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2007 © Terésio Bosco

Adaptado do original italiano Jean Baptiste De La Salle É outono na França. Num dia muito frio de
outubro de 1660, uma carruagem puxada por quatro
cavalos ofegantes percorre velozmente as estreitas ruas
de Reims, pequena cidade a leste da capital, Paris. À
frente dela, dois cavaleiros com chapelão de plumas e
espada a tiracolo levam no peito o brasão dos La Salle:
um jogo geométrico de linhas sobre fundo azulado.

A carruagem entra pela ampla porta principal do


Colégio Bons Enfants. Um servo se apressa em abrir a
portinhola.

Usando um impecável uniforme de gala, desce um


menino de nove anos. O olhar, assustado, parece o de
um animalzinho acuado. A criança segura com força a
mão da mãe, também impecável em seu lindo vestido
rendado.

Com gestos elegantes, mas frios, o diretor os


saúda com uma leve inclinação.
COO-282.092 Poucos minutos depois, João Batista de La Salle é
matriculado no colégio para nobres, que funciona em
regime de internato. Recebe seu lugar na sala de aula,
onde manuseia os livros ásperos e grandes que lhe farão
companhia durante os próximos anos.
Todos os direitos reservados:
Junto dele estão outros meninos, todos em
EDITORA DOM BOSCO
SHCS CR – Quadra 506 – Bloco B
uniforme de gala, todos igualmente assustados. O Bons
Sala 65 – Asa Sul -70350-525 Enfants é famoso pelo ensino e pela austeridade. Os
Brasília (DF) Tel.: (61) 3214-2300
www.edbbrasil.org.br mestres são severos. Até nos raros momentos de recreio,
os alunos são obrigados a falar latim.

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João Batista está sentado na carteira, pronto para mundos, ou talvez atirado às feras por amor a Jesus.
assistir à sua primeira aula. Abre o livrão, ouve a voz Sua imaginação, como a de toda criança, não conhecia
do professor, mas não consegue se concentrar. limites.
Devaneia... Mas, em vez da vida de aventuras que sonhara
Revê a casa da família, o rosto sorridente da avó para si, tinha sido colocado naquele colégio tão severo.
e fica imaginando o que estarão fazendo seus irmãos Por quê? Será que ali também teria chance de se tornar
menores. Devem estar correndo pelas ricas salas do santo?
palácio, armando a maior algazarra. Depois
participarão do sarau iluminado por velas, com músicas
executadas ao violino e ao cravo por músicos
especialmente contratados.
Quando era menorzinho, a música o enjoava
depressa. Ele, então, agarrava-se aos joelhos da avó,
como a pedir socorro.
Com o rosto iluminado por um largo sorriso, a
velhinha o acolhia, tomava-o nos braços e,
disfarçadamente, levava-o para o próprio quarto. Abria
um dos belos volumes da sua estante e lia para o neto
as vidas dos santos.
João Batista ouvia, encantado, as histórias dos
mártires atirados às feras, dos antigos eremitas
habitantes das cavernas solitárias, do soldado Inácio
ferido sob as muralhas de Pamplona e tocado por Deus,
do missionário Francisco Xavier que tinha navegado
até as Índias para levar a fé aos pagãos.
Sobre os joelhos da avó, João Batista sonhava em
também se tornar santo: nas cavernas dos eremitas, ou
nos navios dos missionários de partida para outros

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Peste, guerra e um povo com fome

Enquanto João Batista começa sua vida de Que desejo mais estranho! Afinal, naquela época,
estudante num internato para filhos de famílias ricas, ao o costume era que o filho mais velho de uma família
redor dele a realidade é bem mais dura. Apesar de Paris nobre continuasse a profissão do pai, tomasse o lugar
ter apenas 300 mil habitantes nessa época, 17 milhões de dele como chefe do lar e herdasse seus títulos. Só os
pessoas habitam o restante do país. Quarenta anos mais filhos menores podiam deixar a casa a fim de entrar no
tarde, no final do século XVII, esse número terá baixado exército ou no seminário.
para 14 milhões. Peste, fome, guerra, carestia estão
Mas os La Salle são cristãos de verdade, e quando
devastando não somente o território francês, mas toda a
compreendem que o pedido do filho vem de uma
Europa.
vontade profunda e não é um fogo de palha, acabam
Na França, mendigos formam multidões que se aceitando. O tio de João Batista, chanceler da
arrastam pelas estradas: camponeses despojados das Universidade de Reims e cônego da catedral, acompanha
próprias terras, artesãos desempregados, mulheres sem com interesse os brilhantes estudos do sobrinho durante
família, crianças sem ninguém. São cerca de dois os sete anos de internato. Orgulhoso, decide dar um
milhões de pessoas que acampam diante das igrejas e dos empurrão na carreira religiosa do rapaz.
palacetes dos nobres, ajudando-se umas às outras da É assim que, em janeiro de 1667, com apenas 15
maneira como podem. A maioria segue para a capital, anos, João Batista se torna cônego. Envolto num
onde já se encontram 40 mil mendigos. mantozinho violáceo, ele vai todos os dias rezar a fim de
se preparar da melhor maneira possível para o
Nos dois anos seguintes, enquanto estuda muito e sacerdócio. Continuando, ao mesmo tempo, a vida de
revela uma inteligência vivaz, João Batista também estudos, matricula-se na Universidade de Reims para
aprende a falar com Deus. Na capela do colégio, assiste à cursar Filosofia.
missa todos os dias. Até que, aos 11 anos, pede ao pai e à
mãe licença para se tornar padre. Dá até tristeza descrever o que era, naqueles
tempos, um cônego. Para poder ir cotidianamente ao
coro a fim de rezar pelo povo de Deus — era esta a
obrigação principal —, a pessoa, que devia ser de família
nobre, recebia um bom salário e tinha à disposição todo
um leque de mordomias, que compreendia até carruagem
com cavalos.
Mesmo diante desse cenário, João Batista
consegue ser um bom cristão. O ordenado que recebe
como cônego é o que menos lhe interessa — se é que lhe
interessa.

