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Política Internacional

Cristina Soreanu Pecequilo 90

relativamente estagnada, e retomar a iniciativa política na


Ásia. O modelo proposto foi o de uma “Parceria Transpa- 2.2 A Europa e a Integração Regional
cífica” (TPP – Transpacific Partnership), incluindo os esfor-
ços já em andamento da APEC proposta por Bush pai nos Durante a Guerra Fria, as regiões da Europa Ocidental
anos 1990, intensificando os laços comerciais, políticos e e da Europa Oriental, somadas à Ásia, representaram os dois
estratégicos regionais. Para as Américas, porém, não exis- teatros estratégicos principais na disputa entre as superpo-
tiram iniciativas renovadas como será discutido no item tências. Neste contexto, EUA e URSS consolidaram seu po-
3.4 e, em muitos setores, apesar de ofensivas retóricas, não der econômico, político e estratégico sob suas respectivas
houve transformação tática no engajamento do país em zonas de influência, por meio de organizações como a OTAN
localidades-chave da Eurásia. Por fim, no ano de 2012, o (1949) e o Pacto de Varsóvia (1955) e o COMECON (1949).
foco da presidência tem sido as questões domésticas, prin- Diferente destas demais organizações, cuja lógica
cipalmente as econômicas, no contexto das eleições presi- foi associada quase que unicamente à bipolaridade, des-
denciais de Novembro. de sua criação, a Comunidade Econômica Europeia (CEE)
De Bush pai a Obama, como se pode constatar, a que evoluiu para a atual União Europeia (UE) deteve forte
política externa dos EUA alternou fases de unilateralismo componente de autonomia. Os marcos iniciais do proces-
e multilateralismo, combinadas com um padrão de pola- so foram a instituição da Comunidade Europeia do Carvão
rização social dos debates internos. A combinação destes e do Aço (CECA, 1951) e os Tratados de Roma (1957) que
fatores tem impactos sobre o futuro da hegemonia, e seus instituíram a CEE e a Comunidade Europeia de Energia Atô-
padrões táticos que, por sua vez, afetam o cenário de esta- mica (EURATOM).
bilidade ou instabilidade do cenário internacional. Afinal, Este componente permitiu defini-lo como um proje-
mesmo com as tendências da desconcentração de poder to de identidade europeia, que se tornou referência como o
mundial, os EUA mantêm papel central no sistema global, “tipo ideal” de iniciativas de integração regional. Frente a esta
em meio ao reordenamento do equilíbrio de poder ao dinâmica complexa, que envolve as origens da Guerra Fria, o
Norte e ao Sul. apoio norte-americano ao bloco como mantenedor da paz
continental e, principalmente, contraponto ao modelo socia-
lista soviético, a Europa Ocidental também se viu confrontada
por uma agenda abrangente de desafios no pós-1989.
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Pós-Guerra Fria (1989/2012)

A) Da Queda do Muro ao Tratado de Maastricht dos estrategistas norte-americanos, mas foi superada pela
(1989/1992) prioridade de reforçar o núcleo euro-atlântico e incentivar
a estrutura multilateral regional102.
O projeto de um continente sem fronteiras é recor- A Europa Ocidental também avaliava o papel dos
rente no pensamento europeu desde o século XVII. Porém, EUA em sua integração de forma ambígua: um elemento
foram necessários inúmeros choques estatais deste perío- que garantia a proteção e segurança militar do continente,
do, incluindo as duas guerras mundiais no século XX, e o mas que gerava uma dependência estratégica, empecilho
início de um conflito frio entre superpotências no contexto à autonomia. A partir destas percepções, desde o início, a
da destruição dos anos 1940, para que este ideário, cujas Europa manteve-se dividida em duas correntes, os euro-
origens podem ser encontradas de Jean Jacques Rousseau peístas, liderados pela França, que defendiam uma Europa
a Emmanuel Kant, ganhasse uma voz coesa. mais independente frente os EUA, e os atlanticistas, com
Nos anos 1950, estas visões até então utópicas toma- foco no Reino Unido (Inglaterra) que não percebiam o
ram forma concreta no pensamento de Robert Schuman, projeto europeu como descolado da relação com os EUA.
Jean Monnet e Konrad Adenauer, impulsionando os Tra- Outro debate é o que opõe os defensores do aprofunda-
tados dos anos 1950 citados acima. A leste, à presença da mento (maior institucionalização e caráter supranacional
URSS oferecia um motivador adicional à integração, prote- do arranjo europeu) e os do alargamento (que defendem
gendo as fronteiras ocidentais do avanço do modo de vida a expansão, preservando um caráter fluido da integração e
socialista e sua ideologia. Ainda que os EUA estivessem à de características intergovernamentais).
frente da defesa europeia, o continente buscava uma identi- Esta correlação entre a Guerra Fria, os EUA e a CEE,
dade, iniciativa que, naquele momento, contou duplamente associada a estes debates, vem sendo uma constante
com o apoio e a desconfiança norte-americana. na história da integração e ganhou força com o fim da
O projeto europeu era percebido pelos EUA, soma- bipolaridade. Em 1989, duas perspectivas estiveram em
do à OTAN, como uma maneira de estabilizar o continente choque na definição do futuro do bloco: o declínio e a
e preservar sua integridade política eliminando focos de ri-
validade, promover o desenvolvimento econômico e con-
ter a presença soviética física e ideologicamente. A rivalida- 102 Na Ásia a opção dos EUA foi pelo caminho dos tratados e relações bilaterais
de que este projeto poderia representar era preocupação com os países aliados como Japão, Coreia do Sul e posteriormente a China.
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continuidade, estando este segundo elemento associado Alemanha104, Bélgica, Itália e Países Baixos, até 1989 a Eu-
ao aprofundamento da integração. As origens de ambos ropa havia limitado suas ondas de expansão a três: 1973
encontram-se no mesmo período, anterior à Queda do com a inclusão de Dinamarca, Irlanda e Grã-Bretanha,
Muro, as décadas de 1970 e 1980, caracterizado pelo “Eur 1981 com a Grécia e 1986 com Portugal e Espanha. O
oceticismo”/“Europessimismo” de um lado e, do outro, do foco de disputa da primeira onda era a presença da Grã-
“Euroentusiamo”. -Bretanha tradicional aliada dos EUA e contrária a políti-
Ambas as visões indicavam que o projeto europeu, cas de caráter supranacional105. Da segunda, com relação
depois de sua fase de lançamento institucional e fortaleci- à Grécia, Portugal e Espanha, a integração de países mais
mento econômico dos anos 1950 a 1970103, havia atingido pobres e enfrentando transições pós-autoritarismo que
seu limite. Este limite era representado pela crise econômi- precisaram receber financiamento para seu desenvolvi-
ca dos anos 1970 e a inércia das instituições europeias. A mento econômico e social106.
percepção era de que o arranjo encontrava-se esgotado,
limitando suas iniciativas à expansão.
