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anais da microfonia

A VIÚVA
As astúcias da misteriosa companheira de Gal Costa – e o impacto na carreira da
cantora

Thallys Braga | Revista piauí, edição 202, Julho 2023

Gal Costa e Wilma Petrillo, em 1998: “Na minha cabeça, elas sempre foram como dois olhos. Estavam uma
do lado da outra, mas não se enxergavam”, diz Halu Gamashi, a médium da cantora. CRÉDITO: EDSON
RUIZ_FOLHAPRESS_1998
Gal Costa, vestindo um conjunto de cetim preto e com os cabelos armados ao vento,
andava de um lado para o outro na coxia escura. Lá fora, milhares de pessoas se
espremiam numa praça de Vitória da Conquista, na Bahia, esperando para ouvi-la. Estava
tudo pronto para o show começar – o violão afinado, a mesa de som regulada –, mas Gal se
recusava a ligar o microfone. Tinha medo de subir no palco e ser algemada pela polícia na
frente de todos. Mais cedo, naquele domingo de dezembro de 2012, uma viatura policial
havia estacionado na porta da pousada onde a artista se hospedava e intimado a sua
companheira e empresária, Wilma Petrillo, a prestar depoimento na delegacia, sob a
acusação de ameaçar e perseguir o médico Bruno Prado, então com 31 anos.

Vindo de uma família de médicos respeitada na sociedade baiana, Prado ingressou na


Faculdade de Medicina da Bahia quando fez 18 anos. Era apaixonado por Caetano Veloso,
João Gilberto e Gal Costa. Em 2003, ele soube que a cantora faria um show no Teatro
Castro Alves em Salvador e decidiu ligar para perguntar se podia levar lírios ao camarim.
Quem atendeu a ligação foi Wilma Petrillo. Ela o autorizou a levar as flores e ficou
encantada ao saber que Prado estudava medicina.

Ao longo da semana que antecedeu o evento, Petrillo ligou algumas vezes para perguntar
se ele estava confirmado no show. Em uma das conversas, soube que Prado tinha pagado
mais caro pelo ingresso. Ela armou uma confusão com o teatro e tirou do próprio bolso o
valor excedente que Prado pagara. Desculpou-se e, para compensar o transtorno, disse
que o jovem teria livre acesso ao camarim de Gal. Na data combinada, ele foi, entregou os
lírios à cantora e permaneceu algumas horas conversando com Petrillo, que alternava
frases em inglês e português. Nunca tirava os óculos escuros.

Daí em diante, ele passou a ser incluído nos jantares de Gal e Petrillo, que estavam vivendo
em Salvador, e das quais acabou ficando amigo. Chegou a acompanhá-las em turnês
internacionais e, dada a influência de sua família, arranjava os melhores médicos da Bahia
para atendê-las. Com o tempo, passou a trocar confidências com Petrillo, que ligava tarde
da noite para desabafar sobre os problemas financeiros que enfrentava com Gal. Um dia,
sentiu confiança para contar que estava apaixonado por outro homem. “Ser gay era o
segredo da minha vida, meus pais não podiam nem sonhar”, disse ele em entrevista à
piauí.

Sete anos depois, em dezembro de 2010, Prado foi convidado para assistir à formatura de
Gabriel, o filho de Gal, no maternal. Na manhã do dia do evento, Petrillo ligou: “Passe aqui
em casa para irmos juntos até a creche”. O endereço era o Morada dos Cardeais,
condomínio de luxo no bairro da Vitória, cujos apartamentos têm varandas com vista para o
mar de Salvador. Petrillo estava sozinha em casa. “Cadê a patroa?”, perguntou Prado,
recorrendo ao apelido que a empresária usava para se referir a Gal. “Ela teve que passar no
cabeleireiro”, respondeu Petrillo, e começou a chorar. Segundo a lembrança de Prado, ela
disse: “Bruninho, a Gal fez uma cirurgia no olho, e eu descobri que também vou precisar
operar o meu, só que estamos sem dinheiro. Eu preciso de qualquer valor que você puder
me emprestar, mas agradecerei muito se for algo entre 10 e 15 mil reais.” Ele quase caiu
para trás. Petrillo acrescentou: “Eu disse à Gal que estava indecisa quanto a te pedir, mas
ela falou que você é tão nosso amigo…” Prado conta que se sensibilizou e disse que faria o
possível para ajudar na cirurgia. Petrillo sorriu e secou as lágrimas do rosto. Pouco depois,
Gal chegou ao apartamento e todos partiram para a formatura de Gabriel. No dia seguinte,
segunda-feira, Prado mandou entregar na casa de Gal e Petrillo um envelope amarelo com
15 mil reais.

Estava aberta a sua temporada no inferno.

Eu quero saber o que está acontecendo”, repetia Gal, naquela coxia escura em Vitória da
Conquista. As horas passavam e o seu produtor Ricardo Frugoli se empenhava em não
contar a verdade para a cantora. Na delegacia da cidade, Petrillo gritava com os policiais
sem tirar os óculos escuros, enquanto Prado tremia e suava frio.

Na época em que deveria receber o dinheiro de volta, ele deixou de ser convidado para os
shows e para a casa de Gal. Também não conseguia mais se comunicar com Petrillo. No
círculo cultural de Salvador, começou a ouvir histórias sobre golpes que a empresária teria
aplicado. Diziam que Petrillo era uma pessoa ardilosa, de quem até os amigos de Gal
preferiam manter distância, mas os boatos não combinavam com o companheirismo e a
lealdade da mulher que Prado conheceu.

Um dia ela atendeu ao telefone, e o médico cobrou o dinheiro. A empresária respondeu que
faria a devolução em trinta dias. Passou-se um ano, quase dois anos, e nada. Certa vez, ela
disse a Prado: “Se você continuar me cobrando, eu vou fazer uma coisa muito bonitinha:
conto para o teu pai que você é viado.”

“Quando ela falou isso, eu tremi”, diz o médico. Ele então conta que decidiu escrever um
e-mail para Gal revelando toda a história. A cantora ligou, com a voz triste, dizendo que não
sabia de nada e garantiu que Petrillo lhe enviaria um cheque. Acrescentou que seria melhor
ele se afastar por um tempo porque ela não queria ter problemas com Petrillo. O cheque
prometido não chegou de imediato, mas Petrillo honrou a ameaça: enviou para o consultório
do pai de Prado um envelope com uma foto dele beijando o namorado – era uma imagem
que o próprio Prado havia compartilhado com Petrillo quando ainda se davam bem. Prado
conta que, mais tarde, ela ligou para o seu pai e expôs a sua intimidade. O efeito foi o
inverso do que Petrillo planejara: Prado, entrando num período de tristeza e pensamentos
suicidas, foi acolhido pela família.

Quando a Prefeitura de Vitória da Conquista anunciou o show de Gal Costa em praça


pública, o pai de Prado deixou um advogado e o delegado em alerta para o caso de Petrillo
fazer novas ameaças ao filho, o que aconteceu assim que ela chegou à cidade. “Você vai
tomar uma surra tão bonita que vai aprender a respeitar os outros”, escreveu para Bruno
por SMS. “Ela dizia coisas como ‘Você não tem vergonha de pedir dinheiro para uma mulher
mais velha, sua bicha?’” Em 2012, Petrillo tinha 62 anos, cinco a menos que Gal. Em
pânico, Prado ligou para o pai, que disse que estava na hora de dar um basta naquelas
ameaças.

Na delegacia, a ocorrência foi registrada assim:

Relata o comunicante [Prado] que vem recebendo via celular do número […] ligações de
ameaça nas quais a pessoa sempre diz que vai agredi-lo fisicamente, que para além das
ligações existem também mensagens de voz nas quais dizem que é melhor para o
comunicante não sair de casa pois caso isso aconteça ele sofrerá sérias consequências.
Que tais ameaças estão sendo feitas pela pessoa de nome Vilma Petrilo [o escrivão trocou
o W pelo V e eliminou um L], pessoa esta que não reside em Vitória da Conquista, mas se
encontra hospedada no Hotel Pousada da Conquista, no apartamento 104. As partes
compareceram em audiência nesta delegacia às 21:00 horas e a sra. Vilma Petrillo se
retratou, comprometendo-se a não repetir tais condutas. É o relato.

Pula uma linha.

Fato delituoso: sim; Natureza do fato: (CRIME CONTRA A PESSOA) AMEAÇA (CÓDIGO
PENAL, ARTIGO 147); Órgão destinatário: 10ª Coordenadoria de Polícia – VITÓRIA DA
CONQUISTA.

O registro foi auditado pela delegada Lusdenes Batista Silva, às 21h20. Petrillo foi liberada
e levada de viatura até o local do show. Só então Gal aceitou subir no palco. Nervosa, errou
as letras das músicas. Não se sabe que explicação Petrillo deu a Gal. Nem Prado, nem
Frugoli falaram do assunto com a cantora.

