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Adriane Raquel Santana de Lima

Livia Sousa da Silva


Lucia Isabel da Conceição Silva
Michele Borges de Souza
Orgs.

I ENCONTRO DE EDUCAÇÃO POPULAR FEMINISTA DA AMAZÔNIA


Tema: A Urgência de uma Prática Educativa Popular Feminista
Antipatriarcal, Antirracista, Anticapacitista e Anticapitalista

Volume I

Belém
Agosto de 2021

1
Todos os direitos dessa edição reservados ao IEPA, protegidos pela Lei Nº
9.610 de 19/02/1998.

Encontro de Educação Popular Feminista da Amazônia. Vol. 1 (2.: 2021: Belém, PA)

Anais do I Encontro de Educação Popular Feminista da Amazônia: a urgência de uma


prática educativa popular feminista antipatriarcal, antirracista, anticapacitista e anticapitalista,
Belém, PA, 17 a 19 de agosto de 2021 / Adriane Raquel Santana de Lima, Livia Sousa da Silva , Lucia
Isabel da Conceição Silva, Michele Borges de Souza, Organizadores. – Belém: IEPA, 2022. Vol. 1

E-book

ISBN: 978-65-89133-05-6

1. Educação Popular Feminista. 2. Educação Antipatriarcal. 3. Educação na


Amazônia. IV. Título.

CDD 376

2
Universidade Federal do Pará - UFPA
Reitor: Emmanuel Zagury Tourinho
Vice-reitor: Gilmar Pereira da Silva

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação - PROPESP


Profª. Dra. Maria Iracilda da Cunha Sampaio

Pró-Reitoria de Ensino de Graduação - PROEG


Profa. Dra. Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira

Pró-Reitoria de Extensão - PROEX


Prof. Dr. Nelson José de Souza Júnior

Instituto de Ciências da Educação - ICED


Diretora Geral: Selma Costa Pena
Diretor Adjunto: Carlos Nazareno Ferreira Borges

Programa de Pós-graduação em Educação – PPGED / ICED / UFPA


Coordenador:
Prof. Dr. Waldir Ferreira de Abreu
Vice-Coordenadora:
Profª Drª Lúcia Isabel da Conceição Silva

Coordenação geral do I Encontro de Educação Popular feminista


Adriane Raquel Santana de Lima - Faed/ICED/UFPA
Lúcia Isabel da Conceição Silva - Faed/ ICED/UFPA

3
Realização:

GRUPO DE AÇÃO
GRUPO DE ESTUDOS E FEMINISTA
PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, GRUPO DE ESTUDOS E REDE DE PESQUISAS SOBRE
ANTIPATRIARCAL
GÊNERO, FEMINISMOS E PESQUISAS SOBRE PEDAGOGIAS DECOLONIAIS
INTERSECCIONALIDADE JUVENTUDE NA AMAZÔNIA

Apoiadores:

PROGRAMA DE INQUIETAÇÕES, ARTE,


FACULDADE DE INSTITUTO DE CIÊNCIAS PÓS-GRADUAÇÃO SAÚDE E EDUCAÇÃO
EDUCAÇÃO DA EDUCAÇÃO EM EDUCAÇÃO

LABORATÓRIO DE ESTUDOS
E PESQUISAS COLETIVO MULHERES DE GRUPO ESTUDOS E GRUPO DE MULHERES
INTERDISCIPLINARES SOBRE ANANINDEUA EM MOVIMENTO PESQUISAS BRASILEIRAS
VIOLÊNCIA ESCOLAR E EM EDUCAÇÃO, DISCURSO,
FORMAÇÃO DE PROFESSORES IDENTIDADE E
DIVERSIDADE SEXUAL

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GRUPO DE ESTUDOS E REDE DE PESQUISAS SOBRE CAMPANHA LATINO- NÚCLEO DE EDUCAÇÃO
PESQUISAS SOBRE PEDAGOGIAS DECOLONIAIS AMERICA E CARIBENHA EM POPULAR PAULO FREIRE
JUVENTUDE NA AMAZÔNIA DEFESA DO LEGADO DE
PAULO FREIRE

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO CÁTEDRA PAULO FREIRE REDE EMANCIPA DE GRUPO DE AÇÃO


E CULTURA DO PARÁ DA AMAZÔNIA EDUCAÇÃO POPULAR FEMINISTA
ANTIPATRIARCAL

CONSTRUINDO A CONSELHO
ACESSÍVEL EM LIBRAS COORDENADORIA DE REDE DE ESTUDOS
ACESSIBILIDADE REGIONAL DE
SOBRE GÊNERO NA PSICOLOGIA
AMAZÔNIA

SINDICATO DOS SINDICATO DOS


TRABALHADORES SINDICATO ASSOCIAÇÃODE
DOCENTES DA NACIONAL DOS DOCENTES DA
DAS INSTITUIÇÕES UNIVERSIDADE DO
FEDERAIS DE ENSINO DOCENTES DAS UNIVERSIDADE
ESTADO DO PARÁ INSTITUIÇÕES DE FEDERAL DO PARÁ
SUPERIOR NO
ESTADO DO PARÁ ENSINO SUPERIOR

5
Comissão Organizadora Local
Coordenação Geral
Adriane Raquel Santana de Lima - Faed/ICED/UFPA
Lúcia Isabel da Conceição Silva - Faed/ ICED/UFPA

Secretaria
Livia Sousa da Silva - Labinve/ Gepegefi/ Faed/ICED/UFPA
Marcelo de Jesus Santos - Faed/ Labinve/ UFPA
Michele Borges de Souza - EAUFPA
Diully Suellen Pinheiro Ferreira - Faed/Labinve/ UFPA

Comissão de Divulgação e Cultura


Caroline Barros da Silva
Isabell Theresa Tavares Neri
Nadinhe Silvane Natividade de Sousa
Luciana Cruz
Maria Lúcia Chaves Lima
Salete Aparecida - CMAM
Rafaela da Cunha Pinto – CMAM
Marcelo de Jesus Santos/LABINVE/UFPA
Tabatha Benitz - IDSM

Comissão de transmissão
Joel Dias da Fonseca – SEMED/ANANINDEUA

Anais e Caderno de Programação


Adriane Raquel Santana de Lima - Faed/ICED/UFPA
Lúcia Isabel da Conceição Silva - Faed/ ICED/UFPA
Michele Borges de Souza - EAUFPA
Livia Sousa da Silva - Labinve/ Gepegefi/ Faed/ICED/UFPA

Arte e identidade visual do evento


Marcelo de Jesus Santos

Capa do E-book
Marcelo de Jesus Santos

6
Comitê Científico
Coordenação
Michele Borges de Souza - EAUFPA

Coordenadoras e coordenadores do Círculo de Saberes e Afetos


Círculos de Saberes e afetos 01- Educação Popular, Feminismos Comunitários, Ecofeminismo:
Coordenação: Adriane Lima (Universidade Federal do Pará-UFPA), Tabatha Benitz (Instituto de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá - IDSM) e Carla Carolina Fonseca

Círculos de Saberes e afetos 02- Educação Popular, Feminismo Negro, Colonialismo, Interseccionalidade:
Coordenação: Lúcia Isabel da Conceição Silva (Universidade Federal do Pará-UFPA), Alessandra
Marinho, Adriana Moura e Marina Pereira.

Círculos de Saberes e afetos 03- Educação Popular, Mulheres, religiosidade, saberes ancestrais
Coordenação: Gabriela Costa Faval (UEPA), Agatha Leticia Eugênio da Luz (UEPA), Thaís Tavares
Nogueira (UEPA), Shirley Cristina Amador Barbosa (UEPA), Cynara Fernanda Aquino dos Santos
(UEPA).

Círculos de Saberes e afetos 04- Educação Popular, Gênero, sexualidade, LGBTQI+


Coordenação: Francisco Ednardo Duarte (UFPA) e Aldo Cativo (UEPA)

Círculos de Saberes e afetos 05- Educação Popular, Mulheres, violência, encarceramento


Coordenação: Edivania Alves (UFPA), Rafaela Cunha, Salete Pinto e Eterlene Duca (CMAM)

Círculos de Saberes e afetos 06- Educação Popular, Feminismo, Lesbianidade, Novas masculinidades
Coordenação: Maria Lucia Chaves Lima (UFPA), Karen Priscila Lima dos Anjos e Eric Campos

Círculos de Saberes e afetos 07- Educação Popular, Paulo Freire, autoras feministas
Coordenação: Ivanilde Apoluceno de Oliveira (UEPA), Isabell Theresa Tavares Neri e Nadinhe Silvane
Natividade de Sousa

Círculos de Saberes e afetos 08- Educação Popular, feminismos, cursinhos populares e cultura popular
Coordenação: Ana Regina da Silva (TF livre), Paula Maíra Alves Cordeiro (Emancipa); João Colares da
Mota Neto (NEP/UEPA)

Círculos de Saberes e afetos 09- Educação popular, feminismos, inclusão de mulheres com deficiência
Coordenação: Scheilla de Castro Abbud (UEPA), Kamilla Sastre, Kátia Rose Pinho (UFT), Siblya Karina
e Fádia Mauro.

Círculos de Saberes e afetos 10- Educação Popular, Feminismos, Escolarização


Coordenação: Gabriela Costa Faval, Marlen Lorena Soares, Caroline Barros da Silva, Luciana Cruz do
Carmo e Lilian Soares.

7
Pareceristas Ad Hoc

Adriana Dias de Moura


Adriane Raquel Santana de Lima
Agatha Leticia Eugenio Da Luz
Alandienis Souza Santos
Aldo Cativo da Silva Filho
Alessandra Ferreiras Marinho
Bianca de Araújo Neves
Carla Carolina Santos da Fonseca
Caroline Barros da Silva
Cynara Fernanda Aquino dos Santos
Edivania Santos Alves
Francisco Ednardo Barroso Duarte
Gabriela Costa Faval
Isabell Theresa Tavares Neri
Ivanilde Apoluceno de Oliveira
Joao Colares da Mota Neto
Kamilla Sastre da Costa
Kátia Rose Oliveira de Pinho
Larissa de Pinho Cavalcanti
Lilian Costa
Livia Sousa da Silva
Lúcia Isabel Silva
Luciana Cruz do Carmo
Maria Eterlene Castelo Duca
Maria Lucia Chaves Lima
Maria Luciana Santiago Bittencourt dos Santos
Marlen Lorena Oliveira Soares
Michele Borges de Souza
Nadinhe Silvane Natividade de Sousa
Patrícia Albuquerque
Paula Maíra Alves Cordeiro
Rafaela da Cunha Pinto
Salete Aparecida da Cunha Pinto
Scheilla de Castro Abbud Vieira
Shirley Cristina Amador Barbosa
Tabatha Benitz
Thaís Tavares Nogueira

8
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................................................................... 14
Círculo de Saberes e Afetos 01 ................................................................................................................................................... 16
EDUCAÇÃO POPULAR, FEMINISMO COMUNITÁRIO E ECOFEMINISMO ............................................ 16
FEMINISMO POPULAR: EXPERIÊNCIAS EM ORGANIZAÇÕES DE MULHERES
QUILOMBOLAS NO MUNICÍPIO DE SANTA LUZIA DO PARÁ (PA) ...................................................... 17
Joana Keylla de Sousa TRINDADE .................................................................................................................................... 17
O MITO DA INVISIBILIDADE DAS MULHERES PESCADORAS NO MUNICÍPIO DE LIMOEIRO
DO AJURU-PA ....................................................................................................................................................................... 22
Ariete Pastana LEÃO ............................................................................................................................................................... 22
Jacinilda Pastana CAVALCANTE ...................................................................................................................................... 22
COLETIVO “IARA- IDENTIDADE, ÁGUA E RESISTÊNCIA NA AMAZÔNIA: UMA PROPOSTA
DE REFLEXÃO, A PARTIR DA PRÁTICA EDUCATIVA “RODA DE SABERES MULHERES E
ÁGUA NA AMAZÔNIA” ................................................................................................................................................... 27
Aline Lima Pinheiro MACHADO ....................................................................................................................................... 27
Andreza Barbosa TRINDADE ............................................................................................................................................. 27
O TRABALHO PARA MULHERES EM CONTEXTO URBANO, RURAL E DURANTE A
PANDEMIA DA COVID-19 .............................................................................................................................................. 32
Luciene Soares de Oliveira PENA ........................................................................................................................................ 32
José Henrique Rodrigues STACCIARINI ......................................................................................................................... 32
O PROCESSO ORGANIZATIVO DO COLETIVO REGINA PINHO NO ASSENTAMENTO
ZUMBI DOS PALAMRES, CAMPOS DOS GOYTACAZES, RJ ......................................................................... 38
Viviane R. S. MARTINS. ...................................................................................................................................................... 38
O RETORNO DO PRESENTE: POSSIBILIDADES PARA UM FUTURO VIVO ..................................... 43
Airely Neves PEREIRA .......................................................................................................................................................... 43
GINECOLOGIA NATURAL E ECOFEMINISMO: DIÁLOGOS PARA ALÉM DO CORPO ................ 48
Rosiane Correa dos SANTOS .............................................................................................................................................. 48
Andréa Lúcia Ramos de Oliveira .......................................................................................................................................... 48
NEM TE CONTO: DIÁLOGOS COM MULHERES DE COMUNIDADES TRADICIONAIS ............ 54
Adiele Nataly Alves LOPES................................................................................................................................................... 54
Dyandra Jamylle Rosário da SILVA .................................................................................................................................... 54
ESTUDO DE CASO DE UMA GESTÃO ESCOLAR DO CAMPO FEMININA FRENTE AOS PAPÉIS
DE GÊNERO IMPOSTOS PELO PATRIARCADO ................................................................................................ 58
Alandienis Souza SANTOS ................................................................................................................................................... 58
EDUCAÇÃO POPULAR E AUTONOMIA FINANCEIRA: UMA QUESTÃO DE GÊNERO ............... 63
Tabatha BENITZ ..................................................................................................................................................................... 63
Patrícia Carvalho ROSA ......................................................................................................................................................... 63
9
A TRADIÇÃO FEMININA NA PRODUÇÃO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA PRESENTE NA VILA
DO CAMPO DE BITEUA, NO MUNICÍPIO DE MAGALHÃES BARATA-PA ........................................... 68
Joyce Cordeiro REBELO ........................................................................................................................................................ 68
A EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA DA ETNOFARMÁCIA: FITOTERAPIA POPULAR
DAS MULHERES DO GRUPO ERVA VIDA EM MARUDÁ-MARAPANIM-PA ..................................... 74
Andréa Lúcia Ramos de OLIVEIRA .................................................................................................................................. 74
Wagner Luiz Ramos BARBOSA .......................................................................................................................................... 74
ECO-CONVERSAS: RELATO DE VIVÊNCIA COLETIVA DIANTE DE PERSPECTIVAS
ECOFEMINISTAS E DO BEM-VIVER ........................................................................................................................ 79
Lucideyse de S. ABREU .......................................................................................................................................................... 79
Valdete Gomes SANTOS ...................................................................................................................................................... 79
Fernanda Marla C. SILVA ..................................................................................................................................................... 79
A FOTOGRA(FIA) COMO REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL DAS MULHERES
AGRICULTORAS DA FLORESTA NACIONAL DE TEFÉ (FLONA) NA CONSTRUÇÃO DO
LUGAR....................................................................................................................................................................................... 85
Marcela da Silva BARBOSA .................................................................................................................................................. 85
Rita de Cassia MACHADO .................................................................................................................................................. 85
Círculos de Saberes e afetos 02 ................................................................................................................................................... 90
EDUCAÇÃO POPULAR, FEMINISMO NEGRO, COLONIALISMO, INTERSECCIONALIDADE ...... 90
A MEMÓRIA NA AMAZÔNIA SOB O OLHAR MIGUEL DOS SANTOS PRAZERES, DE
BENEDICTO MONTEIRO ............................................................................................................................................... 92
Cristina Dias NOGUEIRA .................................................................................................................................................... 92
EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO EM ANGELA DAVIS: A EDUCAÇÃO COMO FERRAMENTA
EMANCIPATÓRIA PARA AS MULHERES NEGRAS .......................................................................................... 97
Kananda Vasconcelos NASCIMENTO ............................................................................................................................. 97
David Machado de OLIVEIRA ........................................................................................................................................... 97
EDUCAÇÃO POPULAR NA FRONTEIRA: EXPERIÊNCIAS
DEFORTALECIMENTOCOMUNITÁRIODEMULHERESMIGRANTESE REFUGIADAS EM
RORAIMA ..............................................................................................................................................................................102
Clara CUNHA ........................................................................................................................................................................102
Hannah Maia NORONHA ................................................................................................................................................102
OS DESAFIOS DO CURSINHO POPULAR ENEIDA DE MORAES NO MUNICÍPIO DE SÃO
MIGUEL DO GUAMÁ – PA ...........................................................................................................................................107
Ana Lucia dos S. SANTANA .............................................................................................................................................107
Taynara Nayara P. de OLIVEIRA .....................................................................................................................................107
A LITERATURA INDÍGENA NA ESCOLA: A ESCRITA LITERÁRIA DE MULHERES
INDÍGENAS NA SALA DE AULA ...............................................................................................................................114
Jairo da Silva e SILVA ...........................................................................................................................................................114

10
ERGUER A VOZ, TOMAR A PALAVRA E RECONSTRUIR A SI MESMAS –FEMINISTAS
NEGRAS E SUAS RESISTÊNCIAS ..............................................................................................................................119
Vanilda Maria de OLIVEIRA ............................................................................................................................................119
“MENSTRUAÇÃO PARECE MALDIÇÃO”: REFLEXÕES SOBRE A COLONIZAÇÃO DE CORPOS
E SABERES .............................................................................................................................................................................125
Caroline Luiza WILLIG .......................................................................................................................................................125
SEMEANDO RESISTÊNCIA: A MÍSTICA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO MOVIMENTO
DE MULHERES PELA TERRA.....................................................................................................................................130
Eliene TEIXEIRA ..................................................................................................................................................................130
Carina RIBEIRO ....................................................................................................................................................................130
LABUTAS DE MULHERES IDOSAS PARA ACESSAR À ÁGUA EM BREVES MARAJÓ-PA:
TRAJETÓRIAS PERMEADAS POR DIFICULDADES ........................................................................................135
Elizandra Gomes de LIMA ..................................................................................................................................................135
UM ESTUDO COMPARATIVO DA LITERATURA BRASILEIRA DE CONCEIÇÃO EVARISTO E
DE PAULINA CHIZIANE DE MOÇAMBIQUE NAS OBRAS INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE
MULHERES E NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA...................................................................141
Wellyson Gomes dos SANTOS .........................................................................................................................................141
Joyce Cordeiro Rebelo Cordeiro REBELO .....................................................................................................................141
ENTRE LINHAS, CORES E PONTOS: MÃOS-MULHERES-MÃES-NEGRAS-MULHERES
COSTURANDO E CONSTRUINDO A ORGANIZAÇÃO POPULAR ........................................................146
Martha Morais MINATEL .................................................................................................................................................146
Ana Cristina Cassiano de CAMPOS..................................................................................................................................146
Larissa Alves de Camargo ALBINO ..................................................................................................................................146
Giovana Garcia MORATO .................................................................................................................................................146
AS PROSAS E AS POESIAS DE MULHERES NEGRAS CONSTRUINDO AFROMEMÓRIAS .......152
Luzia Gomes FERREIRA ....................................................................................................................................................152
Jomara Ferreira Chaves SANTOS ......................................................................................................................................152
Julie Castro de SOUSA .........................................................................................................................................................152
Círculos de Saberes e afetos 03 .................................................................................................................................................158
EDUCAÇÃO POPULAR, MULHERES, RELIGIOSIDADE, SABERES ANCESTRAIS ...............................158
NARRATIVAS DE PARTEIRAS: VALORIZAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE SABERES E PRÁTICAS
TRADICIONAIS NA CIDADE DE TEFÉ-AMAZONAS .....................................................................................159
Thaila Bastos da FONSECA ...............................................................................................................................................159
Marcilene Queiroz Cabral SANTOS ................................................................................................................................159
Andrea Barros QUEIROZ ...................................................................................................................................................159
O PERFIL DE LIDERANÇA DA MULHER NEGRA EM LENDAS AFRICANAS E NAS RELIGIÕES
DE MATRIZ AFRICANA.................................................................................................................................................165
Márcia Gomes de OLIVEIRA ............................................................................................................................................165

11
SABERES ANCESTRAIS E PRÁTICAS DE RESISTENCIA: A EXPERIENCIA DO COLETIVO
ANGOLEIRAS CABANAS EM BELÉM-PA...............................................................................................................171
Alessandra Ferreiras MARINHO .......................................................................................................................................171
Brenda Thais Kalife de ASSUNÇÃO ................................................................................................................................171
VIDA DE PARTEIRA E O OFÍCIO DO PARTEJAR: AS TRAJETÓRIAS E MEMÓRIAS DE
PARTEIRAS TRADICIONAIS DO MÉDIO SOLIMÕES ...................................................................................177
Patrícia Torme de OLIVEIRA ...........................................................................................................................................177
Betânia de Assis Reis MATTA ...........................................................................................................................................177
O SENTIR/FALAR A PARTIR DOS (RE) ENCONTROS COM MULHERES AMAZÔNICAS ......183
Kaly Nancy REGO.................................................................................................................................................................183
Alessandra dos S. da SILVA ................................................................................................................................................183
AS VOZES FEMININAS DO CARIMBÓ: UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL SOBRE AS
MEMÓRIAS NAS NARRATIVAS CANTADAS E CONTADAS DE MULHERES DA AMAZÔNIA
PARAENSE.............................................................................................................................................................................189
Natasha de Queiroz ALMEIDA .........................................................................................................................................189
JUNTAS SOMOS MAIS FORTES AOS PASSOS DE MADA: MULHERES QUE AMAM DEMAIS
ANÔNIMAS ...........................................................................................................................................................................194
Sandra Helena Salgado de MORAIS .................................................................................................................................194
EDUCAÇÃO POPULAR E AUTONOMIA DE SER ERVEIRA: AS MULHERES E SEUS MODOS
DE ENSINAR E APRENDER SOBRE ERVAS MEDICINAIS NO VER-O-PESO ...................................200
Louise Rodrigues CAMPOS................................................................................................................................................200
Ivanilde Apoluceno de OLIVEIRA ...................................................................................................................................200
VELHICE E EDUCAÇÃO: NOVOS SABERES PARA NOVOS FAZERES .................................................207
Betânia de Assis Reis MATTA ...........................................................................................................................................207
Patrícia Torme de OLIVEIRA ...........................................................................................................................................207
Círculo de Saberes e afetos 04 ..................................................................................................................................................213
EDUCAÇÃO POPULAR, GÊNERO, SEXUALIDADE, LGBTQIA+ ...................................................................213
A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA POLÍTICA: AS ELEIÇÕES DE 2008, 2012 E 2016 EM
CATALÃO (GO) ..................................................................................................................................................................213
Monique Cardoso de ALMEIDA.......................................................................................................................................213
Carmem Lúcia COSTA.........................................................................................................................................................213
RECORTES DOMÉSTICOS DA ABJEÇÃO EM REALIDADES HETERONORMATIVAS ...............218
Gerlândia de Castro SILVA .................................................................................................................................................218
“TUDO BEM SER GAY, MAS NÃO PRECISA VIRAR MULHERZINHA”: UMA ANÁLISE
ETNOGRÁFICA DAS PERSPECTIVAS DE MASCULINIDADES E A AFEMINOFOBIA NA
CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE HOMENS GAYS ......................................................................................224
José Claudivam da SILVA ....................................................................................................................................................224
Jônatan David Santos PEREIRA ........................................................................................................................................224
O TRATAMENTO DADO AS MULHERES NO DECORRER DOS SÉCULOS .....................................230
12
Jacinilda Pastana CAVALCANTE ....................................................................................................................................230
Ariete Pastana LEÃO .............................................................................................................................................................230
SENTIDOS BIBLIOGRÁFICOS: A PRODUÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA SOBRE VIOLÊNCIA
POR PARCEIROS ÍNTIMOS GAYS ...........................................................................................................................236
José Maria Nascimento AMARAL NETO .....................................................................................................................236
Eric Campos ALVARENGA ..............................................................................................................................................236
MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS DE PESSOAS LGBTQI+ NO BRASIL ..............................................................242
Dantiely Martins FERREIRA .............................................................................................................................................242
VÍDEO E/OU PODCAST .....................................................................................................................................................246
Círculos de Saberes e afetos 01- Educação Popular, Feminismos Comunitários, Ecofeminismo .......................247
DESABROCHANDO - FLOR DE CACTUS .............................................................................................................247
Tabatha BENITZ ...................................................................................................................................................................247
MATAPI FEMININO .........................................................................................................................................................248
Círculos de Saberes e afetos 02- Educação Popular, Feminismo Negro, Colonialismo, Interseccionalidade ...249
COMO DAR AULAS DE INGLÊS COM ENFOQUE FEMINISTA: O RELATO DE UMA
EXPERIÊNCIA .....................................................................................................................................................................249
Larissa de Pinho Cavalcanti ..................................................................................................................................................249
Jussara Barbosa da Silva Gomes ...........................................................................................................................................249
Círculos de Saberes e afetos 03- Educação Popular, Mulheres, religiosidade, saberes ancestrais ........................250
CUIDADOS DE ÁGUAS E ERVAS ..............................................................................................................................250
Luzia Gomes FERREIRA ....................................................................................................................................................250
Silvia Raquel PANTOJA ......................................................................................................................................................250
Cláudia LEÃO .........................................................................................................................................................................250
O TABU DA MASTURBAÇÃO FEMININA E O REFLEXO NO COMPORTAMENTO SEXUAL
DA MULHER ........................................................................................................................................................................252
Denise Baia SILVEIRA .........................................................................................................................................................252
Luanna Gyovanna Farias GOMES .....................................................................................................................................252
Leila do Socorro Rodrigues FEIO ......................................................................................................................................252

