Você está na página 1de 196

INTERESSANTE

75
EDIÇÃO
BIBLIOTECA

MISTÉRIOS
DA
CIÊNCIA
Da Matéria Negra e a existência de E.T.
ao Manuscrito Voynich e ao móvel perpétuo
Há grandes interrogações
sobre o mundo à nossa volta
que ainda não sabemos
como responder e
continuaremos a persegui-
las até termos uma resposta
baseada em provas
GETTY

científicas.
Editorial

Um mundo
enigmático
C
ornelius Bernardus van Niel, o microbiologista america-
no de origem holandesa que levou a cabo descobertas fun-
damentais para explicar a fotossíntese, dizia que “a ciência
é na essência uma busca perpétua pela compreensão inteligen-
te e integrada do mundo em que vivemos”. É também o único re-
curso que, através do chamado método científico, torna possível
desvendar os enigmas do desconhecido ou do inexplicável e que
impulsiona o avanço do conhecimento numa base firme, racio-
nal e verificável, dizem o Dr Miguel Jörge e Dr Rubén Storino em
A Ciência, sua presença e seu destino. A ciência procura respos-
tas, e o cientista aspira a conhecer a verdade, sem ter de recorrer
a explicações sobrenaturais. Mesmo que essa verdade seja inatin-
gível, inalcançável... com o conhecimento e a tecnologia do mo-
mento. Além disso, é possível que algumas das perguntas que nos
fazemos estejam condenadas a ser o que o linguista e filósofo Noam
Chomsky denominou de mistérios. Nesta nova Edição de Biblio-
teca de Super Interessante, o astrofísico e divulgador científico
Miguel Ángel Sabadell aborda 75 enigmas que resistem a ser ex-
plicados à luz da ciência, de que é feita a realidade, o que é a ener-
gia escura, como funciona o placebo, porque cantam as baleias, se
há mais seres vivos no universo e o que é o mecanismo Anticítera.

CARMEN SABALETE
DIRETORA

5
6
Sumário

SUMÁRIO
Textos de Miguel Ángel Sabadell

O QUE SÃO OS RAIOS GLOBULARES?.............. 108


CIÊNCIA DE ONDE VÊM OS TARDÍGRADOS?..................110
QUAL É A MASSA DO NEUTRINO?.......................10 E QUANTO AO CAMPO MAGNÉTICO
O PRESENTE EXISTE?...................................................14 DA TERRA?..................................................................... 112
A FUSÃO A FRIO FUNCIONA?.................................16 COMO COMEÇOU A VIDA NA TERRA?....................114
A REALIDADE EXISTE?................................................18 O QUE CAUSOU A GRANDE EXTINÇÃO?........118
EXISTE UMA TEORIA DE TUDO?.......................... 20
O QUE É A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA?................22 CIVILIZAÇÃO
O QUE É A PERCEPÇÃO SUBLIMINAR?............. 26 ONDE ESTÁ O CRÂNIO DE SHAKESPEARE?...122
A HIPNOSE EXISTE?.................................................... 28 QUEM ERAM OS POVOS DO MAR?................... 124
QUANTAS FORÇAS EXISTEM NO UNIVERSO?..30 QUEM ERA O HOMEM COM A
O QUE É O TEMPO?.....................................................32 MÁSCARA DE FERRO?.............................................. 128
PODEMOS VIAJAR MAIS DEPRESSA QUE A LUZ?.34 ONDE ESTão os TESOUROs
TEMOS LIVRE-ARBÍTRIO?........................................ 36 DO TEMPLO DE JERUSALÉM?............................... 130
A CONJETURA DE RIEMANN ESTÁ CERTA?............38 EXISTIU A ESTRELA DE BELÉM?............................132
QUAL É A RELAÇÃO ENTRE O GRANDE
MEDICINA ZIMBABWE E O REINO DE SABA?....................... 134
PORQUE DORMIU UMA MULHER O QUE ACONTECEU EM ROANOKE?............... 136
DURANTE 32 ANOS?................................................... 42 ONDE É A CIDADE DOS PILARES?..................... 138
COMO FUNCIONA O PLACEBO?..........................44 O QUE FOI O PROGRAMA STARGATE?................. 140
DE ONDE VEIO A SÍFILIS?.......................................48 O QUE DIZ NO DISCO DE FESTOS?........................142
PORQUE É QUE GLORIA RAMIREZ PORQUE FORAM ERGUIDOS OS
ESTAVA TÓXICA?........................................................... 50 ALINHAMENTOS DE CARNAC?..........................144
ALGUMAS PESSOAS SÃO ALÉRGICAS À ÁGUA?... 52
EM QUE CONSISTIA A DOENÇA DO SONO?....... 54 TECNOLOGIA
É POSSÍVEL RESSUSCITAR UM CÃO?.......................56 O QUE ESTÃO OS RUÍDOS
O QUE É A DOENÇA DOS MORGELLONS?...... 58 DO HAVANA?............................................................... 148
O QUE FOI DOENÇA DO DEDO PODRE?........60 ORFFYREUS CONSTRUIU O
MÓVEL PERPÉTUO?................................................... 150
ENIGMAS DE ONDE VEIO O SINAL “WOW”?......................152
PORQUE É QUE OS LEÕES O QUE É O MECANISMO ANTICÍTERA?...............154
ATACARAM EM TSAVO?.............................................64 O QUE ACONTECEU AO VOO 370
PORQUE É QUE ÖTZI MORREU?.......................... 66 DA MALASYA AIRLINES?......................................... 156
O QUE ACONTECEU AO TESOURO DE LIMA?.68 O QUE FOI RECEBIDO NUMA ESTAÇÃO
SERÁ QUE AS IRMÃS POLLOCK DE RÁDIO EM OSLO EM 1927?............................. 158
REINCARNARAM?....................................................... 70 QUEM ESCREVEU O
EXISTE PÓ DE ZOMBIE?.............................................72 MANUSCRITO VOYNICH?.................................... 160
HAVERÁ UMA CIDADE DE OURO MARCONI DETETOU
NA AMAZÓNIA?......................................................................74 SINAIS EXTRATERRESTRES?.................................. 164
PORQUE É QUE JACQUELINE QUAIS FORAM AS INVESTIGAÇÕES
FITZSIMONS ARDEU?................................................ 78 SECRETAS DE TESLA?................................................ 166
DE ONDE VEIO O KASPAR HAUSER?..................80
O QUE ACONTECEU A KREMERS UNIVERSO
E FROON NO PANAMÁ?........................................... 82 ONDE ESTÁ O LÍTIO EM FALTA?......................... 170
O QUE ACONTECEU ao MARY CELESTE?..............84 PORQUE O UNIVERSO ESTÁ
PORQUE É QUE OS CÃES SE SUICIDAM TÃO AFINADO?............................................................172
NA PONTE OVERTOUN?........................................... 86 PORQUE É QUE HÁ MATÉRIA
SERÁ QUE UM ESPÍRITO NO UNIVERSO?.......................................................... 174
ENGANOU HOUDINI?....................................................88 O QUE SÃO O FRB E O GRB?.................................176
O QUE ESTÁ DENTRO
O NOSSO PLANETA DE UM BURACO NEGRO?.......................................178
PORQUE CANTAM AS BALEIAS?............................ 94 DE ONDE VÊM AS GRANDES
O QUE FEZ DESAPARECER AMNISOS ESTRUTURAS DO UNIVERSO?............................. 180
E HERAKLION?.............................................................. 98 O QUE É A ENERGIA ESCURA?............................. 184
PORQUE É QUE OS TUBARÕES MIGRAM?.....100 DE QUE É FEITA A MATÉRIA ESCURA?............. 186
O QUE É O SKYQUAKE?........................................... 102 EXISTEM MAIS SERES VIVOS
O QUE É A GELEIA ESTELAR?................................104 NO UNIVERSO?.......................................................... 188
PORQUE CINTILAM OS MARES?........................ 106 O QUE ESTÁ A ACONTECER A P CYGNI?........... 192

7
8
U
m cientista é capaz de explicar a sua pesquisa, mas é-lhe im-
possível descrever o que sente quando, no decurso do seu tra-
balho descobre um pormenor, uma regularidade na natureza,
quando, como disse Louis Pasteur, “levanta uma ponta do véu
com o qual Deus cobriu a sua Obra”.
É uma sensação emocionante, profundamente sentida, muito pes-
soal. Ao tentar explicá-la, ouvimos coisas tão impróprias de quem su-
postamente tem uma mente analítica, como “a natureza procura-te...
e sabe quem procura”. O escritor austríaco e autor de O Homem sem
Qualidades, Robert Musil colocou-o de forma mais poética: “Não é
verdade que o cientista esteja em busca da verdade. Esta vai em busca
dele. É algo de que ele sofre”.
A ciência tem uma estranha reputação na nossa sociedade. Recla-
ma-se que o cientista dê informações precisas e oportunas sobre o que
lhe é perguntado; pede-se-lhe a verdade. Mas em nenhum outro lugar
encontramos mais “poderia” e “talvez”, mais condicionais, do que ao
ler uma revista científica. O investigador sabe que o que é verdade ho-
je pode não ser verdade amanhã. Por esta razão, não há ninguém no
mundo mais capaz de mudar de ideias, mas também não há ninguém
que peça mais provas para ter de o fazer. O cientista não é um cata-
-vento que muda de direção à medida que o vento sopra, ele ou ela
sabe que o pouco conhecimento que possui custou um grande esforço
e exige que lhe sejam dadas razões convincentes para aceitar novas hi-
póteses. Os cientistas são diariamente confrontados com o mistério.
Algo que os marca para toda a vida.

9
1 Qual é a massa do
neutrino?
Não tem carga elétrica e quase não interage com a matéria, pelo que
o estudo das suas propriedades não é tarefa fácil para os físicos.

O observatório de neutrinos
chamado Super-K está
localizado sob o Monte
Kamioka, no Japão.

10
T
udo nesta partícula é um enigma, física, a conservação da energia, não funciona-
começando pela sua própria exis- ria para este tipo de desintegração radioativa.
tência, que foi teoricamente previs- A nova e hipotética partícula tinha de estar no
ta em 1930 por Wolfgang Pauli para núcleo do átomo e ser emitida juntamente com
resolver um problema que dava a o eletrão ao produzir-se a desintegração. Isto
volta à cabeça dos físicos: a desintegração beta. conduzia a outro problema, uma vez que não
Este é um tipo de desintegração radioativa, em existem eletrões no interior do núcleo. De onde
que um átomo instável emite um eletrão - ou a é que eles vinham? Em 1934, outro grande físi-
sua antipartícula, um positrão. Pauli tinha uma co, Enrico Fermi, apresentou a sua teoria da de-
forte razão para dizer que tinha de existir, ca- sintegração beta: quando um neutrão do núcleo
so contrário uma das leis mais sacrossantas da se desintegrava, dava origem a um protão, um
eletrão e o neutrino de Pauli. Enviou um arti-
go explicando este modelo à prestigiosa revista
Nature, mas foi rejeitado com o argumento de
que se tratava de uma ideia “muito afastada da
realidade”. No entanto, ele tinha razão.

EVIDENTEMENTE, UMA COISA É PREVER A


SUA EXISTÊNCIA E OUTRA é prová-lo expe-
rimentalmente. O neutrino devia ser bastante
elusivo porque ninguém o tinha encontrado
até então. Mais de duas décadas depois, em
1956, Clyde Cowan Jr. e Frederick Reines en-
contravam a partícula de Pauli, uma desco-
berta que lhes valeu o Prémio Nobel em 1995.
Embora apenas Reines o pudesse receber; Co-
wan tinha morrido em 1974.
O neutrino já tinha a sua certidão de nasci-
mento. E, quais eram as suas propriedades?
Não tinha carga elétrica, o que era óbvio, e qua-
se não interagia de todo com a matéria. De fac-

ARCHIVI TK

W. Pauli formulou a existência do neutrino em 1930.


WIKI

11
O laboratório Sudbury Neutrino
Observatory para a deteção de
neutrinos está localizado a 2 km de
profundidade no Canadá. Abaixo,
uma imagem de um dos seus ecrãs.
AGE

to, Cowan e Reines tiveram de utilizar um rea- são, cada vez que quatro núcleos de hidrogénio
tor nuclear que emitisse 50 triliões de neutrinos se convertem num núcleo de hélio, são gerados
por segundo por centímetro quadrado e dois dois neutrinos, que escapam imediatamente
tanques de água de 500 litros com 50 quilos de para o espaço. Davis tinha uma enorme quan-
cloreto de cádmio dissolvido para o detetar. Era tidade de neutrinos à sua disposição: o Sol pro-
possível que algo tão peculiar tivesse massa? duz mais de 200 triliões de biliões, de biliões de
Essa era a pergunta de um milhão de dólares. biliões de neutrinos por segundo. O problema
Em 1967, o físico-químico e Prémio Nobel da era como encurralá-los, porque são capazes de
Física de 2002 Raymond Davis decidiu estudar passar por uma parede de chumbo com várias
os neutrinos que têm origem no interior do Sol. centenas de biliões de quilómetros de espessu-
Nessa altura, já era bem conhecido o aspeto da ra, como se fosse ar. Ou, dito de outra forma:
nossa estrela, utilizando o chamado modelo so- dos neutrinos vindos do Sol, só detetamos um
lar padrão. Devido às reações nucleares de fu- em cada 5 mil milhões... uma vez que tenham
passado pela Terra!

TAL DIFICULDADE OBRIGOU DAVIS A TOMAR


DUAS DECISÕES. A primeira foi utilizar um de-
tetor de grande dimensão - encheu um tanque
com 600 toneladas de percloroetileno, um com-
posto utilizado na limpeza a seco. A segunda con-
sistiu em enterrar o detetor debaixo de toneladas
de rocha, blindando-o, para que nada o pertur-
basse.
Do espaço exterior obtemos raios cósmicos,
uma radiação de alta energia, que provoca ir-
ritantes ruídos de fundo no detetor e mascara
a deteção dos neutrinos. O que Davis não po-
dia esperar era que a sua experiência apenas
detetasse um terço dos neutrinos previstos pe-
AGE

12
lo modelo solar. Teria feito algo de errado, ou fazem-no com uma frequência proporcional à
a teoria estava incorreta? Assim nasceu o que sua massa - e o modelo standard da física das
desde então ficou conhecido como o problema partículas diz que não têm. Portanto, não re-
dos neutrinos solares. solvemos o problema, apenas o movemos de
Davis não sabia que tinha a solução na mão um lado para o outro.
muito antes deste enigma aparecer. Tinha sido
fornecida em 1957 por um físico italiano cha- ERA ESTA A SOLUÇÃO? NO INÍCIO DO SÉCU-
mado Bruno Pontecorvo, que havia deserta- LO XXI, A RESPOSTA VEIO de Sudbury, no Ca-
do para a União Soviética sete anos antes. De nadá. O Sudbury Neutrino Observatory (SNO)
uma intuição física incomparável, previu que está aí localizado, com um tanque contendo
existiam diferentes tipos de neutrinos, depen- 1000 toneladas de água pesada - água feita de
dendo da partícula com a qual estavam asso- deutério, um isótopo de hidrogénio - enterrado
ciados. Dividiu-os em três tipos - o neutrino numa mina de níquel a uma profundidade de
do eletrão, o neutrino do muão e o neutrino 2100 metros. A principal virtude do SNO é que
do tau - que podem mudar e tornar-se noutro, é capaz de observar separadamente o número
um fenómeno conhecido como oscilação do total de neutrinos de eletrões e - o que é impor-
neutrino. tante - o de todos os tipos de neutrinos. O SNO
começou a medir em abril de 1999, e em agosto
NO INTERIOR DO SOL, AS REAÇÕES NUCLEA- de 2001 mostrou, por observação direta, que os
RES PRODUZEM NEUTRINOS de eletrões, e a neutrinos de eletrões do Sol foram convertidos
equipa de Davis detetou apenas esse tipo. Mas, em neutrinos muónicos e tauónicos.
e se mudassem no seu caminho para a mina, Isto abriu a porta a mais uma incógnita, que
tornando-se um dos outros dois tipos? Isto sal- os físicos teóricos são até agora incapazes de
vou o modelo solar e resolveu o problema da explicar: se a oscilação do neutrino implica que
escassez de neutrinos. A única desvantagem tem massa, o que dizer do modelo padrão, que
era que introduzia um problema: para os neu- diz que não deveria ter? E, em todo o caso, por-
trinos oscilarem, deviam ter massa - de facto, que é que a sua massa é tão pequena? e

O Pólo Sul é um bom local para


observar os neutrinos do Sol. Foi por
isso que foi decidido localizar a
experiência IceCube na estação
Amundsen-Scott.
WIKI

13
Aparentemente, quanto
mais envelhecemos, FUTURO
mais a nossa perceção
do tempo se acelera.
PRESENTE

PASSADO

SHUTTERSTOCK

2 Será que o presente existe?


O nosso inconsciente tem uma janela de dois a três segundos para
perceber o agora e sincronizar a informação visual e auditiva.

D
izer que o presente é um perío- do passado para o futuro continuamente, sem
do de tempo entre o passado e o saltos. Como fazemos para que uma série de
futuro não é dizer muito. Definir regras se transforme neste rio do tempo que
o agora implica compreender co- flui suavemente?
mo percebemos a passagem dos
minutos. Embora não tenhamos nenhum sis- MARC WITTMANN, INSTITUTO DE ÁREAS DE
tema sensorial específico que esteja associado à FRONTEIRA DE PSICOLOGIA e Saúde Mental,
perceção do tempo, temos sistemas diferentes em Friburgo (Alemanha), acredita que são ne-
que nos ajudam a fazê-lo: o córtex cerebral, o cessários três segundos para que o cérebro crie
cerebelo e os gânglios basais. Além disso, na o “agora” consciente. Mas não se fica por aí. No
parte central do hipotálamo, encontra-se o nú- final, o cérebro deve construir a imagem de que
cleo supraquiasmático, que controla os ciclos o tempo flui continuamente; para isso investe
circadianos. Se for destruído, todos os nossos uns não desprezíveis trinta segundos.
ritmos regulares desaparecem. Wittmann pediu a 38 pessoas que meditam
O nosso sentido implícito do tempo tem regularmente e a outras 38 que não o fazem,
dois aspetos aparentemente incompatíveis: que olhassem para o que se chama um cubo de
o facto de existirmos permanentemente no Necker - um cubo com uma imagem ambígua,
presente e a experiência de que o tempo flui que pode ser vista de uma forma ou de outra.

14
Wittmann pediu-lhes que carregassem num hertz - ou seja, uma vez por segundo. No iní-
botão cada vez que o vissem mudar de pers- cio as duas ondas estavam desfasadas, o que fez
petiva. Porquê? Porque desta forma podemos com que os voluntários percebessem os flashes
estimar quanto tempo dura o presente psicoló- e os sons como estando fora de sincronia. Mas
gico. Pois bem, descobriu que ambos os grupos estes começaram a afirmar que os percebiam
o percebiam da mesma forma: o agora durava como simultâneos, à medida que as ondas ce-
quatro segundos. Aparentemente, a meditação rebrais auditivas e visuais se iam sincronizando,
não nos torna mais presos ao presente. significando que existe um mecanismo ativo no
David Eagleman, um neurocientista do Bay- cérebro que nos diz como lidar com o tempo
lor College em Houston, Texas, aponta um no mundo exterior, embora não saibamos qual
factor que deve ser tido em conta para com- é. Mas o mais interessante deste trabalho é que
preender o problema: o nosso cérebro processa tem outra implicação mais profunda: é o cére-
a informação a diferentes velocidades, depen- bro inconsciente que decide o que é o agora, e
dendo do sentido com que a percebemos. O sis- leva dois a três segundos para o fazer.
tema auditivo, por exemplo, consegue distin- Isto foi demonstrado em 2014 por David Mel-
guir entre dois sons separados por um milisse- cher da Universidade de Trento (Itália). O que
gundo, enquanto o sistema visual dificilmente ele fez foi preparar um filme muito particular.
consegue perceber duas imagens separadas co- Em certos pontos, algumas cenas foram corta-
mo distintas, por menos de dez milissegundos. das em partes mais pequenas; em alguns casos
Isto significa que o cérebro deve aprender a duravam alguns milissegundos, noutros dura-
compaginar estas disparidades para criar uma vam até vários segundos. Melcher descobriu
imagem unificada do mundo exterior. que os voluntários seguiam o enredo do filme
como se nada tivesse acontecido se a duração
ALÉM DISSO, O TRABALHO COMPLICA-SE destes pequenos cortes não fosse superior a 2,5
PELO FACTO DE a luz e o som viajarem a velo- segundos. Mas se fossem mais longos do que
cidades diferentes, pelo que chegam aos nossos isso, os participantes reparavam que algo de
sentidos em momentos distintos, mesmo que estranho se passava.
sejam gerados ao mesmo tempo, como acontece
quando um relâmpago cai. E como é que acaba- PARA MELCHER, ISTO É SEMELHANTE À LEI-
mos por lidar com tudo isto? Os neurocientistas TURA DE UMA CARTA na qual em cada palavra,
acreditam que o nosso encéfalo faz previsões so- suprimimos ou mudamos de lugar algumas le-
bre o que vai acontecer. É o que acontece quan- tras. Apesar disso, ainda somos capazes de a ler
do vemos um filme que foi mal dobrado: pensa- porque o nosso cérebro é capaz de preencher
mos que a voz e os movimentos dos lábios estão as letras em falta. No entanto, falha quando,
sincronizados até nos apercebermos de que não por exemplo, alteramos sistematicamente a
correspondem. E isto acontece se a diferença primeira e última letra de cada palavra. Para
entre os dois for de 200 milissegundos. Isto foi Melcher, esta janela de dois a três segundos que
descoberto por engenheiros nos primeiros tem- temos para perceber o agora é a consequência
pos da televisão, que tiveram de se preocupar de algum tipo de mecanismo desconhecido que
com a sincronização de imagem e áudio. Foi en- compensa o facto de o nosso cérebro estar sem-
tão que aprenderam que tinham uma janela de pre a lidar com informação desfasada. Porque,
cem milissegundos: se o sinal chegasse dentro quer queiramos quer não, a nossa perceção do
desta janela, o cérebro dos espetadores sincro- mundo está colocada no passado.
nizaria o sinal de vídeo com o sinal áudio. Da mesma forma, à medida que envelhe-
Virginie van Wassenhove, da Unidade de cemos, a nossa perceção do tempo acelera.
Neuroimagem Cognitiva em Gif-sur-Ivette Quando se comparou um grupo de pessoas
(França), tem vindo a investigar a razão pe- com idades compreendidas entre os dezano-
la qual isto acontece. Para o fazer, expôs um ve e os vinte e quatro anos com outro grupo
grupo de voluntários a uma série de flashes e com idades compreendidas entre os sessenta
apitos uma vez por segundo, mas com 200 mi- e oitenta anos, verificou-se que, se se pedis-
lissegundos de intervalo. Ao mesmo tempo, se para estimar a duração de três minutos,
fazia-lhes um scanning para registar a sua ati- os jovens falhavam, em média, cerca de três
vidade cerebral nessas alturas. Encontrou duas segundos, enquanto os mais velhos falhavam
ondas cerebrais, uma no córtex visual e outra por quarenta segundos. O porquê é algo que
no córtex auditivo, com uma frequência de um se nos escapa. e

15
AGE / SPL

3 A fusão a frio funciona?


A investigação sobre a fusão de átomos de hidrogénio à tempera-
tura ambiente poderá em breve produzir os resultados esperados.

N
a década de 1920, os cientistas utilizado na joalharia e como catalisador no cra-
austríacos Friedrich Paneth e queamento do petróleo, de absorver hidrogénio.
Kurt Peters imaginaram um tipo Em 1927, o desconhecido físico norueguês John
peculiar de reação nuclear que Tandberg afirmou ter conseguido a fusão nuclear
não produz radiação. De facto, de hidrogénio em hélio numa célula eletrolítica
pensavam ter conseguido fundir dois átomos de com paládio. Ele tentou patentear a sua desco-
hidrogénio em hélio apenas com os instrumen- berta, mas a sua proposta foi rejeitada.
tos de um laboratório de química. Pouco de-
pois, tiveram de retirar a sua alegação: um co- DESDE ENTÃO, A IDEIA DA FUSÃO A TEMPE-
lega realizou a mesma experiência e descobriu RATURA AMBIENTE tem estado na mente de
que o hélio provinha dos próprios instrumentos alguns cientistas, mas só em 1989 é que a bom-
de vidro do laboratório. ba foi lançada. A 23 de março, foi anunciado ao
A ideia destes investigadores foi inspirada por mundo que um par de químicos da Universidade
um fenómeno bem conhecido desde o século de Utah, Martin Fleischmann e Stanley Pons, ti-
XIX: a curiosa capacidade do paládio, um metal nham descoberto como consegui-lo a um custo

16
A empresa americana Brillouin Energy
Corp. utiliza um reator de hidrogénio
(Hot Tube Boiler System) na sua
investigação para produzir energia a
partir de reações nucleares LENR. of Technology, o emblemático MIT. Em poucas
semanas, a reputação científica de Fleishmann
e Pons foi destruída.
No entanto, a fusão a frio recusou-se a desa-
parecer.
Pelo menos vinte laboratórios em todo o
mundo têm prosseguido a investigação e publi-
cado os seus resultados, alguns encorajadores,
outros dececionantes. Este último é o caso do
Japão, onde entre 1992 e 1997 o Ministério do
Comércio e Indústria financiou um programa
de investigação sobre fusão a frio no valor de
20 milhões de euros. Em 2004, o Departamento
de Energia dos EUA encomendou uma revisão
de tudo o que estava a ser feito sobre fusão a
frio ou, como tem sido chamado desde então,
reações nucleares de baixa energia (LENR).
Embora os cientistas encarregados da revisão
não tenham encontrado provas convincentes
de que houvesse “alguma coisa” após anos de
investigação, recomendaram um financiamen-
to particular para “os estudos em áreas espe-
cíficas que pudessem resolver as controvérsias
existentes”.

EM MARÇO DE 2012, YOGENDRA SRIVASTAVA


DA UNIVERSIDADE DE PERUGIA (ITÁLIA) or-
ganizou um colóquio sobre o tema no CERN, e
pouco depois, a NASA anunciou um programa
de investigação no valor de 200.000 dólares. Em
insignificante: bastava um recipiente de água setembro de 2013, o Departamento de Energia
pesada, um pedaço de paládio e uma corrente dos EUA lançou uma linha de financiamento de
elétrica. Não era uma ideia louca; se quisermos projetos incluindo o LENR, e o Pentágono fi-
separar o sal comum nos seus elementos cons- nanciou experiências LENR no seu Laboratório
tituintes, cloro e sódio, temos de o aquecer até de Investigação Naval em Washington e no SRI
40.000 °C, mas também o podemos fazer de for- International, um laboratório da Califórnia que
ma mais eficiente e sem esse gasto de energia, trabalha para o governo dos EUA.
dissolvendo-o na água e passando uma corrente Em maio de 2016, o Comité de Defesa dos
de 4 volts através dele. Não poderia acontecer EUA publicou o seu relatório de 2017 para a
algo semelhante com as reações nucleares? Lei de Autorização da Defesa Nacional, uma lei
federal que decide em que dinheiro deve ser
EM BREVE, NO ENTANTO, AS COISAS COR- gasto o orçamento para o Departamento de
RERIAM MAL. Quase ninguém foi capaz de Defesa. Nele, afirmava que tinha havido desen-
duplicar a sua experiência, os dois químicos volvimentos positivos suficientes no domínio
não deram números fiáveis, e os neutrões que do LENR para reconhecer o seu potencial de
deveriam ser produzidos em qualquer reação “produzir energia renovável de baixo custo,
nuclear brilhavam pela ausência. Apenas me- ultra-limpa e renovável”. Assim como “fortes
diram um excesso de calor que não consegui- implicações de segurança nacional”. Não só
ram explicar e que atribuíram a algum tipo de isso, como chamava a atenção para o interes-
reação nuclear que ocorresse. Isso para os físi- se que estava a atrair em países como a Rússia,
cos nucleares cheirava a esturro: sem neutrões, China, Israel e Índia, e sugeriu que os Estados
não há fusão. A descoberta metia água em todo Unidos não podiam ficar para trás.
o lado e o golpe de misericórdia veio sob a for- Mas o que se passa dentro daquela cuba com
ma de uma série de experiências com resultado paládio? Passado meio século, ninguém sabe ao
negativo realizadas no Massachusetts Institute certo. e

17
A teoria dos universos paralelos,
formulada por Hugh Everett (à direita),
explicaria o paradoxo de que uma coisa
pode ser e não ser ao mesmo tempo.

SHUTTERSTOCK

4 Será que a
realidade existe?
A existência de um mundo objetivo é difícil de demonstrar cienti-
ficamente. Segundo alguns, a chave está no olhar do observador.

A
nossa experiência diária diz-nos que dos com a existência de fenómenos que só po-
se alguém fica fora da nossa vista deriam ser explicados se a luz se comportasse
quando sai por uma porta, não deixa como uma onda, e outros em que esta deveria
de existir. Sabemos que simplesmen- ser uma partícula.
te deixámos de o ver. Tem a certeza? A solução era aceitar o impossível, que a
A exploração do mundo subatómico levou-nos luz era ambas as coisas, à vez. E mais, que a
muito, muito mais longe, a um lugar que nin- matéria também se comporta da mesma for-
guém esperava encontrar. A sua conclusão é que ma. A consequência de aceitar isto é terrível,
a realidade é apenas uma ilusão. Não vemos as porque implicaria que, ao observarmos, mo-
coisas em si mesmas, mas sim o aspeto do que são. dificamos o mundo. Além disso, olhando pa-
Tudo tem a sua origem na natureza da luz. No ra ele, fazemos com que o mundo seja de uma
início do século XX, os físicos ficaram espanta- forma e não de outra.

18
MAS O GOLPE DEFINITIVO, DEU-O WERNER HEI-
SENBERG, UM FÍSICO apaixonado pelo mundo
grego, quando disse que existe uma indetermina-
ção fundamental no mundo. Ou seja, ou conhece-
mos a trajetória de um protão, ou conhecemos a
sua posição; mas não as duas coisas. Isto não é um
problema dos nossos instrumentos de medição;
é uma indeterminação fundamental da natureza.
Não só isso, mas a noção de causalidade desapa-
rece e resta apenas a probabilidade de que algo
aconteça. Podemos atirar uma bola contra uma
parede o quanto quisermos, porque nem sempre
regressará. Que isso aconteça é só provavelmente
verdadeiro. Em alguma ocasião, a bola irá para ou-

WIKI
tro lugar e só podemos dizer que existe uma certa
probabilidade de que isso aconteça.
É o que acontece com a radioatividade, por nada de especial... exceto um grande alívio por
exemplo. Desde 1894, sabemos que existem áto- continuar vivo. A interpretação de Wigner é,
mos que são instáveis e que, para se tornarem es- portanto, que a teoria quântica colapsa no mo-
táveis, se desintegram. Podemos saber se um áto- mento em que a consciência entra em jogo. Ou,
mo se vai desintegrar, mas somos incapazes de o que é o mesmo, a lua existe porque alguém a
prever quando o fará. Na melhor das hipóteses, observou em algum momento.
podemos adivinhar que, por exemplo, após uma Na mesma linha está a interpretação de um
hora, existe uma probabilidade de 50/50 de que dos físicos mais imaginativos do século XX
um átomo se desvaneça. Isto torna fundamental e mestre de prémios Nobel, John Archibald
o ato de observar. Se não o fizermos, para nós Wheeler. Para ele, o passado só existe na medi-
esse átomo encontra-se numa espécie de limbo da em que é registado, e o que temos registado é
desintegrado e não desintegrado. o que escolhemos ver. “O ato de observar é um
ato elementar de criação”, diz ele. A sua mensa-
AGORA PEGUEMOS NESSE ÁTOMO RADIOA- gem é clara: nenhum fenómeno elementar é um
TIVO E CONCEBAMOS UM DISPOSITIVO para fenómeno até que seja observado. A sua posição
que, se se desintegrar, uma ampola cheia de gás difere da de Wigner na medida em que não ape-
venenoso se rompa. Depois coloquemos este la à consciência, mas à observação. O universo
dispositivo e um gato numa caixa opaca. Após inteiro deve a sua existência ao facto de, a dada
uma hora, só podemos dizer que o gato tem altura, ter sido observado.
50/50 de hipóteses de estar vivo e 50/50 de es-
tar morto. O ponto essencial deste paradoxo é NO OUTRO EXTREMO DESTE CONJUNTO DE
que, de acordo com a teoria quântica, o gato en- INTERPRETAÇÕES ESTÁ a proposta de Hugh
contra-se literalmente vivo e morto ao mesmo Everett III em 1957, mais tarde retomada por Neil
tempo. Só quando a caixa é aberta é que ele se Graham e Bryce De Witt em 1970. É a hipótese dos
torna ou morto ou vivo. É nesse momento que universos paralelos. A ideia subjacente é que tudo
a sua existência, que até então era uma mistura é real. O gato não está no limbo, mas está vivo e
de morto e vivo, se concretiza. Este é o chamado morto. É claro que não pode ser ambas as coisas
paradoxo do gato de Schrödinger. ao mesmo tempo no mesmo universo. É por isso
Ora bem, o gato de Schrödinger deve saber que cada vez que ocorre uma alternativa quânti-
se está vivo ou morto, mesmo que nós o igno- ca, todo o cosmos se divide em dois. Num ramo
remos. Claro que, tanto quanto sabemos, um do universo, o gato está morto e no outro está vi-
gato não tem consciência de si mesmo, pelo que vo. Obviamente, ninguém está consciente desta
pouco nos pode ajudar neste dilema. Portanto, multiplicação de universos e ninguém, exceto na
vamos substituí-lo por um ser humano, conhe- ficção científica, pode viajar de um para o outro.
cido na comunidade física como amigo de Wig- Quem tem razão? Ninguém sabe. Com este
ner, porque foi Eugene Wigner quem teve esta pano de fundo, não é surpreendente que o pró-
ideia. Com tal pessoa na caixa, se o encontrar- prio Stephen Hawking tenha comentado uma
mos vivo no final da experiência, podemos per- vez: “Quando ouço falar do gato de Schrödin-
guntar-lhe o que sentiu. Claro, ele não nos dirá ger, saco da minha arma”. e

19
5 Existe uma teoria
de tudo?
Encontrar uma explicação completa da gravidade, aplicável tanto
às galáxias como aos átomos, não está a ser uma tarefa fácil.

A
relatividade geral é, juntamente as quatro forças da natureza como o produto
com a mecânica quântica, a gran- de uns misteriosos objetos unidimensionais, as
de realização da física do século cordas. Embora devêssemos falar no plural, pois
XX. Mas, como diz Juan Martín havia então cinco teorias em funcionamento
Maldacena, físico argentino do com formulações diferentes. Em 1995, chegou
Institute for Advanced Study em Princeton, uma segunda revolução, quando se mostrou
EUA, “a mecânica quântica e a gravidade são que não eram mais que aspetos diferentes de
duas teorias que não se entendem”. Ninguém uma única, batizada de Teoria M. Era como se
soube encaixá-las até meados da década de estivéssemos perante um puzzle do qual não sa-
1980, quando teve lugar uma grande revolu- bemos qual é o quadro completo, temos apenas
ção: os físicos teóricos estavam convencidos cinco peças e não sabemos onde estão as outras.
de que tinham encontrado a teoria de tudo.
Acabara de entrar em jogo a muito populari- EM 1997, O ARGENTINO JUAN MALDACENA
zada teoria das cordas. FORMULOU UMA CONJETURA agora famosa,
que deu forma ao princípio holográfico de Ge-
CRIADA NO FINAL DA DÉCADA DE 1960 PELO rard Hooft e Leonard Susskind. Descreve que
ITALIANO Gabriele Veneciano como uma tenta- toda a informação contida num volume do es-
tiva de explicar a força forte - a força que man- paço pode ser representada por uma teoria que
tém o núcleo atómico unido - foi rapidamente vive na superfície desse volume. Por outras pa-
esquecida na gaveta das ideias pouco úteis da lavras, podemos saber o que acontece dentro
física. Mas, entre 1984 e 1985, descobriu-se de uma sala, criando uma teoria que só tem em
que era uma teoria consistente para descrever conta o que acontece nas paredes. Maldacena

A teoria das cordas sus-


tenta que o universo é
constituído por finos fila-
mentos de energia. O físi-
co Juan Martín Maldacena
- retratado à direita - é
um dos seus defensores.
SHUTTERSTOCK

20
verificação experimental das suas previsões.
Nenhum acelerador de partículas pode atingir
as energias necessárias para a realização de ex-
periências para verificar a teoria.
Um dos maiores críticos da teoria de tudo é
Peter Woit. Ele recorda que todo o debate sobre
cordas se assemelha ao debate entre dois gigan-
tes da física do início do século XX: Heisenberg
e Pauli. Heisenberg alegava que, exceto por al-
guns detalhes, tinha uma maravilhosa teoria de

CREITO
unificação das forças da natureza, o santo graal
da física teórica. Pauli deu um seminário no
construiu o primeiro exemplo explícito deste qual, parodiando a teoria do seu amigo, come-
princípio - que se acredita ser uma caracte- çou por desenhar um grande retângulo branco
rística da gravidade quântica - sob a forma de e observou: “Isto é para mostrar que consigo
uma conjetura detalhada. Ao fazê-lo, o argen- pintar como Ticiano. Só deixei de fora os por-
tino tornou-se um dos físicos mais bem pagos menores”. Se ninguém sabe como é realmente
da época. a teoria das cordas, “a sua beleza é a mesma que
a pintura de Pauli”, acrescenta Woit.
NO SEU ÂMAGO, A IDEIA BÁSICA DA TEORIA
DAS CORDAS É MUITO SIMPLES. Todo o uni- A ESPERANÇA É A ÚLTIMA COISA QUE SE
verso é feito de filamentos de energia inimagi- PERDE, E APESAR DA SECA DE IDEIAS que
navelmente pequenos chamados cordas e, tal tem atormentado a teoria das cordas desde
como as cordas de um violino fornecem uma meados dos anos 90, ainda se acredita que se-
surpreendente variedade de notas, cada par- remos capazes de encontrar uma explicação
tícula subatómica nasce de um dos modos de completa da gravidade que funcione à escala
vibração de uma única corda. tanto das galáxias como do núcleo atómico. O
O que a tornou tão atraente é que parece problema é que estamos a lidar com uma força
conter no seu interior uma teoria da gravidade esquiva cuja existência levanta três questões
que reconcilia a incompatibilidade entre a rela- desconfortáveis para as quais não sabemos a
tividade geral e a mecânica quântica . resposta. Porque é apenas atrativa? É a única
No entanto, tem alguns problemas impor- das quatro forças elementares que não é tam-
tantes que são difíceis de resolver, nomeada- bém repulsiva? Porque não pode ser blindada?
mente o de prever que vivemos num mundo de Ao contrário do que acontece com as restan-
dez dimensões - nove espaciais e uma tempo- tes, não podemos construir um dispositivo
ral. Para justificar que não vejamos seis delas - para a remover do entorno. Porque é que é tão
o nosso universo observável tem três espaciais débil? A única resposta a este enigma é assu-
e um temporal - a teoria postula que estão en- mir que vivemos realmente num universo de
roladas sobre si próprias. Portanto, dizem os dez dimensões e que a gravidade é a única for-
teóricos, o nosso universo observável é uma ça que está espalhada por todas elas e é por
folha - brana - de quatro dimensões embebida isso que apenas vemos uma pequena fração da
em um universo de dez dimensões. sua potência total.
No entanto, há cientistas que pensam que as Será a teoria das cordas a resposta? Embora,
cordas são pura especulação. Outros são mais no final do século XX, tenha sido vendida como
diretos e dizem que é uma perda de tempo. uma panaceia explicativa, hoje cada vez menos
Sheldon Glashow, Prémio Nobel da Física pelo pessoas acreditam que seja a hipótese correta;
seu trabalho sobre a unificação das forças ele- na melhor das hipóteses, é uma aproximação.
tromagnéticas e nucleares fracas - responsá- Há quase duas décadas, César Gómez, então di-
veis por algumas desintegrações subatómicas retor do Instituto de Física Teórica em Madrid,
- disse a respeito das cordas: “Nenhuma ex- disse: “A teoria das cordas está connosco há
periência pode confirmar o que se está a pas- vinte e cinco anos e nós não sabemos realmente
sar. A teoria está sempre segura. Será isso uma o que é”. Ainda hoje estamos praticamente no
teoria física ou uma filosofia? Este pioneiro na mesmo ponto, sem saber se a física será final-
procura de uma explicação unificada aponta mente capaz de encontrar uma teoria de tudo.
para o maior problema da teoria das cordas: a Se é que existe. e

21
6 O que é a experiência
religiosa?
Porque vemos as ideias religiosas dos outros como ridículas e
não as nossas? Porque aceitamos crenças que, na melhor das
hipóteses, são contra-intuitivas e não temos provas de que são
verdadeiras? O que as torna plausíveis para alguns seres huma-
nos e não para outros?

Os seres humanos sempre


procuraram explicações sobrenaturais
para a existência, um
comportamento que poderá estar
SHUTTERSTOCK

relacionado com o instinto de


sobrevivência.

22
23
Uma missa ao vivo do Papa
Francisco atrai multidões de
católicos fiéis à Praça de São
Pedro, no Vaticano.

SHUTTERSTOCK

É
óbvio que não podemos duvidar da Por outro lado, temos o antropólogo Pascal Bo-
amplitude e diversidade da religião yer, que baseia as suas ideias no conceito de mo-
na cultura humana, mas não sabemos dularidade da mente. De acordo com a psicologia
por que razão ela existe. Para o antro- cognitiva, nos nossos cérebros, alojamos dife-
pólogo Stewart Elliot Guthrie da Uni- rentes algoritmos mentais, parcialmente defini-
versidade de Fordham (EUA), a religião é uma dos pelos genes. Graças à seleção natural, estes
extensão do “antropomorfismo sistemático” surgiram para resolver situações específicas, tais
que nós humanos possuímos, ou seja, atribuí- como a fuga das sombras. Boyer argumenta que
mos características humanas a coisas ou even- a religião é uma exatação, uma consequência co-
tos não humanos porque qualquer informação lateral resultante da utilização de “todo o tipo de
ambígua ou pouco clara é sempre interpretada capacidades humanas específicas” desenvolvidas
em termos de sobrevivência. Para compreen- para resolver diferentes problemas. Ou, dito de
der isto, imaginemos que estamos a caminhar outra forma, a fé religiosa, como a capacidade
através de uma floresta à noite. A certa altura, de pintar quadros ou compor canções, nasce de
uma sombra chama-nos a atenção: é uma ro- diferentes módulos cognitivos que foram criados
cha ou um dos ursos que normalmente estão para um fim e que, com o tempo, começaram a
por perto? A coisa inteligente a fazer é pensar ser utilizados com outra intenção.
que é uma criatura viva e fugir: não perdemos
nada se estivermos errados, mas salvamos a ENTRETANTO, A NEUROCIÊNCIA ESTÁ PREO-
nossa pele se estivermos certos. CUPADA EM DESCOBRIR se existe algo no nos-
O mesmo se aplica à fé religiosa: é uma es- so cérebro que nos torne religiosos. Parece que
pécie de estratégia de sobrevivência à qual a experiência mística está relacionada com o
os nossos cérebros se adataram. Segundo o sistema nervoso autónomo, que também é res-
biólogo evolucionista americano David Sloan ponsável pela regulação da respiração, pressão
Wilson, esta adatação não está associada à arterial, temperatura corporal e ritmo cardía-
sobrevivência do indivíduo, mas sim à sobre- co. Por sua vez, está intimamente relacionada
vivência da comunidade. Ele argumenta que com o sistema límbico do cérebro, que é res-
a religião é um produto da evolução cultural ponsável pelas emoções e pelos afetos.
através de um processo de seleção de grupo. Curiosamente, na década de 1970, o psiquia-
As ideias religiosas trazem coesão e coopera- tra Arthur J. Deikman cunhou o termo psicose
ção, o que torna o grupo mais suscetível de mística quando descobriu a grande semelhan-
sobreviver. ça entre as experiências psicóticas e místicas.

24
Os monges sufistas entram
em transe através de uma
dança repetitiva rotativa.
SHUTTERSTOCK

Andrew Newberg - imagem abaixo - da Uni- mais satisfeitos com as suas vidas, e a sua fa-
versidade da Pensilvânia (EUA) passou grande mília e amigos confirmaram que tinham visto
parte do seu tempo a fazer tomografias aos cé- uma mudança para melhor. Toda esta inves-
rebros de monges tibetanos e franciscanos en- tigação aponta claramente numa direção: se
quanto estes rezavam ou meditavam, e desco- podemos induzir sentimentos religiosos numa
briu que, nesses momentos, o cérebro desativa pessoa, então estes não têm nada a ver com a
as áreas que regulam a personalidade e intensi- existência de um mundo espiritual, mas com o
fica-se a atividade na sua parte frontal. Ao mes- funcionamento e a química do córtex cerebral.
mo tempo, há uma diminuição da atividade nos Enquanto os psicólogos evolucionistas expli-
lóbulos parietais, cuja função é orientar os nos- cam que esta abordagem espiritual é um pro-
sos corpos em relação ao mundo: isto dá origem duto da evolução cerebral, os neuroteólogos
a perceções espaciais anormais e permite uma dizem-nos como pode ser gerada.
experiência mística.
Lars Farde, psiquiatra do Instituto Karolinska
de Estocolmo, publicou um artigo em 2003 no
qual ligava os níveis de serotonina e, sobretudo, o
recetor 5-HT1A à espiritualidade dos indivíduos.
Esta substância é tanto maior quanto menor for a
densidade dos recetores de serotonina. Isto indica
DOMINIO PÚBLICO

que existe uma base química para a crença?

SE UMA PROTEÍNA SECRETADA PELO NOS-


SO CORPO É CAPAZ DE NOS levar a ter visões
místicas, será que poderiam ser induzidas ar- Na realidade, porém, toda esta investigação
tificialmente através da ingestão de cogumelos não nos diz porque acreditamos, apenas como
sagrados? Os médicos da Universidade Johns os nossos cérebros respondem à experiência
Hopkins submeteram voluntários a diferentes religiosa. O que parece inegável é que há algo
doses de psilocibina, um alcalóide encontrado que nos faz ter tendência a acreditar. Como o
em muitas espécies de cogumelos, e 61% ti- divulgador científico americano Martin Gard-
veram experiências místicas completas. Além ner escreveu há décadas, “entendo tão pouco o
disso, após dois meses de ingestão, 79 por cen- sentimento místico, como a ciência entende a
to dos participantes disseram sentir-se muito essência de um fotão”. e

25
7 O que é a perceção
subliminar?
O inconsciente governa as nossas ações e decisões mais do que
pensamos, mas ainda não é claro como utilizá-lo em nosso benefício.

E
m 12 de setembro de 1957, o publicis- pipocas e um aumento de 18 % nas vendas de
ta James M. Vicary anunciou a criação Coca-Cola.
de uma nova empresa: a Subliminal
Projection Company. O seu objetivo NOS ANOS SEGUINTES, FOI PEDIDO A VICARY
era ganhar dinheiro com a sua gran- QUE EXPLICASSE OS DADOS obtidos e que des-
de descoberta, feita num cinema em Fort Lee, se uma descrição detalhada dos procedimentos
New Jersey. Entre os fotogramas do filme, ti- seguidos. Vicary respondeu que não os tinha
nha inserido duas mensagens, “Beba Coca- anotado, mas que o faria em breve. Ele nunca o
-Cola” e “Coma pipocas”, em flashes de três fez. No final, em 1962, reconheceu a pantomi-
milésimos de segundo de duração. Isto, disse, ma numa entrevista para a revista Advertising
levou a um aumento de 58 % nas vendas de Age: “Não fizemos nenhuma pesquisa, exceto a
GETTY

26
que precisamos para registar uma patente”. A do vinho vendido era francês. Inversamente,
famosa experiência das pipocas nunca foi leva- se a música alemã estivesse a tocar, as vendas
da a cabo. Uma fake news da época, no sentido de vinho alemão subiriam para 73 %. Quan-
mais verdadeiro da palavra. do se perguntou aos clientes porque fizeram a
Mesmo assim, a ideia de publicidade sublimi- sua escolha, apenas um em cada sete admitiu
nar já se tinha instalado na mente da sociedade. que a música o tinha influenciado. Num ou-
Em meados da década de 1970, alguns autores tro estudo, foram dados três tipos de deter-
convenceram-nos de que havia mensagens es- gente para avaliação: um estava numa caixa
condidas que incitavam à excitação erótica em com uma cor predominantemente amarela,
praticamente todos os anúncios: a palavra sexo outro era azul e o terceiro tinha um fundo
escondida atrás de um cubo de gelo, uma som- azul salpicado de amarelo. A maioria optou
bra em forma de pénis... Algo que, claro, nos por este último. Era um detergente melhor?
influenciou inconscientemente. Uma década Não, porque todos os três tinham o mesmo
mais tarde, deu-se uma reviravolta e o sublimi- produto. Os sujeitos do estudo descreveram
nar começou a ser vendido como parte de no- longamente os méritos dos detergentes e fun-
vos métodos de auto-ajuda: aprender enquan- damentaram a sua escolha pelos seus méritos,
to se dorme, perder peso enquanto se conduz, mas ninguém mencionou o colorido da caixa.
ou enriquecer enquanto se ouvem as nossas
mensagens subliminares. A ideia subjacente ESTA INFLUÊNCIA INCONSCIENTE DE FAC-
era que, por baixo da música, tinham inserido TORES AMBIENTAIS NA tomada de decisões
mensagens de que não tínhamos conhecimen- encontra-se em todas as áreas da vida. Fré-
to. O ponto-chave era que eles afirmavam que déric Brochet da Universidade de Bordéus
tais mensagens eram marteladas no incons- demonstrou, numa experiência inteligente,
ciente de tal forma que éramos forçados a se- que os especialistas sommeliers cometem os
gui-las; era como se estivessem a programar a mesmos erros graves de perceção. Colocou 54
nossa mente inconsciente. peritos a provar dois vinhos, um branco e um
tinto. O que nenhum deles sabia era que o tin-
ESTA CRENÇA ESPALHOU-SE TÃO RAPIDA- to era um vinho branco tingido com corante
MENTE QUE, EM 1990, o Instituto Nacional de alimentar. Apesar das profundas diferenças
Saúde Mental dos EUA financiou um estudo em entre os dois, nenhum dos peritos se aper-
grande escala para testar a eficácia das grava- cebeu do engano e descreveu o tinto com os
ções de auto-ajuda para deixar de comer, fu- adjetivos habituais destinados a este tipo de
mar e outros comportamentos. Liderado por vinho.
Anthony Greenwald, Professor de Psicologia Mesmo Wall Street não é poupada ao efei-
na Universidade de Washington, o resultado foi to do inconsciente. Estudos demonstraram
inegável: não tinham qualquer efeito. que os corretores são relutantes em investir
Isto significa que o nosso inconsciente não em novas empresas com nomes difíceis de
influencia o nosso comportamento? Numero- pronunciar, e que os preços das ações são in-
sos estudos mostram que o faz. A prova disto fluenciados pelo facto de o dia estar ensola-
pode ser encontrada na experiência quotidia- rado ou nublado. Evidentemente, nenhuma
na. Se um carro derrapa ao nosso lado e vem destas experiências fala de hipnotismo ou
direito a nós, quem toma a decisão de saltar sedução subliminar, mas de como as visões,
fora do caminho? A nossa mente consciente? cheiros e sons a que estamos expostos todos
E quando decidimos confiar numa pessoa por os dias são capazes de ativar seletivamente as
causa daquele “algo” que brilha? Os palpites, motivações que já temos. O cérebro incons-
os impulsos, são decisões inconscientes com ciente é mais ativo, independente e decidido
as quais lidamos diariamente. do que se pensava.
Nos últimos anos, trabalhos científicos têm Toda a investigação atual leva-nos a uma
demonstrado que os factores ambientais de- conclusão surpreendente: pensamos que nos
sempenham um papel muito importante na conhecemos a nós próprios quando, na reali-
nossa tomada de decisões sem que o saibamos. dade, somos incapazes de compreender por-
Por exemplo, quando quatro vinhos franceses que fazemos o que fazemos.A questão não é
e quatro alemães foram colocados na garra- se o inconsciente influencia as nossas vidas,
feira de um supermercado inglês, verificou-se porque isso é claro, mas que papel desempe-
que se a música ambiente era francesa, 77% nha e até onde chega. e

27
8 A hipnose existe?
Quem não viu já um desses hipnotizadores de espetáculo
persuadir um pobre espetador convertido em cobaia a
comer uma cebola convencido de que se trata de uma
maçã saborosa?

Está comprovado que o poder da


autossugestão não conhece limites.
Mas resta provar se a hipnose induz
realmente estados de consciência
alterados.

SHUTTERSTOCK

28
P
odemos realmente perguntar-nos se
esta pessoa está hipnotizada ou sim-
plesmente “a alinhar” com o artis-
ta. A verdade é que, como comenta
Graham Wagstaff, Professor de Psi-
cologia na Universidade de Liverpool,Ingla-
terra, nenhum estado de consciência é neces-
sário para realizar estas e outras ações. Tudo
se explica se as três condições seguintes se
reunirem: uma, o desejo de agradar ao hipno-
tizador; duas, a convicção de que, o que está a
fazer é realmente inofensivo; e três, que se por
acaso acontecer alguma coisa, o mágico assu-
mirá todas as consequências.

SHUTTERSTOCK
O que não duvidamos, contudo, é que o
estado hipnótico em si existe. Agora, o que
é isso? Pode parecer mentira, mas após mais
de dois séculos de história ainda não existe cula: se alguém proferisse a palavra psico-
uma definição válida. Em 2015, a Sociedade logia, tossiam. Depois de os acordar e con-
Americana de Hipnose Psicológica da Asso- firmar que não tinham nenhuma recordação
ciação Americana de Psicologia definiu-a co- consciente dessa sugestão tola, viu que, de
mo um “estado de consciência que envolve facto, cada vez que alguém presente dizia
uma atenção focalizada e uma consciência “psicologia”, desatavam a tossir. Mas Spa-
periférica reduzida, caracterizada por uma nos tinha montado uma armadilha. No cam-
maior capacidade de resposta à sugestão”. No pus universitário, colocou um ajudante que
entanto, nem todos os psicólogos concordam deveria perguntar-lhes onde se encontrava
com esta definição, incluindo defensores e a faculdade de psicologia. Evidentemente,
críticos. os voluntários não sabiam desta combina-
ção. Ao saírem do local de ensaio, o ajudan-
EMBORA TODOS TENHAMOS MAIS OU ME- te entrou em ação. Nenhum dos voluntários
NOS UMA IMAGEM NA NOSSA mente do que tossiu perante a pergunta: não havia motivo
é o chamado transe hipnótico, não há forma para fazer espetáculo. A partir desta e de ou-
de o discernir objetivamente de qualquer ou- tras experiências, alguns cientistas concluem
tro estado, tal como o de sonolência. Ou se- que não há razão para acreditar que o transe
ja, ao medir qualquer constante fisiológica, hipnótico seja um estado de consciência real.
é impossível decidir se o sujeito está ou não Nem, definitivamente, que a hipnose exista.
hipnotizado.
A questão é tão complicada que um dos mais CONTUDO, HÁ OUTROS QUE DEFENDEM A
importantes hipnotizadores da primeira me- REALIDADE DO ESTADO hipnótico. Entre
tade do século XX, Frank A. Pattie, fazia os eles está Ernest Hilgard. Este médico ame-
seus colaboradores assinar uma declaração di- ricano tornou-se muito famoso nos anos 50
zendo: “Declaro solenemente que não estava a pelos seus estudos sobre o assunto, especial-
fingir ou a imitar o transe hipnótico, mas que mente aqueles que visavam reduzir a sensa-
estava verdadeiramente hipnotizado e que ção de dor - que é um dos campos de ação da
não me lembro dos acontecimentos dos testes hipnoterapia. Hilgard propôs a teoria de que
experimentais”. Foram feitos muitos esforços um “observador oculto” é criado na mente
para definir o que é o estado hipnótico, mas durante a hipnose. Deduziu das suas pesqui-
não há consenso sobre o assunto. sas que este observador oculto torna possí-
As lacunas do transe hipnótico foram cla- vel a uma pessoa em hipnose testemunhar a
ramente evidenciadas pelo psicólogo ameri- sua própria dor sem sentir conscientemente
cano Nicholas Spanos. Numa série de expe- qualquer sofrimento.
riências, demonstrou que isso de não se lem- Deveríamos atribuir o poder da hipnose ao
brar do que acontece quando se é hipnotiza- efeito placebo ou será que ele faz realmente
do é uma falácia. Para tal, induziu um grupo com que as pessoas entrem num estado de
de voluntários com uma sugestão algo ridí- consciência alterado? O tempo dirá. e

29
9 Quantas forças existem
na natureza?
A força da gravidade, a eletromagnética, a nuclear forte e a nuclear
fraca, são as quatro forças que conhecemos. Existe uma quinta?

A experiência ALICE utiliza o


Large Hadron Collider do CERN
para estudar as interações entre
partículas - imagem à direita -
em busca de um quinto estado
da matéria.

CERN

A
forma que a matéria tem de se re- alcance é restringido a distâncias do núcleo
lacionar, de interagir, é através atómico: a força nuclear forte, responsável por
daquilo a que normalmente cha- manter os prótões e os neutrões juntos dentro
mamos forças. O simples ato de be- do núcleo atómico, e a força nuclear fraca, que
ber um copo de água é um exemplo causa certos tipos de desintegração radioativa.
disso: podemos segurá-lo porque existe uma
repulsão eletrostática entre os eletrões da nossa EMBORA A MAIORIA DOS FÍSICOS PENSE QUE
mão e os do copo; e, levantando-o, estamos a SÓ EXISTEM ESTAS QUATRO FORÇAS, uma pe-
contrariar a ação de outra força que atua sobre quena percentagem de físicos acredita que nos
ele, a gravidade. escapou uma. A procura desta hipotética e es-
Como no caso anterior, todos os processos quiva quinta força tem estado a decorrer a duas
que observamos na nossa vida quotidiana são escalas completamente diferentes: a subatómi-
reduzidos à ação de duas forças fundamentais: ca e a cosmológica.
a gravidade e o eletromagnetismo. No entan- Em 2011, os físicos de Tevatron, o acelera-
to, não são as únicas. Existem outras duas, dor de partículas do Fermilab em Chicago,
das quais não temos experiência porque o seu afirmaram ter encontrado provas da existên-

30
Até agora, ainda não foram obtidas provas de
que se seja uma realidade.
Por outro lado, a existência de dimensões ex-
tra no universo também permite a entrada de
uma quinta força por entre as pregas da teo-
ria, de maneira que modificaria a gravidade a
pequenas distâncias. Para o descobrir, foram
realizadas várias experiências para determinar
se existe algum desvio à lei do inverso do qua-
drado da distância, que determina o alcance
da gravidade. Algumas experiências realizadas

DANIEL DOMINGUEZ / CERN


nas profundezas de uma mina na Austrália e
no gelo da Gronelândia encontraram pequenas
discrepâncias - na ordem de 2% - entre os va-
lores medidos e previstos, embora não sejam
conclusivas.
cia de uma partícula totalmente desconheci- Outros físicos, entretanto, estão à procura
da fora do modelo padrão: os bozões Z’, cuja de uma nova força em escalas cosmológicas. O
existência abriria a porta a uma nova força. astrofísico Bhuvnesh Jain, da Universidade da
Isto porque, de acordo com a física quântica, Pensilvânia, pensa que, ao olharmos mais pro-
quando duas partículas interagem, o que es- fundamente para o universo, as leis da gravita-
tão a fazer é trocar a partícula portadora da ção apontam para a existência de uma força que
força em jogo. No caso da força eletromag- opera à escala dos aglomerados de galáxias. Para
nética, trata-se de um fotão. Contudo, nem o este perito, ter descoberto a expansão acelerada
Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (CERN) do universo implica duas possibilidades. Primei-
na Suíça, nem o já mencionado Tevatron pu- ra, a relatividade geral de Einstein é correta em
deram confirmar posteriormente a sua exis- grandes escalas, mas existe uma forma estranha
tência, pelo que a quinta força regressou à de energia, a energia escura, que provoca esta
sua dimensão fantasmal. expansão. Segunda, não existe tal energia, mas a
relatividade geral não é correta em grandes esca-
MAS NÃO CAIU NO ESQUECIMENTO POR MUI- las, o que significa que existe uma quinta força a
TO TEMPO. Dois anos mais tarde, reapareceu operar a distâncias cosmológicas.
pela mão de uma das características que todas as
partículas subatómicas possuem: centrifugação. EM 2012, JAIN E COLEGAS reexaminaram a lu-
No início, os físicos imaginavam que se o eletrão minosidade de um tipo de estrelas chamadas
fosse uma pequena esfera carregada, então po- Cefeidas, que variam em brilho de forma tre-
deria rodar sobre si mesmo como os planetas fa- mendamente regular em vinte e cinco galáxias.
zem. Dito de uma forma bastante grosseira, isso Se houvesse uma hipotética quinta força, isto
é o spin. Mas aqui termina a analogia: enquanto implicaria a existência de diferenças inexplicá-
o spin de um planeta pode ter qualquer valor, o veis no período das cefeidas. O que encontra-
spin dos eletrões só pode ter dois, que são arbi- ram, contudo, foi uma perfeita concordância
trariamente atribuídos como +½ e -½. entre as observações e as previsões da relativi-
Esta propriedade misteriosa levou alguns dade geral.
físicos a pensar que a quinta força poderia ser Outros cientistas, como Jo Bovy da Univer-
algum tipo de interação de spin entre partí- sidade de Toronto (Canadá) e Glennys Farrar
culas subatómicas. Foi o que Larry Hunter do da Universidade de Nova Iorque (EUA), pro-
Amherst College (EUA) afirmou em 2013 quan- curam-na entre a matéria negra. O seu mo-
do analisou como a interação entre eletrões, delo prevê a existência de uma força de longo
protões e neutrões num laboratório poderia in- alcance, atrativa e não gravitacional, que não
teragir com a dos eletrões no interior do nosso afeta a matéria ordinária. Então como poderia
planeta. O problema experimental a ser discu- ser demonstrada? Por ser atrativa, forçaria a
tido é que, como esta nova força é muito fraca agregação da matéria escura, o que acabaria
- um milhão de vezes menor do que a gravida- por ter um efeito gravitacional na matéria or-
de - a sua interação com o campo magnético da dinária e aceleraria a formação de estruturas
Terra é difícil de medir. no universo. e

31
10 O que é o tempo?
Não pode ser visto nem tocado, mas é a quarta coordenada
necessária para determinar a posição de um objeto no espaço.

