. Precisamente, não se trata de uma substituição completa de leis, mas de uma
alteração significativa do Livro Sexto do Código de Comércio francês, que incorporou a maioria dos 196
artigos da nova norma.
No mesmo sentido: LEGROS, Jean-Pierre. La loi du 26 juillet 2005 de sauvegarde des entreprises. Droit
des Sociétés, Paris, out. de 2005. p. 8-14.
4
Como, por exemplo, a lei de 08 de junho de 1999, concernente à administração extraordinária.
SCHIAVON, Giovanni. Entreprises en difficulté: les procédures d’insolvabilité en Italie. Les Petites
Affiches, Paris, n° 58, mar. de 2005. p. 5.
5
Em Portugal, a lei reguladora dos processos de falência e de recuperação judicial é atualmente
conhecida como CIRE, ou Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Recentemente
aprovado pelo Decreto-lei nº 53, de 18 de maio de 2004, o CIRE foi amplamente inspirado na lei de
insolvência alemã (Insolvenzord-nung) – a qual data de 05 de outubro de 1994 e entrou em vigor no dia
°1 de janeiro de 1999.
Sobre o tema: SERRA, Catarina. O Novo Regime Português da Insolvência: uma introdução. Coimbra:
Almedina, 2004. p. 10-11. “(...) por trás de tudo isto [das inovações do CIRE] está a lei da insolvência
alemã, a Insolvenzordnung (InsO), de 5 de Outubro de 1994, que o CIRE se limitou, quase integralmente,
a reproduzir.”
A influência da lei alemã sobre o CIRE é admitida expressamente em várias passagens da exposição de
motivos do Decreto-lei nº 53/2004, notadamente nos itens 6, 25 e 45. Disponível em:
<http://www.portugal.gov.pt>. Consultado em 15.11.2006.
6
Por Direito Concursal entende-se a recuperação de empresas e o processo falimentar.

3
se tratando de falência) dos bens do devedor, necessidade esta que
corresponderia à razão de ser do ramo jurídico;

(ii) tendo em vista a crescente padronização dos ativos disponíveis no


mercado, não haveria que se cogitar de aviamento na empresa moderna e,
assim, da utilidade contemporânea do Direito Concursal, ramo jurídico
voltado justamente à preservação deste atributo subjetivo;

(iii) modernos instrumentos contratuais outorgando aos principais credores


do devedor poderes gradativos de decisão sobre o destino da atividade
empresarial dispensariam a instauração de um custoso procedimento judicial
destinado, em última análise, a debater sobre a mesma questão;

(iv) operações de compra e venda de empresas concluídas atualmente no


mercado estariam se sobrepondo às funções para as quais os procedimentos
judiciais de recuperação e liquidação de empresas em crise foram
concebidos;

(v) os altos custos inerentes aos procedimentos judiciais de recuperação e


liquidação de empresas de pequeno e médio porte não compensariam os
eventuais benefícios decorrentes dos mesmos.

Ambientando o debate na realidade brasileira, o presente texto apresenta


algumas considerações críticas sobre as idéias dos referidos autores norte-americanos,
ora discordando das mesmas, ora ressaltando-as, à luz da Nova Lei de Falências.

Parte 1 – Breve análise dos argumentos expostos em The End of Bankruptcy

1. Inexistência de aviamento na empresa moderna

Em The End of Bankruptcy, Baird e Rasmussen iniciam sua exposição


direcionando uma crítica ostensiva àqueles que se detêm a estudar o Direito Concursal
pela razão de, supostamente, não aplicarem, no exame da disciplina, os pressupostos da
teoria coasiana da empresa. Para eles, se Ronald Coase identificou, como se verá
adiante, os motivos que justificam a realização de determinadas transações econômicas
no âmbito interno de uma mesma organização empresarial, e não por meio de
contratações concluídas no mercado, o estudo do Direito Concursal, valendo-se do
mesmo raciocínio, deveria ter como ponto de partida investigar a razão efetiva de se

4
buscar a manutenção de determinados ativos sob uma mesma organização empresarial
como alternativa à sua venda total ou parcial no mercado, a fim de que fossem
utilizados no âmbito de outras organizações 7.

A pretexto de aplicar a teoria coasiana ao fenômeno falimentar, Baird e


Rasmussen centram sua análise na noção subjetiva de aviamento, pontuando,
inicialmente, que o fundamento básico do Direito Concursal consiste na manutenção
deste sobrevalor, decorrente da utilização conjunta e organizada dos ativos inerentes ao
processo de produção.

Neste ponto, é irreparável a assertiva desses autores. Diante da premissa de


que os ativos do empresário valem mais quando utilizados de forma coordenada, o
Direito Concursal moderno foi, de fato, concebido para, dentre outros fins, assegurar a
manutenção dos ativos (no caso da recuperação judicial) ou sua alienação conjunta (na
hipótese de falência), preservando-se, assim, o sobrevalor resultante da atividade de
organização do empresário-devedor, a que os americanos se referem como going-
concern value e os italianos convencionaram chamar de avviamento. A hierarquia lógica
com que foi organizada a ordem legal de realização do ativo do devedor nos termos da
legislação falimentar brasileira confirma esta idéia8. Nesse sentido, argumenta-se que o
aviamento, como atributo subjetivo da empresa 9, existirá sempre que o complexo
organizado de bens do empresário atinja uma funcionalidade econômica e,
conseqüentemente, um valor diverso e maior do que a soma de tais bens
individualmente considerados10.

7
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 760. “Coase asked the question of what explained whether a transaction would be
located in a firm or in the market. In the same spirit, reorganization law ought to begin by ascertaining the
value of keeping particular assets together inside a given firm. (The alternative is for these assets to be
returned to the market, where they may be reassembled in whole or in part in another firm).”
8
Lei n° 11.101/2005: “Art. 140. A alienação dos bens será realizada de uma das seguintes formas,
observada a seguinte ordem de preferência: I – alienação da empresa, com a venda de seus
estabelecimentos em bloco; II – alienação da empresa, com a venda de suas filais ou unidades produtivas
isoladamente; III – alienação em bloco dos bens que integram cada um dos estabelecimentos; IV –
alienação dos bens individualmente considerados.”
9
No presente artigo, preferimos nos referir a aviamento como atributo da empresa. No mesmo sentido:
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 2000, v.1, p. 307. “Não tomamos
posição radical nessa controvérsia. Pensamos que o aviamento, bem como a clientela, tanto podem ser
considerados, cada um de per si, como elemento direto da empresa, ou como do estabelecimento
comercial.”
10
Sobre o assunto, conferir: FÉRES, Marcelo Andrade. Contrato de Trespasse: efeitos obrigacionais da
aquisição do estabelecimento empresarial. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2003.

5
Entretanto, a concepção de aviamento de Baird e Rasmussen difere do
conceito tradicional acima descrito em um aspecto fundamental: para eles, o surgimento
do sobrevalor econômico não decorre da simples organização coordenada dos ativos
que integram a empresa, mas, antes, da especialização de tais ativos em relação ao tipo
de negócio explorado pelo empresário. Na visão dos juristas, a definição de aviamento
está diretamente relacionada à existência de ativos que valham mais quando alocados
em uma determinada organização empresarial, resultando, daí, sua pretensa
especialização. Ao contrário, se os ativos puderem ser utilizados, com a mesma
eficiência, em ramos empresariais distintos, não haverá que se cogitar, no caso, de
especialização e, conseqüentemente, do surgimento de qualquer sobrevalor 11.

Tudo fica a depender, portanto, da existência – ou disponibilidade no


mercado – de ativos de tal forma especializados que sua organização pelo empresário
permita a identificação de um plus economicamente mensurável decorrente de sua
utilização integrada. O aspecto polêmico (como se o título, por si só, já não o fosse) de
The End of Bankruptcy está, entretanto, em que, segundo Baird e Rasmussen, ativos
deste tipo praticamente não se encontram disponíveis no mercado atual, o que os leva a
concluir pela inexistência de aviamento na empresa moderna 12. Sob tal perspectiva, o
Direito Concursal, cujo pressuposto de aplicação é a própria existência desta aptidão
funcional-econômica da empresa e cujo fundamento é justamente preservá-la – ou, em
outras palavras, evitar a alienação individualizada dos ativos do devedor em crise –
teria, segundo os referidos juristas, perdido sua utilidade e necessidade.

No presente estudo, pretende-se demonstrar que a utilização, por Baird e


Rasmussen, dos pressupostos da teoria coasiana no âmbito do Direito Concursal é
defeituosa. De igual modo, os argumentos formulados pelos autores para concluir pela
inexistência de aviamento na empresa moderna comportam questionamentos de diversas
ordens, como se verá adiante.

11
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 760. “We have a going-concern surplus (the thing the law of corporate reorganizations
exists to preserve) only to the extent there are assets that are worth more if located within an existing
firm. If all assets can be used as well elsewhere, the firm has no value as a going concern.”
12
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 763-64. “Just as the machines used for making thread became standardized, so too has
the equipment used across a broad range of our economy. Retailers can acquire standardized shelving,
cash registers, and furniture. (...) Even many of the firms that rely most on large capital assets, such as
airlines, are more like thread-makers than railroads. The capital assets of an airline are readily bought,
sold, or leased. Individual airplanes can be added to the fleet or taken away as demand changes. The
Boeing 747s owned by TWA on one day can be easily reconfigured and run by American Airlines the
next.”

6
1.1. A aplicação da teoria coasiana por Baird e Rasmussen

Em 1931, Ronald Coase, na época um jovem estudante da London School of


Economics, na Inglaterra, mudou-se temporariamente para os Estados Unidos da
América, a fim de seguir um programa de estudos. O objeto da pesquisa de Coase era
determinar, a partir de evidências empíricas – obtidas, sobretudo, por meio de
entrevistas com economistas, empresários, empregados e prestadores de serviço – a
razão da existência de grandes conglomerados econômicos naquele país. Mais
especificamente, o problema que Coase se propunha a resolver era identificar por que
certas transações inerentes ao processo produtivo de determinadas empresas se
efetivavam no âmbito interno destas, ocasionando grande crescimento de estrutura, e
não por meio de contratações concluídas no mercado, com prestadores e agentes
autônomos. A incursão de Coase no ambiente econômico norte-americano foi
proveitosa e o estudo dela resultante, intitulado The Nature of the Firm foi, em grande
parte, responsável pela entrega, a Coase, do Prêmio Nobel de Economia em 1991 13.

O mérito essencial da teoria coasiana, e que justificou sua notória


repercussão, foi medir os diferentes graus de eficiência havidos pelas empresas na
contratação dos recursos necessários à exploração de suas atividades. Nesse contexto, o
jurista inglês classificou as relações contratuais inerentes ao processo de produção em
duas grandes categorias genéricas: transações com prestadores de trabalho
(relationships with labor, compreendendo, de modo geral, aquelas firmadas com
empregados e com terceiros prestadores de serviço) e transações para obtenção de bens
e insumos (relantionships with commodities). Observou, então, o economista que as
transações correspondentes à contratação de mão-de-obra geravam um impacto
econômico maior para o desenvolvimento da atividade empresarial, pois as negociações,
fluxo de informações, regulamentações governamentais e aparatos jurídicos a elas
inerentes envolviam grau de complexidade superior, acarretando, conseqüentemente,
custos transacionais mais elevados14.

Neste ponto, a aplicação imperfeita, por Baird e Rasmussen, dos


pressupostos da teoria coasiana se torna evidente. Em The End of Bankruptcy, os
juristas norte-americanos abordaram a discussão acerca da inexistência de aviamento na
13
COASE, Ronald H. The nature of the firm, Economica, v.4, 1937.
14
Como explicado posteriormente por Ronald Coase. Ver: COASE, Ronald H. The nature of the firm:
influence. In: WILLIAMSON, Oliver E.; WINTER, Sidney G. (Coord.). The Nature of the Firm. New
York: Oxford University Press, 1990, p. 68.

7
empresa moderna (e, conseqüentemente, da inutilidade contemporânea do Direito
Concursal) tendo como enfoque os ativos do devedor. Ao contrário, para resolver o
problema objeto de sua pesquisa, Coase pouco se referiu aos ativos empregados no
processo de produção, centralizando suas atenções, de outro lado, nos contratos
firmados pelo empresário para obtenção de mão-de-obra. Nas palavras do autor:

“A empresa emergirá naqueles casos em que um contrato de


curto prazo de duração [para obtenção de um recurso]
demonstrar-se insatisfatório. Tal fato se revela muito mais
evidente na contratação para obtenção de serviços – trabalho –
do que na contratação para obtenção de insumos. Nesse último
caso, os principais aspectos negociais podem ser tratados
previamente, sendo os detalhes a serem decididos em momento
posterior de menor importância”. 15
O economista analisou, nessa tarefa, os diferentes aspectos inerentes às
relações entre (i) empregado e empregador (master and servant) e (ii) empresário e
demais agentes de mercado (principal and agent)16. Coase constatou a existência da
empresa naquelas situações em que a formalização contratual do vínculo empregatício
se revelou mais eficiente – gerando custos transacionais menores – do que a
contratação de terceiros efetivada no mercado.

A doutrina dos custos transacionais elaborada por Coase domina,


atualmente, os estudos sobre a percepção econômica da empresa 17. O modo pelo qual
uma atividade se realiza – se no âmbito interno de uma organização ou se entre dois
agentes no mercado – torna-se apenas uma questão de vantagem comparativa. A pedra

15
Tradução livre. Texto orginal: COASE, Ronald H. The nature of the firm: influence, p. 68. “A firm is
likely therefore to emerge in those cases where a very short term contract [for a resource] would be
unsatisfactory. It is obviously of more importance in the case of services – labor – than it is in the case of
the buying of commodities. In the case of commodities, the main items can be stated in advance and the
details which will be decided later will be of minor significance.”
16
Confira-se a explicação de Klein e Coffee acerca das sutis diferenças entre as relações master-servant e
principal-agent no Direito norte-americano: KLEIN, William A.; COFFEE JR., John C. Business
Organization and Finance: Legal and Economic Principles. New York: Foundation Press, 2004, p. 14-
15. “These terms [“master” and “servant”] are used to describe a relationship in which one person (the
“master”) “controls or has the right to control the physical conduct of the other” (the “servant”).
(Quotation from Restatement of the Law, Agency (2d), Sec.2). (...) The term “servant” is somewhat
confusing. In law, it does not imply servility. The employees of large corporations, working as
electricians, carpenters, truck drivers, and the like, as well as the white-collar workers and the executives
all the way up to the top person, are “servants”in the legal sense. Similarly, the term “agent” has a broader
scope in law than in common parlance; it includes any person who has agreed with another person (the
“principal”) to “act on his behalf and subject to his control.”Restatement, Agency (2d), Sec. 1. [In this
sense, a] nonservant agent is one who agrees to act on behalf of the principal but is not subject to the
principal’s control over how the task is performed.”
17
A concepção da empresa como um feixe de contratos que organizam atividades econômicas visando a
reduzir custos de transação de operar em mercados foi posteriormente evoluída por Michael C. Jensen e
William H. Mecklin. Ver: Theory of the firm: managerial behavior, agency costs and ownership structure.
Journal of Financial Economics, v.3, n.4, 1976.

8
de toque da teoria coasiana é permitir identificar qual o método de organização menos
custoso para a exploração da atividade empresarial. E essa conclusão depende, a seu
turno, dos custos transacionais inerentes aos potenciais modos de organização da
atividade econômica pelo empresário.