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Experiência: viver como os pobres

Nessa época, faz nove anos que a França é enfrentaram em sanguinolentas batalhas, devastando os
governada por Luís XIV. O jovem rei escolhera como campos. As colheitas ficaram perdidas, reaparecendo a
emblema o sol nascente, e devido ao esplendor da corte, fome.
é chamado de "rei sol".
Nas portas de Paris acontece um espantoso
Com apenas 18 anos, assumiu todos os poderes mercado de crianças, comercializadas a preço de
que lhe cabiam, governando como um ditador. Declarou banana. São vendidas a mendigos que as aleijam para
a si mesmo chefe da administração e comandante despertar a compaixão das pessoas que passam pela rua,
supremo das forças armadas. Criou impostos sem ou então a feiticeiros, para sessões de magia.
consultar os súditos, prendeu e condenou a quem bem
Também a religião católica atravessa um período
entendeu, dispensando a "burocracia" dos julgamentos e
de grave decadência. Os bispos — quase todos
dos tribunais.
provenientes da nobreza — abandonam as dioceses para
A corte reúne os nobres, senhores feudais, poder viver em Versailles. Os cortesãos levam uma
literatos e artistas. Luís XIV é "adorado" por eles, no vida de ócio e de vício, e os camponeses são obrigados
sentido literal do termo. Seu despertar exige todo um a pagar impostos cada vez mais exorbitantes para
cerimonial: dura cerca de duas horas, e cada peça de sua sustentar tudo isso.
indumentária lhe é apresentada por um nobre — para
Justamente quando essa decadência religiosa
lhe entregar, por exemplo, a camisa, é necessário ser
atinge as formas mais escandalosas, começa no coração
príncipe de sangue azul.
da Igreja francesa uma profunda renovação espiritual
Em 1665, depois de ter gasto somas fabulosas que prega o retorno à vida de oração para encontrar
para modernizar o exército, Luís XIV recomeçou com Deus por meio do amor concreto para com os pobres.
as guerras. Durante três anos, espanhóis e franceses se O seminário de São Sulpício, no centro de um
bairro popular de Paris, torna-se o ponto central dessa
renovação. E é para lá que vai João Batista em 1670,
aos 19 anos.

O regulamento é severo: despertar às 4 da manhã,


frequentar as aulas de teologia na Sorbonne, realizar

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longos períodos de oração e meditação e repousar às 8 Na cidade há escolas, mas só para quem pode
da noite. pagar. Junto à igreja paroquial, então, o seminário
decide abrir as "escolas paróquias", com professores
João Batista começa, então, a se voltar para uma pagos pelo pároco para levar instrução aos pobres,
vida serena, fundada na pobreza, na obediência e no gratuitamente. Mas, incapazes de controlar a meninada
desapego do mundo. No caminho para a universidade, é irrequieta, a maioria dos professores entrega os pontos.
sempre rodeado pela multidão de mendigos que lhe A escola vai indo aos trancos e barrancos. E João
estendem a mão. A situação de miséria que o cerca Batista acompanha tudo com interesse, tentando
deixa-o desconcertado. encontrar soluções.

Mas não encontra a pobreza apenas nas ruas. O


diretor espiritual do seminário quer que os jovens —
quase todos provenientes de famílias nobres — a
experimentem na própria pele. Recebem, então, as
tarefas de varrer, lavar os pratos e as panelas e fazer a
limpeza geral da casa.

Nos dezoito meses passados no seminário, João


Batista passa a ter uma vaga ideia de como é ser pobre.
Aos domingos, juntamente com outros seminaristas,
passa a percorrer as vilas estreitas e úmidas dos cortiços
do bairro. Descobre meninos que têm os olhos
apagados, sem esperança de um futuro melhor.

Ele e os colegas religiosos conseguem atrair essas


crianças com brinquedos e histórias tiradas da vida dos
santos. Mas logo se dão conta de uma grave realidade:
nenhum daqueles pobres meninos sabe ler nem escrever.
E, sendo assim, estão realmente excluídos: como
poderiam sonhar com uma vida mais digna?

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Dias amargos e uma grande dúvida
Apesar de ser apenas dez anos mais velho que ele,
Roland é bastante sábio. Ouve as palavras do amigo,
reflete sobre elas e depois diz:
— A resposta, quem deve lhe dar são os fatos. Se
os seus parentes têm realmente necessidade de você,
então procure Deus na sua família. Mas se perceber que
eles podem passar sem a sua presença, então é sinal de
que Deus continua a lhe chamar para o caminho do
Dezenove de julho de 1671 é um dos dias mais
sacerdócio.
tristes na vida de João Batista: o da morte de sua mãe.
Exatamente nove meses depois, morre inesperadamente Pouco tempo depois, os fatos davam a resposta.
também o pai. Remi, o irmão de 19 anos de João Batista, e Maria, de
18, passam a dar uma mãozinha nos afazeres da família.
João Batista deixa imediatamente o seminário de E ele, embora cumprindo todos os seus deveres de
Paris e volta a Reims. Mesmo tendo somente 20 anos, irmão mais velho, pode prosseguir seus estudos,
como primogênito deve assumir a direção da casa, enquanto as coisas vão se ajeitando. É como se costuma
dedicar-se à administração do patrimônio familiar e se dizer: "Com o andar da carroça é que as abóboras se
ocupar da educação dos irmãos e das irmãs — os mais ajeitam".
novos, Louis e Pierre, têm apenas 8 e 6 anos. ***
É uma experiência decisiva para João Batista. É Sábado Santo. Na catedral de Reims, vestindo a
Precisa enfrentar e resolver sérios problemas de batina, um jovem se prostra com a face por terra, diante
organização e direção. Num curto espaço de tempo, é do altar. O órgão entoa notas majestosas. O arcebispo
obrigado a se tornar adulto. invoca, um por um, os grandes santos da Igreja. Depois
coloca as mãos sobre a cabeça daquele moço, pedindo
A questão do sacerdócio lhe tira o sono. Deve ao Espírito Santo que venha imprimir-lhe na alma o
deixá-lo, depois de tantos anos de preparação? Os caráter sacerdotal.
parentes e amigos acham que sim. Mas João Batista
quer pensar com calma no assunto e, passados os Quando se ergue para receber o abraço do bispo,
primeiros meses duríssimos, vai conversar com um João Batista já é sacerdote. Havia se tornado um homem
amigo, o padre Nicolas Roland. alto e esbelto, com a fronte espaçosa e a fisionomia a