Segundo a física quântica,


a passagem do tempo nada
mais é do que uma coleção
de momentos que nos
produzem essa sensação.

SHUTTERSTOCK

T
empo é o que marca o relógio, mas tempo à mudança. A natureza dessa mudança,
isso não é dizer grande coisa. Se o seu significado, que em diferentes culturas e
refletirmos um pouco mais, vere- civilizações tem sido interpretado de formas
mos que por muito que tentemos muito diferentes, continua a ser uma das gran-
encontrar uma resposta, nenhu- des incógnitas da ciência.
ma nos satisfará completamente. O tempo é Na verdade, não temos instrumentos para
um conceito difuso e fugidio. É surpreendente medir a passagem do tempo. Utilizamos o mo-
que algo tão familiar seja tão difícil de definir. vimento para o calcular, que é um interme-
Apenas uma coisa é clara: associamos a palavra diário: não existem tempómetros. No entan-

32
to, o tempo passa e vemo-lo todos os dias no existe um relógio perfeito no mundo subató-
nosso relógio e nas páginas do calendário. (À mico: todos os relógios possíveis estão sujeitos
medida que o tempo passa / As time goes by) à chamada incerteza quântica, e isto torna o
era a canção que Humphrey Bogart pedia para seu funcionamento imprevisível - podem até
tocar no filme Casablanca (1946), mas não se correr para trás. De facto, a nível subatómico, o
pode colocar sob a lente de um microscópio ou tempo não faz sentido. Isto conduz a situações
fazer experiências com o tempo. Além disso, surpreendentes, tais como, por exemplo, que
está intimamente relacionado com outro con- poderíamos eliminar um acontecimento da
ceito igualmente elusivo, o de espaço. história simplesmente fazendo uma observa-
Tanto o espaço como o tempo surgiram há ção no presente. Será que nos damos conta do
cerca de 13,9 mil milhões de anos, o momen- que isto significaria na nossa vida quotidiana?
to mágico em que este universo surgiu devido Segundo Julian Barbour, físico britânico e
ao big bang. Antes disso, não havia absoluta- autor do livro The End of Time (1999), o tempo
mente nada. “O conceito de tempo começa desaparece se tivermos em conta a gravidade
com o big bang da mesma forma que a medi- a nível subatómico. Para este especialista, o
ção da latitude começa no Pólo Norte. E não se universo não é mais do que uma grande co-
pode ir mais para norte do que o Pólo Norte”, leção de momentos, e cada um deles é uma
diz o cosmólogo Kari Enqvist da Universidade coleção de coisas. À coleção de todos estes
de Helsínquia (Finlândia). momentos ele chama a pilha. Não vale a pe-
na querer ordenar temporariamente estes di-
PARA OS FÍSICOS, O TEMPO DESEMPENHA ferentes momentos, eles estão simplesmente
UM PAPEL CENTRAL no seu trabalho, embo- lá, ponto. Nada muda com o tempo, porque o
ra seja um assunto que a maioria deles tende a tempo não existe, é apenas uma ilusão criada
ignorar. Arthur Eddington, um dos astrofísicos pelo nosso cérebro.
mais importantes do início do século XX, colo-
cou-o claramente: “O importante sobre o tem- PARA COMPREENDER ISTO, IMAGINE QUE
po é que ele passe”. Esse sentimento continua a QUER VER O FILME “E Tudo o Vento Levou”
ser verdade hoje em dia. Para a física, o tempo num leitor de DVD. Mas está avariado e salta
é a quarta dimensão. Especificar a posição de aleatoriamente para trás e para a frente. Pri-
um objeto exige que se dêem as três coordena- meiro, está a ver a sequência onde a Scarlett
das espaciais e o tempo. Para nos encontrarmos O’Hara jura jamais voltar a passar fome, e de-
com um amigo, não só lhe dizemos onde, mas pois aparece a sequência de quando conhece
também quando. Rhett Butler. Para si, não faz sentido, mas
Ora bem, se durante séculos se acreditou os protagonistas não vêem qualquer proble-
que o tempo era algo absoluto, idêntico pa- ma com isso. Em cada sequência, eles fazem
ra todos os observadores do universo, em o que têm de fazer, e fazem-no sempre. Se
1905 tudo mudou. Nesse ano, Albert Einstein pudesse parar o filme e perguntar-lhes o que
descobriu que o tempo não está separado do estão a pensar naquele momento, eles res-
espaço, mas faz parte do que ele chamou de ponderiam exatamente o mesmo que se esti-
continuum espaço-tempo. Ele também mos- vesse a ver a história num DVD que funciona
trou que o fluxo do tempo depende da velo- sem problemas: em cada sequência, eles têm
cidade do observador. Por mais horrível que sempre as memórias que correspondem a es-
esta ideia nos possa parecer, ela tem sido sa sequência.
demonstrada numa multiplicidade de expe- Da mesma forma, cada momento no espa-
riências. Mas, felizmente, isto só acontece a ço-tempo é como cada uma das sequências do
velocidades próximas da velocidade da luz. filme. O que vemos em cada instante, que é o
Na nossa vida quotidiana, não o percebemos, agora, é um produto da nossa experiência nes-
e é por isso que é difícil sermos conscientes da se momento. A nossa vida, que no fundo nada
sua relatividade. mais é do que a nossa memória e recordações,
Há físicos como Julian Barbour, Stuart Kauf- é um conjunto de diapositivos que provocam
fmann e Lee Smolin que pensam que o tempo a sensação do passar do tempo que todos nós
não é um aspeto fundamental do mundo. Isto temos. Além disso, esta sensação não requer a
porque, na física quântica - que poderíamos existência de diapositivos anteriores, de mo-
dizer que é a física do muito pequeno - o tem- mentos anteriores: tudo está contido nesse
po é problemático. Em primeiro lugar, não diapositivo particular do universo. e

33
11 É possível viajar a uma
velocidade maior que a
da luz?
O neutrino e o efeito túnel da física quântica são dois
candidatos a bater o recorde de velocidade que ostenta o fotão.

n
ada pode viajar mais depressa do conseguimos diariamente nos nossos laborató-
que a luz. Esta frase, conhecida rios e que podemos encontrar no espaço, não é
por todos, é imprecisa. E por isso o único que pode existir. De facto, o vácuo não é
não é verdadeira. A prova de que o que todos imaginamos, ou seja, a ausência de
se pode viajar mais rapidamen- energia e de matéria. Se fizermos uso das leis da
te é a chamada radiação de Cherenkov, o brilho mecânica quântica, descobrimos que o vácuo
azulado que pode ser visto nas piscinas onde se tem uma energia conhecida, por exemplo, co-
armazena o combustível utilizado nas centrais mo energia de vácuo. Se conseguirmos de alguma
nucleares. Assim nomeada em honra do cien- forma baixá-la, podemos fazer com que a luz via-
tista russo Pavel Alekseyevich Cherenkov, que je mais depressa do que aqueles míticos 300.000
a caracterizou com precisão e recebeu o Prémio km/s. É o que acontece quando se colocam duas
Nobel em 1958, produz-se quando partículas folhas de metal, bem polidas e separadas pelo
carregadas atravesam um material - no caso das escasso diâmetro de um átomo. É conhecido

Luz azul resultante da radiação de Cherenkov,


dentro de um reator nuclear.

centrais nucleares é a água - a uma velocidade como o vácuo de Casimir, e a teoria prevê que,
superior à velocidade da luz nesse meio. É isto neste espaço ultra-diminuto, a luz deve viajar a
que é importante, e para que a frase no início des- maior velocidade. Mas ainda não temos a tecno-
te parágrafo esteja correta, precisamos de acres- logia para testar esta previsão.
centar uma palavra: nada pode viajar mais rápido
do que a luz no vácuo. Em nenhum momento se PARA COMPREENDER O IMPACTO DA INVES-
nega que se possa ir mais depressa do que a luz na TIGAÇÃO EM VELOCIDADES superlumínicas,
água, no ar, no vidro, no plástico... devemos saber que qualquer objeto com massa,
Embora esta afirmação seja tão válida agora quer sejamos nós, ou um eletrão, deve receber
como era quando Einstein a formulou há mais uma quantidade infinita de energia para atingir a
de um século, o problema reside no que a pa- velocidade da luz .
lavra vácuo significa, porque existem muitos Mais importante ainda, nenhuma informação
tipos de vácuo. O que conhecemos, aquele que pode viajar mais depressa do que a luz, porque

34
isso violaria o ominpresente princípio da cau- boratórios Bell em Nova Jersey, primeiro em 1970
salidade: a causa deve preceder o efeito. Isto é Goffrey Garrett e Dean McCumber, e depois em
evidente a partir de partículas hipotéticas que se 1982 Steven Chu e Stephen Wong, a trouxeram
imaginaram há mais de meio século. de novo à ribalta e demonstraram que podiam ser
Foi o físico americano Gerald Feinber quem obtidas empiricamente. Nas últimas décadas, os
postulou, em 1967, a existência de partículas efeitos superlumínicos assaltaram as páginas das
capazes de viajar mais depressa do que a veloci- revistas científicas graças a um fenómeno bas-
dade da luz, os taquiões. Quatro anos mais tar- tante fantasmal da teoria quântica: o efeito túnel.
de, Bendford, Book e Newcomb estudaram as Todos sabemos que, quando se atira uma bola por
consequências deste facto com base no chamado uma colina acima, se não se atirar com energia
paradoxo de Tolman, enunciado em 1917. Mos- suficiente, ela vai parar e voltar a descer.
tra que enviar sinais mais rapidamente do que Bem, de acordo com as regras da mecânica
a velocidade da luz significa comunicar com o quântica, nem sempre tem de acontecer: há uma
passado. Porquê? Imaginemos que jogamos com certa probabilidade de que a bola apareça do ou-
um frisbee. Vemos o nosso amigo fazer o movi- tro lado. Isto não significa que a bola possa apa-
mento de o lançar e, segundos depois, ainda nem recer dentro da colina, porque não há lugar onde
visualizamos a imagem do frisbee no ar em nossa possa estar. É antes como cavar um túnel para
direção e já o temos na nossa mão! Isto aconte- o outro lado, onde tem espaço para ficar. É esta
ce porque se move mais rapidamente que a luz, passagem que é verificada a uma velocidade su-
que é o que traz a sua imagem à nossa retina. A perior à da luz. E foi isso que o grupo alemão de
sequência de imagens que veríamos seria: pri- Günter Nimtz fez em 1994: transmitir a Sinfonia
meiro, obviamente, a que nos trazem os fotões nº 40 de Mozart através de uma barreira de 11,4
quando o frisbee está a 5 metros de nós, depois a cm de largura. De acordo com a sua interpreta-
de 15 metros, seguida das de 30, 45... até a última ção bastante controversa, isso foi feito a 4,7 vezes
ser o prato a sair da mão do nosso amigo. Por ou- a velocidade da luz.
tras palavras: o frisbee chega à nossa mão antes
de o vermos partir. POR OUTRO LADO, EM 2001, O FÍSICO CHINÊS NI
Isto, claro, implica graves paradoxos. Por GUANGJIONG da Universidade de Fudan (Xangai)
exemplo, imagine que tanto Cervantes como Jor- publicou vários artigos afirmando que o neutri-
ge Manrique possuíam um telefone taquionico. no poderia ser uma partícula superlumínica. Em
Cervantes escreve Dom Quixote, lê-o a Manri- 2007, a experiência americana MINOS, concebida
que, e Manrique copia-o e publica-o. Historica- para estudar a oscilação do neutrino enviando um
mente, Dom Quixote aparece muitos anos antes fluxo destas partículas do Fermilab em Chicago
do nascimento de Cervantes, mas o estilo, a lin- para Minnesotta, observou certos indícios de que
guagem é de Cervantes. Como pode um livro ser o chinês poderia estar certo, mas o erro na medi-
impresso antes de ser escrito? ção tornou impossível ter a certeza. Em 2011, os
italianos da experiência OPERA (Oscillation Pro-
OUTRO PARADOXO MAIS SUBTIL SURGE SE LI- ject with Emulsion-tRacking Apparatus) disse-
DARMOS COM EVENTOS INTERDEPENDENTES. ram que o tinham provado.
Suponhamos que Mamen e Esther herdaram tais Desta vez, foram enviados jatos de neutrinos
telefones, mas agora as mensagens chegam com das instalações do CERN em Genebra para os tú-
apenas uma hora de intervalo. Se uma mensagem neis do Gran Sasso no centro de Itália. Esta via-
for enviada às 15:00, será recebida às 14:00. Am- gem de 730 quilómetros foi feita em menos de 3
bas decidem que Mamen enviará uma mensagem milissegundos, pelo que se pode imaginar a pre-
às 15:00 se ela não tiver recebido a mensagem de cisão com que as medições devem ser feitas. Se-
Esther às 13:00. Por outro lado, Esther enviará a gundo a equipa italiana, os neutrinos chegaram
sua um pouco depois das 14:00, se tiver recebido 60 nanossegundos - 60 bilionésimos de segundo
a mensagem de Mamen às 14:00. Esther enviará a - mais cedo do que a luz o faria.
mensagem? Se Esther a enviará às 14:00 depende A comunidade científica, no entanto,recebeu
de Mamen enviar a sua às 15:00, mas -e aqui está estes resultados com cautela. Finalmente, em
a coisa paradoxal - Mamen fá-lo-á se não receber 2012, OPERA incluiu as novas fontes de erros
a mensagem de Esther. Por outras palavras, a co- nos seus cálculos e concluiu que a velocidade dos
municação terá lugar se não tiver lugar. neutrinos correspondia à velocidade da luz. Por-
A ideia de velocidades superlúmicas não era tanto, ainda não sabemos se a velocidade da luz é
mais do que uma diversão teórica até que, nos La- realmente imbatível. e
CERN

35
O cérebro tem dificuldade em
distinguir as ações que vêm da
intenção consciente daquelas
que são o resultado de agentes
externos.

SHUTTERSTOCK

12 Temos livre-arbítrio?
Decidir fazer algo de forma consciente nem sempre é a causa de
o fazermos. Por vezes, a ação vem antes da escolha.

T
ente não pensar num urso bran- O livre arbítrio, que é a relação entre os
co. Esforce-se. Não pense num urso nossos pensamentos e as nossas ações, é um
branco. Não o pode evitar, pois não? bem querido. Ao mesmo tempo, ironicamen-
Esta é a experiência a que Daniel te, é a primeira coisa que tentamos sacudir
Wegner, um psicólogo da Universi- para nos desculparmos de certos atos, obvia-
dade de Harvard (EUA), submeteu os seus alunos. mente negativos. É também curiosa a forma
Depois pediu-lhes para falarem durante cinco mi- como bradamos aos céus por qualquer alusão
nutos sobre qualquer coisa. “Mencionaram ime- ao determinismo biológico: não gostamos que
diatamente um urso branco”, disse Wegner. Uma nos digam o quanto do que somos e fazemos
experiência tão simples revela como é difícil fazer está gravado nos nossos genes. Mas aceitamos
o que escolhemos de forma consciente e livre. de bom grado o determinismo ambiental que

36
pulula por programas noticiosos, consul- que uma miragem criada pelo cérebro. Mark
tas de psicoterapeutas e salas de audiências. Hallett do Instituto Nacional das Doenças
Utilizamo-lo como justificação para tudo. Neurológicas dos EUA argumenta que “o livre
As nossas más ações são a causa de abuso in- arbítrio existe, mas é uma perceção, não uma
fantil, pornografia, álcool, drogas, a letra de força orientadora. As pessoas pensam que são
certas canções... livres. Mas quanto mais fundo se olha, mais se
A experiência do urso branco de Wegner, percebe que não temos esse livre arbítrio.
que foi repetida até com animais impossíveis, Investigadores como Wegner não estão in-
tais como um coelho verde, enquadra-se no teressados em decidir se existe ou não, mas no
que é conhecido como supressão do pensa- porquê de termos a certeza de que a temos. As
mento, ou deixar de ter na mente certas ideias. suas experiências dizem-lhe que os nossos cé-
Como técnica de controlo da mente, pode criar rebros estão programados para acreditar que
obsessões. Por exemplo, se passarmos o dia a se pensarmos em algo, esse algo acontecerá.
empurrar a ideia de comida para fora da nossa Dá-nos a sensação de que estamos no controlo
mente porque estamos a fazer uma dieta, não das nossas ações. Para ilustrar este ponto, ve-
deixaremos de pensar nisso. É muito pior do jamos o que aconteceu quando Wegner trou-
que tê-la na sua cabeça o dia todo. xe para o laboratório um número clássico dos
cómicos. Uma pessoa, em frente a um espe-
EM 1983, BENJAMIN LIBET E OS SEUS CO- lho, veste um traje, mas são os braços de ou-
LEGAS DA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA tra pessoa atrás dele que vestem as mangas. O
em São Francisco (EUA) realizaram um teste curioso é que, se ele usa auscultadores que lhe
peculiar. Os participantes foram convida- dizem um momento antes como os braços se
dos a observar um relógio cujo ponteiro da- vão mover, aparece uma sensação de contro-
va uma volta completa a cada 2,56 segundos. lo sobre eles. O cérebro assumia automatica-
Enquanto vigiavam o ponteiro, eram livres mente que estava a controlar os membros da
de flexionar o pulso sempre que quisessem. outra pessoa.
Tudo o que tinham de fazer era tomar nota
mentalmente da posição do ponteiro quando O QUE É QUE TODOS ESTES ESTUDOS NOS
decidiam mexer a mão. Por seu lado, Libet LEVAM A CONCLUIR? Que não há forma de
media com elétrodos a atividade elétrica nas distinguir as ações que respondem aos nossos
áreas motoras do cérebro e nos músculos en- desejos - por exemplo, procurar um biscoito
volvidos no movimento do pulso. Isto é, ele - daquelas que são uma ilusão. Se os nossos
podia determinar quando o cérebro enviava cérebros não são capazes de diferenciar entre
o sinal aos músculos para agir e quando os as duas, como podemos ter a certeza de que o
músculos eram acionados. livre arbítrio existe? Mais importante ainda,
Como esperado, o investigador observou será esta sensação de controlo sempre uma
que o desejo de mover a mão aparecia antes quimera? Não sabemos.
de o sujeito estar subjetivamente consciente Para o ilustrar, Wegner compara a escolha
de que tinha realizado o movimento. Contu- consciente com um mágico realizando o seu
do, a surpresa veio quando descobriu que a espetáculo. Aparentemente, os efeitos que o
preparação nervosa real para o movimento ilusionista executa são causados pelo movi-
aparecia entre 0,3 e 0,5 segundos antes de mento que percebemos das suas mãos, mas
o sujeito decidir conscientemente que queria não é isso que ocorre. Há algo mais que não
mexer a mão. vemos e que é a verdadeira causa. A moral da
A experiência de Libet foi o primeiro ataque história é que a decisão consciente de fazer al-
à ideia do livre arbítrio. Outros testes desde go não tem de ser a causa por que o fazemos.
então mostraram que o cérebro está à frente Claro que estes resultados não servem pa-
da nossa intenção consciente na altura de rea- ra justificar o nosso comportamento ou para
lizar um movimento. Por outras palavras, par- pensar que, como não há livre arbítrio, não
te antes de ouvir o tiro de partida. Além disso, sou responsável pelo que faço. O problema
o trabalho de Libet revela que acreditamos ter fundamental reside, como salienta o psicólogo
começado a mover a nossa mão 86 milissegun- Steven Pinker, no facto de acabarmos por con-
dos antes que isso realmente aconteça. fundir explicação com exculpação. Mas sabe o
Muitos cientistas pensam que esta crença de que é curioso? Seja o livre arbítrio uma ilusão
que somos livres de escolher nada mais é do ou não, tudo continuaria igual. e

37
13 A “conjetura de
Riemann” está certa?
O matemático alemão formulou uma hipótese para explicar a dis-
tribuição dos números primos na sequência dos números naturais.

SHUTTERSTOCK

E
m agosto de 1900, realizou-se o Segun- bert tem marcado a matemática desde então. O
do Congresso Internacional de Mate- matemático alemão Hermann Weyl disse sobre
máticos no Collège de France em Paris. eles: “Qualquer um que resolva apenas um da
Entre os participantes estava o alemão lista juntar-se-á ao grupo de honra das mate-
David Hilbert, talvez o matemático mais máticas”. De todos, o mais famoso é a chamada
brilhante do século XX, que deu uma palestra in- conjetura de Riemann.
titulada “Os problemas da matemática”. Hilbert
começou por recordar os dois problemas mais ESTE ENIGMA MATEMÁTICO FORMULADO EM
famosos ainda por resolver: o último teorema de 1859 PELO ALEMÃO Bernhard Riemann - na
Fermat - resolvido pelo britânico Andrew Wiles imagem à direita - tem a ver com os números,
em 1999 - e o conhecido problema dos três cor- em particular com números primos, aqueles
pos - que continua por resolver e que possivel- que só são divisíveis exatamente por si mesmos
mente nunca o será. De seguida enunciou outros e por um: 2, 3, 5, 7, 11.... Por outras palavras, não
vinte e três para os quais também não se conhe- podem ser expressos como o produto de outros
cia nenhuma solução, com o louvável objetivo dois mais pequenos.
de inspirar as gerações futuras de matemáticos. Os números primos são bastante peculiares, e
E não falhou. Embora dezasseis permaneçam muitos dos puzzles matemáticos que perduram
por resolver, a chamada lista de êxitos de Hil- hoje em dia têm a ver com eles.Por exemplo, a

38
SMITHSONIAN LIBRARY
conjetura de Goldbach, enunciada pela primei- o nono em 1990, num
ra vez a 7 de junho de 1742 numa carta que o desafio que exigiu
matemático a quem deve o seu nome dirigiu a várias semanas de
um dos matemáticos mais brilhantes da histó- colaboração entre du-
ria, Leonhard Euler. A teoria é que “qualquer zentos matemáticos
número inteiro maior que cinco pode ser escri- e um milhar de com-
to como a soma de três números primos”. Esta putadores em todo o
conjetura é considerada não só um dos mais mundo.
difíceis problemas não resolvidos da teoria dos Como podemos ver,
números, mas de todas as matemáticas. Euler a procura de números primos cada vez maio-
reformulou-a afirmando que todos os números res é um dos grandes desafios matemáticos. O
pares maiores que dois podem ser expressos último primo, o maior conhecido até à data,
como uma soma de dois primos. Mas será ver- foi encontrado a 7 de dezembro de 2018 e tem
dade? Ainda ninguém o conseguiu provar, em- 23249425 dígitos: é 282589933 - 1. Foi descober-
bora Faber & Faber tenha oferecido um prémio to por Patrick Laroche, um cientista informático
de um milhão de dólares a qualquer pessoa que da Florida que pertence ao grupo GIMPS (Great
pudesse provar a hipótese entre 20 de março de Internet Mersenne Prime Number Search), que
2000 e a mesma data em 2002 (em 1977, o rus- tem vindo a fazer exatamente isso desde 1996:
so Henry Pogorzelski afirmou ter tido sucesso, procurar números primos do estilo 2 elevado a
mas o seu otimismo não foi partilhado pelo res- um número menos 1.
to dos seus colegas). A procura do seguinte não pára. E não só por
Aparentemente, os números primos são ape- causa da glória, mas também porque a Funda-
nas de interesse para um punhado de loucos ção Fronteiras Eletrónicas está a oferecer uma
matemáticos. Certamente que a única memó- recompensa de 250.000 dólares a qualquer pes-
ria que temos deles é dos nossos dias de escola, soa que encontre o primeiro número primo com
quando nos foram dados exercícios de fatores. um bilião de dígitos.
Por exemplo, 15 é o produto de 3 e 5, que são pri-
mos. Fatorizar os números é uma tarefa árdua e, AGORA PODEMOS PERGUNTAR, COMO FA-
se não fossem essas regras que nos ensinaram na ZEM MUITOS ESTUDANTES DO ENSINO SE-
escola, seria bastante difícil atingir o nosso ob- CUNDÁRIO, para que serve perder tempo com
jetivo. O problema surge quando o número a ter estas coisas. A razão é simples: se alguém des-
em conta é grande, tal como 4294967297. Aqui cobre uma forma rápida de fatorizar grandes
todas as regras que nos foram ensinadas falham números, pode contornar os controlos de se-
e se quisermos fatorizá-lo, temos de começar a gurança dos bancos, cartões de crédito, minis-
fazer testes. Com um pouco de sorte poderemos térios da defesa... Para manter os seus dados
descobrir que este número é o produto de 641 escondidos dos olhos curiosos, encriptam-nos
vezes 6700417, que são primos. com códigos baseados nos fatores primos de
grandes números.
PODERÁ PERGUNTAR-SE POR QUE RAZÃO E aqui chegamos à conjetura de Riemann e
ESCOLHEMOS ESTE NÚMERO. Porque este é à sua importância tanto para a matemática
o quinto número de Fermat, um matemático pura como para a matemática aplicada. O ale-
do século XVII que inventou uma série muito mão perguntou se a distribuição dos núme-
simples que é construída da seguinte forma: pe- ros primos ao longo da sequência de números
ga-se no 2 e eleva-se a 2 elevado a um número naturais seguia algum padrão. Dito de outro
natural. No nosso caso, como é o quinto número modo: existe alguma forma de prever onde
de Fermat, elevámo-lo à quinta. E no final adi- vamos encontrar um número primo? A aposta
cionamos um. O nosso quinto número é, por- que Riemann fez há 145 anos é que a sua fre-
tanto, 2 elevado a 2 elevado a 5 mais 1; ou, o que quência está relacionada com todas as soluções
é o mesmo, 2 elevado a 32 e o que resulta mais 1. interessantes de uma elaborada função mate-
O curioso nesta série de números gigantescos é mática que foi então chamada função zeta de
que Fermat pensou que se tratava de uma série Riemann. Até agora, não foi provado que esteja
de números primos. Mas ele estava enganado: certa, o que é particularmente perturbador,
em 1732, o genial Euler fatorizou o quinto nú- uma vez que um número considerável de teo-
mero. Pouco a pouco, os seguintes números fo- remas matemáticos importantes dependem da
ram sendo fatorizados: o oitavo caiu em 1980 e veracidade desta hipótese. e

39
40
O
ser humano é um ser frágil. Não temos plena consciência dos vários pe-
rigos à espreita em cada esquina; alguns são conhecidos, outros não.
Prova disso está na pandemia de coronavírus. A medicina científica
tem uma história curta, de pouco mais de século e meio de existência,
mas, graças a ela, em menos de cinquenta anos conseguimos dobrar a
expetativa de vida da humanidade. Algo que não tinha sido alcançado em três
mil anos de civilização.
Não é de admirar que médicos e investigadores enfrentem mistérios todos os
dias. Mistérios que felizmente e com muito trabalho vão sendo resolvidos.
Um exemplo disso é o que aconteceu em Berlim em 24 de março de 1882. Nu-
ma pequena sala, foi realizada uma importante reunião da Sociedade de Fisiolo-
gia que contou com a presença dos mais ilustres cientistas alemães que lutavam
contra doenças. Entre os presentes estava o mais eminente deles: Rudolph Vir-
chow, o pai da patologia moderna.
Naquela sala, todos esperavam a dissertação de um homenzinho enrugado e
de óculos que, com um passo cansado, se aproximou do pódio. De lá, leu com
voz trémula as notas que havia rabiscado. Com admirável modéstia, o médico e
microbiologista alemão Robert Koch contou ao brilhante público uma história
simples, a da descoberta de um micróbio que naquela época matava uma pes-
soa em cada sete. Ele não era um grande orador, capaz de flexionar sua voz no
momento certo, mas ali afirmou que os médicos de todo o mundo poderiam
conhecer todos os hábitos do bacilo da tuberculose, o mais pequeno e mais sel-
vagem inimigo que o ser humano tinha então.
Ao terminar, esse pequeno grande homem, que começou a interessar-se pelo
mundo de micróbios porque sua esposa lhe deu no seu vigésimo oitavo aniver-
sário um microscópio, sentou-se à espera do inevitável debate. De facto, espe-
rava um duro ataque: o grande Virchow duvidava que as bactérias fossem cau-
sadoras de doenças.
No entanto, o impensável aconteceu. Ninguém se levantou para discutir as
suas descobertas.
Nenhuma palavra foi ouvida. Os olhos daqueles ali reunidos voltaram-se para
Virchow, o kaiser da ciência alemã, aquele que com um simples franzir a testa
era capaz de arruinar qualquer ideia sobre doenças. Mas Virchow não disse na-
da. Simplesmente levantou-se colocou o chapéu e saiu.
Koch tinha resolvido um mistério e demosntrado que os micróbios são os nos-
sos mais mortais inimigos.

41
14 Porque é que uma mulher
dormiu durante 32 anos?
Karolina Olsson foi possivelmente a pessoa que mais tempo viveu em
estado de hibernação. E acordou sem quaisquer efeitos secundários!

A
família Olsson vivia em Oknö, dor de dentes. Os seus pais, que partilhavam
uma ilha perto da cidade costeira a velha crença de que se os dentes doem é por
de Mönsterås, no sudeste da Sué- causa de uma maldição de bruxa, mandaram-
cia. O dia 18 de fevereiro de 1876 -na para a cama. Essa seria a última vez que ve-
mudou as suas vidas para sempre. riam a sua filha acordada.
Um vizinho acabara de trazer para casa a sua
filha de catorze anos, Karolina, com um golpe O PAI DE KAROLINA ERA PESCADOR E NÃO GA-
na cabeça e sangrando profusamente. Nin- NHAVA DINHEIRO SUFICIENTE para pagar um
guém sabia o que tinha acontecido, mas todos médico, por isso ele e a sua mulher foram à par-
assumiram que ela tinha escorregado no chão teira da aldeia e aos seus amigos mais próximos
gelado. A mãe limpou a ferida da sua filha com pedir conselhos. A criança não acordava e, se eles
um pano embebido em água quente. Felizmen- não fizessem algo, ela morreria por não comer. A
te, foi apenas um susto. A rapariga tinha fome sua mãe começou, com muito cuidado, a alimen-
e sentou-se com os pais e os quatro irmãos para tá-la com dois copos de leite adoçado por dia. O
comer sopa, arenque e pão. Os dias seguintes tempo passou e os vizinhos, entristecidos, deci-
passaram normalmente e a família esqueceu-se diram pagar a visita do médico, que não a conse-
do incidente. Mas na noite de 22 de fevereiro, guiu acordar, nem sacudindo-a, nem picando-a
Karolina começou a queixar-se de uma forte com alfinetes nas costas das mãos, nem colocan-

O estado vegetativo
persistente é uma perturbação
neuropsiquiátrica em que a
pessoa não mostra sinais de
consciência, não interage e
não reage a estímulos.
SHUTTERSTOCK

42
do-lhe sais no nariz... O médico concluiu que ela
Karolina adormeceu
estava em coma e deu à Sra. Olsson um frasco de
quando criança, e
tónico para que não enfraquecesse. Recusou o
quando acordou, já
pagamento da visita e partiu. era uma mulher de
Durante um ano inteiro, o médico visitou-a meia-idade.
para verificar o seu estado, que não se alterou,
e diz-se que ele costumava trazer-lhe um tó-
nico ou um caldo. Algo tinha de ser feito e ele
escreveu ao editor do Scandinavian Journal of
Medicine para descrever o caso e pedir ajuda. A
resposta foi quase imediata: a casa dos Olsson
foi visitada por uma multidão de médicos que,
para sua surpresa, descobriram que o cabelo
e as unhas dos pés e das mãos da rapariga não

ARCHIVO TK
estavam a crescer novamente. A família conta-
va-lhes que por vezes ela sentava-se na cama
com os olhos fechados, murmurando orações
que tinha aprendido na escola. irmãos que ainda estavam vivos chegaram, não
os reconheceu. Estava muito magra e pálida e,
AO LONGO DOS ANOS, KAROLINA IA-SE TOR- durante os primeiros dias, a luz incomodava-a.
NANDO MULHER, mas não acordava. Em 1892, Também estava fraca e tinha dificuldade em fa-
foi visitada por Johan Emil Almbladh, um ci- lar, embora soubesse ler e escrever, e lembra-
rurgião que tinha acabado de se instalar em va-se de tudo o que tinha aprendido antes de
Mönsterås nesse ano. Diagnosticou-lhe histe- ficar letárgica.
ria e ela foi hospitalizada na cidade vizinha de
Oskarshamn, onde foi submetida a uma tera- A NOTÍCIA ESPALHOU-SE COMO PÓLVORA, E
pia eletroconvulsiva. Não conseguindo qual- JORNALISTAS DE TODO O MUNDO vieram a
quer resultado, deram-lhe alta a 2 de agosto Oknö para a entrevistar. Aqueles que a visita-
com um diagnóstico de demência paralítica, ram diziam que, apesar de ter 45 anos de idade,
uma doença neuropsiquiátrica grave associa- parecia ter vinte e poucos. A pedido do governo,
da à sífilis. Era evidente que eles não sabiam Karolina submeteu-se a uma série de testes psi-
o que se passava com esta mulher que estava quiátricos em Estocolmo. Os médicos decidiram
a dormir há 16 anos. Nenhum outro médico a que ela estava em plena posse das suas faculda-
examinou novamente. des mentais. Foi “brilhante e alegre” nas suas
Em 1904, a sua mãe morreu. O pai era dema- respostas às perguntas dos investigadores. Ape-
siado velho para tomar conta da filha, por isso nas uma questão parecia incomodá-la: quando
as vizinhas e uma empregada tomaram conta lhe perguntavam se se lembrava de algum sonho
dela e davam-lhe dois copos de leite todos os do seu tempo em coma, ela ficava taciturna e re-
dias. Após a morte do seu irmão em 1907, Karo- cusava-se a responder.
lina começou a chorar de forma histérica, mas Em 1912, dois anos após ter conhecido Karo-
permaneceu no suposto coma. E na noite de 3 lina, o psiquiatra Harald Frödeström publicou
de abril de 1908, após 32 anos e 42 dias a dor- o seu relatório Soverskan på Oknö (A Ador-
mir, ela acordou. A criada encontrou-a a cho- mecida de Oknö), no qual excluía a hiberna-
rar e a dar pontapés no chão. Quando os dois ção. Suspeitava que tinha sofrido algum tipo de
psicose desencadeada por um acontecimento
traumático, o que a levou a fugir do mundo.
Frödeström arriscou a que a sua mãe a teria
protegido e apoiado nesta decisão. Para o espe-
cialista, era evidente que algo muito grave lhe
devia ter acontecido naquele distante 18 de fe-
vereiro de 1876.
Karolina morreu de enfarte em 1950, aos 88
anos de idade.As pessoas que a conheciam di-
ziam que ela era uma trabalhadora esforçada e
ARCHIVO TK

parecia satisfeita com a sua vida. e

43
De acordo com vários estudos,
o efeito placebo leva à
melhoria dos pacientes em
cerca de 30% dos casos.

15 Como funciona o
placebo?
É possível tomar um composto que não contenha quaisquer ingredien-
tes ativos e ainda assim aliviar o paciente. A chave está no cérebro.

44
Q
uando os Aliados lutavam para
libertar a Europa do domínio
nazi durante a Segunda Guerra
Mundial, a procura de morfina
nos hospitais de campanha era
grande. Era especialmente escassa quando os
combates envolviam muitas baixas. Por vezes
era mesmo necessário operar sem anestesia.
Numa dessas ocasiões, o anestesista ameri-
cano Henry K. Beecher - imagem abaixo - da
Harvard Medical School (EUA) estava prestes
a operar num soldado que tinha feridas mui-
to graves. Então aconteceu algo incrível: uma
das enfermeiras injetou-lhe uma solução sa-
lina e, para surpresa de Beecher, o soldado
acalmou-se imediatamente. Não só não sentiu
quase nenhuma dor durante a cirurgia, como
também não teve problemas cardiovasculares.
Aparentemente, a água salgada era um poten-
te anestésico.
Beecher usava este novo truque sempre que
ficava sem morfina, e funcionava. Termina-
da a guerra e de regresso aos Estados Unidos,
Bleecher dedicou-se à investigação do efeito
placebo. O resultado deste trabalho foi The
Powerful Placebo, que publicou em 1955 e
que estava destinado a tornar-se um clássico,
uma vez que, entre outras coisas, apontava
para a importância do placebo na investiga-
ção médica.

BLEECHER NÃO FOI O PRIMEIRO A UTILIZAR O


TERMO ‘PLACEBO’. Este foi cunhado por T. C.
Graves num artigo no The Lancet em 1920 inti-
tulado Commentary on a Case of Hystero-Epi-
lepsy with Delayed Puberty: Treated with Tes-
ticular Extract. O que tornou essencial a contri-
buição de Bleecher é que ele chamou a atenção
para a necessidade de os ensaios clínicos serem
SHUTTERSTOCK

controlados por placebo utilizando a técnica de


dupla ocultação. Hoje em dia, este é o protocolo
padrão ao testar a eficácia de um medicamento
ou vacina. Os voluntários são divididos em dois
grupos, sendo que um grupo recebe a droga e o
outro o placebo. O ponto-chave - e onde Blee-
cher foi brilhante - é que nem o paciente sabe
o que está a tomar nem o médico sabe qual das
duas opções está a ministrar.
Os investigadores estão agora divididos na
sua avaliação do efeito placebo. Para alguns,
é quase todo-poderoso e pode ser aplicado a
praticamente qualquer doença. Outros, po-
rém, impõem-lhe certos limites. Certamente,
tem sido observado que a sua administração
ARCHIVO TK

pode fazer com que um paciente melhore de

45
Nos estudos de eficácia
dos medicamentos, o
grupo de controlo recebe
geralmente um placebo.

SHUTTERSTOCK

uma certa doença, mas será que esta melhoria de pacientes com este problema, um recebe
se deve realmente ao efeito de autossugestão? um medicamento, outro um placebo enquanto
Não deveriam ser eliminadas outras causas um terceiro não recebe nada, os dois primeiros
possíveis, tais como a remissão espontânea, grupos mostram uma evolução mais favorável
flutuação natural dos sintomas, etc.? Para os do que o último.
céticos, a única forma de determinar a verda-
deira eficácia dos placebos - é geralmente acei- TODAS AS QUESTÕES LEVANTADAS PELO
te ser de 30% - é compará-la com a ausência EFEITO PLACEBO PODERIAM SER respondi-
de tratamento. Mas, é claro, fazer tais ensaios das se os gatilhos que o põem em movimen-
levanta um grave problema ético: não se pode to fossem conhecidos. Infelizmente, estes
deixar de cuidar de uma pessoa doente. continuam a ser um mistério para os inves-
Geralmente aceita-se que a sua eficácia está tigadores. Aparentemente os principais me-
provada no tratamento da dor. Numerosos es- canismos envolvidos, tais como a libertação
tudos mostram que quando se tem três grupos de opiáceos dentro do corpo, atuam como re-

46
Alguns remédios sem
validade científica parecem
aliviar a dor, não porque
funcionam, mas por causa do
efeito placebo.

AGE

sultado da perturbação de um fenómeno bio- os quais se diz atuar. No entanto, acredita-se


lógico complexo conhecido como a resposta que deve haver algo em comum a todos eles,
de fase aguda ou, mais popularmente, como algum tipo de componente oculto que impul-
inflamação. siona a resposta de melhoria e que, sem ele,
Durante séculos, a medicina chamou aos esta não ocorreria.
quatro sinais de inflamação tumor, ruboriza- Dizer que é a libertação de endorfinas não
ção, calor e dor. Se acrescentarmos as mudan- resolve nada, porque para que isso aconteça
ças psicológicas que ocorrem no paciente, tais algo tem de dar a ordem. Além disso, a liber-
como letargia, apatia, perda de apetite ou au- tação de neurotransmissores no corpo é pro-
mento da sensibilidade à dor, temos a resposta vavelmente o último elo de uma cadeia muito
de fase aguda. Mas quais são os mecanismos longa que começa no cérebro. Até aqui, todos
que a interrompem, e como resposta a quê? os investigadores estão de acordo. Onde a dis-
As causas que podem desencadear o efeito cussão começa é quando se lhes pergunta qual
placebo são tão diversas como os males sobre o processo cerebral envolvido. e

47
16 De onde veio a sífilis?
A devastadora doença sexualmente transmissível apareceu subi-
tamente na Europa e no resto do mundo no final do século XV.

N
a década de 1490, uma doença grande, especialmente à noite, que esta doença
venérea altamente contagiosa é ainda mais horrível do que a incurável lepra”.
alastrou nos portos e cidades de Em 1539, o espanhol Ruy Díaz de Isla, cirurgião
Espanha, sul de França e Itália, do Hospital de Todos os Santos de Lisboa (Por-
acabando por se espalhar pa- tugal), alegou que a nova doença tinha causado
ra Viena e norte, para além de Leipzig, Bergen tantos danos que não havia uma aldeia europeia
e Aberdeen. Em 1497, Alexandre Benedetto de de cem habitantes onde dez deles não tenham
Veneza, médico do Papa Alexandre VI, obser- morrido da doença. Mesmo que esta fosse uma
vou vítimas que tinham perdido olhos, narizes, observação exagerada, ela reflete a impotência
mãos e pés. Segundo Benedetto, “o corpo inteiro deste médico face a uma doença que excedia em
é tão repugnante de olhar e o sofrimento é tão muito todo o seu conhecimento.

Treponema pallidum é a bactéria que


causa a sífilis, com quase 5.000 infeções
em 2017 em Espanha. As úlceras da boca -
imagem à direita - são um sintoma típico.

SHUTTERSTOCK

Nas fases iniciais da epidemia, os médicos nada. Niccolo Leoniceno, médico e botânico
voltaram-se para onde sempre tinham ido em italiano e o mais importante professor de me-
busca de soluções, para as fontes clássicas, es- dicina da Universidade de Ferrara, expressou
perando encontrar alguma descrição que cor- a sua perplexidade quando escreveu: “Quan-
respondesse ao que estavam a ver. Não havia do considero que a humanidade tem a mesma

48
dizia que havia mais prostitutas do que padres.
Depois lançou-se sobre Nápoles, que não ofere-
ceu resistência e houve, para o dizer de forma
suave, muita confraternização entre soldados e
raparigas locais. Depois disso, os mercenários
dirigiram-se para norte, onde travaram uma
batalha contra Veneza em Fornovo, a sul de
Parma, que terminou num impasse. O exército
francês foi dissolvido e os soldados regressaram
à vida civil, especialmente ao norte dos Alpes.
Assim,no final do séculoXV, a chamada mor-
bus gallicus, “mal francês”, propagou-se rapi-
damente, primeiro em Itália e depois por toda
a Europa .
Acrescente-se a isto as viagens de marinhei-
ros e comerciantes na época das explorações, e
a sífilis acabou por se instalar ao longo da costa
mediterrânica de África, para depois saltar pa-
SHUTTERSTOCK

ra a Índia, Ceilão e península malaia. Em 1504,


apareceu em Cantão (China), onde foi chamada
a chaga da cereja. Desde então, não deixou de
natureza, nasce sob o mesmo céu [...], devo viver entre nós.
chegar à conclusão de que sempre estivemos
sujeitos às mesmas doenças [...]. Não posso DETERMINAR A ORIGEM DA SÍFILIS É COM-
acreditar que esta doença tenha agora nascido PLICADO, sendo ainda mais difícil pelo facto
de repente e que só tenha infetado a nossa épo- de existirem quatro doenças semelhantes cau-
ca e nenhuma das anteriores”. sadas pelo mesmo género de bactérias, a Tre-
ponema. Em 1905, Fritz Schaudinn e os seus
O COMPORTAMENTO DA SÍFILIS, NO ENTAN- colegas em Berlim descobriram a causa da sí-
TO, INDICA QUE ERA TOTALMENTE NOVA. Nas filis moderna, Treponema pallidum pallidum.
universidades italianas, onde a astrologia era Pouco tempo depois, Aldo Castellani identi-
uma disciplina académica, procuraram uma ficou Treponema pallidum pertenue como a
explicação no céu e encontraram-na: derivava causa de bouba, a mais antiga de todas as tre-
da conjunção de Júpiter, Saturno e Marte que ponematoses - foram encontradas provas des-
ocorreu em 1484. Esta ideia depressa se tornou ta infeção em esqueletos de Homo erectus com
popular no resto da Europa, como demonstra 1,6 milhões de anos de idade. Mais tarde, F.
um desenho de Albretch Dürer em 1496. Ou- León Blanco fez o mesmo com o agente pato-
tros viram uma ligação clara entre ela e “gra- génico da pinta, uma doença americana muito
tificação sexual lasciva ou impura”. A partir de antiga, o Treponema carateum. Foi também
1526, começou a ouvir-se que a doença se en- descoberto que existia uma variante não vené-
contrava entre os nativos da La Española, e que rea, bejel ou sífilis endémica, que afetava seres
foi trazida para a Europa pelos marinheiros de humanos em diferentes locais e em diferentes
Colombo. Esta ideia de uma doença importada momentos, desde a Croácia ao Botswana, e
ficou gravada na mente dos europeus. Em 1748, que é causada pela Treponema pallidum en-
Montesquieu, no seu livro O Espírito das Leis, demicus. Por outras palavras, em 1910, qua-
assumiu que tinha vindo da América e que ex- tro doenças treponêmicas diferentes foram
terminou a maior parte das grandes famílias da reconhecidas, embora apenas uma delas seja
Europa. transmitida por contacto sexual. Qual delas é
Outros disseram que a doença tinha come- derivada de qual, ou são todas diferentes?
çado entre os 30.000 soldados, na sua maioria A investigação moderna ainda não foi capaz
mercenários, que em agosto de 1494 invadiram de dar uma resposta à origem da sífilis venérea.
a Itália sob o comando do rei francês Carlos VIII. As hipóteses explicativas permanecem as mes-
Esse exército, que se deslocou rapidamente de mas de há quinhentos anos: ou veio do Novo
Milão para Nápoles, tinha estado estacionado Mundo ou derivou de uma infeção pré-existen-
durante algumas semanas em Roma, onde se te na Europa devido a uma mutação. e

49
17 Porque é que Gloria
Ramirez estava tóxica?
Uma reação química inesperada no sangue desta paciente quando en-
trou em contacto com a temperatura exterior pode ter sido a causa.

E
ram 20h15 do dia 19 de fevereiro de 1994 ventilação manual, uma bolsa de borracha do ta-
quando uma mulher de 31 anos, vestida manho de uma bola de futebol presa a uma más-
com calções e uma T-shirt, chegou às cara de plástico que se coloca sobre o nariz e a boca
urgências do Riverside General Hospital do paciente. Mas a mulher não reagia. Arranca-
na Califórnia (EUA). O seu estado pa- ram-lhe a camisa e prenderam-lhe os elétrodos; o
recia ser muito grave e, embora estivesse cons- seu coração tinha de ser desfibrilado. Nessa altura,
ciente, balbuciava em resposta às perguntas dos alguns membros da equipa de saúde observaram
médicos. Respirava agitadamente, com exala- um brilho oleoso na sua pele e notaram um cheiro
ções curtas e o seu coração batia muito depressa: a alho que pensavam provir do seu hálito.
estava na fase avançada de um cancro do colo do
útero que tinha sido diagnosticado seis semanas QUANDO UMA ENFERMEIRA INSERIU UM CA-
antes. TETER PARA TIRAR SANGUE para uma análise,
O pessoal médico aplicou o protocolo padrão e achou que lhe cheirava a algo estranho. Pediu
injetou-a com uma série de drogas de ação rápida: a uma colega que cheirasse a seringa e a área do
Valium, Versed e Ativan para a sedar, e agentes co- braço para tentar perceber. Pensou que poderia
mo lidocaína e bretílio para abrandar o seu ritmo ser por causa da quimioterapia, pois por vezes o
cardíaco. Entretanto, uma enfermeira bombea- sangue cheira mal devido à medicação. Mas não,
va ar para os pulmões através de uma unidade de o cheiro era de amoníaco. Quando passou o frasco

SHUTTERSTOCK

Pare aí mesmo! Se o seu corpo emitir sulfato dimetílico


devido a uma reação corporal, pode tornar-se uma
bomba tóxica para aqueles que o rodeiam.

50
de sangue a uma médica residente, viu algumas
partículas cor de cânhamo a flutuar nele e mos-
trou-o ao médico responsável da sala de urgên-
cias. Algo estava errado e não tinha nada a ver
com o coração do paciente.
Depois, tudo se descontrolou.
Uma das enfermeiras começou a tropeçar e,
felizmente, conseguiram apanhá-la antes que ela
desmaiasse. A médica residente saiu da sala de

ARCHIVO TK
urgências, sentou-se na mesa das enfermeiras e
antes de poder dizer alguma coisa, caiu no chão.
Outra enfermeira começou a ter dificuldade em
respirar e outra desmaiou; quando acordou, não (DMSO), uma substância obtida como subpro-
conseguia controlar os braços ou as pernas. Uma duto quando a madeira é transformada em pas-
médica gritou: “Fechem as portas, não saiam!” ta de celulose e depois utilizada como remédio
enquanto uma colega também desmaiava. Al- caseiro para a dor - aqueles que a utilizam di-
guns minutos mais tarde, nove outros médicos zem que tem um odor a alho. Quando lhe foi
começaram a dizer que se sentiam tontos. Algo administrado oxigénio, este combinou-se com
de estranho se passava e todos os pacientes foram o DMSO que tinha sido absorvido pelo seu or-
obrigados a ser evacuados para o parque de esta- ganismo e transformado em dimetilsulfato, e
cionamento no exterior do hospital. depois em dimetilsulfona, um potente agente
tóxico. Então porque não morreu Gloria, se es-
A PEQUENA EQUIPA QUE FICOU DE PÉ TEN- tava no seu sangue? Porque, à temperatura do
TAVA SALVAR A VIDA DA MULHER. Às 20h50, corpo humano, o dimetilsulfato não é estável e
após quarenta e cinco minutos de reanimação desaparece. Quando o sangue foi retirado, com
cardiopulmonar, foi declarada morta por insu- a temperatura na sala de urgências - cerca de
ficiência renal relacionada com o seu cancro. O 18°C - a decomposição do dimetilsulfato abran-
nome da mulher era Gloria Ramirez (foto nesta dou, uma parte dele evaporou e intoxicou os
página). Vinte e três dos trinta e sete funcioná- médicos. Sabe-se que, embora este composto
rios na sala de urgências nessa noite tiveram pelo ferva a 188°C, pode atingir uma concentração
menos um sintoma, e cinco tiveram de ser hos- letal no ar por evaporação a uma temperatura
pitalizados. A mais grave foi a médica residente tão baixa como 20°C.
Julie Gorchynski, que passou duas semanas em
cuidados intensivos, onde além de apneia sofreu NO ENTANTO, ESTA SEQUÊNCIA DE ACONTE-
de hepatite, pancreatite e necrose vascular, que CIMENTOS TEM AS SUAS LACUNAS, apesar de
ocorre quando o tecido ósseo não recebe sangue ter sido a posição oficial do Gabinete Forense
suficiente. No seu caso, atacou-lhe os joelhos e de Riverside. Em primeiro lugar, cada uma das
teve de usar muletas durante vários meses. reações referidas não é muito clara - uma vez
Às onze horas dessa noite, uma equipa espe- que não foram demonstradas experimental-
cial com fatos de proteção chegou ao hospital e mente. Os sintomas da inalação de sulfureto de
procurou gás tóxico por todo o lado. Não encon- dimetilo aparecem geralmente após seis a vinte
traram nenhum. Esta foi uma má notícia para a e quatro horas, e alguns cientistas assinalaram
equipa forense. Esperava-os um trabalho duro, que não existe correspondência entre o que ex-
pois tudo indicava que Gloria tinha sido a res- perienciou o pessoal de saúde e os trabalhadores
ponsável, mas não faziam ideia da razão. industriais que foram acidentalmente expostos
Isto desencadeou uma das mais extensas in- ao sulfato de dimetilo. Por exemplo, no início,
vestigações da história forense. Houve até dez atua como um gás lacrimogéneo, e ninguém no
equipas de investigação no terreno. Uma delas hospital relatou choro. Finalmente, a família de
veio do Centro de Ciências Forenses do Labo- Gloria sempre negou que a sua filha tenha algu-
ratório Nacional Lawrence Livermore, ao qual ma vez utilizado DMSO.
foi formalmente solicitada ajuda pelo Gabinete Apesar das suas debilidades, esta teoria é a
Forense de Riverside a 25 de março. O plano era melhor explicação para o que aconteceu. Gloria
simples: analisar tudo. Ramirez, a senhora tóxica, foi enterrada a 20 de
A sua conclusão foi que Gloria tinha estado a abril de 1994, dois meses e meio após a sua morte,
esfregar o corpo com gel de dimetil sulfóxido no Olivewood Memorial Park, em Riverside. e

51
18 Porque é que algumas
pessoas são alérgicas à água?
Existem apenas 100 casos documentados em todo o mundo
desta rara doença auto-imune que causa urticária e prurido em
contacto com a água, e que não tem cura conhecida.

E
m 2013, quando tinha quinze anos de composto químico utilizado em piscinas, até
idade, foi diagnosticada à americana que um dia, nadando num lago, voltou a apa-
Alexandra Allen uma urticária aqua- recer.
génica, ou seja, uma alergia à água. A
primeira pista surgiu aos doze anos de A VIDA DESTA ADOLESCENTE E A DE TODOS
idade, enquanto estava de férias com a sua fa- AQUELES QUE SE CONFRONTAM COM esta
mília: foi nadar numa piscina de hotel e mais rara condição - estimada em uma em cada 200
tarde nessa noite acordou com comichão e co- milhões de pessoas - muda totalmente. Devem
berta de urticária. “Lembro-me de me sentar contentar-se com dois duches frios de cinco
na casa de banho a tentar não coçar e piorar minutos por semana - desde que não tenham
as coisas até a minha mãe voltar com o Bena- desenvolvido fobia ao banho - manter o cabe-
dryl”, explicou Alexandra numa entrevista. lo curto - pelo que significa ter de o lavar - e
No início, ela e os seus pais pensavam que restringir o consumo de certas frutas e vege-
devia ser alérgica ao cloro ou algum outro tais com elevado teor de água. E beber refrige-

SHUTTERSTOCK

Nada é mais proibido a quem sofre


desta doença do que algumas
braçadas na piscina ou no mar.

52
Se cada vez que se molha
a pele ficar vermelha ou
aparecer urticária,pode
estar a sofrer de uma

SHUTTERSTOCK
alergia à água.

rantes dietéticos em vez de chá, café ou sumo. lulas mortas da pele, juntamente com a subs-
Curiosamente, podem beber leite, pois não tância oleosa que mantém a pele hidratada,
causa uma reação tão forte como a água; nin- produzem algum tipo de composto tóxico que
guém sabe porque é que isto acontece. provoca uma reação imunitária sob a forma
Mas para além de observarem a sua die- de urticária acompanhada por uma comichão
ta, têm também de controlar uma série de insistente. Formam-se então colméias que,
questões quotidianas, como o suor - acabou quando a pele seca, desaparecem após uma
o esforço físico ou o choro - nem por alegria hora. O problema é que, em casos graves, po-
nem por tristeza. Claro que, em dias de chu- de provocar um choque anafilático.
va, estão confinados à casa. “Disseram-me
que um dia a minha garganta pode inchar A RARIDADE DA DOENÇA TORNA DIFÍCIL
quando bebo água, mas se há uma coisa que O DIAGNÓSTICO, uma vez que é frequente-
aprendi, é que todos temos coisas com que li- mente confundida com outras alergias, como
dar na vida”, confessou Alexandra à revista ao cloro, e não há cura conhecida. A forma
People. Considerando que precisamos de be- clássica de a tratar é com anti-histamínicos.
ber quase dois litros e meio de água por dia Também, em 2009, Marcus Maurer, dermato-
para sobreviver, é um problema grave. Essa logista da Fundação Europeia de Investigação
é a marca da doença: não é grave, mas a vida das Alergias (ECARF) sediada na Alemanha,
quotidiana pode ser um inferno. Felizmente, descobriu que o omalizumab, um potente
parece tornar-se menos grave à medida que medicamento utilizado para combater a asma
se envelhece. brônquica alérgica grave e outras formas mais
raras de urticária - como à luz solar ou a aler-
O PRIMEIRO CASO REGISTADO DE URTICÁ- gia à pressão - aliviava os sintomas da alergia
RIA AQUAGÉNICA DATA DE 1963, quando uma à água.
rapariga de quinze anos de idade começou a Infelizmente, é uma droga que pode causar
desenvolver feridas após a prática de esqui uma reação forte e potencialmente fatal. Com
aquático. Estamos perante uma doença mui- tão poucas pessoas afetadas, e como acon-
to, muito rara: existem apenas pouco mais tece com a maioria das doenças raras - tam-
de uma centena de casos documentados em bém chamadas órfãs -, nenhuma empresa
todo o mundo. Parece ser uma condição que farmacêutica está disposta a investir tempo
afeta mais as mulheres, e normalmente faz a e dinheiro na sua investigação. Do mesmo
sua estreia durante a puberdade. Suspeita-se modo, é também difícil encontrar cientistas
de algum tipo de predisposição genética, mas dedicados a elas. E parece que nestes casos
também não se sabe ao certo. De facto, em- se cumpre, num sentido bastante macabro,
bora se chame alergia, pensa-se que seja uma aquela famosa frase da saga do Star Trek, “o
reação do sistema imunitário a algo dentro do bem-estar da maioria supera o bem-estar da
corpo. Algumas hipóteses sugerem que as cé- minoria... ou o de um” e

53
A doença do sono podia causar
delírios e levar a um coma
profundo ou mesmo à morte.
ARCHIVO TK

19 Em que consistia a
doença do sono?
A epidemia de encefalite letárgica, entre 1917 e 1928, matou
milhões de pessoas em todo o mundo. As suas causas são desco-
nhecidas, tal como a razão do seu súbito desaparecimento.