13
APRESENTAÇÃO
Este trabalho é parte de um grande esforço coletivo e costurado, de forma intersecional,
por diversas mãos, sentimentos, afetos, barreiras e superações. Somos muitas e somos todas
sobreviventes de um sistema sexista violento, que aprisiona nossos corpos, sexualidades, mentes e almas.
Os textos organizados nestes volumes são reflexos dos enormes e diversos desafios que assumimos para
pensar e, também, para promover uma prática histórica e identitária de Educação Popular Feminista na
Amazônia. São ainda, parte das estratégias de sistematizar todas estas experiências contribuindo para
conformar um conjunto de conhecimentos que elaborem, compreendam os desafios das mulheres e suas
práticas políticas e pedagógicas e assim, ajude a transformar os padrões de pressão a que são/somos
submetidas.
A temática circunscrita, qual seja, A urgência de uma prática educativa popular feminista,
antipatriarcal, antirracista, anticapitalista e anticapacitista , proporciona um delicioso encontro dialógico
de saberes, vivências, lutas e resistências que nos conduzem a compreender a finalidade e a importância
de fortalecer a prática da educação popular feminista, especialmente, neste contexto de avanço do
conservadorismo, do machismo e, consequentemente, o aumento da violência contra as mulheres.
Nestes dois volumes que ora apresentamos, estão relatadas diversas experiências
metodológicas na perspectiva freiriana, que reiventa a tríade - curiosidade, criticidade e criatividade- no
âmbito das práticas e das pesquisas educacionais e dos feminismos presentes em muitos coletivos,
movimentos e organizações sociais expressões aqui nessas escritas. Desta forma, impulsionam os
feminismos insurgentes na América Latina, a luta das mulheres e a construção de uma educação
democrática e antissexista.
O evento recebeu 85 submissões de trabalhos, que estão distribuídos nos 10 círculos de
saberes e afetos com temas articulados: educação popular feminista, religiosidade, sexualidade,
masculidade, ancestralidade, encarceramento, violência de gênero, feminismo negro, escolarização,
inclusão, colonialismo, interseccionalidade e entre outros.
Os trabalhos relatam experiências e processos de organização, debates, processos
formativos e produtivos de mulheres em uma multiplicidade de contextos e territórios, tais como
quilombos e comunidades tradicionais, escolas urbanas, assentamentos,
Espaços, contextos e territórios diversos nos quais os sistemas de opressão se concretizam,
mas também nos quais as resistências, processos construção de laços, afetos e muita solidariedade. São
muitas e diversas mulheres que estão retratadas nos dois volumes que ora apresentamos: agricultoras,

14
pescadoras, ribeirinhas, trabalhadoras urbanas e do campo, migrantes, quilombolas, professoras,
meninas, mulheres enfim, que circulam, discutem, debatem, questionam, dançam, escrevem, costuram
temáticas múltiplas, sob perspectivas igualmente numerosas, resultando num mosaico de textos e de
experiências e reflexões que vão da Medicina natural aos impactos da pandemia na vida das mulheres,
das relações com as águas, terra e territórios ao debate sobre autonomia financeira, sobre
empoderamento e relações com o corpo, sobre a literatura, a fotografia, das experiências do cárcere,
onde as mulheres, sobretudo as negras e pobres, sofrem as agruras de um Estado Penal e seletivo às
práticas de Educação Popular e ao papel dos grupos e coletivos de organização de mulheres como
fundamentais para os processos de enfretamento das opressões e construções identitárias de
empoderamento e resistências.
É essa multiplicidade de vivências do ser mulher que aparecem retratadas no material que
lhes apresentamos. São assuntos e questões, que, muitas vezes, são debatidos à margem das
Universidades, como bem ressalta Collins (2019), geralmente estudados de forma alternativa e que são
poucos citados em pesquisas e ou estão fora dos currículos acadêmicos ou pouco valorizados nos
mesmos.
E este é também um dos grandes objetivos do evento do qual resultam estes volumes de
publicação: provocar a academia a que se abra aos diferentes conhecimentos, gerados nos mais diversos
contextos e pelos mais diferentes sujeitos e sujeitas. Só desta forma, é possível superar a arrogância do
conhecimento eurocêntrico.
É com esta perspectiva e esperança que convidamos todos, todas e todes a apreciarem as
vivências, os saberes, as aprendizagens e os atravessamentos que estão reunidos estes dois volumes.
Escritas carregadas de dores-aprendizagens, saberes-afetos, ação-libertação, escrita-autonomia, que
conduzem a compreender a importância de uma educação popular feminista pulsante em nossa região
amazônica latinoamerica. Cada palavra, frase e esforço presentes nas pesquisas e escrevivências nos
transportam para um processo de ensino-aprendizagem possível, sensível, ancestral e decolonizante,
onde ecoa vida-liberdade.
Não pode ser outro o papel e a essência da Educação Popular Feminista, senão o de
confrontar e refletir as questões e dimensões que atravessam a vidas das mulheres e de todos os sujeitos,
chamando-os ao compromisso e ao diálogo para o enfrentamento desta ampla estrutura patriarcal
capitalista que, a todas, todos e todes nos oprime.
Fica assim, o convite à leitura e o desejo que ela nos seja prazerosa e estimuladora!

As coordenadoras do evento
15
Círculo de Saberes e Afetos 01
EDUCAÇÃO POPULAR, FEMINISMO COMUNITÁRIO E
ECOFEMINISMO

16
FEMINISMO POPULAR: EXPERIÊNCIAS EM ORGANIZAÇÕES DE MULHERES
QUILOMBOLAS NO MUNICÍPIO DE SANTA LUZIA DO PARÁ (PA)

Joana Keylla de Sousa TRINDADE1

INTRODUÇÃO
Esta produção é um esboço do projeto de pesquisa para o trabalho de conclusão de curso da
Especialização em Análise das Teorias de Gênero e Feminismos na América Latina/UFPA. “Feminismo
Popular: Experiências em organizações de mulheres quilombolas no município de Santa Luzia do Pará
(PA)”, ainda em construção, surgiu da vivência junto a grupos de mulheres em processos de formação na
Associação Campo Cidade Transformar e Agregar Valores e Vida (ATAVIDA) do município de Santa
Luzia do Pará, este que se localiza na região do Caeté, nordeste paraense. Posteriormente, somou-se à
motivação, a inquietação com a necessidade de falar sobre feminismos que tenham a cara, o jeito
daqueles e aquelas que são invisibilizados socialmente. Comumente, as organizações das mulheres no
munícipio realizam-se em torno de trabalhos associativos de incentivos econômicos.
É necessário compreender a realidade das mulheres quilombolas para produções epistêmicas que
converse, dialogue, narre e conte a história pelo olhar e experiência daquelas que vivem o seu fazer
pessoal e coletivo.
As práticas organizativas das mulheres que se percebendo inferiorizadas, e dignas de direitos,
buscam se articular pela transformação da sociedade em que vivem, devem nos levar a compreensão de
que no seio dessas lutas se constituem processos educativos, dialógicos e de aprendizagem. Paulo Freire,
na Pedagogia do Oprimido (1987, p. 111), nos sugere uma educação dialógica que liberta, “onde quer
que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com sua causa. A causa de sua
libertação”. Rompendo com a pretensa ideia de que pertencemos a um grupo inferior que dita regras e é
melhor que outro, e nisso se incluem homens e mulheres. A construção feminista popular nos coloca
nesse comprometimento com a causa das mulheres do campo em seu fazer coletivo, pelo direito a ter
direito, Arroyo (2014).
As organizações das mulheres em grupos de discussões para trabalhos e diálogos, constitui-se
como um marcador social identitário capaz de desmistificar antigos paradigmas reducionistas da figura
feminina ao ambiente doméstico. É uma marca de resistência no seio de uma sociedade patriarcal,
capitalista e misógina, vai de encontro à dominação do homem sobre a mulher dos recursos financeiros.
E garante reconhecimento e garantia de atuação feminina nos espaços públicos.
Tais movimentações em busca de garantia de direitos, reconhecimento e valorização de si e do
outro na construção de equidade social, nos fazem olhar para dentro de nossos espaços, para aqueles que
caminham junto no intuito de refletir como se exercem ou se essas movimentações se exercem. Para
1
Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Diversidade e Inclusão, subgrupo Relações de Gênero –
Universidade da Amazônia-UNAMA; Cursando especialização em Análise das Teorias de Gênero e Feminismo na América
Latina-Universidade Federal do Pará-UFPA; Cursando especialização em Alfabetização e Letramento pela Faculdade Venda
Nova do Imigrante-FAVENI; Pedagoga voluntária na Rede Bragantina de Economia Popular Solidária Artes & Sabores em
Santa Luzia do Pará; Integrante do Movimento Camponês Popular-MCP em Santa Luzia do Pará. E-mail:
keyllatrindade20@gmail.com.

17
tanto, surge o problemaacerca das vivências dos grupos que compõem o quadro representativo dos
movimentos de lutas existentes: Como construir epistemologias de feminismo popular que dialogue com
as organizações de mulheres quilombolas?
E como questões norteadoras para esta produção buscar respostas as seguintes indagações:
Como acontecem as organizações associativas e comunitárias das mulheres quilombolas no
Município de Santa Luzia do Pará?
Quais seus principais objetivos ao aderirem aos grupos, associações comunitárias, movimentos
sociais?
Quais as percepções que se tem da importância política das organizações para sua vida?

OBJETIVOS
Objetivo geral desta pesquisa é:
a) Compreender as atividades desenvolvidas por mulheres remanescentes de quilombo no
Município de Santa Luzia do Pará a luz de construções epistemológicas que dialogue
com a cultura popular.

Tendo comoobjetivos específicos:


b) Analisar as experiências comunitárias e associativas das mulheres quilombolas de Santa
Luzia do Pará (PA);
c) Identificar os principais motivos de adesão aos movimentos sociais e aos trabalhos
associativos;
d) Avaliar a importância dada aos trabalhos associativos, comunitários pelas mulheres
quilombolas; contribuir para a construção de feminismo popular dialógico e
emancipador

METODOLOGIA
A metodologia utilizada para a realização deste trabalho se dará por meio da pesquisa de campo
que possibilita a observação direta (GIL, 2002) de forma exploratória e descritiva. E se encaminhará
para uma abordagem qualitativa, por meio da qual a pesquisadora pode escolher um assunto, coletar e
analisar os dados coletados, tendo a possibilidade de interagir no contexto que está sendo pesquisado
(TRIVINOS, 1987), (PATTON, 1986), (ALVES, 1991).
Nesse sentido, os principais instrumentos para a coleta dados serão a observação, elemento
essencial paraa pesquisadora ser capaz de descrever eventos (COZBY, 2003) e entrevistas
semiestruturadas, que proporcionam uma visão geral do objeto de pesquisa. Estas acontecerão com
mulheres quilombolas do município de Santa Luzia do Pará que são vinculadas a movimentos sociais e
trabalhos associativos.
Os instrumentos de análise dos dados serão utilizados concomitantemente ao processo de
coleta.Relacionando as experiências observadas e questionadas aos estudos teóricos, bibliográficos
anteriormente estudados, por meio de análise de conteúdos que permite “o tratamento dos dados, a
inferência e a interpretação, por fim, objetivam tornar os dados válidos e significativos” (GIL, 2008,
p.153).

18
A MULHER E O TRABALHO ASSOCIATIVO
A procura por novas fontes de renda que possam vir a contribuir com o sustento da família faz
com que as mulheres se juntem para produzir bens ou serviços no qual possam influenciar positivamente
suas vidas, como forma de crescimento pessoal e profissional. É através deste trabalho que as mulheres
“reconhecem os prazeres da apropriação da força de trabalho, da disposição do tempo, da possibilidade
de aprendizagem, da autoestima recuperada e a descoberta do outro como possível cooperador”
(MIRANDA; GARCIA, 2010, p. 305).
Para além dos benefícios econômicos, as estratégias de atividades associativas permitem aos
indivíduos acionar mecanismos identitários, pois, se configura como uma atividade cooperativa.
Promove os interesses individuais e coletivos e reforça os diversos papéis sociais que desempenham.
Une, agrega e reinventa o fazer e o pensar dos grupos que historicamente se veem as margens da
sociedade enquanto agentes colaboradores de produção e do fazer social.
Para Miguel Arroyo (2014) a identidade coletiva é a resistência contra um processo de
inferiorização das diferenças e uma busca por emancipação. E Andrade (2016, p. 114), nos diz que “a
identidade é justamente a forma como cada sujeito e cada grupo se define no mundo [...] no conjunto de
relações sociais das quais fazem parte”.
As mulheres são vítimas históricas dessa marginalização que o patriarcado impôs da divisão
sexual do trabalho, por exemplo. E que hoje é um inimigo gigante a se enfrentar diariamente. São
invisibilizadas em seu protagonismo, desvalorizadas em suas produções, alijadas das tomadas de decisão
do espaço público e político. Felizmente, as lutas feministas por direitos e valorização da mulher têm
sido sinônimo e atuação resistente no enfrentamento desses tensionamentos sociais por direito e
igualdade.
Nos grupos rurais, por exemplo, apesar de o discurso patriarcal insistir em afirmar que há um
trabalho próprio das mulheres e próprio dos homens. As mulheres agricultoras, quilombolas mostram na
prática o que o discurso não contempla, pois, desempenham com maestria as mesmas funções dos
homens na ausência desses ou com eles (PINTO, 2011), agregado ao cuidado da família e do espaço
doméstico.
Portanto, o trabalho associativo tende a ser essencial ao contexto e cotidiano das mulheres,
sendo então, uma prática de ajuda mútua e cooperativa. Avivadas pelo determinismo e autoafirmação do
seu protagonismo a atividade desempenhada, “permite‐lhes adquirir não apenas recursos materiais –
terra, trabalho e capital – mas também recursos políticos ou sociais acedendo aos mecanismos que lhes
assegurem a continuidade do acesso aos recursos” (CASIMIRO, 2010, p. 15- 16). Na resistência a uma
estrutura histórica de sistema patriarcal e opressor, esses recursos imateriais, talvez, sejam o mais
significativo para sua valorização, enquanto mulheres dignas de direito e reconhecimento, pois,
desmitifica a posição da mulher enquanto ser passivo que se limita ao espaço privado, dona de casa, e
mãe. Através deste trabalho valores como a confiança e autonomia financeira, geralmente negada pelo
processo de exclusão social poderão ser retomados.

AS ORGANIZAÇÕES DAS MULHERES RURAIS NO BRASIL


As organizações de mulheres em todo o Brasil e na Amazônia tem seu marco histórico no século
XX, especialmente nos anos de 1980 com o surgimento das primeiras organizações de mulheres no
Nordeste e Sul do país (ANDRADE, 2016). A autora cita Cintrão (2006) para dizer que as principais
bandeiras de luta desses movimentos centravam-se “no reconhecimento de sua profissão como

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agricultoras e não como doméstica, a luta pelo direito a saúde da mulher, o direito a sindicalização, ao
salário maternidade e a aposentadoria” (ANDRADE, 2016, p.72). Esses são traços marcantes da força
do patriarcado sobre as relações de gênero que essas mulheres organizadas em grupos e movimentos
veem ao longo dos anos lutando para destruir.
Dentre as diversas lutas dos povos do campo e comunidades tradicionais travadas por mulheres,
como as pertencentes ao Movimento Sem Terra – MST, indígenas, a luta das mulheres quilombolas
também começa a acontecer. Segundo Siliprandi (2009), a partir da Constituição Federal de 1988,
quando os quilombolas passam a ter direito a propriedade da terra, iniciam-se mobilizações de grupos
urbanos e rurais para exigir a efetivação desse direito, realizando demarcação de terra, valorização e
apoio a produção de atividades quilombolas, entre outros.
A partir dessas ações, “foi formada a nível nacional a Organização das Mulheres Quilombolas,
composta pela maioria de rurais” (SILIPRANDI, 2009, p. 137). A autora afirma ainda que os
problemas enfrentados pelas mulheres quilombolas estavam diretamente ligados aos das mulheres dos
outros movimentos, dentre eles, os trabalhos domésticos e familiares, manutenção de suas tradições
equidade de gênero, desvalorização por parte dos companheiros. E que tais organizações sindicais e
movimentos sociais, produzem outras, como os trabalhos associativos comerciais, cooperativos e
associativos.

EM SANTA LUZIA DO PARÁ


Dentre as comunidades rurais do município de Santa Luzia do Pará, 5 são comunidades
remanescentes de quilombo. Em todos os quilombos, as mulheres têm participação ativa em atividade
extra doméstica, construindo suas histórias junto aos companheiros e companheiras de comunidade, e
fora da comunidade em trabalhos na esfera pública do governo, associativo e Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais.
Algumas participam ativamente de processos formativos e partilha de experiências na
Associação Campo Cidade Transformar e Agregar Valores e Vida (ATAVIDA) que é um espaço de
processamento e manipulação de produtos agropecuários assessorado pelo Consulado da Mulher no
Município de Santa Luzia do Pará (PA), entidade auxiliada pela Rede Bragantina de Economia
Solidária.
Através dessas entidades e associação as mulheres quilombolas têm acesso a formações, palestras,
momentos de trocas e diálogos construtivos para formação pessoal e comunitária. Onde a principal
atividade desses movimentos no município é voltada para o incentivo e desenvolvimento a produção de
alimentos orgânicos pelos agricultores familiares e a soberania alimentar. Em tempos de crescentes
perseguições dos povos do campo, das florestas, pertencentes às comunidades tradicionais, essa luta é um
desafio constante. Principalmente, pelas sedutoras formas de produção agrícola que passam pelo uso
indiscriminado de veneno.
Junto a esses grupos, as mulheres quilombolas são incentivadas a combater e resistir essas
práticas de morte nas suas atividades diárias, na alimentação saudável, no uso e produção de remédios
caseiros, na valorização dos saberes ancestrais de suas comunidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluindo, mas nunca finalizando esse debate é campo fértil e vasto que merece atenciosa
dedicação para repensarmos nosso fazer epistemológico no seio de uma sociedade marcadamente
capitalista e patriarcal que segrega, ignora e discrimina. Apesar das lutas e organizações opositoras de

20
resistência, esse sistema perverso e opressor, ainda se mantem de pé, porém, jamais prevalecerá nem
murchará a força revolucionária das nossas afirmações identitárias e construtivas de trabalho e diálogos
transformadores.
Nos trabalhos associativos, as mulheres quilombolas, reinventam suas práticas transformadoras
de mundo, em seus espaços familiares e comunitários. Afirmando-se como sujeitos de direitos que não
se acomodam perante a imposição de um sistema patriarcal que quer por força ressuscitar um velho
paradigma da mulher enquanto um ser passivo que deve restringir-se ao ambiente doméstico.
Ao longo dos anos os movimentos sociais geram debates sobre a causa a situação das mulheres e
articulam projetos que trazem benefícios econômicos. Tais organizações são influenciadoras de
afirmações identitárias que ressignificam as experiências sociais das mulheres quilombolas. Pensar esses
processos nos levam a uma reflexão das construções epistemológicas de saberes, vivencias e necessidades
populares por vezes ignoradas. Precisamos falar sobre.

REFERÊNCIAS
ALVES, Alda Judith. O planejamento de pesquisas qualitativas na educação. Faculdade de
Educação/UFRJ. Cad. Pesq., São Paulo (77): 53-61, maio, 1991.
ANDRADE, Antônia Lenilma Menezes de. Mulheres Quilombolas, Movimento, Lideranças e
Identidade. Dissertação (Mestrado em Educação, Área de concentração: Educação, Cultura e
Linguagem) – Programa de Pós – Graduação em Educação Mestrado em Educação e Cultura Campus
Universitário do Tocantins/Cametá, Universidade Federal do Pará. Cametá, p. 166. 2016.
ARROYO, Miguel G. Outros Sujeitos, Outras Pedagogias.2 ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
CASIMIRO, I. M. Empoderamento económico da mulher, movimento associativo e acesso a fundos de
desenvolvimento local. Maputo: Centro de Estudos Africanos, Universidade Eduardo Mondlane, 2010.
COZBY, Paul C. Métodos de pesquisa em ciências do comportamento. Tradução Paula Inez Cunha
Gomide, Emma Otta; revisão técnica José de Oliveira Siqueira. -- São Paulo: Atlas, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. - 6. ed. - São Paulo Atlas, 2008.
____, Antônio Carlos.Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. - São Paulo: Atlas, 2002
MIRANDA, Raquel Ferreira; GARCIA, Agnaldo. As mulheres da Ilha das Caieiras: relacionamento
interpessoal e cooperação na formação e funcionamento de uma cooperativa. Cadernos de Psicologia
Social do Trabalho, v. 12, n.10, p.301-317, 2010. Disponível em:Acessado em: 1 maio 2021.
PATTON, M. Qualitative evaluation methodes. Beverly Hills, Sage. Publ., 1986.
PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Mulheres Negras Rurais: Resistência e Luta por Sobrevivência na
Região do Tocantins (PA). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo,
2011.
SILIPRANDI, Emma Cademartori. Mulheres e agroecologia: a construção de novos sujeitos políticos
na agricultura familiar. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável) – Centro de
Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília – DF, 2009.
TRIVINOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa
em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

21
O MITO DA INVISIBILIDADE DAS MULHERES PESCADORAS NO MUNICÍPIO DE
LIMOEIRO DO AJURU-PA

Ariete Pastana LEÃO1


Jacinilda Pastana CAVALCANTE2

INTRODUÇÃO
Este ensaio intitulado “O mito da invisibilidade das mulheres pescadoras no município de
Limoeiro do Ajuru-PA”, propõe-se em fazer a desconstrução da invisibilidade das pescadoras,
destacando que no processo de pesca artesanal estas têm participação essencial e ativa no processo, não
são inexistentes e tão pouco invisíveis. Ocorre que, não é dado o destaque a figura da mulher pescadora,
uma visão eurocêntrica pondo a mulher em uma posição de subalternização.
Consideramos o pensamento decolonial imprescindível para enxergamos o papel da mulher
pescadora, esta que sofre preconceito e discriminação no processo da pesca. As pescadoras podem ser a
minoria no espaço da pesca, mas isso não significa que não são relevantes e tão pouco não tenha
importância.
O ensaio divide-se primeiramente em expor as objetividades que tem a premissa de demonstrar
a presença ativa da mulher no espaço da pesca, especificando desconstruir o mito da invisibilidade
feminina na pesca, analisar a função das mulheres pescadoras no espaço da pesca artesanal e mostrar a
importância da mulher pescadora nas atividades de pesca. No segundo momento, realizar um arcabouço
teórico que dialoguem com a temática proposta como (ALMEIDA, 2002, ANDRADE. JUCÁ e
ALVERNE, 2019, SOUZA. MARTINEZ e GANTOS, 2017) e outro se necessário.
No terceiro momento, uma breve exposição da metodologia adotada na pesquisa.
Posteriormente, apresenta-se o resultado e discursos demostrando a presença ativa das mulheres
pescadora no município de Limoeiro do Ajuru. Por fim, as conclusões que este ensaio deixa, uma
abertura para posteriores estudos que possam ser realizados e novas discussões que este pode trazer.

OBJETIVOS
a) Este ensaio tem como objetivo geral demonstrar a presença ativa da mulher no espaço
da pesca.
b) Como objetivos específicos, este trabalho busca desconstruir o mito da invisibilidade
feminina na pesca, analisar a função das mulheres pescadoras no espaço da pesca
artesanal e mostrar a importância da mulher nas atividades de pesca.

Universidade Federal do Pará/Campus Cametá. E-mail: etyleao190693@gmail.com


1

Universidade Federal do Pará/Campus Cametá. E-mail: nil26dacavalcante@gmail.com


2

22
METODOLOGIA
A metodologia do trabalho incluiu pesquisa bibliográfica através da leitura e análise de artigos,
livros e análise do documentario “A cultura da pesca do mapará em Limoeiro do Ajuru-PA”, além de
realização de entrevistas abertas, permitindo conhecer a realidade das pescadoras do municipio.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Tende-se como comum na pesca artesanal ser predominantemente a presença dos homens ou
trabalho de homem, uma naturalização da “invisibilidade” das mulheres como sendo estas não
pescadoras. Isso tão pouco apaga e refuta a importância da mulher pescadora no município de Limoeiro
do Ajuru. “[...] a mulher assume, muitas vezes, uma sobrecarga de funções, sem a correspondente
visibilidade ou reconhecimento social de sua importância no campo da produção”, como afirma
(ALMEIDA, (Org) HÉBETTE, MAGALHÃES e MANESCHY, 2002). O relato de uma das
mulheres entrevistada no documentário demostra o direito das mulheres pescadoras. “Já que as mulheres
também têm o direito, assim como os homens de estar atuando no seguro defeso. Então, acredito que as
mulheres, também, elas têm o direito como pescadoras, porque fazem parte também, vão, têm umas que
vão no rio” (A CULTURA DA PESCA DO MAPARÁ EM LIMOEIRO DO AJURU-PA, 2021).
A ocorrência de desprestigiar as atividades de pesca realizadas pelas mulheres na presença do ato
de captura do pescado e no beneficiamento ondea maioria atuam, é visto como um ato secundário de
“pouca” importância. Uma visão eurocêntrica quem tende a apagar o protagonismo feminino na pesca
artesanal.

O parâmetro eurocêntrico de conhecimento é universalizado e privilegiado,


servindo de base para todo o mundo; o que está fora desse padrão é
considerado um não saber. Além disso, o saber de base eurocêntrica é tido
como superior e coloniza outros saberes não europeus, silenciando todo o
conhecimento tido por periférico, seja por ser produzido fora do centro do
mundo, seja por não ser científico. Essa hierarquização, que faz os saberes dos
povos e das culturas tradicionais serem considerados arcaicos, primitivos e
inferiores, foi naturalizada universalizada, fundando todos os processos
civilizatórios da modernidade e influenciando nosso modo de compreender o
mundo (ANDRADE, JUCÁ e ALVERNE, 2019).

No eurocentrismo vê-se a objetividade da mulher em segundo plano e isso é representado na


fala do entrevistado no documentário ao referir-se na participação da mulher na pesca de bloqueio 3 “na
nossa não, até então não tem aqui. Quando chega na casa que elas vão preparar a comida pro pessoal”
(A CULTURA DA PESCA DO MAPARÁ EM LIMOEIRO DO AJURU-PA, 2021).
Para se quebrar essa visão é necessário “vestir-se” do pensamento descolonial. Embora, não seja
possível “o ponto de vista descolonial não sustenta a negação de todo o conhecimento já produzido,
tampouco a desconsideração de tudo o que seja calcado no padrão eurocêntrico de poder e de

3
O bloqueio, ou borqueio, como dizem na região, nada mais é do que cercar o cardume no rio. A rede é lançada por dois
barcos que vão fazendo um grande círculo, quando os dois grupos se encontram, os ribeirinhos amarram as pontas da rede e
o cercado está pronto. Com o mapará preso, os pescadores vão fechando o círculo e, aos poucos, deixando o peixe com
menos espaço. Disponível em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2016/01/festa-celebra-abertura-da-pesca-do-
mapara-peixe-apreciado-no-pa.html>. Acesso em: 18 de abril de 2021.