Para chegar a essas conclusões, Coase examinou os contratos firmados pelo


empresário para obtenção de mão-de-obra a fim de verificar a relevância da organização
contratual. Assim sendo, um estudo de Direito Concursal baseado na teoria coasiana
deve ter como ponto de partida investigar a existência de aviamento na empresa
devedora considerando o sobrevalor como atributo decorrente, sobretudo, das relações
contratuais mantidas pelo empresário, e não da organização dos ativos empregados no
processo de produção, como fizeram Baird e Rasmussen.

Reside aí o equívoco com que procederam Baird e Rasmussen: ao criticar os


cultores do Direito Concursal por não considerarem The Nature of the Firm como ponto
de partida para o estudo da disciplina, os juristas norte-americanos deveriam, eles
próprios, seguir o conselho, e aplicar a teoria coasiana de forma coerente com seus
pressupostos de elaboração.

1.2. Os elementos constitutivos da empresa segundo Baird e Rasmussen

No afã de examinar a eventual especialização dos ativos que compõem a


empresa, Baird e Rasmussen classificaram-nos em três classes distintas: ativos
tangíveis, ativos intangíveis e força de trabalho 18. Analisando cada uma das categorias
acima referidas, os autores concluíram pela indisponibilidade de ativos especializados
no mercado contemporâneo e, conseqüentemente, pela inexistência de aviamento na
empresa moderna. Os tópicos seguintes enfocam esta análise catalogada de elementos
empreendida pelos juristas norte-americanos.

1.2.1. Ativos tangíveis

Baird e Rasmussen aduzem que a atual padronização dos ativos tangíveis


disponíveis no mercado permite que os mesmos sejam utilizados no âmbito de qualquer
organização empresarial, a despeito da natureza e das vicissitudes da atividade
econômica explorada, o que fulminaria o requisito da especialização, essencial, na visão
dos autores, para o surgimento de aviamento na empresa moderna. Sugerem os juristas
18
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy, p. 760-777.

9
norte-americanos que a versatilidade objetiva decorrente dessa padronização faz com
que móveis, máquinas, eletrônicos e utensílios de modo geral sejam aproveitados, com a
mesma eficiência, por agentes econômicos de diferentes portes, ainda que atuantes em
mercados distintos19.

A percepção do atributo subjetivo a que consiste o aviamento não se


correlaciona, entretanto, à eventual padronização ou versatilidade dos bens tangíveis
articulados para a exploração da atividade econômica. De fato, se o antagonismo da
relação padronização-especialização faz algum sentido, o mesmo não pode ser afirmado
no que diz respeito à contraposição entre especialização-aviamento. Um não depende do
outro, como querem fazer crer os autores norte-americanos.

O erro no raciocínio de Baird e Rasmussen decorre do fato de que esses


autores não consideraram, da forma como deveriam, um importante componente do
aviamento. Trata-se da organização contratual. O exercício de qualquer atividade
empresarial requer a celebração de um número mínimo de contratos. Num exemplo
propositadamente simplório, pode-se dizer que aquele que pretende explorar uma
pequena gráfica terá duas opções: (i) adquirir as máquinas copiadoras e demais bens de
que necessitará, alugar o imóvel em que será instalada a gráfica, promover a instalação
de serviços básicos como água, luz e telefone, contratar empregados, além de diversas
outras providências; ou (ii) simplesmente comprar uma gráfica já em funcionamento.
Neste segundo caso, o preço a ser pago será intuitivamente maior, porque o adquirente
não terá o trabalho de organizar os bens, já que isto fora feito pelo antigo proprietário.
O custo suportado pelo titular da atividade econômica para articular contratualmente
esses fatores corresponde à medida do aviamento da empresa.

Por essa razão, ainda que os bens corpóreos que integram o estabelecimento
sejam padronizados e facilmente adquiridos no mercado (como mesas, cadeiras, papel,
etc.), os contratos deverão ser individualmente celebrados, em homenagem ao princípio
da relatividade20. Desse modo, todo estabelecimento terá, necessariamente, ativos

19
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 764.
20
JÚNIOR, Humberto Theodoro. O Contrato e sua Função Social. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
p. 1-2. “Todo o sistema constitucional [do Estado Liberal] se inspira no indivíduo e se limita, subjetiva e
objetivamente à esfera pessoal e patrimonial dos contratantes. Três são, portanto, os princípios clássicos
da teoria liberal do contrato: a) o da liberdade contratual, de sorte que as partes, dentro dos limites da
ordem pública, podem convencionar o que quiserem e como quiserem; b) o da obrigatoriedade do
contrato, que se traduz na força de lei atribuída às suas cláusulas (pacta sunt servanda); e c) o da
relatividade dos efeitos contratuais segundo o qual o contrato só vincula as partes da convenção, não

10
especializados, na medida em que ao menos um de seus componentes, os contratos,
guardarão essa característica. Ou seja, a existência de ativos especializados é inerente
à organização empresarial.

Como a celebração de contratos demanda tempo e dinheiro, além da


identificação do melhor contratante e busca de vantagens negociais, é de se esperar que
o custo decorrente dessa atividade seja incluído no preço do estabelecimento, por
ocasião da venda. Nesse caso, a transferência dos direitos e obrigações contratualmente
assumidos pode ser feita por meio da cessão de posição contratual21, desde que não se
trate de pactos intuito personae, ou cuja transferência seja vedada por lei. Em uma única
frase: o custo da organização contratual integra o aviamento.

Pelo que foi dito, pode-se concluir que todo estabelecimento empresarial,
ainda que composto, em sua maioria, por ativos padronizados, facilmente adquiridos no
mercado, sempre possuirá aviamento, decorrente, ao menos, da organização contratual
feita pelo empresário. A esta conclusão já havia chegado Vera Helena de Mello Franco,
ainda que sem externar seus fundamentos:

“O estabelecimento, como realidade dinâmica, não existe sem o


aviamento. O estabelecimento pode estar bem (produzindo
lucro) ou mal aviado (causando prejuízo), mas o aviamento está
sempre presente.”22
Foi esse o entendimento a que chegou também Ronald Mann, professor da
University of Texas School of Law, em interessante estudo empírico sobre a
contraposição de interesses na contratação e execução de empréstimos com garantia
real. No estudo, Mann demonstra que, geralmente, o credor hipotecário ou pignoratício
opta por não exercer a faculdade de excussão dos ativos que compõem o
estabelecimento empresarial do devedor dados em garantia pelo receio de que os
mesmos sejam vendidos por um valor inferior ao que poderia ser alcançado pelo próprio

beneficiando nem prejudicando terceiros (res inter alios acta neque nocet neque prodest).” Mesmo os
chamados contratos de adesão, veiculados por meio de instrumento padronizado (formulário), precisam
ser celebrados individualmente. Nesse sentido: GOMES, Orlando. Contratos. 19. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1999. p. 109. “No contrato de adesão uma das partes tem de aceitar, em bloco, as cláusulas
estabelecidas pela outra, aderindo a uma situação contratual que encontra definida em todos os seus
termos. O consentimento manifesta-se como simples adesão a conteúdo preestabelecido da relação
jurídica.”
21
GOMES, Orlando. Contratos. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 148. “Podem alguns contratos
ser cedidos em bloco. Nessa hipótese, a posição contratual de uma das partes é assumida por terceiro.
Assim, a cessão consiste, em última análise, na substituição de um dos contratantes por outra pessoa que
passa a figurar na relação jurídica como se fora a parte de quem tomou o lugar. É em suma a transferência
negocial a um terceiro do conjunto de posições contratuais.”
22
FRANCO, Vera Helena de Mello. Manual de Direito Comercial. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. v. 1. p. 137.

11
devedor. Em outras palavras, a opção do credor com garantia real pelo fechamento do
negócio faria desaparecer, por via de conseqüência, o seu valor (isto é, o aviamento)23.

Numa comparação meramente exemplificativa, sem pretensão científica, a


relação entre o credor com garantia real e o empresário devedor assemelha-se à relação
biológica entre parasita e hospedeiro. Ao parasita interessa extrair o máximo do
hospedeiro sem, contudo, causar-lhe a morte. Isto porque a sobrevivência do parasita
depende, em grande parte, da subsistência do próprio hospedeiro. Mutatis mutandis, é o
que ocorre com o credor com garantia real. Este reluta em promover a excussão de sua
garantia, quando susceptível de causar a “morte do devedor” (extinção da empresa),
preferindo compatibilizar a satisfação de seu crédito com a preservação das atividades
do empresário em crise, de modo que lhe seja possível, futuramente, exercer outros
direitos contra a mesma pessoa.

1.2.2. Ativos intangíveis

Baird e Rasmussen classificam os ativos intangíveis da empresa em duas


categorias genéricas: propriedade intelectual e know-how. Sob a premissa de que a
propriedade intelectual constitui elemento padronizado (em decorrência da possibilidade
de cessão do seu uso a terceiros) e que o know-how de uma empresa em crise tem pouca
ou nenhuma valia, afirmam os autores que ativos intangíveis em nada contribuem para a
percepção do aviamento24.

A afirmação não procede, salvo melhor juízo. Muito embora a possibilidade


de cessão de uso de propriedade intelectual seja admitida inclusive por disposição legal,
a que corresponde, naturalmente, o respectivo pagamento de royalties, trata-se ela,
apenas, de faculdade do seu titular. Isso leva à conclusão de que a propriedade
intelectual não é necessariamente padronizada, mas, antes, padronizável. E, ainda que

23
MANN, Ronald J. Strategy and force in the liquidation of secured debt. Michigan Law Review, v. 96,
1997. p. 159-254. Como explica o autor: “The fundamental reason for the lender’s willingness to allow its
debtors to control liquidation of collateral was the prevailing pessimism of account executives as to the
results that they could expect to obtain through more adversarial approaches to liquidation. The general
perception was that the lender could never hope to get paid in full if it repossessed the collateral and sold
it in satisfaction of the debt. The dominating basis for that perception was a belief that the debtors almost
universally could sell the collateral for more than the lender. As one executive stated in connection with a
troubled firearms debtor: ´If he couldn’t sell [some obsolete hunting equipment], we certainly couldn’t’”.
MANN, Ronald J. Strategy and force in the liquidation of secured debt, p. 179.
24
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 763 e 765. “Intellectual property is an even more important part of modern firms. Such
assets, however, are not necessarily locked inside a particular firm. (…) “Any expertise that even a large
firm possesses becomes worthless when its business model fails.”

12
assim não fosse, nada impede, como se viu no tópico anterior, que o aviamento decorra
da organização de ativos eminentemente padronizados.

De outro lado, a idéia de que não há valor no know-how empregado para a


exploração da empresa em crise é exagerada, na medida em que despreza, de plano, a
própria possibilidade de sua recuperação.

Ademais, Baird e Rasmussen consideram apenas parcela reduzida dos ativos


intangíveis da empresa, nomeadamente, aqueles próximos aos centros de poder (know-
how e expertise de administradores e diretores). Desprezam, portanto, intangíveis
valiosos para o desenvolvimento do negócio, tais como procedimentos operacionais,
rotinas, práticas de gestão, relacionamento com clientes e fornecedores etc. Tais
intangíveis são, de igual modo, indispensáveis para o surgimento da aptidão funcional
da empresa. Em certas circunstâncias, a reestruturação dos procedimentos operacionais
de uma fábrica pode ser a chave para aumentar significativamente sua produtividade.

Vale citar o exemplo da siderúrgica brasileira Gerdau. Em decorrência, entre


outros, da implantação de práticas inovadoras de gestão, a Gerdau obteve, no ano de
2006, um aumento de faturamento da ordem de 7,2% comparativamente ao exercício de
2005. Neste caso, a reestruturação dos processos de rotina empregados no âmbito das
unidades fabris do grupo fez toda a diferença, ocasionando um ganho de faturamento
palpável. O sucesso obtido pela Gerdau incentivou, inclusive, o presidente do seu
conselho de administração a propagar a efetividade de tais intangíveis, salientando,
publicamente, o seu incontestável valor 25.

25
Ver, a respeito, a reportagem: “Presidente do conselho de administração do grupo Gerdau diz que o
lucro da empresa atingiu os R$ 3,5 bi em 2006.” Disponível em:
<http://www.revistafator.com.br/ver_noticia.php?not=7943>; acesso em 25/5/2007. Na entrevista,
Johannpeter destaca: “Continuamos trabalhando para aprimorar a eficiência e a produtividade das
operações. Isso só é possível graças aos investimentos em atualização tecnológica, às avançadas práticas
de gestão e à contínua capacitação dos colaboradores. Essa conjugação de fatores nos coloca entre as
melhores empresas siderúrgicas do mundo e nos distingue no mercado pela qualidade dos produtos e
serviços. A busca constante pela melhoria faz com que níveis diferenciados de rentabilidade estejam
presentes em períodos favoráveis, como também em momentos mais difíceis do mercado. (...)
Acreditamos no poder transformador das pessoas e na sua contribuição para o desenvolvimento do
negócio. Por isso, investimos na capacitação dos profissionais, preparando-os para uma atuação global.
Em 2006, os recursos destinados para essas atividades somaram R$ 40,3 milhões. Também buscamos
estabelecer um relacionamento consistente, transparente e duradouro com os colaboradores.” Ver, no
mesmo sentido: “Uma dose de Ambev na Sadia: em busca de melhores resultados e de mais eficiência, a
Sadia injeta agressividade e critérios de meritocracia em sua cultura.” Reportagem veiculada na Revista
Exame do dia 14/3/2007, p. 58-60.

13
1.2.3. Força de trabalho

Para Baird e Rasmussen, a força de trabalho de uma empresa exerce,


igualmente, pouca influência para a percepção do aviamento. Os autores chegam até a
reconhecer o valor inerente às relações mantidas (i) entre equipes e (ii) entre equipes e
demais ativos da empresa. Todavia, reduzem esse valor às relações pessoais de alto
escalão (elite groups of key employees), ignorando aquelas existentes entre empregados
de posição inferior na hierarquia 26.

Ao contrário do que sustentam os juristas norte-americanos, a eficiência


necessária à exploração bem sucedida de uma atividade econômica é resultado não
apenas da interação e convergência de opiniões entre os administradores da empresa,
mas, sobretudo, da harmonia entre os diversos integrantes da organização. O jargão “a
união faz a força” assume, nesse contexto, conotação especial. Como salientado por
Coase, a noção de força de trabalho, e o valor daí decorrente, diz respeito a todo o
conjunto de indivíduos coordenados para o desenvolvimento da atividade empresarial27.
Ao restringir sua opinião a um grupo reduzido de pessoas, Baird e Rasmussen não
capturam, portanto, a essência da organização de mão-de-obra, responsável, de igual
modo, pela denotação do sobrevalor empresarial.

1.3. Conclusão parcial

A pretexto de aplicar a teoria coasiana aos procedimentos de recuperação e


liquidação de empresas, Baird e Rasmussen centralizaram sua análise nos ativos do
empresário devedor, e não nas relações contratuais mantidas entre este e prestadores de
trabalho, as quais serviram de início à elaboração de The Nature of the Firm. Nesse
contexto, consideraram a empresa moderna como uma mera comunhão (no sentido
vulgar) de ativos, desprezando as demais relações jurídico-contratuais efetivadas no
âmbito da organização empresarial, as quais, segundo Coase, compõem a empresa.
Aplicaram, portanto, a teoria coasiana sem observar os seus pressupostos básicos,
prejudicando os argumentos expostos na seqüência de The End of Bankuptcy.