Mesmo estas iniciativas eram objeto de controvér- 104 Desde o começo da integração, a Alemanha tem um papel de motor dos
sia e, a partir de sua criação como “Europa dos 6”, França, esforços regionais ao lado da França, enquanto preserva sua aliança com
os EUA. Para o país, a participação no bloco reforça o compromisso alemão
com o abandono de uma política de expansão e agressiva, cooperando
no arranjo multilateral. A força de sua economia e sua reunificação, porém,
trouxeram temores de uma “germanização da Europa” enquanto, dentro da
103 Alguns eventos chave marcam a história da integração europeia neste Alemanha, levantava-se o risco da “europeização”.
período e do fim da década de 1940: a criação do Benelux entre Bélgica, 105 Em 1960, o Reino Unido criara, com outros países que não faziam parte
Holanda e Luxemburgo (1948), a assinatura do Tratado da União Ocidental da CEE, a Associação Europeia de Livre-comércio (EFTA). A ação vinha em
entre França, Grã-Bretanha e Benelux (1948), estabelecimento do Conselho da resposta à rejeição de suas candidaturas à CEE.
Europa (1949), Plano Schuman (1950, cujo dia da assinatura em 09 de Maio é 106 Estes países receberam financiamentos do Fundo Europeu de
definido como o Dia da Europa), a citada criação da ECA (1951), instituição da Desenvolvimento Regional (FEDER) criado em 1975 cujo objetivo era
Comunidade Europeia de Defesa (1952) e da Comunidade Política Europeia reduzir as assimetrias entre os países mais e menos desenvolvidos do
(1952), estabelecimento da União da Europa Ocidental (1954) e o Acordo bloco, priorizando setores como infraestrutura, ciência e tecnologia. No
Monetário Europeu (1955). Na década de 1950, os mencionados Tratados de campo social, anterior ao FEDER, foi criado o Fundo Social Europeu. Ambos
Roma (1957) que estabelecem a CEE e a EURATOM são os mais relevantes. permanecem como pilares da integração, e fontes de debate. O FEDER
Em 1960 é estabelecida a Organização de Cooperação e Desenvolvimento objetiva “promover a coesão econômica e social, mediante a correção dos
Econômico (OCDE) a qual se agregam os EUA e o Canadá e, em 1967, foram principais desequilíbrios regionais e a participação no desenvolvimento
assinados os Tratados de Fusão. As ondas de alargamento e processos políticos e na reconversão de regionais (...).” Disponível em http://europa.eu/
e econômicos adicionais desta fase estão mencionadas no texto. Para uma legislation_summaries/employment_and_social_policy/job_creation_
leitura do processo de integração e sua evolução recomenda-se LESSA, 2003. measures/160015
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Fatores adicionais que contribuíam para as hipóteses Quando Jacques Délors foi nomeado para a presidên-
cia da Comissão de Comunidades em 1º de Janeiro de
de declínio derivavam das opções políticas neoliberais dos
1985, a sua própria análise dos sintomas apresentados
anos 1980 lideradas por Margaret Thatcher na Grã-Bretanha pela Europa (letargia crônica, alta vulnerabilidade às
e dos bloqueios ao aprofundamento. Nos anos 1960, o Plano crises externas, insegurança identitária, que levavam a
repetidos e insistentes rompantes de relançamento) o
Foucher havia sido rejeitado e propostas referentes à unidade fez crer que o único meio para a retomada do processo
econômica e monetária não demonstravam avanços. Neste seria a realização da única medida nunca empreendida
campo, em 1972 foram estabelecidos os Acordos de Bâle que e que era uma das razões da parceria (...) a do estabele-
cimento de um verdadeiro mercado único (...) A edição
criaram mecanismos para a concretização da união monetária do Ato Único não deixava de ser uma prova cabal de
até o fim da década (“serpente monetária”), sem sucesso devi- que a integração econômica não foi encaminhada pe-
los parceiros como previsto. (LESSA, 2003, p. 95).
do à resistência dos signatários. Em 1979 o Sistema Monetário
Europeu (SME) entrou em funcionamento, igualmente com Para os que defendiam a continuidade da CEE e seus
dificuldades devido ao não cumprimento de suas demandas, projetos, o AUE não era percebido como sinal de fracasso,
visando a futura moeda única. Outra iniciativa que merece mas sim como uma estrutura que poderia ser ampliada. O
destaque são os Acordos de Lomé, cujo primeiro foi assinado Ato que fora assinado em fevereiro de 1986, e entrara em vi-
em 1975107, entre os países ACP (Ásia, Caribe, Pacífico) e a CEE, gor em Julho do ano seguinte, era definido por esta corrente
reafirmando a presença europeia em suas tradicionais zonas como base dos novos esforços de aprofundamento que se
de influência do passado colonial. Uma das ações bem-suce- consolidariam no pós-1989 e que resultaram no futuro Tra-
didas e duradouras do bloco foi o estabelecimento da Política tado da União Europeia (Tratado de Maastricht, 1991).
Agrícola Comum (PAC) da CEE. As metas do AUE que visavam a recuperação do di-
Outra crítica apresentada pelos europessimistas en- namismo do processo europeu eram a conclusão do Mer-
volvia o déficit democrático do bloco, concentrando o po- cado Comum até Janeiro de 1993108 e a realização de re-
der em Bruxelas. Mesmo o Ato Único Europeu (AUE, 1986) formas institucionais que permitissem o aprofundamento
era visto como exemplo de crise. Como indica Lessa, da integração com o incremento da harmonização e das

107 Antecedidos pelos Acordos de Yaoundé de 1963 e 1979. 108 O documento base deste processo foi o “Livro Branco para a consolidação do
Mercado Interno”.
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políticas comuns, somada à visão de uma sociedade euro- Analisando estes pilares, o primeiro, que se refere às
peia. O salto qualitativo do AUE é reforçado na citação de Comunidades Europeias, solidifica o caráter comunitário
Herz e Hoffman, da integração, fortalecendo as políticas comuns, transfe-
rindo competências à CE. Trata-se de um pilar de caráter
O programa lançado pelo Ato Único foi um divisor de predominantemente supranacional, enquanto os dois se-
águas, ao marcar a passagem da integração econômica
negativa, ou seja, a mera liberalização, para uma integra- guintes envolvem o intergovernamental. Em termos da
ção positiva (...) tornou-se cada vez mais difícil não es- PESC, a mesma prevê o estabelecimento de uma ação nas
tar envolvido em atividades cujas decisões não fossem
tomadas pelo nível comunitário (...) a divisão entre as
Relações Internacionais de caráter comum, em consonân-
sociedades nacionais e a sociedade europeia tornou-se cia com os princípios da UE, e tem sido objeto de intensa
cada vez mais fluida. (HERZ e HOFFMAN, 2004, p. 185). controvérsia. No que se refere ao terceiro pilar, elementos
de política doméstica encontram-se envolvidos.