23
saber”(ANDRADE. JUCÁ e ALVERNE, 2019). Propomos o processo de desconstrução da não
existência da mulher no espaço da pesca artesanal, mostrando que se tem o “mito” da não presença da
pescadora, que estas tem presença ativa tanto na pesca como no processo de beneficiamento do pescado,
pois, o art. 4°, da Lei n. 11.959/2009 estabelece que “a atividade pesqueira compreende todos os
processos de pesca, explotação e exploração, cultivo, conservação, processamento, transporte,
comercialização e pesquisa dos recursos pesqueiros” (ANDRADE. JUCÁ e ALVERNE, 2019).
Portanto, as mulheres não são coadjuvante, tão pouco meros complemento das atividades dos homens.
A entrevistada A, relata que:
Tem muitos que falam que mulheres não pescam, sim, mas ela senta, por
exemplo, como eu, eu sento 7hrs da manhã ou talvez até antes e só levanto pra
almoçar, aí volta de novo e só levanta 18hrs beneficiando o camarão, o
pescado, isso não é ser pescador? Então, é isso que nós temos lutar e valorizar
que o papel da mulher é muito mais de buscar o pescado no rio, além de ir
buscar o buscar o pescado ainda beneficia, que muitas das vezes o homem só
vai buscar e não tem esse papel de beneficiar, quem beneficia é as mulheres
com seus filhos são raros os homens beneficiam (Entrevistada A– líder
comunitária, realizada em 15 de fev. de 2021).
Tanto na Lei. 11.959/2009 quanto o relato da entrevistada A, é possível afirmar a importância
da pescadora na atividade de pesca artesanal, quão elas são fundamentais no processo de pesca,
“Consideram-se atividade pesqueira artesanal, para os efeitos desta Lei, os trabalhos de confecção e de
reparos de artes e apetrechos de pesca, os reparos realizados em embarcações de pequeno porte e o
processamento do produto da pesca artesanal (ANDRADE, JUCÁ E ALVERNE, 2019). O papel da
pescadora não é de subalternização que tende em discriminar e invisibilizar “muitas mulheres pescadoras
hoje conseguem exercer o ofício sozinha, desde a captura até o processo de comercialização,
desvinculadas da figura masculina” (ANDRADE, JUCÁ E ALVERNE, 2019).

Eu quero dizer que a importância da mulher na pesca, é muito importante,


porque, não é só ela ficar na casa também, elas são mulheres de pescadores,
como eu, minhas irmãs e minha mãe. E, somos e nós trabalhamos também na
pesca, eu não me acho assim diferente de não ir pro rio e não poder tá lá junto
com eles. Eu me acho numa importância tão grande, porque, mulher tem que
ser reconhecida na sociedade como pescadora, né? Não é só ela ficar na casa,
mas, eu no meu ponto de vista e minha irmãs que somos filhas de pescadores,
não se importamos, eu me sinto feliz quando sai nessa baia aí, pra ficar lá,
ajudando, aprendendo e cada dia mais aprender. Por que, sabemos que dá li,
nós mulher, nós traz também junto nosso esposo e nossos filhos o recurso de
lá da pesca (A CULTURA DA PESCA DO MAPARÁ EM LIMOEIRO
DO AJURU-PA, 2021).

Ao analisar essa fala percebemos que a entrevistada usa a expressão “mulher de pescador”, visão
que muitas mulheres são vistas apenas como a companheira do pescador e não propriamente pescadora,
porém, na mesma fala ela desconstrói essa visão ao afirmar “eu não me acho assim diferentes de não ir
pro rio e não poder tá lá junto com eles. Eu me acho numa importância tão grande, porque, mulher tem
que ser reconhecida na sociedade como pescadora”. No município de Limoeiro do Ajuru existem os

24
acordos de pesca4, que são organizados pelas comunidades ribeirinhas, nestas organizações embora em
minoria, mas não é inexistente a presença da mulher na organização, em alguns acordos são linha de
frente das organizações. Embora, tenha-se avançado na inserção da mulher, ainda existe muito
preconceito para com as pescadoras.

De todo modo, apesar dos avanços e da existência de muitas mulheres que


vêm desafiando o preconceito e a discriminação de gênero, fato é que a
distinção de papéis que inferioriza as mulheres pescadoras ainda predomina
nas comunidades pesqueiras. Essa é uma barreira difícil de ser superada, haja
vista que a divisão sexual do trabalho está arraigada em nossa cultura e
formação de um modo generalizado, sendo bastante acentuada no seio dessas
comunidades (ANDRADE, JUCÁ E ALVERNE, 2019).

A existência do preconceito e da discriminação não apaga o papel importante das pescadoras.


Afinal, como seria o processo de pesca artesanal sem a presença da mulher? Seria quase impossível
imaginar a ausência dessas atoras tão ativas na conjuntura do processo de pesca. Como citado
anteriormente, nas organizações do acordo existe muito preconceito em se ter mulher na frente de
organizações, como ressalta a entrevista B.
A participação da mulher é frágil, porque, muitos homens pensam que mulher
não é capaz de tomar decisão, essas coisas assim. Eu sinto nos acordos, em
todos os acordos, só no Samaúma (comunidade no município de Limoeiro do
Ajuru) que a gente vê uma mulher de linha de frente, aqui eu acompanho no
lado, mas não que seja incentivada. Acompanho pelo meu interesse, não tem
incentivo (Entrevistada B – pescadora, realizada em 20 de fev. de 2021).
É visível que é necessário incentivar a participação nas organizações dos acordos de pesca do
município, reconhecer o importante trabalho realizado pelas mulheres, pois, a sobrecarga de atividades
que além das atividades de casa, tem que realizar as atividades de pesca “são cruciais para a reprodução
social do grupo como um todo” (WOORTMANN,1992 apud SOUZA, MARTINEZ e GANTOS,
2017). Mais um relato extraído do documentário irá demostrar como alguns homens tratam das
mulheres na organização.

Eu gostaria, né? Que as mulheres fizessem parte de todos os movimentos, mas


tem homem que ele diz assim “lugar de mulher é na casa”. Não, não é na casa,
a mulher, ela também participa de qualquer coisa questão que ela queira e
tenha vontade de ir. Eu sou mulher e gosto de tá lá no rio (A CULTURA
DA PESCA DO MAPARÁ EM LIMOEIRO DO AJURU-PA, 2021).

Em uma sociedade patriarcal vende-se desde cedo “a lógica de dominação/exploração do


homem sobre a mulher, uma vez que a atividade é caracterizada como masculina” (SOUZA,
MARTINEZ e GANTOS, 2017). Consideramos, a visão de “invisibilidade” da mulher pescadora no
município de Limoeiro do Ajuru como mito, estas não são ausente do processo de pesca, pelo contrário
estão presente ativamente. Entretanto, essa “fragilidade” na organização dos acordos de pesca não apaga
o trabalho e as raízes produzidas pelas pescadoras. Sem a presença da mulher quebra-se o processo de
pesca, estas são “peças” fundamentais para fazer essa engrenagem “girar” pois fazem parte do todo.

4
Entende-se por acordo de pesca um conjunto de medidas especificas decorrentes de tratados consensuais entre diversos
usuários e o órgão gestor dos recursos pesqueiros (IBAMA) em uma determinada área e/ou região, definida geograficamente
(Conselho Pastoral dos pescadores –CPP, s/d. p. 23)

25
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ensaio propõe a desconstrução do mito da invisibilidade das mulheres pescadoras no espaço
da pesca. Não é uma tarefa fácil, é necessário fazer um giro descolonial para realizar essa tarefa, a qual é
necessária para darmos visibilidade e voz às pescadoras. É preciso dar a devida valorização e
reconhecimento para as pescadoras, tanto no município de Limoeiro do Ajuru-Pa, quanto no território
nacional.
Refletir o papel importantíssimo da pescadora na conjuntura do processo da pesca, desde a
captura até o beneficiamento do pescado, sendo que, com a presença da mulher esse processo é
trabalhoso, imagine sem essa figura feminina. Esse olhar desprovido de preconceito e discriminação é
primordial para compreendermos o espaço que a pescadora ocupa, que não é menor que o do pescador e
nem menos importante.
Deixamos a temática e a discussão aberta para trabalhos e diálogos posteriores que possam
agregar com este. Reafirmamos o papel fundamental da mulher pescadora no município em estudo e a
necessidade da valorização/incentivo de mulheres nos movimentos e organizações dos acordos de pesca
buscando mais pescadoras, compreendendo a sua própria importância nesse processo.

REFERÊNCIA

ALMEIDA, M. P. (Org) HÉBETTE, J. MAGALHÃES, S. B. MANESCHY, M. C. No mar, nos rios


e na fronteira: faces do campesinato no Pará. D’Incao. Belém. EDUFPA, 2002.
ANDRADE, D. A. JUCÁ, R. L. C. ALVERNE, T. C. M. Uma reflexão sobre as mulheres pescadoras
brasileiras a partir do pensamento descolonial.Dom Helder-Revista de Direito, v.2, n.4. p. 65-87.
Set/dez 2019.
SANTOS, E. A. SOUZA, R. M. SAMPAIO, R. M. O mito do trabalho invisível e estratégia de
sobrevivência das pescadoras em nossa senhora do socorro, Sergipe, Brasil.Seminário Internacional
Fazendo Gênero, Florianópolis, 2013.
SOUZA, S. R. MARTINEZ, S. A. GANTOS, M. C. Mulheres pescadoras: uma análise das produções
bibliográficas acerca das relações de gênero no universo da pesca artesanal.Seminário Internacional
Fazendo Gênero, Florianópolis, 2017.
DOCUMENTÁRIO A cultura da pesca do Mapará em Limoeiro do Ajuru-PA. Secretaria de cultura e
desporte. Facebook. 28 de mar. 2021. (34min36s). Disponível em:
https://www.facebook.com/101224941998633/posts/116675860453541/?app=fbl . Acesso em
13 de abr. 2021.

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COLETIVO “IARA- IDENTIDADE, ÁGUA E RESISTÊNCIA NA AMAZÔNIA: UMA
PROPOSTA DE REFLEXÃO, A PARTIR DA PRÁTICA EDUCATIVA “RODA DE SABERES
MULHERES E ÁGUA NA AMAZÔNIA”

Aline Lima Pinheiro MACHADO1


Andreza Barbosa TRINDADE2

INTRODUÇÃO
É relevante observar situações em que há desconforto hídrico, e realidades onde mulheres e
meninas são cultural e socialmente responsabilizadas por grande parte de atividades diárias que
envolvem o trato e cuidados com a água. Discutir água e gênero, observando as desigualdades, adquire
importância nos debates sobre os direitos humanos fundamentais, principalmente nos contextos em que
a água é de difícil acesso, escassa ou, se constitui em fonte de disputas.
Consideramos cenários como os territórios da Amazônia brasileira, que existem enquanto
espaços diversos e de materialização de disputas pelo acesso à água, e imbricado neste contexto, a
proposta do “Coletivo iara- Identidade, Água e Resistência na Amazônia” surge, a partir de discussões
acerca das temáticas relacionadas às políticas públicas e sociais sobre desigualdade de gênero, e o acesso à
água potável na Amazônia Paraense.
Damos ênfase à questão da inacessibilidade social das mulheres e meninas à água potável,
principalmente em áreas periféricas e rurais, onde o esgotamento sanitário e água limpa, são
fundamentais. A efetivação desses serviços, evitam altas taxas de mortalidade materna e neonatal, além de
fomentarem o acesso à saúde coletiva feminina, incluindo a saúde sexual e reprodutiva., saneamento,
educação, cultura que são esferas das políticas públicas que acesso à água potável e podem promover.
Pensando nestas questões buscou-se, através de um espaço de trocas e diálogo, a possibilidade
de (re)integrar saberes de mulheres sobre as águas
O coletivo iara busca explanar sobre o processo de materialização e fomento de uma
organização articulada em ações que emergem a partir da estruturação e troca em rede, onde atuam
mulheres que estudam e trabalham com as águas em seus diferentes contextos de saberes, atuação e em
seus diferentes contextos de vivência em meio acadêmico, militante, comunitário, etc.
A iniciativa é também tema de estudo de duas propostas de dissertação de Mestrado (das
autoras deste resumo) em andamento. Busca-se, também, apresentar um dos resultados dessa interação
ocorrida com a realização virtual da “I Roda de Saberes Mulheres e Águas da Amazônia”, neste ano de
2021. Assim, buscamos apontar aqui nossas motivações, inquietações e processos que conduziram à
criação desta proposta para integração de redes que dialoguem com os movimentos interseccionais e
feministas na temática das águas na Amazônia brasileira.
Muitos são os desafios na busca por equidade de gênero, justiça social, e ambiental, debates que
congregam mulheres no contexto das águas, conectando conhecimento e aprendizagem das vivências
junto ao tema. E muitas são as necessidades diárias materiais, políticas e simbólicas que permeiam a vida

Universidade Federal do Pará/Coletivo iara. E-mail: alinelima87@hotmail.com


1

Universidade Federal Oeste do Pará/Coletivo iara. E-mail: and_trindade@yahoo.com.br


2

27
de mulheres amazônidas. Nesse contexto das relações natureza e cultura, buscamos abrir espaço entre
outros já existentes, para reunir propósitos que possam corroborar com o debate sobre água e gênero,
bem como as demais problemáticas que envolvem o tema.
Como suporte teórico-metodológico, dialogaremos com as ideias ecofeministas em suas
perspectivas voltadas à relação das mulheres com os aspectos socioambientais, e impactos
contemporâneos diretos e indiretos das problemáticas existentes. Buscamos, também somar a este
diálogo algumas abordagens da água no contexto de gênero, e como suporte científico nesta proposta,
alguns relatórios nos oferecem perspectivas para entender cenários relacionados ao tema da reflexão e
luta contra as desigualdades de gênero ao direito e acesso aos recursos naturais.
Objetivamos apresentar o coletivo e sua primeira ação enquanto possibilidade para o
movimento feminista interseccional sobre as águas na Amazônia; apontar as motivações e insurgências
ao debate de água e gênero para a Amazônia; apresentar enquanto resultados as primeiras ações do
coletivo.

OBJETIVOS
a) Apresentar a organização e estrutura da iniciativa do coletivo que buscou discutir água e
gênero na Amazônia brasileira a partir de um diálogo interseccional.

METODOLOGIA
A presente pesquisa se realiza através uma catalogação e revisão bibliográfica para sustentação
das questões levantadas, utilizando- se de um acervo documental de reuniões, encontros e produções
acadêmicas do Coletivo iara.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
As mulheres, em seu processo de tomada de consciência, transformam os problemas pessoais e
individuais em assuntos políticos (DINIZ, 2000), e nesse caso trata-se de um problema a cerca de uma
política pública, onde procura-se abordar o diálogo da água e gênero, sobre uma perspectiva social, por
diferentes olhares, para além de um antagonismo “ser humano e natureza”, contudo, destacaremos aqui
uma proposta da água enquanto bem comum, pautada na igualdade, equidade, justiça social e ambiental
para as realidades das diferentes “amazônias” brasileiras.
A água enquanto elemento fundamental para a vida, conduz nossa existência física e simbólica
no fluxo social em que estamos inseridos. Podemos observar esta premissa quando, por exemplo, temos
um grupo social com dificuldades de acesso à água e outros serviços de demanda hídrica. Nestas
condições diferentes problemas são gerados referentes à saúde individual e coletiva, educação, economia,
e outros pontos condicionantes ao desenvolvimento social.
Segundo o estudo “As mulheres e o saneamento no Brasil” realizado pela BRK AMBIENTAL
(2018, p.22), na região Norte, há estados com déficits de acesso à água tratada relativamente baixos,
como foram os casos de Roraima (11,5% da população), Tocantins (12,9% da população) e Amazonas
(25,4% da população), e há aqueles com déficits relativamente elevados – Rondônia (55,9% da
população), Pará (47,6% da população), Acre (46,4% da população) e Amapá (41,4% da população).
O acesso à água tratada e ao serviço de esgotamento sanitário são direitos humanos
reconhecidos há anos pelas Nações Unidas (BRK AMBIENTAL,2018, p. 3). E no Brasil temos uma

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base constitucional e mecanismo de ordem municipal, estadual e federal que preveem a implementação
desse acesso de forma democrática e igualitária.
Num viés mais prático, principalmente para a região amazônica, a situação é paradoxal, quando
em sua constituição natural é permeada de rios (superficiais e subterrâneos) e de altas taxas
pluviométricas, mas de forma direta: falta água na torneira, água para matar de forma saudável a sede de
muitas populações nessa região. Este é um cenário que se compõem com todos os grupos de gênero, mas
afinamos aqui para a realidade das mulheres amazônicas, a fim de tratar do quanto essas condições
existentes atingem ou podem atingir de forma mais intensa as mulheres.
É necessário considerar a divisão sexual do trabalho, e para as mulheres, a condição do trabalho
doméstico não remunerado, como afirma Antunes (2017), que levanta a condição das mulheres ao
serem historicamente confinadas em espaços privados, como o dos domicílios. Sendo nestes espaços
reduzidos, as maiores administradoras das tarefas e rotinas caseiras. Ainda afirma que são elas que,
diariamente, cozinham, lavam, abastecem as despensas, educam os filhos, lidam com os problemas de
infraestrutura e vivenciam situações cotidianas de falta de água e luz entre outros serviços básicos
(ANTUNES, 2017, p. 2).
Ao dialogarmos a partir dessas pautas com a corrente de pensamento ecofeministas, trazemos ao
princípio das convergências, e associações ideológicas da ideia “mulher e Natureza” do pensamento
ocidental, decorrendo à inferioridade e dominação pelo “homem e cultura” (SILIPRANDI, 2000,
p.63), afirma que a sociedade sem exploração da Natureza, seria uma condição para a libertação da
mulher. A crise ambiental e ecológica está completamente vinculada às relações de gênero, tal crise de
hoje está diretamente vinculada ao capitalismo, ela também reproduz e agrava a opressão das mulheres
(ARUZZA, et al. 2019).
É pontual à esta relação a concepção de Estado patriarcal, do movimento político enquanto
controle e representação masculina, o que inferioriza o protagonismo feminino. do desenvolvimento
social e sustentável. Progressivamente a ausência de políticas efetivas às necessidades das mulheres
desenham uma “etnografia” de grupos altamente afetados pelas crises ecológicas em escala global e local.
Grupos estes que por escala de vulnerabilidade social e se tratando de América Latina, por exemplo, são
mais pobres, isolados de equipamentos e serviços de Estado, populações negras, indígenas, quilombolas
mulheres e crianças entre outros, que são violentados pela ausência de seus direitos de cidadania.
Tomada essa premissa, que concerne aos debates feministas, podemos pensar que os cenários
que constituem as mulheres amazônicas perpassam pela mesma lógica, seja no modo de vida ribeirinho,
urbano-periférico, rural, etc. Considerando tais especificidades, as problemáticas se darão mais ou menos
intensamente, tomando por exemplo o estudo “O Saneamento e a Vida da Mulher Brasileira” de 2018,
ao apontar que a falta de saneamento se concentrava nas camadas mais pobres da população feminina
brasileira, a universalização dos serviços de saneamento básico, e o aumento de renda a ela associado
trariam uma redução da incidência de pobreza.

O COLETIVO IARA E A RODA SABERES


Ao alcançar um pouco destas realidades e cenários na relação de dificuldade de acesso à água,
encontramos a necessidade da busca por debates que contemplassem as águas e as mulheres
especificando a escala de leitura “água e mulheres na Amazônia”. Assim, nossa motivação surge,
também, através das inquietações sobre os poucos espaços de divulgação e debate desse tema,
principalmente, para mulheres amazônidas em suas singularidades culturais e ambientais.
Através de indicações e “pontes” proporcionadas para conhecermos as mulheres que compõem
nossa rede hoje, foi possível iniciar conversas e trocas acerca do tema desde agosto de 2020. Esta rede é

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composta por mulheres, mães, acadêmicas, pesquisadoras, feministas, antifascistas, LGBTQIA+,
professoras e de diferentes lugares do Brasil. Essa pluralidade nos une e nos fortalece a construir um
movimento de luta pela busca da garantia de direitos às mulheres amazônicas.
Após a realização de reuniões debates foi possível observar iniciativas e participação de mulheres
na discussão, área de atuação e engajamento sobre gestão da água/recursos hídricos;observar as
similaridades e disparidades regional/local da participação das mulheres na gestão das águas;Identificar
como as mulheres estão inseridas no debate enquanto pesquisadoras, movimentos sociais, entre outros.
A partir desse breve parâmetro foi possível organizar a I Roda de saberes “água e mulheres na
Amazônia” realizada nos dias 24, 30 e 31 de março de 2021, através da plataforma virtual YouTube.
A primeira Roda de conversa “Mulheres e água: do global ao local” no dia 24 contou com as
convidadas Eldis Camargo (SP); Fátima Froes (BA); Lívia Antunes (BSB) com mediação dos diálogos
por Andreza Trindade (PA) e Aline Machado (PA);
A segunda Roda Mulheres e água na Amazônia, com a convidada Célia Neves (PA), a qual é
nativa dos Manguezais, vive na Comunidade do Bairro Umarizal, na RESEX (Reserva extrativista)
Marinha Mãe Grande, Litoral da Amazônia Legal, Curuçá-PA. É Membro titular do Conselho Fiscal da
AUREMAG (Associação Mãe da RESEX) e da Secretaria Executiva Nacional da CONFREM-Brasil,
(Instituição de representação de Populações Extrativistas Costeiras e Marinhas). E para o último dia
tivemos o Cine Debate com os filmes “Mulheres de Mamirauá” de Jorane astro (PA) e “O bem virá” de
Uilma Queiroz (PE).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa motivação surgiu através das inquietações sobre os poucos espaços de divulgação e
diálogo do tema da água, numa perspectiva social e de gênero no contexto amazônico, considerando a
problemática da inacessibilidade social, suas desigualdades no acesso e suas implicações.
Pensando e articulando em rede, realizamos este relato sobre a iniciativa a partir da realização de
um evento virtual, que promoveu um debate e aglutinou saberes para realização de ações, que possam
fomentar as políticas públicas, que é um dever do Estado nacional brasileiro, mas que podem ser
incrementadas pela sociedade, quando esta compreende seus direitos, e formas de acesso às questões que
respeitem seus modos de vida.
Muitos são desafios para superar a desigualdade de gênero, no acesso à água potável, no
esgotamento sanitário e na higiene feminina. Onde a água não está disponível na própria residência,
mulheres e meninas são as principais responsáveis pela higiene da casa, além de carregar o pesadíssimo
fardo da coleta de água para as atividades domésticas diárias.

REFERÊNCIAS
ANTUNES, Lívia. Relações de gênero e fluxos socioespaciais desiguais da água no município de Paraty,
RJ. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais
Eletrônicos), Florianópolis, 2017. Disponível
em:http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499469554_ARQUIVO_artigo
_fazendogenero.pdf. Acesso em: 12 de mar. de 2021.
ARRUZZA, Cintia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um
manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

30
BRK, Ambiental. Mulheres e saneamento. EX ANTE CONSULTORIA ECONÔMICA, 2018.
Disponível em: <https://mulheresesaneamento.com/pt/baixar-pdf>. Acesso em: 12 de maio de 2021.
DINIZ, Carmen Simone Grilo, et.al. Saúde das mulheres: experiência e prática do coletivo feminista
sexualidade e saúde. São Paulo: CFSS, 2000.
ONU - Organização das Nações Unidas. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável. Disponível em:
<http://www.agenda2030.org.br/saiba_mais/publicacoes> Acesso em: 14 de maio de 2021.
_________.Sétimo relatório direitos humanos à água potável e ao-esgotamento-sanitário. Resolução da
Assembleia Geral da. Resolução A/HRC/33/49. Disponível em: https://ondasbrasil.org/7o-
relatorio-leo-heller-direitos-humanos-a-agua-potavel-e-ao-esgotamento-sanitario/>Acesso em: 10 de
maio de 2021.
SILIPRANDI, Emma. Ecofeminismo: contribuições e limites para a abordagem de políticas ambientais.
Disponível em: <http://www.emater.tche.br/docs/agroeco/revista/n1/11_artigo_ecofemi.pdf>
Acesso em: 13 de maio de 2021.

31
O TRABALHO PARA MULHERES EM CONTEXTO URBANO, RURAL E DURANTE A
PANDEMIA DA COVID-19

Luciene Soares de Oliveira PENA1


José Henrique Rodrigues STACCIARINI2

INTRODUÇÃO
Propõe-se, com este artigo, traçar uma reflexão sobre a relação rural - urbano e o trabalho
realizado por mulheres nestes dois contextos. Considera-se a realidade vivenciada por milhões de
mulheres no mundo todo durante a pandemia da COVID-19, sendo, este período, singular na história
da humanidade, sobretudo para as mulheres – na realidade do trabalho, renda, corporeidade, violências e
outros aspectos.
A COVID-19 aproximou e distanciou as pessoas ao mesmo tempo. Apesar de todos os
percalços que o vírus trouxe, é possível pensar, nessa conjuntura, o quão frágeis ou fortes podem ser as
relações em sociedade e no núcleo familiar, assim, vai se descobrindo, aos poucos, como criar novos
laços sociais. O laço social, anteriormente, era proporcionado pelo ato de compartilhar o mesmo espaço
físico e nele poder dialogar e sentir o outro. Na ausência do espaço físico, busca-se dar um novo sentido
às relações e, com o espaço físico comprometido e até mesmo restrito, o direito à vida se dissolve
(OLIVEIRA, 2020).
Deste modo, a pandemia vai além dos corpos físicos, atingindo, internamente, todas as pessoas,
mudando a forma de pensar, agir e sentir, bem como os hábitos de indivíduos e de nações inteiras
(FERREIRA et al., 2020) ocasionando alterações no comportamento humano, nas estratégias
organizacionais e na forma como o trabalho da mulher do campo e da cidade é exercido (O GLOBO,
2020).

OBJETIVOS
a) Como objetivo, este artigo propõe uma reflexão sobre a relação rural - urbano e o
trabalho realizado por mulheres nesses dois contextos, considerando, ainda, a realidade
vivenciada por milhões de mulheres no mundo todo durante a pandemia da COVID-
19.

METODOLOGIA
Nesse sentido, recorre-se, como método investigativo, à utilização de bibliografias de autores e
autoras do “mundo do trabalho”, além de dados e diversas pesquisas de órgãos, como a Organização das
Nações Unidas (ONU).

1
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Geografia Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão. E-mail:
lucienesoliveira@gmail.com
2
Professor titular do Programa de Pós-graduação em Geografia Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão. E-mail:
jhrstacciarini@hotmail.com

32
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para Sodré et al. (2016), o campo é tangível e fisicamente identificável, já o rural contempla o
pensamento sobre um processo do imaginário, englobando um conjunto de relações sociais
compartilhadas. Segundo este mesmo autor, o urbano constitui-se em uma união de relações
estruturadas cognitivamente, que excede para a realidade palpável, sendo assim, se projetando para a
cidade. Nesse contexto, o campo e a cidade são a delimitação física do espaço, já o rural e o urbano
compõem-se de relações sociais.
Complementando a discussão, Lefebvre (1991, p. 37) assevera que

O campo, ao mesmo tempo realidade prática e representação, vai trazer as


imagens da natureza, do ser, do original. A cidade vai trazer as imagens do
esforço, da vontade, da subjetividade, da reflexão, sem que essas
representações se alastrem de atividades reais. Dessas imagens confrontadas
irão nascer grandes simbolismos.