Nesse sentido, a premissa utilizada por Baird e Rasmussen de que o


aviamento, como atributo subjetivo da empresa, decorre somente da eventual
26
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 764.
27
COASE, Ronald H. The nature of the firm: meaning. In: WILLIAMSON, Oliver E.; WINTER, Sidney
G. (Coord.). The Nature of the Firm. New York: Oxford University Press, 1990, p. 58-59.

14
especialização dos ativos articulados pelo empresário é equivocada. O surgimento do
aviamento resulta, sobretudo, das relações jurídicas mantidas pelo empresário. Tais
relações podem se efetivar tanto entre pessoas, interna ou externamente (relações entre
os diversos empregados de uma empresa, relações com credores, consumidores,
fornecedores, agências reguladoras, etc.) ou entre pessoas e ativos. É a organização
destas relações para a exploração de uma atividade econômica, a qual demanda tempo e
gera custos, a responsável pelo surgimento de uma aptidão funcional economicamente
mensurável. A harmonia oriunda desta organização constitui o elemento subjetivo que o
Direito Concursal busca preservar, dentre outros objetivos.

2. Procedimento concursal vs. contratos

Um dos pilares do Direito Concursal consiste na noção de que, diante da


superveniência de uma crise econômico-financeira, o poder de controle da empresa não
recairá sobre sujeitos que o exercitem de forma adequada. A partir do momento em que
a sociedade falha em cumprir obrigações contraídas com credores, fornecedores e
financiadores, tornando-se impontual, o grau de ingerência externa na condução da
atividade empresarial aumenta, majorando também o risco de liquidação do negócio por
influência de terceiros. Nesse sentido, as lições de Fábio Konder Comparato:

“Há, assim, em primeiro lugar, toda uma série de hipóteses em


que o controle externo resulta de uma situação de
endividamento da sociedade. Em razão do seu direito de
crédito, cuja execução forçada pode levar a companhia à
falência, o credor passa, muitas vezes, a dominar a devedora,
comandando a sua exploração empresarial.” 28
O temor de que este poder externo seja utilizado de forma inapropriada,
causando, por exemplo, a liquidação prematura de um negócio promissor (a despeito do
estado de crise momentânea), constitui um dos pontos nodais do Direito Concursal. De
fato, uma das utilidades dos institutos judiciais de recuperação e liquidação é evitar um
descompasso entre, de um lado, os incentivos de agentes externos que adquiram algum
grau de controle e, de outro, aquilo que se encontra no melhor interesse da empresa em
crise e da coletividade de modo geral.

Entretanto, para Baird e Rasmussen, essa utilidade do Direito Concursal


seria imperceptível nos dias de hoje, uma vez que mecanismos constantes de contratos

28
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de Controle na Sociedade
Anônima. São Paulo: Forense, 2005, p. 90/91.

15
financeiros e de investimento praticados no mercado teriam, por si só, o condão de
transferir o controle da empresa em crise para credores supostamente mais capacitados a
tomarem decisões sobre seu futuro, eliminando o descompasso de incentivos acima
descrito e resolvendo, de resto, uma das questões mais controvertidas do estudo do
Direito Concursal, relacionada à governança da sociedade em recuperação 29.

É sabido que contratos financeiros e de investimento utilizados, sobretudo,


por bancos e fundos de private equity30 regulam usualmente cláusulas dispositivas
atribuindo à parte financiadora influência gradativa na condução da atividade explorada
pela sociedade financiada. Tais mecanismos, acionados na superveniência do estado de
crise do devedor, incluem, exemplificativamente: (i) a possibilidade de término
antecipado dos contratos na hipótese de endividamento da sociedade financiada em
volume superior a uma quantia contratualmente estipulada; (ii) a previsão de
dispositivos condicionando a concessão adicional de linhas de crédito à indicação de
membros para os órgãos de administração da sociedade financiada; ou (iii) a imposição
à sociedade financiada de obrigações de não fazer de diversas ordens (covenants), tais
como a de não promover operações societárias que alterem substancialmente a estrutura
da sociedade financiada comparativamente à data de celebração dos contratos31.

Contratos regulando mecanismos como os acima enumerados, aos quais se


referem Baird e Rasmussen como revolving credit facilities32, antecipariam e, de certa

29
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 778. “A law of corporate reorganizations is needed only when the investors cannot
make sensible decisions when the firm encounters trouble. When control rights are allocated coherently,
no legal intervention is needed to ensure that decisions about the firm`s future are made sensibly. Most
large firms now allocate control rights among investors in a way that ensures coherent decisionmaking
throughout the firm`s life cycle.”
30
Para uma explicação sobre a natureza jurídica dos chamados fundos de private equity ver: LOBO,
Jorge. Fundos de private equity. In: Direito Empresarial: aspectos atuais de direito empresarial
brasileiro e comparado. JUNIOR, Ecio Perin; KALANSKY, Daniel; PEYSER, Luis (Coord.). São Paulo:
Editora Método, 2005, p. 103-102.
31
Complementando o raciocínio: COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O Poder
de Controle na Sociedade Anônima,. p. 91. “Outras vezes, a existência de poder dos credores faz com que
esses pressionem para a configuração de estruturas de poder de controle gerencial ou administrativo, com
empresas ou administradores especializados na gerência de empresas em crise assumindo diretoria e o
controle interno da companhia por meio da atribuição a estes de ações preferenciais da classe especial –cf.
supra Nota de Texto 11. [Adicionalmente, são] freqüentes os contratos de empréstimo a uma sociedade,
com a atribuição ao mutuante, em garantia do seu crédito, da caução das ações do chamado bloco de
controle. A lei brasileira, ao contrário da italiana (Código Civil italiano de 1942, art. 2.352), não suprime
o direito de voto do acionista caucionante, mas admite que se possa estipular no contrato, que o acionista
poderá, sem consentimento do credor caucionado ou pignoratício, votar em certas deliberações (Lei n.
6.404, art. 113).”
32
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 785. “These revolving credit facilities and the practical control they give lenders over a
firm are some of the most striking changes in Chapter 11 practice over the last twenty years.”

16
forma, debelariam os efeitos oriundos de uma eventual crise econômico-financeira do
devedor. E, diante da utilização costumeira de tais instrumentos, um ramo do Direito
voltado à liquidação ou reorganização da sociedade financiada tornar-se-ia
desnecessário. Sob a premissa de que as partes cujos interesses estão em jogo (os
credores) decidem, de antemão, o que ocorrerá em um cenário de crise, concluem os
juristas norte-americanos que nada haveria a ser ganho com a instauração de um
(custoso) procedimento judicial destinado, em tese, a decidir sobre a mesma questão.

Essa solução de mercado para a crise do devedor ampara-se, sobretudo, na


idéia de que as partes credoras de tais contratos financeiros e de investimento seriam
mais aptas a conduzir o destino da empresa. Baird e Rasmussen são inclusive enfáticos
ao revelarem o seu conforto diante de casos em que as principais decisões sobre o futuro
do devedor restam nas mãos “do credor privilegiado que não seria integralmente pago
na falência” 33.

É possível notar nas entrelinhas deste argumento os princípios basilares da


teoria norte-americana do “proprietário residual da empresa” (residual owner of the
firm), construída pelos tecnólogos de law and economics. O conceito de “proprietário
residual da empresa” está relacionado (i) diretamente ao risco oriundo da exploração da
atividade econômica e, (ii) indiretamente, ao direito de propriedade sobre o acervo
societário em um dado momento histórico, tendo em vista a condição econômico-
financeira da sociedade no referido momento.

Durante o estado normal de saúde financeira, os sócios seriam os


“proprietários residuais da empresa”, titulares de um direito potencial de propriedade
sobre o que remanescer do patrimônio social depois de liquidadas as pendências
obrigacionais da sociedade (impostos, dívidas etc.). Os sócios, portanto, são quem
suportam os riscos da especulação empresarial, possuindo, por isso, os incentivos
adequados para perseguir a lucratividade da empresa. Partindo desta lógica, a legislação
societária assegura a prerrogativa do exercício de controle aos sócios, e não a credores e
financiadores da atividade econômica.

De outro lado, para ilustrar a identificação do “proprietário residual da


empresa” no contexto da recuperação judicial é útil o exemplo hipotético de uma
33
“We are not troubled by such a shift in bankruptcy practice. As a comparative matter, the senior lender
who will not be paid in full will more likely exercise control in a sensible fashion than will managers
whose net worth depends on continuation or a bankruptcy judge whose training is usually not in business
operations.” BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy, p. 785.

17
sociedade com ativos avaliados em 100 milhões de reais e dívidas de 230 milhões de
reais. 34Destes 230 milhões de dívidas, 30 milhões são devidos a credores com garantia
real e 200 milhões a credores com privilégio especial. Como dito acima, os
“proprietários residuais” são aqueles sujeitos cujos interesses são idênticos aos da
empresa, pelo fato de suportarem os riscos decorrentes da exploração da atividade
econômica. No cenário proposto, os “proprietários residuais” seriam, seguindo essa
lógica, os credores com privilégio especial. Explicamos: é fácil notar que aos credores
com garantia real não interessaria atuar ativamente na reorganização da empresa, diante
da possibilidade de serem integralmente pagos mediante a alienação dos bens dados em
garantia pelos seus respectivos créditos. Não haveria se cogitar também de incentivo
dos sócios na recuperação, pois, ao contrário dos credores com garantia real, eles nada
teriam a ganhar no processo. Aos credores com privilégio especial seria reservada,
portanto, a propriedade residual da empresa, ou seja, o saldo da realização do ativo do
devedor após a satisfação integral dos créditos com garantia real. O reflexo de todas as
perdas e ganhos decorrentes das ações tomadas durante o período de recuperação,
correspondente ao risco da atividade econômica, recairia sobre eles. Nesse cenário, se o
sistema de governança adotado durante o procedimento judicial de recuperação desta
sociedade seguisse a lógica do conceito de “proprietário residual”, ele asseguraria aos
referidos credores com privilégio especial a prerrogativa de controlar as principais
decisões envolvendo o devedor. 35

Como se falou acima, baseados nesta formulação teórica, Baird e


Rasmussen sugerem que as partes credoras dos contratos financeiros e de investimento
praticados na atualidade, ostentando a qualidade de “proprietários residuais” da empresa
durante o estado de crise econômica, possuiriam os incentivos adequados para decidir
sobre o futuro dos respectivos devedores. E, como uma das preocupações do Direito
Concursal é restringir a má administração do devedor, por meio da imposição de
normas e parâmetros legais, a aplicação desse ramo do Direito seria desnecessária
diante da prática corrente dos referidos contratos.

34
Exemplo inspirado em ilustração esboçada por Lynn LoPucki em: The myth of the residual owner: an
empirical study. Washington University Law Quarterly. v. 82, 2004.
35
Nesse contexto, sustenta Baird, em artigo escrito a quatro mãos com Thomas H. Jackson, que: “The law
of corporate reorganizations should focus on identifying the residual owner, limiting agency problems in
representing the residual owner, and making sure that the residual owner has control over the negotiations
that the firm must make while it is restructuring”. In: BAIRD, Douglas G.; JACKSON, Thomas H.
Bargaining after the fall and the contours of the absolute priority rule. University of Chicago Law Review,
n. 55, 1988, p. 755.

18
Contudo, a impossibilidade de se organizar os credores do devedor de
acordo com a ordem de prioridade de créditos fora do processo falimentar é fator que
torna impraticável a identificação do “proprietário residual” de uma sociedade em crise.
Como preleciona Lynn LoPucki, especialista em Direito Concursal norte-americano:

“Os credores de uma típica sociedade em processo de


reorganização são divididos em cerca de quatro níveis distintos
de prioridade, subordinados aos credores com garantia real e
aos credores da massa. A existência de vários níveis de
prioridade entre os créditos concursais torna possível que
credores classificados em mais de um desses níveis
compartilhem, ao mesmo tempo, o status de proprietários
residuais da empresa.” 36
Numa posição mais radical, os professores norte-americanos Henry Hu e
Jay Lawrence Westbrook, em artigo recentemente publicado na Revista de Direito da
Universidade de Columbia, chegam a sustentar que o processo de tomada de decisões da
sociedade empresária não deve sequer levar em consideração os interesses de credores,
ainda que a sociedade esteja vivenciando situação de crise econômica. A justificativa
dos autores é amparada justamente na idéia de que, fora do âmbito falimentar, é
praticamente impossível organizar os diferentes níveis de prioridade entre os credores
sociais, podendo, por isso, existir vários credores que ostentem ao mesmo tempo a
eventual condição de “proprietários residuais”:

“De maneira geral, a definição do sistema de governança da


sociedade não depende de sua condição econômica, mas da
realização, ou não, de um ato legal: o pedido de falência (...).
Governar uma sociedade em benefício dos credores requer
mecanismos hábeis a lidar com os diversos níveis de interesse
entre eles e solucionar os potenciais conflitos daí decorrentes.
Mas o sistema de governança corporativa não dispõe de regras e
institutos necessários para tanto. De fato, os mecanismos de
governança propostos pela lei e por órgãos reguladores do
mercado de capitais permanecem em vigor até hoje para
encorajar os administradores a exercer a tarefa bem diferente de
atender os interesses de acionistas, bem mais unitários e
coesos.” 37

36
Tradução livre do original: “The typical reorganizing firm has about four investor priority levels that are
subordinate to secured and bankruptcy priority creditors. The existence of so many investor priority levels
makes it likely that investors at more than one level will share residual owner status.” LoPucki, Lynn: The
myth of the residual owner: an empirical study, 2004.
37
Tradução livre do orginal: WESTBROOK, Jay Lawrence. Abolition of the corporate duty to creditors.
Columbia Law Review, v. 107, 2007. “Broadly speaking, which governance system plays a host to a
corporation depends not on the corporation’s economic condition, but on whether a legal step – a
bankruptcy filing – has occurred. (…) Running a corporation for the benefit of creditors requires a
mechanism for addressing creditor interests and the resolution of conflicts among the interests of creditors
inter se. But the corporate governance system has no rules and no institutions adapted to this work.
Indeed, the corporate governance system’s multitudinous legal and market mechanisms remain in place to

19
De outro lado, tem-se que a maioria dos financiadores e investidores
negocia para adquirir algum grau de controle sobre a atividade do devedor antes que
seus créditos estejam em risco, e não após. Portanto, se os contratos financeiros e de
investimento mencionados por Baird e Rasmussen alcançarem seu objetivo, acionando
as chamadas revolving credit facilities, a parte financiadora adquirirá o controle antes de
se tornar um “proprietário residual” da empresa em crise, o que desconstrói, de certa
forma, a tese articulada pelos autores.

A impossibilidade de identificação dos credores como “proprietários


residuais” de uma sociedade em crise econômica justifica, por si só, a contínua utilidade
do Direito Concursal. Como já salientado, uma das premissas de aplicação desse ramo
do Direito consiste na idéia de que o poder de controle da empresa não recairá sobre
sujeitos que o exercitem de forma apropriada diante de uma crise econômica. Um
administrador cuja remuneração esteja diretamente relacionada ao sucesso da empresa
(em razão de um plano de opção de compra de ações, por exemplo) insistirá pela
continuação do negócio até as últimas conseqüências, ainda que a venda em separado
dos ativos do devedor seja mais lucrativa ou coerente com o interesse da coletividade.
De outro lado, ao credor com garantia real interessa, na maioria dos casos, a liquidação
do negócio, diante da perspectiva de recebimento do seu crédito mediante a alienação
judicial do bem gravado38. Decisões inadequadas podem ser tomadas por ambos.