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Uma estranha história

aberta. Usava cabelos compridos, segundo a moda de J eanne de Maillefer era uma mulher riquíssima,
então. Os olhos azuis pareciam sorrir, mas também de família nobre, conhecida na região de Rouen, ao
sabiam exprimir coragem e decisão. norte da França, pela sua beleza e esquisitice. Numa
tarde, bateu à porta do seu palácio um miserável que
No dia seguinte, 10 de abril de 1678, Domingo de trazia no rosto a marca do cansaço e da fome. Pedia
Páscoa, celebra sua primeira missa. Ao seu lado estão as para passar a noite ali, pois achava que ia morrer.
irmãs, os irmãos e a velha avó. O padre Roland assiste a
tudo com o rosto pálido e muito tenso. No final da Mas a dona em pessoa fez questão de enxotá-lo.
cerimônia, enquanto João Batista, ainda comovido, tira Um dos cocheiros, no entanto, teve compaixão.
os paramentos, o amigo o traz rudemente à realidade: Escondido da patroa deixou o mendigo descansar na
palha enxuta, num cantinho da estrebaria. Durante a
— E agora, o que vai fazer?
noite, o coitado morreu.
— Não sei — murmura —, ainda não pensei nisso.
Ao cocheiro coube a desagradável missão de
— Pois eu mesmo vou lhe dizer! Virá me dar uma avisar à patroa, que teve um princípio de histerismo:
ajuda lá nas Irmãs do Menino Jesus. Quatro escolas para vociferou, rasgou as rendas e os bordados, bateu os pés,
meninas pobres estão ameaçadas de fechamento. ameaçou demitir o empregado. Gritava, possessa:
— Um morto na minha casa! Ah! Essa não! Não o
E, sem dar tempo para João Batista dizer qualquer
quero aqui! Tirem-no daqui!
coisa, arremata:
— Mas é preciso algum dinheiro para o caixão...
— Espero-o amanhã, sem falta!
— murmurou o cocheiro.
A patroa pegou o primeiro lençol que encontrou
pela frente e o atirou ao cocheiro, gritando:

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— Para um mendigo, dá e sobra! E agora, dê o — É sempre tempo de mudar de vida, se não quer
que Deus a julgue com toda a severidade. Olhe ao seu
fora! redor. Há tanta desgraça, e a senhora a desperdiçar
O morto foi sepultado naquele mesmo dia, envolto dinheiro com vestidos e perucas. Há milhares de
apenas naquele lençol. meninos e meninas pelas ruas, sem escola, aprendendo a
roubar e a praticar o mal.
No dia seguinte, quando madame De Maillefer
— Apresente-me um projeto concreto, padre. Não
entrou na sala de jantar, encontrou cuidadosamente
o decepcionarei.
dobrado e em cima da mesa um lençol. Agarrou-o: tinha
nas extremidades as suas iniciais e era igualzinho àquele — Espero é que Deus não fique decepcionado com
que havia atirado ao cocheiro para sepultar o mendigo. a senhora! — ele diz, e em seguida lhe apresenta um
projeto de escolas gratuitas na periferia de Rouen, que
A senhora empalidece, arregala os olhos e cai
desmaiada. ela assume imediatamente.

Em Paris, padre Barré tinha fundado um noviciado


Uma ideia fixa passa a martelar-lhe a mente a
para moças desejosas de dedicar a vida ao ensino de
partir daquele dia: "A minha esmola foi dada de tão má
meninas pobres: as Irmãs do Menino Jesus. Todo ano
vontade que o mendigo a recusou, devolvendo-me o
saem de lá freiras-professoras que vão abrir escolas nas
lençol lá do outro mundo mesmo".
principais cidades da França.
Madame De Maillefer mandou chamar o padre
A família de madame De Maillefer é originária de
Barré, um santo religioso conhecido em toda a região
Reims, e um dia ela pede ao padre que pense em como
por ter aberto escolas para os pobres. E lhe contou,
ela pode ajudar também naquela cidade. Ele a coloca em
trêmula, tudo o que acontecera.
contato com o padre Roland e envia para lá quatro irmãs
— Senhora — disse-lhe francamente o padre —, com a missão de fazer funcionar quatro escolas nos
não sou lá muito inclinado a acreditar em milagres. bairros mais pobres.
Aquele lençol sobre a mesa pode ter sido brincadeira de
algum de seus criados. Mas, no Evangelho, Cristo Roland, porém, não consegue aprovação da
deixou claro que aquilo que fazemos aos miseráveis é a prefeitura para a nova obra. A única pessoa capaz de
Ele mesmo que fazemos. Repelindo de maneira tão intervir é o poderoso arcebispo Le Tellier. Mas,
grosseira aquele mendigo, a senhora repeliu o próprio infelizmente, ele é um daqueles bispos mais fáceis de
Cristo. encontrar na corte de Luís XIV do que na sua diocese.

— E o que devo fazer?

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Quinze minutos que custam uma vida

O padre Roland, que tinha absoluta necessidade João Batista se lança com entusiasmo à obra
de falar com o arcebispo desde novembro de 1677 até deixada pelo amigo. Apresenta ao arcebispo e aos
abril de 1678, tenta, sem descanso, uma audiência. Para administradores municipais um quadro realista da
não perder o lugar na longa fila de postulantes, durante situação dos pobres da cidade. Explica que, nas famílias
quatro meses passa todas as manhãs na gélida em que pai e mãe têm emprego, estes precisam passar o
antecâmara do arcebispo. dia inteiro fora. Assim, os filhos vivem pelas ruas, em
estado de abandono, até alcançarem idade suficiente
Aquela espera interminável no frio acaba para também trabalharem.
resultando numa tosse convulsiva que lhe despedaça os
pulmões. O rosto está cadavérico e os olhos, rodeados O jovem cônego defende que essa situação pode
por olheiras escuras. Quando, finalmente, consegue ser ser remediada mediante a ação das escolas cristãs. Ali,
recebido, Roland implora ao arcebispo a sua sem pagar nada, os alunos permaneceriam o dia todo,
intervenção para resolver o caso das freiras-professoras. aprendendo a ler e a escrever. O que, além de tudo,
ainda os afastaria da marginalidade.
Depois de receber uma vaga promessa, o padre é
convidado a se retirar. Aqueles quinze minutos de Diante de tais argumentos, as autoridades acabam
audiência tinham lhe custado meses de espera. E ainda cedendo. João Batista acredita que seu futuro estará, de
lhe custarão a vida. agora em diante, ligado para sempre à obra das Irmãs
do Menino Jesus. Qual não é sua surpresa quando, ao
Poucos dias depois, Roland assiste à primeira chegar a aprovação oficial do rei, em meados de
missa do seu amigo João Batista e decide lhe pedir fevereiro de 1679, o arcebispo nomeia outro sacerdote
ajuda. Foi uma das últimas coisas que fez: passados dez para o cargo de superior das escolas.
dias, uma violenta hemorragia acaba com sua vida.