Qual vertente foi a priorizada depois do fim da Demandas referentes à superação do déficit demo-
Guerra Fria? Apesar das dificuldades da integração e das crático e da concentração do poder nas instituições euro-
posições contrárias a sua continuidade e aprofundamen- peias em Bruxelas são contempladas com o princípio de
to, prevaleceu no pós-1989 a visão da Europa comum subsidiariedade. Os compromissos de aprofundamento,
que, resultou no Tratado de Maastricht e o surgimento da a despeito das críticas e crises crônicas tornaram-se mais
União Europeia (EU) como ator institucional. Inspirado no sólidos, refletidos nos órgãos da UE, e que foram sendo es-
AUE, mas promovendo um significativo salto qualitativo tabelecidos a partir de 1992 e adaptados dos já existentes
na construção de uma Europa supranacional e com uma na CEE: o Conselho da União Europeia (Conselho Europeu),
identidade própria, Maastricht entrou em vigor em Janeiro Comissão Europeia, Parlamento Europeu109, Tribunal de
de 1993. De acordo com Lessa, Justiça e Tribunal de Primeira Instância, Tribunal de Contas,
Provedor de Justiça, Autoridade Europeia de Proteção de
Com o tratado surgia uma nova organização, a União
Europeia, que se estabelecia sobre três pilares: as Co-
munidades Europeias, a Política Externa e de Segurança
Comum (PESC) e a cooperação nos campos da justiça e 109 As primeiras eleições do Parlamento Europeu foram realizadas em 1979 mas
questões internas (...) uma inovação de importante as- sem grande impacto ou participação popular (que gira em torno de 30 a
pecto simbólico e psicológico foi a criação da “cidadania 40% da população do bloco), o que se repetiu periodicamente nas eleições
europeia” (...) (LESSA, 2003, p. 105). seguintes, realizadas de cinco em cinco anos.
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Dados, Banco Central Europeu, Banco Europeu de Inves- Centrais europeus e precursor do Banco Central Europeu, a
timento, Comitê Econômico e Social Europeu e o Comitê independência destes Bancos Centrais e a regulamentação
das Regiões. das políticas de convergência; a partir de 1999, o proces-
Dentre as crises crônicas, previamente a Maastricht e so entrou no terceiro estágio, com a adoção do euro pe-
ao mercado comum, a mais relevante permaneceu sendo las nações que cumpriram os critérios de convergência110
a do SME. Quando de sua adoção em 1979, o SME tinha e, a partir de 2002, terminada a fase de transição entre as
como objetivo avançar o propósito da união econômica moedas nacionais e a única, somente o euro passou a cir-
e monetária do bloco. Para isso, o SME estabelecera uma cular na Zona do Euro. Especificamente, estes critérios de
moeda de referência, o ECU, e associava às moedas na- convergência eram: estabilidades dos preços (taxa de infla-
cionais ao ECU permitindo uma margem de flutuação de ção não pode ultrapassar em mais de 1,5% a média de três
2,5%, e estabelecera um fundo comum para o qual cada Estados com a inflação mais baixa), taxas de juros (não po-
país membro transferia 20% das suas reservas em ouro e dem variar mais de 2% em relação às dos três países com
divisas. Em 1990, foi realizada a transição, com certo atraso, taxas mais baixas), déficits públicos devem ser inferiores a
do SME para a União Econômica e Monetária (UEM), inte- 3% do PIB, dívida pública não pode exceder 60% do PIB e
grada ao Tratado de Maastricht em 1991. estabilidade das taxas de câmbio.
Três etapas foram contempladas para a concretiza- Os anos de 1989 a 1992 foram decisivos para que se
ção da UEM entre oscilações e recuos: no primeiro está- consolidasse a identidade europeia, fortalecendo o apro-
gio, de 1990 a 1994, houve a liberalização das transações
de capital (supressão dos controles cambiais), o aumento
dos recursos aos fundos setoriais para a adequação das 110 A partir de 1999, os primeiros países a adotar o Euro foram: França, Alemanha,
Bélgica, Itália, Áustria, Finlândia, Países Baixos, Irlanda, Luxemburgo, Portugal
economias e diminuição de assimetrias e a supervisão de e Espanha. A Grécia entrou em 2001, a Eslovênia em 2007, Chipre e Mala
políticas dos Estados membros, e a ocorrência de crises es- em 2008 e a Eslováquia em 2009. Até 2014, estão previstas, em ordem de
acesso, a adesão de Lituânia (2010), Estônia (2011), Bulgária, Polônia, Letônia,
peculativas e desrespeito dos mecanismos de conversão República Tcheca e Hungria em 2012 e, finalmente, a Romênia. Permanecem
que levaram à suspensão e relançamento do mesmo em fora da zona do euro por opção político-econômica a Inglaterra e a
Dinamarca. Como será debatido no item C, o debate contemporâneo refere-
patamares mais frouxos; o segundo estágio foi iniciado se à permanência ou não das nações que já estão na zona do euro na moeda
única. A discussão retoma não só a questão da capacidade dos Estados se
em 1994, perdurando até 1999, com a criação do Instituto manterem dentro dos parâmetros dos critérios de convergência, mas a sua
Monetário Europeu formado pelos Presidentes dos Bancos disposição política para fazê-lo.
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fundamento. Os compromissos de Maastricht ajudaram a B) De Maastricht a Lisboa (1992/2009)


superar as dificuldades para a concretização da UEM, con-
solidando uma das principais conquistas do bloco, o EURO. A partir da entrada em vigor do Tratado de Maas-
Este sucesso inicial não eliminou choques entre os países tricht e da consolidação do mercado comum no biênio
membros ou os debates entre atlanticistas e europeístas, 1992/1993, tanto a ideia quanto a prática da UE retomaram
aprofundamento e alargamento, pessimistas e otimistas, o seu dinamismo, parecendo encerrar as previsões mais
e a difícil interação entre os objetivos supranacionais da pessimistas. Entretanto, os inúmeros avanços e conquistas
recém-criada UE e os Estados nacionais. obtidos neste início de década de 1990, não significaram o
fim dos debates citados.