Desse modo, o urbano pode ser definido, entre múltiplas interpretações, como a dinâmica à
qual estabelece o tecido social presente na cidade, a centralidade, as relações e atividades desenvolvidas
por “seres concebidos, construídos ou reconstruídos pelo pensamento” (LEFEBVRE, 1999, p. 54).
Nesse espaço, os movimentos sociais são postos como forma de reafirmar a sua posição e o “urbano é a
simultaneidade, a reunião, é uma forma social que se afirma” (LEFEBVRE, 1986, p. 159), sendo a sua
formação originada no processo industrial, no qual podemos classificar o termo “sociedade urbana”.
Portanto, seguindo essa linha de análise,

Aqui, reservaremos o termo ‘sociedade urbana’ à sociedade que nasce da


industrialização. Essas palavras designam, portanto, a sociedade constituída
por esse processo que domina e absorve a produção agrícola. Essa sociedade
urbana só pode ser concebida ao final de um processo no curso do qual
explodem as antigas formas urbanas, herdadas de transformações descontínuas
(LEFEBVRE, 1999b, p. 15, grifos do autor).

Com o processo de industrialização, o espaço rural é transformado e absorvido lentamente,


modificando o modo de vida das pessoas e de (re)produção das sociedades. Esse período foi assinalado
pela substituição do trabalho artesanal por máquinas, como mão de obra. Nesse cenário, a mulher, que
já vinha de uma situação de subordinação no campo, se sujeita aos trabalhos industriais, recebendo um
salário muito menor do que o salário do homem. Para Nascimento (2011, p. 21)

[...] o trabalho feminino foi aproveitado em larga escala, a ponto de ser


preterida a mão de obra masculina. Os menores salários pagos à mulher
constituíam a causa maior que determinava essa preferência pelo elemento
feminino. O Estado, não intervindo nas relações jurídicas de trabalho,
permitia, com a sua omissão, toda sorte de explorações. Nenhuma limitação
da jornada de trabalho, idênticas exigências dos empregadores quanto às
mulheres e homens, indistintamente, insensibilidade diante da maternidade e
dos problemas que pode acarretar à mulher, quer quanto às condições
pessoais, quer quanto às responsabilidades de amamentação e cuidados dos
filhos em idade de amamentação [...].

33
Ainda de acordo com texto, nesse período, não inexistiam quaisquer normas de proteção que
especificassem a jornada de trabalho. Esta situação é bastante favorável aos empregadores que não
tinham nenhuma responsabilidade social e jurídica para com esses trabalhadores. Nessa mesma linha de
pensamento, Santos (2021, p. 130) lembra que no “[...] mundo do trabalho incide, historicamente,
uma desvalorização da força de trabalho feminina [...]”.
Observa-se, assim, que o gênero feminino é marcado por processos de desigualdades no tocante
do trabalho. Silva e Schneider (2010) vão mais além ao dizer que o trabalho, sobretudo no campo, para
as mulheres, muitas vezes, não é renumerado, sendo pouco valorizado. Dentro desse ordenamento existe,
ainda, a produção que se destina ao autoconsumo no campo.
O autoconsumo é definido por Brumer e Anjos (2008, p. 9) como a realização de “tarefas de
limpeza, preparo dos alimentos, cuidado dos alimentos, cuidados com as crianças, trabalhos com a
horta, quintal e os cuidados com os animais, tudo isso feito pelas mulheres.” Desta feita, a mulher rural
se divide entre o trabalho rural e a casa, porém, para ela, o trabalho rural não é considerado um trabalho,
o espaço rural é apenas uma extensão das tarefas domésticas, não sendo considerado trabalho, pois não
recebem rendimento nenhum (HEREDIA, 1979). Vale destacar que esta “produção” é realizada por
40% de mulheres, contra apenas 8,9% de homens, que estão mais centrados em atividades de
agropecuárias (SILVA, 2013).
Há, ainda, o trabalho exercido pela mulher rural com seus filhos e maridos nas unidades de
trabalho. O marido é assalariado e a mulher não recebe nada, pois o pagamento é feito para o chefe da
família. A mulher, nesse processo, se torna invisível aos órgãos responsáveis por catalogar os dados
estatísticos. Outra questão é a própria dificuldade delas ao se declararem como trabalhadoras rurais e
não como donas de casa (HEREDIA; CINTRÃO, 2006).
Como se pode verificar, a desvalorização do trabalho feminino ocorre em todas as áreas, assim
como a sobrecarga de trabalho desenvolve-se nos diferentes níveis sociais na esfera do gênero feminino,
não importando se a mulher tem estudo ou não, se é do campo ou da cidade. A desvalorização não é
fruto da condição social, mas sim de uma sociedade patriarcal, ou seja, de uma supremacia masculina,
uma autoridade que permeia toda a sociedade, uma valoração do homem como o centro, como o ser
principal ao que está em volta dele.
As desigualdades de gênero estão vinculadas ao contexto social, frisando que muitas mulheres
não compreendem e nem percebem tais desigualdades em suas vidas, pois se sobrepõem às histórias de
vida como práticas naturalizadas. Para visibilizá-las e entendê-las, faz-se necessário (re)conhecer essas
histórias numa perspectiva histórica e social (GRAF; DIOGO; COUTINHO, 2010). Esse cenário é
fruto de uma sociedade constituída em um modelo patriarcal, no qual o homem é o centro de tudo.
A palavra “gênero” define as características das relações sociais entre os sexos, orientando as
construções sociais sobre os papeis que são definidos aos homens e mulheres. Sob o substantivo
“gênero” se agrupam todos os aspectos psicológicos, sociais e culturais da feminilidade/masculinidade,
reservando-se sexo para os componentes biológicos, anatômicos e para designar o intercâmbio sexual
propriamente (BLEICHMAR, 1988, p. 33). Trata-se de “sexo biologicamente definido e ‘gênero’
sociologicamente construído” (CALÁS; SMIRCICH, 2010, p. 274). Ressaltando a fala da ONU,
Predominantemente, a interpretação de gênero é bipolar
(feminino/masculino) e hierárquica (o masculino mais valorizado do que o
feminino). Quando se discute essa questão, pretende-se debater e transformar
a construção social e cultural das relações de gênero, no “sentido de pluralizá-
las e democratizá-las, eliminando discriminações baseadas em dicotomias e
hierarquias estereotipantes” (MULHERES BRASIL, 2017, p. 25).

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É fundamental destacar que, mesmo antes da pandemia da COVID-19, as mulheres rurais já
enfrentavam uma enorme sobrecarga de trabalho produtivo, familiar e doméstico, pelo qual não recebem
pagamento algum. As dificuldades da pandemia apenas tornaram essa situação mais profunda e
discutida, pois as mulheres ainda dedicam o seu tempo para cuidar de crianças que deixam de ir à escola,
de doentes e pessoas da terceira idade, bem como todos os afazeres domésticos. Somadas a essa situação
crítica, estão as constantes denúncias sobre o aumento da violência de gênero, como resultado das
medidas de quarentena e isolamento social que foram implementadas por quase todos os países do
mundo (FAO, 2020).
Nessa direção, vale destacar o aumento de 27% em 2020 em relação a 2019 do número de
denúncias à central da mulher, realizadas no número “180/disque denúncias”. Se for considerada a
variação no mesmo período, entre os anos de 2019 e 2018, o acréscimo foi 5,6%, considerando que tal
realidade pode ser confirmada pela matéria publicada na Folha de São Paulo/ Piau /Agencia Lupa, em
08 de março de 2021 (FOLHA DE SÃO PAULO, 2021). Esses dados refletem não só a atual situação
que estamos vivendo, mas também a violência doméstica sendo evidenciada por um momento o qual
toda uma sociedade está vivendo.
Outro aspecto a ser considerado nas discussões sobre o trabalho feminino é a desigualdade entre
a divisão do trabalho na esfera doméstica. De acordo com Bruschini (2006), são muitas as dificuldades
em perceber o trabalho efetuado nesse âmbito. Para Diogo e Maheirie (2008), o trabalho doméstico é
invisível, desvalorizado, exercido por mulheres com auxílio de outras mulheres (filhas) na condição de
aprendizes, reproduzindo lugares socialmente ocupados pelo masculino e pelo feminino.
Nesse sentido, a sobrecarga de trabalho para o gênero feminino sempre foi mais pesada, em
decorrência de todo o processo histórico e cultural, mesmo porque, tanto as mulheres urbanas como as
mulheres do meio rural são, desde pequenas, instruídas a seguir um modelo de cuidado com a casa e
com as pessoas que as rodeiam. Segundo dados divulgados pelo IBGE (2019), sobre “outras formas de
trabalho”, em 2018, a taxa de realização de afazeres domésticos das mulheres foi de 92,2%, ratificando
sua superioridade em relação ao percentual de homens, 78,2% (IBGE, 2019).
Além do trabalho realizado de forma física, existe também todo o trabalho mental de
preocupação, cobranças, controle e funcionamento do núcleo familiar. Este é um desgaste mental/
emocional sem fim, ao qual as mulheres são submetidas desde muito novas. Toda essa opressão é
vivenciada e sentida por todas as mulheres, independentemente se é uma mulher urbana ou rural. Assim,
a COVID-19 somente realçou a realidade dessa problemática, evidenciando que as mulheres são
submetidas a isso, devido a tantas tarefas acumuladas.
Nessa nova constituição do trabalho em home office, ficou ainda mais claro o tamanho da
sobrecarga de trabalho da mulher, que vai desde acompanhar os filhos pequenos nas aulas online a dar
conta do funcionamento da casa e do seu trabalho. Nesse viés, onde estaria o homem? Talvez, ele ainda
não tenha se dado conta da necessidade da divisão do trabalho em casa, visto que muitos não
compreendem a dinâmica da sua própria casa, por estarem habituados a sempre encontrarem tudo
pronto. Eis, dessa maneira, um processo cultural e que, aos poucos, será mudado pela própria
necessidade e não aceitação da mulher nesse papel de “super-heroína”, que a desgasta em todos os
sentidos.
Segundo uma pesquisa telefônica e online com mulheres, publicado no site The Conversation,
as mães “sentem que trabalham o dia todo”, a assistência escolar dada aos “filhos virou ‘um elemento de
ansiedade e estresse agregado’. A estratégia encontrada para essa situação foi “teletrabalhar” de
madrugada, o que significa adiar a hora de ir para a cama ou levantar mais cedo que o resto da família”
(RAMÍREZ, 2021).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das ideias discorridas ao longo deste texto, nota-se que o papel da mulher, em múltiplas
escalas temporais e espaciais, encontra-se subordinado a uma estruturação do trabalho voltado a
privilegiar o gênero masculino. Sendo assim, seja no campo ou na cidade, no passado ou na
contemporaneidade, a mulher torna-se quase uma máquina frente à rotina do dia a dia.
Ainda que culturalmente os afazeres domésticos fossem direcionados às mulheres, nota-se que,
nos dias atuais, cada vez mais elas estão se livrando dessa subordinação. Contudo, isto ainda não é uma
regra, mesmo porque a violência doméstica prevalece em índices cada vez mais alarmantes, sendo essa
realidade o resultado de uma sistêmica necessidade emocional e ou financeira da mulher pelo homem,
que coíbe, em diversas formas, o direito da mulher ao trabalho, estudo, ou seja, de viver uma vida
independente, no contexto de trabalho e renda.
Com a pandemia da COVID-19, essa situação se agravou. Várias mulheres estão, de fato, reféns
de homens em suas próprias casas. Isso se tornou uma questão deveras preocupante, já que a violência se
estende à corporeidade, ao psicológico, bem como à intensificação do trabalho doméstico e aos afazeres
ligados aos cuidados dos membros familiares. Este fato faz com que os geógrafos e geógrafas estejam
comprometidos com pesquisas múltiplas, objetivando contribuir para com essas mulheres em diversos
possíveis caminhos teórico-metodológicos e práticos, na busca de uma vida repleta de sentido pelo
trabalho, bem como rumo a uma tão sonhada emancipação de gênero.

REFERÊNCIAS
BLEICHMAR, E. (1988) O feminismo espontâneo da histeria: estudo dos transtornos narcisistas da
feminilidade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
BRUMER, A.; ANJOS, G. Gênero e reprodução social na agricultura familiar. Nera, n. 12, p. 6-17,
jan./jun., Presidente Prudente, 2008.
BRUSCHINI, C. Trabalho doméstico: Inatividade econômica ou trabalho não-remunerado? Revista
Brasileira de Estudos Populacionais, v.23, n.2, jul./dez., São Paulo, 2006. p. 331-353.
CALÁS, M.; SMIRCICH, L. Do ponto de vista da mulher: abordagens feministas em estudos
organizacionais. In.: CLEGG, S. R.; HARDY, C.; NORD, W. Handbook de Estudos organizacionais,
v.1, São Paulo, 2010.
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36
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37
O PROCESSO ORGANIZATIVO DO COLETIVO REGINA PINHO NO ASSENTAMENTO
ZUMBI DOS PALAMRES, CAMPOS DOS GOYTACAZES, RJ

Viviane R. S. MARTINS.1
INTRODUÇÃO
O presente resumo faz parte da pesquisa de tese intitulada “ Organização de Mulheres no
contexto da luta pela terra, em Campos dos Goytacazes (RJ) ”, ligada ao Programa de Pós-graduação em
Políticas Sociais (PPGPS), da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, e ao Núcleo
de Estudos Afro-Brasileiro e Indígena (NEABI) dessa Instituição de Ensino, com o fomento da
Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Esse processo
organizativo é fruto da política de gênero, adotada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) e visa a criação de espaços para a participação de mulheres, tanto nas instâncias desse
Movimento, quanto nos espaços de decisão dos acampamentos e assentamentos rurais, com o apoio de
mediadores, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Neste resumo, enfocamos a configuração do Coletivo Regina Pinho no assentamento Zumbi
dos Palmares2, no município de Campos dos Goytacazes, interior do Estado do Rio de Janeiro, com o
objetivo de compreender a forma pela qual esse processo organizativo se constituiu enquanto ferramenta
de articulação política de mulheres assentadas na região. Para tanto, partimos da análise de fontes
documentais e revisão da literatura. De início, com base nos materiais analisados, mapeamos as ações
desse Coletivo no período de 2009 a 2019. Com isso, identificamos que essas mulheres atuam por meio
de diversos espaços, dentro e fora desse assentamento. Nesse percurso, elas estabelecem diálogos com
outros grupos e organizações sociais, assim como reivindicam junto a órgãos governamentais bens e
serviços públicos para os assentamentos rurais.
Desse modo, a ação desse Coletivo forjou um processo de mobilização das mulheres no Zumbi.
Mesmo assim, elas ainda são invisibilizadas e seus saberes desvalorizados em nossa sociedade. Contudo,
essa experiência organizativa aponta para a construção de espaços de aprendizagem pelas mulheres Sem-
Terra. Uma ferramenta política que possibilitou o fortalecimento de identidades coletivas, assim como a
mobilização dessas mulheres em torno de agenda política comum.

O FLORESCER DE UM GRUPO DE MULHERES NO ZUMBI


A participação de mulheres em instâncias de decisão no Zumbi foi registrada pela pesquisa
realizada por Manhães e Pedlowisk (2002). Segundo esse estudo, estas possuem um perfil singular, pois
são “mulheres separadas, viúvas que se encontravam em ascensão política e econômica dentro do
assentamento, construindo seu papel como agricultoras e trabalhadoras rurais, [...]” (MANHÃES e
PEDLOWSKI, 2002, p. 565).
Helena Lewin (2005), que também fez pesquisa de campo nesse assentamento, acrescenta que a
elevada participação de mulheres nos espaços de decisão do Zumbi está relacionada ao processo de
ampliação de sua consciência política impulsionado nos debates dos sindicatos rurais e nos movimentos
1
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). E-mail: vivianeramiro@gmail.com.
2
Composto por 506 famílias assentadas distribuídas em 5 núcleos, sendo 4 núcleos pertencentes ao município de Campos e
o núcleo 5 está localizado no município de São Francisco de Itabapoana. As integrantes do Coletivo Regina Pinho são, em
sua maioria, do núcleo 4.

38
sociais. Porém, esse engajamento político ocorre de forma mais efetiva durante as ocupações quando se
reivindica o direito à posse da terra, pois, nem todas as famílias assentadas seguem a lógica organizativa
proposta pelo MST (LEWIN, 2005).
Além disso, há posições conflitantes em relação à inserção das mulheres em espaços de poder no
Zumbi, pois as integrantes3 do Coletivo Regina Pinho sinalizam que esses espaços não respondem às
demandas das mulheres que vivem e/ou trabalham nesse assentamento, ainda que algumas delas
defendam que são as mulheres que não têm interesse em participar desses espaços (MARTINS, 2015).
Em parte, essas percepções refletem as disputas de poder e divergências políticas entre as
lideranças desse assentamento. Esses conflitos tendem a gerar constantes cisões e dificultam a gestão
coletiva e a participação efetiva das famílias assentadas, especialmente das mulheres e jovens na tomada
de decisões sobre os projetos de desenvolvimento no Zumbi.
Esse debate coloca em evidência um processo organizativo ainda pouco abordado nos estudos
acadêmicos sobre as mulheres e reforma agrária. A questão a saber é que ideias orientam as ações do
Coletivo Regina Pinho? No Zumbi, é possível observar a configuração de outros formatos organizativos,
como o grupo “Amor do Campo4” formado em 1999, de forma majoritária, por mulheres adultas e
idosas, para a confecção de remédios caseiros utilizados em suas redes familiares e vizinhança
(COLETÂNEA REINVENTANDO O TRABALHO, 2004).
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) possui um rico acervo documental com registros que
revelam a contribuição das mulheres assentadas em projetos educacionais e culturais, assim como em
ações comunitárias de recuperação ambiental e de mobilização para a reivindicação de bens e serviços
públicos, como transporte e escolas no Zumbi 5.
O surgimento de um grupo formado exclusivamente por mulheres é mais recente. A concepção
dessa proposta começou a se desenhar, em 2009, quando algumas lideranças do Zumbi IV se reuniram
para discutir a construção de um projeto coletivo que viabilizasse a geração de renda para mulheres
assentadas. Mas, apesar de um número significativo de mulheres, mais de 15 responderam à convocação
para discutir esse projeto e grupo se desarticulou devido a divergências políticas (MARTINS, 2015).
Logo depois, parte desse grupo, mobilizado por técnicas do Setor de Produção do MST, e com
apoio da CPT, realizaram uma agenda de formação que reuniu mais de 25 mulheres desse assentamento.
Entre as questões discutidas, nesse momento formativo, estão temas como: agroecologia, soberania e
segurança alimentar e acesso a políticas públicas para mulheres assentadas. No entanto, com o
assassinato da assentada Regina dos Santos Pinho 6 no início de 2013, aos 56 anos de idade, esse
processo de mobilização se fragilizou.
Meses depois, passada a forte onda de insegurança que tomou conta das famílias assentadas7,
um grupo de mulheres retomou a agenda de encontros. Desse momento, também participaram
lideranças femininas do Setor de Educação do MST8. Como desdobramento dessa agenda foram
realizadas oficinas e intercâmbios entre mulheres de vários assentamentos. Por meio desses encontros,

3
A maioria das integrantes desse grupo se classificam como “negras”, são casadas, têm filhos, possuem baixa escolaridade e
são evangélicas. Mas, há uma variação no perfil delas em termos de ocupação, idade e trajetória política.
4
Esse grupo é considerado um dos desdobramentos do coletivo de saúde formado durante a ocupação das terras da Usina
São João, em 1997, que resultou na criação do assentamento Zumbi dos Palmares.
5
Por meio da articulação do Coletivo de Educação do Campo do Norte Fluminense.
6
Agricultora fez parte do Grupo Amor do Campo e contribuiu com a articulação de canais para escoar a produção agrícola
do Zumbi.
7
Esse crime ocorreu dias depois do assassinato de Cícero Gudes, liderança do MST, que também residia no Zumbi.
8
Em parceria da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), por intermédio do projeto de extensão no âmbito
do curso de especialização em Agroecologia e Desenvolvimento de Assentamentos, beneficiado pelo PRONERA.

39
foram sistematizadas as principais dificuldades enfrentadas pelas mulheres nos assentamentos rurais da
região. Não por acaso, um dos problemas relatados por elas em relação a seu processo organizativo seria
a falta “legitimidade do grupo” dentro do assentamento, assim como a dependência em relação a
projetos gestados por outras organizações (MARTINS, 2015).
Contudo, elas estabelecem redes de diálogo com mulheres inseridas em outros coletivos
feministas na região, assim como definiram uma plataforma política visando à construção de
mecanismos de melhoria das condições de vida nos assentamentos da região, pois elas afirmam: “ o
protagonismo político das mulheres rurais na criação de ferramentas coletivas de organização com vistas
a construção de modelo de desenvolvimento mais justo, sustentável e democrático no campo ”
(COLETIVO REGINA PINHO, 2015). Para tanto, também reivindicam políticas públicas.
No âmbito do acesso aos recursos hídricos e energéticos, com a instalação de redes de
distribuição de água potável e investimento em tecnologias de geração de energia alternativas. No
fomento a inserção produtiva e escoamento da produção agrícola dos assentamentos, por meio da
criação de linhas de crédito e fomento das experiências de mulheres e jovens. E na promoção social das
famílias assentadas com ampliação da oferta do segundo segmento do Ensino Fundamental nas escolas
do campo e projetos de qualificação profissional para geração de trabalho e renda para as mulheres
rurais (COLETIVO REGINA PINHO, 2015).
Dentre as ações desse Coletivo, destacam-se agendas de caráter produtivo, para a confecção de
produtos artesanais e de produtos agrícolas processados e o estabelecimento de parcerias com outros
grupos e organizações visando ao enfrentamento à violência contra as mulheres no contexto rural. No
próximo tópico, apresento algumas ideias que fundamentam o fazer político das integrantes do Coletivo
Regina Pinho nesse assentamento.

UM COLETIVO, MUITOS SENTIDOS


O Coletivo Regina Pinho é um espaço para “reunir a mulherada”. Uma vivência coletiva que
permite sair “da rotina”, “se descontrair!”. Um espaço de “aprendizado” que envolve o saber
“falar/ouvir” de memórias doloridas de luta, de partilha de afetos. Nessa cumplicidade, elas defendem
uma política do “bem viver”, no sentido de estabelecer “redes de proteção e autocuidado baseados em
saberes ancestrais de cura”, uma vez que essas mulheres promovem várias iniciativas buscando fortalecer
seus territórios (RELATÓRIO CPT, 2020).
Tais iniciativas são mecanismos que visam a proporcionar melhorias das condições de vida desse
assentamento. Assim, o fazer político de mulheres em vistas da garantia de direitos aponta para a
complexa dinâmica organizativa das mulheres Sem-Terra na região, já que essas mulheres formulam
ideias e (re)criam ferramentas políticas configuradas em diferentes formas de luta em seu cotidiano.
Não por acaso, as mulheres Sem-Terra estão envolvidas em diferentes ações para mobilizar
recursos. Esse esforço foi pontuado por uma jovem assentada que fomentou o debate sobre projetos de
renda para as mulheres no Zumbi. Segundo ela: “ […] inicia-se, é dado um pontapé; sempre tem alguém
que tem mais vontade. […] fase que se está como muito gás; só que até que o grupo alavanque, muitas
desanimam!” (CADERNO DE CAMPO, 2019).
Para as integrantes do Coletivo, de modo geral, as experiências organizativas das mulheres
assentadas não recebem apoio por parte das agências estatais, como a Empresa de Assistência Técnica e
Extensão Rural (EMATER) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Ademais, as ações e programas existentes tendem a ser pontuais, fragmentadas e burocratizadas (CPT,
2020).

40
As condições de opressão e exploração em que vivem as mulheres assentadas é uma das
principais razões de participação das mulheres nesse grupo, já que a maioria delas buscam nesses espaços
formas de garantir a autonomia econômica e política para si e suas famílias (MARTINS, 2015). Em
termos políticos, as ideias que orientam a ação do Coletivo Regina Pinho se aproximam das proposições
do “Ecofeminismo”. Maria A. Ferreira (2017) explica que esse paradigma reflete as “ influências do
marxismo e de feministas socialistas, que denunciam a posição das mulheres na sociedade, como vítimas
de uma estrutura patriarcal de dominação, a mesma que serve de base para a degradação da natureza ”
(FERREIRA, 2017, p. 18).
Desse ponto de vista, as mulheres camponesas teriam um papel singular na proposição de outro
modelo de desenvolvimento no campo. Na América Latina, os debates promovidos pelos movimentos
campesinos têm como base a ideia do “ bem viver”. O termo refere-se a uma ética fundada nos modos de
vida das comunidades indígenas. De acordo com essa visão de mundo, a economia deveria ser
organizada a partir das necessidades da população e não com a finalidade acumular capitais. Desse
modo, urge romper com as estruturas de opressões sociais e promover à democratização do acesso aos
recursos gerados em nossa sociedade (ACOSTA, 2012).
No Brasil, em seu último congresso nacional, a CPT reafirmou seu apoio “ a luta dos povos e
comunidades tradicionais” e a defesa de uma “Terra sem males e do Bem Viver”, o que exige, na visão
dessa entidade, a implementação de um “projeto de reforma agrária justa e o respeito aos territórios
tradicionais” (CPT, 2015).
Durante a “Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a violência e pelo Bem Viver
como Nova Utopia”, realizada em Brasília, em 2015, vários grupos e entidades marcharam pelo “ direito
à vida, direito a humanidade, pelo direito de ter direitos e pelo reconhecimento e valorização das
diferenças”. Esse movimento também chamou a atenção para “ a sabedoria milenar herdada de nossos
ancestrais traduzida na concepção do Bem Viver, que funda e constitui as novas concepções de gestão
do coletivo e do individual, da natureza, política e da cultura ”, assim como estabelece outros sentido e
valores para a existência humana no mundo (GELEDÉS, 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo organizativo de mulheres no Zumbi emerge enquanto um canal de diálogo. Essa
ferramenta resultou na definição de estratégias visando à melhoria das condições de vida das famílias
assentadas, assim como fomentou a construção de projetos coletivos, tais como ações que visam à
diversificação da produção e à criação de canais de comercialização para o escoamento dos produtos
agrícolas desse assentamento. Assim, as ações do Coletivo refletem concepções distintas do projeto de
desenvolvimento em curso nesse assentamento, capturado pela lógica de produção capitalista, que
produz formas de opressão e exploração distintas, sobretudo sobre a vida das mulheres assentadas.
O formato organizativo do Coletivo no Zumbi se configura por meio de circuito de grupos e
organizações que colocam em curso estratégias que objetivam a permanência das famílias assentadas na
terra. Esse processo tem gerado aprendizados que fundamentam o fazer político dessas mulheres nesse
assentamento. No entanto, o caminho percorrido por esse Coletivo sofre constantes (re)fluxos dado a
lógica que orienta a implementação das políticas agrárias agrícolas dos projetos de desenvolvimentos dos
assentamentos da reforma agrária. O entendimento desse fenômeno exige a compreensão das formas de
intersecção das formas de opressão e exploração a que estão submetidas as mulheres camponesas, tais
como as opressões de raça, gênero e classe.