E
ram os últimos meses de 1916. A Pri- ocasião, em Berlim, um cavalo faminto caiu ao
meira Guerra Mundial estava a entrar chão e instantaneamente uma horda de mu-
no seu quarto ano. Esse inverno viria a lheres armadas com facas de cozinha emergiu
ser conhecido como o “Inverno dos na- dos apartamentos e, gritando e empurrando,
bos”. A cultura da batata, um elemento deixaram o animal em esqueleto, e até reco-
essencial na dieta da Europa Central, tinha sido lheram o sangue com copos”. Sob tempera-
arruinada e, no mercado, foi substituída pelo turas que atingiam os trinta graus negativos,
nabo, muito mais baixo em calorias. várias mulheres morreram em filas de espera
A situação para a população da Áustria e da pelas suas magras rações diárias ou em frente
Alemanha era desesperada e a fome era visí- das listas dos mortos”.
vel em cada esquina. O historiador John H. Era esta a situação quando uma nova doença
Morrow descreve uma cena dantesca: “Numa apareceu em Viena espalhando-se rapidamen-

54
te pelo mundo durante os três anos seguin- de um dia ou mais até flutuações profundas
tes. Aparentemente, já tinha havido casos no num estado de inconsciência, estendendo-
inverno anterior, mas no caos causado pela -se de simples sonolência a coma profundo”.
guerra sangrenta não tinham sido notados. Afetava principalmente os jovens e provoca-
va comportamentos violentos nas crianças,
QUANDO O NEUROLOGISTA AUSTRÍACO tornando as pessoas afetadas incapazes de se
CONSTANTIN VON ECONOMO descobriu moverem e mantendo-as num estado de so-
que os cérebros de todos os pacientes fale- nolência durante anos e décadas.
cidos tinham danos na substância negra do Aqueles que sobreviveram pareceram ter
mesencéfalo, tornou-se claro que se estava recuperado totalmente e regressado à vida
perante uma nova e estranha doença. O mé- normal. No entanto, a maioria acabou por
dico descreveu em pormenor os sintomas, desenvolver perturbações neurológicas ou
patologia e histologia do que ficou conhecido psiquiátricas, muitas vezes após anos de
como doença de von Economo. Publicou as saúde aparentemente perfeita. Por vezes
suas descobertas em 1917, num artigo inti- estas perturbações progrediam a grande ve-
tulado Die Encephalitis lethargica, que hoje locidade, levando a uma profunda incapaci-
dá o seu nome a esta doença, onde incluiu as dade ou morte. Noutras, progrediam mui-
suas observações microscópicas em imagens to lentamente e permaneciam nos doentes
como a que se segue. durante anos ou décadas. Também poderia
Descreveu-a da seguinte forma: “Estamos acontecer que, após o ataque inicial, se re-
a lidar com um tipo de doença do sono que misse e desaparecesse.
tem um curso invulgarmente prolongado. Era tudo muito estranho: não era um co-
Os primeiros sintomas são geralmente agu- ma e não era um sono, pois o paciente esta-
dos, com dores de cabeça e mal-estar. Isto va consciente do que se passava à sua volta.
é seguido por um estado de sonolência, fre- Popularmente, ficou conhecida como doença
quentemente associado a delírios dos quais do sono, porque se entrava num estado de
a pessoa pode ser facilmente despertada. O consciência mínima. Muitos dos que acor-
paciente sabe como dar respostas relevan- daram - os últimos fizeram-no na década de
tes e compreende a situação. Esta sonolência 1960 - ficaram com sequelas que lembram a
delirante pode levar à morte rapidamente ou doença de Parkinson.
dentro de algumas semanas. Por outro lado,
a patologia pode persistir inalterada duran- EM DOIS ANOS, A DOENÇA ESPALHOU-SE
te semanas ou meses, com períodos que vão POR TODO O MUNDO. Em 1919, tinha che-
gado aos Estados Unidos, América Central e
Índia, convivendo com a grande pandemia
que assolava o mundo, a famigerada gripe es-
panhola. Neste caso, a única coisa a fazer era
acompanhar o doente e alimentá-lo.
Mas em 1928 desapareceu. Desapareceu tal
como chegou, deixando para trás um milhão
de mortos e vários milhões de pessoas afe-
tadas. O neurologista Oliver Sacks contou a
história de vários pacientes pós-encefalíticos
no Hospital Beth Abraham no Bronx (Nova
Iorque) no seu livro Awakenings. Sacks des-
crevia-os como despertos mas não totalmen-
te conscientes: “Sentavam-se imóveis e sem
palavras o dia todo nas suas cadeiras; eram
totalmente desprovidos de energia, ímpeto,
iniciativa, motivação, apetite, afeto ou dese-
jo; [...] eram tão insubstanciais como os fan-
tasmas e passivos como os zombies”.
C. VON ECONOMO

Até hoje ,ainda não sabemos como apare-


ceu ou o que a causou. e

55
20 É possível ressuscitar
um cão?
Numa antiga gravação soviética, um cão é ressuscitado com a
ajuda de uma máquina que substitui um coração.

E
m 1940, um documentário soviético de Após os créditos de abertura, que anunciam
quase vinte minutos, realizado por um que o filme é distribuído através da Socieda-
designado D. I. Yashin, foi transmitido de Médica Americano-Soviética, aparece o
em toda a Europa Ocidental . O seu tí- cientista britânico e Prémio Nobel John Bur-
tulo avisa-nos que o que estamos pres- don Sanderson Haldane. Num tom totalmen-
tes a ver é absolutamente espantoso: Experiên- te assético, afirma que, pessoalmente, viu os
cias de Reanimação de Organismos. procedimentos realizados no filme, num con-

Mais do que um amante de cães, gostaria de


trazer o seu animal de estimação de volta dos
mortos. No entanto, nunca ninguém repetiu
as alegadas experiências do cientista russo.

56
gresso de biofisiologia na Rússia. Depois vem
o verdadeiro protagonista do filme: Sergei S.
Bryukhonenko do Instituto de Investigação de
Terapia Experimental e Fisiologia de Vorone-
zh, que “partilha o crédito pelo desenvolvi-
mento da transfusão de sangue humano [...]
que salvou muitas vidas durante a guerra”,
segundo o apresenta Haldane.

ARCHIVO TK
FUNDIDO NO NEGRO, VEMOS O LABORATÓ-
RIO DE BRYUKHONENKO, que foi também o
inventor de um primitivo pulmão e coração - o mão num tabuleiro operado por fole. Depois, o
autojektor. O ecrã mostra agora as experiên- autojektor aparece no ecrã, fornecendo sangue
cias, que são narradas por Haldane. Começam à cabeça de um cão que responde a estímulos
com o coração de um cão ligado a uma série de externos - na imagem acima.
tubos: usando a sua invenção, Bryukhonenko Como em qualquer filme que se preze, o
- juntamente com um tal Boris Levinskovsky melhor é guardado para o fim. A equipa de
- mantém-no a bater. Exibe também um pul- Bryukhonenko seda um cão, drena-o de todo
o sangue até o seu coração parar de bater e dei-
xa-o assim durante dez minutos, após o que é
ligado ao autojektor. Alguns minutos depois,
o coração fibrila e retoma o seu ritmo normal,
tal como a respiração: o cão morto foi ressusci-
tado. Enquanto se vê uma enfermeira acompa-
nhada alegremente pelo cão, Haldane diz-nos
que após dez ou doze dias o animal voltou ao
seu estado normal, e termina afirmando que
viveu durante anos, cresceu, engordou e teve
uma família. Nas sequências finais, são-nos
mostrados três outros cães dos quais Haldane
nos dá detalhes de quando foram ressuscita-
dos e durante quanto tempo estiveram mortos.
Aparentemente, Bryukhonenko e a sua equipa
tinham vindo a ressuscitar cães desde 1938.

AS ESPANTOSAS FILMAGENS FORAM APRE-


SENTADAS PERANTE UM GRUPO DE CIEN-
TISTAS EM 1943 no Hotel Waldorf Astoria, em
Nova Iorque. Nada se sabe ao certo sobre o que
opinaram aqueles que viram o filme. Mas uma
pergunto se coloca.
Será que um cientista russo, no início da
Segunda Guerra Mundial,conseguiu real-
mente trazer um cão de volta à vida? Apesar
do prestígio científico de Haldane, poucos
pensam que sim. O mais provável, dizem os
céticos, é que se trate de mera propaganda
soviética. No entanto, Bryukhonenko, um
pioneiro da cirurgia de coração aberto, tinha
publicado os procedimentos utilizados em
revistas e livros científicos. Neles, diz que as
cabeças sobreviveram apenas alguns minutos
e os cães ressuscitados alguns dias, não horas
e anos como o documentário afirmava. O fil-
me que rodou no seu laboratório foi apenas
um embuste? e
SHUTTERSTOCK

57
Os cientistas discordam sobre se estes pacientes
sofrem de alucinações táteis ou se a comichão é
de facto causada por um agente externo.

SHUTTERSTOCK

21 O que é a doença dos


morgellons?
A pele faz comichão, parecem sentir-se pequenos insetos a raste-
jar sobre ela, mas não há nada à vista. Será imaginação?

T
em a sensação de que algo está a O nome vem de uma carta escrita em 1674
rastejar sob a sua pele e não con- pelo médico inglês Thomas Browne, onde ele
segue parar de coçar? Se assim for, descreve brevemente uma doença de pele em
é candidato a uma condição muito crianças francesas: “Os pelos que mais me fas-
rara, que afeta 3,65 pessoas em ca- cinaram não foram no rosto ou na cabeça, mas
da 100 000, de acordo com o Centro de Con- nas costas, e não nos homens, mas sim nas
trolo de Doenças (CDC) dos EUA. É conhecida crianças, como observei há muito tempo na-
como doença de morgellons e, segundo um quela enfermidade endémica que as crianças
artigo publicado no Journal of the American pequenas tinham em Languedock, chamada
Academy of Dermatology em 2018, “é uma morgellons, que sofriam de erosões graves com
doença de pele rara e inexplicável cuja etio- pelos ásperos nas costas”.
logia específica permanece um mistério”. Por
outras palavras, trata-se de uma doença sobre OS PRIMEIROS RELATOS DA DOENÇA falam
a qual nada se sabe. E não é nova: é conhecida de pelos, vermes com cabeças negras ou pontos
há três séculos. negros salientes da pele, principalmente nos

58
braços, pernas e costas. O debate centrou-se fios, grãos de areia e fragmentos de pele”. Por
em saber se eram animados ou inanimados: outro lado, observava, para além da sensação
enquanto o médico alemão Michael Ettmüller de estar infestado de insetos, não surgiam ou-
afirmava ter visto criaturas que se pareciam tros problemas mentais. Nos seus exames aos
com ácaros da sarna, o famoso microscopista pacientes, Ekbom não encontrou artrópodes,
holandês Antoni van Leeuwenhoek concluiu parasitas ou outros animais microscópicos,
que eram objetos inanimados. A primeira mo- mas encontrou pêlos, “pequenos fios” e “grãos
nografia sobre esta estranha doença foi publi- de areia”.
cada em 1674 por Velschius e intitulada De ver- Em 2006, o CDC realizou um grande estudo a
miculis capillaribus infantium. nível nacional, identificando 115 pacientes que
No final do século XIX, começou a espa- sofriam desta dermopatia. Numa conferência
lhar-se a ideia de que devia ter alguma com- de imprensa dois anos depois para divulgar os
ponente psicológica. Em 1894, foi proposto resultados, a investigadora líder Michele Pear-
o nome de acarofobia para esta doença; e em son disse: “O que posso afirmar como real é o
1946, J. W. Wilson e H. E. Miller sugeriram que sofrimento que estas pessoas estão a experi-
seria mais apropriado designá-la por “delírios mentar, mas não posso caracterizar isto como
de parasitose”. uma síndrome ou uma doença, só posso dizer-
-vos que é uma condição inexplicável”.
DURANTE A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO
XX, FOI CONSIDERADA UMA DOENÇA psi- EM JANEIRO DE 2012, O CDC PUBLICOU OS
quiátrica, apesar de se ter verificado que os pa- RESULTADOS DO SEU ESTUDO. As suas con-
cientes apresentavam outras doenças parale- clusões sugerem que se trata de uma doença
las, tais como infeção por espiroquetas - entre psicológica: 59% dos sujeitos tinham défices
as doenças causadas por este tipo de bactérias cognitivos, 50% tinham usado drogas, e 78%
encontra-se a sífilis. Em 1938, o neurologista relataram exposição a solventes - potenciais
sueco Karl-Axel Ekbom publicou um estudo irritantes cutâneos. Não foram detetados para-
que foi decisivo para a compreensão desta pa- sitas ou bactérias suspeitas nas amostras reco-
tologia rara. Considerou que, por detrás do de- lhidas, e a maioria dos materiais recolhidos na
lírio da parasitose, poderia haver algum com- pele dos participantes eram celulose, provavel-
ponente a desencadeá-lo, porque “talvez seja mente com origem no algodão.
demasiado simples pensar nas parasitofobias Mas um estudo publicado em 2016 no Inter-
como uma doença mental e nada mais”. national Journal of General Medicine afirma
Ekbom descreveu que os pacientes tinham o contrário. Segundo os seus autores, estes
sensações que consistiam principalmente em pelos são queratina e filamentos de colagénio,
comichão, mas também de algo a rastejar so- e argumentam que estamos a lidar com uma
bre ou sob a pele, e que podiam notar picadas. doença associada a “uma infeção transmitida
Os pacientes levavam por vezes amostras des- por carraças”. De facto, encontraram “espi-
tes “pequenos animais” aos médicos, que na roquetas geneticamente identificadas como
realidade eram “pequenos pelos, pequenos Borrelia burgdorferi na maioria das amostras
de pele dos morgellons estudadas até à data”.
Esta bactéria é responsável pela doença de Ly-
me transmitida por carraças, que se encon-
tra em ratos, esquilos, porquinhos-da-índia,
veados e alces.
Não existe consenso dentro da comunidade
médica sobre a origem desta irritante enfermi-
dade. Pior, não há sequer consenso sobre o que
realmente é. Em situações como esta, as teo-
rias da conspiração voam. Portanto, não é de
admirar que se fale de extraterrestres, estelas
químicas ou bioterrorismo. Ou como um mé-
dico do Novo México explicou no programa de
CORDON

rádio Coast to Coast, um antigo agente da CIA


A sensação de prurido pode estar relacionada com bac- tinha-lhe dito que se tratava de uma doença
térias transmitidas por carraças. causada pelos franceses...e

59
O dedo do paciente desta
estranha enfermidade
emitia um odor
insuportável.

22
SHUTTERSTOCK

O que foi a doença do


dedo podre?
Um jovem criador de galinhas correu para as urgências com uma
infeção no dedo em resultado de um ferimento que sofreu en-
quanto limpava uma galinha e...

E
m setembro de 1991, um homem de vin- ram-no lá e deram-lhe flucloxacilina, um anti-
te e nove anos de idade , cuja profissão biótico da família da penicilina.
consistia em limpar/ preparar galinhas À medida que os dias passavam, o mau cheiro
e frangos, picou o dedo num osso. Uma não desaparecia. De volta ao hospital, os médicos
ferida que não deveria realmente ir além experimentaram ciprofloxacina, outro antibióti-
de um pouco de sangue e que, com uma boa lim- co, desta vez pertencente à família das fluoroqui-
peza e desinfeção, cicatrizaria em poucos dias. nolonas. Nada. As coisas estavam a complicar-se
No entanto, as coisas pioraram: o dedo come- e o pobre homem estava a passar um mau bo-
çou por ficar avermelhado, o que era um pre- cado. O cheiro a podridão podia ser claramente
núncio de infeção, e depois começou a cheirar sentido na sala em que ele se encontrava.
mal. O homem estava preocupado que o seu de-
do tivesse de ser amputado - e se deixasse passar UMA EQUIPA DE QUATRO MÉDICOS - CAROLINE
mais tempo poderia acabar sem mão - por isso MILLS, MEIRION LLEWELYN, David Kelly e Peter
decidiu ir ao Royal Gwent Hospital em Newport, Holt - passou então a centrar o seu trabalho em
País de Gales (Reino Unido). Os médicos trata- dois objetivos: primeiro, compreender porque é

60
que isto estava a acontecer; e segundo, e mais im- animais que muitas vezes o único sintoma externo
portante, resolver o fedorento problema, que co- é a morte. A razão de estar a afetar um ser humano
meçava a afetar a vida social e familiar do paciente. desta forma era algo que lhes escapava.
Continuaram com antibióticos na esperança Outras amostras foram retiradas de vários
de que um deles funcionasse: tentaram a eri- locais do seu braço e mesmo do peito, dando
tromicina, um antibiótico utilizado para tratar o mesmo resultado, e duas outras espécies de
certas infeções bacterianas, pois assumiram, clostridia foram descobertas: C. cochlearium - o
com razão, que o cheiro era indicativo de algo parente mais próximo de C. tetani, responsável
relacionado com as bactérias - de facto, o cheiro pelo tétano - e C. malenominatum. Durante dois
a suor é produzido pelas bactérias que vivem na meses, os médicos aplicaram-lhe ciclos prolon-
nossa pele. Como o doente não melhorou, op- gados de terapia com antibióticos para além de
taram pelo metronidazol, indicado para tratar tratamento com oxigénio hiperbárico no hospi-
doenças dermatológicas, como a rosácea e a ac- tal britânico da força aérea em Wroughton. Esta
ne. Mais do mesmo. terapia envolve a respiração de oxigénio puro
E se ele tivesse algo alojado no seu dedo e eles pelo paciente através de um tubo pressurizado.
não o tivessem visto? Os especialistas decidiram É normalmente utilizado para tratar a doen-
fazer uma pequena exploração cirúrgica: não ça descompressiva em mergulhadores, mas é
encontraram nenhum corpo estranho, nenhum também utilizado para infeções graves. Uma ex-
pus, nenhum tecido danificado. Era uma mão tensa análise ao sangue revelou algo surpreen-
completamente normal. Não fazia sentido. dente: ele não estava imunossuprimido, ou seja,
o doente estava saudável, embora tivesse anti-
TAMBÉM REALIZARAM UMA BIÓPSIA DA PELE, E corpos contra C. novyi tipo B. Por sua vez, os
A SUA CULTURA revelou um micróbio semelhan- estudos das suas fezes não revelaram qualquer
te ao Clostridium novyi de tipo B, uma bactéria clostridia no seu sistema digestivo.
encontrada no solo e nos intestinos dos porcos. É
bem conhecida na medicina veterinária e sabe-se OS MÉDICOS TENTARAM TUDO PARA MELHO-
que entra no corpo do animal através de feridas RAR A SUA QUALIDADE DE VIDA, pois o cheiro
cutâneas. Produz uma série de toxinas que liber- era realmente nauseabundo: mais antibióticos,
tam um gás que mata rapidamente o hospedeiro. isotretinoína - que é utilizada para a acne -, tra-
Na realidade, o curso da doença é tão curto nos tamento com luz ultravioleta com psoraleno -
indicado para a psoríase -, colpermina, proban-
teno, clorofila.... De vez em quando, era-lhe da-
da uma pausa dos antibióticos para trazer a flora
bacteriana do próprio paciente de volta aos ní-
veis normais. Nada funcionou. Após cinco anos
de tratamento, o dedo do pobre homem ainda
cheirava a podridão. Desesperados, os médicos
galeses publicaram um artigo na revista médica
Lancet em 1996 a pedir ajuda: “Embora a apa-
rência clínica tenha melhorado, a consequência
mais incapacitante da infeção era o odor pútri-
do do braço afetado que podia ser detetado nu-
ma sala grande, e que quando o paciente estava
confinado a uma sala de exames mais pequena
tornava-se quase intolerável”.
Este artigo valeu-lhes o Ig Nobel da Medicina
de 1998 - um prémio que reconhece a investi-
gação que “primeiro faz as pessoas rir e depois
fá-las pensar”. Na cerimónia de entrega de pré-
mios, soubemos como tudo terminou: “Embora
tenhamos recebido um grande número de car-
tas, nunca ninguém tinha visto nada parecido,
pelo que nenhuma sugestão teve qualquer efei-
SHUTTERSTOCK

to. Contudo, a nossa história tem um final feliz:


o nosso doente já não cheira a podre”. e

61
62
V
ivemos numa civilização tecnológica, mas a nossa é uma socieda-
de mágica. Para muitos de nós, algo tão comum como a luz elé-
trica é um mistério impenetrável, indistinguível do sobrenatural.
A consequência da nossa crescente incapacidade de compreender
as leis que governam o mundo em que vivemos levou à prolifera-
ção de um tipo de literatura que aparece de forma recorrente nos meios
de comunicação social. Não estou a falar de fantasmas ou OVNIs, mas de
assuntos menos imaginários, tais como água magnética, a crença de que
o cancro tem origem em disfunções psicológicas e sentimentais, ou que
a covid-19 não é causada por um vírus. Também não é raro encontrar al-
guém que tenha inventado o telemóvel perpétuo ou uma nova forma de
combustível, muito barato e muito eficaz.
Desde as suas origens, a humanidade tem sentido uma atração irre-
primível pelo misterioso e sobrenatural. Áugures e adivinhos aconse-
lharam e dominaram milhões de seres ao longo da história. A nossa tem
os seus. Os meios de comunicação social são caixas de ressonância de
centenas de crenças irracionais que são prova da existência de um mun-
do mágico à nossa volta. Carregam algo indefinível que nos permite es-
capar das agruras da vida quotidiana.
É claro que há fenómenos que desafiam a explicação. Mas não pode-
mos confundir inexplicado com inexplicável, nem podemos assumir
que, se não encontramos uma explicação, então é algo sobrenatural ou
paranormal. E lembremo-nos que, quer queiramos quer não, seremos
sempre confrontados com incógnitas que não seremos capazes de des-
vendar totalmente.

63
23 Porque é que os leões
atacaram em Tsavo?
Durante dez meses, estes devoradores de homens aterrorizaram cente-
nas de trabalhadores de construção ferroviária no Quénia.
WIKI

vel pela manutenção dos


interesses do Império Bri-
tânico nessa parte do con-
tinente negro. O seu plano
era construir um cami-
nho-de-ferro - chamado
Uganda Railway - ligando
Mombaça ao Lago Vitória.
O que ninguém previu foi
que a sua construção daria
tantos problemas, a ponto
de acabar por ser apelidada
de “Lunatic Railway”. Pa-
ra começar, os locais recu-
saram-se a trabalhar nele,
pois não iriam ajudar os
invasores europeus a im-
Os dois felinos dissecados, no Field Museum em Chicago. plementar um sistema de

S
transporte que lhes daria
e alguma vez estiver em Chicago, para o controlo do território. Assim, tiveram de tra-
além de passear pelas ruas do centro para zer mão-de-obra das suas colónias no subconti-
apreciar a bela arquitetura, não pode per- nente indiano, via Bombaim e Karachi, para esta
der o Field Museum de História Natural. Se parte perdida de África.
for um apaixonado por ciências naturais,
não pode faltar, e também se for um cinéfilo de fil- EM 1903, ESTAVAM EMPREGADOS, CERCA DE
mes de terror... aqui foi filmado o filme A Relíquia. 32.000 ASIÁTICOS, MUITOS DOS QUAIS perma-
Na Rice Gallery, que contém uma impressionante neceram no Quénia no final dos seus contratos. A
coleção de mamíferos dissecados de África, poderá terra onde trabalhavam era criminosa, com con-
apreciar o verdadeiro destaque do museu: um dio- dições sanitárias deploráveis. Úlceras, diarreia,
rama de dois leões machos. Poderá olhar para a pe- disenteria, escorbuto... eram o nosso pão de cada
le - e, por baixo dela, para o crânio - dos felinos que dia. Os animais não passavam melhor: entre 1897
aterrorizaram os trabalhadores que construíram a e 1898, morreram 228 das 350 mulas, 579 dos 639
linha ferroviária Kenya-Uganda no final do século bois de tração, 774 dos 800 burros e todos os 63
XIX. Se for um cinéfilo, saberá que a história - com camelos. O custo disparou de tal forma que em
alguns floreados de Hollywood - foi recriada no 1898 já era mais de quatro vezes superior ao que
filme The Devils of the Night, protagonizado por tinha sido planeado, um excesso de 420 milhões
Michael Douglas e Val Kilmer. de euros atuais. Mas isso não era nada comparado
A história foi a seguinte. Tsavo é uma região no com o que os esperava em Tsavo, onde deveriam
sudeste do Quénia, a cerca de 180 quilómetros construir uma ponte sobre o rio com o mesmo
a noroeste de Mombaça, agora uma reserva na- nome. Um engenheiro militar, o Tenente-Coro-
tural. No final do século XIX, não era esse lugar nel John Henry Patterson, que chegou a Mombaça
idílico de natureza selvagem, mas um problema vindo da Índia em março de 1898, foi encarregado
para a British East Africa Company, responsá- da sua construção.

64
Pouco depois da sua chegada, apareceram e com tão pouca água fez com que o perdessem
mortos os primeiros trabalhadores. Os seus para sobreviver. De facto, atualmente já foram
corpos tinham sido quase inteiramente devo- observados leões sem pelo na mesma região.
rados por necrófagos, pelo que não foi possível O que levou dois leões machos a caçar juntos e
apurar a causa da morte, que foi atribuída a uma sós, fora da manada, e porque é que perseguiram
disputa sobre o salário que tinham acabado de e mataram humanos de forma sistemática? Os
receber. Mas, dias mais tarde, Ungan Singh, as- biólogos têm proposto diferentes hipóteses. Uma
sistente de Patterson, foi brutalmente morto. delas é a peste bovina de 1898, que deixou os leões
Desta vez não havia dúvidas de que estavam a sem as suas presas habituais e começaram a apre-
lidar com um devorador de homens: várias tes- ciar os cadáveres atirados ao rio Tsavo, quando
temunhas viram um leão enfiar a cabeça na ten- as caravanas de escravos para Zanzibar passavam
da do Singh e arrastá-lo pelo pescoço para fora por ali. Outros apontaram para as cremações ri-
do campo. Ao amanhecer, Patterson encontrou tuais precipitadas dos trabalhadores hindus fa-
os restos mortais de Singh: o seu corpo, rasgado lecidos, que os atraíram. Finalmente, em 2000,
por grandes caninos, tinha sido quase comple- o exame dos crânios mostrou que o membro do-
tamente devorado, exceto a cabeça, cujo rosto minante - provavelmente responsável pela mor-
apresentava um olhar de terror. te do maior número de humanos - tinha vários
dentes em falta e tinha um abcesso dentário gra-
NA NOITE SEGUINTE, PATTERSON DECIDIU FI- ve. Assim, os investigadores especulam que deve
CAR DE GUARDA no local deste último ataque ter achado demasiado doloroso perseguir e caçar
com um isco, mas gritos do outro lado do cam- presas típicas e que acharia os humanos mais fá-
po alertaram-no de que algo estava errado. Não ceis de apanhar... e devorar .
chegou a tempo. Rapidamente percebeu que
estava perante não um, mas dois devoradores NO SEU LIVRO SOBRE A SUA AVENTURA AFRI-
de homens, numa ação surpreendentemente CANA, PATTERSON ESCREVEU QUE ENCON-
coordenada. Ficavam a observar o acampamen- TROU, não muito longe do campo, uma caver-
to e à espera do melhor momento, a altas horas na com ossos humanos, bem como pulseiras de
da noite, quando os homens estavam a dormir cobre como as usadas pelos nativos locais. Seria
nas suas tendas, para atacar as vítimas escolhi- o covil dos devoradores de homens? Os biólo-
das. De nada serviram as paliçadas, cercas, ara- gos duvidam que ele tenha realmente visto isso,
me farpado e fogueiras a arder durante a noite porque os leões não vivem em cavernas nem des-
para impedir o seu ataque. A habilidade e astú- locam as suas presas para outro lugar, coisa que
cia dos felinos para evitar as armadilhas levou fazem as hienas. Quando o local foi escavado em
os homens a acreditar que estavam a lidar com 1998, não foram encontrados restos humanos.
algo sobrenatural. Quando os leões rugiam ao Será que Patterson estava a mentir? Talvez, mas
anoitecer, iam de tenda em tenda com o aviso: não sabemos porquê.
“Khabar dar, bhaieon, shaitan ata” (“Cuida- O que está documentado é que, durante dez
do, irmãos, o diabo está a chegar”). meses, dois leões solitários aterrorizaram cen-
O medo atingiu os trabalhadores e muitos fugi- tenas de homens, que eram surpreendidos e
ram, paralisando o trabalho. Patterson passava as caçados à noite dentro das suas tendas. Nem
suas noites empoleirado nas árvores com a inten- armadilhas, nem fogos, nem arame farpado
ção de os caçar. No dia 9 de dezembro, abateu o conseguiam detê-los, apenas dois cartuchos de
primeiro, que tinha quase três metros de compri- calibre 303 disparados de uma espingarda Lee-
mento, e no dia 27, o segundo. De acordo com o -Enfield.e
coronel, os leões terão morto 135 pessoas, embo-
ra estimativas recentes baseadas em marcadores SHUTTERSTOCK

isotópicos nos crânios dos leões pareçam reduzir


O Coronel Patterson com um
o número para 35.
dos leões antropófagos que
Os leões de Tsavo tinham uma aparência mis- conseguiu matar.
teriosa: nenhum possuia juba. Em tempos pen-
sou-se que eram uma espécie diferente da dos
leões africanos - que têm juba - mas a análise ge-
nética mostrou que não eram. Porque é que não
tinham pêlo? Os investigadores argumentam
que um ambiente tão tórrido como o de Tsavo
24 Porque é que Ötzi morreu?
Um dia, há 4000 anos, este guerreiro pré-histórico matou duas
pessoas, subiu e desceu uma montanha e foi alvejado pelas costas.

A
19 de setembro de 1991, era co, a Idade do Cobre. Da sua análise,
dada a notícia: dois alpinistas sabemos que Ötzi morreu por volta
alemães que faziam caminha- de 3255 a.C, quando tinha cerca de
das nos Alpes Öztal, na fron- 45 anos de idade. Tinha 1,60 metros
teira entre a Áustria e a Itália, de altura, pesava 50 quilos e tinha
descobriram o que pareciam ser os restos artrite, cáries dentárias, doença
de um homem congelado a mais de 3.000 de Lyme - uma infeção bacteria-
metros de altitude. O que ninguém ima- na transmitida por carraças que
ginava era que o corpo tivesse mais de causa febre, dores de cabeça e
4.000 anos de idade. No início foi dores nas articulações - e níveis
levado para Innsbruck, onde se elevados de arsénico no seu sis-
descobriu ser um corpo mu- tema, provavelmente por tra-
mificado pelo frio extre- balhar com cobre. Da presença
mo e perpétuo. de certas marcas nas unhas, co-
Depois, co- nhecidas como linhas de Beau,
meçou a disputa os peritos forenses inferiram
sobre que país tinha que tinha estado doente até três
direito aos restos mor- SH
UT
TE
vezes nos seis meses que ante-
tais. Foi uma disputa di- cederam a sua morte. O pobre
RS
TO
CK

plomática porque as frontei- homem estava um caos.


ras entre os dois países não esta- A presença de pólen reve-
vam bem definidas, já que, quando lou que morreu na prima-
foram traçadas, no Tratado de Saint vera ou no verão, e a sua
Germain-en-Laye de 1919, assinado última refeição consistiu
pelos países aliados vitoriosos da I Guer- em carne de camurça e de
ra Mundial e pela recém-formada Repú- veado vermelho, algum
blica da Áustria - o tratado declarou dis- tipo de cereal - talvez sob
solvido o Império Austro-Húngaro - a a forma de pão - e, pa-
área estava coberta de gelo e não podia ra sobremesa, abrunhos.
ser definida com precisão. Foi necessá- Curiosamente, também
rio fazer uma nova medição e isso foi foi encontrado musgo
feito em 1991: o veredicto foi que a mú- no seu estômago,
mia tinha sido encontrada a 93 metros da mas não o comeu
fronteira... em território italiano. como nós co-
memos
SETE ANOS MAIS TARDE, A UNIVERSI- alface,
DADE DE INNSBRUCK DEVOLVEU-A AOS ingeriu-o acidental-
seus proprietários legais, que construíram mente: tinha um corte
um museu em Bolzano. Denominado Mu- na mão sobre o qual
seu de Arqueologia do Tirol do Sul, foi fei- colocou um penso
to para albergar a múmia e todos os seus de musgo do pân-
pertences. tano, pois devia
Escusado será dizer que a sua desco- conhecer as suas
berta revelou importantes informações propriedades te-
sobre o modo de vida durante o Calcolíti- rapêuticas.

66
Os seus restos mortais,
mumificados pelo gelo, podem ser
vistos no Museu de Arqueologia do
Tirol do Sul em Bolzano (Itália).

WIKI

A informação recolhida é imensa, mas o que um quarto na sua roupa. Ötzi aparentemente
nos preocupa é a forma da morte; é aí que resi- matou duas pessoas com a mesma seta, que
de o ponto de interrogação. conseguiu recuperar em ambas as ocasiões.
Em 2001, as radiografias e uma TAC reve- O sangue no seu casaco é interpretado como
laram que Ötzi tinha uma ponta de flecha pertencendo possivelmente a um compa-
alojada no ombro esquerdo, que correspon- nheiro ferido que ele levava nas costas, mas
dia a uma pequena laceração encontrada na tal ideia é pura especulação. A sua postura no
sua roupa. Será que morreu em resultado momento da morte, com o corpo virado pa-
da perda de sangue? Era de facto uma feri- ra baixo e o braço esquerdo dobrado sobre o
da muito grave, mesmo segundo os padrões peito, sugere que tentou puxar a flecha antes
médicos do nosso tempo. Descobriu-se que a de morrer.
seta tinha sido movida, como se tivesse ten-
tado extraí-la. Tinha hematomas e cortes na O MOTIVO DA SUA MORTE É CLARO, mas é
mão direita - um deles na base do polegar, o que ele fez um dia e meio antes disso que é
que descia até ao osso - nos pulsos e no peito, um enigma. A análise do pólen mostra que se
bem como traumatismo cerebral, resultante moveu muito durante esse tempo. Primeiro,
de um golpe na cabeça. estava a uma altitude de 2500 metros, depois
desceu até abaixo de 1200, até ao vale, onde
A HIPÓTESE MAIS PLAUSÍVEL É QUE ÖTZI teve o confronto que causou os ferimentos na
SANGROU ATÉ À MORTE após a seta lhe ter mão. Depois subiu novamente acima dos 3000
partido a escápula e danificado os nervos e metros, e lá alguém o alvejou com uma seta
vasos sanguíneos, acabando por se alojar no nas costas. Porque subiu e desceu uma mon-
pulmão. O que aconteceu parece óbvio: es- tanha duas vezes num espaço de tempo tão
teve envolvido numa luta. De facto, foram curto? As razões para isto e os motivos para se
encontrados vestígios de sangue de pelo me- envolver em duas lutas no mesmo dia perma-
nos quatro outras pessoas nos seus pertences: necerão para sempre escondidos nas brumas
um na sua faca, dois numa ponta de flecha e da história. e

67
25 O que aconteceu com
o tesouro de Lima?
A traição, o ouro e a pirataria são o tempero da história, que parece saída
diretamente de um romance de aventuras passado na ilha dos bucaneiros.

E
m 1526, Juan Cabezas de Grado, um na- des de ouro e pedras preciosas, especialmente o
vegador asturiano, descobriu, durante clero católico, que havia acumulado muita rique-
uma expedição ao Pacífico, um peque- za. Diz-se que uma dessas peças de particular va-
no ilhéu localizado a 532 quilómetros lor era uma estátua da Virgem Maria e do Menino
da costa da atual Costa Rica. Conhecida em ouro maciço e em tamanho natural.
como Ilha do Coco, revelou-se um local muito Em outubro de 1820, Lima, do Vice-Rei Joa-
interessante para piratas, corsários e bucanei- quín de la Pezuela, não estava a salvo da guerra.
ros. Havia muita madeira, alimentos e nascentes Por terra, o General San Martín e por mar Lord
de água doce, mas acima de tudo, estava fora das Cochrane - apelidado de Lobo dos Mares pelos
rotas habituais de navegação. Muitos escolheram franceses - lançaram uma ofensiva que termina-
esta ilha selvagem para esconder o produto do seu ria com a captura do porto de El Callao, que os
saque. Henry Morgan escondeu aí as riquezas que espanhóis consideravam inexpugnável .
tinha capturado no Panamá. O capitão Edward
Davis escondeu os bens roubados na cidade nica- DESESPERADO POR PRESERVAR OS SEUS
raguense de León, bem como as cargas de vários TESOUROS E TEMENDO O SAQUE DA cidade
navios espanhóis intercetados nas suas viagens de pelas tropas revolucionárias, o vice-rei decidiu
Lima ao Panamá a caminho de Espanha. William enviá-los para o México para serem guardados
Dampier, um grande amigo de Lionel Wafer, um, em segurança. A única forma de os salvar era
cirurgião bucaneiro e o outro, naturalista, dei- arriscando por mar. Nessa altura, o navio mais
xou-nos descrições daqueles dias em Coco, quan- poderoso que os espanhóis tinham em El Cal-
do Davis e os seus homens enterravam o fruto dos lao, e o único capaz de atravessar o oceano para
seus saques na ilha. Espanha, era a fragata La Esmeralda, mas tinha
No início do século XIX, a Espanha iniciou uma caído nas mãos de Lord Cochrane.
guerra na qual foi perdendo gradualmente o con- Nem tudo estava perdido. Um brigantino cha-
trolo sobre as suas colónias na América do Sul. Os mado Mary Dear sob o comando de um escocês,
líderes da revolução, Simón Bolívar e José Fran- o capitão William Thompson, preparava-se para
cisco de San Martín, tinham como objetivo a en- zarpar. Pezuela contratou Thompson, a sua tri-
trada na grande cidade de Lima. Ali, funcionários pulação e o seu navio. Durante dois dias, todas as
e colonos tinham fugido com grandes quantida- coisas mais preciosas que a cidade continha: du-

A Ilha do Coco, em águas da Costa Rica,


é hoje desabitada, mas já foi um paraíso
para piratas e fugitivos.
SHUTERSTOCK

68
cados de ouro, jóias, pedras preciosas, obras de
arte, livros e arquivos, talheres de ouro e prata,
castiçais de ouro e objetos de culto da catedral
foram carregados no Mary Dear; um total de
vinte e quatro baús fechados firmemente. Jun-
tamente com eles veio um grupo de oficiais es-
panhóis, o que fez Thompson suspeitar que algo O vice-rei espanhol em Lima
de muito valioso estava naqueles baús. Não era pretendia salvar os seus tesouros

SHUTERSTOCK
pirata, mas uma noite deixou-se levar e, ren- dos revolucionários.
dendo-se aos apelos da sua tripulação, os espa-
nhóis foram atirados borda fora. A tripulação da
Mary Dear tinha acabado de se tornar pirata e,
como tal, decidiram esconder o tesouro de Lima. A partir deste ponto, a história torna-se ainda
Onde? Na agora famosa Ilha de Coco; ali ficaria mais lendária. Acredita-se que Thompson re-
até terem a certeza de que o poderiam gastar em gressou à Terra Nova com a ajuda de um navio
segurança. baleeiro e que Forbes se estabeleceu na Califór-
nia, onde se tornou um homem de negócios de
MAS CHEGAR AO PORTO SEM CARGA E PAS- sucesso, mas nunca regressou à ilha. Conta a len-
SAGEIROS NÃO IA SER FÁCIL, e muito menos da que, no seu leito de morte, Thompson decidiu
com os navios espanhóis nos seus calcanhares. revelar ao seu amigo John Keating o esconderijo
Além disso, sabiam que nessa altura o crime de exato dos mais de 60 milhões de euros que o te-
pirataria era punível com a morte. É neste pon- souro de Lima valeria hoje: “Saia do navio na Baía
to que a lenda segue dois caminhos: num, ten- da Esperança, entre as duas pequenas ilhas, em
do colocado o tesouro em segurança em Coco, águas de 9 metros de profundidade. Caminhe 350
Thompson ateou fogo ao seu brigantino e fingiu passos até à margem do riacho e depois vire para
ter naufragado. Ele e a sua tripulação subiram norte/nordeste a 850 metros. Crave uma estaca.
em barcos a remos e dirigiram-se para terra. A estaca com o pôr-do-sol delineará a silhueta de
Mas, pelas voltas do destino, os corpos dos ofi- uma águia com asas estendidas. No final, entre o
ciais espanhóis assassinados tinham sido lava- sol e a sombra, encontrará uma caverna marca-
dos em terra e recuperados. O seu estratagema da com uma cruz. Ali jaz o tesouro”. Claro, esta
falhou. Foram capturados e julgados por pira- é uma das várias instruções que ficaram para a
taria. A outra história é que os espanhóis não história. Diz-se que Keating contou o segredo a
confiaram em Thompson e enviaram atrás dele um quartermaster, Nicholas Fitzgerald, que era
um navio corsário, o Peruvian - outros dizem tão pobre que nunca foi capaz de organizar uma
que foi a fragata Espí - que os capturou ao largo expedição a Coco. A carta de Fitzgerald com as
da costa do Panamá. Em qualquer caso, toda a instruções de Keating encontra-se numa vitrina
tripulação foi executada exceto Thompson e o no Nautical and Traveller Club em Sydney, Aus-
seu primeiro imediato, James Alexander For- trália, registada sob o número 18755.
bes; poderiam salvar as suas vidas revelando Lenda ou realidade? Quem sabe. O que é cer-
a localização do tesouro. No entanto, uma vez to é que, durante 200 anos, muitos foram à Ilha
na Ilha de Coco, conseguiram escapar. Nunca de Coco em busca do saque e regressaram de
mais foram vistos e o saque desapareceu. mãos vazias. e

69
26 Será que as irmãs
Pollock reencarnaram?
Quando as suas filhas gémeas foram atropeladas por um carro,
o Sr. Pollock desejou com toda a sua alma que voltassem a nas-
cer. Será que conseguiu?

E
ra a manhã de 7 de Maio de 1957 quando, acreditava que a reencarnação era um facto,
na pequena cidade inglesa de Hexham, e tinha rezado a Deus para lhe fornecer provas
um carro atropelou duas raparigas que contestáveis. Apesar da tragédia, John sabia que
estavam a caminho da igreja com uma se rezasse conseguiria que as suas filhas renas-
amiga. A condutora era uma mulher lo- cessem, algo que perturbou tanto Florence que
cal que tinha decidido suicidar-se. As testemu- ameaçou romper o casamento.
nhas viram a sua condução errática a atirar-se
sobre as raparigas, que morreram instantanea- ALGUNS MESES MAIS TARDE, FLORENCE EN-
mente. Os pais devastados, John e Florence Pol- GRAVIDOU e John convenceu-se de que Joanna
lock, tentaram superar o melhor que puderam. e Jacqueline estavam prestes a reencarnar na fa-
E enquanto Florence tentava evitar pensar nas mília. A 4 de outubro de 1958 Florence deu à luz
suas filhas, John mantinha-as na sua mente. duas meninas gémeas, Gillian e Jennifer. Dizia-
Alguns anos mais tarde confessou ter sentido a -se que a primeira tinha nascido com duas mar-
sua presença numa sala da casa. Ele estava con- cas de nascença: uma parecia a cicatriz com que
vencido que a sua morte tinha sido um castigo Jacqueline tinha ficado após um acidente aos três
de Deus. Porquê? Porque, apesar de ter abando- anos de idade, e a outra estava no mesmo local
nado o anglicanismo e abraçado o catolicismo, onde ela tinha tido uma marca redonda escura,

SHUTTERSTOCK

Normalmente, os casos de alegada


reencarnação ocorrem apenas
entre famílias que acreditam na
transmigração das almas.

70
no lado esquerdo da cintura. John levou pouco
tempo a convencer a sua esposa de que as suas
filhas falecidas tinham nascido de novo.
Quando as duas ainda eram bebés, a família
mudou-se para Whitley Bay e, quatro anos mais
tarde, regressou à sua antiga casa em Hexham.
Ali, Jennifer e Gillian começaram a dar detalhes As irmãs Pollock foram
da vida das suas irmãs mortas: reconheceram os objeto de um estudo
seus lugares preferidos, deram o nome correto psiquiátrico detalhado.

GETTY
às suas bonecas e animais de peluche, e até ti-
nham pesadelos recorrentes em que eram atro-
peladas por um carro. Florence ouvia a Gillian geralmente relacionadas com a forma de morte
e Jennifer a discutir os detalhes do acidente. da sua “alma anterior” e não com acidentes ou
Segundo John, quando as gémeas falavam uma marcas de nascença.
com a outra sobre o acidente, era muitas vezes Será que os pais viram o que queriam ver? Muito
no presente, como se estivessem a revivê-lo. provavelmente. Das centenas de casos estudados
Também mostravam uma fobia aos automóveis. por Stevenson, nenhuma das alegadas reencar-
nações teve lugar em famílias que não acredita-
EM 1963, IAN STEVENSON, PROFESSOR DE vam previamente nela. O mesmo é válido para as
PSIQUIATRIA na Faculdade de Medicina da Uni- aparições da Virgem Maria: elas só se manifestam
versidade da Virgínia (EUA) e um apaixonado aos católicos. A esta crítica, Stevenson respondeu:
defensor da reencarnação, entrou em cena. O “Talvez as nossas crenças determinem o nosso
interesse de Stevenson pelo assunto pode ser destino. Se acredita que regressará como membro
atribuído à sua mãe, uma fervorosa seguidora da sua fé, regressará. Se, por outro lado, acredita
da teosofia, um sincretismo do hinduísmo e do que apenas morre e não volta, assim acontecerá”.
cristianismo com gotas de espiritualismo cria- Soa mais a uma desculpa do que a uma explicação.
dos pela fraudulenta medium russa H. P. Bla-
tvasky no final do século XIX. Interessado em A SUA INVESTIGAÇÃO SOFRE DE UMA SÉRIE
doenças psicossomáticas, pensou que a reencar- DE PROBLEMAS METODOLÓGICOS, entre os
nação poderia responder à questão de porque é quais o facto de se ter baseado em relatos de
que uma pessoa apanha uma certa doença em acontecimentos passados, e isso significa confiar
vez de outra. A resposta médica standard não o na fiabilidade de quem conta - neste caso, John e
convencia e pensava que algumas eram produ- Florence. Mas então, não há forma de provar que
zidas “através de uma personalidade anterior”, o relato é verdadeiro, razão pela qual Stevenson
assim como alguns traumas e fobias. estava obcecado com casos que envolviam mar-
Stevenson viajou para se encontrar com os cas físicas. O seu trabalho detalhado sofre do
Pollocks quando as gémeas tinham quatro anos, chamado viés de confirmação: o investigador
e reuniu-se com a família em 1967; depois, após procura por todos os meios confirmar a sua hipó-
alguns anos de correspondência, regressou para tese, mas nenhum dado que descubra que a con-
as ver em 1978, quando Gillian e Jennifer esta- tradiga serve para a invalidar. Um dos próprios
vam na casa dos vinte. De acordo com o que os exemplos de Stevenson é a alegada reencarnação
pais lhe disseram, as raparigas tinham deixado de uma criança que nasceu um dia antes da mor-
para trás memórias dessas “vidas passadas”, de te do anterior proprietário da alma, o que cons-
modo que quando Stevenson lhes falou em 1978, titui uma prova contra a tese reencarnacionista.
elas tinham-nas perdido a todas. Disseram que O psiquiatra rejeitou este caso como irrelevante,
aceitavam a crença dos seus pais de que eram as mas se o fizer sempre que algo ou alguém con-
suas irmãs mais velhas reencarnadas, mas não tradiz a sua hipótese, não poderá desenvolver um
estavam convencidas. trabalho que é suposto ser científico.
Para Stevenson, a reencarnação era a única No entanto, estas objeções não refutam com-
explicação possível para o que Florence e John pletamente a investigação deste médico que, até
lhe tinham estado a contar. De facto, dos 895 hoje, não se sabe que tenha reencarnado, satis-
casos que recolheu de testemunhos de crianças fazendo assim os seus desejos. Para o conhecido
que afirmavam ser a reencarnação de alguém, astrofísico Carl Sagan, o trabalho de Stevenson
35% envolviam marcas de nascença. A diferença era um dos três fenómenos paranormais que va-
das irmãs Pollock era que essas marcas estavam le a pena investigar. e

71
27 O pó de zombie
existe?
Diz-se que uma poção de feiticeiros vodu continha uma toxina
nervosa que deixava as suas vítimas como mortos-vivos.

A indução deste estado pode ter


sido uma forma de manter o
controlo através do medo nas
sociedades tribais haitianas.

SHUTTERSTOCK

A
2 de maio de 1962, Clairvius Nar- ou, como a revista Time escreveu na altura, se
cisse morreu no Hospital Albert se aproximou da sua irmã Angelina, se apre-
Schweitzer no Haiti. A sua morte, sentou como seu irmão morto e ela evidente-
causada por desnutrição e acom- mente gritou horrorizada.
panhada por febre alta, dores for-
tes e problemas respiratórios, foi certificada “A TEORIA EM QUE SE BASEIA A CRENÇA EM
por dois médicos do hospital. Uma das suas ZOMBIES é que alguns feiticeiros haitianos têm
irmãs, Angelina, identificou o corpo e a outra, o poder de trazer de volta à vida pessoas mortas
Marie Claire, autenticou a certidão de óbito, e enterradas”, escrevia Louis P. Mars, professor
colocando-lhe a sua impressão digital. A famí- de psiquiatria no Instituto Haitiano de Etnolo-
lia enterrou Clairvius num pequeno cemitério gia, em 1945. “Nas zonas remotas do país, acre-
em l’Estere. Isso teria sido o fim e não teríamos dita-se que alguns agricultores ricos têm sorte
sabido da existência deste homem, como de nas suas colheitas porque são ajudados por se-
tantos milhões de outros que morrem todos res misteriosos que trabalham nas suas quin-
os anos, não fosse o facto de 18 anos mais tar- tas; que roubam dinheiro para eles; que viajam
de, na Primavera de 1980, ele ter sido visto no a velocidades fantásticas, mais rápidas que
mercado da sua pequena aldeia meio despido os automóveis, e que voam pelo céu como os
e com o olhar perdido. Pelo menos é isso que aviões. Estes são supostamente homens e mu-
a história diz, uma vez que é difícil estabelecer lheres que morreram e foram trazidos de vol-
os factos. Também não está claro se ele foi re- ta à vida por drogas poderosas”. E acrescenta:
conhecido pelos seus compatriotas e parentes “Nunca conheci ninguém no Haiti que me pu-

72
SHUTERSTOCK
Segundo o etnobotânico W. Davis, a chave era a letal tetrodotoxina, também encontrada no peixe-balão.

desse assegurar que tivesse visto pessoalmente Rainbow, que foi transformado num filme pelo
um zombie. No entanto, ouço frequentemente realizador de filmes de terror Wes Craven, ge-
que um zombie vive numa aldeia... e eles são, rou-se uma controvérsia. Nele, afirmava que
de facto, vagabundos doentes que não podem esta toxina poderia transformar uma pessoa
dizer quem são, nem dar qualquer informação num zombie clássico sem consciência. Muitos
que possa lançar luz sobre o seu passado ou o críticos afirmaram que ele tinha exagerado as
seu estado atual”. propriedades químicas do coup de poudre. Co-
mo William Booth salientou na revista Science
EM 1982, A HISTÓRIA DE NARCISSE levou o em 1988, a quantidade de tetrodotoxina en-
etnobotânico da Universidade de Harvard, Wa- contrada na famosa “amostra D”, a única das
de Davis a viajar para o Haiti. Soube que havia oito obtidas por Davis que realmente a conti-
uma poção, chamada coup de poudre, que se nha, não era suficiente para fazer nada. O livro
aplicava de maneira tópica e induzia um estado inteiro, disse ele, era um exagero grosseiro.
de zombie. Depois de obter algumas amostras,
Davis descobriu que o ingrediente chave era a TRÊS ANOS MAIS TARDE, DAVIS PUBLICOU
tetrodotoxina, uma toxina nervosa que com PASSAGE OF DARKNESS, menos sensacionalis-
menos de um miligrama é capaz de matar um ta e muito melhor documentado . O seu ponto de
adulto. Os seus efeitos são bem conhecidos no partida é claro: “As provas sugerem que a zom-
Japão, uma vez que é produzido pelo fígado bificação é uma forma de sanção social imposta
e órgãos reprodutores do peixe-balão - fugu por certos coletivos - as sociedades secretas pou-
-uma das iguarias mais apreciadas no mundo co conhecidas e clandestinas de Bizango - como
japonês, que só pode ser preparada por chefs forma de manter a ordem e o controlo nas comu-
com uma licença especial. Contudo, estima-se nidades locais”. De facto, Davis demonstrou que
que haja cerca de 200 casos de envenenamento pensar nisso como uma forma de obter escravos
por fugu por ano, com uma taxa de mortalida- para trabalhar nos campos é realmente uma to-
de de 50 por cento. lice, dado que a um trabalhador diurno era pago
Os primeiros sintomas de envenenamento um mísero $1 por dia. Do mesmo modo, numa
por tetrodotoxinas aparecem 20 minutos a três sociedade tão violenta como a do Haiti, acreditar
horas após o consumo. Começa com dormên- que transformar alguém num zombie é uma for-
cia dos lábios e da língua, seguida de pareste- ma de se livrar dos inimigos é ainda mais incrí-
sias do rosto e das extremidades, e depois uma vel, quando é mais fácil e menos dispendioso do
sensação de flutuação. Podem ocorrer dores ponto de vista económico eliminá-los por meios
de cabeça, náuseas, diarreia, vómitos, até difi- clássicos. Devemos recordar que os haitianos
culdade em andar. A paralisia espalha-se, tor- pagam aos feiticeiros vodu - bokor - pelas suas
nando impossível a deslocação do paciente, ao poções, tal como Davis fez.
que se deve acrescentar dor na respiração, con- Por outro lado,Davis defendia que acreditar
vulsões, alterações cognitivas e arritmia. Pode que só a tetradodoxina é culpada pelos zom-
acontecer que a vítima, totalmente paralisada, bies é um erro tremendo. De facto, aqueles que
permaneça lúcida até ao momento da morte, sobrevivem não se tornam zombies: as suas fa-
que normalmente ocorre de meia hora a oito culdades mentais não são prejudicadas de for-
horas depois de ingerir a toxina. ma alguma. De acordo com o etnobotânico, a
Quando em 1985 Davis publicou as suas des- toxina é necessária, mas não suficiente: precisa
cobertas no bestseller The Serpent and the de todo o folclore voodoo para que funcione. e

73
28 Haverá uma cidade de
ouro na Amazónia?
Percy Fawcett lançou-se na floresta virgem para o averiguar e
nunca mais regressou. Fosse o seu destino real ou não, ele levou o
segredo para a sepultura.

A
29 de maio de 1925, o explorador Após o hiato da Primeira Guerra Mundial, Fa-
britânico, arqueólogo e tenente- wcett regressou ao Brasil. Em 1925, acompanha-
-coronel do exército Percival Har- do pelo seu filho primogénito, partiu em busca
rison Fawcett (1867-1925) aventu- de uma cidade perdida a que chamou Z, onde se
rou-se no Mato Grosso (Brasil) com encontra “o fogo que nunca se apaga”. Fawcett
o seu filho Jack e um amigo do qual pouco se estava convencido de que esta se encontrava na
sabe, Raleigh Rimmell. Foram vistos pela últi- mata de Mato Grosso. Tinha descoberto um do-
ma vez a atravessar o Alto Xingu, uma região cumento de 1754 descrevendo a expedição de
entre a floresta equatorial do sul da Amazónia e Francisco Raposo, um bandeirante - nome usa-
a savana do Brasil central. do para aqueles que se aventuraram pelo inte-
O aventureiro era amigo dos escritores H. Ri- rior do Brasil - em busca das lendárias minas de
der Haggard - criador da personagem aventu- ouro e prata de Muribeca. Em vez disso, Raposo
reira Allan Quatermain - e Conan Doyle - que encontrou uma cidade de pedra.
se inspirou nas andanças de Fawcett no seu
romance O Mundo Perdido (1912). Depois de FAWCETT CONVENCEU-SE DA VERACIDADE
servir no Ceilão e Norte de África, fez a sua pri- DESTA HISTÓRIA QUANDO ESTUDOU os frag-
meira expedição à América do Sul em 1906 para mentos de cerâmica que tinha recolhido na
mapear a selva na fronteira do Brasil com a Bo- sua viagem ao norte do Chile e uma estatueta
lívia para a Royal Geographic Society. de 25 centímetros que lhe foi dada pelo seu
SHUTTERSTOCK

74
Baseado em cálculos suportados
em crenças paranormais, Fawcet
arriscou que a mítica cidade
pudesse estar na serra do
Roncador, em Mato Grosso, Brasil.

75
O filme TA Cidade Perdida de Z
(2017) é baseado na biografia de
Fawcett, escrita por David Grann.

DOMINIO PÚBLICO

amigo Haggard. Esta estatueta preta de basal- velmente mais dois meses a chegar à cidade Z.
to, agora perdida, representava um sacerdote Pode ser que localizemos a cidade perdida no
com um chapéu de estilo egípcio segurando nas 58º aniversário do pai, 31 de agosto”. Acredita-
suas mãos uma tábua com algumas inscrições. -se que o seu destino era a Serra do Roncador,
Haggard disse-lhe que a estátua procedia do Bra- onde ele encontraria a entrada para a sua tão
sil; e, segundo Fawcett, dos vinte e quatro sím- ansiada cidade atlante.
bolos que apareciam nela, quatorze tinha-os visto
em peças de cerâmica pré-históricas procedentes EM 29 DE MAIO, ENVIOU UMA CARTA À SUA ES-
de diferentes partes do Brasil. Uma das crenças POSA NINA: “Espero estabelecer contacto com a
extravagantes do explorador era a perceção ex- antiga civilização dentro de um mês e alcançar o
tra-sensorial através de um objeto que outra pes- objetivo principal em agosto.... Em qualquer ca-
soa tinha tocado - conhecido como psicoscopia. so, o nosso destino está nas mãos dos deuses! ....
Mantendo o ídolo no escuro, teve uma visão: os Estamos no Campo do Cavalo Morto, latitude 11º
atlantes tinham chegado ao Brasil . 43’ 5” e 54º 35’ de longitude oeste.... Não temas
que falhemos”. Esta foi a sua última comunica-
A SUA CONVIÇÃO ERA TÃO PROFUNDA E O ção; nunca mais se ouviu falar deles. De acordo
SECRETISMO COM QUE MANTINHA os seus com Bryan, o seu pai enviou deliberadamente as
planos era tal que não se sabe com certeza qual coordenadas erradas: “Ele foi muito cuidadoso na
foi a sua rota. Pelas cartas enviadas pelo próprio determinação das posições geográficas. Tenho a
e por Jack, sabe-se que viajaram do Rio de Ja- certeza que ele não queria ninguém a seguir o seu
neiro para São Paulo, onde visitaram o Instituto rasto em Mato Grosso”, disse ele.
Butantan, ainda hoje um centro de referência Em finais de 1927, a North American Newspa-
para os soros anti-ofídicos. De São Paulo par- per Alliance - um dos patrocinadores de Fawcett
tiram para Puerto Esperanza (Argentina), on- - organizou uma expedição de salvamento lidera-
de navegaram pelos rios Paraná e Paraguai no da por George M. Dyott. Saiu de Cuiabá em maio
Iguatemy até Cuiabá, capital de Mato Grosso. de 1928 com quatro outros exploradores e cinco
Ali, Jack Fawcett escreveu à sua mãe e ao seu carregadores locais. Seguindo a rota mais prová-
irmão mais novo Bryan: “Partiremos de Cuiabá vel, Dyott encontrou os primeiros sinais de Fa-
a 2 de abril e levará de seis semanas a dois meses wcett entre os Anauquas: um dos filhos do chefe
para chegar ao local onde o pai chegou na sua levava a placa de identificação de um dos fornece-
viagem anterior, Puesto Bacairí. Levará prova- dores de Fawcett, e na cabana do chefe estava um

76
baú inglês de metal. O chefe, chamado Aloique, O intrépido Percy Fawcett
admitiu ter guiado Fawcett, que tinha sido em- (1867-1925) desapareceu
boscado pelos suiás, uma tribo que vivia no rio do à procura de uma
mesmo nome. cidade habitada por
Dyott partiu com Aloique para a aldeia dos atlantes.
kalapalos e tentou persuadi-los a acompanhá-
-lo até ao local onde diziam ter morrido Fa-
wcett. Uma noite, Aloique e os Kalapalos de-
sapareceram. Dyott começou a temer que ele
próprio também precisasse de ser resgatado.
Depois de prometer mais presentes aos índios
na manhã seguinte, partiu durante a noite co-
mo o diabo numa tempestade. O seu grupo não
parou de remar durante catorze horas. A sua
conclusão: “Que o Coronel Fawcett e os seus
companheiros pereceram nas mãos dos índios
parece-nos estar fora de qualquer dúvida”.