Diante da impossibilidade de se garantir que o controle da empresa em crise


seja exercido pela parte mais apropriada para tanto, seja ou não ela o chamado
“proprietário residual” da teoria de law and economics, o Direito Concursal restringe o
exercício inadequado do poder de controle, evitando um descompasso entre incentivos
externos e aquilo que se encontra no melhor interesse da empresa em crise e da
coletividade de modo geral. E o faz por meio da imposição de parâmetros, deveres (de
prestação de contas, inclusive 39) e responsabilidades à administração do devedor

encourage managers to continue in the very different task of furthering the largely unitary interests of
shareholders.”
38
Rasmussen aborda bem esta questão em outro texto acadêmico: “The alternative to selling the business
is to put a new capital structure in place and continue with the business, perhaps with a new business
model. The decision whether or not to sell will depend in part on the dynamics of the expected
negotiations that would otherwise take place. To the extent that one group decides that it would fare better
under a sale rather than a reorganization, it will push for placing the enterprise on the block.” In:
RASMUSSEN, Robert K. The search for hercules: residual owners, directors, and corporate governance
in chapter 11. Washington University Law Quarterly, v. 82, 2004, p. 1460.
39
Lei n° 11.101/2005: “Art. 154. Concluída a realização de todo o ativo, e distribuído o produto entre os
credores, o administrador judicial apresentará suas contas aos juiz no prazo de 30 (trinta) dias. (...) § 5 o A

20
durante o período da recuperação ou liquidação judicial, prevendo sanções, inclusive de
natureza penal, para o seu descumprimento40.

A tese de Baird e Rasmussen não é, entretanto, de todo descartável. Não há


como negar a influência gerencial e econômica exercida por investidores e
financiadores da atividade empresarial por meio de contratos financeiros e de
investimento. Talvez a maior valia do argumento utilizado pelos juristas seja justamente
chamar a atenção para esse fato. A estrutura de capital, e não somente a governança das
sociedades financiadas, é substancialmente afetada em razão de disposições constantes
de tais instrumentos contratuais41, isso quando não chega a ser moldada em função das
mesmas. Os efeitos das chamadas revolving credit facilities são profundos, e podem
nortear a opção, que nem sempre fica a cargo da direção da empresa em crise, entre
liquidar o negócio ou reorganizá-lo, judicial ou extrajudicialmente.

Um ponto não abordado pelos autores, mas correlato ao tema examinado


neste tópico, refere-se às operações de reestruturação de dívida concluídas fora do
contexto falimentar ou recuperatório, as quais inibem, de igual modo, a esfera de
atuação do Direito Concursal. O volume de tais transações vêm aumentando
consideravelmente. Escritórios de advocacia têm se equipado com profissionais
especialistas nesta área, refletindo a demanda do mercado. Sob o ponto de vista prático,
é inegável que o fato reflete uma tendência, o que vai ao encontro do pensamento de
Baird e Rasmussen. E, sob o ponto de vista técnico, nada impede que operações desta
natureza sejam efetuadas à margem da chancela judicial, desde que observada, no
âmbito de negociação das dívidas do devedor, a ordem de prioridade de créditos
estabelecida na legislação concursal, sob pena de configuração de crime falimentar por
fraude contra credores (artigo 168 da nova Lei de Falências)42.

sentença que rejeitar as contas do administrador judicial fixará suas responsabilidades, poderá determinar
a indisponibilidade ou o seqüestro de bens e servirá como titulo executivo para indenização da massa.”
40
Vide arts. 168 a 178 da Lei n° 11.101/2005.
41
Nesse sentido elucida André Carvalhal: “Uma vertente na literatura sobre governança corporativa
concentra-se na questão da minimização do custo de capital, intimamente relacionada com a estrutura de
capital das empresas. Com a separação entre propriedade e controle, o financiamento interno (geração
própria de caixa) é menos arriscado e, conseqüentemente, menos oneroso do que o financiamento externo
(tanto por emissão de ações quanto de dívidas).” A influência da estrutura de governança corporativa no
valor, alavancagem e política de dividendos das empresas brasileiras de capital aberto. Revista de Direito
Mercantil, v. 133, 2004, p. 86.
42
Sob o titulo “Solução de mercado e recuperação da empresa”, Fábio Ulhoa Coelho, em seu Curso de
Direito Comercial, faz uma menção às operações de reestruturação de dívida. São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 217-220.

21
A bem da verdade, ainda que a ordem legal de prioridade não seja
respeitada nestes casos, a reestruturação das dívidas da empresa em crise poderá ser
articulada, bastando, para tanto, que o devedor não venha, de fato, a falir.

3. Mercado de fusões e aquisições

O terceiro argumento utilizado por Baird e Rasmussen para fundamentar a


opinião de que o Direito Concursal teria perdido a necessidade que outrora lhe
caracterizara complementa, de certa forma, o segundo argumento acima exposto. Os
autores defendem, na seqüência de The End of Bankruptcy, que a evolução do mercado
de fusões e aquisições teria tornado comum a realização de operações de compra e
venda de empresas em crise, judicial ou extrajudicialmente, substituindo a função
tradicional de “reorganização” dos procedimentos concursais43.

Para fundamentar o argumento, Baird e Rasmussen remetem, inicialmente,


aos casos que inspiraram a elaboração da legislação falimentar norte-americana. Com
efeito, a regulação do instituto falimentar pelo Direito norte-americano tem raízes nas
crises econômicas que acometeram as companhias ferroviárias daquele país no final do
século XIX. A despeito de gerarem lucros, algumas companhias ferroviárias não
suportavam seus elevados custos operacionais, ocasionando déficits de caixa que eram
remediados, não raramente, por meio da obtenção de financiamentos junto a instituições
financeiras. Para tanto, as companhias ofereciam alguns de seus ativos em garantia, os
quais consistiam basicamente de trilhos de aço quilométricos e dormentes de madeira.
Diante da evidente dificuldade em se operacionalizar a execução de tais garantias, os
bancos financiadores passaram, então, a emitir títulos lastreados nos ativos das
companhias ferroviárias, numa forma precária de securitização de créditos. Com o
auxílio de advogados, esse mecanismo evoluiu ao longo dos anos e os primeiros
elementos do instituto falimentar foram, aos poucos, surgindo: indisponibilidade dos
ativos das companhias devedoras44; renegociação de prazos; possibilidade de realização
de investimentos adicionais com condições mais benéficas de recebimento; criação de

43
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 786. “Going-concern sales have long been the method of choice for dealing with firms
that could not pay their debts. They were commonplace in the textile industry during the era of Ermen &
Engels. Give the developments in capital markets, such sales are increasingly possible. Thus, asset sales
can occur either when control rights are allocated to those with their money on the line, or when control
rights are not so well assigned. In either case, the buyer of the assets takes them and applies a new capital
structure.”
44
A que o Direito Falimentar norte-americano veio a se referir, mais tarde, como automatic stay.

22
fóruns de discussão entre as várias partes interessadas no futuro das companhias em
crise para negociar acerca de uma estrutura de capital mais eficiente. Juízes passaram a
intervir na esfera destes fóruns de discussão a fim de solucionar conflitos e garantir o
atendimento do interesse público no cumprimento dos planos de reestruturação
propostos. Estavam, assim, estabelecidas as bases ontológicas que inspiraram a
elaboração da legislação concursal norte-americana45.

Segundo Baird e Rasmussen, como seria impossível cogitar, naquela época,


da aquisição em bloco de uma empresa do porte de tais companhias ferroviárias, a
elaboração de uma legislação falimentar dispondo sobre procedimentos específicos de
liquidação e recuperação de companhias em crise vinha a calhar, justificando-se, assim,
sua utilidade. Entretanto, na opinião dos juristas norte-americanos, este atributo do
Direito Concursal teria deixado de existir nos dias atuais, em razão da maior capacidade
aquisitiva de grupos econômicos que figuram atualmente no mercado, o que lhes
permite adquirir, dentro ou fora do âmbito judicial, empresas devedoras para, então,
decidir sozinhos sobre o futuro das mesmas.

O argumento dos autores norte-americanos é interessante e digno de


consideração. O mercado de fusões e aquisições atravessa, de fato, momento de grande
agitação. A título de ilustração, especialistas estimam que serão realizadas no Brasil
mais de 600 operações de fusão e aquisição em 2007, número 16% maior que as 516
transações de 2006. Só no primeiro trimestre de 2007, foram realizadas 108 transações
deste tipo, índice 33% superior às 81 operações efetivadas no mesmo período de 200646.
Tais marcas seriam inimagináveis num passado recente.

A questão está em saber se essas operações estariam, de fato, se sobrepondo


às funções preconizadas pelos procedimentos judiciais destinados a assegurar a
preservação do devedor. Ambientando a discussão na realidade brasileira, vejamos, por
amostragem, o conhecido exemplo da companhia aérea Varig.

45
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 761.
46
Dados extraídos da reportagem “Estrangeiros impulsionam aquisições no Brasil”, veiculada no jornal
Valor Econômico do dia 14 de maio de 2007. O grande volume de transações deste tipo no Brasil levou o
CADE a retomar a prática de assinar os chamados Acordos de Preservação da Reversibilidade da
Operação (Apros), destinados a evitar que uma fusão ou aquisição se consolide de tal forma a tornar inútil
uma eventual decisão do CADE contrária ao negócio. Sobre o tema, ver a reportagem “CADE faz
acordos com empresas para congelar grandes negócios”, veiculada no Diário do Comercio Indústria e
Serviços também do dia 14 de maio de 2007.

23
O processo de recuperação da Varig atraiu grande atenção da mídia por
encerrar interesses públicos de notória importância. A essencialidade dos serviços
prestados pela companhia fez do caso Varig uma oportunidade ideal para que fosse
demonstrada a eficiência da nova legislação concursal.

Da aprovação do plano de recuperação da Varig em 28 de dezembro de


200547 decorreu sua subdivisão em duas empresas distintas: à chamada “nova Varig”
coube um portfólio composto de 17 aeronaves e 18 destinos domésticos e
internacionais; a “velha Varig”, de outro lado, herdou dívidas estimadas em 7,9 bilhões
de reais – com prazo de pagamento previsto para 20 anos – e a prerrogativa de operar
apenas 2 rotas domésticas48. A “nova Varig” foi arrematada em leilão realizado em
julho de 2006, por cerca de 25 milhões de dólares, sendo que a “velha Varig”
permaneceu em recuperação judicial49.

O caso Varig, tratado pela mídia como hipótese paradigmática de eficiência


da nova Lei de Falências, provoca, num primeiro momento, uma sensação de certa
inoperância do procedimento de recuperação judicial em relação a mecanismos de
compra e venda, haja vista os destinos diametralmente opostos conferidos às porções
“nova” e “velha” da companhia. Ao passo que a primeira foi alienada por quantia
considerável, a última restou mergulhada em dívidas, sendo a única a permanecer
oficialmente em processo de recuperação.

Seria razoável, nesse sentido, sustentar que a Varig se recuperou ou, ainda,
que a companhia foi “preservada”, na acepção legal do termo que lhe empresta a nova
Lei de Falências? A questão nos parece ser, antes, de interpretação acerca da natureza
dos interesses protegidos pela legislação falimentar brasileira, matéria que se relaciona
ao próprio conceito de “empresa”.

47
Conforme declarado na própria decisão homologatória do plano de recuperação da Varig, “Assim,
considerando o interesse público revelado pelo princípio da preservação da empresa, inserto no artigo 47
da Lei 11.101/2005 (...), não faz sentido impedir a possibilidade das requerentes de se reorganizarem por
falta de certidão negativa de débitos fiscais. Isso posto, nos termos do artigo 58 da Lei 11.101/2005,
consideramos cumpridas as exigências legais e concedemos a recuperação judicial das devedoras, cujo
plano foi aprovado na assembléia de credores realizada no dia 19.12.2005.”In: BEZERRA FILHO,
Manoel Justino. Jurisprudência da Nova Lei de Recuperação de Empresas e Falências: decisões, ofícios
judiciais, resoluções, sentenças, acórdãos, dentre outros documentos. São Paulo: RT, 2006, p. 162.
48
Ver: “Gol compra controle da Varig por U$ 320 milhões”, divulgada no periódico virtual FolhaOnline.
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u115634.shtml>. Consultado em
15/5/2007.
49
Dados extraídos da entrevista “O novo rei dos ares” com Constantino de Oliveira Jr., Diretor-Presidente
da Gol, divulgada na Revista Veja do dia 4 de abril de 2007.

24
O conceito de empresa é o alicerce do Direito Empresarial, norma
fundamental desta disciplina, responsável por delimitar o âmbito de incidência de suas
regras específicas. Inicialmente, coube aos economistas a difícil e valiosa tarefa de
defini-lo. Como visto acima, Coase esboçou seu conceito econômico prescrevendo que
a empresa constitui uma rede de contratos inter-relacionados, a fim de reduzir os custos
transacionais de se operar no mercado 50.

Transpondo o conceito econômico de empresa para o âmbito jurídico, há


quem sustente que a empresa é um sujeito de direitos, ao lado das pessoas físicas, das
pessoas jurídicas e dos entes despersonificados (como o espólio, a massa falida, o
condomínio e os cartórios)51:

“Sem dúvida, esta contribuição vinda do Direito Societário, se


por nós corretamente entendida, oferece valioso elemento para a
revisita ao conceito de empresa, pelo menos para se tomá-la
como ‘organização’, e não como ‘atividade’. Aliás, posição
semelhante já fôra esposada anteriormente por vários teóricos.
Para corroborar com esta afirmativa, talvez se justificasse o
enquadramento da empresa como um destes ‘entes não
personalizados’, que são sujeitos de direito, tais como o
patrimônio, o condomínio e outros.” 52
Este, contudo, não parece ser o melhor entendimento. Sujeito de direitos, no
âmbito empresarial, é o empresário, a pessoa física ou jurídica que exerce determinada
atividade, chamada de empresa, cujos requisitos são definidos pelo artigo 966 do
Código Civil de 2002 53. Segundo esta corrente, empresa é objeto e não sujeito de
direitos54. Quem adquire os direitos e obrigações decorrentes do exercício da atividade
empresarial é o empresário. Empresa é apenas a atividade econômica por ele
desempenhada, como a compra para revenda, a produção industrial, etc. No mesmo
sentido, as lições do Direito italiano:

50
Ver também, nesse sentido: SZTAJN, Raquel. O Conceito de Empresário no Código Civil Brasileiro.
Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor. São Paulo: Editora Magister,
ano II, n.° 7, p. 92-109, fev./mar. 2006.
51
Os cartórios são entes despersonificados que possuem capacidade processual e podem figurar no pólo
passivo de ação de responsabilidade civil: STJ, REsp. nº 774.911/MG.
52
SOUZA, Washington Albino Peluso de. Conceito de Empresa: um desafio que persiste? Jornal da
Faculdade de Direito da UFMG (O Sino do Samuel), Belo Horizonte, Ano VIII, n.º 73, p. 06-07, jan.
2004. p. 06.
53
RIPERT, Georges. Aspectos Jurídicos do Capitalismo Moderno. Campinas: Red, 2002. p. 291-292.
“As palavras empresa e empresário pertencem à língua corrente. O uso lhes deu sentido diferente. A
primeira é usada para designar toda atividade orientada para certo fim; a segunda para qualificar o homem
que, profissionalmente, executa certos trabalhos.”
54
Para uma análise detalhada do conceito de empresa, consulte-se: PARENTONI, Leonardo Netto. O
Conceito de Empresa no Código Civil de 2002. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, v. 388, p. 133-
151, nov./dez. 2006.