41
REFERÊNCIAS
ACOSTA, A. O bem viver. Uma oportunidade para imaginar outros mundos.Editora Elefante. Quito,
2015.
FERREIRA, M. A. S. O. A campanha da fraternidade ecumênica de 2016 na perspectiva do
ecumenismo e da justiça social. In. Vulnerabilidade e Justiça Socioambiental. CISNE, L. F. R. et al.
Instituto Humanitas, UNICAP. Recife- PE, 2017. (p. 13 a 23).
LEWIN, H.; et al. Uma nova abordagem da questão da terra no Brasil: o caso do MST em Campos dos
Goytacazes. LEWIN, H. (Coordenadora). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
MANHÃES, M. C.; PEDLOWSKI, M. A. Gênero e produção agrícola: um estudo sobre a participação
feminina no processo de reforma agrária no município de Campos dos Goytacazes – RJ. In. VI
CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO LATINO-AMERICANA DE SOCIOLOGIA RURAL.
ALASUR: UFRGS, Porto Alegre, 2002. P. 561-566.
MARTINS, V. R. S. DA. A experiência organizativa do Coletivo Regina Pinho no Assentamento
Zumbi dos Palmares, em Campos dos Goytacazes, RJ . Rio de Janeiro: UFRRJ, 2015. (Monografia).

DOCUMENTOS CONSULTADOS
Caderno de Campo. Entrevista concedida a autora. Campos dos Goytacazes, RJ, 2019.
Carta das Mulheres Negras. Marcha Mulheres Negras.Link de acesso
https://www.geledes.org.br/carta-das-mulheres-negras-2015/ (Acesso 05 de junho, 2020).
Coletânea Reinventando o Trabalho. Uma experiência de Saúde Alternativa no Rio de Janeiro. Bia
Costa (Org.). Rio de Janeiro: Ed. Capina, 2004.
Coletivo Regina Pinho. Carta de Reinvindicações. Campos dos Goytacazes, RJ, 2015.
Comissão Pastoral da Terra. XV Congresso da Comissão Pastoral da Terra. CPT: Rondônia, 2015.
Comissão Pastoral da Terra. Relatório de Atividades. CPT: RJ, 2020.

42
O RETORNO DO PRESENTE: POSSIBILIDADES PARA UM FUTURO VIVO

Airely Neves PEREIRA1

INTRODUÇÃO
Precursor da ciência moderna, René Descartes (1973) nos joga dentro de um sistema binário
que além de dicotomizar a realidade, exalta apenas um dos polos do binarismo. Na modernidade, nos
opostos razão-emoção, foi privilegiada a racionalidade, mãe de toda técnica ascendida após a primeira
revolução industrial. Entre o uno e o múltiplo, surgiu outro paradoxo acoplado, ao mesmo tempo em
que o sistema de produção capitalista fragmentou tanto o conhecimento quanto o trabalho, seguindo a
lógica cartesiana, no campo político e econômico, as instituições de poder colocaram em voga a
poderosa ideologia da globalização, que pretende unificar ao redor do globo todo o seu sistema, que está
intimamente entrelaçado com os interesses do capitalismo.
A fragmentação e o isolamento das partes provocaram, e continuam a provocar, nas pessoas que
passam por esse sistema a incapacidade de articular as múltiplas dimensões do seu ser. O formato
educacional gerido e imposto pelo estado moderno se baseia sobre esse paradigma, e como consequência
temos o impedimento do fluxo das informações e relações entre as disciplinas por conta das grades
curriculares, que tem um nome apropriado para a função que exerce. No campo da produção em massa,
a classe trabalhadora começou a experimentar o estilo de vida fabril, caracterizado pela segregação,
mecanização e repetição.
Nas renovações do sistema capitalista, que hoje atua sob o formato neoliberal, as condições
acima expostas invadiram e se apropriaram do processo de subjetivação dos indivíduos, como aponta
Foucault (2011) no seu diagnóstico da biopolítica. A ideologia vigente procura romper não apenas os
laços sociais, mas deixa os próprios sujeitos à mercê de uma fragmentação de si mesmos, dada a
impossibilidade de as pessoas articularem as diversas dimensões do seu ser. Como consequência,
vivenciamos hoje uma cultura altamente individualista, arraigada nos ideais de sucesso que o dinheiro
propõe oferecer, e desconectada dos interesses coletivos.
Com isso, o modelo educacional vigente, caracterizado pelo seu formato bancário, como revela
Paulo Freire (2013), onde o aluno é um recipiente vazio pronto para ter introjetadas em si as normas e
utilidades exigidas pelo mercado de trabalho, precisa ser urgentemente reformulado. Dos motivos que
levam a essa necessidade constam: a crise climática, que na contemporaneidade é um produto do
capitalismo, o racismo e o machismo, que reproduzem e perpetuam as relações de poder que coloca um
na posição de senhor e o outro na de servo abrindo brecha para os mais perversos tipos de exploração e
a LGBTfobia, que reprime a pulsão que temos em transgredir as identidades que nos foram impostas.

SÉCULO XX: A CRISE DA LÓGICA CLÁSSICA


A modernidade entrou em crise, ainda no século XX a lógica clássica teve suas estruturas
abaladas, a ordem do mundo parece ter entrado numa fase de caos. Tanto o dualismo cartesiano quanto
os movimentos de Newton não serviam mais para compreender os recém-descobertos níveis de realidade
que até então passavam despercebidos para os nossos olhos. A lógica quântica põe em xeque os axiomas
da identidade, da não-contradição e do terceiro excluído. Segundo a lógica clássica, o elemento “A”, não

Universidade Federal do Pará. E-mail: airely.pereira@ifch.ufpa.br


1

43
poderia ser “A” e “não-A” ao mesmo tempo, o movimento dessa lógica é um movimento de exclusão,
para fazer sobressair apenas um elemento, o elemento privilegiado. No mundo da mecânica quântica
esse paradigma é quebrado, segundo suas leis, existe um terceiro termo que é “A” e “não-A” ao mesmo
tempo, essa façanha ocorre graças ao terceiro termo “T” incluído, que foi descoberto/criado por essa
nova forma de perceber o mundo. O terceiro excluído da lógica clássica era o responsável por bi
polarizar a realidade e de quebra exaltar um polo em detrimento do outro, provocando uma rigidez que
estanca até mesmo o movimento dialético.
No mundo moderno, ser ou não ser, era a grande questão. Nos primeiros passos da pós-
modernidade, foi descoberto um estado em que as coisas são e não são ao mesmo tempo. O terceiro
incluído nos trouxe a um outro nível da realidade, onde a própria percepção do tempo e do espaço
foram profundamente modificadas. Não por acaso, é nesse contexto que nasce a internet, um lugar que
rompe as barreiras espaço-temporais que até então limitavam o nosso movimento. No mundo digital,
não faz diferença entre aqui e o outro lado do mundo, e o tempo para fazer esse movimento dura o
equivalente a um click.
Podemos dizer que a excepcionalidade dessa quebra de paradigma é tão grande e profunda para
a ontologia, que faz a internet parecer brinquedo de criança. A conectividade, simploriamente associada
ao mundo digital, perpassa camadas muito mais profundas da realidade, esse emaranhado de partículas
interconectadas, capazes de relacionarem-se mesmo a distância, reativa um elo a muito tempo perdido. A
educação que precisamos pra hoje não pode se prender as grades curriculares, isso não quer dizer que o
conhecimento especializado deva desaparecer, pelo contrário, o que devemos fazer é abrir o caminho
para as relações entre as diversas áreas do saber. A linha de interconexão entre as partes abre a
perspectiva para uma formação interdisciplinar. Para além disso, quando passamos a considerar os
diversos pontos de conexão, rompemos com o dualismo enrijecido herdado da Era Moderna.

TRANSIÇÃO ENTRE UMA EDUCAÇÃO PANDÊMICA E PÓS-PANDÊMICA


O cenário no qual estamos imersos exige coragem e criatividade, a falência – ou lucro - do
sistema capitalista se encontra em evidência, os modelos que por ele foi implantado requer mudanças
radicais. O contexto pandêmico que tem acentuado as crises econômicas e sociais explicita o caráter
predatório e arcaico de um sistema que precisa ser substituído urgentemente. A lógica neoliberal que tem
sido imputada ao sistema educacional precisa ser erradicada das Escolas e Universidades, para que elas
atuem como potencializadoras da capacidade de reflexão, da criatividade e da responsabilidade social.
Diante disso, discutiremos adiante alguns pontos que consideramos fundamentais para a promoção de
um ensino que atenda as demandas de uma sociedade interconectada virtualmente, mas que não usufrui
dessa possibilidade no campo da materialidade. Pensamos que para vislumbrarmos alternativas
sustentáveis para o futuro da Amazônia e da humanidade precisamos nos conectar de forma
transdisciplinar, conectando os vários pilares do conhecimento e as mais diversas subjetividades.
A pandemia abriu uma fissura no que experimentávamos enquanto educação, abruptamente
tivemos que nos “adaptar” ao ensino a distância, que se mostrou a única via possível dado o contexto de
crise sanitária que exigiu o isolamento social. Dessa forma, é uma tarefa de agora pensarmos qual é o
modelo educacional que vai enredar o processo de transição entre o estado pandêmico e o pós-
pandêmico. Dada essa necessidade, elaboramos algumas propostas pensadas para o contexto da
Universidade Federal do Pará para o processo de transição entre as aulas no período pandêmico e pós-
pandêmico. Considerando a presente fase, que nos limita ao ensino remoto, apresentamos a primeira
proposta: que a instituição promova semestralmente uma semana de diálogos transdisciplinares com uma
programação em comum para toda comunidade acadêmica, o objetivo seria

44
Colocar sob análise os problemas urgentes que enfrentamos hoje, tais como a crise climática,
desigualdade social, machismo, racismo, LGBTQIfobia, fome mundial, esgotamento dos recursos
naturais, etnocídio, imperialismo, entre outros obstáculos que nos impedem de alcançar o bem-estar
social.
Usufruir de um espaço interdisciplinar, mediado pelo corpo docente da instituição, que facilita
o desenvolvimento de soluções criativas para os problemas que precisamos resolver hoje.
Promover o engajamento do corpo discente enquanto atores políticos que podem transformar a
realidade.
Esse ambiente de conexão, além de buscar e construir conhecimento, precisa estabelecer um
ambiente favorável para o processo de alteridade. Pensando nisso, é fundamental utilizar uma
abordagem sensível, conectada a arte. Quando a Arte e a ciência penetram uma à outra com suas
delicadas, e ao mesmo tempo, firmes vertentes nós sentimos o gozo que é o conhecimento, e é esse
sentimento de prazer que deve passar pela cabeça dos alunos e alunas quando eles estiverem fazendo algo
relacionado a Universidade, o prazer de descobrir e de criar. Em um momento delicado como o que
estamos vivendo, em que o futuro certamente é aquele gato do Schroedinger, que não sabemos se está
vivo ou morto, não é cabível enquadramos os alunos nas grades de um sistema que nos oprime o tempo
inteiro.
O sistema de avaliação exercido dentro do sistema educacional cria um ambiente de
competitividade. Essa lógica tem uma relação íntima com o sistema capitalista, que visa criar uma arena
de concorrência em todos os setores da nossa vida. Dado o nosso contexto político, precisamos pensar
formas alternativas que combatam a apatia gerada por esse sistema. Sendo assim, pensamos que se
abolirmos o sistema de avaliação tal como ele é hoje, daremos um estímulo promissor para as relações
intersubjetivas dos discentes entre si e com os professores e professoras. Dado o que nos falta, é
auspicioso angariarmos vínculos sociais, fortalecer nossas relações comunitárias e a empatia, favorecer o
trabalho coletivo e a cooperação e assumir a interdependência entre os seres.

O RETORNO DO PRESENTE
Segundo o Grupo de Trabalho da UFPA sobre o Novo Coronavírus, a possibilidade de aulas
presenciais será apenas quando a bandeiras (indicador de risco epidemiológico) estiver verde ou azul, a
primeira representa baixo-risco e exige um limite reduzido de pessoas por ambiente, a segunda cor
corresponde ao período pós-pandêmico, mesmo assim, as normas básicas de biossegurança quanto ao
distanciamento social, ao uso de máscara e a higienização das mãos devem permanecer. O que temos
hoje na literatura científica sobre a disseminação do Coronavírus é que ela se dá principalmente através
das vias aéreas, dessa forma, lugares fechados, como salas de aula, se tornam um ambiente propício para
sua propagação. Em contrapartida, lugares ao ar livre contribuem para a rápida dispersão do vírus,
reduzindo os riscos de contágio.
Além de contribuir com as normas de biossegurança que nosso contexto exige, o contato com a
natureza trás implicações positivas para a nossa saúde física e mental, é larga a literatura científica que
aponta para isso, esse contato com o mundo externo, que já estava sendo tirado de nós, aumentou
drasticamente com a pandemia. O vírus da Covid-19 tem atuado paralelamente com problemas de escala
psicológica, que têm sido acentuados pelas crises política, econômica, ambiental, social e cultural que
tem nos assolado simultaneamente. Com isso, estamos fadados a enfrentar epidemias de ansiedade e
depressão. Diante disso, deve ser tarefa principal da Universidade promover não só espaços específicos
de acolhimento psicológico, que também são necessários, mas criar uma cultura acadêmica que se
disponha de maneira acolhedora. O resgate do cuidado com o outro e com a natureza é o elo que
precisamos para quebrarmos as barreiras do capitalismo.

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A transdisciplinaridade é o conceito fundante da nossa proposta pedagógica, mas no contexto
presencial ela se torna muito mais divertida e complexa que no primeiro. Os objetivos da proposta que
elencamos para o ensino remoto continuariam, ou seja, colocar sob análise os problemas urgentes que
enfrentamos hoje, promover um espaço interdisciplinar de soluções criativas, e engajar os discentes
enquanto atores políticos com capacidade de transformar a realidade. Levando em consideração que as
primeiras aulas presencias serão mais seguras ao ar livre, elaboramos uma fase de transição do que seria o
ensino no período pandêmico e no pós-pandêmico. Devemos relembrar que o modelo aqui desenvolvido
se inspira no designer da Universidade Federal do Pará campus Belém, mas isso não impede que o
âmago do que propomos não possa ser realocado a outros contextos. Existem dois espaços,
deliciosamente misturados um ao outro, que pretendemos construir, um de caráter científico e o outro
de caráter artístico. Para possibilitar essa experiência, pensamos em duas práticas que a Universidade
pode aderir.
A primeira prática seria a do cultivo. Usufruímos de um largo espaço na nossa Universidade,
mas muitos dos nossos colegas não possuem um contato íntimo com a terra. Esse contato íntimo pode
ser satisfatoriamente realizado através das ciências, em suas múltiplas vertentes. Sendo assim, a prática da
agricultura deve estar no presente na realidade das pessoas que a UFPA pretende formar, e é nessa
prática ao ar livre, colocando mão na terra e descobrindo as propriedades, sejam moleculares ou
privadas, que brotam dela é que será feito o diálogo interdisciplinar que favorece o surgimento de
soluções criativas. Além disso, a agricultura é um marco na história da humanidade, ela é a indistinção
entre a teoria e a prática do conhecimento. Há ainda um terceiro ponto, hoje vivemos reféns da
agricultura industrial, que envenena não só os nossos pratos, mas também a nossa água e a nossa terra
com seus agrotóxicos, além disso, desmatam nossas florestas e promovem o extermínio de povos
tradicionais da Amazônia. Precisamos reestabelecer nossa soberania alimentar e destruir o imperialismo
que ainda persiste em existir nas nossas terras.
A segunda prática seria a da colheita. A UFPA precisa ampliar urgentemente seus espaços de
experimentações artísticas, qualquer pessoa que a universidade pretende formar deve na sua experiência
ter tido contato pleno com a arte, ou seja, tanto como expectador, quanto como expositor. Pensando
nisso, vemos como necessária a construção do que grosso modo chamamos de “casa da cultura”. Seria
um espaço que se diferenciaria primeiramente pela sua própria arquitetura, que teria o papel de sintetizar
a contradição entre as paredes de uma casa o desemparedamento necessário para uma educação pós-
pandêmica. O uso dessa casa estaria restrito à livre criação, para o estímulo dela, seria realizado no
espaço, além de oficinas de todas as magnitudes do campo da arte, exposições de obras, provavelmente
muitas seriam oriundas das oficinas, caberia também a realização de eventos culturais que contemplem as
artes cênicas, o audiovisual, a música, a moda, a dança, a poesia, e tudo mais que possa ser criado.
Existe um objetivo para a realização dessas práticas e uma possível consequência para tal
objetivo. O objetivo é resgatar um elo que foi a muito tempo perdido, quando dissociaram teoria da
prática. Essa separação foi a responsável segregar o trabalho entre intelectual e braçal, o primeiro ficou
restrito ao que hoje chamamos de grandes escritórios, que apesar de terem “grandes” nos nomes, se
restringem a uma pequena parcela da humanidade, o segundo foi imposto forçosamente para a outra
parcela, que corresponde a maioria, e que hoje se tornou o que chamamos de classe trabalhadora super-
explorada. A alforria desse elo implica uma troca de paradigma, que perpassa pela transdisciplinaridade e
pela quebra do espaço-tempo. Quando o tempo é quebrado surge a necessidade de repensarmos o que é
a história, dado o seu entrelaçamento íntimo com o tempo. Talvez essa seja a brecha para abrirmos a
caixa de Schroedinger e encontrarmos um futuro vivo.
O retorno desse elo é um grande presente para o nosso futuro, sua presença é o suficiente para
erradicarmos a cultura de exclusão que sustenta o capitalismo e instrumentaliza nossos corpos, como
observa Giorgio Agamben (2017). Quando o capitalismo deixar de ser sustentado suas estruturas vão

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cair, e esse organismo morto vai servir de adubo para uma nova forma de vida. O nosso papel será o de
sermos cultivadores, cuidar da nossa terra, das nossas florestas, da nossa biodiversidade, da nossa
multiculturalidade. Tudo isso, experimentando as múltiplas dimensões do nosso ser e da
interdependência que nos cerca. A ciência é o pilar e o propósito das instituições de ensino superior, no
entanto, considerando seu caráter reflexivo, que foi analisado por Antony Gidddens (1991), ela não
pode se indispor a certas transformações que deve processar. As quebras de paradigmas que ocorreram
no campo da ciência no século XX, nos jogaram dentro de uma realidade que foi profundamente
transformada pelas tecnologias da informação. Porém, a era da conectividade ainda se encontra presa a
alguns erros do passado que precisam ser corrigidos.
Dentre esses erros estimulados pela modernidade, relembramos alguns que já foram citados
aqui: segregação, mecanização e repetição. Virtualmente, nos encontramos interconectados, mas no
campo da materialidade essa prática ainda não aconteceu, para trazer para o nosso nível da realidade a
força do elo descoberto pela mecânica quântica, devemos reformular não apenas o processo de
construção do conhecimento, como também repensar a programação das tecnologias que são
proporcionadas pela ciência. Sob o paradigma da inclusão, a segregação deve dar lugar a integração, em
vez de mecanização, precisamos retomar as relações orgânicas que são fundamentais para a nossa
natureza e a repetição, que é a condição do conservadorismo, deve dar lugar para a confluência de
diversidades que sempre transforma a realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS:
AGAMBEN, Giorgio. O uso dos corpos.tradução Selvino Assmann. – 1. Ed. – São Paulo: Boitempo,
2017
ARRUZA, Cintia. Feminismo para os 99%: um manifesto/ Cintia Arruza, Tathi Bhattacharya, Nancy
Fraser; tradução Heci Regina Candiane. – 1. Ed. – São Paulo: Boitempo, 2019.
DESCARTES, René. Discurso do método. In: René Descartes. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado
Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 33-81 (Coleção Os Pensadores).
Extensão no quotidiano da Universidade: um exercício de interpretação ou de intervenção? /
Universidade Federal do Pará; [Organização: Fernando Arthur de Freitas Neves]. – Belém: Pró-Reitoria
de Extensão/UFPA, 2018.
FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 1a ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2013.
FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. Paris, Presses Universitares de France. 1963 [ed. Bras.:
O nascimento da clínica.Trad. Roberto Machado, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2011].
GIDDENS, Antony. As consequências da modernidade; tradução Raul Fiker. – São Paulo: Editora
Unesp, 1991.
MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana; organização e tradução Cristina Magro,
Victor paredes. 2. Ed. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
SANTOS, AKIKO. Complexidade e transdisciplinaridade em educação: cinco princípios para resgatar o
elo perdido. Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008.

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GINECOLOGIA NATURAL E ECOFEMINISMO: DIÁLOGOS PARA ALÉM DO CORPO

Rosiane Correa dos SANTOS


Andréa Lúcia Ramos de Oliveira

INTRODUÇÃO
Este trabalho é uma reflexão política e social sobre as experiências em práticas de Ginecologia
Natural, vivenciadas pelas autoras, partindo de um olhar holístico, sociológico e geográfico. As
experiências analisadas surgem das vivências ocorridas com a Ginecologia Natural enquanto forma de
educação popular, em diferentes regiões do Brasil, levando em consideração análises baseadas na
Naturologia, Sociologia e Geografia.
Como movimento autônomo, a Ginecologia Natural é uma forma ancestral de autocuidado, que
considera outras dimensões além da biológica, tais como a dimensão psicoemocional e político-social na
manutenção da saúde integral da mulher. Partindo desse pressuposto, a consciência política e social do
corpo feminino como território de luta, vem se tornando mais ampla, na medida em que esse
movimento questiona os padrões impostos pelo capitalismo enquanto determinantes do lugar da mulher
na sociedade e a forma como o corpo da mulher é tratado, medicalizado, e na maneira como os ciclos
naturais femininos são omissos na cultura capitalista patriarcal. Durante a participação e elaboração em
eventos que dialogam e disseminam as práticas de Ginecologia Natural, ficou notório que esta última
amplia a discussão em relação à experiência da mulher relacionada à saúde do corpo feminino, e a
conscientização sobre a manipulação pela indústria como forma de dominação patriarcal, gerando uma
discussão de ordem política, histórica, ecológica e holística a respeito da dominação da mulher.

OBJETIVOS
a) O objetivo deste trabalho é discorrer sobre a reflexão política que o conhecimento
sobre as práticas integrativas vinculadas a saúde da mulher geram a partir de vivências
com a Ginecologia Natural. A partir de vivências que ampliam a visão sobre a saúde do
corpo feminino é desencadeada uma discussão social sobre o corpo como território
político, sobre o lugar de fala da mulher, e a conscientização da necessária mudança do
paradigma de exploração capitalista patriarcal, para modelos que estejam atrelados às
práticas de cooperação e cuidado, surgindo à reflexão sobre as mesmas raízes que
possuem a crise ambiental, e a violência contra a mulher na sociedade.

METODOLOGIA
A metodologia utilizada neste trabalho é baseia-se um relato de experiência vivenciado pelas
autoras, foi realizado também um levantamento bibliográfico acerca do tema. De acordo com Simon
(2007) relato de experiência, refere-se ao processo de compreender a fundo uma experiência prática e
retirar dela ensinamentos que serão socializados, dando um sentido histórico e contextual ao que foi
vivido. O processo de reconstrução da experiência resulta em uma interpretação crítica, capaz de
produzir um novo conhecimento.

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A reflexão se dá a partir de uma oficina de Ginecologia Natural ministrada pela primeira vez em
Macapá-AP (2016), idealizada pela coautora deste trabalho e um workshop sobre Ginecologia Natural
realizada em São Paulo-SP vivenciada pela autora. Cujos eventos desencadearam o desenvolvimento de
outros trabalhos sobre a saúde da mulher entre elas presentes a conscientização sobre a relação intrínseca
entre saúde, ecologia e política. Entre os desdobramentos da oficina realizada, como participante da
oficina, a autora do presente trabalho passou a aprofundar-se no estudo de terapias holísticas com foco
na saúde da mulher.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Há algum tempo as mulheres vêm resgatando a conexão com sua própria essência e uma forma
de conectar - se com a própria natureza é ser ver como parte. Como ocorreu de pensarmos sobre os
nossos processos fisiológicos dos nossos corpos? Aprendemos a conviver com a T.P.M com dores e
oscilações de humor, aprendemos a ignorar o nosso ciclo menstrual. A negação da realidade feminina
atravessa o âmago da história. Mas o acesso esse tipo de conhecimento, nos revela que nem sempre foi
assim. O objetivo da presente análise é trazer reflexões acerca da Ginecologia Natural, falando de
maneira genérica, considerando as vivências das autoras (no caso, faremos um recorte de experiências e
vivencias e Ginecologia Natural em alguns estados, como, Macapá, Pará e São Paulo).
A primeira vez que eu ouvir falar de Ginecologia Natural, foi em Macapá no estado do Amapá
em 2016, na ocasião estava terminando o curso de Bacharelado em Geografia. Através de Oficina
intitulada “O Despertar da Lua Vermelha” Uma introdução a Ginecologia Natural, idealizada e
ministrada por uma amiga de Belém-Pará, o evento aconteceu no Museu Sacaca. A oficina tinha como
proposta levar informações para mulheres à respeito do feminino, cuidado com seu corpo feminino e o
resgate do ciclo menstrual, a partir da abordagem da Ginecologia Natural Autônoma, alguns temas
foram abordados durante a oficina dentre eles: o ciclo menstrual e o ciclo da lua; e o resgate da relação
com o nosso ciclo menstrual; a autonomia sobre corpo da mulher a partir do contato com o sangue
menstrual, o Ecofemenismo e formas ecológicas e sustentáveis de lidar com o sangue menstrual,
substituindo os absorventes descartáveis por absorventes ecológicos e coletores menstruais.
A oficina de saberes femininos apresentou uma introdução do que seria a Ginecologia Natural,
um tema ainda pouco difundido no norte do Brasil, a cidade de Macapá assim como outras cidades, do
norte e nordeste, devido sua localização geográfica, sofrem pela dificuldade de acesso às informações e a
outros conhecimentos. Por outro lado a oficina acabou se tornando um marco para muitas mulheres da
cidade, sendo a primeira oficina realizada no contexto da Ginecologia Natural na cidade. A oficina
apresentou uma nova perspectiva em torno da visão sobre a menstruação, encarada de forma natural,
como sinal de saúde e como potencialidade da mulher. Desmistificando crenças em relação ao sangue
menstrual, colocando o corpo da mulher e o sangue menstrual no centro das preocupações, atribuído ao
corpo ferramentas e conhecimentos de importantes, para a autonomia da saúde feminina. Sinalizando
para uma possível ferramenta de autoconhecimento e empoderamento feminino. Sem dúvidas a oficina
significou um momento muito importante na vida daquelas mulheres, pude depois em um bate papo na
roda de conversa, ouvi-las dizer o quanto aquelas informações fizeram com que elas pudessem
desconstruir muitas crenças em relação ao processo de ser mulher, e com certeza a partir daqueles
esclarecimentos, a relação com o corpo delas, não seria mas o mesmo.
Após a oficina fiquei ainda mais atenta as questões que envolviam o processo de ser mulher, a
partir daí surgiu o interesse de buscar mais informações sobre o assunto, tanto para atender as minhas
perspectivas pessoais, como também as perspectivas socioculturais. No mesmo momento eu já havia
começado o estudo com a Massoterapia Holística o que me impulsionou ainda mais na descoberta da
percepção corporal, como parte do meu estudo com o autoconhecimento.