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Duas cartas e um futuro

N uma manhã de março, João Batista está indo — É melhor não se hospedarem lá. O padre
celebrar na igreja das Irmãs do Menino Jesus quando Dubois tem amizade com muitos professores das petites
encontra um homem de meia-idade, dono de um sorriso écoles. Assim que souberem da sua chegada, eles vão
tímido, acompanhado de um rapazola. Aquele senhor mover-lhes uma guerra sem trégua, com medo de que
era Adrien Niel. Ajudado pela senhora De Maillefer, ele lhes roubem os alunos.
abrira escolas para meninos pobres em Rouen. Agora,
chegava a Reims com duas cartas: uma endereçada à Os adversários das escolas gratuitas para os
superiora; a outra, ao cônego La Salle. pobres são os professores que ensinam nas escolas
oficiais, onde só se entra pagando uma mensalidade. Há
Nessas cartas, a nobre senhora expressa sua também os "mestres escrivães", até poucos anos antes,
satisfação pelo bem que as irmãs estão fazendo pelas professores de caligrafia, e agora — superados pela
meninas de Reims, lamentando, entretanto, que nada difusão da imprensa — empenhados junto às famílias
ainda esteja sendo feito pelos meninos. Por isso, decidiu abastadas como professores ou empregados em escolas
mandar o professor Niel e um ajudante. Pede ao cônego privadas pagas.
que lhes dê uma mãozinha para abrir uma escola para
meninos. — Mas onde vamos ficar, então? — preocupa-se
o professor.
Sem poder acreditar no que está acontecendo,
João Batista estende a mão ao professor e ao seu — Hospedem-se comigo — convida João Batista.
auxiliar:
Nos dias seguintes, o cônego La Salle se põe ao
— Ficarei contente em ajudá-los numa obra tão trabalho, com a calma e a persistência que lhe são
importante. Coloco-me à disposição! peculiares. Em três semanas, consegue obter das
Niel explica que agora devem procurar o padre autoridades o consentimento necessário para abrir uma
Dubois, irmão da senhora Maillefer, com o qual escola experimental.
deverão se hospedar. Mas João Batista adverte:

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Apenas "caricaturas" de mestres

E m abril de 1679, o pároco de São Maurício, um É nessas conversas que começa a vir à tona um
bairro muito pobre, confia ao professor Niel a direção de profundo contraste: na opinião da maioria dos mestres de
uma escola gratuita para meninos. A classe fica apinhada então, entregue a si mesmo, um menino não pode fazer
desde o primeiro dia. É como um sinal de partida. Todos, senão o mal. Por isso, é preciso criá-lo com rédea curta, a
de repente, tomam consciência da urgência de se abrirem berros e pauladas. Já para La Salle, um menino é uma
mais escolas. No espaço de seis meses são abertas cinco, pessoa em formação, um frescor inocente que é preciso
para as quais não há professores suficientes. preservar e encorajar, um filho de Deus que necessita de
Este é o novo e grave problema que se apresenta a amor e respeito.
La Salle: onde encontrar professores? Aqueles que Diante da situação, vai conversar com o padre
correm atrás de um cargo e de um ordenado, na maioria
Barré e lhe pergunta:
dos casos, não passam de caricaturas de mestres. Nada
sabem a respeito de como lidar com os meninos. — A quem devo confiar a formação dos
Resignam-se a abraçar aquela carreira porque não
encontraram um lugar na administração pública ou no professores?
comércio. — A ninguém — responde o padre. — O senhor
Inicialmente, o pároco de São Maurício abriga em mesmo é quem deve formá-los. É esta a missão que Deus
sua casa os professores das novas escolas. Mas aqueles lhe confia. Faça dos seus hóspedes uma família e seja
indivíduos grosseiros, barulhentos e frequentemente decidido o bastante para descartar aqueles que não são
embriagados o fazem querer se livrar deles a qualquer aptos.
preço! No Natal daquele ano, La Salle os acomoda numa
casa vizinha à sua. Frequentemente passa com eles La Salle fica surpreso com essas palavras, mas
algumas horas a fim de trocar ideias. obedece. Em meados de 1680, os professores passam a
viver na casa dele. O cônego aperfeiçoa sua instrução,
encorajando-os a se mostrarem dignos da missão a que
se consagraram. Assim, dia a dia, torna-se para eles
incentivo e amparo.
Em 1681, o professor Niel vai embora e todo o
encargo de acompanhar de perto as escolas de Reims
recai sobre os ombros de La Salle. E com isso se arruma
uma tempestade: seus parentes aceitaram de muita má
vontade a entrada daqueles professores tão grosseiros em

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Ondas de miséria e repressão

sua casa. Mas quanto mais o tempo passava, mais Dois anos antes, Luís XIV, após ter reforçado seus
insistiam para que mandasse embora aquela gente que exércitos até torná-los os mais poderosos da Europa,
nada tinha a ver com a família. recomeça a guerra. Durante anos, as províncias do norte
Em 24 de junho de 1682, La Salle concorda em são devastadas pelos seus “golpes de audácia", cujo
mandar embora os professores, mas vai com eles, objetivo é aumentar o território francês com prejuízo
transferindo-se para uma casa pobre no bairro de São dos países limítrofes.
Remígio. Por isso, esse dia é comemorado até hoje pelos
Irmãos das Escolas Cristãs como a data de sua fundação. Dos campos devastados e incendiados, grupos de
refugiados se dirigem novamente para as cidades. Os
destacamentos policiais não hesitam em disparar contra
os miseráveis. Mas, na maioria das vezes, a multidão de
esfarrapados consegue varar as barreiras policiais,
inundando as ruas e praças.
Na casa de São Remígio, em Reims, os jovens
professores que vivem com La Salle são uma vintena. A
comunidade se organiza com um estilo de vida religiosa.
Reúnem-se à tarde, ao término das aulas, jantam juntos e
consagram as horas que antecedem o repouso à oração,
ao estudo e à preparação das aulas.