Seguindo o conselho da família, Prado foi para Nova York duas semanas depois para aliviar
o estresse. Ele conta que, um dia, Petrillo ligou para seu celular, dizendo que sabia o nome
do hotel em que estava hospedado e, por ter morado na cidade, conhecia gente que
poderia dar um jeito nele. O médico teve uma crise de pânico e pegou um trem para a casa
de um amigo em Massachusetts, onde ficou até as ameaças cessarem. Meses depois,
recebeu o cheque de Petrillo com a devolução de todo o dinheiro. Nunca mais falou com
ela, nem com Gal. Hoje tem 41 anos e diz que esse foi um dos piores traumas da sua vida.

Para Ricardo Frugoli, o período em que trabalhou com Petrillo é uma época de más
lembranças. O produtor teve contato com contratantes de shows do Brasil e da Europa que
perderam o interesse em Gal Costa em razão, segundo ele, do comportamento da
empresária, que destratava os profissionais, aplicava taxas de última hora para tirar
vantagem dos organizadores dos eventos e fazia acusações infundadas de furto. Frugoli
também conta que testemunhou casos de amigos e familiares da cantora que se afastaram
dela, e de ex-­funcionários que tiveram episódios de depressão por causa das humilhações
que aconteciam nos bastidores.
Um dia, cansado de tudo, ele aproveitou uma carona com Gal para contar o que estava
acontecendo. Disse que Petrillo barrava ofertas de trabalho que chegavam e que certos
produtores internacionais se recusavam a contratá-la por causa da índole da empresária.
“Você pode ganhar o dobro do que vem ganhando”, disse ele a Gal. A cantora bateu os
punhos fechados no volante do carro. “Estão tentando me roubar, Ricardo?”, perguntou.
Frugoli conseguiu acalmá-­la, dizendo que ainda havia tempo de contornar a situação.

No dia seguinte, chegou para trabalhar e estava tudo como antes. Gal o tratava com a
gentileza e a serenidade de sempre – e nunca voltou a falar no assunto. Petrillo continuou à
frente dos negócios e ainda o humilhava, chamando-o de “burraldino” e fazendo
comentários a respeito do seu sobrepeso. “Eu tolerava por causa da Gal”, diz Frugoli.
“Durante muito tempo, fui o cara que não deixou a bomba explodir. Continuar ali era
importante para protegê-la do que vinha acontecendo na carreira e dentro de casa.”

No final de julho de 2013, Frugoli acertou os detalhes de um show diretamente com Gal.
Petrillo não gostou e escreveu por SMS: “Ricardo, pq nunca responde aos meus
torpedos??? Nunca!!! (…) Tenho uma surpresinha p vc.” Depois, acrescentou: “Favor enviar
horários de voos e hotéis. Não estou brincando.” Com medo das ameaças e do descontrole
de Petrillo, ele acordou no dia 31 e decidiu prestar queixa no 4º Distrito Policial da
Consolação, em São Paulo. A ocorrência foi emitida às 8h30 pelo escrivão Edvaldo Prado
da Silva e assinada pelo delegado Paulo Cesar de Freitas. Segue a íntegra, tal como foi
originalmente escrita:

Comparecem nesta DELPOL, a pessoa de Ricardo Frugoli, o qual relata que vem
recebendo ligações telefônicas oriundas do fone […], bem como correspondências
eletrônicas via internet, por meio das quais a pessoa da autora Wilma Theodoro Petrillo [o
escrivão acrescentou um H], vem lhe proferindo ameaças a sua integridade física, dentre
elas relata que vai acabar com a pessoa do declarante, salienta que além de ameaças por
telefone a autora lhe profere pessoalmente em seu trabalho situado no local dos fatos.
Diante do acima narrado, dirigiu-se a esta Unidade a fim de registrar o presente para serem
tomadas as providencias cabíveis. Vítima foi orientada quanto ao prazo e procedimento
legal, para representar em desfavor da autora, independentemente de intimação, se assim
desejarem.

Quatro dias depois, Frugoli foi dispensado do trabalho de produtor. Dois anos mais tarde,
em 2015, entrou com uma ação na Justiça, pedindo anotação na carteira de trabalho e
todos os benefícios trabalhistas, além de indenização por assédio moral. Sua causa foi
julgada improcedente em primeira instância. Frugoli entrou com recurso, mas a Justiça
voltou a entender que não tinha direito às questões trabalhistas, nem conseguira provar o
assédio moral. “Com a perda do processo, é como se eu não tivesse existido na vida de
Gal”, lamenta Frugoli. Ele abandonou a área cultural, na qual também trabalhou com Dionne
Warwick e Mercedes Sosa, e hoje comanda um projeto social de reabilitação de usuários de
drogas, em São Paulo. Quando recebeu a notícia da morte de Gal, ocorrida em 9 de
novembro do ano passado, se pegou pensando por que ela confiou quase trinta anos de
sua vida a Petrillo.
Uma das artistas mais relevantes da MPB, cuja carreira se estendeu por quase seis
décadas, Gal Costa deixou uma herança minguada para o filho. Uma busca em cartórios de
registros de imóveis no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia mostra que o item de maior valor
é uma casa no bairro paulistano dos Jardins. O imóvel foi adquirido por 5 milhões de reais
em 2020, depois que o apartamento em que morava na Alameda Itu precisou ser vendido
para quitar dívidas. Um ex-funcionário, que trabalhou com Gal até sua morte e conversou
com a piauí em cinco ocasiões, sempre por celular, diz que a conta bancária da cantora era
um “buraco negro”. Mesmo fazendo turnê atrás de turnê, disco atrás de disco, o dinheiro
entrava e era engolido. Treze pessoas ouvidas pela piauí – seis ex-funcionários que
trabalharam com Gal, seis amigos da cantora e um parente – concordam em um aspecto:
as finanças da cantora foram minadas no período em que Petrillo e Gal estiveram juntas.

As dívidas se estendiam a restaurantes, ao Colégio Dante Alighieri (onde estudou o filho de


Gal, em São Paulo), a empregados domésticos e, segundo uma produtora que chegou a ter
acesso a contas internacionais de Gal, até à Receita Federal norte-americana. Pouco antes
da morte da cantora, o Carnegie Hall, de Nova York, estava interessado em contratar uma
série de shows. “Na próxima vez que ligarem, diga que a Gal não gosta de se apresentar
nos Estados Unidos”, ordenou Petrillo ao funcionário que recebeu a demanda do Carnegie
Hall. Mais tarde, esse mesmo funcionário, em conversa com Gal, lamentou que a cantora
não gostasse de se apresentar nos Estados Unidos. “Isso é mentira”, reagiu Gal. Aos
íntimos, a cantora dizia que o seu nome estava sujo junto à Receita nos Estados Unidos
porque Petrillo vendera um imóvel dela em Nova York e não pagara os impostos devidos.
Temendo ser presa, Gal evitava ir ao país. Seu último show lá aconteceu em 2011.

Petrillo era a pessoa que cuidava das contas domésticas e também era a empresária
responsável pela Baraka Produções Artísticas, a GMC Produções Artísticas e a Wilclick
Produções Artísticas, empresas que negociavam os shows de Gal. Havia dois funcionários
que se dividiam entre o trabalho no escritório e as demandas da vida pessoal de Gal e
Petrillo: o almoço, o jantar, as malas de viagem, o pagamento das contas, o saque de
dinheiro no banco. Um deles contou à piauí que, em 2015, testemunhou Gal inquirir a
parceira: “O dinheiro entra e some, as dívidas não param de chegar. Que tipo de empresária
é você?” Petrillo respondeu: “Você é uma velha, as pessoas não querem mais te contratar.”
O funcionário conta que houve um momento de atrito físico. A cena aconteceu na sala de
estar do apartamento de Gal, na Alameda Itu.

Os shows continuavam a ser vendidos, mas alguns não chegaram a acontecer. O mesmo
empregado se lembra de receber telefonemas de produtores furiosos. Até que um
empresário gaúcho, Márcio André Melo da Silva, ligou ameaçando-o de processo porque
pagara para contratar um show de Gal, mas não recebera os papéis assinados por Petrillo.
O funcionário decidiu relatar à cantora o que estava acontecendo. “Se eu largo a Wilma, ela
leva metade de tudo que eu tenho, sem nunca ter trabalhado de verdade para conseguir
alguma coisa”, disse Gal, segundo o funcionário. Procurado pela piauí, Melo da Silva não
quis se manifestar. “Não tenho interesse de falar porque acredito que isso não vai levar a
nada.”
Wilma Teodoro Petrillo (seu sobrenome de solteira é Araújo) nasceu em 1950, em São
Paulo. Filha do segundo casamento da professora Vitalina Ramos Araújo com o
comerciante Celso Teodoro Araújo, foi criada com os quatro irmãos – Anna, Ana Cristina,
Celso e Saladino. Seu tio-avô, Saladino Cardoso Franco, foi prefeito do extinto município
paulista de São Bernardo, que corresponde hoje ao território das cidades de Santo André,
São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio
Grande da Serra.