EM MEADOS DO SÉCULO XX, TRÊS GRANDES


DEFENSORES DO ÍNDIO BRASILEIRO, os irmãos
Vilas Boas - Claudio, Orlando e Leonardo - en-
traram em áreas totalmente desconhecidas do
Brasil central. Passaram pelos arredores da aldeia
dos kalapalos e viveram com eles durante cin-
co anos. Tendo ganho a sua confiança, os índios

DOMINIO PÚBLICO
mostraram-lhes o local onde os ingleses tinham
sido enterrados. Chamavam-lhe o túmulo dos
engeleses. Os ossos, estudados pela Sociedade
Real de Antropologia, não eram de Fawcett: eram dievais. Pensa-se que os seus últimos habitantes
demasiado velhos e demasiado pequenos. Mas os tenham sido dizimados por doenças trazidas pa-
Vilas Boas estavam convencidos de que os kalapa- ra a América pelos europeus.
los tinham matado Fawcett para levar tudo o que A povoação mais importante é a X11 na mar-
transportavam. A história do assassinato dos ex- gem oriental do Lago Kuhikugu. Existem valas
ploradores britânicos foi contada aos irmãos por defensivas, paliçadas, estradas, barragens e la-
Izarari, o chefe kalapalo, no seu leito de morte. gos utilizados para a piscicultura. Desde então,
No entanto, a antropóloga Ellen Basso, que viveu foram descobertas em toda a Amazónia provas
com os kalapalos durante vários anos, conta no de algum tipo de civilização de que nada sabía-
seu livro The Last Cannibals, de 1995 , que o Che- mos: linhas gigantescas desenhadas na terra,
fe Enumi negou fortemente que Fawcett tenha restos de povoados fortificados, monumentos
sido morto pelos seus antepassados. megalíticos e redes complexas de estradas onde
A história tomou outro rumo no início deste sé- supostamente não haveria mais do que selva.
culo. Na nascente do rio Xingu, o antropólogo da
Universidade da Florida Michael Heckenberger, ERA KUHIKUGU A CIDADE Z DE FAWCET? MUI-
trabalhando entre os kuikuros, descobriu uma TOS PENSAM QUE SIM. O que é certo é que os
cidade perdida na floresta tropical amazónica, restos desses três exploradores descansam algu-
Kuhikugu - um nome que significa “o verda- res no Xingu. O mesmo destino deve ter acon-
deiro peixe-agulha”. Numa área da Amazónia tecido às mais de cem pessoas pertencentes às
que se acredita ter sido sempre floresta virgem, treze expedições que entraram na perigosa selva
surgiu um complexo urbano, uma aglomeração amazónica em busca dela, a maioria em busca
de cidades e aldeias interligadas, cobrindo uma de publicidade e notoriedade. Nenhum deles
área de 20.000 quilómetros quadrados. Kuhiku- atendeu ao aviso de Fawcett: “Se eu não conse-
gu, que era habitada desde há 1500 anos atrás guir sair sozinho, outros com menos experiên-
até cerca de 400 anos atrás, estima-se que tenha cia também se perderão, e eu não quero que
sido o lar de mais de 50 000 almas, um número ninguém perca as suas vidas por mim. Portanto,
que a coloca ao nível das cidades europeias me- não deixem ninguém vir à minha procura” e

77
29 Porque é que Jacqueline
Fitzsimons ardeu?
A gordura acumulada no corpo poderia ser a explicação científica
para aquilo a que alguns chamam combustão humana espontânea.

J acqueline era uma adolescente de 17


anos que estudava no Colégio Técnico
de Halton, em Cheshire, Inglaterra. Se-
gundo os seus professores, era uma ra-
pariga alegre, popular e trabalhadora.
A 8 de janeiro de 1985, Jacquie, como era co-
Professores e alunos conseguiram apagar o
fogo com toalhas molhadas e apressaram-na
para o hospital. Tinha 18% da pele queimada.
Duas semanas mais tarde, morreu devido às
queimaduras.
Durante a investigação do incidente, tudo o
nhecida, estava a conversar casualmente com que podia ser recriado foi recriado. Um mane-
os seus colegas de turma num dos corredores quim foi mesmo equipado com roupas seme-
da escola quando de repente disse a uma das lhantes às usadas por Jaquie. Bert Gillies, che-
suas amigas, Karen Glenholmes, que estava a fe dos bombeiros do condado, disse durante a
começar a sentir-se mal e que tinha uma sen- audiência: “Tem de haver alguma explicação,
sação de ardor nas costas. Numa entrevista, mas também devemos considerar a combustão
dada à BBC, Karen disse que “havia um cheiro humana espontânea como uma possibilidade.
a fogo lento e ela começou a gritar por aju-
da, dizendo que estava a arder. Não havia fo- PARECE ALGO SAÍDO DE UM FILME, MAS NÃO
go nas suas roupas, mas quando as rasgámos, SE TRATA DE UM FENÓMENO NOVO. Os pri-
pudemos ver que por baixo das suas roupas meiros relatos de combustão humana espontânea
ela estava a arder. datam de 1641 e, desde então, registaram-se cerca

SHUTTERSTOCK

Os membros são muitas vezes a


única coisa que não fica em cinzas
nos casos documentados de pessoas
que de repente se incendiaram.

78
cujo corpo foi encontra-
do queimado perto de
uma lareira, numa sala
ilesa. Para este e outros
casos, o chamado “efei-
to pavio” é muitas vezes
dado como explicação:
uma pequena chama,
como um cigarro aceso,
atinge a roupa da víti-

ARCHIVO TK
ma, penetra e queima a
pele, libertando alguma
gordura subcutânea que
a roupa queimada absorve, atuando como um
pavio. Esta gordura, uma vez aquecida, pene-
tra na roupa como cera num pavio de vela, for-
necendo o combustível necessário para manter
a vela acesa. Inicialmente, a água no corpo po-
SHUTTERSTOCK

Charles Dickens descreveu uma morte espontânea de impedir a combustão, mas por se tratar de
por combustão num dos seus romances (à direita). uma combustão lenta, evapora-se demasiado.
Normalmente, o corpo humano tem energia
de 200 casos moderadamente documentados de suficiente armazenada sob a forma de gordu-
pessoas que se incendiaram sem razão aparente. ra para se queimar a si próprio. O efeito pavio
O fenómeno é tão marcante que aparece em ro- também explica porque é que os membros pa-
mances como Redburn de Herman Melville, Al- recem intactos: porque tendem a ter menos
mas Mortas do autor russo Nikolai Gogol e Casa gordura, não ardem. Também explica porque
Desolada de Charles Dickens, onde um sórdido muitas das vítimas têm sido pessoas obesas.
comerciante alcoólico, Krook, acabou como um
monte de cinzas no chão e “uma camada escura O EFEITO PAVIO FOI TESTADO EXPERIMEN-
e gordurosa nas paredes e no teto”. TALMENTE EM 1998, durante um programa da
Dickens foi acusado de matar uma persona- BBC com um porco embrulhado num cobertor.
gem de forma implausível, e o escritor defen- O corpo demorou muito tempo a inflamar-se,
deu-se dizendo que a morte foi inspirada num mas depois de arder durante cinco horas, as
caso real. “Há referencia de uns trinta casos, o partes que tinham estado em contacto com
mais famoso dos quais, o da Condessa Cornelia o fogo, incluindo os ossos, foram reduzidas a
de Bandi Cesenate, foi investigado e descrito cinzas. Mas esta explicação ainda sofre de uma
em grande pormenor por Giuseppe Bianchini, série de problemas: um deles é que a expe-
um prebendario de Verona, uma pessoa distin- riência necessitou de uma chama inicial e um
ta no mundo das letras, que publicou um relato acelerador. Os defensores da combustão hu-
do mesmo em 1731 em Verona e mais tarde o mana espontânea contra atacam dizendo que,
republicou em Roma”, escreveu. se se trata de um processo lento, porque é que
as vítimas não fogem quando explodem em
SE PERGUNTAR A UM CIENTISTA SE UM COR- chamas? Se está a arder, mexe-se, atira-se ao
PO HUMANO PODE DE REPENTE INCENDIAR- chão, empurra a mobília... e, em muitos casos,
-SE, este dirá que não . Como o corpo é com- parece que eles ficaram ali parados, em silên-
posto principalmente de água e as únicas coisas cio, a ver o seu corpo arder.
inflamáveis são tecido adiposo e gás metano, O mistério da morte de Jacquie ainda persis-
a possibilidade de um fenómeno real parece te. Suspeita-se da aula de cozinha que teve an-
muito remota. Muitos rejeitam-no como uma tes de se queimar. Até a própria Jacquie, quan-
coisa real e afirmam que uma fonte de fogo não do interrogada no hospital, disse que tinha de
detetada, tal como um fósforo ou um cigarro, é ter sido o fogo da cozinha, e o júri de instrução
o verdadeiro culpado. - após uma deliberação de dez minutos - con-
As vítimas são geralmente encontradas perto cluiu que esta era a causa. Claro que não expli-
de uma fonte de incêndio, como foi o caso em caram como demorou quase dez minutos para
2010 de Michael Faherty, um homem de 76 anos as roupas pegarem fogo. e

79
30 De onde veio Kaspar
Hauser?
O mistério acompanhou este jovem até à sepultura em 1833. Afir-
mava ter sido criado em cativeiro até à idade de dezasseis anos.

N
o cemitério da pequena cidade bá-
vara de Ansbach, existe uma lápi-
de peculiar: “Hic jacet Casparus
Hauser”.Aenigma sui temporis
/ ignota nativitas / occulta mors
(Aqui jaz Kaspar Hauser. Enigma do seu tempo
/ nascimento desconhecido / morte misteriosa).
Por baixo dela encontram-se os restos mortais de
um jovem de 21 anos de idade, que morreu esfa-
queado em dezembro de 1833.
Hauser aparece na história a 26 de maio de 1828
em Nuremberga, quando o mestre sapateiro Beck
o encontrou a sair de uma taverna. Estava a trope-
çar, confuso e atordoado, e a resmungar de forma
incompreensível. De aspeto ameninado, mostrou
duas cartas que levava consigo. Uma delas, pre-
sumivelmente escrita pela sua mãe, declarava que
tinha nascido a 30 de abril de 1812 e que o seu no-
me era Kaspar, e que o seu pai, falecido, era um
soldado do 6º regimento de cavalaria .

A OUTRA, ANÓNIMA, DATADA DE DEZASSEIS


ANOS MAIS TARDE, ERA DIRIGIDA ao Capitão
Von Wessenig do 6º Regimento. O título dizia:
“da fronteira bávara”, e afirmava que o rapaz lhe
tinha sido confiado em bebé para ser educado
na fé cristã e que lhe estava agora a ser enviado
porque o jovem queria ser um soldado e implo-
rava-lhe que o fosse buscar... A análise posterior
da caligrafia determinou que ambas as cartas ti-
nham sido escritas pela mesma mão.
MICHAEL ZASCHKA

Pouco depois de chegar a Nuremberga, Hauser


permaneceu sob a custódia do Presidente da Câ-
mara Andreas Hiltel, e foi então que começou a
contar parte da sua história. Contava como tinha
vivido num lugar escuro e dormira sobre palha;
que um homem lhe deixava pão e água, mas por
vezes tinha um sabor amargo, e era nessas ocasiões
que acordava com o cabelo e as unhas cortadas.
Aquele homem, que ele nunca vira, ensinou-o a
escrever o seu nome e a andar. Além disso, o es-
Estátua de Kaspar na cidade bávara de Ansbach.

80
O filme O Enigma de Kaspar
Hauser (1974) é uma crítica à
sociedade burguesa da época.
ARCHIVO TK

tranho supostamente ensinou-lhe a dizer a frase porque o rapaz se lembrava de algumas palavras
“Quero ser um cavaleiro, como o meu pai” - em nessa língua. Investigou até a mínima pista que
antigo dialeto bávaro - mas Hauser afirmou que o próprio Hauser lhe comentava, como quando
não compreendia o significado destas palavras. disse que a Condessa húngara Maytheny era sua
No final, as autoridades entregaram-no à mãe. Tudo em vão. Após a morte de Hauser, Sta-
custódia do professor, filósofo e poeta Friedri- nhope publicou o resultado da sua investigação:
ch Daumer. Com interesses ocultistas, Daumer “Confesso abertamente que fui enganado”.
tentou lançar luz sobre o rapaz, experimentan-
do a homeopatia e o mesmerismo, que estavam EM DEZEMBRO DESSE ANO, STANHOPE
muito na moda na altura. A 17 de outubro de TRANSFERIU-O PARA ANSBACH PARA O CO-
1829, Daumer encontrou-o ferido na cave da ca- LOCAR sob a proteção do reto e pedante mestre
sa. Ele disse que um homem encapuzado tinha de escola chamado Johann Georg Meyer, uma
tentado matá-lo. Daumer não acreditava nele; relação que rapidamente ficou azeda devido às
suspeitava que era um rapaz com uma tendên- constantes mentiras de Hauser. Nesse mesmo
cia incontrolável para mentir e exagerar. Como ano, Hauser conseguiu um emprego como co-
o rapaz não conseguiu justificar claramente o pista numa firma de advocacia enquanto a sua
suposto ataque que tinha sofrido, a suspeita vida era o tema de conversa da cidade.
converteu-se em certeza. O professor pensou A 9 de dezembro de 1833, Hauser teve uma dis-
que tinha sido o próprio Hauser a infligir os feri- cussão muito forte com Meyer. Stanhope espera-
mentos a si próprio. va visitar Ansbach no Natal, e Meyer disse-lhe que
não sabia o que ia acontecer. E na noite de 14 de
DESDE QUE APARECEU, OS RUMORES SOBRE dezembro Hauser chegou a casa com uma ferida
A SUA ORIGEM eram incessantes. Alguns di- no lado direito do peito. Disse que um homem o
ziam que era uma criança selvagem, outros que tinha atacado no jardim do Residenz Ansbach en-
tinha uma origem principesca associada à nobre quanto lhe atirava um saco. A polícia encontrou-
casa de Baden, e muitos consideravam-no um -o: era roxo e no interior estava uma mensagem
vigarista. que só podia ser lida em frente a um espelho. O
Em 1830, encontrámo-lo a viver com a família seu conteúdo revelava que ele veio de Hauser, a
Biberbaschs, onde a 3 de abril sofreu um miste- fronteira da Baviera, e que as iniciais do seu no-
rioso acidente com uma pistola que disparou e me eram M. L. Ö. Mas não convenceu ninguém.
o feriu no lado direito da cabeça. As autoridades O tribunal de investigação suspeitava que ele
intervieram novamente e atribuíram-lhe como próprio tinha escrito a nota. Alguns erros grama-
novo lar adotivo o do Barão Von Tucher, que em ticais, típicos de Hauser, apareciam nela. O tribu-
breve se queixava da vaidade e das mentiras de nal concluiu que o jovem se tinha esfaqueado a si
Hauser. Em 1831, o caso atraiu a atenção do fi- próprio. Morreu a 17 de dezembro desse ano.
lantropo inglês Lord Philip Henry Stanhope, que A memória de Hauser ainda permanece no
solicitou a sua custódia. Stanhope gastou grandes jardim do Residenz Ansbach: “Hic occultus oc-
somas de dinheiro a tentar resolver o enigma da culto occisus est” (Aqui um homem misterioso
sua origem. Acreditava ter procedência húngara foi assassinado de uma forma misteriosa). e

81
O governo do Panamá teve de
pedir ajuda ao povo indígena
para as encontrar.

EFE

31 O que aconteceu a
Kremers e a Froon
no Panamá?
O final das duas jovens turistas é digno de um filme de terror.
Ninguém sabe onde foi parar a maior parte dos seus corpos.

N
a manhã de 1 de abril de 2014, dias mais tarde, as autoridades começaram a
duas jovens holandesas, Kris procurá-las. Dez semanas depois, uma mulher
Kremers, de 21 anos, e Lisanne pertencente à tribo indígena Ngäbe entregou
Froon, de 22 anos, que tinham uma mochila azul à polícia; disse tê-la encon-
vindo ao Panamá para umas fé- trado na margem de um rio perto da sua aldeia
rias na região de Boquete, foram dar um passeio na província de Bocas del Toro. Era de Lisanne.
na zona circundante. Em Boquete, isso significa A mochila continha dois óculos de sol, 87 dóla-
ir em busca da natureza selvagem, da aventu- res, o seu passaporte, uma garrafa de água, dois
ra. Mas elas não regressaram nessa noite. Dois soutiens, uma câmara fotográfica e dois telefo-

82
É fácil perder-se na selva que
rodeia Boquete, onde as
raparigas desapareceram.

SHUTTERSTOCK

nes. Estes mostravam que tinham sido feitas sete Nesse dia, foram tiradas noventa fotografias
chamadas de emergência. A primeira foi feita a 1 em flash entre a uma e as quatro horas da ma-
de abril a partir do iPhone de Kris às 16:39 e ou- nhã, uma a cada dois minutos. Algumas delas
tra às 16:51 do Samsung Galaxy de Lisanne, mas mostram imagens nítidas mas estranhas. Duas
não havia cobertura de rede. Tentaram em vão foram tornadas públicas: a primeira mostra
várias vezes ao longo dos dois dias seguintes. uma rocha rodeada de vegetação, e um minuto
Depois das 5 da manhã de 5 de abril, a bateria depois outra apresenta uma rocha sobre a qual
do telefone de Lisanne esgotou-se. O iPhone de existe um ramo e invólucros prateados, como
Kris não voltou a chamar, mas ficava intermi- as de pastilhas elásticas. Uma terceira apareceu
tente, talvez à procura de um sinal que nunca num documentário holandês e mostrava o que
teve. Depois, a 6 de abril, alguém digitou várias parece ser a cabeça de Kris com algum tipo de
vezes o PIN errado; nunca introduziu o PIN cor- golpe na parte posterior.
reto. Entre 7 e 10 de abril, o iPhone tentou ligar
77 vezes para as emergências, enquanto eram A DIFICULDADE DE REALIZAR BUSCAS NA
procuradas com helicópteros. A 11 de abril, o te- SELVA levou o governo panamense a pedir ajuda
lefone ligou-se às 10:51 da manhã apenas para se ao povo indígena, que é capaz de resistir ao calor e
desligar definitivamente às 11:56. humidade extremos da área. Dias depois, encon-
traram parte dos seus restos mortais ao longo do
A CÂMARA FOTOGRÁFICA LEVANTOU MAIS rio Culebra, assim chamado porque é uma área
INCÓGNITAS SOBRE O DESAPARECIMENTO. infestada de cobras. A 750 metros do local onde
Nas primeiras fotos, parecem felizes em El Mi- a mochila foi descoberta, encontraram a bota de
rador, o pico de onde os dois oceanos podem Lisanne, que continha o pé e parte do tornozelo, e
ser vistos. Mas depois fizeram algo muito es- a bacia de Kris; e, 3 km mais à frente, a costela de
tranho: em vez de regressarem a Boquete, as Kris e outros restos mortais. Para chegar ao local
raparigas, incompreensivelmente, continua- onde os seus ossos foram encontrados, as rapari-
ram em frente para o interior da selva. A última gas tiveram de passar por cinco ravinas e atraves-
fotografia da câmara mostra Kris a atravessar o sar três rios. Mas o mais estranho é que os calções
leito de um rio num trilho indígena. De acor- de Kris foram encontrados bem dobrados numa
do com os dados Exif - um ficheiro gerado pela rocha a montante, a mais de 3 km de onde os res-
câmara digital que regista informações sobre a tos foram encontrados. Incompreensivelmente,
data e hora, as definições da câmara e os dados apenas 10% de Lisanne foram encontrados e me-
técnicos da fotografia, tais como abertura, ve- nos do que 5% de Kris. A análise forense revelou
locidade do obturador, distância focal, etc. - a que os ossos mostravam uma ausência completa
fotografia foi tirada antes da primeira chamada de marcas - seja de golpes, garras ou facas - e uma
de emergência. Depois disto, foi tirada uma no- das costelas de Kris mostrou um elevado grau de
va fotografia, a número 509. Apagada, a polícia branqueamento de fósforo.
forense holandesa não a conseguiu recuperar. O que aconteceu a estas jovens holandesas na
Não há mais fotografias até 8 de abril. selva panamense? e

83
32 O que aconteceu ao
Mary Celeste?
O navio estava em perfeito estado quando foi encontrado no alto
mar, mas dos seus ocupantes nunca mais se ouviu falar...

É possível que, temendo que


o navio se afundasse, o
capitão tenha ordenado a sua
evacuação.

SHUTTERSTOCK

A
4 de dezembro de 1872, o navio Dei sua esposa; e a 7 de novembro, o Mary Celeste
Gratia, que navegava no Atlântico, deixou o porto de Nova Iorque em direção à ci-
avistou um brigantino de 31 metros dade italiana de Génova.
que navegava a toda a velocidade a Quando o abordaram, para sua surpresa,
400 milhas a leste dos Açores, em descobriram que o navio estava em bom estado,
direção ao Estreito de Gibraltar. Depois de o embora apenas uma bomba estivesse a funcio-
observar durante duas horas, a tripulação con- nar. Havia muita água no convés e pouco mais
cluiu que estava à deriva. À medida que se apro- de um metro nos porões. O relógio não funcio-
ximavam, podiam ler o seu nome no costado: nava, a bússola estava destruída e faltavam o
Mary Celeste. O capitão do Dei Gratia, David sextante e o cronómetro marinho.
Reed Morehouse, ficou surpreendido. A 4 de Por outro lado, o único bote salva-vidas que
Novembro, ele e a sua esposa tinham estado a tinha parecia ter sido lançado. Tudo indicava
jantar com o seu capitão, Benjamin Briggs, e a um abandono voluntário do navio. A carga,

84
WIKI
1701 barris de álcool industrial, estava intac-
ta, tal como os alimentos e a água, suficien-
tes para seis meses sem reabastecimento. Da
carga, apenas nove dos barris estavam vazios.
Quando revistaram a casa do leme e a cabine
do capitão, descobriram que faltavam todos
os documentos relacionados com o navio,
exceto o diário de bordo. A última entrada foi
às 5 da manhã do dia 25 de novembro e decla-
rava que o navio se encontrava a 100 milhas a
oeste dos Açores.
Dez dias após o seu encontro, a Dei Gratia
levou o navio para Gibraltar, onde um tribunal
do vice-almirantado convocou uma audiência
para determinar se os resgatadores tinham o
direito de cobrar o estipulado para um resgate
no alto mar às seguradoras do navio. O pro-
curador-geral de Gibraltar, um jogador em-
pedernido chamado Frederick Solly-Flood,
suspeitou de um crime de pirataria e assassi- O Capitão Benjamin Briggs desapareceu sem deixar rasto.
nato por parte dos marinheiros e começou a
investigar. Três meses mais tarde, o tribunal nou que se abandonasse o navio. No entanto,
não encontrou provas de crime. Finalmente, os marinheiros da Dei Gratia encontraram a
os marinheiros receberam um pagamento, escotilha principal fechada e relataram não ter
mas apenas um sexto dos 46.000 dólares pelos cheirado nada de anormal. E embora nove bar-
quais o navio e a sua carga tinham sido segura- ris no porão estivessem vazios, eram feitos de
dos. Parece que o procurador convenceu o juiz carvalho vermelho, não de carvalho branco -
de que a tripulação da Dei Gratia não era tão que é mais poroso e, portanto, mais suscetível
inocente como se poderia pensar. de vazar.
Então, o que aconteceu? As notas de Solly
NENHUM DOS 10 OCUPANTES DO MARY CE- Flood, que transcreveu os últimos cinco dias
LESTE - sete marinheiros, o Capitão Briggs, a do diário de bordo do navio - perdido em 1885
sua esposa e a sua filha Sophia de dois anos - foi - parecem indicar que o Mary Celeste estava na
alguma vez encontrado. Curiosamente, no ano realidade a 120 milhas a oeste de onde o capitão
seguinte, pescadores espanhóis recuperaram pensava que estava, provavelmente devido a
duas jangadas: uma com quatro corpos e outra um cronómetro impreciso.
com um e uma bandeira americana. Sobrevi-
ventes da Mary Celeste? Nunca se saberá. Fo- DE ACORDO COM OS CÁLCULOS DO CAPI-
ram enterrados numa vala comum sem nunca TÃO, DEVERIAM TER AVISTADO terra três dias
terem sido identificados. mais cedo, e no dia anterior à chegada aos
Alguns investigadores do caso sugerem que Açores, Briggs mudou de rumo e dirigiu-se
o desaparecimento misterioso tem a ver com para norte da ilha de Santa Maria, talvez em
a carga perigosa que transportava. Os mari- busca de refúgio. Na noite anterior à última
nheiros da Dei Gratia descobriram que nove entrada no diário de bordo do navio, o Mary
barris de álcool estavam vazios. Devido ao mau Celeste enfrentou novamente mares agitados
tempo prevalecente, é possível que o capitão, e ventos de mais de 65 km/h. Acrescentemos
que nunca tinha transportado tal carga antes, a esse mar agitado, um cronómetro defeituoso
não tenha aberto as escotilhas para ventilar o e apenas uma bomba em funcionamento num
porão até se aproximar do tempo mais quen- porão tão cheio que era impossível determi-
te dos Açores. Quando os abriu, o vento calmo nar a quantidade de água que tinha entrado no
e leve que soprava na manhã do dia 25 causou casco. Briggs não tinha forma de prever se o
algo de invulgar. O fumo e o vapor criados pelo seu navio se afundaria. Tendo avistado terra e
derrame dos nove barris escaparam para o ex- temendo que pudessem afundar-se a qualquer
terior e assustaram a tripulação. Temendo que momento, teria ele emitido a ordem de aban-
tudo pudesse explodir, o Capitão Briggs orde- donar o navio? e

85
33 Porque é que os cães se
suicidam na ponte Overtoun?
São mais de cinquenta os cães que se atiraram de uma altura de
15 metros. O cheiro das martas em baixo pode ser a razão.

Um homem atirou o seu


filho porque disse que
estava possuído pelo diabo.
Outras lendas urbanas
falam de fantasmas ou

N
SHUTTERSTOCK

o condado escocês de West Dun- uma queda de quinze metros, embora se acre-
bartonshire, numa colina sobre dite que nos últimos cinquenta anos quase uma
o rio Clyde, fica Overtoun Hou- centena possa ter saltado da ponte. Um desses
se, um belo exemplo da arquite- casos é o do animal de estimação de uma Sra.
tura senhorial escocesa de mea- Mackinnon. Como contou aos media, um dia,
dos do século XIX. Inicialmente, as carruagens quando estava acompanhada pela sua cadela
não conseguiam lá chegar, pois a estrada de Bonnie, uma border collie - um tipo de pastor
acesso a partir do leste era demasiado íngreme. escocês - algo se apoderou dela ao aproxima-
Portanto, em 1892, começou a construir-se rem-se da ponte. “No início, Bonnie congelou,
uma ponte sobre o lado ocidental da proprie- mas depois foi como se uma estranha energia a
dade, que foi concluída três anos mais tarde. O tivesse tomado; ela fugiu e saltou para o vazio.
arco central preenche a queda de quinze me- Tinha a certeza de que estava morta. Quando a
tros no vale profundo através do qual corre o Sra. Mackinnon chegou ao local onde tinha caí-
Overtoun Burn, flanqueado de cada lado por do, a cadela começou a mover-se e tentou pôr-
um arco mais pequeno através do qual corre -se em pé. Curiosamente, nem todos os cães
uma estrada em cada margem. Este edifício é saltam; tendem a fazê-lo mais aqueles com fo-
famoso, não por ser um dos mais representa- cinhos largos, como labradores, retrievers ou
tivos da arquitetura escocesa, mas porque é collies como Bonnie.
conhecido como a “Ponte dos Cães Suicidas”. Não é surpreendente que se tenham espalhado
Foram documentados cerca de cinquenta ca- rumores sobre maldições ou presenças sobrena-
sos de cães que saltaram da ponte, enfrentando turais que fazem com que os cães se sintam perse-

86
guidos; ou que se suicidem, por empatia, porque pedonal. Em todo o caminho, não há declives ou
os seus donos também querem tirar as suas pró- penhascos, pelo que o cão deduz que está num
prias vidas. plano. Na ponte, as paredes de pedra criam barrei-
A explicação sobrenatural, agora ardentemen- ras visuais e sonoras para um cão, e como o topo
te defendida por um professor de religião e filo- das paredes está coberto de hera, cria uma ilusão
sofia de Glasgow chamado Paul Owens, come- de ótica. A partir do chão, o cão não se apercebe
çou a tomar forma em outubro de 1994, quando que há uma queda de quinze metros até ao último
Kevin Moy, um homem de 32 anos, largou o seu momento, quando já é demasiado tarde para mu-
filho de duas semanas de idade da ponte porque dar a direção do salto.
acreditava que era o diabo. No julgamento, Moy
- um técnico de laboratório deprimido - teste- MAS O QUE OS FAZ SALTAR? COMO EXPLICAR O
munhou que estava certo de que o diabo tinha COMPORTAMENTO DE BONNIE? O etólogo Da-
colocado uma marca de nascença na cabeça da vid Sands e Bob Hill, um pastor protestante que,
criança e que ele e o bebé eram os culpados da juntamente com a sua esposa, dirige um centro
Guerra do Golfo. Temia também que os dois pu- de acolhimento em Overtoun House há mais de
dessem destruir o mundo ao infetarem a huma- duas décadas, têm-no claro: o cheiro dos animais
nidade com um vírus e, para o evitar, tinha de se vindos do rio Overtoun Burn. Mais precisamente,
matar a si próprio e ao seu filho. De facto, Moy das martas que aí vivem. Sands diz que o suicídio
tentou suicidar-se várias vezes após ter atirado a canino começou nos mesmos anos que a invasão
criança da ponte. da marta americana na zona. A marta tem glându-
las que segregam uma substância extremamente
COMO TODOS SABEMOS, OS CÃES NÃO COME- odorífera que enlouquece os cães, como demons-
TEM SUICÍDIO. Então porque saltam? São encora- trado numa experiência para a televisão escocesa.
jados a fazê-lo por um fantasma? “Após onze anos Isto também explica porque saltam os cães de na-
de investigação, estou convencido de que há um riz grande, que são muito mais sensíveis ao cheiro.
espírito por detrás de tudo isto”, diz Owens. Pa- É claro que esta teoria não satisfaz toda a gen-
rece que a perceção dos cães está errada. Primei- te. Para alguns, há dois factos intrigantes que a
ro, porque a aproximação à ponte é uma estrada hipótese de Sands não explica: um, que todos os
asfaltada de aspeto inócuo, bordeada de ambos os cães saltem aproximadamente no mesmo lugar;
lados por árvores e arbustos impenetráveis. Uma e dois, que aqueles que não morrem na queda,
família com um cão aproximar-se-ia da ponte co- tentem saltar novamente. Infelizmente,não há
mo em qualquer parque da zona com uma ponte provas que sustentem tais alegações. e

SHUTTERSTOCK

Os cães de focinho longo, como os border collie, são os


que saltam a ponte com mais frequência.

87
O grande Houdini partilhou
um código secreto com a sua
esposa para demonstrar se era
LIBRERÍA DEL CONGRESO

possível comunicar com ela


depois de morto.
EE. UU.

34 Será que um espírito


enganou Houdini?
Perito na arte das ilusões, o brilhante mágico dedicou o fim da
sua vida a desmascarar falsos médiuns e espíritas.

88
S
e lhe perguntassem quem é o mágico cantado, dedicou o resto da sua vida a expô-los
mais famoso de todos os tempos, quase e a ridicularizá-los.
de certeza que diria Harry Houdini. O Em dezembro de 1922, a prestigiosa revista
seu nome era na realidade Erik Weisz científica Scientific American ofereceu um pré-
(mais tarde mudado para Erich Weiss mio de 2500 dólares ao primeiro médium que
quando emigrou para os Estados Unidos) e era produzisse um fenómeno psiquico autêntico.
filho de um rabino húngaro chamado Mayer O comité era constituído por William McDou-
Sámuel Weisz (1829-1892) e Cecilia Steiner gall, Professor de Psicologia da Universidade de
(1841-1913). A família foi obrigada a emigrar Harvard, Daniel Fisk Comstock, anteriormente
para os Estados Unidos em consequência do do Departamento de Física do Massachusetts
anti-semitismo que se respirava no Império Institute of Technology, Walter Franklin Prin-
Austro-Húngaro. Instalou-se em Appleton, ce da American Society for Psychical Research,
Wisconsin, onde o seu pai tinha sido nomeado o investigador psíquico Hereward Carrington,
rabino de uma nova congregação. o matemático e parapsicólogo James Malcolm
16 de julho de 1916 marcou um ponto de vi- Bird e Harry Houdini. O secretário seria o editor
ragem na vida de Harry Houdini (1874-1926). da revista, Orson Desaix Munn.
Nesse dia, a sua mãe morreu, o pior e mais Quatro médiuns tentaram ganhar o prémio,
amargo trago da sua vida, como ele confessou. mas nenhum conseguiu enganar Houdini, que
Pela primeira vez, este trabalhador compulsivo era a estrela do comité. Em 1923, foi recebida
sentiu-se apático em relação ao trabalho. Co- nos escritórios da revista uma carta de um mé-
meçou a percorrer as casas dos médiuns espíri- dico de Boston de cinquenta e poucos anos cha-
tas à procura de uma mensagem da sua proge- mado LeRoi Goddard Crandon. A sua bela es-
nitora, mas apenas encontrava fraude. Desen- posa, Mina Margery Crandon, que ele conhecia
há mais de vinte anos, tinha grandes poderes
psíquicos. Houdini não podia imaginar que este
viria a ser o maior revés da sua carreira.

MCDOUGALL COMEÇOU A INVESTIGAR O


CASO POR CONTA PRÓPRIA, ASSISTIDO POR
DOIS colegas do departamento de psicologia
de Harvard. As suas tentativas para desvendar
o mistério foram em vão, não devido à com-
plexidade do caso, mas devido aos impedi-
mentos de Crandon. Era o marido de Margery
que controlava as sessões e exigia que qual-
quer pessoa que suspeitasse de alguma coisa o
dissesse em voz alta. E quem tornasse públicas
as suas dúvidas não era convidado a regressar.
Em meados de novembro, Malcolm Bird vi-
sitou a família Crandon. A marcação provocou
uma série de fenómenos que impressionaram
Bird, mas o que mais o impressionou foi a be-
leza da médium. Em abril de 1924, todos os
membros científicos do comité estavam confu-
sos. Sons, objetos em movimento... não conse-
guiam encontrar explicação para o fenómeno.
Bird escreveu um artigo na edição de julho da
revista afirmando que havia um candidato ca-
paz de ganhar o prémio: Margery.
Houdini não pôde assistir às sessões porque
estava em digressão e ficou zangado com Bird.
O ilusionista, com os dois grandes amores Como se atreveu a publicar tal artigo sem ter
da sua vida: a sua esposa, Bessie, e a sua procurado a opinião de todos os membros do
mãe, a judia alemã Cecilia Steiner. comité? Por seu lado, o casal Crandon odiava
Houdini: “Vamos crucificar Houdini e provar
LIVRARIA DO CONGRESSO EUA.

89
O matemáticoJ. Malcolm
Bird (1886-1964) traiu a
comissão de investigação
ao ser seduzido pela
charada da bela médium
Margery.

WIKI

que Margery é a médium mais poderosa que já sentou-se à esquerda de Margery com a perna
existiu”, escreveu o seu marido. direita das calças enrolada para cima. A perna
No dia 23 de junho, o mágico preparou-se do ilusionista podia sentir como ela adianta-
exaustivamente para a primeira sessão. Uma va o seu pé lentamente à medida que a sessão
das provas consistia em Walter, o espírito a ser avançava. Quando finalmente alcançou a caixa,
invocado por Margery, tocar uma campainha Houdini notou que Margery tensionava os mús-
escondida dentro de uma caixa, premindo um culos quando o sino tocava. Quando a atuação
pedal situado na parte superior. Houdini co- de Walter com a caixa terminou, ele sentiu co-
locava a caixa entre as pernas e vigiava que a mo ela retirava a perna e a retornava à sua po-
médium não a fizesse tocar com o pé. O mágico sição original.

90
Na sessão do dia seguinte, Houdini pediu a O editor da revista Scientific American tinha
Munn que se sentasse à sua esquerda. Queria sugerido ao mágico que concebesse um dispo-
ter uma mão livre em vez de formar a clássica sitivo que impedisse a fraude. Assim, Houdini e
corrente espiritista. Quando a mesa começou a o seu assistente James Collins inventaram uma
mover-se, Houdini libertou-se. Margery estava caixa parecida com a dos antigos banhos a va-
a usar a sua cabeça para a levantar. por, com um buraco para a cabeça e dois para
Depois de Houdini ter apresentado as suas os braços. Para maior segurança, as mãos da
conclusões ao resto do comité, todos eles decidi- médium deveriam ser seguradas pelo próprio
ram esperar um pouco mais, continuar os testes Houdini e pelo presidente do comité, Prince.
e ver se havia novas provas de fraude. É claro que A 25 de agosto, Houdini apareceu em Boston
os Crandon não deveriam saber nada disto. com a caixa. Surpreendidos, os Grandon pro-
testaram. Esta não era a única novidade: as no-
BIRD NÃO GOSTOU DE TAIS RETICÊNCIAS. vas sessões não teriam a presença de Bird. Hou-
ELE ESTAVA CONVENCIDO DOS dons de Mar- dini não o permitiu.
gery, e não conseguia compreender porque é Após uma sessão de familiarização com o dis-
que os outros membros do comité, exceto Car- positivo, realizada à porta fechada pelos Crandon
rington, não os aceitavam. O que ninguém po- e seus amigos mais próximos, a comissão reto-
dia imaginar era que Bird, completamente sob a mou as suas investigações. Mal tinham começa-
influência da bela médium, tivesse contado aos do, a tampa da caixa rebentou. Crandon disse que
Crandons todas as deliberações e descobertas Walter a tinha partido; para Houdini, Margery
da equipa de investigação. Postos em guarda, tinha estalado as dobradiças com os seus ombros.
o próximo confronto de Houdini não ia ser tão A comissão deixou a sala para que os Crandon pu-
fácil. Margery faria tudo o que estivesse ao seu dessem ter outra sessão privada. Ninguém sabe o
alcance para ridicularizá-lo. que aconteceu, mas quando recomeçou, Walter
acusou-o de adulterar a caixa do sino. Comstock
apanhou-o do chão e viu que alguém tinha co-
locado uma borracha na campainha para tornar
mais difícil a pulsá-la. Quem colocou a borracha
- Houdini ou os Crandon?

NO DIA SEGUINTE, HOUDINI REFORÇOU AS


DOBRADIÇAS DA TAMPA. Nesse momento Bird
chegou, furioso, exigindo explicações sobre o
porquê de ter sido excluído das investigações.
Houdini e Prince responderam que tinha traí-
do a confiança nele depositada. Enraivecido,
negou tudo, mas depois admitiu a sua culpa e
renunciou ao cargo de secretário. Agora que as
águas se tinham acalmado, o espetáculo podia
começar. Pouco depois da Margery ter entra-
do em transe, Walter apareceu e, no meio de
uma chuva de impropérios, gritou: “Houdini,
seu patife! Colocou uma régua dentro da caixa.
Lembra-te que não viverás para sempre, mor-
rerás um dia”. Dentro da caixa foi encontrada
uma régua de carpinteiro que, segurada na bo-
ca, podia ser usada para carregar no botão do
sino e mover outros objetos. Quem a colocou lá?
Houdini acusou a médium, e Crandon incrimi-
nou o assistente do mágico.
Foi a gota de água no copo. Houdini encerrou a
investigação e, a partir daí, deu a volta ao mundo
dando a conhecer que tinha desmascarado a mé-
dium Margery e que não tinha encontrado provas
de comunicação com o além. e
LIVRARIA DO CONGRESSO EUA

91
92
N
o parque natural Arribes del Duero, na província de Salamanca,
existe uma curiosa formação geológica que os habitantes locais,
seguindo esse mesmo temperamento castelhano de chamar as
coisas pelo seu nome, batizaram de Peña Gorda. É uma verru-
ga de granito com cerca de 40 metros de altura que saiu fora da
terra. O que faz aí é um desses pequenos mistérios que o nosso planeta
guarda entre as suas dobras e falhas.
Entre os mais importantes, e até agora único, encontra-se o da vida.
Não sabemos como, quando ou onde teve lugar a transição da matéria
inerte para matéria viva. Também não sabemos se os processos que le-
vam à sua aparição são comuns no universo. Mas o que temos consegui-
do é encontrar o nosso lugar na natureza. Para tal, tivemos de nos liber-
tar de ideias preconcebidas e descer do pedestal em que nos tínhamos
arrogantemente colocado. Porque os seres humanos, como qualquer
outra espécie viva, são acidentais e supérfluos. Tal como nós existimos,
podemos deixar de existir, e o cosmos não se importa nada com isso.

93
35 Porque cantam
as baleias?
Para comunicar, orientar-se ou conversar? Mas é a complexidade
das suas melodias que mais intriga os biólogos.

94
Baleias jubarte machos- Megaptera novae
angliae -emitem uma canção que dura entre
dez e vinte minutos, com sons num registo

SHUTTERSTOCK
baixo que variam em amplitude e frequência.

A
s baleias pertencem ao grupo dos membros posteriores permanece. As barbatanas
cetáceos, um nome que vem do horizontais da cauda permitem-lhes propul-
grego e significa “monstro mari- sionar-se, e algumas espécies têm também uma
nho”. Foi cunhado por Aristóteles barbatana dorsal. Embora o seu antepassado fos-
para designar animais aquáticos se um animal terrestre, elas são um prodígio de
que utilizavam os pulmões para respirar. Per- adaptação ao ambiente: o seu tecido muscular
tencem também à ordem dos artodactilos, armazena oxigénio, que lhes permite mergulhar
entre os quais podemos reconhecer a girafa, o a grandes profundidades, de onde sobem para
hipopótamo, o camelo, a cabra, o porco... Es- respirar através das suas narinas - na parte supe-
tudos moleculares sugerem que o seu parente rior da cabeça.
terrestre mais próximo é o hipopótamo. No entanto, não se sabe muito sobre as ba-
Estão perfeitamente adaptadas à água, à qual leias.De todos os mistérios que rodeiam estes
regressaram há cerca de 50 milhões de anos. Os mamíferos, dois são os que mais intrigam os
seus membros dianteiros tornaram-se barba- biólogos: as suas migrações e as suas canções.
tanas, enquanto que nenhum vestígio dos seus Quanto às primeiras, foram documentadas via-

95
As suas canções contêm refrões,
melodias e ritmos, que os
biólogos gravam para tentar
decifrar, como fazem com esta
baleia beluga branca.

SHUTTERSTOCK

gens muito longas: as baleias cinzentas percor- sempre pronta. Mas em águas polares também
rem 25.000 quilómetros, e as corcundas 18.000 têm de manter a temperatura corporal, o que as
quilómetros. Os cientistas sempre pensaram leva a reduzir o fluxo de sangue para a epiderme
que estas respondem a duas necessidades bá- até regressarem a águas mais quentes e poderem
sicas: alimentação e acasalamento. Em junho e começar a muda.
julho, viajam para zonas polares em busca de ali- E não só isso. Nas águas antárticas, a pele
mento, enquanto em janeiro e fevereiro regres- das orcas é coberta com uma camada amare-
sam ao equador para acasalar. lada. São diatomáceas, algas unicelulares que
acumulam grandes quantidades de bactérias
ALGUNS BIÓLOGOS PENSAM QUE REGRESSAM prejudiciais aos cetáceos e que precisam de
ÀS ÁREAS QUENTES após o parto, mas não há eliminar, algo que fazem viajando para águas
consenso geral sobre a razão pela qual têm de fa- mais quentes. Em suma, elas viajam do frio
zer viagens tão longas quando podem alimentar para o calor para perderem a pele e elimina-
e criar as suas crias no mesmo local. Uma expli- rem potenciais agentes infecciosos, mas será
cação é que se trata de uma memória antiga: as que precisam realmente de viajar mais de 10
baleias evoluíram em águas quentes com altas 000 quilómetros para isso? Esta hipótese, que
concentrações de plâncton e peixes. Devido às deixa muitas incógnitas, também não explica o
placas tectónicas, as correntes oceânicas muda- que acontece às baleias que não migram. Como
ram e arrastaram o plâncton e pequenos peixes, é que limpam a pele?
forçando-as a ir atrás deles. E depois regressariam
ao equador por razões reprodutivas. TAMBÉM NÃO SABEMOS COMO SE ORIENTAM
Mas em dezembro de 2019, os investigadores NAS SUAS LONGUÍSSIMAS MIGRAÇÕES.. Como
da Universidade do Oregon (EUA) descobriram foram encontrados cristais de magnetita no teci-
um novo cenário após sete anos de seguimento do de algumas espécies de baleias, como as cor-
de quase uma centena de orcas desde a Antárti- cundas, os biólogos sugerem que podem navegar
da até à costa argentina do sul do Atlântico. Des- utilizando as variações do campo magnético da
cobriram não só que crias nasceram em águas Terra. Isto explicaria, por exemplo, porque é que
antárticas, a salvo de grandes predadores, mas as tempestades solares as desorientam. No entan-
também que a sua viagem pode ser influenciada to, esta não parece ser a explicação completa, ou
por algo que anteriormente tinha passado des- pelo menos não é válida para todos os cetáceos.
percebido: em águas frias, as orcas são incapa- De acordo com outros investigadores, as baleias
zes de perder a sua epiderme. Como em todos os azuis usam a sua memória para se deslocarem pa-
mamíferos, a pele é a nossa primeira linha de de- ra trás e para a frente entre os locais de alimenta-
fesa contra as infeções, e esta barreira deve estar ção. O que não é claro é como as crias que nunca

96
foram a qualquer lugar antes são capazes de lá e diminui por volta de novembro. No início do
chegar. As suas mães ensinam-nos? Isto é o que inverno - de dezembro a janeiro - tornam-se
acreditam os cientistas argentinos que estudam mais comuns durante o dia. Ou seja, quando as
as migrações da baleia-franca-austral ao largo das baleias migram para águas mais quentes, o canto
suas costas. é essencialmente uma atividade diurna.
O outro grande mistério das baleias é o seu Inicialmente, pensava-se que cada população
canto, um termo popularmente utilizado para de baleias-jubarte executava o seu próprio re-
descrever o padrão de sons que fazem, cuja du- pertório mais ou menos fielmente ao original,
ração e intensidade depende da espécie a que mas os biólogos descobriram algo a que se po-
pertencem. Todos sabemos que as baleias can- deria chamar intercâmbio musical. Em 2011,
tam, algo que até tem sido utilizado em filmes de e após uma década de gravação e estudo do
fição científica como o Star Trek: Missão: Salvar comportamento de seis manadas diferentes no
a Terra. Mas nem todas as baleias o fazem. Oceano Pacífico, da Austrália à Polinésia Fran-
cesa, descobriu-se que o canto de uma popu-
A RAZÃO PELA QUAL CANTAM É VARIADA: lação de baleias no leste da Austrália começou
DESDE O SEU USO COMO ECOLOCALIZADOR a a ser murmurado três anos mais tarde por um
canções de amor ou simplesmente para anunciar grupo diferente e muito distante, e tinha sido
que existe um local onde podem comer. Prova- gradualmente transmitido através das popula-
velmente não estaremos errados em assumir que ções intermédias. Mais um mistério.
estas são as razões, mas o que é menos claro é por-
que são tão complexas, especialmente nas baleias POR OUTRO LADO, NA FAMÍLIA DAS BALEIAS-
corcundas. Ao estudar a sua musicalidade, foi -COMUNS - A MAIS ABUNDANTE e diversa de
possível distinguir melodias e ritmos. Além disso, todas, que inclui as baleias azuis, sei, boreais,
as suas composições evoluem ao longo do tempo de-bryde e corcundas - encontramos diferen-
como se fossem variações de uma peça original . tes dialetos. No Pacífico oriental, os sons são
De todas as espécies, a baleia jubarte é a que bastante diferentes dos da região ocidental e,
faria a lista das quarenta melhores em canto ani- no Atlântico, o repertório é muito diferente do
mal: têm um canto sofisticado e organizado no da Índia. Isto leva alguns biólogos a acreditar
qual se pode distinguir um tema principal com- que estamos perante línguas vivas, que evo-
posto por frases e subfrases que se repete várias luem e se desenvolvem.
vezes seguidas. A baleia azul tem uma canção sa- Finalmente, a todos estes mistérios temos de
zonal: a sua intensidade aumenta durante o ve- acrescentar outro que deixou os cientistas estu-
rão e no início do outono para atingir o seu pico pefactos: por alguma razão desconhecida, em
em novembro; depois diminui rapidamente en- março de 2017, um grupo de cerca de duzentas
tre dezembro e janeiro, e atinge o seu ponto mais baleias jubarte reuniram-se ao largo da costa sul-
baixo entre fevereiro e junho. Do mesmo modo, -africana. E ninguém sabe porque é que um ani-
a partir de agosto-setembro - o fim do verão bo- mal solitário que, no máximo, se reúne em grupos
real - o número de serenatas noturnas aumenta de sete indivíduos, formou uma tal reunião. e

As diferentes manadas
de baleias jubarte
aprendem e copiam as
canções umas das outras.
SHUTTERSTOCK

97
36 O que fez desaparecer
Amnisos e Heraklion?
Tal como Pompeia e a mítica Atlântida, Amnisos de Creta e Heraklion do
Egito foram enterradas debaixo de um vulcão e submersas pelo mar.

Restos do santuário de Zeus Tenatas - construído no


século VII a.C. - em Amnisos, uma antiga cidade
minóica na ilha de Creta, a 7 km de Heraklion.

AGE

E
m 1932, o arqueólogo Spyridon Ma- Em 1939, publicou um artigo na revista An-
rinatos escavou no local de Amni- tiquity, intitulado “A destruição vulcânica da
sos, que tinha servido como porto do Creta Minóica”. Sugeria que o responsável foi
grande palácio de Knossos em Creta. um vulcão, mais especificamente o da ilha vi-
Enquanto procurava através dos res- zinha de Santorini - Thera. A erupção, seguida
tos de uma luxuosa habitação minóica, ba- de violentos terramotos que provocaram enor-
tizada como a Villa dos Lírios por causa dos mes ondas de maré, resultou na destruição dos
esplêndidos frescos que decoravam as paredes assentamentos da povoação, enquanto que as
interiores, descobriu algo espantoso: a casa ti- cinzas ejetadas tornaram a terra incultivável.
nha sido arrancada das suas fundações por al- Em 1967, Marinatos descobriu uma cidade com-
guma força estranha e poderosa. Quando Ma- pletamente enterrada, como Pompeia, no local
rinatos descobriu vestígios do desastre nou- de Akrotiri em Santorini.
tros locais da ilha, ficou convencido de que a Tudo isto aconteceu por volta de 1630 a.C.
civilização minóica tinha sido massacrada por Um dia, um violento terramoto destruiu grande
alguma força natural de proporções incríveis. parte da cidade de Akrotiri. Os seus habitantes

98
A erupção do vulcão Santorini em 1630 a.C.
pode ter desencadeado o fim da civilização
minóica na ilha de Creta.
O desaparecimento da civilização minóica
não é o único mistério relacionado com um fe-
nómeno geológico no Mediterrâneo Pouco mais
de um milénio depois, no século II a.C., uma ci-
dade portuária egípcia chamada Thonis -Hera-
klion para os gregos - afundou-se no mar.
Heraklion foi construída em ilhas do delta do
Nilo e, tal como Veneza, era atravessada por ca-
nais com várias âncoras. Os seus cais, templos e
torres eram ligados por pontes e pontões. A ci-
dade era um porto comercial. De facto, no final
do antigo período egípcio - com início no sécu-
lo VII a.C. - era o principal porto de entrada de
SHUTTERSTOCK
mercadorias no Egito. Tinha uma cidade irmã,
trabalharam para reconstruir as suas casas, não Naucratis, a 72 km de distância, que, segundo
imaginando o que se seguiria em breve - embo- Heródoto, era o único porto comercial autori-
ra Marinatos tenha inicialmente proposto uma zado dentro do Delta do Nilo. As mercadorias
sequência praticamente contínua de aconteci- eram levadas para lá ou, na sua falta, para a ci-
mentos entre o terramoto e a erupção vulcâni- dade costeira próxima de Canopo para posterior
ca, pesquisas posteriores ampliaram o período distribuição pelo interior do país.
de tempo percorrido. Cerca de duas semanas
após a catástrofe, o vulcão de Santorini entrou TANTO CANOPO COMO HERAKLION ACABA-
em erupção: a enorme nuvem de cinzas, lava e RAM POR FICAR DEBAIXO DO MAR E os seus
rochas atingiu uma altura de 30 quilómetros, o restos só foram descobertos mais tarde. Os de
topo do vulcão desabou e formou-se uma cal- Canopo, por um piloto da Força Aérea Britânica
deira de 400 metros de profundidade. Entre- (RAF) em 1933, e Heraklion, em 2000, após dois
tanto, o habitual vento do norte levou as cinzas anos de intensas buscas na baía de Abu Quir. Os
e as pedras mais pequenas em direção às ilhas primeiros vestígios localizavam-se a mais de seis
a sul e a leste, cobrindo mesmo os campos de quilómetros da atual linha costeira.
Creta, a quase 100 quilómetros de distância. Tanto Heraklion como Canopo foram engo-
Chegaram até às cidades do norte do Egito, on- lidos pelo Mediterrâneo no final do século II
de os habitantes não viram a luz do sol durante a.C., mas as causas da catástrofe não são co-
dias. A quantidade de cinzas vulcânicas depo- nhecidas ao certo. Os arqueólogos suspeitam
sitadas foi tal que tornou a agricultura imprati- que os seus edifícios se foram debilitando por
cável durante anos. uma combinação de terramotos, tsunamis e
subida do nível do mar. No final do século II
DE ACORDO COM MARINATOS, O MISTERIOSO a.C., e provavelmente após uma forte inun-
DESAPARECIMENTO DA CIVILIZAÇÃO minóica - dação, o terreno em que estavam construídas
a primeira civilização cretense da Idade do Cobre cedeu: a argila endurecida transformou-se em
e do Bronze - foi causado pela erupção do vulcão líquido e os edifícios ruíram. Um fim que traz à
Santorini, com tsunamis a varrer as cidades por- mente a mítica Atlântida... e
tuárias próximas. No entanto, ainda não foi pos-
sível correlacionar diretamente os dois eventos.
Outros arqueólogos salientam que a erupção de As estátuas do rei
Thera e as catástrofes naturais que a acompanha- Ptolomeu II e Arsínoe,
ram enfraqueceram significativamente o império que pertenciam à cidade
minóico, tornando-o mais vulnerável a invasões de Heraklion , estiveram
posteriores, tais como a dos micénicos. submersas durante 1200
O descobridor desta catástrofe, Marinatos, anos no Mediterrâneo.
morreu ao caír de um andaime enquanto esca-
vavava no local de Akrotiri em 1974, mas sub-
siste a suspeita de que foi empurrado por alguns
dos seus próprios trabalhadores, pessoas dema-
siado devotas que viam a sua investigação como
uma espécie de blasfémia.

CORDON PRESS

99
37 Porque migram os
tubarões?
São viajantes incansáveis, esquivos e arreigados aos seus hábitos,
com os seus locais de paragem preferidos ano após ano.

É um mistério por que os


tubarões brancos do Pacífico
fazem sempre as suas paragens
na mesma zona no alto mar.

SHUTTERSTOCK

O
s oceanos são o mistério dos mis- que se pensava extinto há 50 milhões de anos.
térios do nosso planeta. Embora Uma das descobertas mais marcantes ocorreu
99% do total da biosfera seja en- em 2002, quando uma equipa de investigadores
contrado no seu interior, conhe- decidiu estudar uma das criaturas mais famosas
cemos apenas uns magros 5%. Em e no entanto mais desconhecidas do oceano: o
2000, foi lançado um ambicioso programa inter- grande tubarão branco. E descobriram algo ver-
nacional com uma década de duração para lan- dadeiramente espantoso.
çar luz sobre a diversidade, distribuição e abun-
dância de vida até uma profundidade de 5000 TODOS OS ANOS DURANTE O INVERNO DO
metros. O projeto foi denominado Censo da Vida HEMISFÉRIO NORTE, os tubarões brancos ao
Marinha, e envolveu 2700 cientistas de mais de longo da costa americana do Pacífico reúnem-
80 países. Foi um estudo sem precedentes na -se num local a meio caminho entre o Havai e
história, envolvendo 540 expedições com um a Baixa California. A área tem um raio de 250
custo de 560 milhões de dólares. Descobriram- km e os investigadores apelidaram-na ironica-
-se seres e fenómenos como uma nova espécie de mente de Café do Tubarão Branco. É como um
camarão Jurássico (Neoglyphea neocaledonica) deserto na água; não há lá nada de interessan-

100
I
IK
W
te. Então porque é que vão para lá? Ninguém
faz a menor ideia.
Alguns biólogos pensam que tem a ver com o
momento em que acasalam, porque, dependen-
do do sexo, movem-se de uma forma ou de outra.
Enquanto as fêmeas nadam seguindo movimen-
tos retos e previsíveis, os machos nadam para
Os tubarões do Atlântico juntam-se num ponto do Oceano
cima e para baixo ao longo da coluna de água.
Atlântico, onde vagueiam a uma profundidade de 900 metros.
Estarão à procura de parelha? Em 2018, desco-
briu-se que existe uma cadeia alimentar rica e
diversificada a grandes profundidades. Será que Em 2016, descobriu-se um tubarão-baleia fê-
os grandes tubarões brancos irão para lá uma vez mea, o maior peixe do mundo - pode atingir os 12
por ano para tirar a barriga de misérias? E para metros de comprimento e mergulhar a uma pro-
isso viajam mais de cem dias no alto mar para fundidade de 1.900 metros - que realizou uma
chegar a um lugar no meio do nada? migração de mais de 20.000 quilómetros através
Em qualquer caso, quando a reunião termina, do Pacífico. Permaneceu em águas panamenses
os machos regressam à costa. O curioso é que às durante 116 dias, depois nadou até à ilha Clipper-
fêmeas, perde-se-lhes a pista durante um ano in- ton (França), passou perto da Ilha de Coco (Costa
teiro. Talvez se estejam a esconder para dar à luz. Rica) e continuou até à ilha Darwin nas Galápa-
Quando damos por isso, os recém-nascidos apa- gos (Equador), um lugar que deve ser de espe-
recem nas águas do sul da Califórnia, a área de ali- cial interesse para os tubarões, porque muitos se
mentação do tubarão branco, e ficam lá até terem reúnem lá não sabemos porquê. Depois o sinal
idade suficiente para se juntarem aos mais velhos. do dispositivo que tinha instalado desapareceu e,
após 235 dias de silêncio, reapareceu a sul do Ha-
O QUE É INTRIGANTE É QUE ISTO NÃO É UM vai. A partir daí, continuou até às Ilhas Marshall
COMPORTAMENTO TÍPICO DOS tubarões bran- até chegar à Fossa das Marianas, perto de Guam,
cos. O que os tubarões brancos do Pacífico Norte- no Pacífico Ocidental. Porque é que fez uma tal
-Americano fazem não é feito pelos seus primos viagem migratória é um mistério.
australianos, que procuram comida ao longo da
costa sul desse continente sem seguir um padrão ALÉM DISSO, HÁ MUITO POUCOS SINAIS VI-
de comportamento e sem se juntarem num mes- SUAIS EM ALTO MAR. Então como é que eles
mo local todos os anos. E os tubarões brancos do sabem para onde se dirigem? Não sabemos como
Atlântico? Sabemos ainda menos sobre eles. Sa- encontram o seu caminho através do oceano,
be-se que eles viajam para um lugar no meio do quais as pistas ambientais que utilizam e exata-
Oceano Atlântico, vagueiam e mergulham a pro- mente como as detetam. Há suspeitas de que os
fundidades de até 900 metros todos os dias, mas tubarões, tal como outras espécies, podem sentir
não temos ideia do que realmente fazem. Quan- o campo magnético da Terra e usá-lo como fer-
do um veículo subaquático autónomo foi envia- ramenta de navegação. Também se pensa que o
do para os espiar durante a noite, as filmagens seu olfato altamente desenvolvido - conseguem
mostraram que eles pareciam estar a descansar. cheirar uma gota de sangue a 700 metros de dis-
“Hesito em dizer ‘dormir’ porque é difícil para tância - pode ser outro instrumento de orien-
nós determinar se e quando estes tubarões dor tação, bem como de som, mas estes são apenas
mem”, comentou um dos investigadores. palpites.
Sabemos muito pouco sobre os tubarões. Nem
sequer sabemos quantas espécies existem. A
SHUTTERSTOCK

O tubarão-baleia é o descoberta do chamado tubarão ninja (Etmop-


maior peixe do mundo. terus benchleyi) foi anunciada em Dezembro de
2015. Em 2013, foi identificada uma nova espécie
de tubarão-martelo (Sphyrna gilberti) ao largo
da costa da Carolina do Sul, bem como uma nova
espécie de tubarão-caminhante (Hemiscyllium
halmahera), que fez manchetes depois dos in-
vestigadores o terem encontrado num recife na
Indonésia. Assim, os tubarões continuam a ser
um dos grandes enigmas dos mares. e

101
38 O que é o
Skyquake?
Terramotos no céu, areias musicais ou zumbidos persistentes
são apenas alguns dos sons inexplicáveis do planeta.