A pobreza se torna cada vez mais dura para todos.


Em 1684, a guerra e a carestia destroem a colheita e as
ruas ficam repletas de mendigos como nunca. Diante

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Na fila com os pobres

desse cenário, alguns jovens professores se preocupam Quando não tinha mais absolutamente nada, o
com o futuro. Podem encontrar bons empregos junto padre La Salle — como é chamado agora — quis
das famílias nobres, como preceptores. Por que, então, experimentar na própria pele a humilhação dos pobres:
continuar a dar aulas para os pobres? durante dias e dias mendigou junto com os miseráveis,
Uma tarde, no momento da oração, La Salle colocando-se na fila com eles. Viveu de pão e água
comenta para os seus um trecho do Evangelho de São recebidos como esmola. Agora podia falar de pobreza
Mateus: "Olhai as aves do céu: não semeiam, nem sem corar!
colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Em seguida, reuniu em torno de si o grupo dos
Pai celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais do que mais esforçados, propondo-lhes consagrar a vida aos
elas?". meninos pobres, fazendo voto de viver na pobreza, na
— Como o senhor pode compreender uma coisa castidade e na obediência. Renunciariam a constituir
dessas? — pergunta um dos jovens. — O senhor é rico, uma família terrena, mas viveriam juntos, considerando
tem um palácio e rendas que o garantem contra como filhos espirituais os jovens pobres que o Senhor
qualquer imprevisto. enviava às escolas.

Estas palavras são como uma chicotada. O Em meados de maio, depois de muito refletir e
cônego compreende que são a expressão da verdade. rezar, aqueles jovens pronunciaram a solene promessa
Como ele pode encorajar os outros a confiar na de viver pobres, castos e obedientes.
Providência se ele próprio não renuncia às suas O inverno de 1685 chegou rigorosíssimo. O
riquezas em primeiro lugar? prefeito de Reims, que vê toda manhã os professores
Assim, decide se livrar de tudo o que possui, irem apressadamente para a escola debaixo da chuva e
desde as propriedades até as lembranças de família. da neve, providencia para todos um manto muito
Com a ajuda de seus colaboradores, distribui tudo aos
pobres, sem fazer alarde.
La Salle renuncia, também, ao cargo de cônego.
Não quer mais ter salário fixo.

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Mudança para Paris

rústico, o mesmo que levam sobre os ombros os No início de 1688, a vida do padre La Salle e dos
camponeses da região de Champagne. Nasce, assim, o seus irmãos sofre uma profunda alteração. Da paróquia
hábito oficial dos Irmãos das Escolas Cristãs. de São Sulpício, em Paris, justamente onde ele andava
pelas ruas reunindo os garotos, chega o convite para
La Salle escolhera para si o quarto mais dirigir a escola paroquial.
incômodo, bem debaixo do teto, onde cada manhã, ao
levantar-se, precisava ficar atento para não bater com a Há 200 meninos na escola. Enchem um vasto
cabeça nas traves do forro. O hábito mais remendado e local durante as horas de aula, dedicando o resto do dia
desbotado era sempre o seu. Mas ainda sentia certo ao trabalho em uma fiação vizinha. Mas o professor
desconforto por ser o único sacerdote naquela família deles não aguenta mais: está com os nervos feitos em
de irmãos todos iguais. frangalhos por causa da indisciplina.

Um dia, reúne a comunidade e pede demissão do La Salle parte para Paris a pé, junto com dois
cargo de superior. Roga que o irmão Henri L'Heureux irmãos. Deixa como diretor das obras de Reims o irmão
aceite a direção geral das obras. Pego de surpresa, Henri. Hospedam-se junto do vigário, justamente ao
Henri acaba aceitando. Nos dias que se seguem, La lado da escola.
Salle substitui na escola um irmão cansado, põe e tira a
mesa, ocupa-se dos serviços mais pesados. No dia seguinte, encontram os meninos. La Salle
começa por dividi-los em três classes, de acordo com a
Mas o irmão Henri não está lá muito convencido idade e a inteligência. Reduz drasticamente as horas de
dessa mudança repentina. Comunica o que está trabalho ao perceber que estavam cansados demais.
acontecendo ao arcebispo, e logo chega uma carta Estabelece um horário que compreende todos os dias a
pessoal de dom Le Tellier ordenando que La Salle
reassuma imediatamente seu cargo.