Ela cresceu numa casa no bairro do Brooklin, na capital paulista, e nunca fez faculdade. Na
juventude, se vestia como hippie e saía com músicos amadores. Conheceu assim Claudio
Ricardo Petrillo, integrante de uma banda de garagem, que se tornaria seu marido. Ele
entrou para a Escola Paulista de Medicina. “Claudio foi o único de nós, dos quatros irmãos,
a não trabalhar desde cedo porque reservava o tempo para os estudos. Era um garoto
acima da média”, diz Cyro Petrillo, irmão de Claudio. Depois da formatura, ele e Wilma se
casaram e se mudaram para os Estados Unidos, onde Claudio fez residência médica na
Universidade de Nova York.

Certo dia, caminhando pela Bleecker Street, no West Village, Wilma esbarrou com o músico
Paulo Lima, que tinha acabado de produzir no Brasil o show Gal a Todo Vapor. “Ela me
disse que queria aprender a tocar violão”, relembra o músico. “Fez uma ou duas aulas
comigo e desistiu, mas continuamos nos frequentando.” O apartamento do casal Petrillo se
tornara um ponto de encontro de brasileiros em Nova York na metade da década de 1970,
frequentado por modelos, atrizes, produtores de cinema e figuras da música. O casamento,
que não gerou filhos, terminou na virada para a década de 1980. Claudio concluiu a
residência médica e se mudou para Connecticut para chefiar o departamento de medicina e
reabilitação física do Norwalk Hospital. Deixou com a mulher o apartamento em No­va York e
passou a pagar uma pensão. Claudio não respondeu os pedidos de entrevista da piauí.

Em 1982, a modelo Betty Prado chegou a Nova York. Com apenas 20 anos, era a primeira
brasileira a participar do Supermodel of the World, o maior concurso internacional de
modelos. Ela conheceu Wilma Petrillo, e as duas começaram a namorar. Costumavam se
divertir em Nova York ao lado da atriz Sonia Braga, que se preparava para atuar em filmes
norte-americanos. Betty Prado já comentou com amigos que foi lesada financeiramente pela
parceira e teve que voltar ao Brasil para se recompor. Procurada pela piauí, a modelo
limitou-se a dizer: “Isso é passado e está enterrado.” E completou: “Desejo que o universo
conspire e te ajude a descortinar esses golpes.”

Na ausência de Betty Prado, Petrillo estreitou os laços com Sonia Braga. As duas aparecem
sorridentes em fotografias da época. Anos depois, em 1997, em entrevista ao Roda Viva, a
atriz contou que morou com Petrillo – a quem ela chamou de “amiga” – num momento em
que a sua carreira passava por uma mudança. Em 1985 estreou o filme O Beijo da Mulher
Aranha, em que Sonia Braga contracenou com William Hurt e Raul Julia, tornando-se um
rosto conhecido do público norte-americano.
Petrillo sempre ficou distante da imprensa. Há pelo menos um registro audiovisual de
quando ela era jovem, num videoclipe gravado por Agnaldo Timóteo no Central Park, em
Nova York. Seu cabelo preto desce um pouco abaixo da altura do ombro e os olhos caídos
lhe dão um ar despretensioso. O nariz, fino no dorso e redondo na ponta, harmoniza com os
lábios fartos. “Era uma mulher de extrema beleza e enorme poder de sedução, mas sem o
caráter que a gente aprecia nos amigos”, diz o diretor de cinema Fabiano Canosa, parceiro
de longa data de Sonia Braga e que integrou o círculo de brasileiros que frequentava o
apartamento do casal Petrillo em Nova York. “Nunca conheci alguém como essa mulher. Ela
tinha uma coisa que lembrava a atriz italiana Lea Massari: falava bem, projetava uma
beleza interior, uma calma, um espírito quase zen. Você caía igual patinho.”

O que acontecia depois? “Ela tinha uma maneira civilizada de aplicar golpes, tinha
paciência, era uma pessoa bem orquestrada”, continua Canosa. “Era uma mulher de muita
paciência. E ninguém ousava denunciar a Wilma porque não queria se associar a uma
pessoa tão…”, ele respira fundo, e conclui: “Psicótica.” Canosa diz que Sonia Braga lhe
confidenciou que se distanciou de Petrillo quando ela já estava com Gal, depois de também
ter sido envolvida em um golpe. A atriz não respondeu aos pedidos de entrevista da piauí.

No final dos anos 1970, Gal Costa atingiu o seu ápice de popularidade no Brasil. “Ela
começou com muito prestígio, ao lado do Caetano Veloso e dos tropicalistas, mas os discos
não eram populares, costumavam agradar principalmente aos formadores de opinião”, diz o
jornalista e crítico musical Mauro Ferreira. “A virada começa em 1978, quando saiu o álbum
Água Viva, com a gravação de Folhetim, do Chico Buarque. No ano seguinte, sob a direção
do Guilherme Araújo, ela fez o show Gal Tropical, que virou o acontecimento do verão.”

Em 1984, Gal deixou a gravadora Philips e assinou com a RCA. “Então ela passou a gravar
baladas populares, como Chuva de Prata, com o Roupa Nova”, continua Ferreira. “No disco
Bem Bom, de 1985, lançou Sorte, com Caetano Veloso, e a grande explosão que foi Um Dia
de Domingo, com o Tim Maia.” Vendeu mais de 500 mil cópias do álbum, um êxito comercial
para a época.

Sua empresária, Lea Millon, que também administrava a carreira de Caetano e Gilberto Gil,
aproveitou o momento para expandir o patrimônio de Gal. “Lea sabia que uma cantora
deveria fazer o seu pé de meia no auge da carreira, para garantir um futuro seguro”, diz
Guto Burgos, o irmão de Gal, que assumiu a produção dela depois da saída de Guilherme
Araújo. Com a morte da mãe de Gal, Mariah, em 1993, Burgos tornou-se a representação
de família para a cantora, mas não participou dos últimos anos da vida dela. Diz que foi
afastado da irmã por Petrillo em 1997. “Por favor, eu não quero mais falar disso”, pede,
recostado no sofá num apartamento no Leblon. “É um assunto que me dói muito.”

Sobre a questão patrimonial, ele diz: “Gal teve oito salas comerciais no Rio de Janeiro, cujo
aluguel garantia uma renda mensal extra. Comprou uma cobertura e um apartamento no
Praia Guinle” – um condomínio de luxo na Praia de São Conrado. A piauí localizou quatro
salas comerciais no Leblon e o dois imóveis em São Conrado registrados no nome de Gal.
“Também tinha imóveis em Salvador, Trancoso e Nova York. Como dói saber que ela
morreu sem nada disso. Parece que todo o trabalho dela foi em vão.” A cantora teve ainda
uma granja em Petrópolis, onde costumava passar os fins de semana com a atriz Lúcia
Veríssimo, que foi sua companheira durante dez anos.

“As poltronas são as mesmas, mas aquele sofá não era nosso”, diz Lúcia Veríssimo,
andando pela casa principal da granja. Há cinco outras casas espalhadas pelo terreno de
19 alqueires, todas pintadas de rosa. Depois de ter sido vendido por ela e Gal em 1992, o
espaço foi transformado em escola e, mais tarde, numa pousada. Os últimos resquícios do
jardim desenhado por Burle Marx para o casal Gal e Veríssimo são as palmeiras imperiais
que se erguem no meio do mato. O que era uma biblioteca virou lavabo. No banheiro da
suíte, a atriz se emociona: “Fui eu quem construí essa banheira para a Gal.”

As duas estreitaram as relações em 1981. “Havia, naqueles tempos, a compreensão de que


fazíamos parte de uma mesma família. Não precisávamos de apresentações formais”, diz a
atriz. “Era um período em que nós duas estávamos sozinhas, ambas processando o término
de um namoro.” Como amigas, tinham longas conversas sobre música e teosofia.
“Varávamos as noites em reflexões profundas a respeito de onde viemos e para onde
vamos. O planeta Terra, astrologia, vida após a morte, vidas passadas, reencarnação.
Falávamos também de jazz, de bossa nova, dos grandes intérpretes. Por vezes, eu tocava
o violão para ela cantar. Mas quase sempre eu pedia que ela tocasse e cantasse para mim.”

Um dia, Veríssimo precisou buscar uma encomenda no subúrbio do Rio e convidou Gal
para acompanhá-la. “Um convite nada romântico, que dificilmente alguém aceita, mas ela
aceitou.” Na volta para casa, ficaram presas no trânsito. Como o rádio do carro estava
quebrado, Veríssimo pediu que Gal cantasse para ela. “Que música?” perguntou a cantora.
“Pétala, do Djavan”, escolheu a atriz.

Gal repetiu a canção várias vezes no trajeto até a Zona Sul e terminou a noite do lado de
Veríssimo. “Era um momento mágico para nós duas. Vivíamos o ápice das nossas
carreiras”, diz a atriz, uma das estrelas da Rede Globo na época. “Eu emendava uma
novela atrás da outra, me apresentava no teatro e em shows countries pelo país. Gal estava
lançando seus maiores sucessos. Seus shows e turnês nacionais e internacionais duravam
dois anos, com casas lotadas.”