H
á cem anos atrás, o mundo era O fenómeno do skyquake ocorre em todo o
muito mais calmo do que é globo: desde a costa oriental canadiana até à
atualmente. Hoje estamos ha- foz do Ganges - onde são conhecidos como os
bituados ao ruído das motos, Canhões de Barisal - através da costa belga,
ao boom sónico dos aviões, aos diferentes partes da Escócia e das Filipinas.
ventiladores e às várias explosões... É algo Em Itália, no final do século XIX, foi usado o
que se reflete mesmo no cinema: há mais ruí- seguinte ditado: “Quando suona la marina o
do nos filmes de hoje do que nos de há trinta acqualo, vento o strina” (Quando a marina
anos atrás. É por isso que os estranhos sons soa, ou chuva, ou vento, ou calor).
que a natureza por vezes nos dá são mascara- Segundo um artigo publicado no Monthly
dos ou simplesmente ignorados. Um dos mais Weather Review de Adolfo Cancani em 1898,
misteriosos é chamado de skyquake nos Esta- em Itália “o intervalo entre as sucessivas de-
dos Unidos, mistpouffers em França, marina tonações é variável... parecem ouvir-se em
ou brontidi em Itália, uminari no Japão ou qualquer altura do ano e do dia” e não estão
retumbos na América do Sul. associadas a um mar tempestuoso, pois são
São explosões ouvidas ao largo das costas de ouvidas com bastante frequência durante um
metade do mundo e têm sido registadas des- mar calmo.
de o final do século XIX. A única coisa que se
sabe sobre estas explosões é que elas devem OS SKYQUAKES MAIS FAMOSOS SÃO OS
estar relacionadas com o mar, uma vez que OUVIDOS NO DELTA DO GANGES, especial-
só ocorrem em zonas costeiras. Uma hipó- mente de Fevereiro a Outubro. Começam
tese postula que são erupções de gás natural pouco antes, durante ou imediatamente após
da parte da placa continental que se encon- as tempestades, e parecem vir sempre de
tra por baixo dos oceanos. Neste sentido, a uma direção sul ou sudeste. Alguns cientis-
sua origem seria a mesma que a dos sinistros tas salientam que todas estas características
Canhões do Lago audíveis em alguns dos apontam para uma origem sísmica, embora
Grandes Lagos, como o LagoSéneca em No- tais detonações sejam mais comuns em zonas
va Iorque, e cuja antiguidade é atestada por montanhosas.
histórias dos nativos americanos da região. Mas de todos os sons que nos surpreendem
Na década de 1930, a revista Science publicou no planeta, certamente nenhum é mais hip-
vários artigos argumentando que os desfila- notizante do que o das areias musicais de al-
deiros do Seneca poderiam estar relacionados guns desertos, como no Sinai: chifres, sinos,
com fugas de gás natural das bolsas do lago. grunhidos e até latidos. Poderá ser esta a ori-

102
Os rumblings frequentemente ouvidos no delta do Ganges no
Bangladesh poderiam ter uma origem sísmica.
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

gem da lenda do suspiro matinal da Esfinge? 1993, os locais pediram ao Congresso um es-
Ninguém foi capaz de explicar convincen- tudo deste fenómeno - conhecido em inglês
temente o curioso mecanismo de ação que a como the hum -. Após entrevistar os residen-
faz soar como latido num lugar e como flauta tes desta pequena cidade, descobriram que
doce do deus Éolo noutro. apenas cerca de 2% o tinham detetado. Não
havia diferenças significativas entre homens
IGUALMENTE ESTRANHO É UM ZUMBIDO e mulheres, mas era notório que as pessoas de
PERSISTENTE, IRRITANTE e de baixa fre- meia-idade tinham mais probabilidades de o
quência - o que o torna inaudível para muitas sentir. A fonte não pôde ser identificada, em-
pessoas - que tem sido ouvido em Bristol (In- bora se tenha observado que, de acordo com
glaterra), Taos (Novo México, EUA), Auckland as descrições dadas por aqueles que o tinham
(Nova Zelândia) ou Valência (Espanha). Em ouvido, não havia um único tipo de zumbido,
Taos, por exemplo, foi descrito como um som mas que pessoas diferentes o percebiam de
de zumbido fraco, semelhante ao de um mo- forma diferente. Isto levou alguns cientistas
tor diesel em marcha lenta ao longe. Muito a acreditar que muitos dos que dizem ouvi-
irritante, interfere com o sono e aqueles que -lo podem realmente sofrer de tinnitus, uma
o notam dizem que é mais percetível à noite condição que faz com que os sons apareçam
e dentro de casa. Na pequena cidade de Taos, no ouvido devido a uma variedade de causas,
a situação tornou-se tão irritante que, em desde o trauma ao stress. e

103
A substância gelatinosa aparece por
vezes no campo e, de acordo com a
análise, contém normalmente vestígios
de tecido biológico.

SHUTTERSTOCK

39 O que é a geleia estelar?


Ovos de rã não fertilizados, um tipo de fungo, uma substância do
espaço exterior? A sua origem não é totalmente clara.

H
á uma substância gelatinosa A prestigiosa revista Scientific American pu-
ocasionalmente encontrada na blicou esta nota em novembro de 1846: “A 11 de
erva, no solo, e por vezes nos novembro de 1846, um objeto luminoso estima-
ramos das árvores, cuja ori- do em 4 pés de diâmetro - 1,2 metros - caiu em
gem os estudiosos modernos Loweville (Nova Iorque) e deixou uma pilha de
não atribuem nem às estrelas nem aos me- geleia luminosa com cheiro a sujidade que ra-
teoros. Além disso, os cientistas estão divi- pidamente desapareceu”. O Instituto Franklin
didos quanto a considerarem-na como uma em Filadélfia anunciou, por seu lado, que “uma
produção animal ou vegetal. Os botânicos substância amarelada caiu sobre Génova, Itália,
chamam-lhe Tremella nostoc e dizem que é na manhã de 14 de fevereiro de 1870.
uma planta fúngica de crescimento rápido
e de curta duração, da qual até a semente é DEPOIS DE SER ANALISADA POR M. G. BOC-
conhecida. Mas os zoólogos afirmam que se CARDO E PELO PROFESSOR CASTELLANI do
trata de “restos alterados de rãs mortas”. O Instituto Técnico de Génova, verificou-se que
escritor e senador americano Samuel Gris- continha 66% de areia - principalmente do tipo
wood descreveu-a como geleia das estrelas sílica e alguma argila -, 15% de óxido de ferro -
em 1845, assim chamada porque era suposto ferrugem -, 9% de carbonato de cal, 7% de maté-
ter caído do céu. ria orgânica e o resto da água. A matéria orgânica

104
WIKI
explicação mais comum é que estamos a lidar
com a desova de rã não fertilizada arrancada do
abdómen por predadores. Assim, em amostras
recolhidas em Dartmoor (Inglaterra) em 1926,
consistia em partículas semelhantes a esporos, foram descobertos ovidutos e ovários junta-
grãos de amido, fragmentos de diatomáceas (al- mente com os restos de um tracto alimentar e
gas cujas paredes celulares contêm sílica) e gló- bexiga pertencentes a uma rã ou um sapo. Pen-
bulos não identificados de cobalto azul. sa-se também que podemos estar a lidar com
bolores mucilaginosos - o fungo - um tipo de
APARENTEMENTE, CAUSAS DIFERENTES organismo que vive como células individuais
PODEM ESTAR NA BASE DESTE FENÓMENO que se podem unir para formar estruturas mul-
PECULIAR. A sua última aparição foi em Junho ticelulares e que se reproduz e desliza através
de 2019 no jardim de um casal no Condado de do solo, alimentando-se de matéria vegetal em
Goochland, Virgínia. Encontraram cinco pe- decomposição.
quenas pilhas de uma substância estranha
parecida com gelo picado, mas de natureza NO ENTANTO, HÁ MUITOS RELATOS QUE NÃO
gelatinosa. O exame microscópico realizado PARECEM ENCAIXAR nestas explicações. Por
por um perito agrícola não encontrou provas exemplo, em 1979, no Texas, várias manchas
de que se tratasse de um organismo vivo, e roxas de uma substância viscosa apareceram no
concluiu que se tratava de um polímero à ba- pátio da frente após uma chuva de meteoritos de
se de água utilizado em jardinagem. Por outro perseidas. Embora se suspeitasse que poderiam
lado, em 2015 , os Eventos Mais Estranhos da ter vindo de uma fábrica de reprocessamento de
Natureza da BBC enviaram uma amostra de baterias próxima, nada de conclusivo foi alcan-
geleia estelar encontrada em Inglaterra para çado. Estranho foi o que alguns polícias de Fila-
o Museu de História Natural de Londres para délfia disseram ter encontrado na rua em 1950:
análise do ADN. Esta confirmou que se tratava algum tipo de geleia que emitia um brilho roxo
dos restos de uma rã. Também encontrou al- baço. Quando tentaram apanhá-lo, dissolveu-
guns vestígios de uma pega, que explicavam o -se numa espuma pegajosa e inodora. Curiosa-
desaparecimento dessa rã. mente, esta história inspirou o filme de terror de
A verdade é que quase todas as amostras que série B de 1958 The Blob, protagonizado por Ste-
foram examinadas até agora se revelaram co- ve McQueen, no qual um ser gelatinoso chega à
mo sendo algum tipo de tecido biológico. A Terra dentro de um meteorito. e

105
40 Porque cintilam
os mares?
Certos organismos marinhos luminescentes podem explicar as curiosas
luzes aquáticas que os marinheiros têm observado durante séculos.

N
o Oceano Índico, especialmente a existência de águas luminosas como campos de
nas águas do Golfo Pérsico, os na- gelo numa noite sem lua, ou águas cintilantes que
vios encontram frequentemen- se estendiam em todas as direções. Desde 1915,
te zonas de água luminosa, um foram documentados 235 mares deste tipo, na
fenómeno que foi descrito pelo sua maioria concentrados no noroeste do Oceano
escritor Rudyard Kipling e que aparece também Índico e perto de Java, embora também tenham
no romance 20 000 Léguas Submarinas de Júlio sido vistos ao largo das costas da Somália e de Por-
Verne . Durante muito tempo, pensou-se que es- tugal. E, claro, há a famosa baía bioluminescente
tas histórias eram imaginação ou meros exageros de Porto Rico, a Baía do Mosquito, um lugar on-
de marinheiros, que já no século XVII descreviam de prolifera um tipo de plâncton que, quando se

106
Algumas populações de bactérias marinhas, com a
fricção do movimento, geram luz, o que dá origem
a espectáculos como este, mais relacionados com
reacções químicas do que com magia.
bos de luz a subir da água e a explodir na superfí-
cie, luzes a girar em torno de um ponto, anéis de
luz a expandir-se numa noite clara, faixas de luz
estacionárias na superfície do mar... No entanto,
os cientistas tinham geralmente ignorado estes
fenómenos descritos pelos marinheiros.

PODE SER O MESMO MECANISMO QUE ESTÁ


SUBJACENTE ÀS AURORAS. Neste sentido, a
névoa luminosa que frequentemente acom-
panha as auroras a baixa altitude assemelha-se
ao que os marinheiros vêem no Golfo Pérsico.
Alguns apontam para uma interação peculiar
entre o radar e a conhecida fosforescência mari-
nha, enquanto outros apontam para o compor-
tamento coletivo e auto-gerado de certos orga-
nismos marinhos luminescentes, semelhante
aos flashes causados pelas nuvens de pirilampos
nos trópicos.
Evidentemente, o relato dado pelo segun-
do oficial do WMS Olympic Challenger, Armin
Roth, na revista Marine Observer em 1954 es-
capa à explicação: “Cerca de um metro acima da
superfície da água, faixas de luz em movimen-
to rápido - semelhantes a névoa - apareceram
subitamente. Tinham duas milhas náuticas - 3,7
km - de extensão, rodavam no sentido dos pon-
teiros do relógio e cruzavam o navio a intervalos
regulares”. Se isto aconteceu no Golfo de Omã a
5 de novembro de 1953, a 24 de abril do mesmo
ano, no Golfo de Sião, a tripulação da MV Rafae-
la enfrentou algo semelhante: três rodas de luz
que se intersetam, uma girando no sentido dos
ponteiros do relógio e duas no sentido contrário
ao dos ponteiros do relógio. O que observaram
estes marinheiros? Talvez nunca saibamos. e

IMAGENS: SHUTTERSTOCK

move, liberta energia sob a forma de luz azul. De


acordo com investigadores da Divisão de Meteo-
rologia do Laboratório de Investigação Naval da
Califórnia e do Centro Nacional de Dados Geofí-
sicos, a luz nestes mares pode ser proveniente de
enormes populações de bactérias, embora a sua
curta duração tenha tornado difícil provar a ori-
gem de tal fosforescência.
Mas há fenómenos de luz ainda mais estranhos Onda azul fluorescente de plâncton
nos mares. Ocasionalmente, podem-se ver glo- bioluminescente sobre a floresta de
mangais em Khok Kham, perto de
Banguecoque, Tailândia.

107
São observados desde a Grécia antiga,
mas ainda ninguém os fotografou.
Talvez isto se deva ao facto de
aparecerem sem aviso e durarem
apenas vinte e cinco segundos.

SHUTTERSTOCK

41 O que são os raios


globulares?
Estas esferas luminosas de luz, do tamanho de uma bola, são o
mais antigo fenómeno atmosférico inexplicado.

É
um dos fenómenos naturais mais tas na Internet, mas na realidade são foto-
conhecidos, mas que poucos viram. grafias sobre-expostas de relâmpagos. Além
. Durante muito tempo, portanto, disso, há muitos especialistas que duvidam
os cientistas não acreditaram que que o fenómeno em si possa ser fotografado.
existisse realmente. Em 1960, um Há registos históricos desde o tempo dos Gre-
estudo foi tornado público na Segunda Re- gos, pequenas bolas de luz brilhante que se
união Anual da Divisão de Física Plasmática movem sobre o solo e depois desaparecem. Em
da Sociedade de Física Americana, que decla- geral, podemos defini-las como esferas lumi-
rava que 5% da população mundial viu estes nosas de 1 a 25 centímetros de diâmetro que se
relâmpagos em forma de bola, uma percen- parecem aproximadamente com uma lâmpada
tagem semelhante ao número de pessoas que incandescente de 20 watts. Aparecem geral-
viram relâmpagos comuns a curta distância. mente após um relâmpago, movem-se quase
Uma palavra de aviso: muitas fotografias de sempre a uma velocidade máxima de cerca de
supostos relâmpagos de bola podem ser vis- 10 km/h e flutuam a cerca de um metro acima

108
ARCHIVO TK
do solo. O mais impressionante é que se mo- em vez do que seria de esperar, que se desvane-
vem erraticamente, mudando de direcção, e ceria lentamente com o tempo?
normalmente vão na direcção oposta à brisa Centenas de artigos e vários livros foram pu-
predominante. Dura em média cerca de 25 se- blicados discutindo o fenómeno, mas a maioria
gundos, pelo que quanto maior for, mais tem- das opiniões levantam mais questões do que
po permanece. Por outro lado, quanto mais aquelas a que procuram responder. Podemos
brilhante for, mais curta é a sua vida. Além contar até vinte hipóteses explicativas, desde
disso, as cor-de-laranja e azuis parecem durar as mais fantasiosas, de que se trata de um pe-
mais do que as restantes. daço de antimatéria, até às mais complicadas,
Como é que desaparecem? Ou desvanecem- como a de que se trata de uma descarga de luz
-se silenciosamente ou fazem-no com um pe- acionada por microondas e que se move ao lon-
queno estrondo. Este último acontece com go das linhas do campo eletromagnético cria-
mais frequência em espaços abertos, causan- das pelo ar ionizado pelas nuvens de raios onde
do por vezes grandes danos. É uma estranha se produz. E o brilho? Seria criado porque as
explosão porque afeta objetos condutores de microondas estão presas dentro de uma bolha
eletricidade. Houve mesmo casos de caixas de de plasma.
junção elétrica que apareceram no meio da rua.
É claro que aparecem onde menos se espera, OUTRA DIZ QUE SE ALIMENTAM DO CAMPO
seja dentro de casas ou dentro de aviões. Ainda ELÉTRICO ASSOCIADO às cargas elétricas dis-
mais fascinante é que passam através de jane- persas no solo após um relâmpago. Alguns su-
las fechadas sem danificar o vidro. Não produ- gerem que estão simplesmente presas dentro
zem calor, embora haja observações de que a de uma bolha de ar altamente comprimido. E
atmosfera cheira a ozono e óxidos de azoto, e não podemos esquecer a teoria que as explica
parecem causar energia estática nos recetores como resultado da sílica vaporizada condensa-
de rádio. da em nanopartículas e empurrada para cima
por uma onda de choque de ar. Finalmente,
TUDO ISTO LEVANTA QUESTÕES NÃO RES- existe a teoria do maser-solitón de que os fei-
PONDIDAS. Se é uma esfera de plasma estável, xes globulares ao ar livre são causados por um
será quente, mas então deveria levantar-se co- maser atmosférico - análogo a um laser, mas
mo um balão, e não o faz. Melhor ainda, por- na gama do microondas. Apesar de todos estes
que é que normalmente se move contra o ven- esforços, o mais antigo fenómeno atmosférico
to? Qual é a fonte de energia que mantém essa misterioso conhecido resiste a uma explicação
luminosidade quase constante até desaparecer, convincente. e

109
42 De onde vêm os
tardígrados?
Estes extremófilos são capazes de sobreviver mais de um século
desidratados e podem já ter colonizado a lua.

Este é o aspeto de um “urso de água” ao


microscópio, como o batizou em 1773 o seu
descobridor, o zoólogo alemão Johann August
Ephraim Goeze (imagem à direita).

WIKI

S
ão animais misteriosos cujo nome signi- composição. De corpo curto e carnudo, têm bo-
fica “lento” e não têm mais do que um ca e tracto alimentar, e digerem os alimentos e
milímetro de comprimento . Apesar de excretam-nos como nós fazemos. Têm também
serem encontrados em todos os habitats um sistema nervoso e olhos primitivos, mudam
húmidos do mundo, desde as florestas de pele como as cobras, e têm quatro pares de
tropicais ao Oceano Ártico e às poças do quin- membros pobremente articulados. Mas a sua
tal, só foram descobertos em 1773 pelo zoólogo característica mais marcante são as garras na
alemão Johann August Ephraim Goeze, que lhes extremidade dos membros, que formam grupos
chamou kleine Wasserbären, “ursos de água “. de quatro a oito cada um.
Pertencem a um tipo de invertebrado largamen-
te desconhecido, Tardigrada, do qual já foram NÃO SÃO PERIGOSOS SE ENGOLIDOS - DE
descritas cerca de mil espécies diferentes. Ape- FACTO, PROVAVELMENTE já comemos muitos
nas 10% vivem em água salgada e os restantes deles involuntariamente nas nossas vidas. Es-
em água doce, agarrados a musgos, líquenes, tes ecdisozoários vivem rodeados por uma fina
vegetação aquática ou restos de folhas em de- camada de água que lhes permite trocar gases

110
com o mundo exterior e evita uma dessecação Estudar a sua genética está a revelar-se real-
descontrolada. Uma das suas características mente complicado. Em 2015, uma equipa de
mais marcantes é que podem suspender de investigadores da Universidade
modo reversível o seu metabolismo, baixando- da Carolina do Norte pu-
-o para 0,01% do seu valor normal - pode mes- blicou que 17,5 por cen-
mo ser indetetável - e reduzir o seu conteúdo to do ADN tardígrado é
de água para menos de 1%. roubado de outras es-
Esta capacidade de alguns seres vivos perde- pécies. Por outras pa-
rem quase toda a água contida nos seus corpos lavras, este pequeno
é chamada anidrobiose. No caso dos tardígra- animal peculiar re-
dos, o seu corpo encolhe longitudinalmente e colhe fragmentos de
dobra-se enquanto os membros se invaginam, ADN encontrados no
para se tornar uma espécie de barril microscó- ambiente e incorpo-
pico, uma bola minúscula tão pequena como ra-os no seu próprio
um grão de pó. Isto deixa o animal num esta- ADN. Isto não é invul-
do letárgico enquanto a superfície é revestida gar - o nosso genoma
com uma camada de cera que ajuda a reduzir a tem 8% de ADN viral -

WIKI
transpiração. Esta capacidade, que os fez ex- mas a proporção é. O ADN
pandir-se pelo planeta, arrastados pelo ar, per- externo ocupa cerca de um
mite-lhes sobreviver durante muitas décadas. sexto de todo o seu genoma, o
Conseguiu-se reidratar tardígrados a partir de dobro do que sucede nos seres humanos.
espécimes preservados em museus com mais Quando uma equipa alemã decidiu testar es-
de um século de existência. ta informação, no entanto, não descobriu que
este era realmente o caso, mas que o seu ADN
MAS NÃO É ESTA HABILIDADE EXTRAOR- era inteiramente tardígrado, sem inclusões es-
DINÁRIA QUE OS TORNA FAMOSOS. A sua tranhas. Depois veio uma terceira equipa do
verdadeira proeza é que são virtualmente in- Japão que contradisse as duas e alegou que a
destrutíveis: não só conseguem resistir a uma transferência horizontal de genes ocorreu,
secura ambiental extrema, mas também a mas em proporções mais normais, cerca de
temperaturas que variam entre 150°C e -272°C, 1,5%. Tudo aponta para o facto de que conti-
doses elevadas de raios X - mais de mil vezes a nuarão a ser um mistério evolutivo.
dose letal para um ser humano - e, para cúmu-
lo, conseguem resistir tanto a pressões muito E AQUI ESTÁ MAIS UM: O BIÓLOGO RAFAEL
elevadas como ao vácuo do espaço. MARTÍN-LEDO, ENQUANTO ESTUDAVA um
Como é que conseguem sobreviver a condi- espécime recolhido num musgo nas margens
ções que matariam qualquer animal? Porque do rio Saja (Cantábria), descobriu na sua bar-
possuem uma proteína amortecedora que, de riga alguns pedaços de cristais estranhos que
alguma forma, protege o seu ADN. Além dis- mais tarde identificou como aragonite. Como
so, descobriu-se que a proteína que os defende chegaram lá? Ninguém sabe. Martín-Ledo es-
da radiação, se inoculada em células humanas, pecula que estes cristais intestinais podem ser
aumenta a sua resistência em 40%! Não sur- fragmentos da própria boca do tardígrado, dos
preendentemente, existem vários grupos que estiletes afiados com os quais quebra a pare-
estudam a sua genética para as aplicações mé- de das plantas para sugar os nutrientes de que
dicas óbvias. necessita.
Sabemos que o seu ADN está relacionado A propósito, os tardígrados encontram-
com outras criaturas terrestres, mas não sabe- -se na lua desde 11 de abril de 2019, quando
mos exatamente como e com quais. Em 2017, Beresheet, uma pequena sonda lunar israelita
o seu genoma foi comparado com outras es- - a primeira missão privada ao nosso satélite -
pécies, mas o esforço foi em vão. Os cientistas embateu na sua superfície após uma falha do
não conseguiram decidir se o urso de água está motor principal. Entre a sua carga estava uma
mais intimamente relacionado com nemató- cápsula do tempo que incluía uma cópia com-
deos - popularmente conhecidos como vermes pleta da Wikipédia, a bandeira de Israel, a To-
cilíndricos - ou com artrópodes - como insetos rá... e alguns milhares de tardígrados, que es-
e crustáceos. Porque é tão difícil deduzir o seu tão agora espalhados pela superfície poeirenta
caminho evolutivo? da Lua. Será que sobreviverão? e

111
43 E quanto ao campo
magnético da Terra?
Nasce no centro da Terra, onde atua como um dínamo 3D. Mas há
ainda muitas questões por esclarecer.

D
esde que William Gilbert, médi- ticamente desde a sua origem e que varia em in-
co da Rainha Isabel de Inglaterra, tensidade e direcção - a isto chama-se a variação
chamou ao nosso planeta o Grande secular. E finalmente, o mais misterioso de tudo:
Imã, em 1600, descobrir por que de tempos a tempos há uma inversão do campo,
razão tem um campo magnético de modo que o norte magnético passa a ser o sul
tem sido um problema difícil de solucionar. e vice-versa.
Existem apenas duas formas de produzir um
campo magnético: através de magnetização COMO UMA MAGNETIZAÇÃO PERMANENTE
permanente - que é o que Gilbert propôs - ou NÃO É CAPAZ DE EXPLICAR tudo isto, só nos
através de correntes elétricas. Qualquer que se- resta a proposta feita em 1919 pelo irlandês Jo-
ja a explicação, deve responder a quatro factos seph Larmor, quando sugeriu que era produzido
básicos bem estabelecidos: que o campo mag- por um efeito dínamo. Ou seja, certas correntes
nético é produzido no interior da Terra - pelo elétricas deviam produzir o campo magnético.
menos 99% dele; que está no nosso planeta pra- Estas correntes não podem aparecer no man-

SHUTTERSTOCK

O campo magnético do nosso planeta


não só influencia fenómenos
geofísicos terrestres, mas também
condiciona o vento solar e o fluxo de
partículas no espaço.

112
A expedição à Antártida de J. C. Ross (1800-
1862) lançou luz sobre o pólo sul magnético,
o ponto onde a direcção do nosso campo
magnético é perpendicular à superfície. Esta
to, que é composto por mate- pintura a óleo de J. W. Carmichael, Erebus e
riais incapazes de produzir um Terror na Antártida, ilustra a sua viagem.
campo com a intensidade que
observamos. Portanto, só po-
dem ocorrer num único lugar:
o centro da Terra.
A proposta de Larmor requer
a pré-existência de um campo
magnético inicial e de um ma-
terial condutor de eletricidade
-o ferro - que esteja girando
para converter energia rota-
cional em energia magnética.
Uma vez iniciado o dínamo, o
campo magnético inicial pode
desaparecer porque já não é
necessário. O melhor de tudo
é que se trataria de um sistema
automantido, sempre e quan- SHUTTERSTOCK

do o núcleo esteja em rotação.


A questão de um milhão de dólares é saber anos tinham passado desde que Gilbert escreveu
qual foi a origem do primeiro campo magnético Sobre Ímanes, Corpos Magnéticos e o Grande
da Terra. Alguns sugerem que foi um pedaço do Imã da Terra”.
campo magnético interestelar que ficou preso à No entanto, há coisas que ainda nos escapam
medida que o nosso planeta se formava. Outros do funcionamento deste escudo de força que nos
pensam que se deveu a um efeito termoelétri- protege das partículas carregadas provenientes
co. Para compreender isto, imagine uma barra do espaço. Parece ter perdido 15% da intensi-
de ferro que seja mais quente numa extremida- dade que tinha em 1670, quando foram feitas as
de do que na outra. Os eletrões do lado quente primeiras medições fiáveis. Se continuar desta
movem-se mais rapidamente, logo, chegam em forma, desaparecerá até ao ano 4000. Diferentes
maior número à outra extremidade da barra. estudos salientam que, embora estejamos peran-
Isto causa uma separação de cargas - há mais te uma queda na sua intensidade, não é seme-
eletrões de um lado do que do outro - e assim lhante ao que acontece quando há uma inversão
uma corrente elétrica e um campo magnético dos pólos.
aparecem. A terceira possibilidade é que tenha
ocorrido algum tipo de reacção química que fez O PRINCIPAL PROBLEMA É QUE NÃO SABEMOS
o manto funcionar durante algum tempo como REALMENTE O QUE SE PASSA COM o nosso
uma bateria. A verdade é que nunca saberemos campo magnético. Por exemplo, uma coisa que
como surgiu ou como era este campo magnético intriga os geofíficos é o vaguear do Pólo Norte
inicial, nem podemos sequer estimar o seu valor desde que James Clark Ross o mediu pela primei-
por paleomagnetismo. ra vez em 1831 no Ártico canadiano. Em meados
da década de 1990, a velocidade aumentou de 15
A IDEIA DO DÍNAMO DE LARMOR GANHOU quilómetros por ano para cerca de 55 quilóme-
GRADUALMENTE ACEITAÇÃO ENTRE OS GEO- tros por ano. Em 2001, tinha entrado no Oceano
FÍSICOS até que um matemático inglês chama- Ártico e, em 2018, cruzou a linha internacional
do Thomas George Cowling publicou um famo- de mudança de data a caminho da Sibéria. E o
so artigo em 1933 no qual formulava o teorema que dizer da misteriosa Anomalia do Atlântico
anti-dínamo: um mecanismo de dínamo como Sul, uma zona que se estende do Zimbabué ao
o de Larmor não consegue manter um campo Chile, onde o campo magnético da Terra é parti-
magnético no centro da Terra e simétrico em cularmente fraco? Também não temos qualquer
torno de um eixo. Foi um grande golpe, mas os explicação para isso.
geofísicos não recuaram. Assim, graças aos es- Para além disso, sabemos que o campo mag-
forços de vários investigadores, nasceu em 1996 nético inverteu a sua polaridade várias vezes ao
o primeiro modelo realista de um dínamo tri- longo da história, a última vez há 780 000 anos.
dimensional para a Terra. Quase quatrocentos E não fazemos ideia porquê. e

113
44 Como começou a
vida na Terra?
As primeiras formas microscópicas de vida podem ter surgido a
partir de reações químicas que produziram aminoácidos. Pensa-se
que tenham chegado do espaço, a bordo de meteoritos. Estudos
recentes sugerem que certas bactérias são capazes de sobreviver em
ambientes tão extremos como os que existiriam noutros planetas.

Um recife de coral cresce na costa


do Parque Nacional de Komodo da
SHUTTERSTOCK

Indonésia, uma região


extraordinariamente rica em
biodiversidade marinha.

114
SHUTTERSTOCK
Num estudo preparatório para o envio da sonda Mars Science Laboratory da NASA, analisaram-
-se as bactérias extremófilas que vivem no ácido Rio Tinto (Huelva) em condições semelhan-
tes às que poderiam ocorrer em Marte.

115
Allen Nutman e Abigail Allwood da Universidade de
Wollongong(Austrália) com um estromatólito, restos
fósseis do micróbio mais antigo conhecido - 3700
milhões de anos - encontrado na Gronelândia.

ARQUIVO TK

N
a África do Sul, existe uma região moléculas complexas da vida pelos graduais e
montanhosa chamada Barber- inelutáveis mecanismos da evolução química.
ton. Ali podemos encontrar uma Mas o verdadeiro ponto de viragem veio em
das maiores riquezas em biodi- 1952. Desta vez foi um jovem licenciado da Uni-
versidade do planeta, com mais versidade de Chicago chamado Stanley Miller,
de 1500 espécies de plantas registadas, 350 es- que quis testar experimentalmente as ideias do
pécies de aves e 80 espécies de outros animais. seu tutor, o Prémio Nobel da Química Harold
Mas Barberton não nos fala apenas da enorme Urey, com base nas de Oparin. A experiência ori-
variedade de vida existente hoje no planeta; ginal durou uma semana e foi tão simples que a
contém também algumas das rochas mais anti- revista Scientific American publicou como qual-
gas, melhor conservadas e menos alteradas da quer pessoa a podia reproduzir.
Terra. É uma das regiões mais antigas do pla- Tudo se reduzia a um pouco de água a ferver,
neta; só as rochas de Isua, na Gronelândia, são metano, amoníaco, hidrogénio e alguns elétro-
anteriores. E é aqui que os cientistas procuram dos dos quais saltavam faíscas. Quando termi-
as mais antigas provas de vida, talvez sob a for- nou, o recipiente foi coberto com uma mistura
ma de bactérias fósseis. Mas de onde é que elas insolúvel, um subproduto comum nas reações
vieram? orgânicas. Mas 15 por cento não se tinha trans-
A origem da vida sempre nos intrigou. Con- formado nesse alcatrão pegajoso.
tudo, só em 1922 é que a investigação científica
começou. Nesse ano, um bioquímico russo de O MARAVILHOSO NA EXPERIÊNCIA É QUE
vinte e oito anos, Alexander Oparin, apresen- APARECERAM UNS PRODUTOS pertencentes
tou as suas ideias numa reunião da Sociedade ao grupo dos ácidos carboxílicos em quantida-
Botânica de Moscovo. Ninguém lhe prestou des consideráveis. Isto não nos diz nada, mas
muita atenção até 1938, quando apareceu a se nos lembrarmos que os aminoácidos perten-
versão inglesa do seu livro, que apresentava de cem a este grupo, as coisas mudam. O trabalho
forma completa as suas teorias. Finalmente, de Miller causou um grande alvoroço e muitos
havia uma hipótese científica sobre como a vi- começaram a trabalhar para levar estes resul-
da poderia ter surgido. O conceito essencial era tados um passo mais além. Nove anos mais tar-
de que teria surgido de uma sopa quente e di- de, a espanhola Joan Oró, da Universidade de
luída de matéria orgânica na presença de uma Houston, fê-lo sintetizando uma das bases de
atmosfera redutora, sem oxigénio. Relâmpa- ADN e ARN: a adenina. O caminho para com-
gos, vulcões e radiação solar colaboraram para preender como surgiram as moléculas da vida
fornecer a energia necessária para formar as estava a começar a a desbravar-se.

116
Ora bem, mas de onde surgiram? Formaram-
-se no nosso planeta ou vieram do espaço? Es-
ta última ideia, conhecida como panspermia,
foi enunciada pela primeira vez pelo químico
sueco Svante Arrhenius em 1903, quando este
sugeriu que formas microscópicas de vida, tais
como esporos, podiam ser encontradas no es-
paço e, de tempos a tempos, cair sobre um pla-
neta, semeando-o com vida. Será isto possível?
Talvez. Em 1972, um meteorito, denominado
Murchinson, caiu na Austrália e foram encon-
trados 74 aminoácidos, 55 dos quais eram de Fósseis deestromatólitos em Shark Bay, Austrália. ARQUIVO TK

provável origem extraterrestre.


extremófilos alargou os limites estreitos que os
SE A QUÍMICA PREBIÓTICA SE OCULTA ATRÁS biólogos tinham imposto à vida. Serão eles o an-
DE UM VÉU AINDA IMPENETRÁVEL, é também tepassado comum a todos nós?
uma incógnita de onde surgiram as primeiras Na região gelada de Isua, na Gronelândia, en-
formas de vida. Uma primeira pista surgiu em contra-se a peça final do puzzle. Em rochas que
1964, quando o biólogo Thomas Brock, em vi- datam de há 3,9 mil milhões de anos, foi desco-
sita ao Parque Nacional de Yellowstone, des- berta uma estranha relação entre dois isótopos,
cobriu micróbios em fontes termais. No Verão dois tipos de carbono: 12C e 13C. Diferem apenas
seguinte, descobriu algas que viviam em locais no facto de que um tem mais um neutrão, o que
onde a temperatura atingia os 60 graus Celsius e o torna ligeiramente mais pesado. Embora am-
bactérias em nascentes a 82 graus Celsius. Para bos estejam igualmente envolvidos em reações
o dizer sem rodeios, Brock encontrou vida em químicas, as dos organismos vivos preferem o
água a ferver. mais leve. E as rochas de Isua têm uma quan-
Surgiu vida neste tipo de ambiente que pode tidade de 12C idêntica à encontrada em fósseis
ser encontrado nas zonas de subdução das fossas e nos seres vivos. Isto prova que a vida existiu,
oceânicas, onde as placas da crosta colidem e se assim como o oxigénio, há 3900 milhões de
afundam sob a placa adjacente? O que é certo é anos atrás, apenas algumas centenas de mi-
que a descoberta dos chamados microrganismos lhões de anos após a formação da Terra? e

SHUTTERSTOCK

A atividade microbiana detetada no


Cinturão de Rochas Verdes Barberton
(África do Sul) aponta para a presença
de vida há 3,2 mil milhões de anos.

117
Uma grande explosão vulcânica poderia ter
desencadeado um efeito dominó massivo de
poluição atmosférica e de alterações climáticas.

45 O que causou a
SHUTTERSTOCK

Grande Extinção?
Há 250 milhões de anos, 80 por cento das espécies foram extintas.
Surgiu um deserto global dominado por fungos.

A
extinção é algo normal na histó- havia uma mudança radical nas espécies, al-
ria da vida. Ocasionalmente, uma go catastrófico deve ter acontecido.
espécie desaparece porque as con-
dições ambientais mudam, surge DA MEIA DEZENA DE EXTINÇÕES EM MASSA
um novo predador, ou perde a sua A QUE O PLANETA ASSISTIU - na opinião de
capacidade competitiva para obter alimentos. alguns, estamos no meio de uma sexta extin-
No entanto, em certos momentos da história ção causada pelo homem - uma foi particular-
da Terra, observaram-se extinções em massa, mente devastadora. Foi a extinção pérmica de
catástrofes globais que destruiram ecossiste- há 250 milhões de anos, quando cerca de 80%
mas inteiros e exterminaram dezenas de mi- de todas as espécies deixaram de existir, in-
lhares de espécies. cluindo 96% da vida marinha e 70% dos ver-
Foram tão decisivos que serviram para tebrados terrestres. Em termos simples, a vida
definir a história geológica. Em 1984, o geó- esteve à beira de desaparecer da face da Terra.
logo John Phillips definiu os limites que se- Durante milhões de anos, o nosso planeta foi
param o Paleozóico, Mesozóico e Cenozóico um deserto quase sem vida, um planeta onde
porque descobriu que, nos estratos rocho- apenas o mais duro e resistente dos seres vi-
sos que havia por cima de cada um destes vos, os fungos, prosperava. O astrobiólogo da
limites, havia formas de vida diferentes das Universidade de Washington Peter Ward, um
que se encontram abaixo. Era óbvio que se especialista neste período da história da Ter-

118
Os listrossauros, répteis que habitavam o que é hoje a

SHUTTERSTOCK
Antártida, não sobreviveram a este período.

ta. Tal erupção poderia ter causado a queima


de vastas extensões de território, um escu-
recimento do céu devido às cinzas vulcâni-
cas, e a alteração do clima e acidificação dos
oceanos devido às enormes quantidades de
dióxido de carbono libertado para a atmos-
fera. Podemos comprovar esta última através
da análise das conchas calcárias de braquió-
podes fósseis, organismos semelhantes a
amêijoas, encontrados nos Alpes.

ra conhecido como a Grande Extinção, disse-o EM SUMA, A ATMOSFERA ENCHERA-SE COM


sem rodeios: “No fim do Pérmico, não se via GASES como o dióxido de carbono, metano
praticamente nada vivo. Foram necessários 30 e dióxido de enxofre , o que teria provocado
milhões de anos para que a Terra recuperasse”. um aquecimento global letal, que juntamente
Ninguém sabe o que causou um tal desas- com o esgotamento do oxigénio nos oceanos,
tre. Não é surpreendente, dado que a grande a chuva ácida e a contaminação atmosférica
maioria das provas geológicas desapareceu atingida com metais pesados poderia ter de-
ou está enterrada nas profundezas da crosta sencadeado a extinção. Mas qual foi a causa
terrestre. Assim, os geólogos e paleontólogos deste vulcanismo generalizado? A tectónica
tentam procurar qualquer vestígio, por pe- de placas? Uma queda de asteróides? Foi este
queno que seja, que lhes possa dar pistas sobre assassino que desencadeou tudo isto, ou foi
o que possa ter acontecido. E não é fácil, por- apenas um cúmplice?
que na realidade poucos fenómenos podem Seja como for, depois de analisar sete cama-
explicar o que aconteceu. das de material vulcânico do sul da China, os
investigadores acreditam que a extinção que
É ÓBVIO QUE APENAS UM EVENTO CATAS- marcou o fim do Pérmico decorreu em menos
TRÓFICO, como uma erupção vulcânica des- de 31 000 anos - um piscar de olhos, de um
mesurada, um impacto de meteoritos , etc., ponto de vista geológico. Não só isso, como
poderia tê-lo desencadeado. Além disso, este também se suspeita que, seja qual tenha sido
cataclismo de curta duração deve ter desen- a causa, várias ondas de extinção ocorreram
cadeado uma onda de eventos de maior dura- nos 5 milhões de anos seguintes, esgotando
ção, tais como a chuva ácida ou o aquecimento ainda mais a biodiversidade que teria sobre-
global. Face a este cenário, os geólogos podem vivido à catástrofe inicial. Em 2019, cientistas
tomar um de dois caminhos: ou houve um chineses descobriram que a temperatura dos
factor dominante, se não único, que causou a oceanos atingiu os 40°C, tornando impossível
extinção em massa e o resto são simplesmente a recuperação da vida marinha. e
consequências do que aconteceu, ou ocorreu
uma série de acontecimentos - alguns mais WIKI

intensos e outros menos - mas nenhum deles,


Este fóssil de Agaricocrinus
por si, foi um factor crítico para a extinção. É o
americanus, datado de há
que poderíamos chamar um cenário de Crime 250 milhões de anos, foi
no Expresso Oriente, em honra do romance encontrado em Indiana
de Agatha Christie, onde há vários assassinos (EUA).
e todos igualmente relevantes.
Escusado será dizer que não faltam can-
didatos para a causa da catástrofe. Se falar-
mos de asteróides ou cometas, descobriu-se
no Brasil, um impacto que poderia estar
relacionado com a extinção, a cratera do
Araguainha. No entanto, se pensarmos em
intensa atividade vulcânica, podemos olhar
para a Sibéria, onde foram encontradas pro-
vas de que 1,5 milhões de metros cúbicos de
lava saíram de uma fenda gigantesca na cros-
120
N
o nordeste da Síria existe uma pequena aldeia onde, até antes
da guerra, viviam pouco mais de uma centena de pessoas. O seu
nome é Tell Brak e nas proximidades estão os restos de uma cidade
antiga cujo nome e habitantes, a cultura Halaf, se encontram per-
didos nas areias da história. A cidade de Nagar, mais tarde Nawar,
foi construída sobre ela na segunda metade do terceiro milénio a.C.
Esta povoação foi uma das primeiras a desenvolver um centro urbano,
mesmo antes que a famosa Uruk. Após um período de crise, voltou aos
seus dias de glória por volta de 2600 a.C., quando ficou conhecida pelo
seu primeiro nome registado, Nagar, a capital de um reino do qual sabe-
mos muito pouco. Três séculos depois foi destruída e passou para as mãos
dos acádios, para mais tarde se tornar independente como cidade-estado,
que desaparecerá de novo no início do segundo milénio a.C.
Pouco se sabe do que lá acontecia, embora tenhamos conseguido ob-
ter pequenos vislumbres da sua vida. Sabemos pelos restos mortais que
os banquetes eram uma parte importante das suas celebrações, que uti-
lizavam carruagens de quatro rodas e que os seus acrobatas eram alta-
mente considerados pelas aldeias circundantes.
É uma grande tristeza saber que perdemos para sempre muitas po-
voações, reinos ou impérios, por mais importantes que tenham sido no
seu tempo. Nunca saberemos como viveu o seu povo, como criou os seus
filhos, nem mesmo quem eram os deuses em quem acreditavam; toda a
sua cultura se tornou em pequenos grãos de areia espalhados pelo vento
da história. Os seus governantes, juízes, soldados e camponeses, a vida
inteira de milhares de pessoas são um mistério e mal representam uma
linha escrita nos livros de história.
Uma lição que devemos aprender.

121
46 Onde está o crânio de
Shakespeare?
O grande poeta inglês, Haydn, Matahari e J. F. Kennedy são algumas
das personalidades famosas cujos restos mortais foram saqueados.

A figura de Shakespeare no museu


de cera Madame Tussauds em Lon-
dres é representada segurando ape-
nas o que falta no seu cadáver.

SHUTTERSTOCK

I
magine um homem segurando um crânio poeta, que deixou claro nos versos cinzelados na
enquanto reflete. Escusado será dizer que, laje do seu túmulo: “Good friend, for Jesus’ sa-
de imediato nos vem à mente o Hamlet de ke forebeare, To digg the dust enclosed heare;
Shakespeare. Ironicamente, quando uma Bleste be the man that spares thes stones, And
equipa de investigadores do Centro de Ar- curst be he that moves my bones” (Bom amigo,
queologia da Universidade de Staffordshire ins- por Jesus, abstem-te de cavar o pó aqui fechado.
pecionou o túmulo do Bardo de Stratford com Bendito seja o homem que respeita estas pedras e
um georadar em março de 2016, as imagens re- maldito o que move os meus ossos).
velaram que lhe faltava a cabeça.
A Igreja da Santíssima Trindade em Stratfor- É UM TÚMULO CURIOSO PORQUE, AO CON-
d-upon-Avon, mais conhecida como a igreja de TRÁRIO DO DOS SEUS PARENTES, localizado
Shakespeare (imagem à direita), nunca permitiu de um lado e do outro, o do poeta é o único sem
que a sepultura fosse escavada, apesar dos nu- nome. Além disso, a sua laje é a mais pequena de
merosos pedidos de permissão dos investigado- todas. A primeira investigação não invasiva da
res, porque queriam satisfazer o último desejo do sepultura de Shakespeare realizada com radio

122
scanning revelou que todas as cinco sepulturas
são pouco profundas - cerca de um metro de
profundidade - e não foram encontrados sinais
de metal, como pregos de caixão. Isto levou à
suspeita de que provavelmente estaria enterra-
do numa mortalha. Mas a descoberta mais in-
trigante é que o local onde a cabeça do escritor
deveria estar, parecia ter sido alterado, como se O túmulo de Shakespeare na
tivesse sido escavado, o que levou à suspeita de Igreja da Santíssima Trindade,
que estava em falta. Infelizmente, o geo-radar Stratford-upon-Avon.
não identifica ossos, pelo que os investigadores
CREATIVE COMMONS
não ficaram 100% seguros.
rie de vicissitudes, incluindo ser trocado, um
CURIOSAMENTE, A DESCOBERTA É CONSIS- crânio que não era do músico acabou na sua se-
TENTE COM UMA HISTÓRIA que tem vindo a pultura em 1820, e finalmente, em 1954, o ver-
circular há mais de um século. Em 1879, o Reve- dadeiro pôde descansar ao lado do seu corpo.
rendo Charles Jones Langston publicou o artigo Mas o crânio falso não foi removido, tornando
“Como foi roubado o crâneo de Shakespeare” o túmulo de Haydn único: ele contém um corpo
em Argosy, a primeira pulp magazine ameri- e dois crânios.
cana. Nele, relatava algo que tinha acontecido
cem anos antes: em 1794, um médico chamado EM 1918, SEIS MEMBROS DA SOCIEDADE SE-
Frank Chambers encomendou a ladrões de se- CRETA SKULL AND BONES da Universidade de
pulturas o roubo do crânio do poeta. Ninguém Yale profanaram a sepultura do famoso chefe
levou a história a sério, em primeiro lugar devi- Apache Gerónimo e levaram a sua cabeça, que
do ao local onde foi publicado, uma revista ba- nunca mais reapareceu, nem a da famosa Ma-
rata e popular, e em segundo lugar porque deu ta Hari, Margaretha Geertruida MacLeod-Zelle,
pormenores que foram considerados impossí- baleada pelos franceses como espiã durante a
veis, tais como que a sepultura tinha um metro Primeira Guerra Mundial. Após a sua morte, o
de profundidade ou que o corpo foi enterrado seu corpo foi enviado para o Museu de Anatomia
diretamente na terra. Tal como foi mais tarde de Paris, que exibe uma coleção de mais de 5000
encontrado. crânios e outras partes do corpo de criminosos
Num folheto posterior intitulado Como se famosos. Daí, a sua cabeça voou.
perdeu e encontrou o crâneo de Shakespeare Também desaparecem cérebros, como o do
(1884), Langston sugeriu que Chambers entrou 35º presidente dos Estados Unidos da América,
em pânico e escondeu o crânio na Igreja de St John F.Kennedy. Após autópsia, o cérebro foi
Leonard em Beoley, uma pequena aldeia a 25 colocado num frasco de aço inoxidável e fecha-
quilómetros de Stratford. Mais especificamen- do à chave num arquivo no gabinete executivo
te, na cripta da família Sheldon, que se encontra do presidente. Em 1965, foi transferido - junta-
por baixo da capela que tem o seu nome. Sete mente com outros restos mortais, como seções
membros da família estão ali enterrados, jun- histológicas e amostras de sangue - para o Ar-
tamente com quatro esqueletos não identifica- quivo Nacional, a pedido do seu irmão Robert
dos. Mas há também um crânio numa pequena Kennedy. Mas a 31 de outubro de 1966 desco-
câmara embutida na parede da cripta. É o de briu-se que o cérebro e todo o material biológi-
William Shakespeare? A análise forense realiza- co tinham desaparecido. e
da pela mesma equipa do Centro de Arqueolo-
DOMINIO PÚBLICO

gia decidiu que não era, pois havia pertencido a


uma mulher de setenta anos.
Pode parecer surpreendente, mas o roubo de
partes de pessoas famosas tem sido comum ao
longo da história. Um exemplo é o crânio do
compositor Joseph Haydn, que foi roubado pa-
ra ser estudado do ponto de vista da frenologia,
uma pseudociência da moda do século XIX que
assumia que a personalidade poderia ser dedu-
zida a partir da forma do crânio. Após uma sé-

123
47 Quem foram os
povos do mar?
“Vieram nos seus navios de guerra e ninguém conseguia fazer-
lhes frente”, lê-se numa inscrição do século XII a.C. encontrada
na cidade egípcia de Tanis. Depois de exterminar quase todas as
civilizações do Mediterrâneo, foram atacar o Egito de Ramsés III.

124
SHUTTERSTOCK

125
Obelisco. Templo de Biblos.

CREATIVE COMMONS

N
o segundo milénio a.C. e durante Foi o egiptólogo Emmanuel de Rougé, em
quase um século, um grupo de 1855, que utilizou o termo Povos do Mar pa-
guerreiros vindos do mar asso- ra designar um grupo de tribos representadas
lou o Mediterrâneo semeando num relevo da era de Ramsés III, datado do fim
desolação e morte. A resistência do Império Novo - entre 1184 e 1153 a.C. - em
foi em vão e os grandes poderes da época, hiti- Medinat Habu. Subsequentemente, o egip-
ta, micénico, cananeu e cipriota, foram caindo tólogo Gaston Maspero, baseado na teoria de
um após o outro. “Nenhuma terra foi capaz de Rougé, concluiu que eram “os componentes de
resistir às suas armas..... Devastaram as suas uma grande migração que viajou do Mar Egeu
gentes e a sua terra foi deixada como se nunca para o Mediterrâneo oriental”.
tivesse existido... Puseram a mão sobre as ter-
ras de todo o circuito da Terra, com um coração
seguro e confiante”. Assim, podemos ler nas
paredes do templo funerário de Ramsés III em
Medinat Habu. Arrasaram o Império Hitita e
destruíram e saquearam a sua capital, Hattusa.
Também atacaram a Síria e Canaã, onde muitas
cidades foram incendiadas, bem como Chipre e
a sua capital, que também foi saqueada.

POUCO SE SABE SOBRE ESTES HOMENS


VIOLENTOS, muito menos sobre a sua tradi-
ção ou cultura. Os seis grupos que os consti-
tuíram não deixaram qualquer inscrição pró-
pria, e a pouca informação que temos provém
das civilizações que lutaram contra eles, es-
pecialmente dos antigos egípcios.

126
DOMÍNIO PÚBLICO

Muitas são as hipóteses sobre as suas origens. naturais nos seus locais de origem. Seja qual
Alguns consideram-nos como sendo povos ita- tenha sido, e tendo exterminado quase todas
lianos ou da Europa Central, tendo mesmo ras- as civilizações do Mediterrâneo, em meados
treado um deles, os Shekeleshs, até à Sicília. do século XII a.C. o único objetivo que lhes
Outros investigadores dizem que vieram do restava era conquistar o Egito de Ramsés III.
Atlântico, do Mar do Norte e da costa bálti-
ca, ou que eram de origem semita, talvez ca- SEGUNDO GRAVURAS ENCONTRADAS NO
nanéia. De acordo com esta teoria, baseada na TEMPLO MORTUÁRIO DE Medinat Habu, a
afinidade linguística, cinco das doze tribos de feroz batalha teve lugar algures a norte da
Israel eram descendentes dos povos do mar: capital de Pi-Ramses, agora Qantir. No Ni-
a dos filisteus, a dos aseritas, a dos danitas, lo, soldados egípcios armados com dardos,
a dos issacaritas e a dos manassés. Há tam- arcos e espadas atacaram o inimigo a partir
bém aqueles que acreditam que eram gregos dos convés dos seus navios, dizimando-os
emigrantes, chamados eqwesh pelos aqueus, gradualmente e forçando-os a dirigir-se para
embora outros pensem que poderiam muito a costa, onde os arqueiros, estacionados nas
bem ser o que os hititas chamavam ahhiya- margens, esperavam para acabar com eles. A
wa. Nesta última hipótese, os povos do mar vitória na Batalha do Delta (1177 a.C.), a pri-
seriam micénicos. Mas há mais. Outra diz que meira batalha naval registada na história, é
dois deles, os thekker e os pelesets, tinham considerada a derrota decisiva dos povos do
tradições que podiam ser claramente ligadas mar. Mas o Egito nunca mais voltou a ser o
a Creta. Os thekker teriam deixado a ilha pa- que era. A vitória marcou o início do seu de-
ra se estabelecerem na região da Anatólia, na clínio e com ela iria cair o último dos grandes
Turquia. E, claro, há quem fale de troianos, impérios antigos.
etruscos e até minóicos. Os povos do mar desapareceram da histó-
Em qualquer caso, a sua origem é tão enig- ria, deixando um rasto de mistério que ainda
mática como as razões que os levaram a asso- hoje persiste. “O seu coração e alma serão
lar o Mediterrâneo oriental com sangue e fo- consumidos por toda a eternidade”, reza um
go. Alguns historiadores sugerem que a causa dos textos nas paredes do templo funerário de
das suas migrações foram fomes ou catástrofes Ramsés III. e

127
48 Quem foi o homem da
máscara de ferro?
Passou trinta e quatro anos na prisão e só podia sair da sua cela com
a cara tapada. Seguramente foi uma vítima de intriga política.

E
m 1670, os habitantes de Pinerolo, uma quando um ministro de Luís XIV, o Marquês
cidade italiana do Piemonte que então de Louvois, enviou uma carta a Bénigne Dau-
pertencia ao Ducado de Sabóia com o vergne de Saint-Mars, governador da prisão de
nome de Pignerol, puderam ver nas Pignerol, informando-o de que um prisioneiro
torres da prisão, um homem com uma chamado Eustache Dauger deveria chegar no
máscara de veludo preto. Os guardas diziam que próximo mês.
era tratado com cortesia e até jantava com o co-
mandante da fortaleza. Um dia, o misterioso pri- NA CARTA, DAVA-LHE INSTRUÇÕES: DEVIA
sioneiro atirou uma tábua escrita do alto da mu- PREPARAR UMA CELA COM várias portas que
ralha. Um aldeão recolheu o escrito e foi preso se fechassem umas sobre as outras, para que
pelos soldados. Demorou várias semanas numa ninguém pudesse ouvir nada do exterior. Sain-
cela escura e fria para convencê-los de que não t-Mars devia ver Dauger apenas uma vez por dia
sabia ler nem escrever e que não fazia parte de para lhe dar comida e tudo o mais que precisas-
nenhuma conspiração para libertar o prisioneiro. se. Dauger só podia falar sobre as suas necessi-
Os primeiros registos que se conservam do dades imediatas. Caso contrário, seria executa-
homem mascarado datam de Julho de 1669, do. Mas, de acordo com Louvois, o prisioneiro

AR

Impressão anónima - gravura e


CH
IV
O
TK

mezzotint, colorida à mão - de 1789,


retratando o infeliz prisioneiro.