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Essa trajetória me acompanhou até a cidade de São Paulo, onde atualmente resido, foi onde
também participei pela primeira vez de uma vivencia em Ginecologia Natural. A vivencia foi conduzida
pela professora e Naturopata Carolina Carvalho, idealizadora do Natureza Medicinal. Desde sua
formação e com a Ginecologia Natural ela atende mulheres que buscam se reconectar com o seu
feminino através de práticas integrativas aliadas a Naturopatia, atualmente é coordenadora do curso de
pós-graduação em Ginecologia Natural.
A vivência ocorreu em setembro de 2008, o workshop tinha como tema “Ginecologia Natural,
Fitoterapia Feminina e Saberes Lunares”. Foi mais um encontro que caminha na lógica, com o foco na
troca de experiências de vida entre mulheres. Um dos temas bordados que mais me chamou atenção foi à
prática da fitoterapia feminina, e o trabalho da utilização de plantas medicinais no cuidado da saúde
intima da mulher. A antiga ligação entre as mulheres e as ervas nos fazem conectar com a nossa natureza
primordial. E por outro lado, elas assumem um papel muito importante dentro de suas comunidades, os
difíceis acessos aos serviços básicos de saúde acabam sendo supridos pelos serviços de parteiras,
benzedeiras e curandeiras.
Embora se tenham atualmente uma Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares
no SUS (BRASIL, 2006), essas experiências apresentam claramente um recorte de classes ainda não
valorizadas do saber da medicina cientifica, deixando de fora outros sistemas de cuidado, como os
saberes populares, que não necessariamente, dialogam com esse saber, mas que, geralmente são usados
como único recurso.
Em contrapartida ao atual modelo hegemônico, marcado por racionalidades tecnicistas e
patriarcais a Ginecologia Natural, não se trata de uma vertente da Ginecologia Tradicional alopática
ocidental, suas bases estão fundamentada na “Ginecosofia”, que relaciona a saúde e toda sabedoria da
mulher, legitimando os saberes ancestrais renegadas pela medicina alopática ocidental. O termo foi dado
pela investigadora social, escritora e parteira tradicional, Pabla Peres San Matine a partir de seus estudos
de sociologia, inicia diversas viagens pela América do Sul, onde nasceu o projeto” Ginecosofia”, através
do qual investiga e compila maneiras independentes às tradições e saberes ancestrais de cura com uso de
ervas medicinais para a saúde sexual das mulheres, projeto do qual resultou na publicação do livro
“Manual Introdutório à Ginecologia Natural”. A Ginecosofia é a arte da cura integral feminina, amplia
a visão sobre a saúde, física, mental e espiritual, político e social da mulher, incluindo a Ginecologia
Natural, Martins (2009). Este movimento que vem ganhando força entre as mulheres da América
Latina contraria a lógica da medicina alopática, defende que Ginecologia teve origem no patriarcado e
tem sido a ciência que foi responsável por desvendar o “sistema reprodutivo feminino” da forma como
esse estudo foi realizado, enfraqueceu a relação das mulheres com o seu próprio corpo.
Dialogando com a proposta de educação popular, uma vez, que o resgate desses saberes
demonstra preocupação no cuidado orgânico, autônomo, valorizando a percepção e natureza cíclica das
mulheres a partir do resgate da relação com o seu ciclo menstrual. Outra vertente também que também
corrobora na ampliação do debate, e coloca a mulher no centro das discussões quando o assunto e
ecologia é o Ecofeminismo.
Segundo Vandana Shiva (2020), o ecofeminismo trata de uma cosmovisão de mundo onde os
seres humanos são parte da natureza, e não entidades separadas dela. As mulheres e a natureza, não são,
portanto inertes e desprovidas de autonomia. Na visão das ecofeministas, a sociedade foi construída
para priorizar os domínios dos valores patriarcais. Há uma relação próxima que interliga a manipulação
do corpo feminino e a apropriação da natureza por meio da violência, a qual o ecofeminismo questiona,
e propõe uma redefinição da economia patriarcal capitalista.
Neste contexto tanto Ginecologia Natural e Ecofeminismo, lançam críticas a uma medicina e
uma indústria dita “masculina” que não é capaz de compreender os corpos e os processos naturais do

50
corpo da mulher, critica a indústria farmacêutica, e o uso de hormônios sintéticos, como principal forma
de tratamento no cuidado da saúde da mulher. Ambas as vertentes partem do pressuposto de que a
busca pela autonomia se dá através do estudo sobre a anatomia e fisiologia do corpo feminino, práticas
de autocuidado, como a utilização de chás, banhos de assento, vaporização uterina, auto-observação,
autoexame ginecológico, práticas sustentáveis como optar pelo uso de ecoabsorventes, e produtos
naturais, como o objetivo de diminuir o impacto do lixo sobre o meio ambiente.
O Ecofeminismo apoia-se em ações que promovem a vida levando em consideração o valor
intrínseco da natureza, onde as pessoas posam enxergar o planeta como um organismo vivo.
Sherry Ortner, chama atenção para o fato de que, em todas as culturas, as
mulheres têm sido alvo da subordinação, e propõe uma investigação profunda
da origem da violência nas diferenças dos corpos entre homem e mulher. Ela
defende ainda que a falta de uma função criativa no homem o levou a
produzir uma função destrutiva de forma artificial, pela técnica”(1974,
apudFLORES e TREVISAN, 2015, p.01).
Nesta abordagem o Ecofeminismo identifica no sistema patriarcal a origem da catástrofe
ecológica atual, têm sido a natureza e as mulheres, ambas associadas à reprodução da vida, e alvo das
agressões e exploração desse sistema. Neste contexto, o movimento ecofeminista reforça a discussão da
ideia da relação de gênero, associada à libertação da mulher e da natureza, ambas exploradas. Esse debate
amplia a percepção da relação existente entre o domínio da natureza para exploração irracional de
recursos naturais, e as violências cometidas aos corpos femininos, como forma de apropriação e domínio
da natureza ‘selvagem’ da mulher. A naturalização desse fenômeno pode ser vista em algumas culturas
como conceito de natureza, “fazer nascer” (SILVA, 1999, p.8), com ele o de gestação, na
responsabilidade de ato gerar. Essa relação da natureza com o feminino reflete um interesse pelo corpo,
em um sentido de dominação e sujeição, como é realizado com a natureza, com a exploração de seus
recursos naturais (SILVA, 1999).
A Ginecologia Natural, por sua vez, também compartilha das mesmas opiniões do feminismo,
visto que ambas buscam igualdade a partir da manutenção da diferença entre os sexos e de uma espécie
de inversão hierárquica que visa proporcionar valores associados ao feminismo. Desvincula também a
noção de mulher de reprodução/gestação, que de certa forma é uma relação bastante naturalizada na
nossa sociedade. Esta discussão traz à tona questões do processo de descoberta enquanto mulher, como
decidir sobre ter filhos ou não? Se nem ao menos conhecemos a natureza de nossos próprios corpos.
Queremos gerar filhos concebidos no seio do amor e da autorresponsabilidade, e não apenas por um
automatismo biológico imposto. Nesse sentido, podemos dizer que um dos princípios fundamentais da
Ginecologia Natural e do Ecofeminismo e fazer com que a mulher encontre em sua identidade outras
noções do que é ser mulher.
Uma análise histórica da função social de diferentes grupos de mulheres, em civilizações antigas,
evidencia seu importante papel social na manutenção de saberes populares de cura, bem como sua
autonomia com os cuidados do corpo e sua conexão com a natureza. A promoção desses saberes
populares na autonomia do cuidado com o corpo tem uma relação profunda com a necessidade de
liberdade política e social da mulher. Surgiu como resposta aos abusos e manipulações sobre o corpo
feminino pela indústria capitalista ao longo dos tempos. “Considerando que o estado tenta controlar os
corpos e, consequentemente, a sexualidade, o desejo, a psique das mulheres” (DIMEN, 1997, p.53),
acredito que a crítica desta análise inicialmente, se refere, a medicina cientifica percebida na verdade,
com um ataque a todas as estruturas opressoras mantidas pelos domínios patriarcais do Estado.

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No decorrer da história humana, as práticas de cura através do uso de plantas medicinais e
cuidados naturais sempre fizeram parte da cultura de nossos povos tradicionais, esses conhecimentos
fundaram as bases da medicina alopática ocidental. Entretanto, essas práticas de cuidado ainda são
questionadas por algumas abordagens científicas, o que vem paulatinamente sendo reformulado, por um
diálogo multidisciplinar de saberes.
O estudo com a Ginecologia Natural me faz questionar como seria levar a oficina, a uma
comunidade composta por mulheres, em sua maioria negra com baixa renda e pouco acesso aos direitos
básicos? Sobretudo, com um país marcado pela desigualdade social, o que torna inacessíveis a algumas
mulheres, principalmente mulheres negras, periféricas, sem formação educacional ou profissional. Será
que o cotidiano dessas mulheres permite a escolha de outro estilo de vida? Há tempo de se auto-
observar? Como será o cuidado de si?
O que carrego de forma mais expressiva através da vivencia nessas oficinas e nas práticas de
Ginecologia Natural, é honrar a minha natureza com a sensação de grande satisfação e orgulho em ser
mulher. Acredito que o estudo com essa abordagem é mais uma tentativa de resistência, sobretudo, o
direito de ser mulher. Esses ensinamentos continuarão se manifestando ao longo da minha caminhada,
tanto pessoal como profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todas essas temáticas abordadas no relato de experiência desse trabalho com as práticas em
Ginecologia Natural e o Ecofeminismo, vão de encontro ao consenso sobre a independência feminina,
colocando em cena a importância do cuidado e do respeito do corpo, da sexualidade, e o lugar que a
mulher ocupa na sociedade. Desse modo, essa discursão possibilita refletir, nos diversos campos de
diálogo e sob diferentes perspectivas, sobre a saúde da mulher por meio de uma abordagem inovadora,
no campo da formação médica, uma vez que a ginecologia natural dificilmente é abordada nas
graduações em saúde, em especial nos cursos de medicina. É imprescindível e dialogar sobre a ampliação
deste campo de debate.

REFERÊNCIAS
BRASIL, Ministério da Saúde Secretaria de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas SUS.Brasília:
Ministério da Saúde, 2006.
DIMEN, M. Poder, sexualidade e intimidade.In. JAGGAR, A. M; BORDO, S. R.
Gênero, corpo e conhecimento. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997
FLORES, Bárbara Nascimento, TREVIZAN, Salvador Dal Pozzo. Ecofemnismo e comunidade
sustentável. Rev. Estud. Fem. vol.23 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2015. Disponível
em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2015000100011#aff1>
Acessado em: 07 mai.2021.
SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Unisinos, 2020. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-
noticias/602416-ecofeminismo-artigo-de-vandana-shiva>. Acessado em: 07 mai.2021.
SILVA, A. M. Elementos para compreender a modernidade do corpo numa sociedade
racional. Cedernos Cedes, Ano 19, n. 48, Ago./ 1999
SAN MARTÍN, P. P. Manual Introductorio a la Ginecología Natural. 2 ed. Chile: La
Picadora de Papel, 2011.

52
SIMON, A. A. Sistematização de processos participativos: o caso de Santa
Catarina. Rev. Bras. De agroecologia. v. 2, n. 1, 2007. Disponível em:
http://www.abaagroecologia.org.br/revistas/index.php/rbagroecologia/article/view/6353
Acessado em: 07 mai.2021.

53
NEM TE CONTO: DIÁLOGOS COM MULHERES DE COMUNIDADES TRADICIONAIS

Adiele Nataly Alves LOPES1


Dyandra Jamylle Rosário da SILVA 2
INTRODUÇÃO
A expressão “Nem te conto” é uma expressão popular paraense utilizada quando uma pessoa
quer contar uma novidade à outra, geralmente empregada em conversas informais. Historicamente, essas
conversas no período da Idade Média, representavam uma rede de solidariedade entre mulheres, que
serviam para a organização coletiva das mulheres, mas que com o passar do tempo adquiriu outros
sentidos pejorativos, como a fofoca (FEDERICI, 2019).
A utilização do termo fofoca foi instituído socialmente para deslegitimar e silenciar as vozes das
mulheres, nesse sentido é importante ressignificar os diálogos entre elas, haja vista seu potencial de
transformar a realidade (FEDERICI, 2019).
A atividade intitulada “Nem te conto: diálogos com a comunidade” é organizada pela equipe
psicossocial do projeto Mangues da Amazônia, que neste primeiro momento, facilitará uma roda de
conversa com mulheres das comunidades tradicionais da Reserva Extrativista Marinha (RESEX Mar)
Caeté-Taperuçu, localizada em uma unidade de conservação, município no nordeste do estado do Pará.
O projeto Mangues da Amazônia tem por finalidade a recuperação e conservação de manguezais
na Reserva Extrativista Marinha (RESEX Mar) Araí-Peroba, em Augusto Corrêa; RESEX Mar Caeté
Taperaçu, em Bragança e RESEX Mar Tracuateua, em Tracuateua, na costa nordeste do Estado do
Pará, com ênfase na recuperação de áreas degradadas de manguezal.
O projeto conta com o patrocínio do Programa Petrobras Socioambiental na linha de atuação
Florestas e Clima, como um dos 68 selecionados no edital, e um dos seis projetos com atuação na região
amazônica.
O Mangues da Amazônia busca envolver os diferentes grupos sociais das comunidades
tradicionais do entorno e dentro das Unidades de Conservação, considerando seus moradores e
moradoras como o principal público no contexto educativo, mantendo o eixo psicossocial e a educação
para o desenvolvimento sustentável como prioritários ao longo de sua atuação.
A estratégia de roda de conversa foi escolhida por gerar oportunidade de valorização do
conhecimento tradicional na prática, norteando diversas atividades e discutindo os resultados
alcançados.
Essa interação será relevante para a comunidade em geral, pois irá oferecer espaço para
exposição de angústias, satisfações e até propostas que antes não teriam oportunidade de serem ouvidas.
Assim como possibilidades de orientações, conhecimentos e outras trocas para os diferentes grupos
sociais.
Logo, é importante ressaltar que o trabalho no ciclo de rodas de conversa “Nem te conto:
diálogos com a comunidade”, reforça o processo participativo da comunidade. É essencial desenvolver a
sensibilização, promover autonomia, empoderamento e cidadania de moradoras locais, enquanto uma
atividade conjunta.

Universidade Federal do Pará / Instituto Peabiru/ Coletivo Juntas. E-mail: adielelopes.psi@gmail.com


1

Universidade Federal do Pará / Instituto Peabiru. E-mail: jamylle.ufpa@gmail.com


2

54
A proposta é construir junto com a comunidade espaços de diálogos, direcionados por uma
dinâmica que possibilite a participação de todas sobre determinada temática.

OBJETIVOS
a) Apresentar uma estratégia que promova escuta qualificada às mulheres
b) Apresentar uma estratégia que realize orientações pertinentes às mulheres
c) Apresentar uma ferramenta que possa discutir sobre temas com base em Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS): Objetivo 3) Saúde e Bem-Estar (Assegurar uma
vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades), 5) Igualdade de
Gênero (Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas).

METODOLOGIA
Previamente, foi realizado um diálogo com algumas mulheres de uma das comunidades pólo, e a
partir desse encontro delimitou-se as temáticas que serão exploradas na roda de conversa, partindo de
suas narrativas, desejos, angústias e vivências.
O debate será norteado por uma dinâmica idealizada pelas autoras, intitulada “Tá na REDE”.
Utilizar-se-á notícias, frases, dados estatísticos e/ou imagens que sirvam como ferramentas disparadoras
que estimulem o diálogo sobre o tema proposto. As facilitadoras apresentarão o tema que (estará
exposto em uma rede de pesca) e incentivarão cada participante a ler os cartões e escolher aquele que lhe
chamar mais atenção ou que se identificar. Após cada participante escolher seu cartão, retornará ao seu
lugar e inicia-se o diálogo a partir da fala individual sobre o que está exposto.
O objetivo da dinâmica é viabilizar, a partir das suas vivências, a fala e a escuta dos marcadores
de gênero que influenciam, na vida dessas mulheres, no sofrimento psíquico e nos determinantes sociais,
daquelas que convivem com o manguezal e que constroem sua subjetividade a partir deste ecossistema.
Para a realização da atividade será necessário o uso de uma rede pesca, papel cartão/kraft,
impressora, tesoura, pregadores, e devido o contexto de pandemia o número de participantes será
reduzido, mantendo os protocolos de saúde quanto ao distanciamento social e uso de máscaras e álcool
em gel.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
No que se refere aos aspectos teóricos, o termo “social” evidencia a dinâmica das interações
sociais, enquanto a comunidade representa um espaço geográfico da vida entre pessoas, e na sua
multidimensionalidade existem aspectos sociais, econômicos e culturais repletos de significações que
emergem nas relações humanas (GÓIS, 1989).
A comunidade é um campo de apropriação de conhecimentos, de construção de identidades e
de crenças culturais; sendo assim, a psicologia social comunitária apresenta contribuições importantes ao
enfatizar contextos sociais de investigação e prática.
As concepções da psicologia social e da psicologia comunitária unem-se e fundamentam
princípios éticos, políticos e humanitários, visando o desenvolvimento de práticas direcionadas para as
comunidades, com o objetivo de promover a capacidade de reflexão nos indivíduos acerca das situações
vivenciadas no ambiente social (CAMPOS, 2007).

55
Segundo Freitas (2005), a psicologia social comunitária prioriza a construção de conhecimentos
para orientar a definição de objetivos e as estratégias de intervenção, assim como o compromisso
político e o desenvolvimento de práticas coletivas que valorizem as relações humanas.
A denominação psicologia social comunitária integra um conjunto de pressupostos teóricos que
fundamentam a atuação profissional, por exemplo, as concepções de Paulo Freire (1979) acerca do
processo de conscientização social por meio da educação popular nas comunidades e as ideias de
Martin-Baró (1998) sobre a psicologia da libertação, que enfatiza o comprometimento com os grupos
sociais buscando a superação das dificuldades e o fortalecimento de vínculos.
Dessa forma, trabalhamos para que a construção do conhecimento possa contar também com
interação da psicóloga e assistente social com as moradoras da comunidade. Se trata de uma perspectiva
integrativa de conhecimentos que fundamentam as práticas e os questionamentos das problemáticas
sociais.
Já no primeiro contato que foi realizado para delimitar as temáticas que seriam exploradas na
roda de conversa, foi possível reconhecer tantas demandas emergindo naquele breve momento. Suas
vivências já nos trouxeram o desejo de dialogar, de estar e de compartilhar de conhecimento com aquelas
mulheres.
Em dois momentos de busca ativa foram levantadas temáticas a serem discutidas como tipos de
violência, em especial a doméstica, feminicídio, saúde da mulher, sobrecarga de trabalho na pandemia,
isolamento social, luto, os papéis sociais que estão mais adoecedores durante a pandemia, a exclusão
digital, dificuldade de acesos a tecnologia, do ensino remoto e atividades que exigem internet e outros
equipamentos, entre outros temas.
Foram expostas dificuldades, angústias, diversas compreensões, mas também receptividade pela
nossa escuta, pela nossa inserção em seus espaços territoriais. Foi se tecendo ali uma rede de afetos,
contatos, e que temos como objetivo fortalecer a fim de que se torne suporte um dia.
A atividade será realizada primeiramente na unidade-pólo de uma comunidade tradicional,
localizada em unidade de conservação, no nordeste do estado do Pará. E, pretendemos replicar para
outras comunidades-pólo contempladas pelo projeto Mangues da Amazônia, todas no nordeste do
estado.
Até o momento de escrita deste trabalho, só foram realizados dois contatos com essas mulheres,
o projeto ainda está em andamento, assim como as rodas de conversa, ciclos de diálogo “Nem te conto”.
Precisamos diversas vezes adiar nossas ações devido ao aumento do contágio da COVID-19. Após essas
conversas prévias mantemos boas expectativas de facilitar uma produtiva reflexão e diálogos.
Como defende Martin-Baró (1996) “trabalho profissional do psicólogo deve ser definido em
função das circunstâncias concretas da população a que deve atender”, dentro desta perspectiva
entendemos que as ações de roda de conversa perpassam pelos notes da educação popular devido às
reflexões subjetivas que venham a ocasionar, assim conscientização e empoderamento e acesso à
informação.
A importância dos diálogos com a comunidade é dar ênfase aos saberes prévios de um povo,
trazer uma reflexão popular gerando também uma inclusão social, além de desenvolver maior senso
crítico, mais consciência sobre temas políticos, como questões de gênero, feminilidade e suas opressões
demarcados em seus cotidianos, por exemplo.
Para que construa uma sociedade justa e democrática as classes mais vulnerabilizadas precisam
tomar consciência de suas condições de vida e das raízes dos problemas que as afetam, o que corrobora
com as ideias de Freire (1979).

56
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim nos propomos enquanto equipe psicossocial a aceitar esse desafio de discutir educação
em saúde e saúde mental nas comunidades tradicionais nesse momento pandêmico, quando as questões
opressivas e angustiantes, se já existiam, agora ficaram escancaradas.
A partir de suas narrativas construir outros modos de ver e conviver com suas próprias
potencialidades e vulnerabilidades. O “Nem te conto” pretende resgatar uma rede de suporte afetiva
entre mulheres que sempre existiu e que o patriarcado ao enxergar a sua potência não tardou a atacar na
tentativa de nos separar e silenciar, como faz em tantas outras estratégias. Precisamos ficar vigilantes.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, R. H. F. A psicologia social comunitária. In: R. H. F. Campos (Org.), Psicologia social
comunitária: da solidariedade à autonomia (pp. 9-16). Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
FEDERICI, Silvia. A História Oculta da Fofoca: mulheres, caça às bruxas e resistência ao patriarcado.
Tradução: Heci Regina Candini. Boitempo, 2019.
FREITAS, M. F. Q. (In)Coerências entre práticas psicossociais em comunidade e projetos de
transformação social: aproximações entre as psicologias sociais da libertação e comunitária. Psico, 36(1),
47-54, 2005.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
GÓIS, C. W. L. Pedra Branca: uma contribuição em psicologia comunitária.Psicologia & Sociedade,
5(8), 95-118, 1989.
MARTIN-BARÓ. Psicología de la liberación. Madrid: Editorial Trotta, 1998.
MARTIN-BARÓ. O papel do Psicólogo. Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 7-27, 1996

57
ESTUDO DE CASO DE UMA GESTÃO ESCOLAR DO CAMPO FEMININA FRENTE AOS
PAPÉIS DE GÊNERO IMPOSTOS PELO PATRIARCADO

Alandienis Souza SANTOS1

INTRODUÇÃO
O presente artigo discute sobre a função da gestão escolar do campo frente aos papeis de gênero
impostos pelo patriarcado, que é machista. Esclarecendo e dialogando sobre a temática temos um
referencial teórico majoritariamente feminista, contribuindo nos conceitos dos aspectos estudados aqui:
gestão escolar, educação do campo,patriarcado e papeis gênero. Apresentamos a função legal e oculta da
gestão de uma escola do campo do município de Tomé-Açu e desafios no cargo relacionados ao gênero,
evidenciamos as impressões, a fala e o sentimento da profissional pesquisada.
No tópico papeis de gênero determinados pela sociedade e sua influência na atuação
profissional da gestão escolar do campo, a gestora relatou sua vivencia no trabalho e as formas de
preconceitos relacionados a gênero que enfrenta. Pois compreende-se que as desigualdades entre homens
e mulheres existem e muitas foram sendo construídas paulatinamente pelos indivíduos que constituem a
em diferentes épocas e regiões.
Os papéis de gênero correspondem assim, as funções, atitudes e ações que cada ser humano
possui, seja masculino ou feminino. Atualmente já se reconhece outras identidades de gênero. E a
sociedade patriarcal, aqui entendida como aquela onde o homem é a figura dominante e principal é
quem decide sobre a vida das mulheres.
A partir dessa visão de sociedade construída historicamente desigual, onde a mulher ocupa
posição inferior em relação ao homem é de extrema relevância compreender se as gestoras escolares do
campo do município de Tomé-Açu atuam profissionalmente pautadas nos papéis de gênero
estabelecidos pela sociedade.

OBJETIVOS
a) Objetivo Geral: Conhecer os desafios de gênero encontrados por uma mulher gestora
escoar do campo.
b) Apresentar o conceito dos termos: gestão escolar, educação do campo, patriarcado e
gênero.
c) Conhecer e referenciar autoras no desenvolvimento do artigo.