Veríssimo nunca foi creditada como produtora de Gal, mas agia como uma faz-tudo nos
bastidores. Chamou duas figurinistas da Globo, Marília Carneiro e Helena Gastal, para
refinar a imagem da cantora. Usava o conhecimento em italiano, francês e inglês para
ajudar a fechar contratos no exterior. Nos segundos que antecediam o show, levava Gal
pelas mãos até a entrada do palco. “Naquela época, trabalhar com ela era muito simples.
Ninguém precisava mover nada. O telefone simplesmente tocava.”
Na primeira casa que tiveram juntas, uma cobertura na Praia de São Conrado, a cantora
passava os dias dedilhando o violão ou lendo. Nos fins de semana, elas viajavam para a
granja de Petrópolis, geralmente acompanhadas da mãe e do irmão de Gal. Passavam os
verões em Salvador. Chegavam de mãos dadas em eventos públicos e conheceram até o
papa João Paulo II, no Vaticano. “Tínhamos um casamento declarado, com aliança no dedo.
A rua era a extensão da nossa casa. Era tão natural que acabava não chocando, nem
rendia fofocas na imprensa.”

Veríssimo se diverte lembrando dos rompantes culinários de Gal. “Na granja, se ela cismava
de fazer um prato, pegava o telefone e ligava para algum restaurante de que gostava.
Quando atendiam, dizia que queria falar com o chef e então pedia para ele ensinar o passo
a passo da tal receita. O cara ficava louco de alegria do outro lado da linha: era a Gal Costa,
porra”, conta Veríssimo, aos risos. Certa vez, Gal a chamou na cozinha para dar uma
olhada nos tomates “tão bonitos, tão diferentes”. Eram, na verdade, caquis.

Para Veríssimo, a cantora nunca aprendeu a cozinhar ou a resolver as questões mais


práticas da vida adulta. “A mãe dela, a Mariah, criou a Gal numa redoma”, diz a atriz. “Ela
dependia de muita gente, principalmente nos departamentos funcionais da rotina. Era doce,
mas profundamente insegura.” O quadro mudava quando o assunto era música. “Ela
nasceu apenas para cantar e sempre soube que isso jamais mudaria. No palco, se
agigantava, era de uma segurança invejável. Mas o poder só permanecia até ela acordar no
dia seguinte.”

Os depoimentos de amigos e familiares ouvidos pela piauí convergem em outro ponto: a


estabilidade emocional de Gal dependia de quem estava ao seu lado e tinha repercussão
direta na sua arte. Pode-se traçar um paralelo. Na década de 1970, quando teve um
relacionamento com a modelo carioca Wilma Dias, seu trabalho tinha um impulso sexual e
desafiador. Nos anos 1980, durante seu casamento com Veríssimo, teve sucesso financeiro
e alcançou o ponto mais alto de sua popularidade. Na década seguinte, depois do término
com Veríssimo e o namoro curto, mas doloroso com o músico Marco Pereira, a melancolia
tomou conta do seu trabalho.

Nesta época, sempre na companhia do irmão Guto Burgos, Gal passou a se dividir entre o
Brasil e o exterior, para temporadas de shows. “Passávamos cerca de seis meses no Rio e
seis em Nova York”, diz ele. Gal aproveitava o tempo livre na cidade norte-americana para
visitar os amigos brasileiros. “Sempre que íamos à casa da Sonia Braga, tinha essa mulher
desconhecida que morava com ela. Gal não simpatizava, mas respeitava. Se era amiga da
Sonia, só podia ser gente de bem.” A mulher era Wilma Petrillo.

Em Porto Seguro, quando a arquiteta Margarida Jacy tomava café no restaurante de uma
pousada, uma mulher de óculos escuros se aproximou e pediu o jornal emprestado. A
arquiteta entregou o jornal para a desconhecida e foi embora. No outro dia, Jacy parou o
carro para abastecer e lá estava a mulher de óculos escuros novamente. “Prazer, eu sou a
Wilma.” As duas combinaram um jantar. “Então eu soube que a Wilma era amiga de Sonia,
que vivia em Nova York e agora tinha alugado uma casa em Porto Seguro.” A arquiteta se
apaixonou pelo jeito blasé de Petrillo, que falava pouco do próprio passado, mas tudo que
dizia soava interessante. “Ela falava com orgulho que tinha sido a única namorada de Sonia
Braga.”

Os amigos avisaram Jacy que aquele namoro era uma roubada. Contaram que Petrillo tinha
aplicado um golpe no ator Diogo Vilela na venda de um imóvel. Por se tratar de uma amiga
de amigos, o ator dispensou as formalidades legais de um contrato, confiando no acordo
verbal que acabou não sendo cumprido. À piauí, Vilela disse apenas o seguinte: “Eu não
quero falar absolutamente nada sobre essa senhora.”

Jacy desprezou os comentários porque não se importava com o passado da namorada. Só


estranhava que alguém vindo de Nova York e amiga de famosos não tivesse dinheiro para
pagar as contas mais básicas. “Wilma tinha um padrão de vida alto, mas só pagava o
aluguel. Muitas vezes, quem fez o mercado da casa dela fui eu.” Em determinados dias,
Petrillo parecia falida. Em outros, jantava nos restaurantes mais caros de Porto Seguro, com
personalidades como a italiana Marina Schiano, modelo e ex-diretora criativa da revista
Vanity Fair, sua amiga de Nova York.

Apaixonadas, elas começaram um projeto para ganhar dinheiro. Jacy usaria os


conhecimentos em design de interiores para desenhar e fabricar móveis, enquanto a
namorada aproveitaria os contatos em São Paulo para vendê-los. Foi assim durante um
tempo: Petrillo negociava as peças, ficava com metade do lucro e depositava a outra
metade na conta da arquiteta. Os negócios e o relacionamento seguiram firmes. Petrillo,
inclusive, levou Jacy para conhecer a sua família em São Paulo.

Depois de três anos e meio de namoro, a arquiteta comprou um terreno de 3 mil hectares
em Santo André, a 30 km de Porto Seguro, registrado no nome dela e da namorada, que
ficou de pagar pela sua parte assim que possível. Como o negócio aconteceu há muitos
anos, Jacy não lembra os valores exatos, mas calcula que cada uma deveria desembolsar
uns 15 mil dólares. Petrillo viajou para Nova York em seguida e, pouco a pouco, foi
deixando de mandar notícias. Gal Costa havia entrado na história.

Quando amigos perguntavam a Gal como conheceu Petrillo, eles sempre escutavam a
“história do avião”. Num dia da primeira metade da década de 1990, estava viajando para
Nova York de primeira classe quando lhe trouxeram uma garrafa de champanhe: “Foi
aquela moça ali quem mandou”, disse a comissária. Gal reconheceu o rosto que tinha visto
na casa de Sonia Braga e, contando com a liberalidade da companhia aérea, convidou
Petrillo para se sentar ao seu lado na viagem. Quando o avião pousou, Petrillo disse que
não tinha onde ficar na cidade, e Gal a chamou para se hospedar em sua casa. Nunca mais
se desgrudaram.

De Porto Seguro, Jacy continuava tentando se comunicar com a namorada. “Eu não
conseguia nem sentir raiva, queria apenas que ela me pagasse o que devia pela compra do
terreno.” Meses depois, quando Petrillo reapareceu em Porto Seguro, Jacy cobrou o
dinheiro. Petrillo puxou do bolso do casaco um bolo de papéis e disse: “Estão aí as notas.
Eu te paguei tudo.” Eram os comprovantes dos depósitos do dinheiro obtido com a venda
dos móveis planejados por Jacy.

Num rompante de raiva, Jacy disse que se arrependia de não ter acreditado nos alertas de
que ela era uma “golpista”. Petrillo levantou-se da mesa e foi embora. “A verdade é que ela
detonou toda a herança que os pais deixaram. Os irmãos usaram o dinheiro para prosperar,
mas Wilma não”, diz a ex-namorada. “Então, começou a aplicar um golpezinho aqui, outro
ali, e a viver com quem pudesse bancar o estilo de vida dela.” Jacy diz que até hoje não
recebeu o dinheiro. (Ana Cristina Teodoro de Araújo, irmã de Petrillo, negou à piauí que a
herança tenha sido detonada e não quis dar detalhes sobre o assunto. “Em briga de família,
ninguém tem que se meter.”)

No Rio de Janeiro, Gal acolheu Petrillo na cobertura de São Conrado, a mesma onde tinha
vivido com Lúcia Veríssimo. Em 1994, a cantora disse, numa entrevista à jornalista Marília
Gabriela, que pela primeira vez estava gerindo a própria carreira. O irmão, Guto Burgos,
conta uma versão diferente: ele próprio teria passado a atuar mais intensamente como
empresário da irmã, incentivando para que ela continuasse a trabalhar depois da morte da
mãe. Sem experiência em produção cultural, Petrillo começou a participar dos negócios.