128
não deveria inicialmente exigir demasiado,
pois era apenas “um criado de quarto”.
O homem com a máscara foi transferido para
a Bastilha, em Paris, onde morreu a 19 de no-
vembro de 1703 após trinta e quatro anos de
prisão, aparentemente sempre sob a custódia
do mesmo carcereiro, Saint-Mars. No registo
prisional da penitenciária, mantido pelo Te-
nente Étienne du Junca, este escreveu: “Tendo
ficado doente depois de sair da missa, morreu
hoje às dez da noite [...] e este prisioneiro des-
conhecido mantido durante tanto tempo foi
enterrado na terça-feira às quatro da tarde,
20 de novembro, no cemitério de Saint-Paul,
a nossa paróquia; no registo mortuário demos
um nome desconhecido e Monsieur de Rosar-
ges, diretor, e Monsieur Reil, cirurgião, assi-

SHUTTERSTOCK
naram o registo. Foram pagas quarenta libras
pelo enterro”. O registo paroquial revela que
ele foi enterrado sob o falso nome de Mar-
chioly. Todos os seus pertences foram destruí- Era uma carta do Ministro da Guerra, o
dos e as paredes da sua cela foram raspadas e Marquês de Louvois, ao Tenente-General Ni-
caiadas de branco. colas Catinat, comandante-chefe do exército
no Piemonte. Nela, contava como o Gene-
QUEM ERA ESTE ENIGMÁTICO PERSONA- ral Vivien de Boulonde tinha sido preso por
GEM QUE QUISERAM APAGAR DA HISTÓRIA? ter fugido durante o cerco de Cuneo (1691) e
Alexandre Dumas especulou em O Homem da encarcerado na fortaleza de Pinerolo, onde
Máscara de Ferro que ele era o irmão gémeo de estaria encarcerado durante as noites, mas
Luís XIV. Outros rumores apontavam para um durante o dia “podia andar nas ameias com
filho ilegítimo. A lista de candidatos propostos é 330 309”. Estes eram números que não apa-
longa. Em 1891, o oficial francês Victor Gendron reciam em mais lado nenhum no texto e era
descobriu uma carta codificada. Enviou-a para impossível extrair o seu significado do con-
Étienne Bazeries, um funcionário do Gabinete texto. Bazeries conhecia a história do homem
de cifragem do Ministério dos Negócios Estran- da máscara e assumiu que 330 significava
geiros interessado em criptografia. Na altura, máscara e 309 era um sinal de recinto. Ba-
era comum que as pessoas casadas contactassem zeries anunciou que o homem com a máscara
os seus amantes através de anúncios em jornais era o General Boulonde. Mas tal não era pos-
utilizando códigos secretos. Os seus autores sível, porque Boulonde viveu mais cinco anos
nunca poderiam imaginar os muitos “ranchos” do que o homem da máscara.
que as suas mensagens animaram no quartel de
Bazeries. Este interessou-se por antigos códigos EM 2015, FORAM DESCOBERTOS OS INVEN-
franceses que ainda não tinham sido decifrados. TÁRIOS DE BENS E PAPÉIS do seu carcereiro
Leu pacientemente a correspondência secreta Saint-Mars. Foram descobertos entre os 100
dos tempos de Luís XIV e Napoleão, e depois a milhões de documentos do Minutier Central
carta encontrada por Gendron chegou até ele. des Notaires de Paris, um dos departamentos
Bazeries suspeitava que cada um deles cor- do Arquivo Nacional Francês que mantém os
respondia a uma sílaba de francês e, além disso, registos dos notários que exerceram na capital
que as letras individuais podiam ser represen- entre o final do século XV e o início do século
tadas por um ou mais números. A mais fre- XX. Estes documentos confirmam a ganância
quente era o 22 - aparecendo 187 vezes - segui- de Saint-Mars, que desviou fundos enviados
da por 124, 42, 311 e 125. Bazeries assumiu que pelo rei para a manutenção do prisioneiro.
estes correspondiam às sílabas mais frequentes Descrevem também uma cela ocupada pelo
em francês, pelo que atribuiu ao 124 a palavra prisioneiro mascarado: continha apenas uma
les, ao 22 en, e ao 125 e 146, ne. No final, o crip- esteira para dormir. Quem foi preso e apagado
tologista foi capaz de descodificar a mensagem. da história por ordem expressa de Luís XIV? e

129
49 Onde estão os tesouros do
templo em Jerusalém?
A Arca da Aliança e outros objetos sagrados dos judeus têm sido
procurados por arqueólogos sérios e por aventureiros ávidos de
riqueza. A última hipótese coloca-os enterrados em Belém.

A
verdadeira mãe de todos os tesou- arrasado pelos babilónios em 586 a.C. O segun-
ros é o do templo de Jerusalém, do, reconstruído com a permissão do rei Ciro
justamente o encontrado por Ni- em 525 a.C. e remodelado por Herodes o Gran-
colas Cage no filme The Quest. De de em 20 a.C., foi reduzido a escombros pelos
ação trepidante, o filme necessita romanos noventa anos mais tarde, após a san-
da nossa benevolente compreensão pelos nor- grenta revolta judaica do ano 66.
teamericanos- todas as histórias que se prezem
têm de acontecer na América - e paciência, não PROVAS DE QUE O PRIMEIRO TESOURO EXIS-
nos perguntando como é que estátuas egípcias, TIU PODEM SER ENCONTRADAS no primeiro
papiros da Biblioteca de Alexandria e múmias Livro dos Reis: salas inteiras cobertas de ouro,
foram parar a um templo judeu. capitéis, colunas e bases, ovelhas de bronze, a
Ficção à parte, poderíamos falar de vários te- mesa do altar, os candelabros, flores, candeei-
souros, pois o templo foi destruído duas vezes. ros e castiçais em ouro... Tudo isto acabou nos
O primeiro templo, construído por Salomão, foi cofres do rei Nabucodonosor II, que foi res-
SHUTTERSTOCK

CREITO

Baixo-relevo de bronze no altar


de Santa Teresa da Catedral de
Toledo, representando os
israelitas transportando, no seu
êxodo, a Arca da Aliança.

130
SHUTTERSTOCK
ponsável pelo desmantelamento de Israel. No
entanto, alguns aventureiros e caçadores de
tesouros pensavam que os judeus teriam con-
seguido salvar parte dele. Entre eles estava
Valter H. Juvelius, um historiador bíblico fin-
landês que promoveu uma expedição à procura
de tesouros que os sacerdotes judeus poderiam
ter salvo do saque, escondendo-os em túneis e
grutas. Em agosto de 1909, a escavação come-
çou sob a liderança de um capitão da Guarda
de Granadeiros, Montague Brownslow Parker.
Juvelius estava certo da sua aposta: entre os
membros da sua equipa encontrava-se um vi-
dente dinamarquês que orientaria a busca. Co-
meçou nas encostas do monte Ofel, a sudoeste
da Cidade Velha, o lugar onde o Rei David cons-
truiu a sua cidade, Ir David ou Jebus. Mas em
1911, o tesouro ainda não tinha sido encontra-
do e o governo otomano, a quem Jevelius tinha
prometido metade das riquezas, começava a
ficar nervoso.

PARKER SUBORNOU O GOVERNADOR DE JE-


RUSALÉM COM 25.000 DÓLARES em troca de
permissão para cavar no canto sudeste do Monte Diz-se que o templo em Jerusalém albergava valiosos
do Templo, sagrado para os judeus e o segundo objetos sagrados feitos de ouro antes da sua destruição e
local mais sagrado do Islão. O vidente assegu- que alguns deles foram guardados na Arca.
rou-lhes que as riquezas do judaísmo primitivo
estavam por baixo dos estábulos de Salomão. riqueza acumulada pelos sumos sacerdotes,
A imagem de Parker e de alguns trabalhadores dos dízimos, impostos e outras dádivas dos
vestidos de árabes cavando ali à noite deve ter judeus devotos chegou a Roma e foi utilizada
sido muito parecida com a que Spielberg rodou por Vespasiano para começar as obras no Coli-
para o seu filme Salteadores da Arca Perdida. seu. Mas talvez algo tenha sobrevivido. O Arco
Não encontrou nada. A 11 de abril, Parker de Tito, erguido na Via Sacra para comemorar
jogou a sua cartada a e começou a cavar logo a vitória, mostra que entre os despojos esta-
abaixo da Cúpula da Rocha, onde a lenda diz vam a menorah - o candelabro de sete braços,
que Abraão sacrificou o seu filho Isaac e de onde as duas trombetas de prata - encarregadas
Maomé subiu ao céu. Disse que queria explorar por Deus a Moisés para convocar o povo - e
algumas cavernas naturais, mas o guardião da o que parece ser a Mesa dos Pães que Yahweh
mesquita ouviu o som de picaretas e pás. Os ru- mandou construir a Moisés. Presume-se que
mores espalharam-se, e chegou a dizer-se que permaneceram em Roma até serem saqueados
Parker tinha encontrado a Arca da Aliança, o pelos vândalos em 455, e que os vândalos os
anel e a coroa de Salomão e a espada de Maomé. levaram para Cartago.
Uma explosão de violência varreu a cidade, o
governador foi abruptamente demitido, e Par- O GENERAL BELISARIUS RECUPEROU-OS PARA
ker e os seus homens correram para o porto de CONSTANTINOPLA em 533 e é nesse momento
Jaffa para salvar as suas vidas. que, como disse Indiana Jones, o chão desapare-
A verdade é que não havia nenhum tesouro. ce debaixo dos pés e todas as referências se per-
Nabucodonosor II provavelmente levou tudo e dem. Onde se encontram estes objetos, os mais
gastou-o nas obras impressionantes que em- sagrados da fé judaica? Embora a opinião mais
preendeu na sua Babilónia. Objetos lendários comum seja que regressaram e se perderam em
como a Arca da Aliança ou a vara de Aarão per- Jerusalém, o arqueólogo Sean Kingsley sugere no
deram-se para sempre. seu livro God’s Gold que estão enterrados a do-
Algo semelhante fez Tito quando demoliu ze quilómetros de Belém, sob o mosteiro de São
Jerusalém após a revolta judaica do ano 66. A Teodósio, fundado em 476. e

131
Os astrónomos discordam sobre
se o que a Bíblia descreve foi
uma conjunção de planetas,
uma supernova, um cometa...
ou um puro devaneio poético.

SHUTTERSTOCK

50 Será que a Estrela


de Belém existiu?
Não há símbolo natalício mais poderoso do que o do misterioso corpo
celeste que conduziu os Magos ao estábulo onde Jesus nasceu.

C
onhecemos a história pelo rela- um do outro, melhor. A primeira referência
to de Mateus, o único evangelista conhecida a uma conjunção astronómica as-
a mencionar a estrela. É bastante sociada ao nascimento de Jesus encontra-se
imaginativo, pois não há nenhum nos Anais da Abadia de Worcester, onde sob
fenómeno que se mova pelo céu o título AD1285 lemos: “No mesmo ano, Jú-
ao ritmo do camelo e que se detenha por cima piter e Saturno estavam em conjunção, o que
de uma casa. Durante séculos, sacerdotes e as- não tinha acontecido desde a encarnação”.
trónomos têm procurado nos céus por algo que
tenha acontecido nessa altura e que eles pudes- MAS FOI JOHANNES KEPLER, QUE DESCO-
sem identificar com a famosa estrela. E há vá- BRIU AS REGRAS que seguem as órbitas plane-
rios candidatos. tárias - hoje conhecidas como as leis de Kepler
Por um lado, existem conjunções, ou seja, - que, em 1614 identificou este fenómeno com
quando dois planetas se encontram próximos a estrela de Belém. Foi a tripla conjunção de
um do outro no céu. Obviamente, quanto Júpiter e Saturno em Peixes - uma constelação
mais espetaculares são, mais próximos estão associada ao povo judeu - que ocorreu em 7 a.C.

132
Os cálculos atuais mostram que a separação sinal que os astrólogos helenistas e latinos da
mínima entre os dois planetas foi cerca do do- época atribuíam à Judeia, pelo que para os
bro do tamanho de uma lua cheia, não muito magos, um fenómeno astronómico singular
espetacular na realidade. que ocorria na constelação associada à Judeia
Mais surpreendente foi o que aconteceu era certamente o sinal que o rei dos judeus es-
entre 2 e 3 a.C., uma série de conjunções. Em tava prestes a nascer. Mas porque é que uma
particular três entre Júpiter e Regulus, a es- ocultação significa, astrologicamente, o nas-
trela mais brilhante da constelação Leão, e cimento de um rei? Molnar não deu argumen-
outra série de três entre Vénus e Júpiter, cujo tos convincentes.
clímax ocorreu em 3 de agosto a.C., quando Finalmente, no extremo das hipóteses in-
os dois pareceram fundir-se num só no céu, verosímeis, está a proposta em 2005 do físico
na constelação de Leão. O evento foi tão mar- canadiano Fran Tipler, famoso por formular
cante que mereceu ser imortalizado num se- ideias científicas ousadas e heterodoxas. Afir-
lo, que pode ser encontrado descrito no vo- mou que poderia ter sido uma hipernova que
lume três dos Símbolos Judaicos do Período apareceu na vizinha galáxia de Andrómeda, ou
Greco-Romano. Não poderia este fenómeno uma supernova que explodiu num dos aglome-
astronómico peculiar ter sido a origem da fa- rados globulares da nossa galáxia.
mosa estrela?
E se fosse um cometa? No tratado astronómico QUEM ESTÁ CERTO? TALVEZ NINGUÉM. O ER-
sobre a história da primeira dinastia Han diz-se RO QUE OS ASTRÓNOMOS COMETEM é du-
que uma “estrela convidada” apareceu no céu em plo. Em primeiro lugar, em nenhum momento
5 a.C. e permaneceu visível durante setenta dias justificam porque devemos tomar como his-
entre a constelação de Capricórnio e a da Aqui- tórico o relato dos magos e da estrela, que só
la. Alguns historiadores da Astronomia, opinam aparece no evangelho de Mateus. Em segundo
que, uma vez que não se verificou um movimen- lugar, pegam na história e tiram-na do contex-
to aparente através do céu, terá sido uma nova, to. Para Mateus, um autor que escreve a uma
uma explosão estelar, e não um cometa. Na ver- audiência de origem judaica, é imperativo de-
dade, os chineses descreveram-na como estando monstrar que Jesus é o Messias por nascimen-
“pendurada” sobre certas cidades. to, e por isso ele insiste em fazê-lo cumprir as
profecias do Antigo Testamento associadas a
MAS AS OPÇÕES NÃO TERMINAM AQUI. EM esse cargo. O mais importante é que ele deve
1911, HEINRICH VOIGT PROPÔS que a estrela ser descendente de David e isto obriga-o a co-
de Belém foi a ascensão heliacal de uma estrela, locar o nascimento em Belém - lembre-se que
o momento em que, quando se ergue a leste, o ele é conhecido como Jesus de Nazaré, outra ci-
sol se põe a oeste. De acordo com a tradução da dade, não Jesus de Belém. E os magos?
Bíblia de Jerusalém, os Magos viram a sua es- Em Salmos, diz-se que o futuro Messias se-
trela “no Oriente”. Mas, no grego original apa- rá adorado pelos reis da Arábia, Sabá e Társis,
rece ‘en tē anatolē’ que também pode ser tra- que lhe trarão presentes. E, em Isaías, que
duzido, como ‘ascendente’, e para Voigt isso é virão de Sabá com incenso e ouro. Finalmen-
prova de que, de facto, o que Mateus está a des- te, que uma estrela anuncia o seu nascimento
crever é uma ascensão heliacal. Mas de quê? No aparece em Números: “Vejo-o, embora não
início do século XX, o assiriólogo alemão Alfred por agora, vejo-o, mas não perto: uma estre-
Jeremias sugeriu que poderia muito bem ter si- la avança de Jacob, um cetro surge de Israel”.
do Regulus - abreviatura da palavra latina rex, Uma frase que o autor de Números atribui a
‘rei’ - a estrela mais brilhante da constelação Balaão, um profeta que viveu na Babilónia.
Leão, um dos símbolos mais antigos associados Mateus pegou em todas estas profecias e re-
ao povo judeu. uniu-as no seu relato: Belém, os Reis Magos
Em 1999, o astrónomo Michael R. Molnar e a estrela. A conclusão é que o relato bíblico
acrescentou a sua própria contribuição.Afi- do nascimento é lendário e tem um claro pro-
cionado das representações astrológicas nas pósito teológico. E a estrela? Mateus pouco se
moedas antigas, Monar notou que uma que importava com a sua existência; só lhe inte-
acabara de comprar por 50 dólares era uma ressava introduzi-la na narrativa por razões
representação de uma dupla ocultação de Jú- puramente teológicas. Claro que isso não sig-
piter pela lua em 20 de março e 17 de abril de nifica que não tenha sido inspirado por algum
6 a.C. em Áries. Segundo Molnar, Áries era o facto astronómico. Ou sim? e

133
51 Qual é a relação
entre o Grande Zimbabwe
e o reino de Sabá?
Dois mundos que se movem entre a história e a lenda com uma
ligação comum: a sua suposta relação com os antigos judeus.

P
erto das Montanhas Chimanimani e do até dez metros de altura. É claro que a cidade
Lago Mutirikwe, no sudeste do Zim- estava ligada a jazidas de ouro. Nas minas da
babué, encontra-se a cidade da qual atual Rodésia, a sul do Zimbabué, calcula-se
deriva o nome deste país africano, que que tenham sido extraídos cerca de 600.000
tem dezasseis línguas oficiais. O Gran- quilos de ouro. O comércio chegou tão longe,
de Zimbabwe é um impressionante complexo como demonstram as moedas árabes e as vasi-
de edifícios de pedra espalhados ao longo de 150 lhas chinesas ali encontradas. Porque se aban-
km2 e construídos entre os séculos XI e XV, nos donou a cidade permanece um mistério.
quais não foi utilizado cimento nem argamassa.
As pedras foram esculpidas para se encaixarem QUEM FORAM OS CONSTRUTORES? As teorias
como um puzzle tridimensional gigante. Algo colonialistas do início do século XX atribuiram
incrível, considerando que existem paredes de o mérito a árabes ou fenícios, e até se dizia que

As ruínas da antiga cidade Grande


Zimbabwe exibem uma sofisticada
técnica de construção em pedra talhada.
O complexo pode estar relacionado com
a mítica Rainha de Sabá.

SHUTTERSTOCK

134
era uma réplica do palácio da mítica rainha de lungundu ou tambor do trovão, é na realida-
Sabá. Todos, exceto os que o atribuíram à perí- de a Arca da Aliança, que se perdeu de Jeru-
cia dos obviamente inferiores negros africanos. salém depois desta ter sido destruída pelos
Mas as escavações arqueológicas apontam para babilónios. Será isto mais do que um mito,
os antepassados dos shonas, a tribo predomi- e existe alguma ligação entre eles e o reino
nante hoje em dia no Zimbabué. De facto, na perdido de Sabá?
sua língua, este país africano é chamado Dzim-
ba-dza-mabwe, “casa de pedra”. DOIS PAÍSES, O IÉMEN E A SOMÁLIA, DIS-
No entanto, outros historiadores defendem PUTAM A LOCALIZAÇÃO deste lendário rei-
que os seus construtores eram membros de ou- no mencionado nos livros dos Reis e no das
tra tribo, muito mais pequena: os Lembas. Pa- Crónicas do Antigo Testamento. A rainha
ra complicar ainda mais a situação, os Lembas deste país desconhecido, fascinada pelas
afirmam estar relacionados com um dos mais histórias que enalteciam a sabedoria de Sa-
conhecidos mitos judeus: afirmam ser de uma lomão, foi vê-lo e levou-lhe presentes sob a
das tribos perdidas de Israel. forma de especiarias, ouro e pedras precio-
sas. Ao contrário do
UM DOS PRINCIPAIS que Hollywood nos
PERITOS NESTA RE- conta, a Bíblia não
GIÃO africana, Tudor revela qualquer atra-
Parfitt, juntamente ção sexual entre os
com os seus colegas da dois reis, que con-
Universidade de Lon- versavam como che-
dres, descobriu uma fes de estado. Apenas
característica peculiar em certas passagens
no seu cromossoma Y, do Cântico dos Cân-
chamada o haplótipo ticos alguns querem
modal Cohen. O nome ver uma alusão ve-
vem da casta sacerdo- lada ao caso de amor
tal judaica conhecida entre Salomão e a
como Kohanim, na Rainha de Sabá, que
qual os homens afir- nunca é mencionada
mam ser descenden- pelo nome.
tes diretos de Aarão, Para os etíopes, a
o irmão mais velho de Rainha de Sabá é Ma-
Moisés e o primeiro keda; para os muçul-
sumo sacerdote judeu. manos, é Bilqis. E pa-
Ser descendente de ra o historiador judeu
Aarão implica perten- romano Flavius Jose-
ARQUIVO TK

cer ao ramo sacerdo- phus, ela é Nicaula,


tal, tal como ser des- rainha do Egito e da
cendente de David sig- Etiópia, que viveu no
nifica pertencer à linha real. Que esta peculiari- século X a.C. São estas indicações que locali-
dade se encontre em ambas as etnias leva muitos zam Sabá neste país africano.
a acreditar que a história oral dos Lembas, que A família imperial da Etiópia reivindica
afirmam vir do Próximo Oriente, precisamente descendência da Rainha de Sabá e Salomão;
de um grupo que deixou a Judeia há 2500 anos, chamam-se a si próprios a dinastia Salomó-
tenha alguma base. nica. E enquanto outros colocam o famoso
Além disso , os Lembas não comem carne de reino na Núbia, no ano passado foram des-
porco, coelho, lebre ou peixe sem escamas, co- cobertos vestígios de três mil anos atrás: o
mo requerido pelo Leviticus. Matam animais à templo da deusa Luna na cidade de Ma’rib
maneira kosher, introduziram a circuncisão na no Iémen, que era a capital do reino de Sabá.
África Oriental e colocam uma Estrela de David Será que a Rainha de Sabá vivia lá? A disputa
nas sepulturas. sobre em que lado da costa do Mar Vermelho
Parfitt colocou a hipótese de que a tradição se encontrava a lendária cidade ainda não
Lemba que fala de um objeto sagrado, ngoma foi resolvida. e

135
52 O que aconteceu na
Ilha de Roanoke?
O desaparecimento da colónia inglesa no final do século XVI é um
dos maiores enigmas da história dos Estados Unidos. É provável
que os seus habitantes se tenham juntado às tribos indianas.
Esta cena, captada na ilustração O batismo de
Virginia Dare, o primeiro bebé nascido de pais
britânicos no Novo Mundo, teve lugar na ilha de
Roanoke, na atual Carolina do Norte.

GETTY

A
ilha de Roanoke está localizada nos expedição em busca de uma boa localização na
Estados Unidos, no condado de Dare, América do Norte para fundar uma colónia britâ-
Carolina do Norte. Em 1583, foi fun- nica. Também lhe deu um cheque em branco para
dada na ilha da Terra Nova a primeira colonizar qualquer terra “que ainda não estivesse
colónia inglesa estável no ultramar. na posse de um príncipe cristão”. Por outras pala-
No entanto, a colónia estava demasiado a norte vras, qualquer território ainda não ocupado pela
para ali estabelecer plantações e servir de porto Espanha. Em troca, a Coroa receberia 20% dos
para os navios piratas que abordavam os galeões seus ganhos ilícitos. O que Elizabeth queria, e por
espanhóis que regressavam a casa com os metais isso o disse em privado a Raleigh, era que ele es-
extraídos das minas americanas. A Rainha Eliza- tabelecesse uma povoação nas Caraíbas do Norte
beth I estava interessada em estabelecer colonatos que servisse de base para o ataque aos navios que
ingleses no Novo Mundo que fossem lucrativos e regressavam a Espanha.
úteis na sua luta contra a Espanha pelo controlo O local escolhido foram os Outer Banks da Vir-
das Caraíbas e das costas da América. gínia, um grupo de ilhas ligadas por praias pró-
Assim, em 1584, a rainha pirata ordenou ao ximas do continente e com recursos naturais,
corsário Sir Walter Raleigh que organizasse uma perfeito para controlar a passagem dos galeões

136
espanhóis. Cento e oito colonos desembarcaram para o interior e misturado com uma tribo acolhe-
na ilha de Roanoke em agosto de 1585, e os navios dora. De facto, no final do século XVIII, falava-se
partiram com a promessa de abastecimento em da existência de uma tribo de índios que falavam
abril do ano seguinte. Mas chegou o mês de junho inglês fluente e professavam a religião cristã. Com
e os navios não apareciam. Felizmente, Drake fez esta suspeita em mente, iniciou-se em 2007 o tra-
uma escala na ilha em meados de junho, depois balho de recolha de amostras de ADN de famílias
de ter perdido dois terços da sua tripulação de- da área para estudar o possível parentesco com
vido à malária. Quando os navios de reabasteci- aqueles primeiros colonos.
mento chegaram, a colónia já estava deserta, pe- Em qualquer caso, a investigação em Roanoke
lo que quinze marinheiros permaneceram para está atualmente centrada na procura de vestígios
manter a presença britânica na área. arqueológicos. Mark Horton, um arqueólogo da
Universidade de Bristol, iniciou as primeiras es-
UM ANO MAIS TARDE, EM 1587, RALEIGH ENVIOU cavações e Nick Luccketti, da First Colony Fou-
UM NOVO GRUPO DE COLONOS, liderados pelo ndation, é responsável pela segunda. As provas
seu amigo John White, para se estabelecerem a sugerem que os colonos se dividiram em dois
norte de Roanoke, na baía de Chesapeake. A expe- grupos e se juntaram às comunidades indígenas
dição consistia em noventa e um homens, dezas- da área. Desde o final dos anos 90, foi encontrada
sete mulheres e nove crianças. A ideia era recolher uma variedade de artefatos arqueológicos no sítio
os quinze homens que lá estavam e estabelecer-se de Roanoke: um anel de ouro de dez quilates com
como uma colónia em Roanoke, mas quando che- um leão gravado, uma pequena peça de ardósia
garam só encontraram um esqueleto. O capitão da que pode ter sido utilizada como pastilha de es-
frota ordenou aos colonos que ficassem. crita, um grande lingote de cobre, uma comprida
A 18 de agosto de 1587, nasceu ali o primeiro barra de ferro... e
inglês em solo americano, Virginia Dare, a neta

WIKI
de John White. As necessidades da colónia esta-
vam a crescer, e White regressou a Inglaterra pa-
ra reabastecimento. Quando zarpou, deixou 117
pessoas e dois bebés em Roanoke.
Em casa, as prioridades eram claras: a guerra
com Espanha era mais importante do que ali-
mentar uma centena de súbditos esquecidos por
Deus. Assim, todos os navios foram requisitados
para enfrentar a temida Armada Espanhola. Na
altura, White apenas conseguiu encontrar al-
guns pequenos navios cujos capitães estavam
mais interessados em atacar galeões espanhóis
na sua viagem do que em chegar a Roanoke. O
tiro saiu-lhes pela culatra, e os saqueadores fo-
ram saqueados, tendo de regressar a Inglaterra
sem nada. Em 1590, a única opção de White era
juntar-se a uma expedição de corsários que o dei-
xaria em Roanoke.
Quando desembarcou, não encontrou nin-
guém. A colónia estava deserta e não havia sinais
de luta. Parecia que tudo tinha sido desmontado
e removido de maneira sistemática. Tudo o que
encontrou foi a palavra croatoan esculpida no
único poste ainda de pé, e as letras cro gravadas
no tronco de uma árvore.
O que aconteceu em Roanoke? Tem havido mui-
tas hipóteses sobre os seus habitantes desapareci-
dos. Talvez tenham sido mortos ou raptados por
nativos, talvez tenham tentado regressar a Ingla-
terra por conta própria e se tenham perdido no
mar, ou talvez, sem provisões, tenham marchado

137
53 Onde fica a
Cidade dos Pilares?
Lendas beduínas contam a história de uma cidade rica enterrada
há milénios nas areias da Arábia.

N
o sul da Península Arábica situa- zeram estas construções com a ideia de serem
-se o deserto de Rub al-Khali. imortais”. Foi-lhes enviado o profeta Hud - que
Cobre uma área maior do que a alguns identificam com uma personagem me-
Península Ibérica e é uma das re- nor no livro do Génesis, Heber - para os avisar
giões mais ricas em petróleo do do mau caminho que estavam a tomar: “Temei
planeta. As dunas ali têm mais de 300 metros a Deus e obedecei-me! Temei aquele que vos
de altura, a temperatura no Verão é superior a forneceu o que sabeis, com rebanhos e filhos
55°C ao meio-dia, e nem os beduínos se atre- varões, com jardins e fontes! Temo por vós o
vem a viajar pelo interior do deserto. O seu no- castigo de um dia terrível! Recusaram-se a obe-
me significa “o território vazio”. Em fevereiro decer, alegando que apenas faziam “o que os
de 2006, uma equipa de cientistas explorou-o antigos estavam acostumados a fazer”. As Mil
sob os auspícios do Serviço Geológico Saudita e e uma Noites - onde o nome de Iram aparece
encontrou diferentes tipos de fósseis e meteo- em várias ocasiões, como em As Aventuras de
ritos. Surpreendentemente, o deserto não é tão Simbad o Marinheiro - revela o nome do seu
vazio como o seu nome sugere: os cientistas en- rei: Shaddad, que ignorou os avisos de Hud. Co-
contraram 31 espécies de plantas e 24 espécies mo resultado, Deus castigou a cidade sepultan-
de aves, bem como aranhas e roedores. do-a debaixo da areia.
O deserto nem sempre foi tão inóspito. An-
tes de 300 a.C., era atravessado por caravanas A REGIÃO ONDE É SUPOSTO OS A’AD TEREM
que comercializavam olíbano ou incenso, uma VIVIDO FOI DESCRITA POR Cláudio Ptolomeu
resina aromática utilizada pelos somalis como no seu livro Geographia e chamada de Ubar, daí
goma de mascar após as refeições. A lenda cris- que a cidade perdida acabou por receber este
tã diz que o incenso trazido ao bebé Jesus pe- nome. Onde a história termina, a lenda come-
los Magos era na realidade olíbano. A tradição ça, e a lenda torna-se cada vez mais fantástica.
diz que nesta rota de incenso ficava a cidade de Neste caso, a cidade ganhou tesouros, riqueza e
Iram ou Ubar, também conhecida como a Cida- conhecimentos avançados ao longo do tempo,
de dos Pilares, cuja existência só é atestada pe- ao ponto de o famoso Lawrence da Arábia lhe ter
las fantásticas histórias que os beduínos contam chamado a Atlântida das Areias.
uns aos outros durante a noite nos oásis. Em 1932, o primeiro ocidental a atravessar este
perigoso deserto árabe, Bertram Thomas, expli-
SUPÕE-SE QUE EXISTIU DESDE 3000 A.C. ATÉ cou no seu livro Arábia Felix como a seis dias do
AO PRIMEIRO SÉCULO DA NOSSA ERA. Refere poço de Ahiaur, uma povoação sazonal no su-
a lenda que a cidade enriqueceu através do co- doeste de Omã, os seus companheiros de expe-
mércio com o Médio Oriente e a Europa. No Al- dição árabes apontaram marcas ténues no chão
corão, diz-se que Iram foi habitado pelos A’ad, e disseram-lhe que era “o caminho para Ubar”.
uma tribo cujas origens remontam aos bisnetos Tudo o que o britânico viu foi um antigo trilho de
de Noé e que habitava o Iémen oriental e Omã camelos sugerindo uma rota de caravana em di-
ocidental. O povo A’ad acabou por se tornar um reção a norte para a região vazia. Os árabes dis-
reino, que existiu desde o 10 a.C. até ao 2 d.C. O seram-lhe que isso conduzia a uma cidade forti-
destino da cidade de Iram foi semelhante ao de ficada, repleta de riquezas e jardins, agora enter-
Sodoma e Gomorra. De acordo com o Alcorão, rada debaixo das areias. Vinte anos mais tarde,
os A’an eram um povo que “construiu em cada outro explorador britânico, Wilfred P. Thesiger,
colina um monumento” e os seus membros “fi- ouviu dos lábios dos seus amigos beduínos a

138
história da “cidade perdida de a’ad debaixo das aos dois pólos e a atravessar a Antártida a pé - o
areias de Jaihman, pouco mais de um dia de via- arqueólogo Juris Zarins - professor na Universi-
gem para o sul”. Desde então, Ubar dormiu o dade Estatal do Missouri - e o advogado George
sono de outras terras lendárias até que, no início Hedges. Viajaram para a província de Dhofar, em
dos anos 80, um grupo de investigadores, ansio- Omã, onde tinham identificado o local da lendá-
sos por resolver o enigma, focou os satélites do ria cidade e, após uma exploração minuciosa da
programa LANDSAT da NASA, concebidos para área, o rasto das antigas caravanas conduziu-os
observar a superfície terrestre em alta resolu- ao poço de Ash Sisar. Ali, sob a areia, encon-
ção, nesta região inóspita do mundo. trava-se o forte turco do século XVI, conhecido
desde as expedições de Bertram Thomas. Mas
NAS FOTOGRAFIAS DO LANDSAT, OS CIEN- por baixo encontraram os restos de um povoado
TISTAS CHARLES ELACHI e Ronald Blom do mais antigo. O forte tinha desaparecido porque o
famoso JPL da NASA em Pasadena, Califórnia, subsolo calcário, escavado pela ação da água, ti-
observaram um caminho de quase 100 metros de nha afundado deixando um grande buraco como
largura, repleto de pegadas, e escondido debaixo testemunha para a posteridade.
da areia. Os técnicos do JPL encontraram dois ti-
pos de pistas: as modernas, porque contornavam ESCAVAÇÕES SUBSEQUENTES TROUXERAM
as dunas, e as mais antigas, porque passavam por À LUZ PAREDES E NOVE TORRES. Os muçul-
baixo delas. Combinadas com fotografias tiradas manos regozijaram-se por a arqueologia ter
de Challenger e imagens dos satélites franceses confirmado a história da destruição da Cidade
de observação terrestre SPOT, foram capazes de dos Pilares, contada no seu sagrado Alcorão.
identificar as rotas das antigas caravanas. Onde No entanto, é difícil imaginar que se tratava de
estas convergiam, pensaram eles, seriam os res- uma esplenderosa cidade embalada nas dimen-
tos de uma cidade. sões de uma fortificação militar. Entretanto, a
Em 1991, com a ajuda do próspero homem de equipa de investigação descobriu mais 20 po-
negócios Armand Hammer, foi lançada a expe- voações, possivelmente locais de descanso para
dição em busca de Ubar. Sua alma mater foi o caravanas, a pouco mais de oito quilómetros de
cineasta documental vencedor de vários pré- distância. O que é certo é que os restos de ce-
mios Nicholas Clapp, que tinha realizado prati- râmica recuperados confirmam que a área foi
camente toda a pesquisa histórica. A ele junta- ocupada durante 5.000 anos e teve o seu mo-
ram-se os técnicos Blom e Elachi, o aventureiro mento de esplendor entre os séculos I e III d.C.
Sir Ranulph Fiennes - a primeira pessoa a chegar Poderia ser a lendária Ubar? e

Graças à tecnologia da NASA, foi


finalmente possível localizar o SHUTTERSTOCK

que se crê ser a antiga Ubar,


nomeada no Alcorão como a
Cidade dos Pilares, em Omã.

139
54 O que foi o
programa Stargate?
Na luta pela hegemonia internacional, vale tudo: mesmo os
projetos mais extravagantes de guerra psíquica.

A
informação é poder. O medo de sempenho dos seus soldados, como o uso de
perder a hegemonia mundial num poderes psíquicos, visualização, aprendiza-
campo potencialmente perigoso gem durante o sono , etc. A comissão encar-
leva ao financiamento de inves- regada de avaliar estas técnicas, foi o Instituto
tigações que podem parecer ter de Investigação do Exército dos EUA (ARI).
sido levadas a cabo de uma forma muito pro-
funda. Assim, em 1984, o Instituto de Investi- O COMITÉ ENCARREGADO DE AVALIAR ES-
gação do Exército dos EUA pediu à Academia TAS TÉCNICAS, COMPOSTO POR CATORZE
Nacional de Ciências (NAS) um estudo de to- peritos, quase todos psicólogos, concluiu
das as técnicas que poderiam aumentar o de- que não encontrava “nenhuma justificação

Há vinte anos que a Agência de


Investigação para a Defesa dos EUA
tem na sua folha de pagamentos
uma série de pessoas com poderes
supostamente paranormais para o
governo utilizar os seus serviços.

140
SHUTTERSTOCK
científica nas investigações relizadas du- as várias agências governamentais utilizassem
rante cento e trinta anos para considerar a os seus serviços. E a terceira era a investigação
existência de fenómenos parapsicológicos”. laboratorial, conduzida primeiro no Stanford
Obviamente, o relatório, publicado em de- Research Institute e depois na Science Appli-
zembro de 1987, não caiu bem nos círculos cations International Corporation (SAIC), na
parapsicológicos. Foi acusado de parciali- Califórnia.
dade porque dois dos seus principais ava- A desclassificação do programa, no início de
liadores, Ray Hyman e James Alcock, eram 1995, permitiu uma análise externa dos seus
conhecidos céticos. Mas na realidade, o que resultados. Devido a alguma controvérsia,
o Instituto de Investigação do Exército fez, onde não ficou claro se era ou não digno de
foi pedir uma segunda opinião, pois já tinha uma análise mais aprofundada, uma comissão
pedido um relatório sobre a investigação em do Senado decidiu transferi-lo de volta para a
parapsicologia a John Palmer, um conhecido CIA. Antes de decidir o seu destino, a CIA con-
parapsicólogo, em 1985. tactou os Institutos Americanos de Investiga-
Tudo o que o que tinha sucedido é pouca ção (AIR) para o avaliar. A AIR contratou uma
coisa, em comparação com o que a viragem estaticista e parapsicóloga da Universidade da
da década iria trazer à luz. Em novembro de Califórnia, Jessica Utts, e o cético Ray Hyman
1995, a Agência de Informações para a Defe- para analisar a investigação da SAIC, enquan-
sa (DIA) revelava a existência de um projeto to que a própria AIR iria rever o Programa de
ultra-secreto com o nome de código Starga- Operações.
te, suspenso e desclassificado durante a pri- A análise da AIR do trabalho dos médiuns
mavera desse ano. Os crentes apaixonados com alvos reais foi devastadora: “A nossa con-
pelo paranormal esfregaram as mãos. Pen- clusão é que neste momento seria prematuro
saram que poderia ser uma prova tangível assumir que temos uma demonstração con-
do interesse dos serviços de inteligência em vincente de fenómenos paranormais”. Além
fenómenos psíquicos, e certamente fornecia disso, “não foi demonstrado que a visualiza-
provas a favor da sua existência. ção remota tenha valor nas operações de in-
teligência” e “não há razão para continuar a
TUDO COMEÇOU NO INÍCIO DA DÉCADA DE financiar a componente operacional deste
1970, QUANDO A CIA financiou um programa programa”.
para descobrir se a chamada visão remota
poderia ter interesse para as suas operações. POR OUTRO LADO, UTTS E HYMAN CON-
Uma experiência neste campo consiste em CORDARAM QUE ALGUMAS DAS experiên-
colocar a pessoa dotada numa sala isolada e cias realizadas produziram resultados posi-
pedir-lhe que se concentre na imagem que tivos para além do que poderia ser atribuído
outra pessoa está a ver noutro lugar, e que a ao simples acaso. Tínhamos finalmente provas
desenhe ou descreva. São então testados para sólidas da existência da perceção extrassen-
ver se deram uma descrição precisa do alvo. sorial? Infelizmente, a análise tinha uma fa-
Esta investigação foi realizada no Instituto lha importante: o juiz que presidia aos êxitos
de Investigação de Stanford, sob a direção de era o investigador principal, não alguém que
dois parapsicólogos bem conhecidos, Harold nada tinha a ver com o programa. Teríamos
Puthoff e Russell Targ. de esperar que juízes independentes fossem
Além disso, outras pessoas dotadas foram utilizados para decidir da importância destas
utilizadas para ver se podiam fornecer infor- investigações.
mações reais e úteis. No final da década de A partir deste ponto, Utts e Hyman discor-
1970, a CIA abandonou o programa e a DIA as- daram. Para Utts, os resultados das experiên-
sumiu o controlo, alargou-o e deu-lhe o nome cias eram prova suficiente da existência de po-
de código Stargate. Ao longo de vinte anos, o deres psíquicos; para Hyman, não eram. Pelo
governo dos EUA gastou mais de 1,6 milhões menos até que a parapsicologia “ofereça uma
de dólares no projeto. Estava dividido em três teoria positiva que nos permita decidir quando
partes. A primeira consistia em monitorizar o a psi está presente e quando está ausente” .
que outros países estavam a fazer no campo da Nunca mais se voltou a tentar, pelo que
guerra psíquica e da espionagem. A segunda, o nunca saberemos até que ponto as conclusões
Programa de Operações, consistia em manter alcançadas foram uma indicação de algo ain-
seis videntes na na lista de ativos, para que da por descobrir. e

141
55 O que diz no disco
de Festos?
Este objeto cretense, datado de há pelo menos 3500 anos,
ostenta sinais que ainda têm de ser decifrados. Não sabemos se
contém uma história, orações, um jogo de tabuleiro, instruções
técnicas ou o silabário de uma língua antiga.

N
o museu de Heraklion, Creta, Parece também seguir uma orientação no
podemos ver um objeto único: sentido dos ponteiros do relógio, em espiral
um disco de barro cozido de 15 para o exterior em direção ao centro. É um dos
centímetros com inscrições em objetos que mais tem atraído a atenção de ar-
ambos os lados e datado do fi- queólogos amadores e caçadores de mistérios, e
nal da Idade do Bronze, por volta do segundo não falta quem afirme tê-lo decifrado.
milénio a.C. Foi descoberto em Creta em 1908, De facto, o que quer que pensemos que o disco
no palácio minóico da cidade que tem o seu no- possa dizer, já foi dito: orações, uma história de

CREITO

Impresso em argila branca, com 45


carimbos em relevo por volta de 1750
a.C., o disco Festos é considerado por
muitos como o mais antigo documento
impresso da história.

me, pelo italiano Luigi Pernier. Inclui 45 sinais aventuras, um saltério ou livro de salmos, um
- muitos deles facilmente identificáveis, como apelo às armas, um jogo de tabuleiro? Mesmo
uma cabeça tatuada, um capacete ou um peixe - um teorema geométrico. Isto sem contar com
que supostamente compõem 61 palavras de um as ideias mais fantasiosas envolvendo antigas
lado e 30 do outro. civilizações perdidas e extraterrestres.

142
Ruínas da cidade de Festos em Creta, onde o disco
com escrita antiga foi encontrado.

SHUTTERSTOCK

A maioria das interpretações assume que se este alfabeto sucedeu o Linear B, que os micéni-
trata de um silabário com símbolos logográficos cos - gregos continentais - utilizaram como uma
intercalados - um logograma é um sinal que re- forma inicial do grego.
presenta sozinho um significado de uma língua, A relação entre Linear A e Linear B é estreita:
geralmente o significado de uma palavra. Esta é utilizam o mesmo sistema numérico, e muitos
uma característica dos silabários que conhece- dos sinais de A têm os seus equivalentes em B,
mos do antigo Próximo Oriente, como o Linear embora haja sinais em B que não têm a sua cor-
B - o sistema utilizado para escrever grego micé- respondência em A.
nico na Grécia continental -, o cuneiforme ou o
hieroglífico. UM DOS PROBLEMAS NA DECIFRAÇÃO DO LI-
Os últimos a afirmar tê-lo conseguido deci- NEAR A É QUE não sobreviveram muitos exem-
frar foram, em 2018, Gareth Owens, linguista plos. A maior coleção de pastilhas com este ti-
do Instituto Educativo Tecnológico de Creta, em po de escrita vem do palácio minóico de Hagia
combinação com John Coleman, Professor de Fo- Triada, muito próximo de Festos no sul de Creta.
nética em Oxford. Segundo Owens, com a ajuda Foram também encontradas tabletes espalhadas
da linguística comparada, determinou que es- por toda a ilha, pelo que podemos assumir que
tamos perante um texto “com os valores vocais foram utilizadas em Creta e para fins comer-
do linear B”. Para ele, “o disco Festos é o melhor ciais. Foram encontrados registos numéricos de
exemplo dos hieróglifos cretenses” e afirma que homens e mulheres, animais e produtos. Como
cerca de oitenta por cento do seu conteúdo pode também foram descobertas inscrições na Grécia
ser lido utilizando o grego micénico, a fase mais continental, os historiadores assumem que o Li-
antiga da língua grega. near A foi utilizado pela civilização minóica tanto
na ilha de Creta como nas suas possessões ultra-
É CLARO QUE, COMO ELE CORRETAMENTE AS- marinas. Era escrito da esquerda para a direita,
SINALA, UMA COISA É LER e outra é compreen- embora alguns sinais apareçam por vezes inver-
der o que diz. E acrescentou: “A escrita no disco do tidos, como se refletidos num espelho, indicando
Festos é também linear A minóica.”. Esta forma de que durante algum tempo a direção direita-es-
escrita foi utilizada pelos cretenses entre 1800 a.C. querda pode também ter sido utilizada.
e 1450 a.C. e pertence a um grupo que evoluiu in- O tempo dirá se Owens tem razão e se, no fi-
dependentemente dos sistemas egípcio e mesopo- nal, a sua investigação se revela útil para deci-
tâmico. O mais interessante é que, apesar de todos frar uma das línguas da antiguidade que ainda
os esforços, ainda não foi totalmente decifrado. E nos escapa. e

143
56 Porque foram erigidos os
alinhamentos de Carnac?
Este complexo megalítico em França é um dos mais famosos da Europa e
uma fonte de lendas e desafios para os historiadores da pré-história.

Os alinhamentos de menires
poderiam marcar o caminho para um
santuário ou servir como uma
espécie de calendário astronómico.
Não sabemos ao certo.

SHUTTERSTOCK

S
ituado no sul do departamento de tais como uma enorme mesa de pedra - daí
Morbihan, na Bretanha, em França, o seu nome bretão, dólmen. Claro que há
entre a comuna de Carnac - nome de muitas lendas sobre estas construções e não
origem celta que designa um local on- menos hipóteses que tentam explicar a sua
de existem montes de pedra - e a de origem.
La Trinité-sur-Mer, estendem-se por mais de
quatro quilómetros, sete alinhamentos de pe- ALGUMAS LENDAS SURGIRAM NOS PRIMEI-
dras imponentes, irregulares e silenciosas. ROS SÉCULOS DO CRISTIANISMO em França,
Os megalitos de Carnac são monumentos como a de Saint-Cornély, que conta a desgraça
arquitetónicos construídos quer com gran- dos soldados romanos que acabaram petrifica-
des pedras verticais cravadas no solo, cha- dos e transformados em menires quando per-
madas menires - cuja disposição em linha se seguiam o santo. Mais tarde, surgem as lendas
chama alinhamentos, e cromeleques, quan- relacionadas com o ciclo arturiano. De facto,
do se dispõem em círculos - quer com pedras diz-se tradicionalmente que a razão pela qual
gigantescas umas verticais e outras horizon- as pedras são colocadas em linha reta é porque

144
eram uma legião romana que Merlin transfor-
mou em pedra.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os
nazis quiseram investigar o fenómeno. No
outono de 1940, sob a supervisão de Alfred
Rosenberg - o principal ideólogo e líder po-
lítico dos territórios ocupados pelos alemães
na Europa Oriental - foram efetuados es-
tudos topográficos da área e escavações em
Kerlescan, que acabaram por ser interrom-
pidas pela guerra.
Alinhamento de Kermario, no
O complexo de Carnac é composto por sítio arqueológico de Carnac.
vários alinhamentos e cromeleques, de oes-
SHUTTERSTOCK
te para leste, sendo os principais os de Le
Ménec. É o maior complexo, com mais de de animais, o uso de ferramentas, as artes
mil menires alinhados em onze filas, e dois do fogo e os ritos religiosos. Embora alguns,
cromeleques em cada extremidade. Outros como o arqueólogo Neil Oliver no seu docu-
encontram-se em Kermario, Kerlescan e le mentário da BBC A History of Ancient Bri-
Petit Ménec. Mas nem todos os menires de tain, sugiram que os alinhamentos podem
Carnac fazem parte de um alinhamento. O ter sido feitos mais cedo, por caçadores-re-
Gigante de Manio, um menir de 6,5 metros coletores da era Mesolítica. Em qualquer ca-
de altura em forma de dedo com cinco ser- so, embora se saiba que os menires são feitos
pentes gravadas, está isolado numa clareira de granito local, não temos hoje uma ideia
e, por baixo dele foram encontrados enter- muito clara do que levou estas pessoas a eri-
rados, cinco machados polidos. gir tais complexos líticos.
O mistério não é, obviamente, como fo-
ram erguidas, mas porque foram erguidas. HÁ MUITAS PROPOSTAS QUE TENTAM RE-
Em 1750, o Conde de Caylus, um dos pais da SOLVER O MISTÉRIO. Poderiam ter sido
arqueologia em França, estabeleceu que os locais de culto com uma função sagrada e
megalitos datavam de antes do tempo dos funerária ou santuários onde os peregri-
gauleses e romanos. Alguns anos mais tar- nos iriam recarregar as suas baterias es-
de, o grande general da Revolução Francesa, pirituais em certas alturas do ano. Os cro-
François de Pommereul, formulou a hipóte- meleques podem ter sido dedicados ao sol,
se de serem de origem celta. sendo os alinhamentos caminhos sagrados
para aceder a eles. Como eram orientados
MAS FOI EM 1860 QUE UM ANTIQUÁRIO de acordo com a posição do sol durante os
ESCOCÊS, JAMES MILN, efetuou uma das solstícios de Inverno e Verão, pensa-se que
primeiras escavações arqueológicas na área. podem ter estado relacionados com o estudo
Nos estratos que rodeiam os edifícios, en- de fenómenos astronómicos.
controu restos de carvão, fragmentos de Foi também levantada a hipótese de serem
sílex esculpido... Peças que evidentemen- calendários para marcar os ciclos agrícolas,
te pertenceram a uma civilização anterior essenciais para saber quando semear ou o
às civilizações romana ou celta. De facto, a tempo de transumância dos rebanhos. As
datação de alguns destes restos por termo- medições teriam sido baseadas na observa-
luminescência - um método utilizado em ção dos movimentos do sol em Kerlescan e
arqueologia para datar peças que, como a Kermario e da lua em Le Ménec. É também
cerâmica, foram sujeitas a aquecimento - possível que os menires tivessem objetivos
colocou a sua construção no período Neolí- diferentes: marcar os limites dos territórios,
tico, cerca de 4000 a.C., estendendo-se até onde a sua altura simbolizaria o poder da sua
2000-1500 a.C., ou seja, até ao início da Ida- comunidade, ou simplesmente estelas co-
de do Bronze. memorativas em homenagem a uma pessoa
O período Neolítico - que na Europa durou falecida... Muitas são as hipóteses, mas ne-
de 6000 a 2000 a.C. - assistiu à sedentariza- nhuma a escolhida. Claro, talvez devamos a
ção de numerosos grupos humanos que co- sua origem à Ordenalfabetix, o vendedor de
meçaram a aprender a agricultura, a criação peixe da aldeia de Asterix... e

145
146
A
história é, por vezes, tremendamente injusta. Todos já ouvimos falar
dos grandes feitos de poderosos reis e valentes guerreiros, mas nada
dos primeiros engenheiros, que eram irrigadores, arquitetos e enge-
nheiros militares. Aquiles e Hector ficaram na história, mas não o génio
que, na altura do cerco de Tróia, inventou o alfinete de segurança. To-
dos já ouvimos falar de Júlio César, mas quem conhece Sergius Orata, inventor
do aquecimento central, que influenciou a nossa vida quotidiana mais do que
César alguma vez influenciou?
O problema com a tecnologia é que pensamos sempre que os antigos eram
mais tontos do que nós, e por isso ficamos surpreendidos por eles terem con-
seguido coisas que nos parecem impossíveis.
As pirâmides são um bom exemplo disso. Apareceram em praticamente to-
das as culturas, mas isso não significa que houvesse um grupo de arquitetos
itinerantes a viajar pelos cinco continentes, ou que os amáveis extraterrestres
os ensinaram a fazê-los, como afirma a hipótese dos antigos astronautas. Con-
frontado com o mesmo problema, o engenho humano resolve-o de forma se-
melhante. A escolha da forma da pirâmide para grandes construções não foi
aleatória: a pirâmide é a estrutura mais estável. Se não, pense por um momento:
que forma assumem os montes de terra ou os edifícios quando são demolidos?
Os olmecas - uma civilização muito misteriosa em si mesma porque não
sabemos muito sobre ela - construíram uma em La Venta, uma ilha de 230 000
quilómetros quadrados num pântano no rio Tomala, no estado de Veracruz
(México). É a única construção conhecida desta civilização. Os arqueólogos
pensavam que era uma das pirâmides clássicas do México, mas descobriram
que o topo da pirâmide era cónico. Uma forma curiosa que faz lembrar um
vulcão. Isto levou alguns investigadores a acreditar que os olmecas estavam de
facto a tentar construir um vulcão. Nas montanhas Tuxtla, o lugar que poderia
ser o berço da cultura olmeca, existem vulcões e, quando migraram para La
Venta, poderiam ter querido levar “algo de casa” com eles. Do resto dos seus
edifícios, não restam vestígios, uma vez que foram construídos com madeira
e folhas de palmeira.
Face a coisas como esta, quando não conseguimos encontrar uma explicação
de como o poderiam ter feito, chamamos-lhe misterioso porque, para cons-
truir algo assim, era necessário o uso de tecnologia muito avançada. No entan-
to, a questão não é realmente essa, mas como podemos nós ser tão estúpidos a
ponto de não descobrir como o fizeram.

147
Os diplomatas na embaixada dos EUA em Havana
foram os primeiros a sofrer os sintomas.

SHUTTERSTOCK
57 O que eram os “ruídos
repugnantes” de Havana?
Em 2016 e 2017, os diplomatas norte-americanos e canadianos em
serviço em Cuba sofreram problemas de saúde relacionados com sons
estranhos. O que estava por detrás do fenómeno sónico?

E
m agosto de 2017, a notícia era di- familiares e hóspedes nos quartos vizinhos di-
vulgada. O pessoal diplomático dos ziam não ouvir nada.
EUA e do Canadá em Havana havia
experimentado problemas de saú- O PIOR DE TUDO É QUE ALGUMAS PESSOAS
de invulgares e inexplicáveis que AFETADAS SOFRERAM EFEITOS adversos
remontavam ao final de 2016. O número de na saúde, como o caso de um diplomata não
cidadãos norte-americanos afetados foi de identificado dos EUA que, segundo consta,
vinte e seis. necessita agora de um aparelho auditivo. As
Tudo começou de repente, com ruídos estri- pessoas descreveram sintomas como perda de
dentes que pareciam vir de um local específico. audição, perda de memória e náuseas. O De-
Alguns sentiram-no como uma pressão ou vi- partamento de Estado alegou que tudo tinha
bração, outros como uma sensação comparável sido causado por um ataque ou exposição a um
à de conduzir um carro com a janela meio aber- dispositivo ainda desconhecido e, embora não
ta. Descritos por um dos afetados como “sons culpando o governo cubano por isso, assegu-
mecânicos”, duravam entre 20 segundos e 30 rou que iria encontrar o culpado.
minutos, e ocorriam sempre enquanto os di- Em agosto de 2017, o governo dos EUA ex-
plomatas estavam em casa ou nos seus quartos pulsou dois diplomatas cubanos como res-
de hotel. O curioso é que as pessoas próximas, posta, e em setembro o Departamento de Es-

148
tado comunicou que estava a retirar pessoal algo semelhante a uma concussão, mas não
não essencial da sua embaixada em Havana. sabia qual era a causa.
Também avisou os cidadãos para não viajarem O governo cubano acusou obviamente o
para Cuba. Em outubro, Donald Trump disse: americano de ser um mentiroso e ofereceu-se
“É um ataque muito invulgar, mas penso que para cooperar com uma investigação que en-
Cuba é responsável”. volveu dois mil cientistas e polícias que entre-
No entanto, a situação não era tão clara vistaram trezentos vizinhos dos diplomatas
como o governo dos EUA dava a entender. envolvidos, examinaram dois hotéis e fizeram
Em janeiro de 2018, a Associated Press tor- verificações minuciosas ao pessoal não diplo-
nou público um relatório do FBI no qual di- mático que poderia ter sido exposto. Testaram
zia não ter encontrado provas de um ataque amostras de ar à procura de agentes químicos,
sónico. Em Novembro do mesmo ano, a re- examinaram a possibilidade de que as ondas
vista The New Yorker revelou que a investi- eletromagnéticas fossem as culpadas. Até in-
gação do FBI tinha sido obstruída pela CIA vestigaram se poderia ter sido insetos, mas
e pelo Departamento de Estado pelas razões não encontraram nada que pudesse explicar
que são sempre invocadas nestes casos: se- os sintomas. Desde então, o governo canadia-
gurança nacional. Ao mesmo tempo, nesse no tem mantido silêncio sobre o que alegada-
mesmo mês, o Departamento de Estado con- mente se passa em Cuba e está a aconselhar
vocou um conselho de revisão de responsa- os seus funcionários a manter silêncio sobre
bilidade, um mecanismo interno que fun- todo o assunto.
ciona para analisar incidentes de segurança
envolvendo pessoal diplomático. OS RELATÓRIOS MÉDICOS, ALGUNS PUBLI-
CADOS EM REVISTAS CIENTÍFICAS, dividi-
A 2 DE MARÇO DE 2018, O DEPARTAMENTO ram os peritos. Para alguns, era evidente que
DE ESTADO CONFIRMOU que continuaria a algo se estava a passar, enquanto que outros
manter a sua embaixada ao nível do pessoal consideravam os estudos como sendo de má
mínimo necessário para desempenhar “fun- qualidade e desleixados. Alguns descreve-
ções diplomáticas e consulares básicas”. ram-no como um caso de histeria em massa.
Depois chegaram outras notícias do Cana- De acordo com outros peritos, o caso é algo
dá: uma série de testes realizados em Pitts- comum nas consultas de neurologia. E al-
burgh sobre um número não especificado guns disseram que poderia ter sido causado
de diplomatas canadianos mostrou provas por algum tipo de ultra-som ou microon-
de danos cerebrais semelhantes às encon- das, uma vez que as pessoas afetadas tinham
tradas nos seus homólogos americanos. Na danos cerebrais reais. O governo canadiano
primavera de 2018, a Global Affairs Cana- propôs outra explicação: a exposição a níveis
da - o departamento que trata das relações elevados de um pesticida contendo organo-
consulares e diplomáticas - retirou todo o fosforado, que é normalmente utilizado em
seu pessoal, juntamente com as famílias, de Cuba para manter à distância mosquitos por-
Cuba, e informou que vários dos afetados tadores de doenças, como o Zika. De facto,
em 2017 ainda não tinham podido regressar em setembro de 2020, um artigo na revista
ao trabalho. Em 2019, o governo canadiano JAMA Neurology descreveu o caso de um tu-
anunciou que também estava a reduzir o seu rista de 69 anos que, ao regressar de férias em
pessoal da embaixada em Havana, depois de Cuba, começou a apresentar sintomas seme-
um 14º diplomata no final de dezembro de lhantes aos descritos pelos diplomatas e te-
2018 ter mostrado sintomas do que come- ve de ser admitido nas urgências assim que
çou a ser chamado de síndrome de Havana. o avião aterrou. A conclusão dos médicos foi
E, em fevereiro de 2019, vários diplomatas envenenamento por organofosforados.
canadianos processaram o seu país por ne- E ao mesmo tempo que esta batalha estava
gligência. Durante o julgamento, o governo a ser travada nas revistas médicas, em 2020,
contra-argumentou que os seus diplomatas outros diplomatas dos EUA começaram a
tinham exagerado os sintomas e apresentou aparecer nas embaixadas chinesas e russas,
um estudo conduzido por uma consultoria afirmando ter os mesmos sintomas. Nem o
ambiental independente que não encontrou governo canadiano nem o governo dos EUA
fenómenos invulgares na embaixada. Reco- têm qualquer ideia do que realmente aconte-
nheceu que catorze dos queixosos sofreram ceu em Havana entre 2016 e 2017. e

149
58 Será que Orffyreus construiu
um móvel perpétuo?
No início do século XVIII, o filho de camponeses da Europa
Central gabava-se de ter criado uma máquina capaz de trabalhar
sem pausa. No entanto, ele nunca revelou o seu mecanismo.