Progressos supranacionais em áreas como o Euro
e do Mercado Comum não foram acompanhados por
avanços nos campos da segurança e política externa e da
democratização (déficit democrático). De 1991 a 2002, os
estágios de implementação da moeda comum foram se-
guidos mesmo com as pressões econômicas dos Estados
europeus. Ao longo do período, foram sendo adaptadas
e flexibilizadas exigências de convergência, permitindo o
cumprimento de suas regras e a entrada em vigor da mo-
eda em 1999 e a sua circulação plena em 2002 nos países
participantes. Há de se destacar que os países-chave para
o sucesso e legitimação do Euro como França e Alemanha
demonstraram forte empenho em sua concretização.
Em outras áreas, tendências de autonomia e enco-
lhimento foram preservadas como nas relações com os
EUA e a OTAN, a Rússia e os países do Leste Europeu. A
crise social e econômica pós-neoliberalismo fez-se presen-
te. Estes fatores, somados às tendências de aprofundamen-
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to, intensificaram sentimentos nacionalistas e xenófobos, encontrava-se presente, sinalizando o risco da perda da
permitindo a ascensão de movimentos de extrema direita importância do dólar a médio e longo prazo. O tensiona-
paralelos à consolidação da identidade europeia. Mesmo mento das relações ocorreu no período 2002/2003 atre-
assim, a década começou com a criação e aprofundamen- lado à Guerra do Iraque (2.1). Para a Europa, o episódio
to da UE, sendo encerrada com um processo significativo Iraque, da construção o eixo da paz Paris-Berlim-Moscou,
de alargamento. elevou a urgência de um sentimento de autonomia em
O primeiro grande desafio da UE e, na prática, teste segurança, ainda que, no pós-2005, estas arestas tenham
da PESC ocorreu em 1992 com a eclosão da Guerra da Iu- sido aparadas.
goslávia. Na oportunidade, à luz deste recém-estabelecido Se a PESC não funcionava, no econômico, a unidade
pilar, a Europa não agiu como bloco e cada país tomou em negociações do GATT à OMC, preservando instrumen-
decisões em separado no que se referia ao reconheci- tos como a PAC era (e ainda se mantém) forte. O elevado
mento das partes beligerantes e de suas demandas por grau de coesão das políticas comuns em termos comer-
soberania. Sem posição coordenada e capacidade militar ciais possuiu impactos diretos na conclusão da Rodada
autônoma descolada da OTAN, a UE foi confrontada com Uruguai, como nos presentes encaminhamentos da OMC.
sua dependência no campo estratégico-diplomático dos Em 1995, depois de quase uma década sem incorporar no-
EUA mais uma vez. Por sua vez, como visto no item 2.1, vos membros, houve a adesão da Áustria Finlândia e Suécia
os norte-americanos demoraram a intervir, com o conflito ao bloco (a Noruega teve a participação rejeitada em refe-
se prolongando até 1995. A OTAN foi a responsável pelas rendo popular).
operações de paz posteriores e a situação se repetiu em No campo da “ideia da Europa”, um avanço signifi-
1999 com a Guerra do Kosovo quando a UE não ofereceu cativo foi a elaboração do Tratado de Amsterdã em 1997
uma posição comum. (entrou em vigor em 1999) e a incorporação do Acordo de
Entre 1992 e 2002, EUA e UE preservaram a relação Shengen. Inicialmente, assinado em 1985 por Alemanha,
em termos positivos. Eventos como a construção da UE do Bélgica, França, Luxemburgo e Países Baixos, Schengen
lado europeu e da expansão da OTAN do norte-americano visava eliminar os controles fronteiriços entre os Estados
não significaram quebras no relacionamento significativas. signatários e permitir a livre circulação de pessoas. De 1985
Nas entrelinhas desta relação, a evolução do Euro como a 1995, quando o Acordo entrou em vigor, houve a adesão
moeda comum europeia e possível reserva internacional de novos Estados, à exceção da Irlanda e do Reino Unido.
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Deve-se acrescentar que os membros da UE incorporados peia, finalizando com o compromisso de um novo tratado
no pós-1995 possuem como exigência a sua candidatura, para o bloco.
o compromisso de implementar Shengen, medida que Este novo acordo, o Tratado de Nice de 2001, que
vem sendo gradualmente cumprida. Outra prescrição de entrou em vigor em Fevereiro de 2003, tinha como objeti-
Amsterdã era a concessão de mais poderes ao Parlamento vo adaptar as estruturas da UE para as reformas institucio-
Europeu e a solidificação dos pilares da UEM, assim como nais necessárias para o alargamento e democratização do
sinalizar o futuro processo de expansão ao Leste Europeu. bloco. No aprofundamento, as prioridades referiam-se aos
A expansão ao Leste era um projeto que desafiava estudos para a elaboração de uma Constituição Europeia
a UE a cumprir simultaneamente os objetivos do aprofun- que abrangesse os direitos fundamentais previstos em tra-
damento e do alargamento pela inclusão de novos mem- tados prévios e respondesse aos desafios mencionados.
bros, cujos padrões econômicos, políticos e sociais deman- Era fundamental sintetizar e simplificar tratados posterio-
dariam ajustes em suas políticas domésticas e ajuda dos res face à perspectiva do alargamento. Estas preocupações
fundos de desenvolvimento do bloco. Estrategicamente, foram sistematizadas na Declaração de Laeken sobre o Fu-
contudo, era um desafio que não podia deixar de ser con- turo da União Europeia,
frontado devido aos propósitos mais amplos estabelecidos
pela UE de construção de uma Europa integrada e pacífica, A unificação da Europa está iminente. A União está pres-
tes a alargar-se a mais de dez novos Estados membros,
aos avanços dos EUA sobre a região simbolizados pela PfP, principalmente da Europa Central e Oriental (...) esta ver-
a OTAN e as relações com a Rússia. dadeira mutação requer obviamente uma abordagem
diferente da que foi adoptada há cinquenta anos (...) a
Os anos de 2000 e 2001 foram caracterizados por União vê-se confrontada com um duplo desafio, um
iniciativas de aprofundamento e alargamento. Em termos interno e outro externo (...) há que se aproximar as ins-
de aprofundamento, intensificaram-se os esforços para tituições europeias dos cidadãos (...) que sejam menos
pesadas e rígidas e, sobretudo, mais eficientes (...) a União
cumprir o cronograma de implementação da UEM. A pro- Europeia vê-se confrontada com um mundo globalizado
moção do desenvolvimento e o comprometimento do (...) a Europa deve assumir suas responsabilidades na ges-
tão da globalização (...) Uma potência que pretende dar
bloco com o Protocolo de Quioto e projetos de energia enquadramento ético à globalização (...) enraizá-la na so-
renovável foram apresentadas como prioridades. Em 2000, lidariedade e no desenvolvimento sustentável (...) a União
houve a proclamação da Carta dos Direitos Fundamentais deve passar a ser mais democrática, mais transparente e
mais eficaz (...) estabelecer uma distinção mas clara entre
da UE, como foco em temas sociais e de identidade euro- (...) competências (...) coloca-se a questão de saber se esta
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simplificação e reestruturação não deveriam conduzir à Além destes movimentos de alargamento, a partir
adoção na União de um texto Constitucional.