A nova namorada foi citada pela primeira vez em um trabalho da cantora em 1995, nos
agradecimentos do disco Mina d’Água do Meu Canto. São raros os registros de Petrillo ao
lado de Gal. Em 1996, a repórter Neide Duarte, do SBT, passou alguns dias acompanhando
a rotina da cantora, entre o Rio de Janeiro e Trancoso, na Bahia. Em cenas gravadas no
jatinho que as levava ao litoral baiano, Petrillo aparece usando seus óculos escuros.

No dia 14 de abril do ano seguinte, Burgos se internou para fazer uma cirurgia no coração e
deixou os funcionários do escritório de Gal administrando o cronograma de shows. Logo
que retornou a sua casa, começou a receber ligações de produtores de shows do Brasil e
do exterior. Um deles disse: “Guto, ligou aqui uma mulher perguntando se você já roubou a
Gal.” O irmão da cantora descobriu que era Petrillo. Pouco depois, Gal o chamou para
conversar. “Ela disse que sentia que estava na hora de trabalhar com outra pessoa”, conta
Burgos. “Desejei sorte para ela e disse que esperava que a Wilma respeitasse o meu
nome.” Gal se afastou do irmão. “Foi muito estranho porque tínhamos uma amizade
estreita, em todos os sentidos.”

Os interesses empresariais de Gal ficaram então sob os cuidados da namorada, que


colocou à venda a cobertura em São Conrado. Em seguida, as duas se mudaram para a
casa de Trancoso, e Gal reduziu o contato com a maioria dos amigos. O telefone fixo da
nova casa estava sempre ocupado, ou encaminhava as ligações para a caixa postal.
“Quando estou na Bahia, meu ritmo fica mais lento, eu fico mais preguiçosa”, disse Gal à
reportagem do SBT, com o litoral baiano ao fundo da imagem. “Eu fico mais burra, aquela
burrice boa, de preguiça, que não dá nem vontade de pensar.”
O candomblé era um pilar da vida religiosa de Gal Costa. Ainda jovem, ela foi levada ao
Gantois, o terreiro de Mãe Menininha, em Salvador. Descobriu que seu orixá era Obaluaiê.
“Gal, uma estrela? Aqui no Gantois? Nunca”, diz Mãe Carmem, filha caçula de Mãe
Menininha. “Ela entrava aqui com tanta simplicidade que ninguém dizia que era a cantora.
Sentava-se no chão, para ficar bem pertinho do meu colo.”

A ialorixá de 94 anos fala devagarinho e fica melancólica quando o assunto é Gal. Encolhe
os olhos e sacode a cabeça de um lado para o outro: “Se eu soubesse que ela ia partir tão
cedo, eu a teria filmado em cada pedaço do Gantois, até entrando no banheiro, para não
esquecer nunca. Gal era como um vento batendo numa flor: suaaaaave”, diz ela, alongando
a vogal. “Uma beleza tão simples que, se você não prestar atenção, não vê.”

Outro pilar da cantora era a teosofia. Em 1994, ela conheceu a médium Halu Gamashi e
ficou interessada pelo seu trabalho com chacras. “Gal era uma séria estudiosa da
espiritualidade”, diz Gamashi. Quando visitava a Bahia, a cantora se encontrava com a
amiga, mas Petrillo não a acompanhava. Até que, um dia, Petrillo apareceu em um jantar de
médiuns em Trancoso. Observava a conversa em silêncio. A certa altura, levantou o dedo
para perguntar se alguém ali acreditava em extraterrestres. Quando Gal, Gamashi e os
outros entraram num transe, Petrillo explodiu com a namorada: “Chega, você não deveria
me trazer para um lugar como este.”

A médium disse que, por causa do “ciúme inescrupuloso” de Petrillo, passou a se encontrar
com a cantora em sigilo. Quando iam jantar, Gal olhava para um lado e para o outro,
tentando se certificar de que Petrillo não estava à espreita. “Sinceramente, ninguém
conseguia entender o que se passava naquela relação. Gal era uma pessoa tão reservada
que não deixava ninguém se aprofundar no assunto. E eu também não queria participar
daquilo”, afirma Gamashi. “Na minha cabeça, elas sempre foram como dois olhos: estavam
uma do lado da outra, mas não se enxergavam.”

Em 1995, Gamashi combinou com a cantora de fazer a leitura de sua aura durante um
show. “Aceitar ficar com elas no camarim foi uma decisão horrível”, diz. Minutos antes de
começar a apresentação, ela ouviu Petrillo perguntar se Gal não sentia vergonha por estar
tão gorda. “Ela disse para Gal: ‘Você está pensando que é quem, Nana Caymmi?’”, conta a
médium. “O mais estranho era que a Gal ficava quieta diante dessas situações.”

Em 1998, a cantora comprou por 1,6 milhão de reais, em valores da época, um hotel
modernista no Morro da Paciência, em Salvador, para transformar em sua residência – e se
mudou pa­ra lá no começo dos anos 2000. O dono da casa ao lado era Caetano Veloso.
Com Gal, moravam Petrillo, uma empregada e um motorista, que trabalhava para a cantora
desde os tempos do casamento com Lúcia Veríssimo. Nessa mesma época, Ana Cristina, a
irmã caçula de Petrillo, deixou São Paulo e se instalou numa quitinete perto da casa de Gal.
Foi contratada por Petrillo para tomar conta dos cachorros da cantora.
A jornalista e produtora cultural baiana Rita Moraes foi convidada por Gal para produzir um
show, em 2009. “Quando soube que eu ia me encontrar com Wilma, um amigo me disse:
não leve a sua bolsa, deixe no carro”, conta Moraes. Ela viajou a São Paulo, Goiânia e
Brasília, tentando captar recursos, mas encontrou resistência dos investidores. “Eu não
entendi: co­mo o nome de Gal Costa, a maior voz do Brasil, não abre portas?” O show não
aconteceu, mas Moraes produziu a participação da cantora no festival Praia 24 Horas,
promovido pela Prefeitura de Salvador. Depois, organizou outras duas apresentações de
Gal na Bahia. Na última, o governo do Estado atrasou o pagamento e Gal disse a Moraes
que, por recomendação de Petrillo, não subiria no palco se não recebesse o dinheiro
imediatamente. “Sempre tinha um estresse envolvendo a Wilma e eu decidi não trabalhar
mais com Gal. Wilma tinha a melhor voz do Brasil em suas mãos, mas faltava tino
administrativo e habilidade de conversar com os outros”, diz Moraes. “Num momento de
desgaste, eu perguntei: ‘Gal, afinal, qual é o papel de Wilma na sua carreira?’ E ela
respondeu: ‘Wilma só me veste.’”

Nem todos têm a mesma leitura do relacionamento entre Petrillo e Gal. “Elas eram ótimas”,
afirma o amigo Alexandre Rodrigues, que acompanhou as duas tanto na Bahia quanto nas
viagens do casal a Nova York. “Quando estava longe, Gal ligava para Wilma três ou quatro
vezes por dia.” Rodrigues garante: “Não havia conflito nenhum entre elas, pelo contrário.” O
diretor Daniel Filho, amigo de Gal e de Petrillo, também diz que já ouviu diversos
comentários sobre o passado de Petrillo, mas nunca chegou a uma conclusão. “Sei lá, é um
mistério. Dizem muita coisa, mas eu prefiro ficar com a versão da Wilma.”

Quando concluiu o processo de adoção do filho Gabriel, Gal lançava discos e rodava o
mundo com turnês que exploravam pouco sua extraordinária capacidade vocal. “Os anos
2000 foram muito esquisitos. Ela entrou para gravadoras menores e lançou discos de pouca
visibilidade que desagradaram a crítica por serem conservadores, caretas”, diz o crítico
Mauro Ferreira. “Na segunda metade da década, parecia que a carreira dela estava
acabada. Até que Caetano Veloso percebeu isso e decidiu tirá-la do fundo do poço com o
álbum Recanto.”

Descontente com um show de Gal que assistiu em Portugal, Caetano convidou a cantora
para gravar um disco de canções inéditas. Em um mês, compôs as músicas e começou a
trabalhar nos arranjos eletrônicos de Recanto, com a ajuda de Moreno Veloso, o seu filho
mais velho e afilhado de Gal. Segundo Moreno, a disposição de sua madrinha nas
gravações foi “inabalável”, do início ao fim.

As complicações surgiram mais tarde, quando se ventilou a possibilidade de fazer uma


turnê pelo Brasil para promover o disco. Petrillo queria que Gal continuasse com os shows
de voz e violão. E, se fosse para a turnê Recanto acontecer, ela não queria que Caetano
recebesse os créditos e o lucro pela direção artística. “Gal e Wilma estavam há muitos anos
produzindo shows de voz e violão, não tinham mais estrutura nem traquejo para tomar
conta de uma equipe maior”, diz Moreno. “Foi um pouco penoso para a equipe e para elas
esse período de readaptação a projetos maiores. Acho que todo esse atravancamento
ficava na conta da Wilma por ela ser a produtora, mas sei que era mais confusão, falta de
preparo e de comunicação do que má vontade.”