A
o longo do século XVII e especial- modelo de uma roda que, supostamente, uma vez
mente no início do século XVIII, os posta em movimento, continuaria a girar indefi-
obscuros laboratórios de cientistas nidamente. Mas, ao contrário dos outros inven-
trabalhavam febrilmente em busca tores, ninguém podia saber qual era o mecanismo
de máquinas que “uma vez coloca- que a animava. Pouco tempo depois, sem razão
das em movimento, executariam os seus movi- aparente, Orffyreus destruiu-o.
mentos eternamente e, além disso, sem a aplica-
ção de qualquer força do homem, cavalo, vento, EM 1715,MUDOU-SE PARA MERSEBURG, NA
rio ou fonte, e ao mesmo tempo realizavam várias ALEMANHA ORIENTAL, ONDE CRIOU um segun-
obras para o bem-estar e florescimento do Esta- do móvel maior, que apresentou a uma comissão
do”. Era esta a redação de uma patente inglesa de especialistas. Apesar da insistência dos mem-
de 1635. Referiam-se ao móvel perpétuo, o mo- bros da comissão - à qual devemos acrescentar o
tor perfeito capaz de revolucionar a tecnologia prémio de dinheiro extra - Orffyreus recusou-se
e a vida das pessoas. Os escritórios de patentes de novo categoricamente a permitir-lhes exami-
de toda a Europa foram inundados de propostas, nar o seu interior. A comissão certificou que o
razoáveis ou bizarras, para diferentes máquinas móvel “gira a uma velocidade de cinquenta rota-
eternas, e em salões aristocráticos o seu funcio- ções por minuto e levanta uma carga de 40 libras
namento era veementemente discutido. [18 kg] a uma altura de 5 pés [1,5 m]”. Orffyreus
Foi nesta altura que Johann Ernst Elias Bessler, publicou um panfleto intitulado Descrição Deta-
filho de um camponês nascido em 1680 numa pe- lhada da Afortunada Invenção do Móvel Perpé-
quena aldeia nas florestas da fronteira da Boémia, tuo juntamente com a sua representação exata.
entrou na história. Bessler mudou o seu nome A partir dos seus diagramas é impossível discernir
para um que não traísse as suas raízes campone- como ele conseguia fazer girar a roda.
sas e tornou-se Orffyreus. Não sabemos como ou A sua estratégia de não informar nada foi um
porque se interessou por máquinas de movimen- sucesso. Ao garantir que ninguém conseguia
to perpétuo. Em 1712, construiu o seu primeiro compreender o seu mecanismo, chamou a aten-
ção para ele e aumentou o interesse na
sua “invenção afortunada”, como ele
a chamava. É claro que tanto mistério
também era suspeito. Christiaan Wag-
ner, advogado e matemático de Leip-
zig, acreditava que escondido da vista
do público estava um mecanismo que
era posto em marcha a partir do exte-
rior. O matemático e astrónomo An-
dreas Gärtner era da mesma opinião:
devia haver uma pessoa escondida a
puxar uma corda. Estava tão conven-
cido da sua conjetura que apostou
1000 táleres como o desmascararia.
Por sua vez, o “último génio uni-
versal”, o grande Gottfried Leibniz,
AGE / SPL

estava convencido de que não era

150
possível construir um móvel perpétuo, mas fi- muito misterioso. Em comparação com outros
cou tão impressionado com as histórias que ou- diagramas de motores perpétuos, onde a física
viu sobre a máquina de Orffyreus que foi visitá- subjacente é imediatamente clara, não há nada
-lo em setembro de 1714. A visita deve ter tido no diagrama de Orffyreus que dê a mínima pista
impacto no grande matemático porque, numa sobre como ou porque se move. O texto também
carta que escreveu a Areskine, médico pessoal não fornece quaisquer argumentos ou ideias pa-
do czar Pedro I o Grande, disse que Orffyreus ra resolver o enigma.
era seu amigo, que tinha realizado uma série de O interesse na sua máquina cresceu. Pedro I
experiências cuidadosas com a máquina e acre- da Rússia encarregou o seu bibliotecário Schu-
ditava que seria muito útil estudá-la durante macher de aproveitar a sua viagem à Europa nu-
várias semanas. ma missão para convidar cientistas de renome
para a Rússia, contratar engenheiros e comprar
EM 1716, O LANDGRAVE DE HESSE-KASSEL, livros, falar com Orffyreus. Quando chegou a
CHARLES I, UM HOMEM da ciência, convidou-o Weisenstein, não pôde ver a sua invenção em
para a sua casa, o Palácio Wissenstein. Ficou tão funcionamento. Orffyreus tinha-a destruído
impressionado com a personalidade de Orffyreus porque acreditava que Gravesande queria so-
que o nomeou como seu conselheiro. Confor- negar-lhe o seu segredo. Schumacher e Orf-
tavelmente instalado, o nosso inventor iniciou fyreus começaram a negociar. Após longas
a construção do seu terceiro móvel perpétuo. discussões, Orffyreus fez a sua proposta final:
No espaço de um ano, a máquina estava pronta. “Ponha 100.000 rublos de um lado, e eu ponho
A 12 de novembro de 1717, apresentou-o a uma a máquina do outro”. Schumacher teria prova-
comissão que incluía o físico Willem Jacob’s Gra- velmente aceite, não fosse o facto de ter pedido
vesande e o arquiteto Joseph Emanuel Fischer a Christian Wolff, o filósofo mais eminente da
von Erlach. Como de costume, ninguém estava Alemanha depois de Leibniz e antes de Kant, a
autorizado a inspecionar o mecanismo interno, sua opinião. Wolff escreveu um relatório muito
que era deixado em rotação dentro de uma sala detalhado expressando todas as suas reservas.
com uma porta selada. Após duas semanas, os A partir daí, o próprio Orffyreus tentou, atra-
selos foram levantados e a roda ainda estava a ro- vés de intermediários, vender a sua invenção
dar à mesma velocidade que no início. A sala foi ao Czar. Pedro I decidiu que, na sua próxima
novamente selada durante mais quarenta dias, viagem, prevista para 1725, se encontraria com
mais sessenta dias e a roda nunca parava de girar. o saxão. Não aconteceu; o czar morreu em ja-
A comissão não foi capaz de encontrar “nada fora neiro desse ano.
da roda que contribua para o seu movimento”.
Em 1721, Gravesande escreveu a Isaac Newton EM NOVEMBRO DE 1727, A BOMBA CAIU. A SUA
elogiando a máquina portentosa, embora reco- CRIADA, ANNA ROSINA MAUERSBERGER, tes-
mendasse um estudo mais aprofundado. Eles temunhou sob juramento que a roda era acio-
não tinham descoberto a fraude. Um ano mais nada por uma transmissão oculta, ligada à sala
tarde, o matemático Johann Bernoulli escreveu a contígua - os aposentos de Orffyreus - e ope-
Gravesande para lhe dizer que estavam possivel- rada por Orffyreus, a sua mulher, ela própria
mente perante uma mobilidade perpétua mista, e o seu irmão. Assim tão simples? Como pôde
onde a ação da gravidade era combinada com al- esconder tal mecanismo dos olhos dos cien-
gum “princípio ativo”. A comunidade científica tistas que estavam determinados a desvendar
estava perplexa: terá este filho de agricultor sem a fraude? Nunca o saberemos. Gravesande não
instrução conseguido o impossível? acreditou nesta confissão.
Como corolário da sua obra, Orffyreus escre- A estrela de Orffyreus apagou-se. Preso em
veu um livro de duzentas páginas intitulado O 1733 - não sabemos de que acusações - escreveu
famoso móvel perpétuo de Orffyreus, no qual com a sua própria letra a 1 de maio: “Queimei
a primeira parte é dedicada ao seu motor. A sua e enterrei todos os papéis que provam a possi-
descrição é breve e incompreensível, tal como o bilidade do motivo perpétuo”. Foi libertado em
desenho que a representa. Nele vemos uma ro- 1738 e morreu sete anos mais tarde, levando o
da com um balde enrolado à volta do eixo por seu segredo para o túmulo. E embora hoje nin-
alguma razão obscura, um tubo, por cuja parte guém duvide que a máquina de Orffyreus era
superior sai água para uma bacia... Não há for- uma fraude, ainda é surpreendente como ele foi
ma de descobrir como funciona ou para que ser- capaz de enganar as mentes científicas mais bri-
vem cada um dos elementos ilustrados. Tudo é lhantes da época.e

151
Desde os anos 70, os
exobiólogos têm vindo a
explorar o firmamento com
os seus radiotelescópios em
busca de uma pista de E.T.
À direita, o sinal Wow!

59 De onde veio o
sinal Wow!
Em 1977, um radiotelescópio captou um sinal de rádio que preenchia
todas as características que os cientistas pensavam que deveria ter
uma emissão proveniente de uma civilização extraterrestre.

A
15 de agosto de 1977, o radiote- fosse o facto de, na altura, o Big Ear estar
lescópio Big Ear da Universida- a dedicar parte do seu tempo de observação
de de Ohio (EUA) recebeu um ao programa SETI (search for extra terres-
sinal muito intenso e de banda trial intelligence). O que é realmente sur-
estreita. Durou os 72 segundos preendente é que este sinal cabe como uma
que o radiotelescópio teve para a observar luva no que os cientistas do SETI esperavam
e nunca mais foi detetado. Este incidente encontrar se detetassem uma emissão de
peculiar teria passado despercebido se não rádio de uma civilização extraterrestre. O

152
radioastrónomo responsável pela observa-
ção, Jerry R. Ehman, ficou tão surpreendido
ao descobrir que no registo impresso, ro-
deou o código alfanumérico que o descreve,
6EQUJ5, e escreveu na margem Wow! Desde
então tem sido conhecido como Wow!!
6EQUJ5 preenchia todos os critérios para
ser de origem artificial: era um sinal forte -
trinta vezes maior do que o fundo intereste-
lar - a largura de banda era inferior a 10 kHz
- como seria de esperar de um sinal inteli-
gente para não ser confundido com outros
de origem natural - e a frequência de emissão
era muito próxima da linha de 21 centímetros ARQUIVO MUY

(1420 Mhz) do hidrogénio, que os astróno-


mos do SETI consideram como a frequência ke, pensando em voz alta. Contudo, análises
mágica. Porque é que esta frequência era tão posteriores determinaram que a sua origem
importante? tinha sido causada por um avião que passava
por cima a grande altitude.
DEVIDO À NOSSA FRACA CAPACIDADE DE Os astrónomos da Universidade de Ohio
PROCESSAR informação rapidamente, dois puseram-se a trabalhar para verificar que
físicos, Philip Morrison (1915-2005) e Giu- não lhes tinha acontecido o mesmo que a
seppe Cocconi (1914-2008), lançaram as Drake. E, aparentemente, não o tinha sido. O
bases do programa de busca de inteligên- sinal 6EQUJ5 veio de algures na constelação
cias extraterrestres em 1959. Num artigo na de Sagitário, concretamente, perto de um
Nature intitulado Searching for Interstellar pequeno aglomerado de estrelas conhecido
Communications, os dois propuseram que a como Chii Sagittarii .
melhor forma de encontrar outras civiliza- Visto em conjunto, o sinal Wow! tem todas
ções era através da estratégia do que chama- as hipóteses de ser uma emissão extraterres-
vam frequências mágicas. tre. O problema é que nunca mais se ouviu
SHUTTERSTOCK

Em essência, é uma variante de “Eu sei que falar dele. Tanto o Big Ear como outros pro-
tu sabes que eu sei”. Ou seja, se os extrater- gramas SETI ao longo dos anos têm procura-
restres tiverem uma ciência semelhante à do em vão detetar algo parecido novamente.
nossa, terão radiotelescópios com os quais Se, no final, se verificar que não provém de
estudarão o universo - como nós - e saberão vida inteligente fora da Terra, o que é que
que a melhor maneira de o fazer é sintoni- então o causou?
zando a emissão do hidrogénio neutro em
1420 MHz. Assim, se quiserem enviar-nos ALGUNS PROPUSERAM QUE ERA UM EFEI-
mensagens, utilizarão essa frequência, por- TO DE CINTILAÇÃO interestelar, enquan-
que saberão que estamos a ouvir nesse com- to outros dizem que foi um reflexo de uma
primento de onda. emissão terrestre num pedaço de lixo espa-
Curiosamente, sem ter qualquer ideia do cial. Mais recentemente, em 2017, Antonio
trabalho destes dois físicos, um jovem ra- Paris, professor associado de astronomia no
dioastrónomo chamado Frank Drake tinha St. Petersburg College na Florida, sugeriu
chegado à mesma conclusão. Contratado que o que foi detetado foi a nuvem de hi-
para operar os radiotelescópios do recen- drogénio que rodeava dois cometas, 266P/
temente fundado Observatório Nacional de Christensen e 335P/Gibbs - que se encontra-
Radioastronomia (NRAO), Drake iniciou o vam na mesma região do céu. Mas esta ideia
seu Projeto Ozma a 8 de abril de 1960. Con- foi descartada, porque o radiotelescópio não
sistia em apontar o prato de 26 metros do ra- estava a apontar na direção certa onde o par
diotelescópio Tatel a duas estrelas próximas de cometas estava na altura.
e semelhantes ao nosso sol, Tau Ceti e Epsi- No final, talvez não seja loucura acreditar
lon Eridani. Alguns dias após iniciar a escu- que, durante 72 segundos, recebemos uma
ta, foi detetado um sinal que parecia ser ex- verdadeira emissão de rádio de uma civiliza-
traterrestre. “É assim tão fácil?” disse Dra- ção extraterrestre. e

153
60 O que é a máquina
de Anticítera?
No início do século XX, encontrou-se entre os restos de um
naufrágio romano de há 2200 anos, uma máquina incrivelmente
moderna capaz de medir os movimentos do sol e da lua.
O primeiro computador analógico da
história foi construido na Grécia para
uso astronómico. Não temos registo
de qualquer mecanismo semelhante
datado daquela época.

AGE / SPL

154
A
ilha de Anticítera é um dos locais zodíaco e prever os eclipses. Pode mesmo ser
mais paradisíacos do Mediterrâneo utilizado para modelar a órbita da lua, um mo-
Oriental. Localizada a sul do Pelo- vimento estudado no século II a.C. pelo astró-
poneso e com pouco menos de 20 nomo e pai do primeiro catálogo estelar Hipar-
km2, é atualmente o lar de cerca de co de Rodes, razão pela qual se especula que ele
quarenta pessoas. Temendo o despovoamento, possa ter estado envolvido na sua construção.
em 2019, a Grécia estava a dar uma casa e um Ele também previu a data exata em que os jo-
terreno, mais um salário de 500 euros durante gos Pan-Helénicos, olímpicos, píticos, ístmicos
três meses, a qualquer pessoa que se quisesse e nemeus seriam realizados.
mudar para lá. Mas o que torna esta pequena E aqui vem a parte misteriosa. Estamos peran-
ilha grega famosa é a descoberta feita por acaso te um mecanismo único, sem relação com os
por caçadores de esponjas em abril de 1900. Se restos arqueológicos que temos dessa época. O
não fosse uma tempestade severa que os obri- nível de miniaturização e complexidade é no-
gou a refugiar-se nesta ilha, nunca teríamos tável e apenas comparável aos relógios astro-
sabido da existência do objeto mais intrigante nómicos que foram construídos na Europa do
e complicado do mundo antigo. século XIV - embora como preditor não fosse
Após o mau tempo passar, os caçadores de es- particularmente preciso -. É evidente que tal
ponjas mergulharam nas águas perto da ilha pa- dispositivo - um autêntico oopart - não surge
ra ver se tinham alguma sorte. Não descobriram do nada: deve haver antecedentes algures que
esponjas, mas os restos de uma galé romana que não tenhamos encontrado .
tinha sido destruída noutra tempestade há 2200
anos atrás. Estátuas de bronze e mármore, uma HÁ REFERÊNCIAS À EXISTÊNCIA DE DISPO-
lira de bronze, várias peças de vidro... foram re- SITIVOS SEMELHANTES, por exemplo, na Re-
cuperadas. Foi um bom achado e ninguém pres- pública de Marcus Tullius Cicero, um diálogo
tou atenção a um pedaço de bronze que estava filosófico do século I a.C. onde ele menciona
muito corroído pelo sal do mar. duas máquinas construídas por Arquimedes e
A 17 de maio de 1902, o arqueólogo helénico que poderiam ter sido algum tipo de mecanis-
Valerios Stais inspecionava os restos recupera- mo destinado a prever os movimentos do Sol,
dos quando algo lhe chamou a atenção nessa da Lua e dos cinco planetas conhecidos na al-
peça: parecia uma roda dentada. Ao examinar tura. Cícero também menciona outro disposi-
mais de perto, descobriu que continha inscri- tivo deste tipo que tinha sido construído pelo
ções legíveis em grego; um objeto que viria a seu amigo Possidónio, “... cada uma de cujas
ser conhecido como o mecanismo de Anticíte- revoluções tem o mesmo movimento que o Sol,
ra tinha acabado de vir à luz. Stais sugeriu que a Lua e cinco estrelas errantes [planetas] dia e
poderia ser uma espécie de relógio astronómi- noite nos céus”. Mas não encontrámos nada
co, mas os seus colegas não acreditaram nele. remotamente parecido com o mecanismo de
Era um instrumento demasiado complexo e Anticítera em qualquer escavação.
avançado para ser contemporâneo dos outros Onde foi construído permanece também
restos. O tempo dar-lhe-ia razão. um mistério, embora exista a suspeita de que
possa ter sido construído em Corinto. A razão?
O MECANISMO VIAJAVA DENTRO DE UMA Porque embora os Jogos Olímpicos fossem os
CAIXA DE MADEIRA com 33 cm de altura por mais prestigiados dos Jogos Pan-Helénicos, os
18 cm de largura e 8 cm de profundidade. Até Jogos Ístmicos - que eram realizados em Co-
à data, foram encontrados 82 fragmentos, sete rinto - aparecem em letras muito maiores. Esta
dos quais contêm a maior parte do mecanismo suspeita é reforçada pelo facto de os nomes dos
e inscrições. O último foi descoberto em 2018: meses na frente do mecanismo estarem escri-
uma roda dentada com a imagem de um touro, tos no dialeto coríntio.
possivelmente representando a constelação de Em 2018, uma equipa de arqueólogos suba-
Touro. quáticos encontrou o esqueleto de um jovem na
Estudado ao longo do século XX, acredita-se casa dos vinte anos entre os destroços. Nomea-
ser o primeiro computador analógico da his- do Pamphilos - do grego “amigo de todos” - os
tória, construído entre 200 a.C. e 100 a.C. Este investigadores estão a tentar obter algum do seu
complexo mecanismo de relógio era composto ADN intato a fim de determinar de onde era.
por 37 rodas dentadas que lhe permitiam se- Talvez isto possa lançar alguma luz sobre a pro-
guir os movimentos da lua e do sol através do veniência deste incrível dispositivo. e

155
61 O que aconteceu ao voo 370
da Malaysia Airlines?
Seis anos após o seu desaparecimento no Oceano Índico, apenas alguns
destroços foram encontrados, mas não se sabe por que razão se despenhou.

O filho de um dos 239 desaparecidos


com o voo 370 pinta o rosto numa
homenagem aos passageiros em
Kuala Lumpur em 2019.
SHUTTERSTOCK

P
assada a meia-noite de 8 de março de o desaparecimento da aeronave com todas as
2014, exatamente às 0:41 hora local, o pessoas a bordo. O último contacto por radar
voo 370 da Malaysia Airlines descolou com o avião tinha sido a 300 quilómetros a sul
do Aeroporto Internacional de Kuala das ilhas Thõ Chu, no Golfo da Tailândia .
Lumpur com destino a Pequim. Todos A Rolls-Royce, fabricante do motor da ae-
os doze membros da tripulação e 227 passagei- ronave, confirmou que tinha continuado a re-
ros seguiam a bordo do Boeing 777 (ver foto na ceber comunicação ACARS a cada 30 minutos
página seguinte). O voo começou a sua viagem durante cinco horas - um sistema de comuni-
normalmente, mas 40 minutos após a desco- cação e monitorização por rádio que permite
lagem, no espaço aéreo do Vietname, o avião a monitorização automática do estado da ae-
desapareceu do radar e não voltou a dar sinal ronave em voo. Isto significa que a aeronave
de vida. continuou a voar durante cerca de quatro ho-
Uma hora depois do momento em que deve- ras após o seu desaparecimento do radar. De
ria ter aterrado, a Malaysia Airlines anunciou facto, a companhia britânica Inmarsat, que

156
tem satélites na área do Oceano Índico, con- malias que poderiam ter causado fissuras na
firmou que a antena do avião continuou a en- fuselagem. Um incêndio também poderia ter
viar sinais de hora a hora durante pelo menos sido desencadeado no porão por uma carga de
seis horas após o transponder ter parado de mais de duas toneladas de baterias contendo
transmitir. 221 kg de lítio. Um curto-circuito no sistema de
Foi lançada uma operação internacional oxigénio do avião ou uma queda repentina dos
multimilionária de busca e salvamento que níveis de oxigénio que deixou os passageiros e
duraria quatro anos. Durante os primeiros a tripulação inconscientes são outras opções.
dias, uma dúzia de países, incluindo a China e Mas nenhuma delas é responsável pela mudan-
os Estados Unidos, deslocaram os seus navios ça de rumo do avião.
para a área onde se tinha perdido o contacto, Assim, a possibilidade de um sequestro ou
numa tentativa de encontrar quaisquer restos um ataque - descobriu-se que alguns passa-
do avião. Nada foi encontrado. Um ano mais geiros usavam passaportes roubados - foi lan-
tarde, o primeiro-ministro malaio apresentou çada. Ou, como a revista The Atlantic publi-
o relatório de investigação. O avião tinha de cou após a sua própria investigação, um ho-
facto desativado todos os sistemas de comu- micídio-suicídio cometido pelo comandante
nicação, deu a volta em direção ao Estreito de do avião. William Langewiesche, jornalista de
Malaca e continuou a voar para sul durante vá- aviação, afirmou que tinha informações rele-
rias horas antes de desaparecer. vantes sobre o sombrio momento pessoal do
piloto e um simulador de voo suspeito na sua
A BUSCA NÃO CESSOU E FORAM UTILIZADOS casa. Segundo Langewiesche, ele conseguiu
TODOS OS TIPOS DE MEIOS HUMANOS e tec- subir até 12.000 metros para despressurizar
nológicos: ecosondas marinhas, barcos de de- o cockpit, os passageiros desmaiaram depois
teção acústica submarina, robots submarinos, de o oxigénio nas suas máscaras se ter esgo-
satélites.... Mais uma tado, ele mudou de
vez, nada. Pouco rumo e voou até o
mais de um ano de- avião cair num pon-
pois, o que parecia to indeterminado
ser o flaperon - um- do oceano depois
tipo de superfície de de ter consumido o
controlo que com- combustível. É cla-
bina as funções de ro que esta hipótese
flaps e ailerons - de não explica como é
um Boing 777 apare- que ele se livrou do
ceu na Ilha da Reu- seu co-piloto.
nião. Era do voo 370.
Ao longo dos anos, DILAÇÕES MAIS
WIKI

continuaram a ser FLORIDAS são as que


encontrados destroços. Um turista encontrou defendem a existência de um segundo Triângulo
um grande pedaço de destroços numa praia das Bermudas ou que foi um plano dos serviços
em Moçambique; um estabilizador traseiro foi secretos israelitas que correu mal, uma vez que
encontrado na ilha de Pemba, na Tanzânia; e a sua intenção teria sido fazer cair o avião num
foram também descobertos destroços nas Ilhas edifício e culpar o Irão por isso.Para piorar a si-
Maurícias. Em julho de 2018, a Malásia apre- tuação, de acordo com uma sondagem da revis-
sentou um relatório com uma lista de todos os ta Reason, 5% dos americanos acreditam que o
destroços encontrados ao largo das costas da avião foi desviado por extraterrestres.
África do Sul, Moçambique, Tanzânia, Mada- Em todo o caso, o destino da aeronave per-
gáscar, Reunião e Maurícias, todos no Oceano manece desconhecido até hoje.Tão grande foi
Índico ocidental. o desespero por respostas que a 3 de março de
O que aconteceu? foi um acidente? um ata- 2019, o então ministro dos transportes da Ma-
que terrorista? Muitas hipóteses e ainda mais lásia, Anthony Loke Siew Fook, disse que o seu
teorias da conspiração têm sido apresenta- governo estava aberto a novas propostas de
das. Entre as mais razoáveis estão aquelas que qualquer companhia disposta a reavivar a pro-
apontam para um problema técnico. É verdade cura do voo 370 da Malaysia Airlines, também
que as mensagens do ACARS revelaram ano- conhecido como MH370 ou MAS370.e

157
62 O que foi recebido
numa estação
de rádio em Oslo
em 1927?
A fonte dos sinais de ondas curtas captados naquele momento
e local como ecos de uma emissão de rádio anterior ainda não é
conhecida. A hipótese mais arriscada atribui-os aos extraterrestres.

Quando as primeiras grandes


estações de ondas curtas lançaram
um sinal de rádio no espaço,
observou-se que o seu eco regressava
com várias repetições. Na imagem, a
torre Shukhov em Moscovo.

SHUTTERSTOCK

P
CJJ foi a primeira estação de rádio de de Eindhoven, começou a emitir a 11 de março de
ondas curtas na Europa e a primeira no 1927 com uma transmissão para as Índias Orien-
mundo dedicada exclusivamente a esta tais Holandesas com as palavras “Olá, esta é uma
parte do espetro eletromagnético. Ins- transmissão dos Laboratórios Philips em Eindho-
talada pela Philips na cidade holandesa ven”. PCJJ logo começou a emitir em inglês, es-

158
panhol, alemão e holandês para todo o mundo. estudos sobre a ionosfera. Estes resultados con-
Mas não foi pelos discursos da Rainha Guilher- venceram a maioria dos céticos na altura de que
mina sobre vários temas coloniais, a 30 de maio e o efeito era real. É provavelmente ainda a prova
1 de junho desse ano, que esta estação entrou na mais convincente de que tais ecos de rádio de
história dos mistérios, mas por algo estranho que longa duração existem.
aconteceu no final do verão de 1927. Algo semelhante aconteceu a 7 de julho de
Tal como o físico norueguês Carl Størmer 1974 quando K. L. Rasmussen, da Universidade
da Universidade de Oslo - o primeiro cientista da Califórnia, Berkeley, EUA, quando estava a
a medir a altura a que se produzem as auroras estudar o reflexo das ondas de rádio na superfí-
boreais - disse à revista Nature, recebeu em 29 cie da Lua. A metodologia era bastante simples:
de fevereiro desse ano uma carta do engenhei- enviar uma série de sinais para o nosso satélite
ro Jørgen Hals, que estava em Oslo, dizendo: e esperar 2,6 segundos para que fossem refleti-
“Tenho a honra de vos informar que no final do dos de volta. “De repente, apareceu um segun-
Verão de 1927 ouvi repetidamente sinais de on- do sinal, atrasado cerca de dois segundos. Tinha
das curtas vindos da estação transmissora PC- as mesmas características que a onda refletida,
JJ (Eindhoven). Ao mesmo tempo que ouvia os só que era mais fraca”. O sinal fantasma apa-
sinais, também ouvia ecos. Ouvi o eco habitual receu em diferentes ocasiões nesse dia, poucos
quando o sinal circunda a Terra 1/7 segundos segundos depois de receber o refletido da Lua.
mais tarde, mas também um eco mais fraco 3 Rasmussen postulou na Nature que poderia ser
segundos após o sinal principal. De onde veio, um segundo reflexo num jato de plasma solar,
não posso dizer; só posso confirmar que o ouvi”. mas isso permanece sem explicação. Qual foi a
origem destes ecos? Em 1989, A. G. Shlionskiy
O FÍSICO HOLANDÊS E ESPECIALISTA EM PRO- publicou na revista Telecommunications and
PAGAÇÃO DE ONDAS DE RÁDIO Balthasarvan Radio Engineering até quinze causas possíveis,
der Pol ficou intrigado e decidiu ajudar Størmer que podem ser agrupadas em dois grupos: ou
e Hals, que estavam à procura de uma explica- os sinais são refletidos do espaço exterior - por
ção. Propuseram-se a encontrar uma forma de exemplo, da Lua ou de pequenas nuvens de gás
reproduzir este resultado. Durante dois anos, interplanetário - ou de áreas da atmosfera liga-
as suas experiências incluíram transmissões de das ao nosso planeta, tais como a magnetosfera .
teste dos Países Baixos e por vezes da Indonésia,
no que foi provavelmente o maior esforço algu- MUITO MAIS FASCINANTE FOI A EXPLICAÇÃO
ma vez feito para estudar este novo fenómeno DE RONALD BRACEWELL, um professor de en-
elusivo, os ecos de rádio de longa duração. Após genharia elétrica da Universidade de Standford
várias tentativas, foram bem sucedidos a 11 de (EUA). Como escreveu em 1960 na revista Na-
outubro de 1928. Um telegrama de Størmer de- ture, poderiam ser a forma que uma sociedade
clarando que tinha recebido claramente uma galáctica avançada com uma sonda espacial não
série de ecos naquela noite, colocou Van der Pol tripulada nas proximidades teve para comu-
de sobreaviso: “Decidiu enviar uma série de si- nicar connosco. “Para ter a certeza de que um
nais de teste naquela noite consistindo em três sinal de rádio poderia penetrar na nossa ionos-
pontos Morse em sucessão rápida a cada 30 se- fera e estar numa banda que estamos a utilizar,
gundos”. a sonda escutaria primeiro os nossos sinais e re-
Mas o resultado mais espetacular foi obtido a peti-los-ia. Para nós, os seus sinais pareceriam
24 de outubro de 1928: observações simultâneas ecos com atrasos de segundos ou minutos, como
na Noruega e nos Países Baixos de ecos dos sinais os relatados há trinta anos atrás por Størmer e
da PCJJ a um comprimento de onda de 31,4 me- Van der Pol”.
tros (9,55 MHz). Ecos do sinal acordado - três Meio a brincar, meio a sério, em 1972, o astró-
pontos Morse em sucessão rápida a cada trinta nomo britânico Duncan Lunan decidiu verificar se
segundos - foram recebidos tanto em Oslo co- Bracewell poderia estar certo. E descobriu que os
mo em duas estações em Eindhoven. Van der Pol atrasos registados por Van der Pol a 11 de outubro
recebeu nove ecos na Holanda, atrasados entre de 1928 eram na realidade pontos num mapa. Se
3 e 30 segundos em relação aos seus respetivos fosse feito um gráfico onde o atraso em segundos
sinais; em Oslo, vinte ecos. Foram também ou- de cada eco fosse representado pela ordem em que
vidos no Reino Unido por um grupo liderado foram recebidos, uma imagem incompleta mas
por Edward Victor Appleton - um físico que reconhecível aparecia a qualquer astrónomo: a
iria receber o Prémio Nobel em 1947 pelos seus constelação de Boieiro. Curioso, não é? e

159
63 Quem escreveu
o manuscrito
Voynich?
Belos mas estranhos desenhos e palavras indecifráveis compõem o
livro, do qual só sabemos com certeza que tem 600 anos de idade.

160
Luis Miguel Muñiz estuda o manuscrito
de Voynich para a sua réplica numa
edição fac-símile publicada pela editora
Siloe em Burgos em 2016.

GETTY

F
oi encontrado num antigo convento numerosos desenhos: alguns parecem astro-
jesuíta, Villa Mondragone, em Frascat- lógicos, existem diagramas circulares, partes
ti (Itália), pelo bibliófilo polaco Wilfrid isoladas de plantas junto a frascos de farmacêu-
Voynich (1865-1939), daí o seu nome. ticos, e figuras humanas, na sua maioria mu-
Agora alojado na Biblioteca Beinecke lheres nuas, ligadas por complexas tramas de
de Livros Raros Bei da Universidade de Yale tubos e banhando-se em piscinas, no que pare-
(EUA), ganhou o epíteto de manuscrito mais ce ser uma alegoria de órgãos do corpo. Todas
misterioso do mundo porque, após muitas ten- as tentativas para o decifrar foram inúteis, tal
tativas, ninguém o conseguiu ler. Os estranhos como não foi possível determinar a sua finali-
símbolos que povoam este livro de 116 páginas, dade ou quem se esforçou tanto para escrever
das quais catorze foram perdidas, são um enig- tal texto.
ma. Além disso, parte do trabalho é um her- Em 2009, investigadores da Universidade do
bário do qual nenhuma das plantas retratadas Arizona (EUA) realizaram um teste de carbo-
foi identificada. O manuscrito é ilustrado com no-14 e descobriram que, com uma probabili-

161
WIKI
dade de 95 %, este foi escrito entre 1404 e 1438. cartão perfurado em certos locais. Em 2007,
Além disso, o McCrone Research Institute de o físico Andreas Schinner da Johannes Kepler
Chicago - o laboratório que provou a fraude do University Linz (Áustria) publicou na revista
mapa de Vinland, um mapa da América supos- Cryptologia que as propriedades estatísticas
tamente desenhado pelos Vikings - determi- do texto eram mais parecidas com disparates
nou que os pigmentos utilizados no manuscrito sem sentido, como a proposta de Rugg do que
eram os esperados daquela época. com uma língua real como o latim. Mas porque
Ao longo dos anos, a ideia de que se trata- é que alguém gastou tanto tempo e esforço pa-
va de um embuste ganhou ímpeto. A razão? A ra criar semelhante embuste?
criptografia medieval é demasiado básica para
suportar o poder da criptanálise desenvolvida ESTA ERA A SITUAÇÃO EM 2013, QUANDO O FÍ-
durante o século XX. 99,9% dos textos en- SICO TEÓRICO da Universidade de Manchester
criptados da Idade Média já foram decifrados Marcelo Montemurro publicou na revista PLOS
e não parece razoável pensar que seria impos- ONE que o manuscrito ocultava uma mensa-
sível não ter sucesso com o Voynich quando, gem real. Afirmou ter encontrado estruturas
além disso, todo um livro está à disposição dos linguísticas que pareciam corresponder a pala-
especialistas. Em 2003, esta hipótese parecia vras com significado. Isto reacendeu o interesse
ser confirmada quando um engenheiro infor- pelo manuscrito, e os artigos de investigadores
mático da Universidade de Keele (Grã-Breta- que afirmam tê-lo decifrado, ou pelo menos ter
nha), Gordon Rugg, mostrou que o texto tinha encontrado a língua por detrás do voychinês ,
características semelhantes ao que se poderia começaram a aparecer novamente .
conseguir com uma coleção de prefixos, raízes Em 2014, Stephen Bax, professor de linguís-
e sufixos distribuídos aleatoriamente pelo pa- tica aplicada na Universidade de Bedfordshire
pel utilizando a chamada grelha Cardano, um em Inglaterra, afirmou ter descodificado dez

162
O bibliófilo, químico
e aventureiro Wilfrid
Voynich deparou-se
palavras e disse que se tratava de um tratado so- com o misterioso
bre a natureza escrito numa língua do Próximo manual em 1912.
Oriente. Também disse ter encontrado paralelos
com o alfabeto eslavo glagolítico - o mais anti-
go alfabeto eslavo conhecido - e com o Rongo-
rongo, o misterioso e não decifrado sistema de
escrita da Ilha de Páscoa. Infelizmente, a morte
de Bax em 2017 deixou esta linha de trabalho no
marasmo. Nesse mesmo ano, um argumentista
de televisão chamado Nicholas Gibbs afirmou
ter descoberto que o manuscrito utilizava uma
forma abreviada de latim e era um guia para a
saúde da mulher. Não convenceu ninguém.

UTILIZANDO A LINGUÍSTICA COMPUTACIO-


NAL, GREG KONDRAK, linguista da Univer-
sidade de Alberta (Canadá), e o seu aluno de
pós-graduação Bradley Hauer, tentaram em
2017. Concluíram que a língua do manuscrito
é provavelmente o hebraico codificado com
alfagramas, anagramas ordenados alfabetica-
mente. Em 2018, Ahmet Ardiç, um engenheiro
WIKI

elétrico apaixonado pelas línguas turcas anti-


gas, afirmou que o guião Voynich é uma espécie ou melhor, autoras: freiras dominicanas, que
de turco antigo escrito num estilo poético .E em o compilaram para Maria de Castela, Rainha
2019, a revista Romance Studies publicou um de Aragão. O que não é claro é porque é que,
artigo de Gerard Cheshire, professor de biolo- por uma razão tão obscura, um grupo de freiras
gia na Universidade de Bristol (Reino Unido), compilaria um tratado tão complexo sobre saú-
no qual afirmava ter decifrado o manuscrito de para uma rainha.
em apenas duas semanas com uma combina- A única certeza é que ainda hoje, no século
ção de “pensamento lateral e engenhosidade”. XXI, e apesar de todas estas soluções, ainda
Sugeriu que se tratava de um compêndio de não sabemos quem, como ou porque alguém
remédios fitoterápicos, banhos terapêuticos e dedicou uma grande parte da sua vida à criação
leituras astrológicas destinadas à saúde da mu- de um manuscrito tão belamente ilustrado que
lher. Mais espantosamente, encontrou o autor, ninguém soube ler. e

WIKI

163
Gillermo Marconi ganhou o Prémio
Nobel da Física por ter inventado a
rádio. Uma década mais tarde,
concentrou-se na sua utilização para
procurar sinais marcianos, inclusive por
mar, a bordo do seu navio Elettra (foto
à direita, no porto de Santo Stefano).

64 Será que Marconi detetou


sinais extraterrestres?
Tanto Tesla como Marconi acreditavam que as ondas de rádio podiam
ser usadas para trocar mensagens com seres de outros planetas.

A
21 de junho de 1943, o Supremo Tri- que tinha sido o primeiro, e embarcou numa
bunal dos EUA afirmava, numa de- série de disputas legais que acabou por perder.
cisão sem precedentes, que tinha A Academia Sueca das Ciências, ignorando a
sido Nikola Tesla e não Guillermo lei não escrita que o descobridor é o primeiro
Marconi quem se tinha adiantado a a publicar, atribuiu o Prémio Nobel da Física a
todos com as suas patentes fundamentais para Marconi em 1909.
a transmissão de informação sem fios. A histó- É curioso que a ideia de comunicação por
rica patente inglesa de Marconi N.º 7777 para o ondas de rádio com outros planetas fosse tão
seletor de frequências, essencial para escolher antiga como a própria rádio. Enquanto Tes-
a emissão desejada no mostrador, foi registada la experimentava a transmissão de sinais sem
em abril de 1900. Mas Tesla tinha apresentado fios no seu laboratório de Colorado Springs em
a Patente No. 645 576 para um dispositivo se- 1899, detetou sinais misteriosos que supunha
melhante a 2 de setembro de 1897 e foi aceite virem de Marte. “No decurso das minhas ex-
a 20 de março de 1900. Em vida, Tesla soube periências, utilizei um recetor de sensibilidade

164
WIKI
o inventor italiano defendia que seria a me-
lhor forma de comunicar com outros seres em
planetas distantes. De facto, no ano seguinte
afirmou que as suas estações de rádio tinham
recebido sinais que poderiam ser de origem
extraterrestre. Claro que toda a esperança foi
frustrada quando nos apercebemos que se tra-
tava de letras do alfabeto Morse. E não é muito
provável que os extraterrestres o tenham utili-
zado nas suas comunicações...

MAS MARCONI NÃO SE SENTIU DESENCORA-


JADO. EM 18 DE MARÇO DE 1920, VOLTOU À
CARGA quando o jornal Tomahawk publicou
uma declaração em que afirmava ter recebido
mensagens alienígenas: “Durante as minhas
experiências em telegrafia sem fios, deparei-
-me com o fenómeno mais espantoso. O mais
impressionante para mim é que recebi sinais
GETTY

que acredito terem origem no espaço para além


praticamente ilimitada. Na altura, não havia do nosso planeta. Penso que é inteiramente
outras estações de rádio nas proximidades, e possível que tenham sido enviados pelos habi-
nenhuma suficientemente poderosa neste pla- tantes de outro planeta para os habitantes da
neta para afetar a minha. Um dia, captei o que Terra”. Na primavera de 1922, dedicou-se à ca-
me pareceu serem sinais regulares. Sei que não ça de sinais marcianos com o seu navio Elettra
poderiam ter sido produzidos na Terra. A pos- por todo o Atlântico.
sibilidade deles virem de Marte passou-me pela Esta mania marciana atingiu o seu auge a 22
cabeça, mas as pressões dos meus outros negó- e 23 de agosto de 1924, quando, sob a direção
cios levaram-me a abandonar esta experiên- do astrónomo David P. Todd, o Exército e a Ma-
cia”, afirmou. Ninguém foi capaz de descobrir rinha dos EUA efetuaram um apagão total de
o que chegou ao seu transmissor, embora haja comunicações, exceto as estritamente neces-
especulações de que possam ter sido as emis- sárias, para detetar possíveis emissões do pla-
sões de rádio do seu concorrente, Marconi. neta vermelho. Como não podia deixar de ser,
foram recebidos sinais misteriosos em várias
NA REVISTA “COLLIER’S WEEKLY” DE MAR- estações .
ÇO DE 1901, TESLA ESCREVEU no seu artigo Décadas mais tarde, no seu aniversário em
Talking to the Planets: “As minhas primeiras 1937, Tesla anunciou que tinha estado a pre-
observações aterrorizaram-me [...], mas na parar um aparelho com o qual “quantidades
altura a ideia de que estes distúrbios estavam consideráveis de energia podem ser enviadas
a ser inteligentemente controlados não se me através do espaço interestelar a qualquer dis-
apresentou imediatamente [...]. A sensação de tância sem a menor dispersão”. Só lhe faltou
ter sido o primeiro a ouvir a saudação de um dizer que era um rádio para falar com extra-
planeta para outro cresce dentro de mim”. terrestres. Nunca tornou públicos quaisquer
No mesmo ano, Marconi fez manchetes de detalhes técnicos, o que contribui para au-
primeira página noThe New York Times: “Mar- mentar a aura de mistério que envolve este
coni’s Hope Is to Use Radio to the Stars”. Ali, incrível inventor. e

165
65 Quais foram as
investigações secretas
de Tesla?
Os ficheiros dos seus últimos estudos encontram-se adormecidos
na secção ultra-secreta do Departamento de Defesa dos EUA.
o grande Edison, incapaz de
Tesla realizou experiências encontrar qualquer referência
misteriosas com um à sua cidade natal, perguntou-
gerador de alta voltagem
-lhe se alguma vez tinha co-
no seu laboratório de
Colorado Springs- página mido carne humana.
da direita -. “O progresso do homem es-
tá vitalmente dependente da
invenção. É o produto mais
importante do seu cérebro
criativo”. Assim começa a sua
autobiografia Nikola Tesla. Era
o quarto filho de uma família
de cinco, e se há uma coisa que
pode ser dita sobre ele com
certeza ,é que era um amante
da eletricidade e do magnetis-
mo. Por esta razão, a comuni-
dade científica internacional
reconheceu as suas contribui-
ções dando o seu nome à uni-
dade de força do campo mag-
nético: Tesla.
M. SURYANTO / SHUTTERSTOCK

EM 1875, INGRESSOU NO PO-


LITÉCNICO Austríaco, e cin-
co anos mais tarde mudou-se
para Budapeste para trabalhar
para a companhia telefónica

T
do país. Aí inventou o que é
odas as manhãs, sempre que acor- considerado por alguns como o primeiro alti-
damos e ligamos a luz, prestamos falante da história. Mas o croata inquieto não
homenagem a um dos inventores ficaria ali por muito tempo. Em 1882, foi para
mais peculiares e mitologizados da Paris para trabalhar na filial europeia da em-
história, um homem extravagan- presa do mundialmente famoso Thomas Alva
te, de quase dois metros de altura, com uma Edison. Dois anos mais tarde, atravessou o
voz aguda e o porte de uma cegonha, nascido Atlântico e dirigiu-se à sede da empresa pa-
à meia-noite de 9 para 10 de julho de 1856, na ra se encontrar com o grande inventor. Tudo
pequena aldeia croata de Smiljan, então parte o que ele tinha consigo era uma carta de re-
do Império Austro-Húngaro. Era um ser tão comendação do seu antigo chefe na Europa,
peculiar, de origem tão estranha, que um dia Charles Barchelor. A carta dizia: “Conheço

166
dois grandes homens e tu és um deles; es- corpo. E, quando estalava os dedos, produzia
te jovem é o outro”. Assim que Tesla entrou uma bola de fogo que segurava na mão sem
pela porta do escritório de Edison, o grande se queimar, enquanto falava dos mistérios da
homem foi confrontado com um problema: o eletricidade e do magnetismo. A audiência
navio Oregon precisava de reparações no dí- dos dois continentes, fascinada, ergueu-o ao
namo que lhe fornecia eletricidade e ele não topo.
tinha nenhum engenheiro disponível. Por is- Mas a aura de mistério que envolve Tesla de-
so, enviou Tesla. vêmo-la à poeira levantada à volta do seu ano
Nessa mesma noite, Tesla passou por Edi- de experiências secretas em Colorado Springs,
son e um grupo dos seus assistentes na Quinta em 1899. Conta-se que tinha estado a experi-
Avenida. “Olha, aqui está o nosso parisiense a mentar, por exemplo, com um raio desinte-
dar um passeio”. Tesla disse-lhe então que já grador. O próprio Tesla falou de uma arma de
tinha arranjado o dínamo do navio. Enquan- teleforça .
to se afastava, pôde ouvir Edison dizer: “Ele O enigmático investigador morreu a 7 de ja-
é muito bom”. Não estava errado, e o futuro neiro de 1943, sozinho no quarto 3327 do New
dar-lhe-ia razão. Yorker Hotel na Oitava Avenida. Nunca casou
e permaneceu celibatário durante toda a sua
O CONFLITO SURGIU PORQUE ERAM DUAS vida. O seu funeral contou com a presença de
PERSONALIDADES GIGANTESCAS total- mais de 2000 pessoas, e os portadores do cai-
mente contrárias. Tesla era culto, refinado, xão foram galardoados com o Prémio Nobel.
de fala suave, fluente em várias línguas e O seu corpo foi cremado e as suas cinzas en-
apaixonado pela ciência. Edison era desaver- contram-se numa urna esférica, o seu objeto
gonhado, rústico e com um desdém e des- geométrico preferido, no Museu Nikola Tesla
prezo abertos pelas teorias científicas. Para em Belgrado.
ele, se não produziam dinheiro, não valiam
nada. Era apenas uma questão de tempo até O PRÓPRIO GOVERNO DOS EUA FOI SEM
que os dois se enfrentassem, como aconteceu DÚVIDA O QUE MAIS ALIMENTOU A LENDA.
nas chamadas guerras das correntes :Edison Após a morte de Tesla, a maioria dos seus fi-
era partidário da corrente contínua, Tesla da cheiros e dispositivos foram recolhidos e ar-
corrente alternada. mazenados pelo pelo Office of Alien Property
Entre 1892 e 1893, Tesla deu quatro pales- Custodian, um departamento governamental
tras na Europa e América que o tornaram o que durante as duas guerras mundiais servia
cientista mais famoso da época. Com apa- como custódia de objetos pertencentes a cida-
relhos que ele próprio concebeu, construiu dãos de países inimigos. Que tenham tomado
e testou pelo menos vinte vezes, começou a custódia dos seus documentos é espantoso,
a provar que a corrente alternada podia ser uma vez que Tesla era um cidadão americano.
controlada em segurança. Sujeitou-se mes- Quando o Departamento de Defesa contactou
mo a uma voltagem de dois milhões de volts o FBI, os seus ficheiros foram declarados con-
até aparecer uma auréola de luz à sua volta fidenciais. Nas palavras de J. Edgar Hoover,
(ilustração abaixo). Explicou então que cor- era “o caso mais secreto devido à natureza das
rentes alternadas de alta tensão e alta fre- suas invenções e patentes”.
quência fluem através da superfície exterior Ainda assim, a maioria dos seus ficheiros
da pele sem causar danos. sensíveis foram publicados em 1978 pelo Mu-
Nas suas demonstrações, este mago da ele- seu Nikola Tesla sob o título Notas de Colorado
tricidade lançaria faíscas das pontas dos seus Springs 1899-1900. No entanto, como a sua
dedos, acendia lâmpadas e fundia metais, biógrafa, a matemática americana Margaret
ao deixar passar a corrente elétrica pelo seu Cheney, descobriu, há uma parte significati-
va dos seus escritos que estão “na terceira de
três bibliotecas mantidas por uma conhecida
WELLCOME COLLECTION

agência de investigação de defesa”. A primeira


é aberta ao público, a segunda é semi-restrita,
e a terceira biblioteca só pode ser visitada por
pessoal dos serviços secretos. Aí estão os pa-
peis perdidos de Tesla. O que é que escondem?
Só alguns o sabem. e

167
168
S
omos substância de estrelas a refletir sobre a sua origem. Es-
ta frase resume tudo o que aprendemos sobre o cosmos. Uma
aventura que começou quando, na Renascença, o astrónomo
prussiano Nicolaus Copérnico decidiu comprovar se, fazendo
girar os planetas em torno do Sol poderia explicar melhor as
observações que tinham sido feitas destes corpos errantes desde o tem-
po dos babilónios. Depois dele, pessoas como Kepler, Galileo e Newton
lançaram as bases do que viria a ser a ciência moderna. O universo dei-
xou de ser um lugar governado pelos desígnios de um deus ou deuses
inescrutáveis e tornou-se um relógio perfeitamente afinado.
Gradualmente,aprofundámos os meandros do nosso bairro galáctico,
e olhámos para além do pátio em que vivemos. Descobrimos que, para
além dos planetas, o Sistema Solar está repleto de outros corpos mais
pequenos - cometas e asteróides - que acrescentam um toque de aven-
tura e risco à nossa existência. Olhando para além, encontramos um
mundo totalmente afastado da nossa experiência quotidiana, onde as
escalas do espaço e do tempo nos escapam: sóis que explodem, estrelas
que cabem dentro de uma cidade de tamanho médio... A própria ori-
gem do universo é tão sublime como inconcebível. E no entanto, apesar
do quanto mudámos a nossa perceção do mundo desde o islâmico Bah-
amut, o mítico monstro marinho que sustenta a estrutura que sustenta
a Terra, o universo nunca deixa de nos desafiar.

169
AGE / SPL
Acredita-se que os iões de lítio - na imagem, cristais
vistos ao microscópio eletrónico de varrimento -se tenham
formado a partir de isótopos instáveis de berílio nos
minutos que se seguiram ao Big Bang.

66 Onde está o lítio em falta


no universo?
Ao contrário do hidrogénio, a quantidade deste elemento no
cosmos não corresponde aos cálculos dos astrónomos.

N
o final dos anos 60, após a dete- tese primordial. É assim porque três minutos
ção da radiação de fundo de mi- após o Big Bang, a temperatura teria descido o
croondas (CMB) que preenche o suficiente para parar qualquer reação nuclear.
espaço, tornou-se claro para os Cálculos feitos por volta de 1950 por, entre
cosmólogos que a origem do uni- outros, Fred Hoyle, William Fowler e o casal
verso começou com um Big Bang há quase 14 Geoff e Margaret Burbidge mostraram que,
mil milhões de anos . nesse caso, a proporção de hélio no cosmos
Há três grandes provas experimentais que deve ter sido de 25%.
nos fazem pensar que assim foi. A primeira é
a descoberta da expansão do universo pelo as- INFELIZMENTE, A TEORIA DO BIG BANG NÃO
trónomo americano Edwin Hubble, por volta ESTÁ COMPLETA. Uma incógnita é a quanti-
de 1925. A segunda é a já mencionada radiação dade de lítio, o mesmo que se encontra nas
de fundo de microondas, que é o eco atual do baterias dos nossos dispositivos eletrónicos.
Big Bang. E a terceira é a composição do uni- De acordo com cálculos teóricos, deveria ha-
verso como três quartos de hidrogénio, um ver três vezes mais do que observamos expe-
quarto de hélio e alguns pequenos vestígios de rimentalmente. Porque é que existe tal dis-
lítio e berílio - a isto chama-se a nucleossín- crepância?

170
Quando prevemos a quantidade de hidrogé- petrais, as impressões digitais deixadas pelos
nio e hélio gerada com o Big Bang, fazêmo-lo elementos químicos na luz das estrelas. A par-
bastante bem. Mesmo com a quantidade de tir delas, pode deduzir-se a abundância de um
deutério, um isótopo de hidrogénio - ou seja, elemento químico: quanto mais intensa for,
um átomo do mesmo elemento químico mas maior será a quantidade. Contudo, de acordo
com um número diferente de neutrões no seu com uma equipa de astrónomos liderada por
núcleo. A teoria prevê que por cada milhão Andreas Korn da Universidade de Uppsala na
de núcleos de hidrogénio, formaram-se vinte Suécia, estas medições podem ser enganado-
e cinco núcleos de deutério, e as observações ras, porque as suas observações mostraram que
mostram que esta previsão é correta dentro a proporção de lítio na atmosfera das estrelas
de 1,6%. Mas com o lítio, a teoria falha: prevê diminui à medida que estas envelhecem.
que por cada dez mil milhões de átomos de hi-
drogénio, formaram-se cerca de cinco átomos OUTROS TEÓRICOS OLHAM PARA A FÍSICA
de lítio. Contudo, as melhores observações DAS PARTÍCULAS. Apoiam-se na teoria da su-
que temos mostram que existem menos de persimetria, que aponta para a existência de
dois átomos de lítio por cada dez mil milhões partículas supersimétricas. Estas são o com-
de átomos de hidrogénio. Isto é conhecido na panheiro que toda a partícula comum disfruta;
cosmologia como o problema do lítio em falta e seria como ter um gémeo oculto que ainda não
levanta uma questão sobre o que aconteceu no detetámos. Então o que é que tudo isto tem a
cosmos desde 10 segundos até 20 minutos após ver com a abundância de lítio no universo? A
o Big Bang. ideia básica é que se, como acreditamos, o lí-
Na altura, o universo estava muito quente e tio teve origem num isótopo instável de berí-
em rápida expansão. Eletrões e fotões moven- lio formado após o Big Bang, se tivermos uma
do-se livremente pelo espaço formaram um partícula que suprima a formação de berílio, o
plasma com os primeiros núcleos atómicos de problema do lítio desaparece.
hidrogénio, hélio, lítio e berílio. Desde então, Outra possibilidade é que haja uma partícula
até às primeiras estrelas começarem a bri- que reage com berílio e a faz decompor-se em
lhar, o lugar onde se cozinharam os restantes dois isótopos de hélio e não deriva eventual-
elementos que compõem a tabela periódica, a mente para o lítio. Esta ideia tem a vantagem
composição química do universo foi assim tão de reduzir a abundância de lítio sem alterar
simples . as proporções de hidrogénio para hélio, uma
vez que esta partícula imaginária aumentaria
HÁ VÁRIAS TENTATIVAS PARA EXPLICAR UMA a abundância de hélio em apenas uma peque-
DISCREPÂNCIA TÃO GRANDE. Os investiga- na quantidade. Além disso, esta ideia funciona
dores chineses argumentam que os núcleos, bem se não viver muito tempo e se desintegrar
nos primeiros momentos da sua existência, em cerca de uma hora. Mas onde está esta mis-
se comportaram de forma diferente do que se teriosa partícula? A resposta pode residir no
pensava anteriormente. Para descobrir o que axião, uma partícula postulada em 1977 que é
se passava, dizem, é preciso aplicar uma nova um dos candidatos exóticos para explicar a ma-
formulação da física que estuda sistemas com téria escura. Foram feitos muitos esforços para
um grande número de componentes - como a detetar, mas por agora permanece no limbo
os gases, que são compostos por milhões e mi- dos perdidos. e
lhões de átomos - introduzida em 1988 pelo
físico brasileiro de origem grega Constantino
Tsallis. Este método é utilizado para descrever
sistemas complexos que estão fora de equilíbrio
e podem sofrer alterações espontâneas. Exata-
mente o tipo de situação em que o universo se
encontrava na altura. E aparentemente as suas
contas coincidem com as observações.
Mas esta não é a única hipótese. Astrónomos
europeus afirmam que a origem da discrepân-
cia reside na forma como contabilizamos o lítio
Recriação do Big Bang que deu
presente nas estrelas antigas. Os astrónomos origem à composição química
calculam-no utilizando um método muito do cosmos.
simples: observam a intensidade das linhas es-
D. HARDY / NASA

171
67 Porque é que o
cosmos está tão
bem afinado?
A vida na Terra existe graças a um puzzle de constantes universais,
e não seria possível se estas variassem, mesmo que minimamente.
Entre aqueles que mais trabalharam este te-
Estamos aqui por ma, está um dos maiores astrofísicos do século
acaso ou somos o passado, o inglês Fred Hoyle (1915-2001), que
resultado inevitável chamou a atenção para as coincidências pecu-
das leis do cosmos? liares nos valores das constantes fundamentais:
todas elas pareciam ter sido finamente ajustadas
para permitir que a vida aparecesse. Em parti-
cular, Hoyle descobriu que, para que o átomo de
carbono fosse estável e não se desintegrasse, um
número significativo dessas peculiaridades te-
ria de ter ocorrido à escala atómica. Isto levanta
uma questão inquietante: porque é que as cons-
tantes físicas fundamentais têm o valor que têm
e não outro?
Como já dissemos, a questão de fundo não é
que tenham o valor que medimos, mas que é
precisamente esse valor - e aparentemente não
SHUTTERSTOCK

pode ser outro - que permite que a vida apare-


ça no universo. Por outras palavras, se a carga

A
do eletrão ou a velocidade da luz não valessem
teoria da evolução de Darwin co- o que valem, a vida no universo seria provavel-
locou um termo filosófico no gati- mente impossível. E é este facto que intriga os
lho: contingência. Deste ponto de físicos teóricos.
vista, o ser humano, como qual-
quer outra espécie, poderia não MARTIN REES, O ASTRÓNOMO REAL DA GRÃ
ter aparecido. Estamos aqui por acaso. De fac- BRETANHA, escreveu extensivamente sobre co-
to, muitos argumentam que a vida em si não é mo tudo no universo parece ser muito sensível
um facto obrigatório no universo. O paleon- aos valores que podem tomar as aparentemente
tólogo americano Stephen Jay Gould (1941- arbitrárias e inconexas constantes naturais, co-
2002) deixou isto bem claro no seu livro Full mo a intensidade da força da gravidade, a velo-
House (1996): “A origem do Homo sapiens cidade de expansão do cosmos após o big bang,
deve ser vista como irrepetível e concreta, ou o número de dimensões espaciais do mundo
não como uma consequência esperada”. No em que vivemos. Isto levou à formulação do cha-
entanto, há cientistas para quem o acaso não mado princípio antrópico forte: o universo deve
é a razão última da nossa presença na Terra, e ter as propriedades necessárias para permitir a
que afirmam que a vida e a consciência são um emergência da vida e da inteligência em alguma
imperativo cósmico. Compreendamo-lo cor- das suas etapas.
retamente: não estão a dizer que ambas obe- Outros cientistas foram mais longe, como os
decem a um plano divino, mas que são conse- físicos John Barrow (1952-2020) e Frank Tipler,
quência das leis da natureza. que criou a teoria do ponto ómega. De acordo

172
com esta teoria, a evolução da vida inteligente, bebés nascem dentro de buracos negros, graças
caracterizada por focar-se no armazenamento aos Big Bangs que aí ocorrem naturalmente.
de cada vez mais informação, acabará por assu- No entanto, as constantes e leis da física variam
mir o controlo de todo o universo: o chamado subtilmente de um universo bebé para outro,
princípio antrópico final. Escusado será dizer num processo de seleção natural que favorece a
que muitos investigadores menosprezam esta reprodução de universos que geram mais uni-
ideia, que qualificaram de PACR, um acrónimo versos-bebé. Ou, por outras palavras, favorece
para princípio antrópico ridículo. Embora haja cosmos em que haja estrelas que terminem as
quem o defenda, como David Deutsch, também suas vidas como buracos negros. Na sua opi-
físico e especialista em computação quântica nião, a vida é apenas um subproduto do verda-
na Universidade de Oxford, que o incorpora na deiro objetivo das leis naturais: produzir uni-
sua descrição da realidade. Tipler não conseguiu versos com buracos negros. Acidentalmente, o
convencer os seus colegas de que as leis da física valor das constantes universais que implicam a
exigem um observador consciente no futuro pa- existência de muitos buracos negros coincide
ra cada ponto do espaço-tempo. precisamente com o valor que devem ter para
que o nosso universo transborde de vida. Somos
OUTROS ESTÃO INTRIGADOS COM A APAREN- um dano colateral.
TE VONTADE DA NATUREZA de aumentar a sua
complexidade e auto-organização. Um dos fun-
O astrónomo Martin Rees
dadores da ciência da complexidade, o biólogo
definiu o princípio
teórico americano Stuart Kauffman, concluiu antrófico forte.
que esta propensão para a auto-organização é
um atributo básico da própria matéria. Ou seja,
a força misteriosa que impulsiona a emergência
de sistemas cada vez mais complicados pode ex-
plicar a velocidade a que a evolução opera para
MARTIN REES / NTU

impulsionar organismos e ecossistemas inteiros


para níveis de complexidade cada vez mais im-
prováveis. “Deve haver algo como uma quarta lei
- da termodinâmica - uma tendência para a auto-
-construção de biosferas cada vez maiores”, diz Mas quem mais pensou neste assunto é um per-
Kauffmann. A sua ideia é que a segunda lei, que sonagem curioso que foi escrivão do tribunal e se-
afirma que a desordem de um sistema fechado nador por Oregon, James N. Gardner. A sua ideia
cresce sempre, é importante mas não decisiva. do biocosmo egoísta é uma versão à escala cósmi-
Para o bioquímico e Prémio Nobel Christian ca da teoria genética egoísta de Richard Dawkins.
De Duve, um dos mais criativos pensadores Para Gardner, o nosso universo nada mais é do
quando se trata de unificar biologia e cosmolo- que o resultado da evolução de uma longa série de
gia, “a vida e a mente não emergem como re- universos anteriores, cada um dos quais tem sido
sultado de acidentes aleatórios, mas como uma cada vez mais amigável para a vida.
manifestação natural da matéria”. Além disso,
argumenta que a consciência é uma expressão ENTRETANTO, O GÉNIO MATEMÁTICO STE-
tão fundamental do cosmos como a própria vi- PHEN WOLFRAM SALIENTA que os processos
da. Pela sua parte, o físico e matemático Free- naturais são melhor compreendidos como uma
man Dyson do Instituto de Estudos Avançados série de algoritmos que se repetem uma e outra
de Princeton eleva a lei natural, tendência da vez, produzindo resultados cada vez mais preci-
consciência para exercer um controlo cada vez sos: “Subjacente a todos os fenómenos complexos
maior sobre a matéria inanimada e, seguindo que vemos na física está um programa simples,
o exemplo de Barrow e Tipler, acredita que de- que, tendo o tempo suficiente, reproduziria o
sempenhará um papel fundamental no destino nosso universo em todos os seus detalhes. Os fí-
final do cosmos. sicos da teoria das cordas juntaram esta ideia de
Entretanto, o perito em gravitação quântica darwinismo cósmico com a emergência da ener-
Lee Smolin da Universidade de Waterloo (Cana- gia escura - responsável pela aceleração do nosso
dá) afirma que tudo à nossa volta é produto de universo. Ao introduzir esta força misteriosa nos
um processo evolutivo operando na maior es- seus cálculos, descobriram que ela gera na ordem
cala possível. Segundo Smolin, novos universos de 10.150 universos possíveis. Quase nada. e

173
O que acontece quando a matéria e a antimatéria
AGE

colidem? Ambos se desintegrariam e dissipariam


energia, como nesta representação de um átomo
de lítio colidindo com um átomo de anti-lítio.