de 2004 também foram introduzidos mecanismo políticos
O estabelecimento de uma comissão (Convenção de aprofundamento, dentre os quais o mais polêmico e
Europeia) para a realização de estudos sobre a Constitui- mais sensível refere-se à Constituição Europeia. O texto da
ção Europeia e a aceitação do alargamento a dez países Constituição foi aprovado em 2004, dando início a um lon-
membros foram os principais resultados de Nice. Os países go e complexo processo de ratificação.
candidatos que tiveram sua adesão aceita a UE em 2002 Quase uma década depois de sua criação a UE, entre
foram Chipre, Eslovênia, Eslováquia, Estônia, Hungria, Lituâ- progressos e retrocessos, conseguiu manter seu ritmo. Es-
nia, Letônia, Malta, Polônia e República Tcheca. Estes países tes avanços, combinados com o unilateralismo da Era Bush
entraram no bloco em 2004 e, gradualmente, aderem a filho levaram muitos a afirmar que a UE estar-se- ia trans-
mecanismos de política comum como o Euro. A “Europa formando em um agente político autônomo. Todavia, estas
dos Seis” chegara à “Europa dos 25”. previsões não se sustentaram e a encruzilhada que Nice se
No ano de 2007, na última onda de expansão antes propusera a resolver, conforme prevista em Laeken, gerara
da eclosão da crise da Zona do Euro (examinada no item C) outros dilemas que, mais uma vez, levantaram hipóteses
levou à inclusão de Romênia e Bulgária no arranjo de inte- de um fracasso da integração e ao seu relançamento. Nes-
gração (“Europa dos 27”). Desde então, as vulnerabilidades te contexto, o período que engloba a implementação dos
econômicas da UE, as encruzilhadas políticas do aprofun- Tratados de Maastricht e Nice apresentou significativos pro-
damento relacionadas à paralisia das negociações sobre a gressos econômicos, mas revitalizou dilemas sociais, políti-
Constituição Europeia e questões estratégicas associadas cos e diplomáticos devido a pressões internas e externas.
às candidaturas pendentes levaram a uma estagnação Dentre as externas, os anos de 2002/2003 e as ten-
destas perspectivas. Dentre as candidaturas pendentes sões com os EUA trouxeram à tona os choques europeístas
ate 2012 encontram-se as de Croácia, Macedônia, Islândia,
Montenegro, Sérvia e Turquia111.
Turquia precisaria adequar sua economia e seu regime político considerado
pouco democrático, com baixa transparência e proteção aos direitos
humanos. Todavia, nações da Europa Oriental com problemas similares
111 A candidatura da Turquia é uma das questões mais controversas que foram incorporadas o que leva às justificativas não oficiais: o temor da
envolve o projeto da integração e a sua identidade entre ocidente e vulnerabilidade continental em termos de segurança, imigração e cultura,
oriente. Oficialmente, segundo a UE, para que se torne membro do bloco a associado ao choque entre as tradições europeias e muçulmanas.
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e atlanticistas. Aos atlanticistas tradicionalmente repre- A Europa percebe a Rússia como risco a sua segu-
sentados pelos britânicos, somaram-se os novos mem- rança (e vice-versa), sendo que este debate envolve não
bros da OTAN do Leste Europeu, a “Nova Europa”. Cabe, só temas conhecidos como de forças convencionais e
entretanto, não exacerbar esta aliança EUA-Leste Europeu nucleares (proliferação), mas a dependência energética.
porque são países que detêm pouca relevância geopolí- Esta dependência reflete-se no setor do gás (quase 50%
tica. Seu impacto e contribuições à Guerra, assim como do consumo europeu é fornecido pela Rússia e em alguns
de Portugal e Espanha, inseriram-se em uma perspectiva países como a Alemanha este índice atinge mais de 60%)
de alinhamento visando benefícios que não ocorreram. e permite à Rússia políticas de manipulação de preços que
Muito pelo contrário, Espanha e Inglaterra foram alvos de pressionam as economias europeias113. Em resposta a es-
atentados terroristas em suas capitais, agregando-se ten- tas pressões e tentando matizar a dependência, a UE tem
sões internas ao continente, cuja população de origem investido em três frentes: na aliança com os EUA para a
muçulmana é significativa. construção de gasodutos e oleodutos que driblem o mo-
Houve certo exagero no potencial do racha causa- nopólio russo no setor, na busca de novos fornecedores
do pelo eixo Paris-Berlim-Moscou e na possibilidade de em particular na África e em políticas de desenvolvimen-
incremento da parceria Rússia-UE112. Apesar do Iraque, as to de energias renováveis. Estas alternativas trazem custos
nações europeias partícipes da OTAN não abandonaram econômicos adicionais e seu potencial pleno tende a se
seus compromissos com os EUA no Afeganistão e nem em realizar no longo prazo.
questões do continente como Kosovo ou em negociações Choques no campo dos direitos humanos e da de-
comerciais. As divergências em políticas sociais, ambien- mocracia são constantes entre Rússia e UE. Para a Rússia, o
tais, no que se refere à importância do multilateralismo, o Ocidente – EUA e EU – desconsidera suas particularidades.
mal-estar gerado por Bush e Rumsfeld geraram fissuras, Trata-se de uma parceria de alcance limitado e que não in-
mas não quebras definitivas. clui entre suas perspectivas, por exemplo, a integração da

112 Em 2003, Rússia e UE assinaram um acordo de parceria estratégica no qual 113 Em documentos da Comissão Europeia de Gás e Eletricidade é feita
se propuseram a estabelecer espaços comuns de cooperação: econômico, referência à necessidade de que “os contratos sejam realizados em condições
liberdade, segurança e justiça, segurança externa e pesquisa e educação transparentes e que seja garantida a proteção frente práticas enganosas e
conjunta. Até 2012, não houve aprofundamento, mantendo a distância mútua. mal informadas dos fornecedores”.