Por fim, Petrillo deixou a produção da turnê. Em Santa Catarina, o produtor Rodrigo
Bruggemann, responsável pela organização dos shows de Recanto nas cidades do Sul do
país, comemorou a notícia abrindo uma garrafa de champanhe. “Eu trabalhei com Maria
Bethânia, Simone, Alcione, Beth Carvalho, Zizi Possi, Bibi Ferreira, Mart’nália, com
praticamente todas as cantoras do Brasil, e te digo que a pior pessoa com quem lidei nesse
meio foi a Wilma Petrillo”, ele desabafa. “Além de ser grosseira, ela fazia mudanças de
última hora e aplicava taxas surpresa, e ainda exigia uísque caro para levar para casa. Gal,
na presença dela, se tornava uma pessoa soturna.”

Bruggemann conta que Gal não fazia participação especial nos shows de ninguém, ao
contrário dos outros cantores da MPB, porque Petrillo não permitia. “Provavelmente nem
deixava os convites chegarem até ela.” O cantor Ney Matogrosso recorda que um dia
esbarrou com Gal no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Fazia algum tempo que
não se viam e, depois que se abraçaram, ela perguntou: “Você não gosta mais de mim?”
Matogrosso ficou surpreso. “Nós fomos muito íntimos, era uma delícia me encontrar com a
Gal. Falávamos de sacanagem, dávamos beijinhos, vivíamos toda aquela loucura que só
quem viveu nos anos 70 sabe”, contou o cantor à piauí, na sala de sua casa no Leblon.
“Diante de uma pergunta como aquela, eu só pude responder: ‘Como eu não gosto de você,
Gal? Eu te amo.’ Daí ela me disse: ‘Então por que você recusou as duas vezes que eu te
pedi para me dirigir no palco?’”

Matogrosso se lembra de ter recebido apenas um convite para assumir a direção do show
da cantora e aceitou na hora. Pediu que lhe mandassem um disco físico para entender o
projeto, mas conta que nunca recebeu o material. Um dia, Petrillo ligou dizendo que não
havia mais tempo hábil para Matogrosso dirigir o show porque estava em cima da hora para
a nova turnê. “Ela foi tão definitiva com a resposta negativa que eu preferi nem questionar a
decisão”, conta o cantor. No aeroporto, ele rememorou a história para a cantora, mas não
disse quem tinha ligado cancelando o convite. Gal então perguntou se o nome da pessoa
começava com a letra W. Constrangido, ele não quis responder. Na saída do aeroporto, os
dois se abraçaram e Gal murmurou: “Eu sei que foi ela.”

Em 2012, Gal e Petrillo se mudaram para São Paulo. Foram viver no apartamento da
Alameda Itu e alugaram uma sala comercial na Avenida Faria Lima, onde instalaram o
escritório das três empresas que cuidavam dos shows da cantora – a Baraka, a GMC e a
Wilclick, esta uma sociedade com Ana Cristina, a irmã de Petrillo.

O jornalista paulista Marcus Preto vinha tentando se encontrar com Gal para apresentar a
ideia de um documentário sobre o celebrado show Gal a Todo Vapor, que aconteceu em
1971. Depois de marcar e desmarcar três vezes, a cantora finalmente apareceu e ficou
animada com a proposta. Durante a conversa, ele perguntou o que Gal planejava fazer no
próximo disco. “Regravações”, respondeu a cantora. “Mas, Gal, não dá para você fazer isso,
agora que o Recanto te colocou outra vez na posição máxima da música brasileira”, ele
disse – e sugeriu que ela fizesse um disco de inéditas com compositores da nova geração.
Gal gostou da ideia e convidou Preto para produzir o álbum. O documentário sobre o Gal a
Todo Vapor não aconteceu, mas o jornalista ficou incumbido também de conceber um novo
show da cantora, para acontecer antes do lançamento do novo disco.

Os funcionários da Baraka Produções, porém, encontravam dificuldades para fechar os


contratos da nova turnê. O nome de Gal já não abria as portas com tanta facilidade. Depois
de acertar os shows com as casas de espetáculos, os colaboradores da Baraka precisavam
se certificar de que não seriam ludibriados na porcentagem que recebiam em cada
negociação. “Uma vez, um contratante argentino falou que tinha realizado um depósito e
nós fomos cobrar a Wilma, que insistia que a transferência não tinha caído na conta”, diz
um ex-produtor, que pediu para não ser identificado, por temer retaliações. “Eu me juntei à
secretária da Baraka, que tinha todas as senhas bancárias, e fui atrás do extrato. O
pagamento estava na conta havia dias, mas a Wilma simplesmente não nos pagava.”

Houve outro momento tenso entre esse ex-produtor e Petrillo durante a turnê Trinca de
Ases, realizada por Gal, Nando Reis e Gilberto Gil. Um dia, a cantora estava aflita porque
deveria ter recebido um depósito da equipe de Gil, mas a conta bancária estava vazia. Um
funcionário foi ao banco averiguar o problema e descobriu que o dinheiro havia sido retirado
por Petrillo, que tinha acesso à conta da cantora.

Funcionários da Baraka contam que, nos dias de calor em São Paulo, a empresária tirava a
blusa e o sutiã no escritório. A piauí teve acesso a uma foto tirada por um funcionário na
qual Petrillo aparece nua da cintura para cima, dentro do escritório. Uma funcionária,
Anamaris Torres Leca, chegou a entrar na Justiça com uma ação trabalhista contra a
Baraka, a GMC e a Wilclick. Na reclamação, de quase quarenta páginas, Leca diz que nos
locais de trabalho havia até mesmo controle do uso do banheiro e que Petrillo, quando
estava nervosa, dizia a ela: “Me avisaram que você é muito burra, de fato.” Francisco
Erilando Costa Uchoa, uma das testemunhas do processo, disse que Petrillo certa vez
perguntou: “A Ana já chegou para trabalhar, aquela imbecil?” Leca venceu a ação na
primeira instância e aguarda o julgamento do Tribunal Superior do Trabalho.

O empresário baiano Maurício Pessoa conta que levou dois tombos no mercado musical. O
primeiro aconteceu em 2011, quando ele e o sócio gastaram mais de 1 milhão de reais para
organizar uma turnê de João Gilberto. Às vésperas do evento, o artista cancelou tudo,
alegando problemas de saúde. O segundo aconteceu dois anos depois, em 2013, com Gal.
No começo de abril passado, ele explicou à piauí o que aconteceu.

Pessoa conseguiu patrocínio de 700 mil reais da Natura Musical para um projeto que Gal
havia aprovado: organizar seis shows e a gravação de um disco ao vivo em que ela
interpretaria o repertório do compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues. Petrillo, então, disse
que Gal só daria continuidade ao projeto se recebesse de imediato 80% do valor, ou seja,
560 mil reais. O empresário achou o valor exorbitante para a quantidade de apresentações,
mas cedeu, com a expectativa de reaver o dinheiro na venda dos ingressos. Os primeiros
shows aconteceram em 2015. “Foi muito difícil encontrar uma data para as apresentações,
porque a Wilma sempre dizia que a agenda da Gal estava apertada”, diz o empresário.
“Como assim? Apertada? Eu paguei 560 mil reais que me pediram. Tínhamos um
compromisso.” Aos trancos e barrancos, os seis shows foram realizados.

O problema chegou na hora de gravar o disco. Petrillo parou de responder às mensagens


de Pessoa. Quando finalmente retomou contato, disse que Gal não tinha mais tempo para
continuar no projeto e preferia gravar o disco em estúdio, o que Pessoa acatou. A gravação
foi agendada para um dia de 2017. Na data combinada, ninguém apareceu – e, mais tarde,
Petrillo alegou falta de espaço na agenda de Gal. Sem o disco, a Natura Musical não pagou
os 140 mil reais restantes, e Pessoa nunca recuperou o dinheiro investido na turnê. Ele
estima ter perdido mais de 1 milhão de reais.

Enquanto Gal viajava pelo país para promover o disco Estratosférica, lançado em 2015,
Pessoa trancou-se em casa, diagnosticado com depressão. Nunca entrou na Justiça para
reaver os valores. “Eu não tinha condições nem financeiras, nem emocionais e nem mesmo
físicas para lidar com a Wilma. No caso do João Gilberto, contratei um advogado e segui
com a minha vida, deixando ele cuidar dos meus direitos. Quando tudo se repetiu com a
Gal, não me sobrou chão.”

Em Pernambuco, o produtor Hermogenes Carolino da Silva também enfrentou dores de


cabeça. Ele pagou 57 mil reais a Petrillo pela realização do show Estratosférica no Teatro
Guararapes, em Olinda, previsto inicialmente para 26 de março de 2016. A apresentação foi
adiada, de comum acordo, para 2 de junho. Um dia, o evento sumiu da agenda oficial de
Gal. Depois, entrou no lugar um show no Sesc Pinheiros, em São Paulo, no mesmo dia e
horário do de Olinda. Carolino da Silva, que já tinha começado a venda dos bilhetes, ficou
sabendo do cancelamento do evento através da página de Gal no Facebook.