25
“A predisposição dos bens e serviços para o mercado
geralmente não é, na realidade prática, o fruto de uma atividade
acidental e improvisada, mas sim objeto de uma atividade
especializada e profissional, a qual se explica por meio de
organismos econômicos propositalmente predispostos. Estes
organismos econômicos que se concretizam na organização dos
fatores de produção e que se propõem a satisfazer as
necessidades alheias e mais precisamente as exigências do
mercado em geral, assumem na terminologia econômica o nome
de empresa. Objetivamente considerada, a empresa se apresenta
como uma combinação, melhor dizendo, como uma
organização de elementos pessoais e reais operada em função
de um resultado econômico e exercida tendo em vista a
finalidade especulativa de uma pessoa, a qual, de fato, assume a
denominação de empresário.”55
Também para a nova Lei de Falências, a empresa é vista como objeto e não
sujeito de direitos. Ao se referir à preservação da empresa, o que o legislador pretende é
assegurar que determinada atividade produtiva continue em operação, em virtude de sua
relevância social e econômica. Não se pretende assegurar que o empresário, organizador
desta atividade, permaneça no controle. Mesmo porque pode ter sido ele o causador da
insolvência, justamente por má-administração.

Sob essa perspectiva, a resposta à questão formulada linhas atrás é, sem


dúvida, afirmativa: ao promover a divisão da Varig em duas companhias com
patrimônios distintos e a conseqüente alienação da fatia saudável como forma de
arregimentar recursos para o pagamento dos débitos concursais, o que se buscou salvar
foi a atividade econômica explorada, no caso, a prestação de transporte público aéreo. A
empresa, no sentido legal, restou preservada.

O exemplo descrito acima é útil porque permite visualizar que a definição


de empresa adotada por Baird e Rasmussen relaciona-se, equivocadamente, à de pessoa
jurídica, titular da atividade econômica empresarial. Daí a afirmação dos autores no
sentido de que operações de compra e venda de empresas em crise têm substituído a

55
ANGELICI, Carlo; FERRI, Giovanni. Manuale di Diritto Commerciale. 12. ed. Torino: Utet Giuridica,
2006. p. 27. “La predisposizione dei beni e dei servizi per il mercato generale non è, nella realtà pratica, il
frutto di una attività accidentale e improvvisata, ma è l’oggetto di un’attività specializzata e professionale,
la quale si esplica attraverso organismi economici appositamente predisposti.
Questi organismi economici, che si concretano nella organizzazione dei fattori della produzione e che si
propongono il soddisfacimento dei bisogni altrui e più precisamente delle esigenze del mercato generale,
assumono nella terminologia economica il nome di imprese.
Obiettivamente considerata, l’impresa si presenta come una combinazione, meglio come una
organizzazione, di elementi personali e reali operata in funzione di un risultato economico e attuata in
vista di un intento speculativo da una persona, la quale appunto assume il nome di imprenditore.”

26
função precípua do Direito Concursal de preservar o devedor, causando o fim da era
dessa ramo do Direito 56.

Mas, se a tese dos juristas norte-americanos é equivocada ao relacionar o


conceito de empresa ao de pessoa jurídica, ela, por outro lado, desperta a atenção para
um fato de inegável procedência: em nome da preservação da atividade empresarial, os
processos de recuperação têm sido motivados, basicamente, pela perspectiva de
alienação de unidades produtivas do devedor, ainda que isso acarrete a redução
drástica de seu patrimônio, comparativamente ao patrimônio da pessoa jurídica que
ingressa no procedimento judicial. Nesse sentido, o caso Varig é emblemático.

A alienação de unidades do devedor é, inclusive, incentivada pela nova Lei


de Falências. Com efeito, um dos pontos cruciais da nova legislação, responsável por
intensos debates durante a fase de tramitação de seu projeto, consiste na inexistência de
sucessão na hipótese de alienação dos ativos do devedor, inclusive filiais ou unidades
produtivas (vide artigos 60 e 141, II da nova Lei de Falências 57), como meio de motivar
o interesse de terceiros na sua aquisição58.

56
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. p. 754 e 753, respectivamente. “Corporate reorganizations have all but disappeared. Giant
corporations make headlines when they file for Chapter 11, but they are no longer using it to rescue a firm
from imminent failure. Many use Chapter 11 merely to sell their assets and divide up the proceeds. (...)
Even when a large firm uses Chapter 11 as something other than a convenient auction block, its principal
lenders are usually already in control and Chapter 11 merely puts in place a pre-existing deal. Rarely is
Chapter 11 a forum where the various stakeholders in a publicly held firm negotiate among each other
over the firm`s destiny.” (...) “To the extent we understand the law of corporate reorganizations as
providing a collective forum in which creditors and their common debtor fashion a future for a firm that
would otherwise be torn apart by financial distress, we may safely conclude that its era has come to an
end.”
57
Lei n° 11.101/2005: “Art. 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial
de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o
disposto no art. 142 desta Lei. Parágrafo único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não
haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, observado
o disposto no § 1o do art. 141 desta Lei.” Lei n° 11.101/2005: “Art. 141. Na alienação conjunta ou
separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de
que trata este artigo: II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do
arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do
trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho.”
58
Sobre o tema: COELHO, Fabio Ulhoa. A questão da sucessão na nova lei de falências. In: Direito
Empresarial: aspectos atuais de direito empresarial brasileiro e comparado. JUNIOR, Ecio Perin;
KALANSKY, Daniel; PEYSER, Luis (Coord.). São Paulo: Editora Método, 2005, p. 52. “Esses
dispositivos regulam uma das questões mais instigantes do direito falimentar. De um lado, quando a lei
expressamente nega a sucessão, amplia as chances de interessados adquirirem o negócio do falido ou da
sociedade falida e, conseqüentemente, as de mais credores virem a ter seus créditos satisfeitos com os
recursos advindos da aquisição. Se o adquirente da empresa anteriormente explorada pela sociedade
falida tiver que honrar as dívidas desta, é evidente que menos empresários terão interesse no negócio.
Aliás, é provável que a própria alienação da empresa se inviabilize: se tiver que pagar tudo a que se
obrigara o falido, o adquirente tende a falir também. Mas, de outro lado, a lei não pode ignorar as fraudes
que a negativa expressa de sucessão pode abrigar. O controlador da sociedade falida pode, por interpostas

27
Vista a questão sob essa ótica, revela-se inegável a influência dos
mecanismos de compra e venda de empresas para a solução do estado de crise
econômica do devedor, ainda que fora da esfera judicial. Nesse sentido, e retornando ao
caso Varig, é também de conhecimento notório a posterior aquisição da “porção nova”
da companhia pela empresa brasileira Gol Linhas Aéreas Inteligentes S.A. por cerca de
320 milhões de dólares59, valor substancialmente superior ao preço de aquisição pago
no leilão judicial realizado em julho de 2006.

Como salienta Rasmussen em outro artigo de sua autoria:

“A venda do negócio é uma opção recorrente nos dias atuais.


Testemunhamos a todo momento empresas recorrendo [à
recuperação judicial] a fim de concluir uma venda com a qual já
havia consentido. Em outros casos, a opção de vender o negócio
é formalizada durante o próprio processo de recuperação. A
venda do negócio resolve os problemas relacionados à
governança do devedor, ao menos até quando possa interessar à
falência. O comprador coloca em prática sua própria estrutura
de governança, e o procedimento concursal continua com o
simples objetivo de dividir os ativos residuais do devedor.”60

4. Recuperação da Pequena Empresa: um novo instituto com velhos defeitos

Baird e Rasmussen sustentam, por fim, que a recuperação de empresas é


particularmente ineficaz quando utilizada em relação a pequenas empresas61, pelo fato

pessoas, adquirir a mesma empresa que anteriormente explorava, liberando-se da obrigação de honrar seu
passivo.”
59
Confira-se trecho da entrevista concedida à revista VEJA por Constantino de Oliveira Jr., Diretor-
Presidente da Gol, na edição de 4 de abril de 2007: “Veja: A Varig foi vendida, há oito meses, por 25
milhões de dólares. De acordo com as informações divulgadas, o investimento do fundo Matlin Patterson
foi de 75 milhões de dólares. Por que o senhor pagou um preço 220% acima desse valor? Constantino
Junior: O antigo controlador aportou muito mais recursos do que esses 100 milhões de dólares, até para
permitir que a empresa se mantivesse em operação. Mas, independentemente disso, a questão é quanto
esse negócio pode agregar valor à Gol. E, nesse sentido, estou bastante confiante em que a operação
adiciona mais valor à Gol do que o que nós estamos pagando por ela. Inclusive porque utilizamos como
recursos capital próprio e ações da Gol.”
60
Tradução livre do original: “The sale of the business as a going concern is an ever-present option in
today’s environment. We witness companies filing [Chapter 11] in order to complete a sale to which the
company has already agreed. In other cases, the option of selling the business is selected during the
proceeding. Sales terminate governance issues, at least as far as bankruptcy is concerned. The buyer puts
in place its desired governance structure, and the bankruptcy proceeding continues with the task of
divvying up the proceeds.” RASMUSSEN, Robert K. The search for hercules: residual owners, directors,
and corporate governance in chapter 11. Washington University Law Quarterly, v. 82, 2004, p. 1459.
61
Na realidade nacional, a expressão pequeno empresário pode ser utilizada como gênero que engloba as
seguintes espécies: 1) Microempresas; 2) Empresas de Pequeno Porte; e 3) Pequeno Empresário
Individual, conforme artigos 3° e 68 da Lei Complementar n° 123/2006.
ZANINI, Carlos Klein. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro de, PITOMBO, Antônio Sérgio A. de
Moraes (Coordenadores). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo:
Saraiva, 2005. p. 314. “Em interessante estudo recentemente publicado, teve o IBGE a oportunidade de
confirmar o crescimento proporcional constante na quantidade de microempresas e empresas de pequeno

28
de que os custos inerentes ao procedimento superariam eventuais ganhos decorrentes de
sua utilização62. É forçoso admitir a pertinência da tese dos juristas norte-americanos
neste ponto, sendo ela aplicável à realidade brasileira.

No Brasil, a Constituição Federal dispensa tratamento favorecido e


simplificado às pequenas empresas63, inclusive no que tange à redução de suas
obrigações64. Inclui-se nessa política pública65 a necessidade de que também a
recuperação da pequena empresa seja regulada por normas especiais, melhor adaptadas
às particularidades de sua organização. A adoção desse tratamento diferenciado é
obrigatória, não podendo ser afastada, sob pena de inconstitucionalidade66. A antiga Lei
de Falências (Decreto-lei n° 7.6661/1945), editada antes da Constituição Federal de
1988, não se preocupou em regular detalhadamente a situação especial das pequenas
empresas. Contudo, já continha dispositivo tratando do tema 67. Na época, portanto, a
recuperação do pequeno empresário se fazia da mesma forma que a dos demais, por

porte em atividade no Brasil, as quais teriam alcançado o impressionante percentual de 97,6% do total de
empresas brasileiras em atividade. Juntas, empregavam contingente de mais de sete milhões de pessoas,
correspondente a cerca de 10% da população brasileira ocupada, sendo responsáveis pela geração de mais
de 20% da receita bruta advinda dos setores de comércio e serviços. Tais números falam por si, sendo
mais do que suficientes para evidenciar sua enorme importância no cenário econômico pátrio.”
62
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy. Stanford Law Review, n. 55, p.
751-788, 2002. “Small firms constitute the vast bulk of Chapter 11 filings in sheer numbers, but the total
amount of assets at risk for most firms that enter Chapter 11 are modest relative to the large firms in
Chapter 11.19 In the typical small Chapter 11 filing, the bankruptcy judge is asked to decide whether the
plumber, travel agent, or jeweler should be given another chance to run her small business. We suggest
that the debate focus squarely upon whether its benefits (which inure largely to owner-managers who
derive psychic income from running their own business) justify its costs (which fall upon tax collectors,
unpaid workers, and others who are poorly positioned to bear risk).”
63
Constituição Federal: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios:
(...)
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que
tenham sua sede e administração no País.”
64
Constituição Federal: “Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às
microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado,
visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias
e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”
65
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas: A responsabilidade do administrador e o
ministério público. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 80. “As políticas públicas, objeto do presente
trabalho, são aquelas voltadas para concretização da ordem social, que visam à realização dos objetivos
da República, a partir da existência de leis decorrentes dos ditames constitucionais.”
66
Op. cit. p. 95-96. “(...) o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e
conveniência da implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, pois
tal restou deliberado pelo Constituinte e pelo legislador que elaborou normas de integração.
Os meios pelos quais deve atuar também já se encontram determinados, bem como, em várias áreas, suas
fontes de custeio (...).
A discricionariedade na implantação das políticas públicas constitucionais da ordem social só poderá ser
exercida nos espaços, eventualmente, não preenchidos pela Constituição ou pela lei (...)”
67
Nesse sentido, o artigo 144 do Decreto-lei n° 7.6661/1945, que dispensava alguns requisitos do pedido
de concordata quando o passivo do devedor fosse inferior a 100 salários mínimos.

29
meio da concordata68. Esta consistia, basicamente, num direito subjetivo do devedor de
impor aos credores dilação de prazo para pagamento de suas obrigações, de forma a
permitir-lhe a superação de crise econômica momentânea, desde que preenchidos
determinados requisitos previstos em lei.

A concordata foi objeto de profundas críticas, aqui sintetizadas da seguinte


forma: (i) por se tratar de direito subjetivo do devedor, não permitia a participação dos
credores na discussão dos mecanismos a serem utilizados para a superação da crise
econômica; (ii) seu nomen iuris é equivocado, pois de acordo de vontades não se trata; e
(iii) os benefícios decorrentes da concordata eram prefixados em lei, de forma rígida,
inclusive quanto ao tempo de suspensão dos pagamentos, não havendo a necessária
margem de maleabilidade para adaptação ao caso concreto.

Por tais razões, o instituto fora taxado de “ditatorial” e “fascista” por


Waldemar Ferreira, um dos maiores comercialistas da época:

“A nova lei mostrou-se inexorável contra os credores,


restringindo-lhes o exercício de seus direitos creditórios. Não
mais lhes é dado intervir no processo liquidatório, elegendo o
liquidatário. Nem, tampouco, intervir na concordata, preventiva
ou suspensiva da falência, senão em têrmos que lhes
impossibilitam verdadeiramente defender, eficientemente, seus
créditos. Instituiu-se, com evidente espírito fascista, o que
impròpriamente se tem chamado de concordata de autoridade.
Ainda que os credores, unânimemente, se lhe oponham, ao Juiz
é dado outorgá-la. Tudo pode ser isso, menos concordata.” 69
Visando a implementar a política constitucional de tratamento favorecido às
pequenas empresas, a nova Lei de Falências contem seção 70 destinada especificamente à
recuperação judicial das microempresas e empresas de pequeno porte71. Ocorre que o
novo instituto, a exemplo da concordata, padece de vários defeitos. A começar pelo
âmbito de abrangência, já que a nova sistemática alcança apenas alguns créditos
quirografários72, enquanto a concordata poderia ser aplicada a todos eles,
indistintamente73.