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Rússia à UE. Como no caso da expansão da OTAN, o alarga- aquele marcado “Relações com a UE” merece ser deixa-
do mais próximo (...) Em minha visão, chegou a hora de
mento da UE é percebido como risco. A interação OTAN e se começar a pensar em uma “Agenda Atlântica para a
UE demonstra alto grau de sobreposição e complementa- Globalização”. (BARROSO, 2008, s/p).
ridade. Por fim, a dependência europeia do poder militar
dos EUA permanece. Significativa, esta Carta demonstra o desejo euro-
Todavia, as reações ao unilateralismo de Bush leva- peu de um papel diferenciado no mundo, ressaltando sua
ram a uma posição mais assertiva do continente no setor interdependência com os EUA. Tal papel revela-se depen-
estratégico e uma demanda pela atualização do relaciona- dente da superação das pressões intrabloco, uma vez que
mento. O documento “Uma Carta de Bruxelas ao Próximo inexiste o aprofundamento da integração em termos po-
Presidente dos Estados Unidos da América” elaborado pelo lítico-estratégicos a despeito dos discursos. Neste campo,
bloco e apresentado por João Manuel Durão Barroso na permaneceu o descompasso entre a real constituição de
Universidade de Harvard em Setembro de 2008, revela esta um espaço supranacional, a soberania estatal e a identi-
agenda em formação. Segundo Barroso, dade nacional, destacando-se dois temas: a Constituição
Europeia e a PESC.
É com a percepção de nossa profunda interdepen- Desde a Declaração de Laeken e o início dos traba-
dência que decidi escrever uma carta para o próximo
presidente dos EUA. Uma carta que explica quão radi- lhos para a elaboração da Constituição Europeia, a expec-
calmente diferente a Europa está hoje (...) a UE é um tativa era grande de que com o texto pronto a integração
ator global (...) Isso se deve ao nosso peso na econo-
mia mundial, no comércio, nas finanças globais, assim
consolidaria uma nova etapa de seu processo de fortale-
como nosso papel em organizações internacionais, cimento e supranacionalidade. Esta etapa englobaria di-
na administração da segurança mundial e na ajuda ao mensões sociais e de direitos, indo além da agenda econô-
desenvolvimento (...) Nestes tempos de incerteza, a UE
precisa dos EUA e, sim, os EUA precisam da UE mais do mica. Depois de concluída, em Outubro de 2004, Barroso,
que nunca (...) O impacto estratégico de nossa parce- já Presidente da Comissão Europeia114 deu início ao proces-
ria, tão positivo no passado, começará a se dissipar caso
não tenhamos sucesso em complementá-la com no-
so de ratificação para sua adoção. Desde este momento,
vas políticas de engajamento que atraiam o mundo na o texto sofreu inúmeras críticas quanto ao seu conteúdo,
busca de renovadas parcerias e estratégias multilaterais
efetivas (...) Com isto em mente, Sr. Presidente, acho que
o Sr deve concordar que existirão muitos arquivos espe-
rando em sua mesa quando chegar à Casa Branca, mas 114 A Presidência da UE é rotativa.
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considerado confuso, intervencionista e abrangente, o que operações de paz e resolução de conflitos. A convergência
contrariava seu objetivo inicial que era o de sistematizar e foi maior na tradicional área das negociações comerciais
simplificar o corpo de legislação da sociedade europeia. O em bloco na OMC, nos acordos estabelecidos com outros
documento parecia não contar com o apoio popular na arranjos comerciais com o Mercosul116 e no que se refere
medida em que não resolvia os dilemas da democratiza- às políticas de direitos humanos e ambiental, com a ratifi-
ção do bloco e suas instituições, sendo considerada uma cação do Protocolo de Quioto em 2005. Com o Brasil, em
invasão de soberania. 2007, foi formalizada a parceria estratégica.
Apesar destas objeções, deu-se sequência ao pro- Diante destas dificuldades, em 2007 foi elaborado
cesso de ratificação115 e os resultados foram negativos: em o Tratado de Lisboa, ratificado por todos os membros do
2005, a constituição foi rejeitada pela França e pelos Países bloco em 2009. De acordo com o site oficial da UE, o Trata-
Baixos. A rejeição pela França, um dos pilares da integra- do de Lisboa visa responder institucionalmente ao alarga-
ção europeia, gerou um elevado pessimismo e diversas mento do bloco, procedendo a uma revisão dos processos
pesquisas de opinião indicavam a falta de apoio popular. de participação popular, da PESC e da formulação de po-
Até o ano de 2009 diversos países não haviam ratificado líticas e tomada de decisão. Mais uma vez, o objetivo de-
a Constituição e outros como República Tcheca, Polônia, clarado era o da simplificação e transparência, elevando o
Portugal, Suécia, Reino Unido, Dinamarca, Irlanda adiaram que se define como “coerência interna” do bloco, afastando
por tempo indeterminado a votação sobre o tema. temores de criação de um “superestado europeu” no qual
Com relação à PESC, à exceção dos protestos contra exista a perda das identidades locais. A prioridade declara-
a presença dos EUA no Iraque, a ação europeia continuou da é “Partilhar soberania em cooperação supranacional”.
sem responder aos principais dilemas continentais: depen- No que se refere à democratização interna, demanda
dência militar da OTAN e a elaboração de políticas comuns. constante desde o início do bloco, foram estabelecidas as
Dentre as iniciativas que se reforçaram encontram-se as seguintes medidas: abertura de canais diretos de participa-
iniciativas comerciais para com a África e a presença em ção popular na UE (um milhão de cidadãos europeus po-

115 Cada Estado tem autonomia de decidir o processo de ratificação de acordos 116 Periodicamente são realizadas as Reuniões de Cúpula entre a Europa, a
e tratados: alguns optam por consultas populares, outros por decisão América Latina e o Caribe (Cimeira).
executiva ou parlamentar ou formas mistas, popular e governamental.