Em 30 de maio, a Wilclick Produções Artísticas e a própria Petrillo foram notificadas


extrajudicialmente para devolver, dentro de cinco dias, o valor já pago por Carolino da Silva
e mais 150 mil reais referentes à quebra contratual. Sem retorno de Petrillo, o produtor
levou o caso à Justiça, requerendo também 350 mil reais por danos morais à imagem de
sua empresa, a Casa de Taipa Produções e Eventos. Quatro anos depois, a 37ª Vara Cível
de São Paulo rejeitou o pedido de dano moral, mas condenou a Wilclick a devolver os 57
mil reais do show, corrigidos. Petrillo está recorrendo.

Na mesma época do frustrado show de Olinda, o produtor e diretor criativo Marcus Preto
teve a ideia de fazer um DVD para a turnê Estratosférica. Gal achou que era uma boa ideia,
mas Petrillo não gostou. “Nunca entendi muito bem o motivo”, diz ele. “Acho que a ideia
dela era retornar ao formato de voz e violão, mais barato de realizar. Para Gal, isso teria
sido artisticamente catastrófico.”
Mas, como tinha sinal verde de Gal, Preto procurou financiamento para o projeto com Kati
de Almeida Braga, dona do Icatu Seguros e sócia da gravadora Biscoito Fino, que se
mostrou interessada não apenas no DVD como em ter Gal no seu catálogo de artistas. A
cantora foi ao encontro de Kati Braga e ficou combinado que começariam logo a produção
de um novo disco e de uma agenda de shows. “Tempos depois, quando já éramos íntimas,
ela me disse que queria minha ajuda para organizar a vida financeira”, diz Braga. Ela
aceitou.

O álbum de inéditas com músicos da nova geração também foi em frente. “Eu achava
fundamental que a Gal seguisse lançando novos compositores, para manter a própria
relevância”, diz Preto. A artista embarcou na proposta do disco A Pele do Futuro. Quando
conseguiram a participação de Marília Mendonça para a música Cuidando de Longe, Petrillo
disse que não entendia por que haviam chamado aquela “caipira”. “A partir dali a minha
relação com Wilma ficou insustentável e não falei mais com ela”, diz Preto. “Também parei
de mencionar o nome dela para a Gal que, num acordo silencioso, fez a mesma coisa.”

As iniciativas de Preto e Kati Braga foram paulatinamente devolvendo Gal ao mercado


musical. Petrillo ficou escanteada nesse período. O empresário Nilson Raman assumiu a
negociação dos shows e conseguiu contornar as dificuldades. “Naquela altura, as pessoas
não queriam mais negociar shows da Gal. Os contratantes todos se conhecem, contam
suas experiências um para o outro. Sabiam do que tinha acontecido na administração da
carreira da Gal antes de eu chegar”, diz Raman. Ele completa: “Colocamos a Gal de volta à
rota da América Latina, da Europa e planejávamos a sua volta ao Japão. Todos os shows
com contratos assinados e cachês devidamente pagos.” Em 2021, sabendo que o
empresário negociava um show na Virada Sustentável de São Paulo, Petrillo contatou a
organização do evento para dizer que Gal era uma artista exclusiva do escritório dela e,
portanto, nenhum evento aconteceria sem o seu aval. A cantora ficou sabendo do ocorrido,
pediu para o novo empresário ignorar o que Petrillo havia feito e participou da Virada
Sustentável.

Gal passou a cantar com mais frequência em festivais e teatros. Tinha direito a
acompanhante, mas sempre viajava sozinha. Petrillo ficava em São Paulo na companhia da
irmã, Ana Cristina, que morava no quarto de empregada da casa, e de Gabriel, o filho da
artista. Em março de 2022, funcionários da companhia de energia elétrica bateram à porta
da casa, com uma ordem de corte da luz. As contas ainda estavam registradas no nome da
antiga proprietária da casa, a artista visual Daniela Cutait, e não haviam sido pagas. “Meu
nome ficou negativado porque a Wilma não pagou as dívidas”, diz Cutait. “Quando eu liguei
para pedir que a titularidade da conta fosse atualizada, ela disse que eu era uma putinha.
Uma putinha que morava num apartamentozinho qualquer. Você acha que eu gostei de
cortar a luz da Gal Costa? Claro que não, mas foi a saída que restou.” A titularidade da
conta de luz foi trocada.

A briga continuou, porém, quando a fornecedora de gás também cobrou a conta em nome
de Cutait. Até hoje, a artista visual tenta em vão convencer Petrillo a mudar a titularidade da
conta de gás. No dia 22 de junho passado, Cutait fez um desabafo no Instagram, expondo
as faturas vencidas e pedindo que Petrillo tome uma providência. A história foi parar na
coluna de Monica Bergamo, na Folha de S.Paulo. Os valores são irrisórios: a de maio, por
exemplo, ficou em 10 reais. Dois dias depois do desabafo de Cutaiti, Petrillo publicou no
Twitter comprovante do pagamento da conta – mas era de luz, não de gás – e escreveu:
“Se o nome dessa senhora está no Serasa, certamente não é por responsabilidade minha.”
Em seguida, partiu para o ataque: “Ela vive pendurada em maridos que certamente honram
suas contas. Seu grande mérito foi ter morado em Nova York por dois anos. Patético.
Certamente como faxineira, não como artista plástica famosa.” Cutait está considerando
levar o caso à Justiça.

Na casa de Guto Burgos, no Rio de Janeiro, há um telefone fixo para o qual apenas Nana
Caymmi costuma ligar. Ele tocou na manhã de 9 de novembro, mas a voz do outro lado era
de um sobrinho de Nana, avisando que tinha acabado de ver na tevê a notícia da morte da
Gal.

Abalado, o irmão da cantora ligou para Kati de Almeida Braga, que estava embarcando para
São Paulo a fim de acompanhar os trâmites do funeral. Burgos pediu que ela transmitisse
um recado para Petrillo: Gal havia manifestado o desejo de ser enterrada no Cemitério São
João Batista, no Rio de Janeiro, ao lado da mãe, onde comprou um jazigo perpétuo. Petrillo
recebeu o recado, mas decidiu que o corpo ficaria em São Paulo, no mausoléu da família
dela, no Cemitério da Consolação.

O velório, que contou com a presença de Burgos, aconteceu na Assembleia Legislativa de


São Paulo e, na manhã do sepultamento, o nome da viúva de Gal estava em todos os
cantos da internet. Em alguns momentos no funeral, a revolta superou a tristeza dos amigos
da cantora. “Cheguei lá e parecia uma porta de camarim. Para entrar, o seu nome tinha que
estar na lista”, diz o ator Ciro Barcelos. “Me desesperei quando vi o caixão sendo fechado,
sem aplausos, sem uma homenagem digna. Tinha um clima de frieza no ar.” Barcelos
puxou um grito de “Viva Gal Costa” antes que o corpo da cantora fosse levado embora.

No dia seguinte, a internet exibia críticas à condução do velório e à falta de esclarecimentos


sobre a morte da artista. A causa nunca foi revelada porque é desconhecida. Em busca de
explicações, Petrillo ligou para a médium Halu Gamashi, que sugeriu que se fizesse a
autópsia do corpo – o que não aconteceu. No atestado de óbito constam duas razões
presumidas: infarto agudo do miocárdio e tumor maligno de cabeça e pescoço. A cantora
havia se submetido em 21 de setembro a uma cirurgia no nariz, para a retirada de um
nódulo.

Petrillo pediu à Justiça o reconhecimento da união estável com Gal e a guarda do filho da
artista, Gabriel. Ela pede para ocupar a posição de inventariante do espólio. Além da casa
nos Jardins, comprada por 5 milhões de reais, o patrimônio inclui os direitos autorais da
cantora. Os amigos se preocupam com o destino desses bens que Gal deixou para Gabriel,
que completou 18 anos no final de junho e mora na casa dos Jardins.
No mausoléu onde Gal está enterrada, não há uma lápide com o nome da cantora. Alguns
fãs que visitam o local colocam fotos e dizeres sobre o túmulo de mármore. A piauí visitou o
local em maio. Além de fotografias, encontrou uma placa de madeira com as datas de
nascimento e morte da cantora e um trecho da música Recanto: Coisas sagradas
permanecem,/nem o Demo as pode abalar./Espírito é o que, enfim, resulta/de corpo, alma,
feitos: cantar.

Em 2009, o produtor cultural Cleber Lopes Pereira procurou a Baraka Produções para
acertar uma apresentação de voz e violão de Gal no Centro de Convenções Ulysses
Guimarães, em Brasília. O valor cobrado pelo show foi de 60 mil reais. Por telefone, ficou
combinado que a empresa de Pereira pagaria 6 mil reais um mês antes do evento, 24 mil
quatro dias antes e os 30 mil restantes na ocasião do show, dia 16 de janeiro de 2010.

No contrato enviado por Petrillo por e-mail, as regras haviam mudado: ela pedia duas
parcelas prévias de 15 mil reais e uma última de 30 mil reais. Pereira estranhou, mas
aceitou as novas condições. Um dia, a empresária ligou exigindo a primeira parcela do
show antes da assinatura dos papéis. Quando Pereira pediu o contrato assinado, ela disse:
“Meu amor, você não está lidando com qualquer cantora, estamos falando de Gal Costa. Eu
não vou assinar um contrato sem depósito prévio.”