68
Decreto-lei n° 7.6661/1945: “Art. 139. A concordata é preventiva ou suspensiva, conforme fôr pedida
em juízo antes ou depois da declaração da falência.”
69
FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1965. v. 14. p. 49.
70
Capítulo III, Seção V, artigos 70 a 72.
71
Tratamento que deve ser estendido também ao pequeno empresário individual, por força da
interpretação conjunta do artigo 70 da Lei n° 11.101/2005 e do artigo 68 da Lei Complementar n°
123/2006.
72
Lei n° 11.101/2005: “Art. 71. O plano especial de recuperação judicial será apresentado no prazo
previsto no art. 53 desta Lei e limitar-se á às seguintes condições:

30
Em segundo lugar, o prazo de duração do novo regime é fixado de forma
quase tão rígida quanto na antiga Lei de Falências. Enquanto a concordata poderia
variar de 06 a 24 meses74, o regime especial de recuperação previsto na nova lei terá a
duração máxima de 36 meses75, ainda que o caso concreto, por suas peculiaridades,
exija lapso mais dilatado.

Além disso, o novo regime quebra o caráter consensual da recuperação de


empresas, traço marcante da nova Lei de Falências76 - consistente na possibilidade de
que as soluções para a empresa em crise decorram de prévia negociação entre devedor e
credores - na medida em que confere ao devedor direito subjetivo à recuperação, ainda
que contra a vontade dos credores77. Ou seja, o regime especial de recuperação das
pequenas empresas reedita o caráter “ditatorial” e “fascista” já criticado, décadas antes,
por Waldemar Ferreira. Apenas faculta aos credores insatisfeitos requerer a conversão
da recuperação judicial em falência, se titulares de mais da metade dos créditos
atingidos78, solução que está longe de satisfazer a política constitucional de preservação
da pequena empresa79.

Além de todos esses inconvenientes, o regime especial da nova lei incorre


também no erro já apontado por Baird e Rasmussen, na medida em que não reduz o
custo do procedimento, tendo em vista a menor capacidade econômica do devedor.
Apenas para citar um exemplo, a lei não isenta expressamente o pequeno empresário do

I – abrangerá exclusivamente os créditos quirografários, excetuados os decorrentes de repasse de recursos


oficiais e os previstos nos §§ 3o e 4o do art. 49 desta Lei;”
73
Decreto-lei n° 7.6661/1945: “Art. 147. A concordata concedida obriga a todos os credores
quirografários, comerciais ou civís, admitidos ou não ao passivo, residentes no país ou fora dêle, ausentes
ou embargantes.”
74
Decreto-lei n° 7.6661/1945 artigo 156, II.
75
Lei n° 11.101/2005: “Art. 71. (...)
II – preverá parcelamento em até 36 (trinta e seis) parcelas mensais, iguais e sucessivas, corrigidas
monetariamente e acrescidas de juros de 12% a.a. (doze por cento ao ano);”
76
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 2005, v.3, p. 393. “(...) em
atenção aos interesses dos credores (sem cuja colaboração a reorganização se frustra), a lei lhes reserva,
quando reunidos em assembléia, as mais importantes deliberações relacionadas ao reerguimento da
atividade econômica em crise.”
77 77
Lei n° 11.101/2005: “Art. 72. Caso o devedor de que trata o art. 70 desta Lei opte pelo pedido de
recuperação judicial com base no plano especial disciplinado nesta Seção, não será convocada
assembléia-geral de credores para deliberar sobre o plano, e o juiz concederá a recuperação judicial se
atendidas as demais exigências desta Lei.”
78
Lei n° 11.101/2005: “Art. 72. (...)
Parágrafo único. O juiz também julgará improcedente o pedido de recuperação judicial e decretará a
falência do devedor se houver objeções, nos termos do art. 55 desta Lei, de credores titulares de mais da
metade dos créditos descritos no inciso I do caput do art. 71 desta Lei.”
79
No mesmo sentido: BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso Avançado de
Direito Comercial. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 480.

31
gasto com publicação de editais80. Assim, a crítica proferida em The End of Bankruptcy
é perfeitamente aplicável ao Brasil, podendo ser acrescida, ainda, de vários outros
argumentos, expostos acima.

Por essas razões, há quem sustente, com muita propriedade, que a mudança
do sistema concursal brasileiro dependia muito mais de uma alteração de mentalidade
dos juristas do que da edição de nova lei. Isto porque o Decreto-lei n° 7.661/1945,
antiga Lei de Falências, já continha, em alguns de seus dispositivos, normas relativas à
recuperação da empresa, as quais, infelizmente, encontraram pouca ou nenhuma
utilização prática. Melhor seria conferir-lhes interpretação extensiva do que
simplesmente editar uma nova lei que, se interpretada sob a mesma ótica, poderá reviver
os mesmos defeitos. Nesse sentido, leciona Osmar Brina Corrêa Lima:

“Scire leges non hoc est verba earum tenere sed vim ac
potestatem (saber as leis não consiste apenas em conhecer as
suas palavras, mas, sobretudo, a sua força, o seu poder e o seu
sentido). Será que, em mais de meio século de vigência da Lei
de Falências de 1945, realmente conseguimos deslindar o seu
espírito além da sua letra?
Será que a Lei de Falências de 1945, realmente, não revela
nenhuma preocupação com a preservação e a recuperação da
empresa? Será que ela, realmente, se preocupa exclusivamente
com os credores-fornecedores? Será que ela, realmente, não se
preocupa com a empresa como um todo? Será que ela,
realmente, não se preocupa com os empregados, com o Fisco,
com a comunidade e com o interesse público? Será que os
institutos da concordata preventiva e da concordata suspensiva
têm sido utilizados, na prática, com sabedoria, eficiência e
eficácia?
(...)
Capistrano de Abreu já escrevera, há muito tempo, que, no
Brasil, só precisamos de mais uma lei, com dois artigos apenas:

80 80
Lei n° 11.101/2005: “Art. 52. (...)
§ 1o O juiz ordenará a expedição de edital, para publicação no órgão oficial, que conterá:
I – o resumo do pedido do devedor e da decisão que defere o processamento da recuperação judicial;
II – a relação nominal de credores, em que se discrimine o valor atualizado e a classificação de cada
crédito;
III – a advertência acerca dos prazos para habilitação dos créditos, na forma do art. 7 o, § 1o, desta Lei, e
para que os credores apresentem objeção ao plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor nos
termos do art. 55 desta Lei.”
Poder-se-ia argumentar que tal isenção está implícita no artigo 71, algo com o qual não se concorda, uma
vez que o citado dispositivo refere-se às condições do plano de recuperação, não tratando de seu
processamento.

32
‘Art. 1º. A lei será cumprida. Art. 2º. Revogam-se as
disposições em contrário’”. 81

Parte 2 – Demonstração da relevância contemporânea do Direito Concursal

A despeito da pertinência de alguns dos argumentos de Baird e Rasmussen


em sentido contrário, a utilidade e necessidade dos institutos da falência e da
recuperação judicial de empresas em crise, os quais compõem o objeto de estudo do
Direito Concursal, continuam perceptíveis. À demonstração desta assertiva se voltam os
tópicos seguintes do presente estudo.

1. A necessidade do instituto falimentar

Em toda competição há vencedores e vencidos. Na economia


contemporânea, marcada por forte competitividade, nem todos empresários conseguem
alcançar um nível de excelência que lhes possibilite a permanência no mercado. Para
alguns, as obrigações (dívidas) vão se acumulando até que superem os ativos (recursos)
disponíveis para o pagamento, acarretando a insolvência 82:

“(...) Insolvência é, portanto, o inevitável produto de qualquer


sistema econômico de mercado pois nem todos os tomadores de
empréstimo pagarão as suas dívidas; inegavelmente, a própria
natureza de uma economia livre de mercado pressupõe que nem
todas as partes podem ter êxito.” 83

81
CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Precisamos, realmente, de uma nova Lei de Falências? Palestra
proferida na Faculdade de Direito da UFMG, em 2003. Disponível em <http://www.obcl.com.br>.
Consultado em 14/04/2007. p. 2-3.
82
De forma singela, pode-se conceituar insolvência como sendo a situação jurídica do devedor que não
possui patrimônio suficiente para satisfazer suas obrigações. No mesmo sentido: COLEHO, Fábio Ulhoa.
Curso de Direito Comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 3. p. 250.
No Direito Italiano: ANGELICI, Carlo; FERRI, Giovanni. Manuale di Diritto Commerciale. 12. ed.
Torino: Utet Giuridica, 2006. p. 532-533. “Presupposto della dichiariazione di fallimento è l’insolvenza
dell’imprenditore commerciale.
L’insolvenza si riferisce ad una situazione patrimoniale deficitaria, nella quale cioè il passivo supera
l’attivo. Tuttavia essa non si basa su un semplice calcolo matematico. Vi può essere una situazione
patrimoniale deficitaria – sia pure transitoriamente – senza che vi sia insolvenza, perché ad esempio
rimane integro il credito dell’imprenditore, come vi può essere insolvenza senza che vi sia un deficit vero
e proprio nel patrimonio, perché ad esempio si hanno investimenti o immobilizzazioni che non
consentono di far fronte con regolarità ai pagamenti.
Insolvenza è incapacità patrimoniale dell’imprenditore, e cioè impotenza a far fronte con regolarità, ossia
nei mondi normali e con i mezzi ordinari, alle proprie obligazioni, manifestatasi esteriormente attraverso
inadempimenti od altri fatti (…)”
83
Tradução livre. Texto original: DENNIS, Vernon, FOX, Alexander. The New Law of Insolvency:
Insolvency Act 1986 to Enterprise Act 2002. London: The Law Society, 2003. p. 3. “Insolvency is
therefore the inevitable by-product of any market economic system as not all borrowers will repay the
debts they incur; indeed, the very nature of a free market economy means that not all parties can
succeed.”

33
Assim, a insolvência decorre naturalmente da economia de mercado, tendo
como conseqüência a extinção das atividades do devedor insolvente e o pagamento de
seus débitos. Por se tratar de situação excepcional, em que as obrigações do devedor
superam seus ativos, a insolvência é solucionada por meio de um procedimento
específico, denominado de execução concursal ou coletiva84, cujas características serão
expostas a seguir.

A execução individual é assim denominada porque se orienta, de regra 85,


pelo interesse do credor ou grupo de credores que a promovem 86. Assim, o credor que
primeiro efetuar a penhora sobre os bens do devedor terá o direito de satisfazer seu
crédito com o produto da alienação desses bens. Por exemplo, se “A”, “B” e “C” são
credores de “D”, caso “A” seja o primeiro a efetuar a penhora sobre determinado bem,
terá ele preferência em relação a “B” e “C”. A execução individual é regra e se aplica
sempre que o inadimplemento for pontual, esporádico. O fato de “A” receber os valores
que lhe cabem antes de “B” e “C” não prejudica a satisfação do direito destes, em
futuras execuções, desde que o devedor possua patrimônio suficiente para tanto.

Por outro lado, em se tratando de devedor insolvente, o regime de execução


individual pode se mostrar bastante injusto, uma vez que a satisfação do direito
dependerá da agilidade do credor e não da relevância de seu crédito ou das garantias a

84
Ao se referir à falência e à insolvência civil, melhor utilizar a expressão execução concursal, para evitar
confusão com a execução dos direitos coletivos (difusos, coletivos stricto sensu e individuais
homogêneos), previstos no artigo 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.
48-49. “(...) o que caracteriza os interesses transindividuais, ou de grupo, não é apenas, porém, o fato de
serem compartilhados por diversos titulares individuais reunidos pela mesma relação jurídica ou fática,
mas, mais do que isso é a circunstância de que a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso
individual dos lesados à Justiça seja substituído por um processo coletivo, que não apenas deve ser apto a
evitar decisões contraditórias como ainda deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o
processo coletivo é exercido de uma só vez, em proveito de todo o grupo lesado.
Atendendo a essa realidade, e procurando melhor sistematizar a defesa dos interesses transindividuais que
já tinha sido iniciada pela LACP [Lei da Ação Civil Pública], o CDC [Código de Defesa do Consumidor]
passou a distingui-los segundo sua origem: a) se o que une interessados determináveis, com interesses
divisíveis, é a origem comum da lesão (p. ex., os consumidores que adquirem produtos fabricados em
série com o mesmo defeito), temos interesses individuais homogêneos; b) se o que une interessados
determináveis é a circunstância de compartilharem a mesma relação jurídica indivisível (como os
consumidores que se submetem à mesma cláusula ilegal em contrato de adesão), temos interesses
coletivos em sentido estrito; c) se o que une interessados indetermináveis é a mesma situação de fato, mas
o dano é individualmente indivisível (p. ex., os que assistem pela televisão à mesma propaganda
enganosa), temos interesses difusos.”
85
Código de Processo Civil: “Art. 612. Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o
concurso universal (art. 751, III), realiza-se a execução no interesse do credor, que adquire, pela penhora,
o direito de preferência sobre os bens penhorados.”
86
O que não significa que o devedor seja tratado como simples objeto. Sua dignidade é assegurada ao
longo de todo o procedimento, como ilustra, por exemplo, o artigo 620 do Código de Processo Civil.

34
ele conferidas87. No exemplo citado, “A” atingirá todo o patrimônio do devedor, não
restando nada para ser rateado entre “B” e “C”, ainda que o crédito destes seja de maior
relevância, consubstanciando, por exemplo, uma obrigação alimentar, indispensável à
própria subsistência do indivíduo. A fim de evitar tais distorções, sendo caracterizada a
insolvência, a lei determina que a execução se faça segundo um procedimento
diferenciado. Todos os credores são chamados a dele participar, sendo os pagamentos
feitos não pela ordem de penhora, mas de acordo com a relevância dos créditos,
distribuídos em classes, segundo disposições da lei88.