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dem apresentar demandas diretamente à CE) e a ampliação Na agenda da PESC, o Tratado de Lisboa reafirmou
dos poderes dos parlamentos nacionais reforçando o princí- a intenção pacífica da Europa e seu respeito aos valores
pio da subsidiaridade. É aberta a possibilidade de intervir no fundamentais do homem, privilegiando o que se define
tratamento destas demandas ao serem discutidas em nível como uma ação construtiva na administração das crises e
europeu, por meio de participação no Parlamento Europeu manutenção da paz. A vanguarda em temas como o am-
e o Conselho de Ministros, reforçando a interação e o con- biental (energias renováveis, aquecimento global), saúde
trole democrático dos processos decisórios. Neste sentido, pública e imigração também surge como prioridade, res-
valida a ampliação do diálogo entre os níveis, cidadania eu- saltando riscos transnacionais como o terrorismo e a de-
ropeia, Parlamentos Nacionais e Parlamento Europeu. manda crescente por ajuda humanitária. A reafirmação
Outra prioridade foi a facilitação do processo de da presença europeia na África e na Ásia, o aumento da
decisão entre os Estados membros, instituindo a votação participação em negociações como do processo de paz
por maioria qualificada – 55% dos Estados membros, re- do Oriente Médio (Quarteto de Madrid) fazem parte desta
presentando 65% da população do bloco (reforçando de- perseguição de uma agenda mais assertiva. Preocupação
cisões prévias de Nice) –, enquanto se preserva a decisão adicional foi reafirmar que qualquer política comum e de
por unanimidade em setores como a PESC e a segurança segurança não tem qualquer intenção de confrontar a so-
social. Em termos sociais, garante-se maior atenção à Carta berania dos Estados, mas complementá-la e reforçá-la por
dos Direitos Fundamentais da UE e aos valores europeus meio de uma agenda prioridades e princípios comuns. Nas
como liberdade, dignidade e justiça à cidadania e a possi- palavras do Tratado,
bilidade de um Estado sair da União.
No campo social, agrega-se à dimensão da partici- O Tratado de Lisboa estabelece princípios e objetivos
comuns para a ação externa da UE: democracia, Estado
pação uma maior preocupação com temas de bem-estar de Direito, universalidade e inviolabilidade dos Direitos
econômico, recuperando o viés social democrata perdido do Homem e das liberdades fundamentais, respeito pela
dignidade, os princípios da igualdade e da solidariedade.
desde a época neoliberal. O acesso a serviços básicos como
saúde, educação, previdência, infraestrutura é retomado Em termos práticos, houve a criação de um novo
como prioridade, atrelando-se uma cláusula social a defini- ator institucional, o Alto Representante para os Negócios
ção das políticas dos Estados da União (economia de merca- Estrangeiros e a Política de Segurança e a provisão de um
do social é o termo utilizado para definir esta nova era). serviço diplomático europeu. Esta voz única continua evo-
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luindo lentamente, conforme reconhecido pelos próprios C) A Crise da Zona do Euro (2009/2012)117
documentos oficiais e presente em discursos como de Ja-
vier Solana, um dos primeiro a ocupar o cargo de Alto Re- De 1999 a 2002, como discutido, o processo de im-
presentante. Solana indica que, plementação da moeda única europeia transcorreu como
um dos mais importantes elementos da integração e
Primeiro, nossa maior responsabilidade é fazer a Europa demonstração de que a maioria dos países do bloco en-
funcionar corretamente, incluindo as estruturas de ad-
ministração de crises (...) Segundo, precisamos de mais contrava-se preparada para um salto qualitativo em suas
capacidades (...) Terceiro, a política externa não irá fun- políticas econômicas, em direção à supranacionalidade. À
cionar se somente se preocupar com as necessidades
dos Estados membros. Precisamos de solidariedade (...)
exceção da Grã-Bretanha, Suécia e Dinamarca (que não fa-
Quarto, precisamos de uma interação mais sofisticada zem parte da zona do euro), os demais países pertencentes
com nossos parceiros – tanto nações quanto organiza- ao bloco tinham como prioridade o aprofundamento dos
ções (...) Quinto e, por último, precisamos ser ousados. A
PESC é sobre riscos. (SOLANA, 2009). laços econômicos que, somados aos avanços já obtidos no
mercado comum e nos aspectos sociais, fornecendo ainda
Estas dificuldades prevalecem nos níveis políticos, maior densidade à identidade “Europa”. Apesar das dificul-
estratégicos e diplomáticos de unidade europeia. Con- dades para cumprir os critérios de convergência, em 2002
quistas como a construção gradual de uma identidade e as moedas nacionais deixaram de circular.
cidadanias comuns são acompanhadas por desafios como Entretanto, pouco mais de uma década depois de
a integração social de imigrantes, o combate à xenofobia iniciado o processo de implementação da moeda única, a
e o respeito às diferenças. A eclosão da crise econômica integração europeia passou a enfrentar a crise da zona do
somente acentuou estas tendências, levando a questiona- euro. Em 2009, na sequência da crise dos mercados finan-
mentos sobre o futuro do Euro e da integração. ceiros norte-americanos, desenhada no biênio anterior, a
fragilidade das nações consideradas periféricas na integra-
ção tornou-se patente. Portugal, Irlanda, Islândia, Grécia e

117 Estas reflexões contaram com a colaboração do Professor Corival Alves


do Carmo do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de
Sergipe.
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Espanha (PIIGS na sigla em inglês118) atravessavam um pe- um arranjo estabelecido entre o país e o banco de inves-
ríodo de instabilidade econômica, não conseguindo cum- timentos Goldman Sachs que permitiu maquiar os dados
prir com as metas do euro relativas ao controle do déficit financeiros do país. Esta tática, que incluía a venda de títu-
público. Comentando a inter-relação entre a zona do euro los da dívida grega e a manutenção da “nota” da Grécia ele-
e estas dinâmicas do mercado financeiro global, Freitas in- vada, encontrou seus limites com a crise de 2008, quando
dica que, não foi mais possível contar com o financiamento externo
à dívida grega. Assim, a Grécia não conseguia arcar mais
Para os grandes bancos americanos, ingleses e com seus compromissos, incluindo a contenção do déficit
europeus, bem como para os grandes fundos de
público em 3% para manter-se no euro.
pensão americanos e japoneses, a constituição da
área do euro representou imensas oportunidades A “nota” da Grécia e dos demais países, refere-se sua
de negócios, lucrativos e de baixo risco. Bancos classificação por agências de “rating” que avaliam a perfor-
americanos e ingleses propunham ativamente mance econômica dos Estados. Apesar de ser baseada em
seus serviços de conversão de dívida em títulos
dados referentes à economia do país, as notas são atribu-
negociáveis, tanto para os bancos provinciais eu-
ropeus como para empresas públicas e governos ídas pelas agências sem controle externo, e sujeitas a in-
de municipalidades em distintos países da zona terpretações dos analistas: esta situação permitiu que a
do euro, ao mesmo tempo em que concediam Grécia sempre fosse definida como um país confiável para
empréstimos ou organizavam emissões de títulos
investimentos e empréstimos, mesmo com o crescimento
da dívida pública e privada nos mercados interna-
cionais. (FREITAS, 2011, p.24). exponencial de sua dívida.