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missa e o catecismo, aulas de escrita e aritmética, e — Espere um pouco antes de abandonar esta
tempo para leitura e para brincar ao ar livre. escola. Em poucos dias, os boatos se dissiparam. O
vigário de São Sulpício, de tão feliz, acabou abrindo para
O novo método, aliado à bondade dos irmãos,
os irmãos uma nova escola na Rue du Bac. Também esta
produziu uma espécie de milagre: aqueles moleques se
ficou repleta de meninos em poucos dias.
afeiçoaram aos seus educadores.
A notícia da transformação da escola se espalhou Mas a ofensiva do tal senhor Compagnon não era
rapidamente, e o número de alunos aumentou. La Salle senão a primeira centelha de um grande incêndio. Os
recebeu o pedido de abertura de novas classes e foi "mestres escrivães" da capital estavam unidos em um
obrigado a pedir reforço em Reims. Algo lhe dizia que, poderoso sindicato, dispostos a defender com unhas e
em Paris, a congregação cresceria de forma rápida e dentes o direito de ensinar mediante pagamento. Eles
definitiva. partem para o ataque em 1690, quando têm a notícia de
que a nova escola havia aceitado também meninos de
A previsão era exata, mas incompleta. Sobre eles famílias não propriamente pobres.
estava para desabar uma tempestade.
Os tais mestres organizam uma barulhenta passeata
Incomodado diante do sucesso dos irmãos, o antigo pelas ruas de Paris. Gritam que alguns frades estão
professor da escola, senhor Compagnon, quis se vingar. tentando lhes roubar o pão. Depois, dirigem-se à escola
Inventava as maiores calúnias, pintando-os como da Rue du Bac, invadem-na e a despedaçam, atirando as
gananciosos e imorais. Suas histórias eram frágeis, mas carteiras pelas janelas. Fazem também uma denúncia no
muitos acreditaram nelas. O próprio vigário ficou de tal tribunal contra os irmãos, exigindo o fechamento de suas
forma apavorado que decidiu dispensá-los sumariamente. escolas.
Avisado das falsas acusações por alguns amigos,
La Salle tem a maior aversão por processos. Mas
La Salle, antecipando-se a qualquer convocação, foi ele
agora estão em jogo os direitos dos pobres, e ele decide
próprio até o pároco a fim de lhe comunicar sua retirada.
apelar para o Parlamento de Paris. Não procura o apoio
Esperando ter diante de si um homem apavorado e de amigos influentes, mesmo os tendo aos montes.
pronto para o contra-ataque, o pároco viu-o sereno e Prefere fazer, juntamente com os irmãos, uma
tranquilo e compreendeu que ali estava um homem de peregrinação até o Santuário de Nossa Senhora de
Deus. Olhou-o, então, com simpatia e pediu: Aubervilliers, confiando a ela a causa dos meninos
abandonados.

30 31
Horas de agonia e firmeza

Mas as dificuldades aumentam. Morre de uma


Depois, comparece ao Parlamento, onde expõe
hora para outra, atacado por febre altíssima, o irmão
com calma a urgência de tirar das ruas os meninos,
Henri L'Heureux, que La Salle já considerava seu
resumindo também as características das suas escolas. sucessor. Em muitas cidades onde os irmãos abriram
Diante dos justos argumentos de La Salle, a denúncia escolas, os párocos querem impor métodos diferentes de
dos “mestres escrivães” é arquivada e os irmãos podem educação.
continuar trabalhando.
Outras graves dificuldades provêm do movimento
jansenista, que está dividindo a Igreja na França. É uma
estranha e severa concepção da vida cristã, o
jansenismo: "Deus só concede a salvação a um pequeno
número de homens, mediante uma graça irresistível.
Diante de Deus só se pode levantar os olhos tremendo",
e assim por diante.
O movimento é condenado pelo papa Inocêncio X
como herético, mas os jansenistas apelam para um
futuro concílio contra o papa e não se dão por vencidos.
La Salle, que agora muitos conhecem e apreciam, é
posto nas alturas por eles, que esperam, em troca, seu
apoio.
Mas, assim que toma conhecimento do assunto,
La Salle não só declara sua fidelidade à Igreja Católica
como começa a acrescentar à sua assinatura a expressão
"sacerdote romano". Semelhante atitude desencadeia

32 33
O "tempo das bruxas"

contra ele a oposição de muitos eclesiásticos, entre os


quais vários bispos e arcebispos.
A carestia continua a reinar. De 1686 até 1697 é
travada a Guerra da Liga de Augsburg, que leva a
Em 1691, a crise atinge seu ponto culminante. França à beira do desastre. Em 1700 começa a Guerra
Dissolvem-se as comunidades de Laon, Guise e Rethel, de Sucessão da Espanha, que dura catorze anos e é
que tinham sido fundadas havia poucos anos. Seis recordada como um verdadeiro "tempo das bruxas". O
jovens irmãos morrem por trabalhar demais e comer de longo reinado do Rei Sol se aproxima do fim, num mar
menos. Outros decidem abandonar a congregação. de sangue e ruínas.
Além disso, faz anos que nenhum jovem vem aumentar
Os exércitos infindáveis que percorrem a Europa
a família dos irmãos.
saqueiam campos e cidades, destruindo e incendiando
Num momento de desânimo, La Salle chega a tudo o que encontram pela frente. Deixam um rastro de
pensar: "Todas essas adversidades não seriam um sinal desolação, fome e epidemias. Espanha, Alemanha,
do céu? Não seria melhor fechar as escolas?". Suíça, Países Baixos, Áustria, norte da Itália e da
França são devastados pelos vírus da peste e do cólera.
Mas, por outro lado, ele não pode se conformar
com a ideia de ver seus meninos serem enxotados de Os exércitos constituem uma mistura de gente de
novo às ruas, para viver entre a miséria e a ignorância. tudo quanto é país e classe social, que nem sabem
direito por que combatem. Para manter a disciplina, é
E então reage com um ato que parece loucura: necessário recorrer à violência. Mas, fora do
juntamente com outros dois irmãos, jura perante a Deus expediente, gozam de absoluta liberdade. Uma vez que
que não abandonará jamais as escolas, mesmo se for não são pagos, vigora o princípio segundo o qual “quem
obrigado a pedir esmola de porta em porta para viver. guerreia vive da guerra”, isto é, cada um que se vire,
nem que seja vivendo do furto, do saque e da
Naquele mesmo ano, realiza um segundo ato de
devastação.
confiança no futuro: adquire um casario velho na vila
de Vaugirard, a três quilômetros de São Sulpício.
Chama para lá os irmãos que permaneceram com ele,
convidando-os para uma pausa de repouso e reflexão. E
não é que chegam seis novos jovens pedindo para entrar
na congregação?
A casa de Vaugirard se transforma, então, em
noviciado. E, de agora em diante, as jovens vocações
nunca mais faltarão.