Quando o devedor é empresário, a execução concursal denomina-se


falência, sendo regulada pela Nova Lei de Falências. Nos demais casos, chama-se
insolvência civil, procedimento disciplinado no Código de Processo Civil 89. Dito isto,
pode-se conceituar a falência como sendo o processo de execução concursal ao qual se

87
COLEHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 3. p. 242-243.
“A execução processa-se, em regra, individualmente, ou seja, um só credor move processo contra o
devedor, para dele haver a satisfação da obrigação descumprida; (...)
Quando, porém, o patrimônio do devedor é representado por bens cujos valores somados são inferiores à
totalidade das suas dívidas, ou seja, quando alguém deve mais do que tem para pagar, a regra da
individualidade da execução torna-se injusta, porque execuções individuais não possibilitam discriminar
os credores, de acordo com os graus de necessidades ou garantias contratadas, com o objetivo de atender
a uns antes dos outros; não dá, por outro lado, aos credores duma mesma situação jurídica, titulares de
crédito de igual natureza, as mesmas chances. Se é prestigiada a regra da execução individual, quando o
devedor não tem meios de pagar tudo o que deve, os credores que se antecipassem na propositura das
respectivas execuções individuais teriam grandes chances de receber a totalidade dos seus créditos,
enquanto os que se demorassem – até porque, eventualmente, nem tivesse ainda vencido a respectiva
obrigação – muito provavelmente não receberiam nada, visto que, ao moverem suas execuções
individuais, encontrariam o patrimônio do devedor já totalmente exaurido.”
88
Artigo 83 da Nova Lei de Falências.
89
Artigos 748 a 786-A.
Note-se que os pressupostos da falência e da insolvência civil são distintos, em virtude das peculiaridades
da atividade empresarial. A respeito, consulte-se PENTEADO, Mauro Rodrigues. In: SOUZA JÚNIOR,
Francisco Satiro de, PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (Coordenadores). Comentários à Lei de
Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 78.
A tendência atual de converter a execução em simples incidente do processo de conhecimento
(sincretismo processual) não implica eliminação total do processo de execução autônomo. Nesse sentido:
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A Nova Definição de Sentença (Lei n° 11.232). Revista Dialética de
Direito Processual. São Paulo: Dialética, n.º 39, p. 78-85, jun. 2006. p. 79. “Cumpre sublinhar que essa
mudança em nada influi na distinção ontológica entre as duas atividades. Cognição e execução constituem
segmentos diferentes da função jurisdicional. A lei pode combiná-los de maneira variável, traçar ou não
uma fronteira mais ou menos nítida entre os respectivos âmbitos, inserir no bojo de qualquer deles atos
típicos do outro, dar precedência a este sobre aquele, juntá-los, separá-los ou entremeá-los, conforme lhe
pareça mais conveniente do ponto de vista prático. O que a lei não pode fazer, porque contrário à natureza
das coisas, é torná-los iguais.”

35
submetem algumas espécies de empresários90, em situação de insolvência real ou
presumida, reconhecida por sentença91.

Uma das utilidades contínuas da falência consiste no fato de ser ela mais
benéfica ao devedor do que a insolvência civil, por diversas razões. Dentre elas, o fato
de possibilitar a extinção das obrigações mediante o pagamento de mais de 50% do
passivo quirografário 92, ao passo que a insolvência civil exige o pagamento integral dos
débitos93, além do fato de a falência possuir disciplina legal mais detalhada e precisa.
Assim, seria interessante que fosse abolido o regime da insolvência civil, substituindo-o
pelas disposições da nova Lei de Falências, que passaria a alcançar também os
devedores não empresários, tal como ocorre no Direito norte-americano. Aliás, nada
justifica que as sociedades empresárias94 possam requerer recuperação judicial ou
extrajudicial95 ao passo que as sociedades simples, igualmente exercentes de atividade
econômica96, sejam privadas de tal prerrogativa.

Essa questão fora objeto de intensos debates durante a tramitação do Projeto


da nova Lei de Falências, tendo prevalecido, infelizmente, a posição dos que defendiam
a restrição da falência ao devedor empresário 97. Sobre o tema, confira-se o seguinte
trecho do Parecer da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal:

“O art. 1º do PLC nº 71, de 2003, prevê a aplicação da lei à


sociedade empresária, à sociedade simples e ao empresário que
exerça profissionalmente atividade econômica organizada para

90
Diz-se algumas espécies ao invés de todos, porque há atividades empresariais que não se sujeitam à
falência, ao menos de modo imediato. Assim, por exemplo, as elencadas no artigo 2° da Nova Lei de
Falências.
91
Adota-se o entendimento de que a sentença que decreta a quebra é constitutiva e não simplesmente
declaratória. Antes dela, não há que se falar em falido ou massa falida, o que não obsta a fixação
retroativa do chamado termo legal da falência (Nova Lei de Falências, artigo 99, II).
92
Nova Lei de Falências: “Art. 158. Extingue as obrigações do falido:
I – o pagamento de todos os créditos;
II – o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinqüenta por cento) dos créditos
quirografários, sendo facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem
se para tanto não bastou a integral liquidação do ativo;
(...)”
93
Código de Processo Civil: “Art. 774. Liquidada a massa sem que tenha sido efetuado o pagamento
integral a todos os credores, o devedor insolvente continua obrigado pelo saldo.”
94
Código Civil: “Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por
objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais.”
Sobre o conceito de empresa, consulte-se: PARENTONI, Leonardo Netto. O Conceito de Empresa no
Código Civil de 2002. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, v. 388, p. 133-151, nov./dez. 2006.
95
Nova Lei de Falências, arts. 48 e 161.
96
Código Civil: “Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a
contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos
resultados.”
97
Nova Lei de Falências: “Art. 1º. Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e
a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor.”

36
a produção ou circulação de bens ou de serviços. O parágrafo
único, no entanto, exclui do regime da lei o artesão, o indivíduo
que exerce atividade profissional com o trabalho próprio ou da
família, para fins de subsistência, o profissional liberal e sua
sociedade civil de trabalho. (...) Vê-se, portanto, que, muito
embora o art. 1º do PLC nº 71, de 2003, preveja a aplicação do
regime de falência e de recuperação para as sociedades simples,
seu parágrafo único exclui a grande maioria delas,
especialmente quando menciona os profissionais liberais e suas
sociedades. Dessa forma, parece mais adequado, a fim de evitar
interpretações equivocadas, aproveitar a definição do Código
Civil, que é mais precisa, para restringir os regimes
disciplinados na lei aos empresários e às sociedades
empresárias.”98

Pelo que foi dito, percebe-se que a falência, por ser mais vantajosa para o
devedor, deveria substituir a insolvência civil, dando origem a um regime de execução
concursal único, abarcando tanto empresários quanto não empresários. Mais do que
isso, há casos em que a falência mostra-se mesmo inevitável. Os próprios juristas norte-
americanos Douglas G. Baird e Robert K. Rasmussen chegam a reconhecer esse fato,
ainda que indiretamente, ao analisarem o empreendimento denominado Iridium 99.

O Iridium pretendia utilizar uma rede de satélites mantida na órbita da


Terra, ao custo aproximado de cinco bilhões de dólares, para permitir a realização de
chamadas telefônicas em localidades ainda não cobertas pela telefonia celular. Por se
tratar de um serviço exclusivo, esperava-se que os consumidores estivessem dispostos a
pagar mais caro por ele. Ocorre que durante o tempo de instalação dessa rede houve
grande evolução da telefonia celular, que passou a abarcar a maior parte das áreas em
que o Iridium iria atuar. Além disso, a telefonia celular apresentava diversas vantagens,
como aparelhos menores e menor custo do minuto de conversação. Com isso, o Iridium
tornou-se tão obsoleto que os satélites foram queimados em plena órbita, já que isto
seria mais barato do que trazê-los de volta à Terra.

98
Parecer n° 534/2004 da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal sobre o Projeto de Lei
nº 71/2003, originário da Câmara dos Deputados. Parecer relatado pelo Senador Ramez Tebet.
99
BAIRD, Douglas G.; RASMUSSEN, Robert K. The end of bankruptcy, p. 769. “(...) Iridium built a
five billion dollar network of satellites in low-earth orbit.86 The business plan was based on the idea that
this network could capture one percent of the world market for cell phones. The idea was that at least this
many users of cell phones needed to be able to use a phone that would call any other phone in the world
from anywhere in the world, and would pay a hefty premium for such a service. Like Webvan, the busi-
ness idea required a large investment in dedicated assets with a long development time. By the time the
network came into operation, however, cell-phone technology with a shorter development cycle and less
dependence on large upfront enterprise-specific in-vestment had outstripped it in both convenience and
costs. Few people were far enough away from ordinary phone service that they wanted to spend several
dollars a minute for a brick-sized Iridium phone that could be used only outdoors.”

37
O exemplo citado ilustra uma dentre as várias situações em que a falência se
mostra absolutamente necessária, seja porque o mercado em que a empresa atuava
deixou de existir, seja porque se tornou de tal maneira diminuto que não compensa os
custos operacionais. Nestes casos, não há que se falar em recuperação da empresa,
porque não haverá outros empresários interessados em adquirir os ativos do falido, que
se tornaram obsoletos. Assim, o processo falimentar se impõe como mecanismo de
conciliação entre o interesse público relativo à satisfação do direito dos credores e o
interesse igualmente público em promover a regular extinção das atividades do falido.

Por essa razão, a recuperação de empresas não deve ser considerada como
solução milagrosa para qualquer empreendimento, sob pena de subverter a própria
finalidade do instituto. A mesma idéia é também defendida por alguns economistas,
como Jorge Queiroz:

“A recuperação judicial deve ser vista como exceção. Nos


Estados Unidos, por exemplo, a razão é da ordem de 1,6 milhão
de falências para 12 mil casos de recuperação judicial por ano.
Destarte, o Poder Judiciário e os credores em geral deverão
analisar cada caso criteriosamente para evitar eventuais abusos
e medidas protelatórias que comprovadamente geram grandes
perdas de valor e tempo, como ocorria com freqüência com as
concordatas na antiga lei. A natureza fundamental do
salvamento de um negócio é econômico-administrativa e não
jurídica. Se um negócio não é viável, não será a lei que irá
salvá-lo. De igual forma, ainda que viável seja, se a gestão da
empresa não detiver a credibilidade necessária perante os
credores e o mercado de uma forma geral, esta boa lei não irá
salvá-lo. Apesar de um plano viável e possuidor de uma
administração competente com elevada credibilidade, além de
uma boa estratégia e plano de recuperação bem concebido, se
não executado em tempo hábil, a empresa sucumbirá,
independentemente da lei.”100
Desse modo, a falência não deve ser vista como um mal, um procedimento
cruel que extingue atividades produtivas, mas como importante instrumento de
harmonização dos interesses de credores e do devedor insolvente, nos casos em que
inviável a continuidade da empresa. Não se nega que a falência possui imperfeições.
Contudo, o Direito ainda não elaborou instrumento apto a substituí-la satisfatoriamente:

“Nem toda falência é um mal. Algumas empresas, porque são


tecnologicamente atrasadas, descapitalizadas ou possuem
organização administrativa precária, devem mesmo ser
encerradas. Para o bem da economia como um todo, os recursos

100
QUEIROZ, Jorge. Quebra-cabeça: Lei de Falências é boa, mas solução é econômico-administrativa.
Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/41882,1>. Consultado em 20.04.2007.

38
– materiais, financeiros e humanos – empregados nessa
atividade devem ser realocados para que tenham otimizada a
capacidade de produzir riqueza. Assim, a recuperação da
empresa não deve ser vista como um valor jurídico a ser
buscado a qualquer custo. Pelo contrário, as más empresas
devem falir para que as boas não se prejudiquem. Quando o
aparato estatal é usado para garantir a permanência de empresas
insolventes inviáveis, opera-se uma inversão inaceitável: o risco
da atividade empresarial transfere-se do empresário para os seus
credores (...).”101
Não se pode negar, assim, a importância e utilidade do procedimento
falimentar, desde que bem aplicado. Como descrito anteriormente, a falência é mais
benéfica ao exercente de atividade econômica do que a insolvência civil, por possibilitar
a extinção das obrigações mediante o pagamento de mais de 50% do passivo
quirografário 102. Além disso, ao reunir os credores do devedor insolvente em um único
processo de execução, por isso denominado concursal, a falência garante que os créditos
sejam pagos segundo sua ordem de importância, previamente definida em lei103,
prestigiando o valor social de tais créditos (como os trabalhistas). Note-se que a solução
sugerida por Baird e Rasmussen, qual seja, a regulação contratual da destinação a ser
dada aos ativos do devedor insolvente, orienta-se unicamente por interesses privados.
Somente o procedimento falimentar é capaz de preservar o valor social de alguns
créditos, conferindo-lhes preferência na ordem de rateio.

Se, de um modo geral, a falência é necessária e até mesmo benéfica para o


credor, o mesmo não se pode dizer especificamente em relação à realidade brasileira.
No país, as imperfeições do modelo falimentar atingiram proporções gigantescas. Aqui,
a falência notabilizou-se pela morosidade, onerosidade e ineficiência. Estudo do Banco
Mundial104 realizado em 133 países, com base em dados do ano de 2003, indica que o
processo falimentar brasileiro, quanto ao tempo médio de duração dos feitos, ostenta a
vexatória penúltima posição, à frente apenas da Índia. Eis alguns dos países
pesquisados:

101
COLEHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 3. p. 233-
234.
102
Lei n° 11.101/2005: “Art. 158. Extingue as obrigações do falido:
I – o pagamento de todos os créditos;
II – o pagamento, depois de realizado todo o ativo, de mais de 50% (cinqüenta por cento) dos créditos
quirografários, sendo facultado ao falido o depósito da quantia necessária para atingir essa porcentagem
se para tanto não bastou a integral liquidação do ativo;
(...)”
103
Artigo 83 da Lei n° 11.101/2005.
104
Citado em: PERES, Leandra. Um passo decisivo. Revista VEJA, ano 37, n. 28, 14 jul. 2004, p. 46.

39
Tempo Médio de Duração do Processo de Falência
Japão 6 meses
Inglaterra 1 ano
Alemanha 1,2 ano
México 2 anos
China 2,6 anos
Argentina 2,8 anos
Estados Unidos 3 anos
Chile 5,8 anos
Brasil 10 anos
Índia 11,3 anos

Sendo a falência necessária, não seria exagero afirmar, com base nesses
dados, que, ao menos no Brasil, ela é um mal necessário...

2. O interesse público na recuperação da empresa

Baird e Rasmussen questionam a importância contemporânea do Direito


Concursal. Os mencionados autores consideram que há mecanismos econômicos e
jurídicos que dispensam a recuperação de empresas e, em alguns casos, até mesmo a
falência, alcançando os mesmos resultados de forma célere e menos onerosa. Este
raciocínio fora construído tendo por foco a tutela dos interesses privados envolvidos no
processo, sobretudo o de credores e acionistas do devedor insolvente. Apenas
secundariamente são consideradas as repercussões sociais dessas condutas.

Na realidade brasileira, os valores sociais não podem ser colocados em


segundo plano, sob pena de afronta não apenas às regras da nova Lei de Falências 105,
mas aos próprios fundamentos constitucionais da atividade econômica106. Assim, as
técnicas sugeridas por Baird e Rasmussen somente podem ser aplicadas no país quando
compatíveis com o interesse público inerente ao Direito Concursal. Cumpre, então,
esclarecer no que consiste esse interesse.

A ruína de uma atividade empresarial não atinge apenas os sujeitos


diretamente relacionados à empresa, tais como sócios, acionistas, empregados,
fornecedores, etc. No mundo contemporâneo, as diversas relações jurídicas são de tal
forma interligadas e interdependentes que a ruptura de uma delas pode repercutir
seriamente nas demais.