METODOLOGIA
Para este artigo foi necessário uma pesquisa bibliográfica sobre a temática, e entrevista com uma
gestora de uma escola do campo do município de Tomé-Açu. Assim, o trabalho tem uma abordagem
qualitativa, sendo um estudo de caso, “onde o estudo se concentra em um caso particular, considerado

1
GEPEGEFI-UFPA. E-mail: alandienissouzasantos@gmail.com

58
representativo, de um conjunto de casos análogos, por ele significativamente representativo
(SEVERINO, 2007, p 121).
Este artigo vai além de descrever os relatos de um sujeito, e sim evidenciar sua voz, neste caso,
mulher negra de escola do campo, gestora a dezessete anos no município. Utilizou-se para isso, uma
entrevista e sobre essa prática Severino (2007), coloca que é uma “técnica de coleta de informações
sobre um determinado assunto, diretamente solicitadas aos sujeitos pesquisados”. O autor afirma
também que “trata-se portanto, de uma interação entre o pesquisador e o pesquisado, onde o
pesquisador visa apreender o que os sujeitos pensam, sabem, representam, fazem e argumentam” (p124).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Função legal e oculta da gestora de uma escola do campo do município de Tomé- Açu e seus
desafios no cargo
A gestora entrevistada já tem experiência no cargo, mas, já atuo como coordenadora pedagógica,
trabalhou como gestora em uma escola multisseriada, onde era conhecida pela nomenclatura de
“professora dirigente”, este modelo de escola constitui-se naquele de prédio com poucas salas de aula,
onde um professor leciona para mais de uma série no mesmo espaço, com apenas fundamental menor,
além de “dirigir” a escola.
Hoje ela está em uma escola chamada polo, sendo uma escola localizada no campo, considerada
grande e com fundamental maior, que recebe alunos de outras comunidades. A entrevistada tem dois
filhos e é solteira, ingressou na educação ainda muito jovem e hoje é concursada. E diz que o papel da
gestão é administrá-la, supervisioná-la, acompanhar as diversas ações ocorridas na mesma, orientar as
pessoas e tarefas. Além de buscar sempre o bom relacionamento entre todos.
Os dois modelos de escolas citados correspondem as escolas existentes nas comunidades
localizadas em Tomé-Açu. Ambas convivem por vezes harmoniosamente, outras vezes conflituosas.
Ambas lutando para existir, buscando ser educação do campo. E sobre isso, Caldart coloca:

A materialidade de origem (ou de raiz) da Educação do Campo exige que ela


seja pensada/trabalhada sempre na tríade: Campo – Política Pública –
Educação. É a relação, na maioria das vezes, tensa, entre esses termos que
constitui a novidade histórica do fenômeno que batizamos de Educação do
Campo (2008, p 70).

A pesquisada atua em uma escola localizada em um assentamento. Nesta escola há nove homens
e nove mulheres, entre professores do fundamental maior e menor, coordenação pedagógica, apoio
operacional, vigias e secretários. Porém, esta escola é exceção neste quesito, visto que muitas escolas do
município tem um número de mulheres muito maior que de homens. E explicado por Freitas da
seguinte forma:

Mesmo com as muitas transformações sociais de nosso tempo, a construção


da identidade docente reflete a ambiguidade das relações entre escola e família,
entre professora e mãe, imprimindo uma concepção assistencialista que
entende a docência como uma missão feminina, vinculando-a a um grau de
parentesco (tia) que desqualifica a ação profissionalizada, restringindo-a aos
cuidados com as necessidades básicas da criança, e tendo como atributos
amor, cuidado, sensibilidade, delicadeza (2017, p 03).

59
Vemos dessa forma que é visto e defendido a atuação de mulheres na educação. E é feito a
partir de ações, sentimentos e comportamentos atribuídos ao feminino, como se homens não pudessem
ser cuidadosos, sentir amor, ser sensíveis e delicados. Logo, propaga-se a ideia de que o sexo feminino é
perfeito pra função escolar, sendo que, elas necessitaram ser muito mais que educadoras do campo.
A entrevistada declarou que além de todas as funções citadas por ela como gestora, não se pode
esquecer que: “ser também mãe, pai, médica, confidente, psicóloga ”. Ela declarou que é muito
confundida pela comunidade com a coordenadora e algumas vezes como professora, pois dificilmente
está em sua sala. E que se sente tranquila quanto a isso, buscando resolver as questões que aparecem.
Todas as questões que aparecem na escola devem ser resolvidas por ela, uma vez que, sua figura
é vista como a solução para quaisquer dificuldades. O que nos mostra a importância dessa função em
escolas. Também as muitas outras tarefas que lhe são confiadas e depositadas. Que diversas vezes
ultrapassam as atividades legais do cargo. Exigindo dela postura diferente dos demais funcionários,
como seriedade, eficácia, liderança.

Papeis de gênero determinados pela sociedade e sua influência na atuação profissional da gestão
escolar
O cargo de gestão em uma escola do campo carrega funções administrativas mas, também de
liderança na comunidade, o cargo quando é exercido por mulheres a cobrança com os aspectos físicos
são superiores, e quanto as formas de vestir, ou seja se apresentar a gestora declarou:
“Eu acho que a direção deve estar bem-vestida, roupas decentes, na escola que
trabalho todos se vestem bem. Mas, se o professor é o espelho da sala, o
gestor é o espelho da escola. O diretor tem uma posição de respeito e precisa
estar bem-vestido, essa é a verdade” (Gestora entrevistada)
Ser mulher em cargo de gestão escolar do campo é ter a sua aparência analisada, e
principalmente suas decisões e ações. Adichie(2012) diz que a aparência da mulher é um paradigma
masculino e que muitos acreditam que quanto menos feminina for a aparência de uma mulher, mais
chances ela terá de ser ouvida e respeitada. As roupas de homens em reuniões não é uma questão,
enquanto de mulheres sim.
Ao chamar a atenção de alguém ou do grupo por uma ação negativa elas são acusadas de
estarem agindo sobre estresse provocado pela tensão pré-menstrual, a conhecida tpm e ocorre mais por
parte dos funcionários. A entrevistada acrescentou: “nunca disserampra mim ouvir, mas sei que já
falaram”.
Ao ser questionada sobre a dificuldade de atuar nesse cargo sendo mulher ela disse não haver
muita diferença entre homens e mulheres na gestão escolar, mas logo depois revelou que ser solteira faz
com que alunos, funcionários e até familiares de alunos sintam- se livres para cortejá-la. E quando era
casada essas atitudes desrespeitosas em seu ambiente de trabalho eram menos comuns.
Quando questionada sobre a possibilidade da existência de alguma função da gestão escolar do
campo em que homens resolveriam melhor ela primeiro disse que “ mulheres podem realizar todas as
tarefas do cargo, porém, alguns trabalhos braçais talvez, a única coisa que consigo pensar” , declarou ela.
Observa-se assim, que o homem é tido como forte e capaz de resolver problemas relacionados a forças e
outros.
Sobre a questão colocada acima, Freitas (2017) aborda que “é essa visão binária que, mesmo em
face das transformações sociais do tempo presente, concede aos homens certas prerrogativas inerentes à
sua condição de machos”, e isso lhes concede “vantagens e privilégios masculinos tão amplamente

60
aceitos e até incentivados” (p 03). Logo, vemos nas escolas do campo homens exercendo as funções de
zeladores, pois, irão capinar, limpar, carregar objetos pesados.
Sabemos que homens e mulheres são diferentes, coloca Adichie (2012) e que temos hormônios
em quantidades diferentes, também órgãos sexuais diferentes, assim como atributos biológicos
diferentes, devido a maior quantidade de testosterona, geralmente homens mais fortes. A autora lembra
que existem mais mulheres do que homens no mundo mas os cargos de poder e prestígio são ocupados
pelos homens.
Vimos que os homens, de uma maneira geral, são fisicamente mais fortes, diz Adichie (2012)
vivemos num mundo completamente diferente, logo a pessoa mais qualificada para liderar não é a
necessariamente a pessoa fisicamente mais forte, e sim a mais inteligente, culta, criativa, também
inovadora.
A masculinidade está relacionada na nossa sociedade com força física e até psicológica, com
rigidez e domínio sobre outros indivíduos considerados inferiores, tais como crianças, mulheres e até
homossexuais. Logo, muitos homens sentem que podem aumentar o tom de voz, interromper a ação ou
fala e até agredir essas pessoas citadas. A gestora relatou sobre isso que:
“Já fui tratada com desrespeito e ironia por aluno, que aumentou o tom de
voz, devido ao fato de estar diante de uma mulher. E já tive a fala
interrompida por diversas vezes por homens, também. Tive até ideias furtadas
no ambiente de trabalho por homens e estes ficaram com o mérito”.
Durante as reuniões com os familiares dos alunos que acontecem na escola da gestora
entrevistada o número maior de participantes são de mulheres e ela coloca que isso acontece porque
muitos homens vão trabalhar na roça e resta as mulheres cuidar da educação dos filhos. Porém, não se
pode esquecer que mulheres também trabalham na roça. E deixam sua tarefa para acompanhar a vida
escolar do filho porque é ensinado a ela desde muito cedo que essa é responsabilidade dela.
Segundo a gestora as mães vão à escola em outros momentos além de reuniões, e procuram mais
escola para resolverem problemas do Bolsa Família ou buscar declarações, enquanto os pais, só saem de
suas casas em direção a escola se for resolver assuntos ditos mais sérios, tais como brigas, furtos,
vandalismo. Denotando assim, o papel gênero e de superioridade deste indivíduo na família.
É comum que homens se sintam superiores, já que se cria as crianças a partir dos gêneros, onde
meninos não podem chorar pois é coisa de menina. É atribuído aos homens a liberdade e as mulheres a
prisão. Restando a elas “dom” da sensibilidade e para eles o domínio sobre nossas vidas, corpos e
sentimentos. A forma que criamos nossos filhos homens é nocivo, coloca Adichie(2012) ela diz também
que nossa definição de masculinidade é muito estreita.
Na escola ocorre muitas agressões físicas e verbais contra mulheres. “A justificativa do agressor
foi que a menina que apanhou xingou a mãe dele e isso não poderia acontecer” , disse a gestora. E ao
lidar com PDE, Mais Alfabetização, Mais Educação e outros programas que envolvem dinheiro e
prestação de contas a gestora já sentiu que foi vista com incapacidade.
Podemos notar a partir disso que, continuamos propagando a ideia de que mulheres são aptas a
cuidar da família enquanto o homem trabalha pelo alimento. Assim, as mães vão resolver problemas
simples na escola, enquanto os homens, fortes e dominadores, resolvem os problemas ditos mais difíceis.
Freitas apud Weltzer-Leng (2017, p 03) diz que “para ser valorizado, o homem precisa ser
viril, mostrar-se superior, forte, competitivo... senão é tratado como os fracos, como as mulheres, e
assimilados aos homossexuais.” E que a homossexualidade é considerada algo inferior por estar
relacionada a feminilidade.

61
A gestora que se denomina heterossexual acredita que homossexuais na gestão sofrem muito
mais preconceito. E ela Já foi confundida com gay, devido a amizade dela com uma mulher lésbica. “Há
no grupo que lidero um homossexual e sofre preconceito sútil, discreto, mas visível da equipe escolar, e
acontece porque muitas pessoas são caretas ainda”, declarou ela.
A questão de gênero é necessária e importante em qualquer canto do mundo, nos lembra
Adichie (2012), sonhar um mundo diferente é essencial, com homens e mulheres mais felizes, um
mundo justo, autêntico. Par isso, o início é criando nossas filhas e filhos de uma maneira diferente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados deste estudo evidenciam que a reflexão da temática é urgente e necessária não
apenas para a academia mas, para a sociedade violenta e opressora que vivemos. Que não se limita a vida
familiar privada, chega as escolas, afeta a vida profissional de gestoras. Mesmo que saibamos da
competência dessas mulheres, suas carreiras são minadas de falácias machistas.
Este artigo buscou relatar fielmente a fala de uma gestora e os casos de machismo, sexismo,
preconceitos, todos relacionadas ao seu gênero, que ela enfrenta em seu trabalho. E mesmo assim, o
executa com profissionalismo. Mesmo tendo que provar a cada instante sua capacidade. Logo, percebe-
se também, que a feminilidade é historicamente inferiorizada e sofremos essas heranças até os dias de
hoje.

REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Tradução de Denise Bottimann. Companhia
das letras. São Paulo,2012.
CALDART, Roseli Salete. Sobre Educação do Campo. Educação do Campo: campo- políticas públicas
– educação / Bernardo Mançano Fernandes ... [et al.]; organizadora, Clarice Aparecida dos Santos. --
Brasília:Incra; MDA, 2008
FREITAS, Olga Cristina Rocha de. A FEMINIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E OCUPAÇÃO DOS
ESPAÇOS DE PODER NA ESCOLA: a força do discurso sexista e a atuação da mulher na gestão
escolar. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais
Eletrônicos), Florianópolis, 2017.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. 23 ed. ver e atual São Paulo:
Cortez,2007.

62
EDUCAÇÃO POPULAR E AUTONOMIA FINANCEIRA: UMA QUESTÃO DE GÊNERO

Tabatha BENITZ1
Patrícia Carvalho ROSA2

INTRODUÇÃO
O acesso à educação e ao mercado de trabalho é um caminho que se apresenta diferentemente a
cada grupo ou indivíduo, dependendo da origem, cor e, principalmente, gênero. Muitos foram os
avanços na inserção das mulheres nesses espaços, mas ainda insuficiente e precarizados quando se trata
de mulheres com determinados marcadores sociais. A autonomia financeira para as mulheres se mostra
em muitos casos como uma necessidade estruturante para que essa consiga sair da situação de violência,
percebendo que ela pode ocupar lugar na sociedade sem precisar estar à sombra de seu marido. Com o
seu trabalho ela consegue se encontrar e se identificar como mulher, através de seus esforços consegue
lucratividade e dar sustento a si própria e aos seus filhos, sem precisar submeter-se aos agravos do seu
companheiro (TEIXEIRA, 2012).
A partir de 2000 a ocorrência de ações integradas entre o Programa de Promoção da Igualdade
de Gênero, Raça e Etnia do Ministério de Desenvolvimento Agrário em conjunto com a Secretaria de
Políticas para as Mulheres, possibilitou mudanças importantes em relação às estruturas de produção de
desigualdades de gênero, fomentando para isso a criação da política de crédito específico através do
Pronaf Mulher e o Programa Nacional de documentação da Trabalhadora Rural. No cenário nacional
em que as mulheres são responsáveis, em sua maioria, pela produção que se destina ao autoconsumo
familiar, e também vem conquistando espaço nas práticas agroecológicas e de reprodução de sementes
crioulas, estas políticas são asseguradas pela criação do Plano Nacional de Desenvolvimento Rural
Sustentável e Solidário (MDA, 2013), buscando criar mecanismos para promoção de cidadania e
igualdade entre gêneros.
Nesse horizonte, as políticas públicas voltadas às mulheres rurais visam garantir os direitos e o
acesso à documentação, à terra, ao crédito, à produção agroecológica, aos serviços de assistência técnica e
extensão rural, à comercialização e agregação de valor à produção, bem como a participação feminina na
gestão, no desenvolvimento territorial e na manutenção da memória coletiva e dos conhecimentos
tradicionais. Mas de que modos tais políticas públicas de igualdade de gênero consideram em suas
diretrizes os fatores históricos, sociais e econômicos anteriores e estruturantes das desigualdades e
condições de acesso concedido às mulheres a essas políticas e direitos?
Este trabalho apresenta o Ela Pode, minicurso promovido pelo Instituto Rede Mulher
Empreendedora com o apoio da Google, em parceria com o Instituto de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá, realizada no mês de maio de 2019, com duração de três dias e com participação de 112
mulheres residentes no município de Tefé e arredores, na região do Médio rio Solimões, no Amazonas.
Os minicursos desse programa são oferecidos gratuitamente para mulheres em situação de
vulnerabilidade socioeconômica, de acordo com as demandas apresentadas em cada região, com atenção
especial para o Norte e Nordeste (Ela Pode, 2021). O curso tem como principal objetivo oferecer
ferramentas para apoiar as mulheres no acesso ao mercado de trabalho e empreender, além de promover
um espaço para trocas e rede de contato, tornando-se, nesse sentido, uma ação político-pedagógica com

Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. E-mail: tabatha_bio@hotmail.com


1

Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.


2

63
base na educação popular que pretende proporcionar oportunidades e articulações aos processos de
emancipação individual e coletivo. O Ela Pode fortalece o empoderamento feminino por meio
pedagogias que consideram e abrigam as condições locais de atuação dessas mulheres como ponto de
partida, potencializando as suas capacidades e estimulando a circulação e apropriação de novos
conhecimentos e informações que as permitam, cada qual ao seu modo, compreender que suas
condições desiguais de acesso à formação e ao mercado de trabalho são geradas dentro da lógica social
moderna, calcada sob estruturas de dominação capitalista, que desvaloriza historicamente o trabalho da
mulher, reduzindo sua participação ao âmbito do doméstico e a produção de sua força de trabalho sob o
disfarce de um destino biológico e sexista.
Em alternativa à essa construção social da subordinação das capacidades femininas, o Ela Pode
apresenta a autonomia financeira como decorrente da confiança pessoal e empreendedora de cada
participante num processo de emancipação social e econômico, conformando-se como espaço político-
pedagógico por ser capaz de gerar condições de reflexões e desconstruções de certos paradigmas
estruturantes e produtores de desigualdades sociais e de gênero, gerando, assim, novas possibilidades de
existirem e resistirem à essas estruturas de poder. Para isso, o curso aborda temas sobre empoderamento
feminino, liderança, comunicação assertiva, redes de contato, negociação, finanças, liderança, ferramentas
digitais e marca pessoal, trazendo uma oportunidade para incentivar e provocar a reflexão sobre as
temáticas pelas participantes, bem como uma janela para buscar mais informações no sentido do
crescimento pessoal e de seus negócios.

OBJETIVO
a) Esse trabalho tem como objetivo compartilhar as experiências obtidas por meio desse
minicurso, visando evidenciar a importância da educação popular feminista nesses
espaços como meio e instrumento de fomento ao empoderamento das participantes.

METODOLOGIA
A metodologia utilizada foi a observação participante, análise das fichas de inscrição para
construção de um mapeamento do perfil socioeconômico e dos depoimentos das mulheres participantes
da minicurso buscando conhecer as suas expetativas e avaliações da experiência em relação ao minicurso.
Com base na análise das fichas de inscrição, das 112 mulheres inscritas estavam moradoras das Reserva
de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá e Amanã, Floresta Nacional de Tefé e zona rural do
município de Tefé. Entre essas estão mulheres indígenas, ribeirinhas, artesãs, agricultoras, estudantes e
comerciantes. Dessas mulheres apenas 6 possuem ensino superior e 15 delas são as únicas que
contribuem para a renda mensal em suas famílias.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Durante o curso para tratar das temáticas e alcançar as mulheres alfabetizadas e não alfabetizadas
foram realizadas atividades práticas orientadas por metodologias participativas fazendo com que todas
pudessem ter acesso ao conhecimento ali compartilhado. Destacamos aqui o exemplo da proposta de
comunicação assertiva, em que as mulheres eram provocadas a se apresentarem e, em seguida, a falar
sobre os seus produtos ou serviços, em um exercício que desafiou as participantes a refletirem como se
apresentam e de que forma falam de seu trabalho. Na esteira de uma proposta político-pedagógica ligada
à ideia de educação emancipatória, o paradigma da educação popular abordado no curso, inspirado
originalmente no trabalho de Paulo Freire nos anos 60, buscou exercer práticas dialógicas voltadas para

64
a “conscientização” das participantes, conduzindo os diálogos e conhecimentos para a incorporação de
outra categoria não menos importante, mas fundamental no processo de autonomia financeira almejada
por elas: a da “organização”. Porque não basta estar consciente, é preciso organizar-se para poder
transformar (GADOTTI, 2012).
Outra prática interessante realizada no curso foi a feira ocorrida no último dia em que as
mulheres levaram seus produtos para venda e exercitaram a comunicação assertiva e modos de
negociação entre elas e os clientes convidados à feira. Nesse sentido, ressaltando a importância de
espaços de ações afirmativas para se construir pontes de valorização e visibilidade das mulheres no
mercado de trabalho e também em suas vidas, a educação popular e emancipatória tem sua aplicação na
concepção feminista, tornando o Ela Pode em um espaço de aprendizado somente para as mulheres,
seguro e acolhedor para que elas possam se expressar e aprender, respeitando suas percepções, trajetos
pessoais e as condições, tanto materiais quanto sociais e simbólicas, de possibilidades para atuarem.
A principal forma de participação dessas 112 mulheres na geração de renda ocorre por meio de
trabalhos informais. Nesse contexto, 90 participantes afirmaram não possuir carteira assinada no
momento da realização do curso, enquanto apenas 22 alegaram estar formalmente registradas. Dentre as
atividades realizadas pelas mulheres foram citadas aquelas ligadas à agricultura familiar, comércio,
artesanato, beneficiamento de produtos naturais (para fins alimentícios e medicinais), serviços
administrativos, recepção, prestação de serviços na área de beleza, costura e alimentação. O perfil das
participantes demostra a disposição dessas mulheres em para empreenderem, buscando alternativas às
situações de vulnerabilidade socioeconômicas e de violências diversas, expresso na informação de que 82
delas alegaram já empreender ou já ter exercido alguma atividade similar. Nesse sentido, a oportunidade
do curso Ela Pode para essas mulheres surge, então, como possibilidade criativa para transformarem as
condições de atuações e modos de buscarem emancipação por meio de práticas inclusiva e considerando
as suas experiências e trajetos.
Como um espaço emancipatório, os relatos de experiência das participantes mostram, de forma
geral, o agradecimento das mulheres pelo momento vivido e oportunidades de aprendizado. Além disso,
foram registrados depoimentos em que muitas mulheres apresentaram o desafio de acesso aos espaços de
decisão nas comunidades de origem e até mesmo de capacitações, como o que vemos na fala a seguir:
“[...] achei bom é que pude trazer meu filho, já deixei de participar de muitos cursos e reuniões em
minha comunidade porque tinha que ficar em casa com meus filhos, e daí só meu marido participava”.
Essa fala nos remete ao entendimento das relações de gênero penetradas amplamente nas ciências
sociais e humanas e, inegavelmente, analisar o mundo do trabalho feminino pressupõe abordar as tramas
que relacionam seu exercício à família. As atividades que mulheres e homens realizam no interior de seus
domicílios para reproduzir a vida, sejam remuneradas ou não, guardam uma marca de desprestígio social,
e são vistas como o lugar da mulher na sociedade (Hildete Pereira de Melo, 2016). E nesse sentido,
outra participante comenta que, “esse curso mexeu com a minha cabeça, estou com vontade de sair daqui
e fazer tanta coisa por mim”, enquanto outra participante escreveu na ficha de avaliação feita após o Ela
Pode que, “estou saindo desse curso diferente de quando cheguei, agradeço às professoras por esses
dias”.
Embora o minicurso seja uma ação pontual, ele tem o propósito de gerar reflexões e impulsionar
as mulheres que participaram a buscar novos caminhos em suas vidas, como podemos observar nos
relatos apresentados. Desse modo, a questão do empoderamento tratado no curso e apresentado por
meio de uma abordagem da educação popular e da pedagogia emancipatória, emerge com o intuito de
mostrar a cada uma das participantes que elas podem fazer, realizar, estudar, aprender, empreender, entre
outras ações, que geralmente não são imaginadas como possíveis.

65
A partir da abordagem da temática de empoderamento observamos que muitas mulheres
compartilhavam suas histórias de vida, tornando-se perceptível os desafios em cada uma das falas,
havendo destaque para o modo como a grande maioria delas referiam-se aos maridos numa relação
opressora. Um conjunto de relatos contundentes nesse sentido informam que algumas mulheressomente
após o falecimento de seus esposos foram capazes de exercer autonomias em relação decisões e gestão da
renda familiar, enquanto outras contaram que apenas tiveram a oportunidade de exercer o autocuidado,
comprando maquiagem ou shampoo para uso quando afastadas da relação matrimonial; outras
participantes informaram que apenas puderem comprar uma roupa ou brinquedo especial para o filho
depois que começaram a empreender e ter suas próprias conduções de consumo, driblando a
dependência econômica dos esposos. Por outro lado, as mulheres que já empreendiam relataram o
desafio que criar e gerir suas autonomias e formas de empoderamento econômico como um obstáculo
inicial aos seus projetos emancipatórios. Sem a oportunidade de acesso a informações e ferramentas para
conduzirem suas ações, algumas participantes informaram ter perdido oportunidades de se
aperfeiçoarem, ou até mesmo de viajarem para cursos ou oportunidades de comercialização devido ao
impedimento imposto por seus maridos.
Essas falas nos permitem conectar as experiências dessas mulheres ao que Wagner Silva (2010)
pontua sobre os processos de empoderamento ocorrem em arenas conflitivas, onde necessariamente se
expressam relações de poder que precisam ser encaradas como algo plástico, flexível, logo, modificável
pela ação-reflexão-ação humana. Isso ocorre, de acordo com o autor, na medida em que os indivíduos
compreendam sua inserção histórica passada, presente e futura e sintam-se capazes e motivados a
modificar sua realidade. Essas relações de poder podem ser identificadas em três níveis, concretizados
em diferentes dimensões da vida social. O nível pessoal desencadeia convicção acerca da própria
competência e capacidade e possibilita a emancipação dos indivíduos, com aumento da autonomia e
liberdade. O nível grupal desencadeia respeito recíproco e apoio mútuo entre os membros do grupo,
perseguição de objetivos idealizados, promove estruturas decisórias participativas, o sentimento de
pertencimento, práticas solidárias e de reciprocidade. O nível estrutural desencadeia sensibilização para
recursos existentes, utilização de oportunidades de apoio externo, mediação de capacidades associativas,
motivação com ideias e visões ou com iniciativas e projetos que promovem ações conjuntas. Nesse
horizonte, o Ela pode, então, seria um espaço e experiência coletivo que promove inserção de mulheres
nos projetos sociais e políticos, fomentando a criação e conquista de espaços de participação na
perspectiva da cidadania, como sugerido por Silva (2010).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura dos dados e análise incipiente sobre o perfil de socioeconômico das mulheres e suas
percepções sobre autonomia financeira como prática de empoderamento durante o curso Ela Pode,
realizado em 2019 em Tefé, reunindo 112 mulheres do campo, urbanas, indígenas, ribeirinhas e
agricultoras familiares, nos permitem pensar algumas questões e traçar problemáticas e agendas de
pesquisa e extensão para melhor compreender, entre outros aspectos: 1) como as mulheres do campo
relacionam seus saberes e condições de atuação nos espaços-territórios que ocupam; 2) nesse âmbito,
como se dão as relações produtivas e as formas de participação nos domínios de tomadas de decisão, em
diferentes níveis e espaços sociais; 3) quais os mecanismos existentes para superar as desigualdades de
gênero nesses contextos e de que forma podemos relacionar a precariedade histórica e condições de
acesso aos direitos e à autonomia financeira como os dispositivos de dominação e de produção de
distinções de gênero mais amplos associados às lógicas capitalistas, onde o patriarcado, casamento e o
trabalho são formas de subordinação do saber e do poder de ação feminino?
Desse modo, novas estratégias precisam ser problematizadas a fim de que seja refletido e
repensado o cenário em que as mulheres estão inseridas, na tentativa de traçar uma nova realidade para

66
elas nos territórios onde estão, ou onde queiram estar. O meio rural é um espaço no qual as relações
sociais de desigualdade de gênero são latentes, daí a necessidade de construção da mecanismos que
promovam a igualdade entre homens e mulheres, sendo através de políticas públicas ou projetos de
empoderamento feminino, como o Ela Pode. Os dados evidenciam a necessidade no investimento em
políticas públicas que acolham as mulheres em suas diversidades e crie incentivo às empreendedoras.
Assim, olhando-se num recorte microrregional, lançamos luz às experiências dessas participantes no
minicurso como ponto inicial num trabalho em construção.