34 35
Entre os “trombadinhas” de Chartre

Em Vaugirard, La Salle segue pessoalmente a


formação dos noviços, jovens que se preparam para
O s anos seguintes à fundação de Vaugirard são
tempos bons para os irmãos. De toda parte chegam
serem irmãos. Com o chapelão na cabeça para proteger- pedidos para novas obras. La Salle, porém, não tem
se do sol e a batina desbotada, capina a horta, varre, lava pressa. Faltam-lhe vocações escolhidas e bem formadas.
e limpa. Os invernos são duríssimos. Nos quartos Somente quando se vê rodeado de uns 60 colaboradores
gélidos, por mil fendas, penetram o vento, a chuva e a bem preparados é que começa a ampliar o campo de
neve. ação.
O alimento é como o de todos os pobres: a cada
Depois de abrir duas escolas para a formação dos
manhã sai um noviço com uma grande cesta às costas.
professores, o educador pensa num novo tipo de obra: as
Volta com os restos de comida das outras comunidades,
escolas profissionais dominicais. Os operários e os
ou de alguma família rica. A chegada da cesta é a hora
jovens que não podiam frequentar as escolas regulares
do almoço. Seu conteúdo é o cardápio.
passam a ter uma chance de melhorar sua cultura e
Naqueles anos de meditação e de pobreza, La lançar as bases técnicas da sua profissão.
Salle começa a escrever os livros que se tornarão as
À primeira escola profissional aberta em Paris
vigas mestras da sua congregação. As "regras comuns"
acorrem 200 jovens operários. Trata-se da tentativa
fixam a fisionomia espiritual dos Irmãos das Escolas
pioneira de ensino profissional, que nos séculos
Cristãs, tal como se vinha delineando lentamente por
seguintes se desenvolverá sob a forma de escolas
meio de provações e sofrimentos.
técnicas e liceus de artes e ofícios.
A "norma das escolas" é o fruto de longos anos de
experiência e do amor que La Salle consagrou aos Em Chartres, não muito distante da capital, os
meninos pobres. Fixa as linhas fundamentais do método jovens, divididos em bandos, são a peste dos bairros
educativo da congregação, o qual marcará a revolução populares: promovem verdadeiras batalhas campais e
total nas escolas da França e de boa parte da Europa. Os furtos organizados. A delinquência está disseminada.
castigos corporais e os sistemas antiquados dos "mestres
escrivães" são definitivamente sepultados. Surge a
figura do professor-educador, que dedica a vida ao
menino-pessoa, digno de respeito, afeto e atenção.

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A última estação da vida

Já faz cinco anos que o bispo, colega de escola e amigo os anos seguintes são de intenso trabalho para La
de La Salle, insiste para que ele envie os irmãos para lá, Salle. E também de muito sofrimento. No outono de
o que finalmente acontece em meados de 1699. Em 1702 desencadeia-se uma violenta guerra contra os
poucos meses, o trabalho dá os primeiros frutos: os irmãos de Paris. Sob uma onda de calúnias, o arcebispo
moleques de rua se transformam em meninos que destitui La Salle do cargo de superior da congregação e
nomeia um sacerdote novo e completamente
gostam, sim, de brincar, mas também têm muita vontade
desconhecido.
de estudar seriamente e de se preparar para a vida.
Sucedem-se lances dramáticos. Irmãos decidem
Também Calais, cidade portuária ao norte do país,
abandonar em massa a congregação. La Salle ajoelha-se
na fronteira com a Inglaterra, chama os irmãos, e quatro
diante deles, suplicando-lhes para não deixarem afundar
deles abrem escolas para os filhos dos marinheiros. Em
a obra destinada aos meninos pobres. Aproveitando-se
1701, La Salle completa 50 anos e realiza um gesto
do momento particularmente difícil, os “mestres
corajoso: envia dois irmãos para abrir uma escola
escrivães” retomam a ofensiva, enviando a polícia para
popular gratuita em Roma. É uma clara afirmação de
requisitar as escolas.
fidelidade à Igreja e um passo decisivo para levar a obra
para além das fronteiras do próprio país. Aos 53 anos, a fronte de La Salle está coberta de
rugas e seus cabelos estão embranquecidos. A grande
iniciativa de levar aos meninos da rua a palavra de Deus
parece definitivamente perdida. Mas, em fevereiro de
1704, a esperança de sobreviver ressurge nos selos
vermelhos de uma carta chegada de Rouen. É o bispo
daquela cidade que convida os irmãos para dirigirem
quatro escolas.

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A acolhida não é o que se esperava: o povo, pelas No começo, zombou da sua bondade, mas sempre
ruas, zomba daqueles parisienses que levam sobre os acabava indo falar com ele. Até que um dia, depois de
ombros um manto de camponeses. Mas o bispo os muito ensaiar, pediu seriamente para ser aceito como
abraça um por um, encorajando-os. Em poucos meses, noviço.
as escolas dirigidas por eles são as mais florescentes, e
agora as pessoas até os saúdam respeitosamente. — É preciso o consentimento dos seus pais —
respondeu-lhe o padre. — Mas até lá, se quiser, pode
La Salle vai a Rouen. Diante da crise em Paris, viver entre os noviços.
decide transferir para lá, ao castelo de Saint-Yon, o O ex-delinquente aceitou e fez questão de
centro diretivo da congregação e o noviciado, o que de demonstrar, por meio de suas ações, o quanto tinha
fato acontece em poucos meses. mudado por dentro. Varria os corredores, ajudava na
cozinha, executava os trabalhos mais cansativos. E
Nas prisões daquela cidade há muitos garotos. A
permanecia um tempão na capela, rezando.
polícia, quando prende um bando de pequenos
delinquentes, atira-os ao cárcere, nas mesmas celas onde Seguiram-se cartas para sua casa, mas as respostas
estão encerrados criminosos calejados. Aquelas celas se foram inicialmente evasivas, cessando depois por
tornam, então, verdadeiras escolas do crime. completo. Passados alguns meses, La Salle escreveu à
família que, na falta de uma resposta negativa, ele
La Salle fica sabendo disso e pede licença ao
decidira admitir o jovem entre os noviços e que, a seu
tribunal para receber aqueles jovens em Saint-Yon.
tempo, haveria de lhe permitir que pronunciasse os
Monta para eles oficinas de carpintaria, ferraria e
votos.
marcenaria. Prepara, inclusive, uma grande escola
agrícola. Não chegou mais nenhuma carta. Chegou, isso
sim, um coche todo fechado, escoltado por cavaleiros
Da ociosidade forçada das celas às mesas das
mascarados que agarraram o jovem e o empurraram para
oficinas: um salto que faz bem. Muitos daqueles jovens
dentro. Partiram imediatamente, de forma tão súbita
se tornam, em pouco tempo, ótimos trabalhadores. A
como chegaram.
maioria deles retorna à sociedade, tornando-se cidadãos
honestos. Dois anos depois, La Salle recebeu uma cartinha
na qual se comunicava a morte do jovem, atacado por
Um daqueles meninos era filho de príncipes, mas um mal misterioso. Que pena! A família preferiu um
com 17 anos já tinha se tornado delinquente. À noite, delinquente bem nascido a um príncipe-irmão, e agora
fugia de casa e se entregava a verdadeiras loucuras. tinha perdido o menino para sempre.
Preso, acabou indo parar em Saint-Yon. E ali encontrou
La Salle.