Segundo estimativas da UE, em 2010, este déficit
O primeiro dos PIIGS a admitir sua crise e a impossi- atingiu quase 14% do PIB, mesmo com as medidas de
bilidade de arcar com suas dívidas foi a Grécia. As origens austeridade que foram implementadas a partir do início
do desequilíbrio residiam na própria entrada da Grécia na da crise, com cortes adicionais de gastos públicos, o que
moeda única, que somente ocorreu em 2001, a partir de gerou maior insatisfação social, recessão e desemprego.
Ainda em Maio de 2010, a Grécia tornou-se o primeiro
país da zona do euro a ser “resgatado” (bailout), por meio
118 Que, traduzida, significa “porcos”, uma imagem bastante negativa e
de um acordo entre o FMI e outros membros da zona do
preconceituosa destas nações. euro (principalmente a Alemanha, que tem sido a condu-
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Cristina Soreanu Pecequilo 106

tora destes processos), que permitiu o empréstimo de 110 lhões de euros. No ano de 2011, apesar de esforços para a
bilhões de euros. O objetivo era tentar evitar o contágio contenção dos gastos, que ampliaram o cenário de reces-
das demais economias com estes valores ao estabilizar a são e desemprego no país, Portugal recebeu 78 bilhões de
Grécia e, posteriormente foram destinados mais aportes euros. A crise na Espanha também já se demonstrava grave
financeiros à zona do euro. Entretanto, o contágio ocorreu, desde 2010119, mas, até Agosto de 2012, o país na recebeu
e, apesar destes recursos, a situação grega continua apre- empréstimos do mesmo porte. Entretanto, a situação tem
sentando sinais de agravamento, associada à manutenção se agravado rapidamente em 2012, tendo como marco a
de uma política de controle dos gastos públicos, que difi- quebra do Banco Bankia em Maio. No mês de Julho, a Es-
culta a recuperação do crescimento e resulta também em panha, iniciou mais um forte processo de contenção dos
cortes de políticas sociais. Não só na Grécia, mas em outros gastos públicos, que incluem corte de investimentos em
países em crises da zona do euro, tem se tornado comuns áreas sociais, redução e corte de salários do funcionalismo,
manifestações populares de rua, pacíficas e violentas, con- corte no crédito e aumento de impostos. A opção espa-
tra estas políticas de austeridade financeira. nhola segue a orientação da UE, mas os protestos sociais
Além destes cortes, assim como outros países da tem marcado o cotidiano do país a partir do anúncio des-
zona do euro, a Grécia apresenta índices de desemprego tas medidas revelando uma situação de fragilidade que
acima dos 20% da população economicamente ativa (na prevalece até a finalização deste texto em Agosto de 2012
Espanha é de cerca de 25% em dados de Julho de 2012, e não afasta a hipótese de um resgate do país.
e mesmo os países abaixo deste nível, como Portugal, exi- Mesmo países como a Grã-Bretanha, que não fazem
bem dados de 15% de pessoas sem ocupação). A turbu- parte da zona do euro, apresentam sinais de crise, que re-
lência política tem gerado espaço para o crescimento de sultam de sues dilemas internos, sua relação com os EUA
grupos antieuropa que defendem a saída do país da zona e sua interdependência com a Europa. Em 2012, a realiza-
do euro. Nas eleições de Junho de 2012, a vitória do parti- ção das Olimpíadas em Londres trouxe alguns resultados
do pró-Europa pareceu afastar estas previsões, mantendo positivos como o aquecimento do mercado pelo turismo,
o curso das reformas, mas a situação permanece muito ins-
tável até a finalização deste texto em Agosto de 2012.
Ainda no mesmo ano de 2010, a Irlanda recebeu 119 Dentre os PIIGS, parece que somente a Islândia conseguiu atingir certa
ajuda similar à oferecida à Grécia, em um total de 85 bi- recuperação.
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Pós-Guerra Fria (1989/2012)

com diminuição do desemprego. Além disso, o governo Apesar de bastante criticada, a Chanceler Merkel
tem procurado injetar recursos na economia evitando um preserva esta visão europeia, uma vez que apesar dos
maior recuo da produção e crises no sistema bancário. custos financeiros para a preservação da zona do euro,
França e Itália, na zona do euro, tiveram avaliações menos a integração traz vantagens econômicas e políticas para
positivas sobre sua economia, também enfrentando ten- o país. A UE oferece uma estrutura coesa e legítima para
dências de desaceleração, aumento da dívida pública e o exercício do poder alemão, ao mesmo tempo em que
tensões sociais. evita revisionismos internos. O risco do retrocesso da in-
A Alemanha tem desempenhado papel essencial na tegração em um de seus maiores símbolos, o euro, é uma
condução da crise da zona do euro, reafirmando seu com- preocupação real na medida em que poderia afetar, no
promisso com a moeda única e com a integração. Sob a li- longo prazo, todo o arranjo regional, e não somente esta
derança da Chanceler Angela Merkel, o país estabeleceu, em realidade econômica. Muitos países europeus passam a
ampla medida (apesar das decisões serem apontadas como questionar não somente a permanência no euro, mas em
de consenso dentro do bloco) os rumos para a saída da cri- todos os demais mecanismos de integração previstos da
se, baseados na busca da austeridade dos gastos públicos120 UE, como discutido.
(sustentada na combinação, muitas vezes, de corte de gas- Porém, estas opções alemãs, assim como a concor-
tos e salários e aumento de impostos) e que tem demanda- dância dos vizinhos com suas orientações políticas (e se
do medidas de ajuste impopulares nas demais nações. Além estas orientações poderão, efetivamente, voltar a estabili-
disso, é o país que mais contribui, dentro do bloco, para os zar o euro), encontram-se em uma situação de questiona-
programas de resgate. No G20 financeiro, assim como nos mento. Tais questionamentos derivam dos custos internos
outros organismos multilaterais, FMI e Banco Mundial, é de cada país da zona do euro, de sua percepção sobre a
também o que desempenha o papel mais decisivo. viabilidade da continuidade da integração nestes termos,
e de elementos externos, associados à instabilidade que
prevalece nos EUA e nas dinâmicas de nações emergentes
120 Como visto em 2.1, a opção norte-americana foi diferente, com foco no como os BRICS. Desde os primeiros movimentos de fragi-
aumento dos gastos públicos, principalmente a partir de 2009 com o
governo Obama. Mesmo assim, a recuperação vem sendo mais lenta do lidade do sistema norte-americano em 2007 até a eclosão
que esperado e não tem atingido os fundamentos da crise ou as estruturas
de governança multilaterais como FMI e Banco Mundial, como discutido no
da crise global em 2008 e a da zona do euro, estes são pro-
item 5.3B. cessos indefinidos e em andamento.

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