105
Artigo 47 da Lei n° 11.101/2005.
106
Artigo 170 da Constituição Federal.

40
Neste contexto, as conseqüências de uma única falência podem, em
determinados casos, extravasar os limites da empresa e atingir a sociedade como um
todo. Pense-se, por exemplo, na falência de uma companhia aérea, de uma grande
mineradora, ou da principal empresa petrolífera do país. Além dos prejuízos causados a
acionistas, investidores, empregados e fornecedores, nos exemplos citados haverá
conseqüências negativas em cascata, atingindo o setor de transportes e turismo (que se
verão privados do transporte aéreo), a construção civil (já que haverá escassez de
matéria prima), a indústria (por falta de combustível), além, é claro, dos consumidores,
que se verão privados de todos esses serviços ou, no mínimo, precisarão se curvar ao
aumento de preços. Nas sábias palavras de Alfredo Lamy Filho:

“O fenômeno da empresa é recente na história econômica e


social da atividade humana. E, no entanto, o mundo de hoje
seria incompreensível sem a onipresença da empresa que ocupa,
praticamente, todos os espaços na vida do homem moderno.
Com efeito, dependemos da empresa para o nosso trabalho, e
nosso lazer, para nos transportarmos e nos comunicarmos, para
a produção de alimentos ou de mobiliário, e vestuário, para a
defesa de nossa saúde, para a habitação, para a produção de
toda essa parafernália de utilidades empregadas no dia-a-dia do
homem moderno. Numa palavra, para o progresso econômico e
a conquista do bem-estar-social. (E pensar que o homem habita
a terra há milênios, e que só há, apenas, duzentos anos
organizou-se a produção sobre a forma empresarial!).”107
No mesmo sentido, as lições de Arnoldo Wald:

“A evolução da empresa constitui, na realidade, um elemento


básico para compreensão do mundo contemporâneo. Do mesmo
modo que, no passado, tivemos a família patriarcal, a paróquia,
o Município e as corporações profissionais, que caracterizaram
um determinado tipo de sociedade, a empresa é, hoje, a cédula
fundamental da economia de mercado.”108
Assim, a preservação da empresa não pode e não deve ser vista sob a ótica
exclusivamente privada, como instrumento de redução das perdas de acionistas e
investidores. Há um interesse público na preservação das atividades econômicas, a fim
de evitar os efeitos nocivos que sua cessação abrupta pode causar à sociedade, uma vez
que a empresa exerce função social de extrema relevância109.

107
LAMY FILHO, Alfredo. A Empresa – Formação e Evolução – Responsabilidade Social. In: SANTOS,
Theophilo de Azeredo (Coord.). Novos estudos de Direito Comercial em homenagem a Celso Barbi
Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 1.
108
WALD, Arnoldo. Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005. v. XIV. P. 09.
109
SZTAJN, Rachel. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro de, PITOMBO, Antônio Sérgio A. de
Moraes (Coordenadores). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo:

41
Tais circunstâncias foram profundamente debatidas durante a elaboração do
projeto que redundaria na nova Lei de Falências, resultando na positivação dos
princípios da preservação e recuperação da empresa. Veja-se, a respeito, o seguinte
trecho do Parecer da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal:

“Princípios adotados na análise do PLC nº 71, de 2003,


e nas modificações propostas

1) Preservação da empresa: em razão de sua função social, a


empresa deve ser preservada sempre que possível, pois gera
riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o
crescimento e o desenvolvimento social do País. Além disso, a
extinção da empresa provoca a perda do agregado econômico
representado pelos chamados intangíveis como nome, ponto
comercial, reputação, marcas, clientela, rede de fornecedores,
know-how, treinamento, perspectiva de lucro futuro, entre
outros.
(...)
3) Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis:
sempre que for possível a manutenção da estrutura
organizacional ou societária, ainda que com modificações, o
Estado deve dar instrumentos e condições para que a empresa se
recupere, estimulando, assim, a atividade empresarial.”110
De fato, a Lei n° 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, conhecida como nova
Lei de Falências, foi editada para substituir o Decreto-lei n° 7.661/1945, supostamente
incapaz de concretizar tais objetivos. A nova lei tratou do assunto em seu artigo 47:

“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a


superação da situação de crise econômico-financeira do
devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do
emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores,
promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função
social e o estímulo à atividade econômica.”
Pela leitura do dispositivo, percebe-se que o legislador teve a nítida intenção
de estimular a recuperação da empresa, convertendo a falência, como causa de extinção

Saraiva, 2005. p. 220. “A atividade econômica gera empregos, renda e riqueza e sua destruição a perda de
benefícios que são distribuídos na sociedade na forma de bem-estar.”
110
Parecer n° 534/2004 da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal sobre o Projeto de Lei
nº 71/2003, originário da Câmara dos Deputados. Parecer relatado pelo Senador Ramez Tebet.

42
da atividade empresarial111, em providência subsidiária, cabível apenas quando inviável
a recuperação112.

É preciso alertar, entretanto, que não se deve confundir a recuperação da


empresa (atividade produtiva, objeto de direitos) com a recuperação do empresário
insolvente (sujeito de direitos que exerce a atividade empresarial) 113. O que pretende a
nova Lei de Falências é permitir a recuperação da empresa, da atividade econômica
produtiva, em virtude de sua relevância sócio-econômica. Apenas secundariamente
objetiva-se assegurar que o empresário, organizador desta atividade, permaneça no
controle.

Nessa linha, o artigo 50 da Lei n° 11.101/2005 fornece uma lista


exemplificativa114 das providências que podem ser adotadas para a preservação da
empresa. O inciso IV deste artigo ilustra a distinção que está sendo feita. Reza o
dispositivo que constitui meio de recuperação judicial a “substituição total ou parcial
dos administradores do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos”. Ou
seja, a lei se contenta com a manutenção da atividade produtiva, ainda que sob o
controle de outro administrador115. A intenção primordial é a de preservar a empresa,
mesmo que para isso seja preciso afastar o empresário 116.

111
Na prática, a falência costuma acarretar a extinção da atividade empresarial. Contudo, esta não é uma
conseqüência necessária, já que a falência não implica extinção da personalidade jurídica do falido.
Sobre o tema, consulte-se: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade Anônima. 2. ed. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003. p. 508-510.
112
No mesmo sentido: BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso Avançado de
Direito Comercial. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 453.
113
A distinção entre recuperação da empresa e recuperação do empresário fora efetuada anteriormente.
Vide tópico intitulado: Conclusão parcial: A definição de empresa no contexto da Lei de Recuperação de
Empresas e Falências brasileira.
114
SZTAJN, Rachel. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Satiro de, PITOMBO, Antônio Sérgio A. de
Moraes (Coordenadores). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo:
Saraiva, 2005. p. 231. “A enumeração, nos vários incisos do art. 50 da Lei, das possibilidades para, em
situação de crise desenhar-se operação que atenda às especificidades e necessidades da empresa, é
extensa: são dezesseis incisos originando a indagação sobre ser tal relação taxativa ou exemplificativa. Da
leitura do caput infere-se que a enumeração é exemplificativa, podendo ser encontradas outras medidas,
além, por óbvio, da eventual combinação de duas ou mais das relacionadas nos vários incisos, que
atendam ao desiderato – preservar as empresas em crise.”
115
Parecer n° 534/2004 da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal sobre o Projeto de Lei
nº 71/2003, originário da Câmara dos Deputados. Parecer relatado pelo Senador Ramez Tebet.
“Separação dos conceitos de empresa e de empresário: a empresa é o conjunto organizado de capital e
trabalho para a produção ou circulação de bens ou serviços. Não se deve confundir a empresa com a
pessoa natural ou jurídica que a controla. Assim, é possível preservar uma empresa, ainda que haja a
falência, desde que se logre aliená-la a outro empresário ou sociedade que continue sua atividade em
bases eficientes.”
116
A substituição administrativa na empresa em recuperação é, entretanto, medida excepcional, não
devendo nunca ser interpretada como regra. Como observado por um dos autores deste artigo em outra
oportunidade: “As I see it, when faced with a situation of a similar nature, the judge must necessarily ask

43
Feita essa distinção entre recuperação da empresa e recuperação do
empresário, é possível identificar que, ao se orientarem precipuamente pelos interesses
privados de acionistas e investidores, os instrumentos sugeridos por Baird e Rasmussen
relegam ou, ao menos, consideram em segundo plano a função social da empresa.

O procedimento legal de recuperação, por outro lado, permite alcançar


resultados semelhantes com menor sacrifício dos valores sócio-econômicos inerentes à
empresa. O simples fato de empregados e fornecedores serem admitidos a participar
das discussões relativas ao plano de recuperação117 já lhes confere a possibilidade de
expressar anseios e preocupações e, com isso, influir no destino da empresa. Essa
preocupação social da nova Lei de Falências é expressa em vários de seus dispositivos,
cabendo destacar, por exemplo, os incisos VII e VIII do artigo 50, que admitem como
mecanismo de recuperação judicial, respectivamente, o “trespasse ou arrendamento de
estabelecimento, inclusive à sociedade constituída pelos próprios empregados” e a
“redução salarial, compensação de horários e redução da jornada, mediante acordo ou
convenção coletiva”.

Também a falência afina-se, de certa forma, com o princípio da função


social da empresa, pois, ao reunir os credores do devedor insolvente em um único
processo de execução, permite classificar os créditos, conferindo prioridade de
pagamento aos mais importantes do ponto de vista social, como os trabalhistas.

Portanto, a necessária consideração da função social da empresa é suficiente


para refutar o argumento de Baird e Rasmussen segundo o qual o Direito Concursal

himself at least the following questions: Does the reorganization process stand a better chance of success
under a different management composition? Is the trustee to be appointed prepared or experienced
enough to run a troubled business? Will the costs to be borne out of the appointment of new management
overtax the reorganization process of the crisis-stricken concern? Is the trustee to be nominated
familiarized with the particular business under reorganization? Considering the timing factor, would the
replacement of management be actually efficient for the recovery of the enterprise? In practice, the
enormous complexity of these factors, added to the consequences to come out of management
replacement for the future of the economic activity explored by the debtor company is most likely to lead
to the application of Article 64 of the [Brazilian Bankruptcy Act] only under rather exceptional
circumstances.” GALIZZI, Gustavo Oliva. Theory and Pragmatism of Governance Reform in Business
Reorganization: A Case Study of Brazil. Monografia apresentada no seminário Bankruptcy Advanced,
como requisito parcial à obtenção do titulo de Master of Laws (LL.M.) pela University of Texas School of
Law. Versão original em vias de publicação no Brasil e disponível mediante requerimento ao autor.
117
Lei n° 11.101/2005: “Art. 26. O Comitê de Credores será constituído por deliberação de qualquer das
classes de credores na assembléia-geral e terá a seguinte composição:
I – 1 (um) representante indicado pela classe de credores trabalhistas, com 2 (dois) suplentes;
II – 1 (um) representante indicado pela classe de credores com direitos reais de garantia ou privilégios
especiais, com 2 (dois) suplentes;
III – 1 (um) representante indicado pela classe de credores quirografários e com privilégios gerais, com 2
(dois) suplentes.”

44
estaria decadente, sendo facilmente substituído por soluções de mercado,
contratualmente negociadas entre os interessados.

Há que se refletir, por fim, sobre um aspecto que não foi abordado em The
End of Bankruptcy, mas que é correlato ao tópico ora analisado. Trata-se do § 4° do
artigo 52, redigido nos seguintes termos:

“Art. 52. (...)


§ 4o O devedor não poderá desistir do pedido de recuperação
judicial após o deferimento de seu processamento, salvo se
obtiver aprovação da desistência na assembléia-geral de
credores.”
O dispositivo permite, a contrario sensu, que o empresário devedor desista
da recuperação judicial, desde que conte com a anuência dos credores. A norma em
comento subverte toda a lógica da lei, na medida em que coloca o interesse privado (do
devedor e da maioria dos credores) acima do interesse público (na regular tramitação do
processo, inclusive para fins criminais), com se demonstrará adiante.

Se é certo que devedor e credores são os principais interessados na


recuperação judicial, não se pode dizer que sejam os únicos. Uma vez desencadeado um
processo judicial, a ele adere o interesse público. Apenas para citar um aspecto, veja-se
a repercussão criminal do encerramento da recuperação por simples acordo entre
devedor e credores.

A caracterização de alguns tipos penais previstos na nova Lei de Falências


pressupõe a existência de procedimento de recuperação judicial 118, de sorte que se este
procedimento for extinto, juntamente com ele desaparecerá a própria tipicidade do fato.
Como o dispositivo não abre margem para que a desistência seja controlada pelo
Juízo, ficando a cargo de interesses exclusivamente privados, decorrentes de acordo
entre o devedor e a maioria dos credores, há brecha para que o autor de crime possa,
por meio de um artifício, se furtar definitivamente à persecução penal. No mesmo
sentido, o posicionamento de Marcelo Bertoldi e Márcia Carla Pereira Ribeiro:

118
Observe-se, por exemplo, o seguinte artigo: “Art. 170. Divulgar ou propalar, por qualquer meio,
informação falsa sobre devedor em recuperação judicial, com o fim de levá-lo à falência ou de obter
vantagem:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.”
THUMS, Gilberto. Crimes Falimentares. Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível
em: < http://www.mp.rs.gov.br/criminal/doutrina/id383.htm>. Consultado em 10.06.2007. “A legislação
brasileira não atribui o ‘nomen juris’ de crime falimentar aos delitos previstos na legislação sobre
falências, mas a doutrina e a jurisprudência conceituam esses ilícitos penais como crimes falimentares e
assim serão tratados neste pequeno estudo. Na nova legislação (Lei nº 11.101, de 9.2.2005) estão
previstos nos artigos 168 a 178.”

45
“Fica a dúvida se a recuperação judicial está voltada para o
atendimento do interesse do devedor e de seus credores, mais
do que ao interesse público de efetiva recuperação da empresa
ou de aplicação das sanções penais, quando cabíveis. A LRE
[sigla de Lei de Recuperação de Empresas, ou nova Lei de
Falências] consagra tanto a busca da satisfação dos credores e
de recuperação do devedor como a possibilidade de incidência
de normas penais. No entanto, ao permitir a desistência do
pedido, durante o processamento da recuperação,
independentemente de outra consideração a não ser a anuência
dos credores, devolve ao procedimento o caráter de instrumento
preponderante de satisfação dos interesses privados.” 119
Melhor seria que a lei conferisse ao Juízo poderes para examinar o pedido
de desistência da recuperação, quando formulado no curso do processo, a fim de obstar
sua utilização com intuito fraudulento. Não se trata, aqui, de sugerir a ingerência
judicial em assuntos privados. Ao contrário, pretende-se apenas que haja um mínimo de
controle sobre o processo, a fim de assegurar a primazia do interesse público.

Conclusão

A falência, compreendendo, na acepção norte-americana do termo, os


institutos da recuperação judicial e liquidação de empresas, não acabou. Razões diversas
existem para que tais institutos continuem sendo utilizados com eficiência igual ou
mesmo superior à de outros tempos. Embora seja forçoso admitir a crescente utilização
de modernos mecanismos econômicos e jurídicos como alternativa aos procedimentos
judiciais de recuperação e liquidação, é de se ressaltar, por outro lado, que tais
mecanismos não lograram substituir, ainda, o papel essencial do Direito Concursal na
regulação do estado de crise econômica do devedor.

The End of Bankruptcy não deve ser lido ou estudado, nesse contexto, como
uma manifestação de desprestígio ao Direito Concursal. Exageros do título à parte, a
interpretação mais adequada do artigo é a de uma crítica bem articulada a inegáveis
deficiências da referida disciplina jurídica, conclamando os juristas a refletir sobre a
necessidade de aperfeiçoá-la, comparativamente a mecanismos alternativos de mercado.
Foi esse o espírito que motivou a elaboração deste texto.

119
BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso Avançado de Direito Comercial. 3.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 469.

46
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