Pereira ficou inseguro. Ele tinha 31 anos e pouca experiência no mercado, mas sabia do
risco de efetuar o pagamento sem que as formalidades contratuais estivessem
estabelecidas. Ao falar com seus dois sócios na empresa de produção cultural, eles riram
do dilema: “Cleber, pelo amor de Deus, você está lidando com Gal Costa.”

Sem dinheiro, o produtor decidiu vender o carro, um Volkswagen Fox, para pagar os 15 mil
reais da primeira parcela. Em 11 de setembro de 2009, fez o depósito na conta bancária de
Petrillo. Ela, então, começou a cobrar a segunda parcela. “Pelo e-mail, eu pedia para me
enviarem o contrato, mas a Wilma alegava que estava em turnê com a Gal e não tinha
tempo para assinar”, diz Pereira. Foi quando ele teve a primeira crise de pânico. “Eu fiquei
sem saber o que fazer. Uma opção era começar a vender os ingressos do show para
arrecadar o valor da segunda parcela, mas nem isso eu podia fazer.” A empresária havia
proibido que a imagem e o nome de Gal fossem usados em quaisquer publicidades do
show, exigência que não constava no contrato.

Ele enviou quatro e-mails para Petrillo pedindo o contrato assinado. Um no dia 14 de
setembro, outro no dia 24, o terceiro no dia 5 de outubro e o último quatro dias depois. Não
teve retorno. A empresária deixou de atender seus telefonemas. Ana Cristina, a irmã de
Petrillo, atendia ao telefone do escritório e dizia que ia transmitir o recado. “Nesse ponto, eu
já me sentia como se tivesse caído num golpe de estelionato”, diz Pereira. Sem o contrato
assinado, o Centro de Convenções de Brasília cancelou a reserva.
No final de maio passado, a piauí conversou com Ana Cristina por telefone. De início, ela
disse que nunca soube de nenhum caso de show acertado por Petrillo que não tenha
acontecido. “Eu participei de longe”, disse ela. “Só tomo conta dos cachorros da casa, e
olhe lá.” Depois, deu a entender que a responsável pelos desacordos era a própria Gal
Costa. “Eu acho que ela era muito exigente. Dizia: ‘Se não for desse jeito, eu não entro [no
palco].’ Não era uma santa.” Por que, então, Petrillo, como empresária, não devolvia o
cachê pago pelos contratantes? “Eu não sei”, respondeu Ana Cristina. “Não estou no
escritório, estou aqui no quintal com os cachorros. Procure uma produtora.”

No dia seguinte, a piauí procurou Petrillo por meio do WhastApp. A mensagem, disparada
às 18h32, fazia um pedido de entrevistas. Para não surpreendê-la e permitir que chegasse
à entrevista sabendo do que se tratava, a mensagem adiantava os pontos centrais.
Mencionava os pedidos de adiantamento de cachês de shows de Gal, alguns dos quais
foram parar na Justiça, terminando com vitória dos contratantes e derrota da Baraka
Produções. Citava que seus funcionários reclamavam de assédio moral, tendo inclusive
testemunhado que Petrillo ficava nua no escritório em dias de calor. Fazia referência à
denúncia de Bruno Prado, o médico de Vitória da Conquista, que registrou boletim de
ocorrência contra Petrillo por perseguição, e à denúncia de sua ex-namorada Margarida
Jacy, arquiteta em Porto Seguro, que a acusava de um golpe. A mensagem dizia, ainda,
que ex-funcionários contaram que ela abusava psicologicamente de Gal e encerrava
informando que a cantora tinha receio de ser presa nos Estados Unidos pela falta de
pagamento dos impostos decorrentes da venda do apartamento em Nova York.

Petrillo não respondeu e bloqueou o repórter. Ela voltou a ser procurada, desta vez por meio
de uma ligação por celular, no dia seguinte, 31 de maio. Outra tentativa de contato
aconteceu no dia 6 de junho e, mais uma, no dia 9 de junho. Petrillo nunca atendeu. No dia
16, seu advogado, Ricardo Kopke Salinas, mandou uma “advertência” por escrito à piauí
para que não publicasse a reportagem, sob pena de sofrer “as medidas judiciais cabíveis”.
Segue a íntegra da peça assinada pelo advogado:

A sra. Wilma Petrillo, viúva da cantora Gal Costa, tem recebido diversas ligações telefônicas
e, inclusive, mensagem de WhatsApp, do repórter Thallys Braga, que alega estar a serviço
da revista piauí. Nessas mensagens, o citado repórter realiza afirmações e
questionamentos sobre supostos fatos de caráter privado e íntimo relacionados à
convivência entre a sra. Wilma Petrillo e a cantora Gal Costa, sob o argumento de que está
escrevendo uma matéria jornalística para a próxima edição da revista.

Tais afirmações e questionamentos partem de premissas genéricas, sem apoio em fatos


concretos, falsas, e caluniosas, como, por exemplo, a alegação de que a sra. Wilma Petrillo
cobraria adiantamentos para shows da cantora Gal Costa e os shows não aconteceriam,
dando a entender que a sra. Wilma se apropriava indevidamente dos valores pagos; ou o de
que a sra. Wilma Petrillo obrigaria pessoas da equipe de shows a dividir espaço com ela
[em] “momentos que se encontrava nua”; que a sra. Wilma chamaria a sua companheira,
Gal Costa, de “burra, velha e gorda”; que a sra. Wilma Petrillo realizava “agressões físicas e
verbais contra Gal Costa”; entre outras afirmações.
Além disso, o citado repórter tem entrado em contato com pessoas próximas à sra. Wilma
Petrillo e a Gal Costa, no Brasil e nos Estados Unidos, e feito questionamentos a tais
pessoas sobre a convivência entre ambas, bem como enviado a essas pessoas as
alegações acima referidas. Ou seja, o repórter está caluniando, difamando e injuriando a
sra. Wilma Petrillo perante essas pessoas.

É evidente que tais afirmações são caluniosas, difamatórias e injuriosas, além de serem
falsas e equivocadas, desacompanhadas de qualquer comprovação.

A sra. Wilma Petrillo não é uma pessoa pública, e a cantora Gal Costa sempre fez questão
de preservar a intimidade da família, inexistindo qualquer interesse público em tais
alegações, do que decorre o nítido interesse ofensivo do repórter.

Assim, serve a presente para adverti-­los de que se for publicada qualquer matéria sobre a
sra. Wilma Petrillo, nós adotaremos as medidas judiciais cabíveis para reparar a sua honra
e impedir a continuidade da ofensa, inclusive aquelas de caráter criminal contra o repórter e
os responsáveis. Confiamos no bom senso e qualidade da revista piauí para que matérias
ofensivas, difamatórias e caluniosas, sem qualquer interesse público, e unicamente
destinadas a ofender, caluniar e violar a privacidade alheia não sejam publicadas.

Depois de receber a advertência do advogado, a piauí voltou, mais uma vez, a procurar
Wilma Petrillo para ouvir sua versão. Ela não respondeu.

Antes de mover uma ação judicial contra a Baraka Produções, Cleber Pereira adoeceu. A
empresa de eventos era o negócio em que depositava as expectativas de conseguir mudar
de vida, ele que vinha de um loteamento urbano localizado na Ceilândia, uma das
cidades-satélites mais pobres do Distrito Federal. De segunda a sexta-feira, ele se dividia
como professor de teatro entre duas escolas públicas de Brasília.

Com as contas acumulando, as crises emocionais se intensificaram. Um psiquiatra o


diagnosticou com depressão, ansiedade e princípio de pânico, e ele foi afastado do trabalho
pelo INSS. “Eu sou arrimo de família. Venho de um contexto de dificuldade financeira”, diz.
“Até hoje, ver qualquer reportagem sobre estelionato me causa angústia. É uma sensação
de que te amarram e você não tem saída.”

Em 2014, Pereira venceu na Justiça um processo contra a Baraka Produções, cujo portfólio
de artistas tinha apenas Gal. Na sentença, o juiz mandou a produtora pagar uma
indenização de 15 mil reais. Pereira achou pouco, recorreu e as partes acabaram fazendo
um acordo de 35 mil reais. “O valor original acabou sendo um pouco maior porque a ré
atrasou o pagamento de algumas parcelas. Mas conseguimos penhorar a conta bancária
dela”, diz o advogado Diogo Kutianski, que trabalhou na causa. Pereira conta que usou o
dinheiro para começar outra empresa de produção cultural. “Consegui me reestabelecer,
graças a Deus, mas passei anos com a vida revirada.” Até hoje, toma os remédios para
dormir que o psiquiatra receitou em 2009. “Nunca vi o rosto da Wilma e ela mudou
completamente a minha vida”, diz, com um sorriso desajeitado. “Aposto que ela nem faz
ideia do estrago que causou.”

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