AGE / EEA

68 Porque é que existe


matéria no universo?
A chave pode estar na dança dos protões, electrões, positrões e
antiprotões que permitem que o cosmos se materialize.

P
ode parecer uma pergunta parva, mas tein. Durante dois anos, tinha tentado sem suces-
um dos maiores desafios que enfrenta so, mas após o congresso de Bruxelas decidiu que
o modelo Big Bang é responder a esta este seria o objetivo da sua vida para os próximos
pergunta. Porquê? Tem tudo a ver com anos. E conseguiu. Graças a um uso criativo da
a antimatéria. Para compreender isto, matemática, Dirac obteve a primeira equação que
devemos recuar quase um século no tempo, até unificou ambas as teorias. A partir dela, nasceram
outubro de 1927, ao Instituto Solvay de Fisiolo- duas coisas que se revelaram fundamentais. A pri-
gia em Bruxelas, onde se realizava o quinto Con- meira foi a derivação natural do spin, um conceito
gresso Solvay sob o título de Eletrões e Fotões. elusivo introduzido pelo físico alemão Wolfgang
Seria o mais importante da história da física: de- Pauli. Graças a isso, sabemos que na presença de
zassete dos vinte e nove participantes - apenas um campo magnético pode alinhar-se em duas
por convite - foram ou viriam a ser vencedores direções: para cima e para baixo.
do Prémio Nobel. O título não refletia a verda-
deira intenção desta reunião, que era a de definir MAS ESSA NÃO ERA A ÚNICA SURPRESA ES-
o caminho a seguir para a teoria quântica. Foi aí CONDIDA NAS DOBRAS DA SUA EQUAÇÃO:
que Einstein disse a sua famosa frase “Deus não as duas direções para onde podia orientar-se
joga aos dados” e o físico dinamarquês e pai da o spin do eletrão eram apenas metade das so-
teoria quântica Niels Bohr respondeu: “Parem de luções, pois havia outras duas que corres-
dizer a Deus o que fazer”. pondiam a misteriosos estados do eletrão de
Esta reunião mítica contou com a presença de energia negativa. Isto significava que o eletrão
Paul Dirac, um jovem físico inglês extremamente podia saltar do seu estado normal de energia
calado e taciturno - os seus amigos cunharam o positiva e carga elétrica negativa para um es-
termo dirac como a unidade mínima de palavras tado de energia negativa e carga elétrica posi-
que se pode dizer numa conversa - e que traba- tiva. Que domínio erra esse? Ninguém sabia,
lhava sozinho todos os dias da semana, exceto e algumas pessoas começaram a pensar que
ao domingo, quando ia passear... sozinho . Ele a equação de Dirac não era tão boa como pa-
estava obcecado em ser capaz de unificar as duas recia. Após quatro anos a dar voltas à cabeça,
grandes teorias da física do início do século XX: a Dirac alegou que estas misteriosas soluções
teoria quântica e a relatividade especial de Eins- correspondiam a um novo tipo de partícula

174
que tinha a mesma massa que o eletrão mas
Se estamos aqui, é porque
com uma carga positiva.
há mais matéria do que
No ano seguinte, em 1932, um jovem profes- antimatéria no universo.
sor americano, Carl David Anderson do Instituto
DAVID HARDY / CHANDRA
de Tecnologia da Califórnia (EUA), encontrou es-
sa misteriosa partícula nas suas experiências com
raios cósmicos. Acabávamos de descobrir a an- 50/50, toda a matéria teria sido completamente
timatéria. Para a compreender, devemos ter em aniquilada com a sua correspondente antima-
mente que os físicos distinguem uma partícula da téria. Mas nós estamos aqui, não estamos? Algo
outra da mesma forma que nós distinguimos um deve estar errado na nossa bela teoria.
fruto do outro, pelas suas propriedades: tamanho, Confrontados com tal problema, existem ape-
cor, cheiro e sabor. No caso de partículas subató- nas duas soluções. A primeira é que o nosso uni-
micas, temos de nos referir a características como verso está dividido em dois, um com estrelas e
massa, carga, e momentos angular e magnético. Os planetas e o outro com anti-estrelas e anti-pla-
dois primeiros são fáceis de compreender, mas os netas. Esta opção tem um sério inconveniente.
dois segundos não são. Podemos equiparar o mo- A fronteira entre os dois universos seria uma
mento angular à rotação e o momento magnético explosão contínua de energia visível para os
às partículas que se comportam como a Terra, com nossos telescópios espaciais de raios gama, algo
um pólo magnético norte e sul. Então, o que seria que não se observa. A única opção possível é que
um anti-eletrão - ou positrão -? Primeiro, tem uma estes 50% não fossem exatos, mas que houves-
carga invertida, é positiva em vez de negativa. se um excesso muito pequeno de matéria, cerca
de mil milhões de antipartículas em compara-
TAL COMO QUANDO VEMOS UMA BOLA A GI- ção com mil milhões e uma de matéria. De onde
RAR NUM ESPELHO, também a sua rotação, o veio este excesso é algo que tem preocupado os
impulso angular, é invertido. A isto chama-se físicos há mais de meio século.
inversão da paridade. Esta mudança na pari-
dade forçaria o anti-eletrão a ter os seus pólos EM 1967, O SOVIÉTICO ANDREI SAKHAROV - O
magnéticos norte e sul trocados em relação ao FAMOSO DISSIDENTE E PAI da bomba H russa -
eletrão, mas, como a carga também é invertida, mostrou que a única forma de contornar o pro-
o impulso magnético não se altera. O mesmo é blema era que não ocorresse a chamada simetria
válido para o prótão e o seu correspondente an- CP. Isto assegura que se a uma partícula trocar-
tiprotão, mas não para o neutrão. mos simultaneamente a sua carga - positiva por
O neutrão não tem qualquer carga. Portanto, negativa - e a sua paridade - direita por esquer-
a única inversão possível é a da paridade, que da - ela continua a comportar-se da mesma ma-
força o seu momento magnético - os seus pólos neira. Só se isto não acontecesse, argumentava
magnéticos - a ser invertido em relação ao neu- Sakharov, poderíamos justificar o facto de haver
trão, e esta é a única forma que os físicos têm de mais matéria do que antimatéria no cosmos. Na
distingui-los. Assim, temos as três antipartícu- altura, era impensável que Sakharov estivesse
las necessárias para construir a antimatéria. No certo, pois todos os físicos estavam convencidos
nosso caso, um antiprotão e um positrão forma- de que, como dizem, o universo é invariante sob
riam o átomo de anti-hidrogénio. o CP. Mas desde finais dos anos 60 até meados
A característica mais importante da antima- dos anos 70, foi demonstrado que a simetria da
téria é que, se encontrar uma partícula de ma- CP se cumpria rigorosamente.
téria, ambas são aniquiladas. Toda a sua massa é Mais recentemente, em janeiro de 2019, a ex-
convertida em energia, cuja quantidade é dada periência LHCb realizada no CERN em Genebra
pela fórmula mais famosa da história E = mc2. observou um processo incrivelmente raro nun-
E ao contrário: se tivermos energia suficiente, ca antes observado num acelerador: a formação
podemos criar um eletrão e um positrão, ou um e decomposição da partícula Do e a sua corres-
protão e um antiprotão. E é isto que sempre ob- pondente antipartícula. Segundo o modelo pa-
servamos: uma criação de pares, uma partícula drão, este par de mésons deveria comportar-se
e a sua correspondente antipartícula. exatamente da mesma forma, mas os dados
É aqui que entra a cosmologia. Com a explosão sugerem que são diferentes em 20%. Os físicos
que marcou o início do universo, tanto teve de esperam que esta pequena discrepância no seu
ser criada matéria como antimatéria. E isto é um comportamento explique porque é que o uni-
problema, porque se a proporção tivesse sido verso está cheio de estrelas. e

175
69 O que são as FRBs
e GRBs?
Pouco se sabe sobre a origem das rajadas rápidas de rádio ou das
erupções dos raios gama, explosões massivas de energia no cosmos.

N
o final de setembro de 2007 to- Há estrelas que explodem no fim da vida tor-
mámos consciência de que um nando-se tão luminosas como todas as estrelas
novo fenómeno tinha aparecido da galáxia juntas. Este é o destino que espera Be-
no céu, algo que os astrónomos telgeuse, uma estrela brilhante na constelação
nem sequer sabiam que exis- de Orion, seja amanhã, seja nos próximos 100
tia. Aconteceu quando os astrofísicos Duncan 000 anos. Quando isso acontecer, será tão bri-
Lorimer e David Narkevic da Universidade da lhante como a lua crescente. Mas há explosões
Virgínia Ocidental (EUA) reanalisaram dados mais brutais no cosmos, tais como as chamadas
recebidos há seis anos no Observatório Parkes erupções de raios gama (GRBs).
(Austrália) e se depararam com uma tremenda
explosão a uma distância de 1,5 mil milhões de EM MÉDIA, UMA VEZ POR DIA, EM ALGUM
anos-luz. Nos 5 milisegundos que durou, foi li- PONTO DO CÉU, DURANTE um período de
bertada a mesma quantidade de energia que o tempo que vai desde uma fração de segundo a
Sol emite em quinze dias. Como puderam os as- alguns minutos, o universo apresenta-nos al-
trónomos que recolheram os dados de observa- go que emite tanta energia como 200 000 Vias
ção em 2001 ter deixado escapar algo assim? Não Lácteas juntas. Mal sabíamos da origem destes
lhes escapou, mas rejeitaram-no porque pensa- GRBs até 23 de janeiro de 1999, quando os ob-
vam que era algum tipo de interferência radio- servatórios espaciais de raios X e raios gama
fónica terrestre. Não concebiam que uma explo- detetaram uma impressionante fulguração de
são tão fenomenal tivesse uma origem cósmica. energia num ponto do céu na constelação de
Referimo-nos a rajadas rápidas de rádio (FRBs). Boieiro. Duas ondas de radiação atingiram a
Apesar da quietude do céu noturno, o cosmos Terra 25 e 40 segundos após o início da explo-
não é um lugar sossegado, muito pelo contrário. são. Durante os 50 segundos seguintes, outros

Enquanto mapeia a distribuição das


galáxias, o estudo 2MASS Redshift da
Universidade de Harvard vai
“tropeçando” em fulgurantes
explosões de energia no universo.
SMITHSOMIAN ASTROPHISIC OBSERVATORY
impulsos mais fracos chegaram até que, no fi- meno invulgar. Claro que também propôs ou-
nal, ficou tudo calmo. O cálculo da energia li- tra explicação, ainda mais espetacular: “O últi-
bertada deu um resultado impressionante: se mo estretor de um buraco negro à medida que
tivesse acontecido apenas a 2000 anos-luz de se evapora completamente”. Lorimer refere-se
distância de nós, teria aparecido no céu uma ao que é conhecido como evaporação Hawking,
estrela duas vezes mais brilhante do que o nos- um mecanismo descrito pelo famoso físico bri-
so próprio sol. tânico através do qual um buraco negro perde
Oculto atrás dos nomes pouco atraentes que continuamente energia até desaparecer numa
os astrónomos usam para catalogar eventos ce- grande explosão de raios gama.
lestes, o GRB 990123 ficará na história como a
primeira vez que um GRB foi observado à luz ENTRETANTO, CÁLCULOS DOS FÍSICOS TEÓ-
visível. Na verdade, era tão brilhante que po- RICOS revelam que um buraco negro de cerca
deria ter sido observado com bons binóculos... de três massas solares desaparecerá após 1066
se tivéssemos sabido onde procurar. Os GRB anos, ou um milhão de trilhões de trilhões de
foram detetados pela primeira vez a 2 de julho trilhões de trilhões de trilhões de trilhões de
de 1967 pelos satélites americanos Vela 3 e Vela anos. Como é possível estarmos a observar uma
4, destinados a medir a radiação gama produzi- evaporação agora? Porque se as previsões teó-
da pelos testes nucleares soviéticos. Nesse dia, ricas estiverem corretas, durante o Big Bang
encontraram um flash de radiação gama cuja foram criados grandes números de pequenos
estrutura não estava em conformidade com a micro buracos negros, com a massa de uma
que era habitual para as explosões atómicas. montanha. São estes que estariam a evaporar-
Tivemos de esperar mais de trinta anos, até -se hoje, libertando grandes quantidades de
1999, para poder fotografar este fenómeno ca- radiação gama num infinitésimo de segundo.
taclísmico e, graças a isso, identificar a sua ori- E os FRB? que mistérios encerra este novo
gem: uma galáxia muito ténue a 9 mil milhões fenómeno eruptivo do universo? Tal como os
de anos-luz de distância. Mas o que aconteceu seus primos, os GRBs, nenhuma das explica-
naquela galáxia distante para fazer algo brilhar ções oferecidas - choques estelares, evapora-
tão intensamente? É aqui que reside o mistério. ção de buracos negros - se encaixam nos escas-
sos dados observados até agora. e
ALGUNS ASTRÓNOMOS PENSAM QUE FOI
UMA HIPERNOVA. O seu nome vem da compa-
ração com as supernovas, o fim mais apocalíp- As explosões de raios
tico que uma estrela pode ter, quando depois gama podem ser
de consumir todo o seu combustível nuclear devidas à explosão
explode e torna-se tão brilhante como mil mi- de supernovas.
lhões de estrelas. Bem, uma hipernova é pelo
menos cem vezes mais intensa. Ninguém sabe
como e porque acontece, mas é suposto ocor-
rer quando as estrelas mais maciças - mais de
trinta vezes a massa do Sol - colapsam para for-
mar um buraco negro, num processo que dura
de 10 a 20 segundos. São difíceis de observar
porque são muito raras: aparece uma por cada
milhão de supernovas.
Ainda não existe consenso sobre o que po-
ESO

deria causar tais deflagrações. Para além da hi-


pótese da hipernova, existe a hipótese de uma
colisão entre duas estrelas de neutrões, estrelas O telescópio MPG/ESAO de
com uma vez e meia a massa do Sol amontoa- 2,2 metros em La Silla, no
da dentro de uma esfera de dez quilómetros de Chile, estuda GRBs.
diâmetro. Esta colisão tão exótica - e que a sua
deteção a partir de ondas gravitacionais foi a
razão para um Prémio Nobel em 2017 - foi uma
das explicações oferecidas por Duncan Lori-
mer, chefe do grupo que descobriu este fenó-
ANDRE RECNIK
De acordo com a teoria da gravidade
de Einstein-Cartan-Sciama-Kibble, o
nosso universo poderia muito bem
ser o interior de um buraco negro de
outro universo.

70
ESO / ESA / HUBBLE

O que há dentro de um
buraco negro?
A sua existência explicaria que existam grandes concentrações de
massa em áreas do espaço que parecem vazias vistas ao telescópio.

O
s buracos negros têm dado dores vitacional do Sistema Solar, como também
de cabeça aos astrofísicos desde mostrava o que acontece se uma massa esti-
dezembro de 1915, quando o as- ver suficientemente concentrada: a curvatura
trónomo alemão Karl Schwar- do espaço nas regiões próximas atinge uma
zschild, diretor do Instituto As- tal magnitude que o deixa isolado do resto do
trofísico de Potsdam, Alemanha, deduziu a sua cosmos e qualquer pessoa que se apresse a en-
existência das equações da relatividade geral trar nele ficará irremediavelmente perdida.
de Albert Einstein. Enquanto lutava na frente Estamos perante um funil cósmico, um bura-
russa durante a Primeira Guerra Mundial, Sch- co negro. Isto porque, de acordo com a relati-
warzschild encontrou uma solução analítica vidade geral, a gravidade nada mais é do que
para o problema de uma massa de pontos no a curvatura do espaço causada pela presença
espaço vazio. Mas não pôde desfrutar do seu de corpos com massa. Quanto mais compata
feito: nas trincheiras, contraiu uma doença de e maciça for uma estrela, maior será a distor-
pele, o pênfigo, que o levou à sua sepultura a 11 ção do espaço e, portanto, mais intensa será
de maio de 1916. a gravidade. O físico teórico americano John
A solução encontrada por este astrónomo Archibald Wheeler resumiu da melhor forma
não só explicava corretamente o campo gra- o significado da teoria Einsteiniana: “O espaço

178
diz à matéria como se mover; a matéria diz ao lhar no coração do buraco negro, a singularida-
espaço como se curvar”. de central. Este é um lugar estranho onde toda a
Se viajássemos para um buraco negro, nu- massa do buraco - entre dez e centenas de mi-
ma tentativa intrépida e suicida de exploração, lhões de vezes a massa do Sol - é condensada, e
sentiríamos que nos puxaria mais para os pés onde a densidade e a gravidade assumem um va-
do que para a cabeça. Isto porque a gravidade é lor infinito. A singularidade constitui uma rutu-
mais forte quanto mais perto estamos do objeto. ra total do espaço e do tempo, o fim da existência
Como o campo gravitacional da Terra é fraco, da matéria. É como uma lágrima espantosa no
os nossos corpos não notam este efeito, mas no tecido do universo. Para muitos, é a maior crise
campo intenso criado pelo buraco, uma diferen- que a física alguma vez enfrentou. Não sabemos
ça de um metro e meio é suficiente para o notar. o que se passa ali, porque não temos uma teo-
Além disso, sentir-nos-íamos como se esti- ria para o descrever. Talvez, quando uma teoria
véssemos a ser comprimidos lateralmente nu- quântica da gravidade for formulada, possamos
ma camisa de forças, uma vez que todos os pon- ser capazes de aventurar algo mais.
tos do nosso corpo estão dirigidos para o cen-
tro matemático do buraco. Esta combinação CONTUDO, O FACTO DE AS NOSSAS TEORIAS
de alongamento e compressão, a que se chama FALHAREM DENTRO DE um buraco negro não
força de maré, aumenta de tal forma que somos significa que não possamos especular sobre
literalmente esmagados. Em poucos segundos, isso, muito pelo contrário: a falta de uma teo-
cruzaríamos o limite que separa o interior do ria aceitável faz dos buracos negros uma fonte
buraco negro do exterior: o horizonte do even- quase infinita de possibilidades para desenvol-
to ou o limite de nenhum retorno, onde a ve- ver as ideias mais extravagantes. Por exemplo,
locidade de fuga coincide com a velocidade da para o cientista polaco Nikodem Poplawski da
luz. Qualquer pessoa que o atravesse fica presa, Universidade de Indiana (EUA), todo um uni-
sem qualquer ligação possível com o resto do verso pode existir dentro de um buraco negro.
universo, e nada do que possa acontecer dentro Baseou isto numa versão modificada da relati-
dele será visto, ouvido ou conhecido por nada vidade geral conhecida como a teoria da gra-
no exterior. vidade Einstein-Cartan-Sciama-Kibble. Tem
em conta uma propriedade das partículas su-
NO ENTANTO, OS QUE ESTÃO NO EXTERIOR batómicas conhecida como spin, o que, para o
VERÃO as coisas de forma diferente. Todos os dizer de forma muito simples, implica assumir
nossos movimentos tornar-se-ão progressi- que as partículas rodam à sua volta. Quando
vamente mais lentos e verão o tempo do nos- isto é levado em conta, o colapso gravitacional
so relógio a correr cada vez mais devagar, até que dá origem ao buraco negro é interrompi-
chegar a uma paragem completa no horizonte do e um novo espaço-tempo é formado dentro
do evento. Teriam de esperar um tempo infini- dele. Assim, aparece um universo filho, ligado
to para nos verem atravessá-la, enquanto nós a ao seu universo parental através de um cordão
atravessaríamos em poucos minutos. Porque o umbilical chamado ponte Einstein-Rosen ou
universo é como é, não como gostaríamos que wormhole. E podemos ir mais longe: talvez,
fosse. para descobrir o que esconde no seu interior,
Se tivéssemos suportado a viagem sem sermos baste olhar à nossa volta, porque o nosso uni-
despedaçados pelas forças das marés, uma vez verso pode ser o interior de um buraco negro
dentro, o nosso destino inevitável seria mergu- existente num outro universo... e

Esta é a primeira imagem de


um buraco negro, captada pelo
telescópio Event Horizon
Telescope. O corpo em questão
está localizado no centro da
galáxia Messier 87, a uma
distância de 55 milhões de
anos-luz.
EHT

179
71 De onde vêm as
grandes estruturas
do universo?
A ciência ainda não explicou a origem da Grande Muralha de Hércules,
uma parede de galáxias que preenche a nona parte do cosmos.

N
o universo existem verdadeiras dão de catorze aglomerados ricos em galáxias
megacidades cósmicas, como que se estendem por mais de mil milhões de
a Cidade do México ou Tóquio. anos-luz - aos quais devemos acrescentar 31
Estamos a falar de aglomerados aglomerados mais pobres de menos de cin-
galácticos. Alguns exemplos são quenta galáxias por aglomerado - que enchem
Virgo e Coma Berenices. A primeira, mais pró- e estendem esse cordão a uma distância que
xima de nós, está localizada a 50 milhões de pode chegar aos 2 mil milhões de anos-luz.
anos-luz de distância e contém vários milhares Contudo, desde 2014, os supercúmulos de
de galáxias. A de Coma é uma das galáxias mais Virgo e Aquário, mais os supercúmulos Hidra-
densamente povoadas, contendo três a cinco -Centauro e de Pavo-Hindus, são englobados
vezes mais galáxias do que de Virgo. Estas va- por uma estrutura maior, o supercúmulo La-
riam desde galáxias anãs a monstros como as niakea - do Havaiano “céus incomensuráveis”.
cD, os maiores sistemas estelares do universo, Com 520 milhões de anos-luz de tamanho, é o
dez a cem vezes o tamanho da Via Láctea. Tal lar de mais de 100 000 galáxias do tamanho da
como as cidades, cada aglomerado tem as suas Via Láctea, juntamente com um número des-
próprias características e demografia únicas. conhecido de galáxias mais pequenas. Estamos
Por exemplo, os três membros mais brilhantes na periferia de Laniakea.
do nosso pequeno aglomerado, o Grupo Local,
são galáxias em espiral - a Via Láctea é uma de- PODEMOS PORTANTO DIZER QUE AS ESTRE-
las - mas no aglomerado Coma são elípticas. LAS ESTÃO AGRUPADAS EM GALÁXIAS e es-
Porquê? não sabemos. tas, por sua vez, em aglomerados, que não se
formaram em regiões solitárias, mas na com-
ALÉM DISSO, AS CIDADES CÓSMICAS NÃO panhia de outras, onde centenas de galáxias
TÊM FRONTEIRAS BEM DEFINIDAS e estão- formam pontes para criar estruturas maiores,
ligadas por pontes de galáxias. O aglomerado os superaglomerados .
Virgo é como uma saliência que cresceu de Gradualmente, porém,descobrimos que as
um filamento muito longo de outros grupos de coisas não são tão simples como acabámos de
galáxias que se afastaram de nós durante 300 descrever. No universo, existem mega-estru-
milhões de anos-luz em direção a outro aglo- turas que desafiam a explicação e não sabemos
merado rico em galáxias, Abell 1367 na conste- bem o que estão lá a fazer. Sem ir muito longe,
lação de Leão. Este agrupamento está no centro todo o nosso universo local dirige-se para um
do supercúmulo de Virgo, ao qual o Grupo Lo- ponto na direção das constelações Hidra e Cen-
cal também pertence. tauro a uma velocidade de mais de dois milhões
Um dos grandes problemas para os astróno- de quilómetros por hora. Existe uma anomalia
mos é decidir quando um conjunto de agru- gravitacional conhecida como o Grande Atrac-
pamentos forma um supercúmulo. Até alguns tor, que encerra uma massa de 10 000 triliões
anos atrás, o aglomerado Virgo era um objeto de sóis e cujo centro se encontra entre 150 e
distinto do supercúmulo de Aquário, um cor- 250 milhões de anos-luz de distância de nós. E
SPL

180
As galáxias são distribuídas em
AGE

aglomerados, que se ligam para formar


superaglomerados, separados por áreas
vazias que podem estar a centenas de
milhões de anos-luz de distância. 181
Cada ponto desta imagem é uma das
100 000 galáxias contidas no supercúmulo
Lanieake (amarelo). As linhas indicam a
direção em que se movem e o ponto
MARK GARLICK / SPL

vermelho aponta para a Via Láctea.

para se ter uma ideia de como as coisas estão a historicamente chamam a zona de evasão: evi-
correr, esta estrutura é agora considerada como tam olhar nessa direção porque é aí que se situa
estando no centro de Laniakea. o plano de poeira que contém a Via Láctea.
Esta estrutura, visível do hemisfério sul e No entanto, alguns cientistas pensam que
localizada na área das constelações Triângulo não estamos apenas a ser atraídos pelo Grande
Austral e Norma ou Regra do Carpinteiro, foi Atractor, mas por uma região muito mais maci-
revelada pela primeira vez em julho de 1986 ça por detrás dele. Este é o aglomerado Shapley,
durante uma conferência em Santa Cruz (Cali- um conjunto de 17 aglomerados de galáxias a
fórnia, EUA). Aí, um grupo de sete jovens as- cerca de 650 milhões de anos-luz de distância.
trónomos demonstrou a sua existência, que era E, para piorar a situação, outros astrónomos
suspeita desde 1973. Como é possível que algo acreditam que pode haver algo ainda maior por
como isto tenha passado despercebido até en- detrás de Shapley, pois o movimento do Gru-
tão? Porque se encontra no que os astrónomos po Local não pode ser explicado invocando só

182
Em 2010, o Observatório
ALMA em Atacama, Chile,
detetou catorze galáxias
colidindo para formar o
núcleo de um aglomerado
maciço de galáxias.
NRAO / AUI / NSF

a atração gravitacional do Grande Atractor - A verdade é que desafia uma das ideias mais
abaixo - e do supercúmulo de Shapley. acarinhadas pelos astrónomos, o princípio
É claro que as surpresas não acabam aí. cosmológico, a hipótese de que o universo
Olhando para lá do Grande Atractor, a 250 mi- é homogéneo - todos os seus pontos são se-
lhões de anos-luz de distância, há uma enorme melhantes - e isotrópico - vemos sempre a
folha de papel cósmica, a Muralha de Coma ou mesma coisa, independentemente da forma
Grande Muralha CfA2. Descoberta em 1989, é como olhamos - a distâncias suficientemente
uma parede de galáxias de dimensões homéri- grandes. Mas quão grande é suficientemente
cas: 500 milhões de anos-luz de comprimento, grande? Os astrónomos estavam convencidos
330 milhões de anos-luz de largura e apenas 15 de que o momento em que as superestrutu-
milhões de anos-luz de espessura. Poderá tal ras cósmicas desapareceram em aborrecida
coisa existir realmente no universo? homogeneidade foi em torno de distâncias
de mil milhões de anos-luz, um número que
SEM DÚVIDA. E A PROVA É QUE TÊM SIDO EN- grandiloquentemente apelidaram de o fim da
CONTRADAS PAREDES cada vez maiores. Uma grandeza. Ninguém esperava qualquer tipo
delas foi anunciada em 2003: a Grande Muralha de organização cósmica para além dessa dis-
de Sloan, quase 2,75 vezes maior do que a Mura- tância. Bem, a Grande Muralha de Hércules-
lha do Coma. Tem 1380 milhões de anos-luz de -Coroa Boreal é oito vezes esse limite: é tão
longitude e localiza-se a mil milhões de anos-luz grande, tão complexa, e detém tanta massa
de nós. Tem um tamanho vertiginoso: o seu diâ- que não há forma de explicar o que está lá a
metro é um sexagésimo do universo visível. Mas fazer ou como poderia ter-se formado apenas
o melhor ainda está para vir: contra todas as pro- 3 mil milhões de anos após o big bang. A sua
babilidades, existe uma estrutura ainda maior, a existência diz-nos alto e bom som que há algo
Grande Muralha de Hércules-Coroa Boreal. É um de errado com a nossa cosmologia, e nós não
verdadeiro monstro, algo inconcebível. Tem mais sabemos o quê. e
de 10 mil milhões de anos-luz de comprimento,
7,2 mil milhões de anos-luz de largura e 700 mi-
lhões de anos-luz de espessura. Este colosso cós-
mico foi descoberto em novembro de 2013 utili-
zando dados da Swift Gamma-ray Burst Mission e
do telescópio de raios Gama Fermi.
Como pode haver uma estrutura que ocupa,
no seu lado mais longo, um nono do Universo
visível? O astrónomo John Hakkila da Universi-
dade de Charleston (EUA) disse em 2019 que es-
te muro “é maior do que o limite superior que a
teoria diz que as maiores estruturas do universo
deveriam ter”. Não deveria estar lá, mas está lá”.
ESO

183
72 O que é a energia
escura?
Há duas décadas, foi descoberta a energia do vácuo, invisível e
imune à força da gravidade, que tende a acelerar o cosmos.

E
m dezembro de 1997, o Telescópio Es- dos números mais importantes em cosmolo-
pacial Hubble detetou um tremendo gia, o parâmetro de desaceleração, que é res-
clarão que aconteceu há 10 mil milhões ponsável pela mudança na taxa de expansão
de anos. Era uma supernova, apelidada do universo. Não surpreendentemente, todos
1997ff, que explodiu numa galáxia elíp- os cosmólogos estavam convencidos de que a
tica. Foi a supernova mais distante jamais obser- expansão estava a abrandar, como convém a
vada e a prova mais importante de que o nosso qualquer explosão que se preze.
universo é mais estranho do que poderíamos ter
imaginado. Mostrou que dois terços de tudo o MAS O QUE ENCONTRARAM APANHOU-OS
que nele se encontra existe sob a forma de uma DE SURPRESA. Consistentemente, todas as
energia escura que funciona em grandes esca- supernovas em galáxias distantes apareceram
las, como se fosse gravidade negativa . 20% mais fracas do que o esperado. Não podia
A sua existência foi anunciada ao mundo em ser. Fiel ao adágio de Sherlock Holmes “uma
1998 por dois grupos de astrónomos: o Super- vez que se exclua o impossível, o que quer que
nova Cosmology Project (SCP), liderado por reste, por mais improvável que seja, é verdade”,
Saul Perlmutter –na imagem–, do Laboratorio ambos os grupos chegaram à mesma conclusão.
Nacional Lawrence Berkeley (EUA.), e o High- Aparentemente, o universo tinha-se expandido
-Z Supernova Search Team, dirigido por Brian 10% mais rapidamente nos últimos mil milhões
Schmidt, da Universidade Nacional Australiana de anos. Isso significa que deve haver algo que
em Camberra. Ambos foram galardoados com exerça algum tipo de repulsa, afastando as galá-
o Prémio Nobel em 2011. xias mais rapidamente do que o esperado .
O que estes dois grupos faziam era procurar Mas para ter a certeza de que tudo o que an-
supernovas em galáxias distantes, medir a sua teriormente se acreditava sobre a expansão
distância, e assim determinar o valor de um cósmica era errado, era necessária uma prova

NASA

Ao observar as supernovas
distantes, os cientistas desco-
briram que o universo estava
a expandir-se 10 % mais de-
pressa do que o esperado .
irrefutável. E esta chegou sob a forma da super-
nova 1997ff, que foi duas vezes mais brilhante
do que qualquer explicação que não envolvesse
uma expansão acelerada do universo previa. A
conclusão é que algo no cosmos está a ultra-
passar a gravidade - a força que tende a abran-
dá-la - e a acelerá-la. Isto destapou a caixa de
pandora, e os cosmólogos começaram a esfre-
gar as mãos: tinham um novo brinquedo para
se divertirem. E, sendo personagens com uma
imaginação prodigiosa, decidiram pôr fim ao
monopólio da gravidade e introduziram uma
entidade surpreendente e quase inacreditável:
a energia escura. Foi algo de tal envergadura
que, nas palavras do cosmólogo da Universida-
de de Princeton Paul Steinhardt, “a revolução

BERKELEY LAB
da energia escura é tão importante como a re-
volução copernicana”.
É claro que nem todos concordaram. Astró-
nomos de renome como Joseph Silk da Uni- nho de um protão e apuramos que é da ordem
versidade de Oxford (Inglaterra) disseram que de mil bilionésimas de metro. Ora, de acordo
“espero que desapareça”. O grande Michael com as nossas melhores teorias, teria de ser
Rowan-Robinson do Imperial College London de facto cem mil milhões de sextilhões de me-
(Inglaterra) foi ainda mais contundente: “Sou tros. Ou seja, o protão deveria ser muito, mui-
cético quanto à repulsão cosmológica”. Não o to maior do que o universo visível! Claramente,
podemos culpar: ninguém sabia ao certo o que algo está errado com esta teoria.
era ou de onde vinha esta energia fantasmagó-
rica que não reside em nenhum objeto do uni- ENTÃO O QUE É A ENERGIA ESCURA? SE O
verso, mas no próprio espaço. PROBLEMA ACIMA REFERIDO PUDER SER RE-
SOLVIDO e acabar por ser uma constante cos-
AS APOSTAS SOBRE O QUE É ESTE ESQUIVO mológica, responder à pergunta levar-nos-ia di-
FENÓMENO DIVIDEM-SE EM DOIS. Os primei- retamente à física do muito pequeno, à mecânica
ros apontam para uma constante cosmológica, quântica. De acordo com a mecânica quântica, o
imutável no tempo. Tem remeniscências do vácuo - entendido como a ausência de matéria e
termo introduzido por volta de 1917 por Al- energia - não existe. Pelo contrário, trata-se de
bert Einstein, porque as suas equações de re- um viveiro de partículas que aparecem e desa-
latividade geral resultaram num universo em parecem em menos de um suspiro. Esta energia
expansão, que se pensava então ser estático. do vácuo tem um efeito visível sobre o universo,
A segunda opção é que a energia escura muda dando-lhe aquele impulso extra.
com o tempo. Mas se mudar com o tempo, se for quintes-
Desde o final do século XX, os físicos teóri- sência - o nome que lhe foi dado por Rahul
cos têm tentado decidir entre os dois, mas não Dave da Universidade da Pensilvânia em 1998 -
conseguiram ver a luz ao fundo do túnel. De então estamos a lidar com uma forma de ener-
facto, desde o início deste século, as explica- gia que atravessa o universo observável a partir
ções têm vindo a multiplicar-se, embora a ideia da abstrusa teoria quântica de campos. Segun-
de que se trata de uma constante cosmológica do esta, as partículas não passam de vibrações
continue a ser a mais popular. Se assim for, a num campo quântico, uma modificação da es-
física enfrenta um enorme problema: qual- trutura do espaço em que vivemos.
quer teoria atual prevê que tem um valor que é Em suma ,tudo sobre este fenómeno no cos-
1060- um 1 seguido de 60 zeros - maior do que o mos é misterioso. Talvez ninguém tenha ex-
observado pelos astrónomos. Esta é a previsão pressado melhor os sentimentos de grande
mais desastrosa da ciência e um dos problemas parte da comunidade física do que o prémio
fundamentais da física do século XXI. Nobel Steven Weinberg: “É difícil para os físi-
Para ter uma ideia do seu significado, imagi- cos enfrentarem este problema sem saberem o
ne que medimos experimentalmente o tama- que é que precisa de ser explicado”. e

185
A chave para a matéria escura pode estar
no neutrino, uma partícula que não
interage com nenhuma outra.
O observatório IceCube na Antártida- ver
página seguinte - detetou 28 neutrinos de
alta energia de origem cósmica em 2013.

SHUTTERSTOCK
73 De que é feita a matéria
escura?
Esquiva e invisível, é a única explicação para as grandes
quantidades de massa nos buracos negros ou entre galáxias.

E
m 1933, o heterodoxo astrónomo e Vera Rubin descobriu, enquanto observava a
físico suíço de origem búlgara Fritz rotação das galáxias em espiral, que para a ex-
Zwicky decidiu pesar o cúmulo de plicar precisava de mais massa do que a que se
galáxias na constelação de Coma Be- encontra sob a forma de estrelas e nebulosas.
renices, medindo o movimento das Na Via Láctea, as estrelas viajam pelo espaço
galáxias. Ao fazê-lo, descobriu que se moviam a cerca de 240 km/s, independentemente de
a velocidades muito elevadas, na ordem de estarem perto do centro galáctico ou na peri-
mil quilómetros por segundo. Não era preciso feria. Isto porque existe uma esfera envolvente
ser muito avisado para ver que isto represen- de matéria escura. Na nossa região galáctica, os
tava uma dificuldade séria. Se a massa total astrónomos inferem que existe uma massa dez
do aglomerado fosse apenas a massa contida vezes superior à de toda a massa visível. E que
nas galáxias - aquela que é visível através dos mais de 90 por cento da massa total dos aglo-
nossos telescópios - elas já teriam sido espa- merados de galáxias está sob a forma de matéria
lhadas pelo espaço, porque a sua massa total escura não visível.
não é suficiente para as manter juntas gravi-
tacionalmente. No entanto, como o aglome- MAS O QUE É REALMENTE ESTA ENIGMÁTI-
rado não se tinha evaporado, só restava uma CA MATÉRIA? Das estrelas de baixa massa aos
explicação: havia mais matéria do que se pode buracos negros, a caça a esta matéria em fal-
ver através de telescópios. Zwicky concluiu ta é um dos problemas mais importantes da
que a massa oculta de Coma Berenices devia astrofísica do século XXI. Essencialmente, os
ser da ordem do dobro do tamanho visível sob candidatos à matéria escura podem ser dividi-
a forma de galáxias. Mas ele ficou aquém das dos em três categorias: matéria escura quente,
expetativas, porque hoje sabemos que é dez matéria escura fria e matéria escura ordinária
vezes maior. ou bariónica.
Esta massa em falta, como Zwicky lhe cha- A última das três é a mais fácil de imaginar.
mou, dormiu o sono dos justos durante quase E é também o mais difícil de justificar. Esta,
meio século. Em 1977, a astrónoma americana matéria ordinária, que ainda não conseguimos

186
detetar encontrar-se-ia sob a forma de corpos Contudo, se olharmos para a forma como
semelhantes a Júpiter, estrelas anãs casta- prevêem a distribuição em grande escala das
nhas, buracos negros, galáxias anãs... Por ou- galáxias, ambos os modelos têm problemas. A
tras palavras, naquilo que são maliciosamen- matéria escura fria tem dificuldade em explicar
te chamados MACHO -Massive Compat Halo os grandes vazios e os filamentos e aglomera-
Objets, ou seja, objetos de auréola galáctica de dos de galáxias que se observam no universo.
alta massa -. E, também, nas RAMBO -Robust Entretanto, a matéria escura quente vai longe
Associations of Massive Baryonics Objects, -, demais, e prevê demasiada estrutura. Solução?
que não seriam mais do que acumulações de Totalmente salomónica: matéria escura exótica
MACHO. Embora possam existir, a maioria é uma mistura de fria e quente.
dos astrónomos duvida, porque, se se fazem
cálculos, obtém-se números assustadores: 5 CONTUDO, O CONSENSO ATUAL TENDE A
triliões de estrelas escuras contra 200 biliões FAVORECER O MODELO FRIO, uma vez que
de estrelas luminosas. Parece irrefutável que é consistente com as flutuações da radiação
este tipo de matéria escura não pode explicar cósmica de fundo de microondas. Mas a ques-
o que acontece em aglomerados e superaglo- tão do milhão de dólares é: De que é feita es-
merados de galáxias. Para explicar as observa- ta matéria escura fria? Talvez sejam WIMPs -
ções, devemos recorrer a um tipo completa- Weakly Interacting Massive Particles. Sob este
mente diferente. nome de detergente, toda uma série de ele-
mentos são agrupados, nascidos das equações
É FASCINANTE COMO OS COSMÓLOGOS dos peritos, em teorias que visam unificar os
PODEM FALAR DE UMA MATÉRIA que não só constituintes da matéria e as forças elemen-
não viram, como não fazem ideia de como ela tares sob uma única expressão. Ou, por outras
é. O único inconveniente é justificar, de forma palavras, uma única superpartícula - ou su-
razoável, o que fazem e como estes espécimes perforça.
chegaram ao espaço frio intergaláctico. Apesar Claro que há detratores da ideia de que exis-
de tal desvantagem, os cosmólogos classificam te um tipo de matéria que não vê nem interage
esta matéria exótica desconhecida em dois ti- com a matéria comum - exceto gravitacional-
pos: quente e fria. Estes são dois termos cos- mente. Para o antigo laureado com o Nobel da
mológicos que se referem à velocidade a que as física Abdus Salam do Imperial College London
partículas que a compõem se movem. Se tive- (Inglaterra), a matéria escura é como os invisí-
rem uma massa da ordem da do protão, então veis djinns - génios - em As Mil e uma Noites.
mover-se-ão lentamente: isto é matéria fria. Outros físicos, contudo, argumentam que não
Mas se forem mais leves, viajarão a velocidades existe e que o que precisamos é de uma nova
próximas da velocidade da luz: esta é uma ma- física. Isso significa modificar uma das teo-
téria quente. O candidato mais popular à ma- rias mais sacrossantas da física do século XX,
téria escura quente é o neutrino, uma partícula a relatividade geral. Argumentam que, tal co-
enormemente peculiar, uma vez que interage mo a gravitação newtoniana não explica o que
com praticamente nada. Pode passar por um acontece quando temos campos gravitacionais
bloco de chumbo de dezenas de anos-luz sem fortes, talvez a relatividade einsteiniana não se
o saber. aplique a grandes distâncias. Qualquer que seja
Então porque é que os cientistas fazem a dis- a solução, a única certeza é que a matéria escu-
tinção entre os dois tipos? Porque a existência ra está connosco há quase noventa anos e ainda
de um ou de outro decide como o universo foi não sabemos que diabo é. e
construído. A partir de diferentes simulações
da distribuição em grande escala de galáxias
tendo em conta modelos de matéria escura fria
e quente, emergem dois resultados surpreen-
dentemente diferentes. Enquanto o modelo
frio assegura a formação de estruturas de bai-
xo para cima - as galáxias aparecem primeiro
e depois aglomerados e super aglomerados - o
modelo quente faz precisamente o oposto, ou
seja, as galáxias aparecem por fragmentação de
estruturas maiores.
AGE
A ciência segue os passos da
imaginação literária em busca
de outros planetas onde a vida
poderia florescer como acontece
com o nosso.

74 Haverá mais seres


vivos no universo?
As condições extremas sob as quais alguns organismos sobrevivem
no nosso planeta abrem a porta à ideia de que tudo é possível.

S
empre houve pessoas que pensaram Mas foi só em 1954 - mais de 2500 anos de-
que nós não somos únicos. Um deles pois - que o biólogo de Harvard George Wald
era o grego Anaxímenes, que viveu cer- mencionou explicitamente a possibilidade
ca de 600 a.C. Anaxímenes era de Mi- de, num cosmos tão vasto, poderem existir
leto, assim como o grande matemático outros planetas contendo vida. Da mesma
Tales. Pensava, no que parece ser uma incrível forma, o geneticista e biólogo evolucionário
profecia cumprida, que o número de mundos britânico John Burdon Sanderson Haldane
como o nosso em todo o universo era infinito, e (1892-1964) observou que o advento da era
sugeria que a vida surgiu na lama dos oceanos espacial permitiria elucidar se existia algum
e gradualmente se foi adaptando ao ambiente astroplâncton na poeira lunar e assim testar
em que vivia. a panspermia.

188
Esta crença na existência de vida E.T. para além
das bactérias e outros organismos unicelulares
está bem implantada no nosso inconsciente. Seja
graças aos filmes de fição científica ou à incansá-
vel propaganda de numerosos cientistas, trata-se
de um dogma quase inabalável. “Se estivéssemos
sozinhos... que desperdício de espaço”, disse Jo-
die Foster no filme Contacto, baseado no roman-
ce homónimo do conhecido Carl Sagan. Deixando
de lado a teleologia pueril que esconde tal afirma-
ção - como se o cosmos se preocupasse de todo
com a existência de apenas uma espécie inteli-
gente - o que está por detrás desta frase grandilo-
quente é o reconhecimento da mediocridade, que
foi habilmente exposta pelo já mencionado Sagan
e pelo astrofísico russo Iosif S. Shklovskii no seu
livro de 1966 A Vida Inteligente no Universo.

SEGUNDO ELES, NEM OS HUMANOS NEM O


NOSSO PLANETA SÃO “ESPECIAIS”. Ou seja,
uma vez que os materiais e as leis pelas quais a
vida é construída não são raros no universo, só
precisamos de conceder um período de tempo
razoável para que apareçam naturalmente. E,
como a evolução da vida também não está sujei-
ta a quaisquer condições especiais, uma vez que
começa, é também uma questão de tempo até
SHUTTERSTOCK

que a inteligência apareça.


No entanto, nem todos os cientistas pensam
assim. Uma ideia generalizada entre os céticos da
Esta hipótese postula que a vida - ou pelo me- vida extraterrestre é a hipótese rara da Terra, um
nos os seus componentes básicos - não surgiu na tiro contra a linha de água da astrobiologia mais
Terra, mas veio do espaço exterior. Foi enuncia- otimista do geólogo Peter D. Ward e do astrónomo
da pela primeira vez pelo químico sueco Svante Donald Brownlee. Assumem que a vida é comum
Arrhenius em 1903, quando sugeriu que formas no universo, sim, mas apenas nas suas formas mais
microscópicas de vida, tais como esporos, po- simples, que têm demonstrado a sua capacidade
diam ser encontradas no espaço e, de tempos a de sobreviver nos ambientes mais extremos. O
tempos, cair sobre um planeta, e depois semeá- mesmo não se pode dizer da vida animal superior,
-lo com vida. Será isto possível? Talvez. Em 1972, que é muito mais sensível às condições ambientais.
um meteorito, conhecido como Murchinson, Quanto a imaginar um cosmos repleto de bio-
caiu na Austrália e foram encontrados 74 ami- diversidade... Pensemos antes de mais nas ga-
noácidos, 55 dos quais eram de provável origem láxias: nem todas são adequadas para isso. Nas
extraterrestre. galáxias ativas, os seus núcleos emitem fluxos de
radiação de alta energia que são capazes de este-
HÁ ASTROBIÓLOGOS QUE PENSAM QUE A VIDA rilizar qualquer tentativa de encher um planeta
É, COMO DISSE O BIOQUÍMICO e Prémio Nobel de vida. Além disso, uma galáxia de baixa me-
da Medicina Christian De Duve(1917-2013), um talicidade, isto é, com poucos elementos como
imperativo cósmico. A começar pela abundância ferro, carbono, fósforo ou sódio, é inviável para
de planetas extra-solares que temos vindo a des- a emergência de planetas rochosos. Este é o caso,
cobrir desde 1995, uma condição sine qua non por exemplo, das galáxias elípticas.
para o aparecimento da vida. A verdade é que, Mesmo que tenhamos uma galáxia adequada,
dados os milhões de galáxias no universo, cada tal como a nossa Via Láctea, isto não significa
uma com mais de cem mil milhões de estrelas, é que qualquer localização seja adequada. As re-
difícil acreditar que a Terra é o único planeta com giões próximas do centro não são habitáveis de-
seres vivos na sua superfície. vido aos elevados níveis de radiação. O centro da

189
De acordo com alguns cientistas, pode ter
sido um meteorito carregado de esporos que
semeou os primórdios da vida na Terra.

SHUTTERSTOCK

cional à sua massa: quanto mais massa tiver, mais


Os microrganismos Rio Tinto
cedo desaparece. Assim, a estrela deve ser de bai-
alimentam-se de enxofre e ferro.
xa massa, mas não demasiado baixa; as estrelas
de baixa massa têm a desvantagem de emitirem
pouca energia. Tendo em conta que 95% das es-
trelas da nossa galáxia têm uma massa inferior à
do Sol, e acrescentando isto ao acima exposto, as
hipóteses de a vida aparecer numa estrela da Via
Láctea não são tão grandes como parece a priori.

E TUDO ISTO SEM TER EM CONTA AS CONDI-


ÇÕES QUE O PLANETA DEVE PREENCHER: de-
ve ser rochoso e à distância certa do seu sol - na
LBM

chamada zona continuamente habitável - onde


Via Láctea emite a mais energética quantidade de a sua temperatura é tal que a água líquida pode
radiação gama de todas as galáxias, 250 000 ve- existir ao longo do tempo. Esta última é com-
zes mais do que o nosso planeta, o que nos leva plicada, porque as estrelas não mantêm o seu
a definir uma esfera estéril em torno do centro brilho estável ao longo da sua vida. Por exem-
galáctico de pelo menos 10 000 anos-luz de raio. plo, há 4 mil milhões de anos atrás, o nosso sol
Por outro lado, as regiões afastadas do centro era 30% menos luminoso do que é hoje.
galáctico também não são um lugar válido, por- Mas não termina aqui. Os defensores da terra
que têm uma escassez significativa de elementos rara salientam também que, além disso, o pla-
pesados - ferro, carbono, azoto, níquel, magné- neta deve satisfazer certos requisitos para que a
sio, etc. - que são essenciais para a formação de vida seja viável. Primeiro, precisa de ter a tec-
moléculas de vida. E se acrescentarmos a isto o tónica de placas necessária para produzir um
facto de que a evolução biológica requer tempo, efeito natural de estufa que mantenha o planeta
isto implica que a estrela deve ter uma vida útil quente, como é o caso na Terra; se não fosse por
mínima de pelo menos 5000 milhões de anos. dois gases com efeito de estufa, vapor de água
Isto impõe uma limitação importante, porque a e dióxido de carbono, a temperatura média na
vida útil de uma estrela é inversamente propor- Terra estaria entre -18°C e -24°C.

190
O tardígrado microscópico, ou urso de
água, pode sobreviver no vácuo do
espaço e a temperaturas
entre -200°C e 150°C.

SHUTTERSTOCK

Além disso, parece que um planeta geologi-


camente ativo tem um campo magnético sufi-
cientemente forte para evitar o efeito nocivo dos
raios cósmicos, que são letais para a sobrevivên-
cia do ADN. Dizem mesmo que a existência de
vida num planeta exige que este tenha um sa-
télite relativamente grande, como a nossa lua.
Sem ela, a orientação do eixo terrestre não seria
estável e sofreria variações caóticas ao longo do
tempo. As consequências climáticas desta situa- Em 1966, a NASA encontrou o que poderiam ser
ção seriam catastróficas para a vida . micróbiosfósseis num meteorito de Marte.

NASA
PORÉM NEM TODOS OS ASTROBIÓLOGOS
SÃO TÃO PESSIMISTAS. Por um lado, sabemos Se há uma coisa que devemos aprender com a
que a vida a nível bacteriano é robusta e pode astrobiologia, é que a vida não tem de ser como
suportar as condições mais adversas. A prova a imaginamos. E isto é verdade no nosso pla-
pode ser encontrada em organismos que po- neta, onde formas de vida cada vez mais estra-
dem viver em fontes onde a temperatura é de nhas têm sido descobertas. Um exemplo são os
82°C, outros que se sentem em casa em ácido microorganismos do rio Tinto em Huelva, que
sulfúrico puro, e outros que vivem em locais não precisam de luz solar nem de se alimentar
onde as concentrações de sal são tão elevadas de outros organismos para viver; são quimoli-
que impedem a vida de outros organismos. Esta trofos, e basta-lhes oxidar compostos inorgâni-
vasta panóplia de extremófilos mostra que uma cos formados por enxofre e ferro, que são muito
vez que a vida emerge, acaba por ocupar os lu- abundantes nessa área. Dado isto, não há dúvida
gares mais improváveis. De facto, a perfuração de quão inimaginável poderia ser a vida noutro
em 1987 perto do rio Savannah, na Carolina do lugar. Porque o problema de colocar condições
Sul, revelou todo um ecossistema microbiano cósmicas no aparecimento da vida no universo,
a meio quilómetro de profundidade na crosta olhando apenas para um exemplo, a Terra, é co-
terrestre. Sabemos agora que algumas bactérias mo tentar definir o que é um mamífero quando o
vivem até 3,5 km de profundidade. único que se observou é uma vaca. e

191
É este o aspeto que teria
uma estrela variável azul no
momento da sua morte, em
que explodiria para dar
lugar a um buraco negro.

75 O que está a acontecer à


P Cygni?
Embora o seu brilho seja pouco percetível na Terra, é uma estrela
azul luminosa hipergigante, vinte vezes maior do que o Sol.

“O
universo revelou-se per- a Cruz do Norte, localizada no meio daquela faixa
verso. Não nos dá respostas leitosa que atravessa o céu de um lado para o outro
simples”. Há duas décadas e que por vezes é chamada o Caminho de Santia-
atrás, o astrofísico John Hu- go. Mesmo onde os dois braços se cruzam, numa
chra do Harvard-Smithso- área onde abundam aglomerados de estrelas e ne-
nian Center for Astrophysics (EUA) expressou- bulosas escuras, encontra-se P Cygni, uma estrela
-o, tão irónica como categoricamente. O cosmos de quinta magnitude - a olho nu e com bom céu,
provou ter uma capacidade quase infinita para podemos ver até à sexta magnitude. Está a cerca de
surpreender os astrónomos. À medida que no- 5000 anos-luz de nós e podemos ficar surpreendi-
vos e maiores telescópios entram em ação, mais dos ao descobrir que é uma das estrelas mais bri-
e mais incógnitas estão a surgir. lhantes da Via Láctea. Tipicamente, o seu brilho
oscila 20% - 0,2 magnitudes - tornando-a uma es-
UMA DELAS É UMA ESTRELA VISÍVEL NO CÉU DE trela variável, alvo de muitos astrónomos amado-
VERÃO. Sem nos afastarmos demasiado da cons- res que se esforçam por traçar o que se chama a sua
telação da Águia - cuja estrela principal, Altair, é curva de luz ao longo do tempo. Mas esta estrela é
uma das três estrelas mais brilhantes do céu esti- muito peculiar porque, por vezes, a sua luminosi-
val - podemos vaguear pela constelação do Cisne, dade torna-se selvagem.

192
não tinha desaparecido para sempre, e foi vista
novamente em 1655. Durante os anos seguintes,
o seu brilho flutuou em muitas ocasiões e só em
1725 estabilizou na quinta magnitude, que ainda
hoje mantém; exatamente, é a magnitude 4,8.
É que a nossa amada pequena estrela P Cygni
é uma variável luminosa azul hipergigante, um
grupo estelar muito exclusivo onde se encon-
tram tanto as estrelas mais luminosas como as
mais maciças do universo. A sua temperatura de
superfície é cerca de 100 000 °C, quase vinte ve-
zes superior à do Sol, e emite 700 000 vezes mais
energia. Contudo, P Cygni não é um exemplo tí-
pico de uma tal estrela. Normalmente, o brilho
de uma estrela luminosa variável azul flutua ao
longo de anos ou décadas, e de tempos a tempos
tem explosões em que o brilho aumenta drama-
ticamente. No entanto, P Cygni permaneceu
quase inalterada em brilho desde as mudanças
abruptas a que assistimos no século XVII.

DA ANÁLISE DO AMBIENTE DE P CYGNI, PENSA-


-SE QUE TENHA SOFRIDO uma série de grandes
erupções há cerca de 900, 2100 e possivelmen-
ESO

te 20 000 anos. Das observações, sabemos que


O que é realmente impressionante é que P desde que o seu brilho estabilizou, tem vindo
Cygni é um recém-chegado na história da as- a aumentar cerca de 0,15 magnitudes por sé-
tronomia. Ninguém sabia dela até que um astró- culo, o que é atribuído a uma lenta diminuição
nomo e cartógrafo holandês chamado Willem da sua temperatura. Por que razão está isto
Janszoon Blaeu a descobriu a 18 de agosto de a acontecer? Os astrónomos acreditam que
1600. Foi, seguramente, uma grande surpresa, esta estrela se dirige para a sua próxima fase
porque antes não havia lá nada. Em 1603, um as- evolutiva, a de um supergigante vermelha.
trónomo alemão, Johann Bayer, incluiu-a no seu Aparentemente, estamos a observar algo muito
atlas do céu, Uranometria, como uma estrela de difícil de testemunhar: uma curta etapa na vida
terceira magnitude e rotulou-a com a letra P. E de uma estrela muito maciça, que dura apenas
assim permaneceu desde então. Durante seis cerca de 100 000 anos. Não sabemos que novas
anos, a estrela permaneceu brilhante, mas de- surpresas P Cygni esconde, mas o seu fim é cla-
pois, pouco a pouco, começou a desvanecer-se, ro: irá explodir como uma supernova e os seus
até desaparecer de vista em 1626. No entanto, restos acabarão por formar um buraco negro. e

Localizada a 10 000 anos-luz de


nós, Cygnus P é um dos corpos
mais violentos da Via Láctea.
NASA / ESA
AGE

193
Direção Carmen Sabalete
(csabalete@zinetmedia.es)

REDAÇÃO
Redatora chefe Cristina Enríquez
(cenriquez@zinetmedia.es).
Coordenação de design Óscar Álvarez
(oalvarez@zinetmedia.es).

REDAÇÃO EM MADRID
C/ Alcalá, 79. 1º A. 28009 Madrid
Telefone: +34 810 583 412.
E-mail: mhistoria@zinetmedia.es

Colaboram neste número:


Miguel Ángel Sabadell (textos),
Gama Color Servicios
Gráficos Integrados (maquetagem).

Consultora Marta Ariño


Diretor Geral Financeiro Carlos Franco
CRO (Diretor Comercial) Alfonso Juliá
(ajulia@zinetmedia.es)
Diretor de Desenvolvimento de Marca
Óscar Pérez Solero (operez@zinetmedia.es)

DISTRIBUIÇÃO:
V.A.S.P. Distribuidora de Publicaçöes, S.A.
A Super Interessante é uma publicação
registada na Entidade Reguladora
para a Comunicação Social com o n.º 118 348.
Depósito legal: 122 152/98.

© Zinet Media Global, S.L. Esta publicação é propriedade exclusiva


da Zinet Media Global, S.L., e a sua reprodução total ou parcial,
não autorizada, é totalmente proibida, de acordo com os termos
da legislação em vigor. Os contraventores serão perseguidos
legalmente, tanto a nível nacional como internacional. O uso,
cópia, reprodução ou venda desta revista só poderá realizar-se com
autorização expressa e por escrito da Zinet Media Global, S.L.

AGE

A ciência não pode resolver o mistério último da


natureza. E isto porque, em última análise,
nós próprios somos parte do mistério que
estamos a tentar resolver.
Max Planck
Físico e matemático alemão (1858-1947)

Você também pode gostar