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A Sexta-feira Santa de João

Nessa época, a Europa inteira é envolvida pela Mas também aquele terrível inverno acabou, e a
Guerra de Sucessão da Espanha. O exército francês é primavera — apesar de a guerra continuar — trouxe de
gravemente desbaratado pelos soldados do império volta a esperança. No início de 1711, La Salle parte a pé
germânico, sendo forçado a abandonar a Alemanha. Em para o sul da França: quer visitar as casas dos irmãos que
maio de 1706, os franceses são obrigados a deixar a foram abertas por lá. Faz uma longa parada em Marselha
Bélgica e, em setembro, precisam deixar também o e depois, pela áspera estrada dos Alpes, alcança
Piemonte, no norte da Itália. Agora, devem se defender Grenoble, quase na divisa com a Suíça.
dentro do seu próprio território. Sentindo-se esgotado, pede aos irmãos para fazer
Outra grave derrota em 1708, seguida de um um retiro espiritual, refugiando-se por dias no silêncio e
terrível inverno — talvez o mais cruel de que se tenha na oração na cela mais isolada que encontra. Regressa ao
recordação na França Recebe o convite para dirigir a norte seis meses depois. Mais envelhecido e cansado, é
escola, e a miséria chega ao extremo. Morre-se de fome e certo. Mas seus olhos estão mais serenos e risonhos. Em
de frio. Há marchas de famintos sobre Versailles, abril de 1716, La Salle completa 65 anos. Os irmãos lhe
desencadeiam-se revoltas desesperadas, havendo, preparam uma festa e ele está feliz da vida, mas já
inclusive, ondas de suicídios. bastante cansado. Os sofrimentos e as cruzes que
carregou até ali não foram pouca coisa.
Também na casa de Saint-Yon, naquele inverno,
impera a fome mais absoluta, aquela que tira toda e Um ano depois, sentindo que suas forças estão no
qualquer coragem, fazendo desesperar e deixar de fim, La Salle convoca alguns irmãos em Saint-Yon e
acreditar no futuro. consegue convencê-los a eleger um novo superior
enquanto ele ainda vive. Como a congregação deles é a
La Salle, nessas horas de inquietação e angústia,
primeira na Igreja composta unicamente de leigos, ele
pensa consigo mesmo que o melhor é fechar as escolas.
receia que, com a sua morte, as autoridades imponham
Seus irmãos não têm mais força para ensinar. Os meninos
como superior um sacerdote.
esqueléticos pedem comida, batendo os queixos de tanto
Depois que o novo superior foi eleito, La Salle
frio. A pneumonia leva embora os mais fracos. tornou-se um humilde exemplo de obediência. Pedia
licença para tudo, como qualquer dos irmãos. Alternava o
tempo entre a redação de seus últimos livros, o ensino
aos noviços e a oração, que se prolongava cada vez mais.

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Dados biográficos

Quando a saúde lhe permitia, descia até o pórtico e 30/4/1651: Nasce João Batista de La Salle, em Reims (França),
deixava-se ficar entre os meninos da escola. Agradava- o primeiro dos doze filhos de Luís de La Salle e
lhe contemplá-los, enquanto corriam e brincavam Nicole Möet de Brouillet.
despreocupadamente. Outubro de 1660: É internado no Colégio “Bons Enfants”, em Reims.
Era a eles que tinha consagrado toda sua vida. E foi
Março de 1662: Começa a se preparar para a vida religiosa.
entre eles que morreu, na tarde de uma Sexta-feira Santa,
no dia 7 de abril de 1719. Janeiro de 1667: Com apenas 15 anos, torna-se cônego. Matricula-se
na Universidade de Reims para cursar Filosofia.
1670: Vai para o seminário de São Sulpício, em Paris,
além de começar a cursar Teologia na Universidade
de Sorbonne.
1671-1672: Morre primeiro sua mãe, e nove meses depois, o
pai. La Salle volta para Reims, onde se dedica à
administração do patrimônio familiar e se ocupa da
educação dos irmãos menores.
9/4/1678: É ordenado sacerdote. No dia seguinte, celebra sua
primeira missa na Catedral de Reims.

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Abril de 1679: Ajuda a abrir uma escola gratuita para 1900: É declarado santo da Igreja Católica.
meninos pobres no bairro de São Maurício, em
Reims. 15/5/1950: É proclamado padroeiro universal dos
educadores pelo papa Pio XII.
1680: Torna-se formador de professores,
encorajando-os a se mostrarem sempre dignos
da missão a que se consagraram.
24/6/1682: Abandona para sempre a casa da família, aluga
uma casa pobre no bairro de São Remígio e
para lá se transfere com os professores que
acompanha. Nascem os Irmãos das Escolas
Cristãs.
1684: Decide se livrar de tudo o que possui,
renunciando, também, ao cargo de cônego.
1688: Recebe o convite para dirigir a escola
paroquial de São Sulpício, em Paris, e a esta
seguem muitas outras escolas.
1691: Adquire um casario velho na vila de Vaugirard
e o transforma em noviciado.
1701: Abre uma escola popular gratuita em Roma,
passo decisivo para levar a obra dos Irmãos
para além das fronteiras do próprio país.
1704: Transfere para a cidade de Rouen, no castelo
de Saint-Yon, o centro diretivo da congregação
e o noviciado.
1711: Parte a pé para o sul da França, onde visita as
casas dos irmãos que foram abertas por lá.
7/4/1719: Morre em Rouen, aos 68 anos de idade.

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Lassalistas no Brasil

Os Irmãos das Escolas Cristãs, com mais de 73.114


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