REFERÊNCIAS
ELA PODE, O Programa, Acesso em 7 de maio de 2021, disponível em: https://elapode.com.br/o-
programa/
GADOTTI, M. Educação Popular, Educação Social, Educação Comunitária: Conceitos e práticas
diversas, cimentadas por uma cauda comum. CONGRESSO INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA
SOCIAL, Julho de 2012. Disponível em:
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC00000000920120002000
13
MELO, H. P. Relações de Gênero, Raça e Etnia no Mercado de Trabalho Brasileiro no Século XXI.
Revista da ABET, v. 15, n. 1, Janeiro a Junho de 2016.
Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, Brasil. Ministério do
Desenvolvimento Agrário. Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), 2013.
Disponível em:
https://bibliotecadigital.seplan.planejamento.gov.br/handle/123456789/1040?show=full
TEIXEIRA; M. S. Perfil da Mulher no Mercado de Trabalho. ID online - Revista de Psicologia. Ano
6, n. 17, ISSBN 1981-1179, jul./2012.
SILVA; W. R. Empoderamento de Participantes de Pesquisa em Linguística Aplicada. In: Raído,
Dourados, MS, v. 4, n. 8, p. 119-139, jul./dez. 2010.

67
A TRADIÇÃO FEMININA NA PRODUÇÃO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA PRESENTE NA
VILA DO CAMPO DE BITEUA, NO MUNICÍPIO DE MAGALHÃES BARATA-PA

Joyce Cordeiro REBELO1

INTRODUÇÃO
O presente trabalho é parte de um artigo sobre estudo de caso em andamento o qual traz um
levantamento inédito sobre a tradição história das mulheres da região amazônica na produção da
economia solidária e autônoma na Vila de Biteua, no município de Magalhães Barata, no estado do Pará.
Nesse viés, o que nos leva a propor esta pesquisa é o ineditismo do fato desta ser o primeiro relato
acadêmico-científica sobre a mulheres que moram e trabalham nesta vila rural.
O município de Magalhães Barata fica localizado na mesorregião nordeste do estado do Pará,
microrregião do salgado, conhecido historicamente como “Cuinarana 2” por ter sediado um distrito
judiciário em 1936, quando pertencia ao município de Marapanim, no período do golpe de Estado, que
ocorreu no Governo de Getúlio Vargas,3 que garantiu a sua continuidade na Presidência do País.
Apenas em 1962, Cuinarana obteve o reconhecimento como município, recebendo o nome de
Magalhães Barata, em homenagem ao interventor militar federal no Pará, Joaquim de Magalhães
Cardoso Barata, seguindo o padrão de ocupação territorial, conforme Gonçalves (2012).
Atualmente o município é constituído pela cidade e pelas suas vilas que mantém os saberes das
comunidades tradicionais da Amazônia além de suas diversidades e belezas naturais através das matas
que entrecortam os espaços e os igarapés. Dentre essas vilas destacam-se: Santo Antônio, Prainha,
Nazaré do Fugido, Quadros, Biteua, Fazendinha e Arraial. Nessa pesquisa, vamos abordar a tradição do
feminino na economia solidária e autônoma na vila de Biteua.
É perceptível que os saberes culturais dos povos na Amazônia têm sido evidenciados nos
últimos anos, sejam eles no sentido de defesa ou de resistência de um povo que pertence a uma tradição
sociocultural, comunidade ou etnia. Paralelo a este processo histórico, ocorreu o advento do
desenvolvimento global e muitas comunidades mantiveram suas tradições direcionadas em aspectos não-
científicos, continuando a pautar suas vivências e conhecimentos que possuem com a natureza, a partir
do olhar prático do dia a dia.
Esta relação dos povos tradicionais com a floresta amazônica trouxe ensinamentos sobre a terra,
ar, água, solo, animais e frutos, atentando para o momento correto do cultivo, preparação da terra,
colhimentos dos frutos e hortaliças, utilizando-se de forma inteligente das duas estações do ano: o
inverno e o verão. Para assim, trabalhar e organizar a sua economia autônoma e também solidária em
tempos difíceis de crise e negacionismo, onde as famílias se ajudam e se organizam para que não falte o
beijú nas mesas, principalmente no que tange atualmente a participação das mulheres nessa composição.

1
Mestranda pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará –UNIFESSPA, no Programa de Pós-Graduação em Letras,
na linha Estudos Comparados, Culturais e Interdisciplinares em Literatura. E-mail: rainha.joyce@gmail.com
2
Segundo os povos tradicionais que residem na vila, significa família ou povoado.
3
O Presidente Getúlio Vargas iniciou seu governo em 1930 até 1945. Foi obrigado a renunciar e foi deposto pelos militares
que instituíram uma nova constituição, onde iniciou a Quarta República de 1946 – 1964, que finalizou em 1964 com o
Golpe Militar e iniciou uma nova fase de Ditadura Militar marcada tensões políticas e movimentos no Brasil.

68
OBJETIVOS
a) Identificar os espaços das estruturas sociais ocupados pelas mulheres da comunidade.
b) Analisar a tradição mantida e os saberes culturais feministas no cultivo e produção
solidária e autônoma extrativista da vila através das mulheres.
c) Demonstrar a importância das mulheres na organização da sociedade e na economia e
subsistência da vila.

METODOLOGIA
A metodologia pautou-se pelo aspecto exploratório, descritiva e qualitativa documental.
Utilizamos o referencial teórico acerca do tema e pesquisa de campo como forma de aprofundar o
conhecimento acompanhando a produção, descrevendo os relatos orais e registrando em fotos.
Na análise de conteúdo, utilizamos as técnicas de Laurence Bardin (1995) que é citado como
referência na organização de sequência de tarefas e tabulação de dados. Com isso, ocorreu a organização
de três fases da pesquisa.
A pesquisa de campo identificou no primeiro momento os espaços ocupados pelas mulheres na
estrutura dessa sociedade tradicional. No segundo momento, analisamos a tradição e os saberes
feministas no cultivo e produção econômica nos modos de vida e, por último, demonstrou-se a
importância das mulheres na organização da sociedade e na economia solidária e de subsistência na vila
de Biteua.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
A Vila de Biteua fica distante 4 km da cidade de Magalhães Barata. Possui uma estrada
principal de chão que ao chegar à vila se interliga com mais duas estradas que efetivam um quadrado. Ao
centro desse terreiro ocorrem as festas culturais ao lado de um grande campo de futebol, com variadas
casas de barro, madeira e de tijolos ao longo das estradas e em meio as matas verdes.
Atualmente, há quarenta (40) famílias que moram na comunidade de origem tradicional da
região, com destaque aos povos indígenas, ribeirinhos, pescadores, extrativistas do caranguejo e
produtores da farinha d´água, tucupi, goma, beiju e de tapioca.
Nos últimos anos já ocorreu uma miscigenação com a entrada de famílias negras e brancas, no
entanto é perceptível uma preocupação com essa miscigenação quando outros grupos étnicos se instalam
no território para moradia permanente e demarcando, assim territórios maiores.
É natural que ocorram relacionamentos e tratos pouco amigáveis ou afetuosos, porque no
“Acordo da Criação da Reserva Marinha” foi definido que aquelas terras pertenciam ao povoado que
nela habita há décadas e mantém uma tradição de preservação e conservação da floresta com uso
sustentável do ecossistema. Este fato nos faz lembrar que historicamente, tipo de comportamentos como
estes são resquícios da tradição indígena em proteger suas terras dos invasores.
Do total das famílias tradicionais amazônicas, há sessenta e cinco (65) Mulheres e cinquenta e
cinco (55) Homens; Crianças - meninas: dezesseis (16) e Crianças - meninos (13) treze; Moças(18)
dezoito e Rapazes, dez (10); Casadas e Casados: vinte (20): Viúvas: três (3) e Viúvos (3); Solteiras:
oito (8) e Solteiros nove (9). As mulheres vêm obtendo cada vez mais destaque, mantendo as suas

69
tradições e saberes, mas também ocupando seus espaços na produção, cultivo econômico da vila e no
percentual crescente populacional da comunidade.
No livro Amazônia, o autor Porto-Gonçalves (2018) destaca que é preciso compreender que a
Amazônia possui uma complexidade singular justamente por conta da floresta, uma vez que que temos
vários tipos de amazônias. O equilíbrio ambiental do solo, ar, água, clima e das diferentes regiões
interferem diretamente na vida dos povos que a habitam. A vila de Biteua é parte desta Amazônia na
qual até o momento podemos identificar diversas formas de subsistência.
A estrada é o espaço atual, por qual se constitui a organização de todas a famílias que vivem ali,
bem como existem outras estradas menores que são abertas de caminhos únicos que dão acesso as
passagens dos igarapés, roças, e plantios.
As mulheres atualmente ocupam todo espaço de produção autônoma no que concerne à
preparação da mandioca para produção da farinha d´água, farinha de tapioca, beijú, cuscuz, açaí, carvão,
tucupi, extração de polpas de várias frutas. Assim, os saberes e culturais milenares são passados de avós
para filhos e filhos para netos.
Quando uma família se prepara para se deslocar para casa da farinha para iniciar a produção, há
uma ajuda mútua e solidária de todas as famílias envolvidas naquele processo, desde as mulheres mais
velhas até as moças. É perceptível que as tarefas mais pesadas durante a produção são das mais velhas e
as mais leves atribuídas às mais novas. Anos atrás, víamos mais homens na condução de puxador da
farinha e na prensa do tucupi. Hoje vemos as mulheres ocupando esse espaço, que até então era somente
dos homens. Um fator muito importante.
A Vila de Biteua possui uma pequena escola de ensino fundamental, com uma pequena estrutura
e uma paróquia, do Padroeiro São Benedito, mas ainda necessita de expansão quanto aos aspectos
educacionais, saúde e Lazer. A grande maioria das atividades que envolvem os jovens partem sempre da
escola e da igreja. Nem sequer há um parque cultural de divertimento às crianças, posto de saúde ou um
centro cultural para manutenção viva das tradições de seus habitantes.
Nessa tradição mantida as mulheres exercem seus papéis no lar com uma nova remodelação,
onde não somente trabalham em casa cuidando dos filhos, da casa ou auxiliam na produção ao lado dos
homens, mas dirigem e organizam vários processos de produção na vila de Biteua, tendo em vista a
justificativa que os homens mais velhos estão trabalhando fora para outros e os mais novos buscam
novas oportunidades de trabalho na cidade grande, menos a que seja ligada ao manejo da terra.
Esse fator intrigante tem gerado alguns problemas com pessoas que compram suas terras por
valores baratos e depois os contratam para trabalhar acordando salários abaixo do que está previsto na
Constituição Federal e na Medida Provisória nº 1.021, de 30 de dezembro de 2020, e logo à frente, os
novos compradores preparam, o início de um trabalho explorador na região.
As mulheres se sentem livres participando da produção econômica solidária, auxiliando umas às
outras entre os membros das famílias, porém ainda necessita-se de ocorrer maiores avanços sobre a
participação das mulheres nas decisões mais importantes da vila, a exemplo dos Festivais do Turú, que
são apenas organizados por três ou quatro homens todos os anos e as mulheres ocupam apenas espaços
na festa relacionadas à organização da venda de comidas e bingos, mas nunca à frentes dos papéis
principais, na responsabilidade com a Caixa d`água que abastece a vila, nos cargos importantes da
paróquia e da escola, na organização dos grandes bingos e festivais e etc.
Na produção do beijú, como exemplo atual, assistimos os homens apenas apanhando os cocos
secos e para o trabalho restante as mulheres se encarregaram de quebrar o coco, raspar e preparar para
juntar à farinha que está no forno para, depois de pronto, servir junto ao café.

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Nesta produção, percebemos que grande parte do que é produzido também é dividido entre as
famílias tradicionais, sendo apenas uma pequena parte disponibilizada para venda, fora do vilarejo, a
grande parte é para o consumo da comunidade.
Outro fator singular é o baixo impacto ambiental, pois com a preparação do solo e da terra
fértil há momento determinado para a plantação e para o seu cultivo, respeitando os limites da natureza
e do meio ambiente. Esses saberes tradicionais não foram repassados a elas pela escola, mas sim,
transmitidos através da oralidade e das práticas educativas a partir da sua própria vivência e tradição
cultural, conforme na figura 1, com a moradora Gracia.
Na produção da farinha d`água e da farinha de tapioca (que eles chamam de farinha
“espocada”) percebemos nas imagens as mulheres na ampla produção em dois lados da “Casa da
Farinha” e, somente de vez em quando, um rapaz colocando mais lenha para manter o fogo aceso. Em
outro momento a moradora Vera mistura o coco na farinha, como na figura 2.
São momentos de concentração total, apesar das risadas de alegria entre eles, pois qualquer
descuido pode queimar a massa que está no forno.
No decorrer do processo da produção da farinha d`água e de tapioca é visível a força nos braços
da moradora Vera com peneira e com a finalização da produção da farinha puxando o rodo próprio
artesanal de madeira, assim como a moradora Raimunda na preparação da massa com as próprias mãos,
nas figuras 3 e 4, como observamos abaixo.

Figura 1: Plantio das mudas de Açaí

Figura 2: Momento de mistura do coco com a farinha

Fonte:Joyce Cordeiro Rebelo, 2021

Fonte: Joyce Cordeiro Rebelo, 2021 71


Figura 3: Preparando a massa

Figura 4: Peneirando a farinha

Fonte: Joyce Cordeiro Rebelo, 2021

Fonte: Joyce Cordeiro Rebelo, 2021

Esses são apenas alguns recortes que destacamos para apresentação do referido trabalho. Nossa
pesquisa seguirá com mais detalhes e elementos acerca dos saberes milenares entre os povos tradicionais
e a sua relação com a natureza na vila de Biteua, através dessas mulheres que têm uma grande
representatividade de saberes, importância e valores para a continuidade de sua subsistência, tradições e
proteção às suas famílias.

72
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa em andamento demonstrou até o momento que há uma tradição feminina na Vila de
Biteua no município de Magalhães Barata que ao poucos ocupou um maior espaço na produção e
economia da vila sendo vista com outros olhares quanto a nova onda do feminismo trazendo o debate
que a mulher pode ser o que ela quiser, uma vez que ela deixa a tradição de cuidar apenas do lar e das
crianças, demonstrando assim, para si mesma, que é capaz de produzir e manter sua subsistência sem
necessitar diretamente dos homens da vila, que até então que eram os grandes produtores
historicamente, da economia da comunidade.
Quando uma mulher de uma comunidade tradicional decide executar uma tarefa que antes não
realizava, principalmente porque demanda esforços múltiplos, inicia-se assim, um sentimento de
mudança de posição e amplas possibilidades de poder realizar e ser capaz de executar. Esse novo
movimento social quanto à produção reposiciona as mulheres sob a ótica das vertentes do feminismo.
Os saberes culturais dos povos tradicionais são mantidos, mas há uma mudança ocorrendo
sobre o reposicionamento das mulheres da comunidade nos espaços que são a grande maioria no
objetivo dessa pesquisa, conforme os dados apresentados.
Assim, as produções artesanais e produtivas de cultivo e economia solidária são mantidas vivas
no dia a dia para essas mulheres que abrem um novo espaço como produtoras diretas na vila de Biteua,
contribuindo para geração de renda, proteção, cuidado, subsistência e manutenção de suas próprias
vidas.

REFERÊNCIAS:

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. ed.70. Lisboa: LDA, 1995.


GONÇALVES, N. S. A fragmentação territorial da zona costeira do Nordeste Paraense: dinâmicas
territoriais da pesca na Reserva Extrativista Marinha de cuinarana, município de Magalhães Barata - PA.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) – Universidade do Estado do Pará,
Igarapé-Açu: [s.n.], 2019.
PORTO-GONÇALVES, Carlos. Amazônia: encruzilhada civilizatória, tensões territoriais em curso.
Rio de Janeiro: Consequência, 2018.

73
A EDUCAÇÃO POPULAR NA PERSPECTIVA DA ETNOFARMÁCIA:
FITOTERAPIA POPULAR DAS MULHERES DO GRUPO ERVA VIDA EM MARUDÁ-
MARAPANIM-PA

Andréa Lúcia Ramos de OLIVEIRA1


Wagner Luiz Ramos BARBOSA2

INTRODUÇÃO
Revisitando experiências de gênero em um grupo de pescadoras-erveiras de Marudá, neste
relato,se apresenta uma reflexão sobre a experiência em fitoterapia popular do Grupo Erva Vida. A
reflexão surge a partir de uma pesquisa de campo realizada pelo Laboratório de Etnofarmácia da UFPA,
onde se procurou demonstrar por meio de categorias sociológicas, uma abordagem epistemológica da
Etnofarmácia, exemplificando um caminho para a Ecologia de Saberes.
O referido laboratório tem ampliado a interdisciplinaridade e a integração entre a pesquisa
científica e a sabedoria associada às práticas de grupos sociais em fitoterapia popular, de forma a
contribuir com o desenvolvimento local. Os estudos realizados pelo LAEF, apontam que, em lugares
distantes dos centros urbanos, a fitoterapia, além de existir como uma prática local de cuidado à saúde,
torna-se uma opção para alívio dos sintomas e até mesmo cura de doenças menos graves, além de uma
atividade geradora de ocupação e renda.
Outra questão pela qual a etnofarmácia instigou essa reflexão, é a possibilidade de implantação
de programas de fitoterapia no Sistema Único de Saúde (SUS) em termos de sistemas locais. A referida
proposta está em conformidade com a Política Nacional de Práticas Integrativas Complementares
(PNPIC) do SUS, (2006), a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF)
(2006), e o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (2008).
A abordagem etnofarmacêutica do Grupo Erva Vida abriu espaço para um debate sobre
educação popular feminista. O trabalho que as mulheres desenvolvem e que lhes trouxe empoderamento,
pode ser um caminho que contribui para a reflexão sobre ecofeminismo, já que vem sendo realizado há
mais de 20 anos e representa uma forma de resistência da cultura ancestral e local feminina, portanto da
identidade da comunidade. Além de ser uma maneira de perpetuar a fitoterapia como saber tradicional,
por uma via de educação popular, e a valorização das mulheres diretamente relacionada com a
valorização da sabedoria delas sobre plantas medicinais, como contribuição para a preservação da
biodiversidade.

OBJETIVO
a) Registrar que a fitoterapia popular praticada pelas mulheres do grupo Erva Vida se
apresenta como um elemento constitutivo da educação popular feminista.

METODOLOGIA
A observação em campo, a revisão bibliográfica e as entrevistas semiabertas foram utilizados
como instrumentos de coleta de dados. O lócus do desenvolvimento do projeto é o Grupo Erva Vida,
associação de mulheres pescadoras-erveiras localizada no bairro do Sossego, distrito de Marudá,
Marapanim-PA. É uma organização que pratica a fitoterapia popular, hoje, como atividade central para

E-mail: andrea.humanas.ufpa@gmail.com
1

Laboratório de Etnofarmácia - Núcleo de Meio Ambiente - Universidade Federal do Pará. E-mail: barbosa@ufpa.br
2

74
o empoderamento econômico e social. O grupo iniciou suas atividades em 1995, em Marudá, distrito
do município de Marapanim.
A denominação de "pescadoras-erveiras" vem das próprias integrantes do grupo que se
consideram acima de tudo pescadoras, pois trabalharam na pesca por muitos anos, embora não executem
mais tal ofício por não possuírem a mesma força física para tal atividade. Marudá faz parte do conjunto
de ilhas que fica na parte litorânea do município de Marapanim, com exceção do mangue, a vegetação
original foi substituída por capoeiras e matas secundárias, com intermediações de áreas arbustivas, dunas,
praias e herbáceas de campo. Tal substituição se deu pelo processo de devastação por derrubada e
queimada.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
A consciência de gênero é uma questão política, e a reflexão sobre a condição da mulher na
sociedade patriarcal e capitalista é urgente e necessária e vem se insurgindo como uma demanda cada vez
premente dentre os movimentos sociais de mulheres, debatendo sobre a qualidade de vida e a liberdade
de escolha da mulher, e ainda sobre os iguais direitos que homens e mulheres devem ter, na sociedade.
O capitalismo, que é um modo insustentável de produção, se reproduz a partir da destruição da
natureza e se sustenta nas desigualdades sociais, fazendo uso irracional dos recursos naturais, gerando
miséria. Não há ideia de integração e cooperação no sistema capitalista, pois sua sobrevivência depende
da competição (Flores, 2015). As mulheres são atingidas em maior número pelas desigualdades que o
patriarcado gera, as quais historicamente possuem também as piores condições sociais, justamente pelo
fato de não possuírem muitas vezes empoderamento econômico (FOLTER, 2020). A sociedade
patriarcal tem uma profunda relação com a manutenção do sistema capitalista, o patriarcado sustenta
um modelo econômico que financia a destruição da fauna e flora (Flores, 2015). O ecofeminismo
defende que há relação direta na maneira como as mulheres e a natureza são tratadas pelo sistema
patriarcal (SHIVA, 2020). A necessidade de controlar os corpos das mulheres, e a necessidade de
dominar a natureza com o objetivo de explorar, acabam levando a desequilíbrios de todas as ordens
comprometendo até mesmo a sobrevivência da nossa própria espécie (SHIVA, 2020).
O ecofeminismo propõe a igualdade de direitos e a cooperação entre homens e mulheres
envolvidos com a preservação do meio ambiente. É uma vertente do feminismo que dialoga com a
relação que há entre a agressão que as mulheres sofrem na sociedade e a devastação do meio ambiente
(FOLTER, 2020). A Etnofarmácia demonstra como os saberes tradicionais sobre plantas medicinais
são uma possibilidade para a educação popular, que além de preservar a biodiversidade produz geração
de renda, empoderamento social e representação da luta por direitos iguais, tal como está registrado no
livro "Etnofarmácia Saberes e Gêneros".
Essa pesquisa visa demonstrar como o empoderamento político, social e econômico através da
organização e sistematização dos saberes etnofarmacêuticos de grupos locais, tem potencial para a
construção de novas realidades pautadas na educação popular feminista. A fitoterapia popular foi uma
saída para mitigar desigualdades sociais e empoderar mulheres, valorizando a utilização dos saberes
locais e a preservação ambiental, salientando o diálogo de saberes (OLIVEIRA, 2014).
A Etnofarmácia é um campo de reflexão e ação que aborda objetos, sujeitos e territórios tanto
pelas ciências sociais como pela ciência farmacêutica, estuda práticas tradicionais e populares, voltadas
para a manutenção e recuperação da saúde a partir do uso de plantas medicinais, e é, por definição e
necessidade prática, uma ciência interdisciplinar que inclui a antropologia, a filosofia, a botânica, e a
farmácia entre outras. Essa articulação interdisciplinar, na forma de um estudo etnodirigido sobre
plantas medicinais, pode originar novos produtos ou serviços, visando sua aplicação junto à comunidade.
Segundo Barbosa (2012), o método etnofarmacêutico pressupõe a interligação de
conhecimentos empíricos e científicos, utilizando a Assistência Farmacêutica, a Fitoquímica, a
Farmacognosia, a Farmacotécnica e a Tecnologia Farmacêutica ao lado do método antropológico. Essa
abordagem visa decifrar e encontrar, nas receitas dos remédios populares, nos chás e "garrafadas" dos

75
caboclos - que incluem atitudes ritualísticas e regras complementares ao tratamento que, obedecidas,
serão decisivas para a cura do doente, - a informação necessária para um entendimento mais completo,
integral da ação de muitas drogas vegetais.
Uma das principais diferenças entre etnofarmácia e etnofarmacologia é que esta última trata,
numa perspectiva experimental, a sabedoria sobre plantas medicinais, enquanto a etnofarmácia
desenvolve uma abordagem interdisciplinar e integradora acerca de objetos, sujeitos, territórios e
itinerário terapêutico, na construção de uma biotecnologia social. Dessa forma, se entende por
biotecnologia social a associação de conhecimentos tecnocientíficos à sabedoria local ou tradicional, de
maneira que a associação desses saberes possa gerar produtos e serviços úteis para a saúde da sociedade ,
na perspectiva de uma ciência emergente, conforme Santos (2015), defende.
Segundo Baumgarten (2006) “[...] uma tecnologia social sempre considera as realidades sociais
locais e esta, de forma geral, associada a formas de organização coletiva, representando soluções para a
inclusão social e melhoria de vida [...]”.
As tecnologias sociais são criadas a partir das necessidades sociais, com o objetivo de solucionar
um problema social, trata-se de técnicas materiais e metodologias testadas e aplicadas à realidade e com
impacto social verificado (BAUMGARTEN, 2006).
A etnofarmácia reaplica o conhecimento, que foi colhido dentre a população, após
sistematização e justificação teórica, segundo nos afirmou Silva (2012) em entrevista,
[...] ela é considerada uma tecnologia social por ser um campo de conhecimento que articula economia
solidária, agricultura familiar, no sentido de dar significado e apropriação dessa planta como um
produto que pode ter impacto na saúde das pessoas de forma propositiva.
O Grupo Erva Vida surgiu a partir da Associação de Mulheres da Área Pesqueira de Marudá -
AMAPEM, nessa região, a maior parte da população vive do pescado. A queda na abundância do
pescado acarretou, de alguma forma, escassez de alimentos na comunidade pesqueira e ócio na vida dos
pescadores, e, em consequência, desencadeou problemas sociais, como aumento nos casos de alcoolismo
e de violência doméstica. Inicialmente, o artesanato foi adotado como opção para a complementação da
renda do grupo, mas a fitoterapia foi prevalecendo até se tornar a principal atividade paralela da
associação.
Após um curso de quatro dias sobre saúde feminina, ministrado pela enfermeira alemã Bárbara
Gorayeb, a necessidade de continuar aqueles encontros surgiu naturalmente. As mulheres se deram conta
de que possuíam importante conhecimento sobre fitoterapia popular e que isso poderia ser uma
atividade alternativa que trouxesse mais liberdade na vida financeira e social. A sede física da associação
foi erigida com financiamento de uma entidade filantrópica, intermediado por quatro mulheres, fiéis da
Igreja Luterana. A proposta inicial do curso era para autocuidado e ação preventiva, mas as próprias
mulheres pescadoras se organizaram e levaram a associação adiante, recebendo apoio inicial para
montagem do espaço.
O Erva Vida produz xaropes, garrafadas, pomadas, tinturas, óleos, compostos, sabonetes e
merthiolate de Jucá, usando a sabedoria dessas mulheres, herdada de gerações anteriores. Até o presente
momento, o grupo divide suas atividades em duas linhas: produção de fitoterápicos e manufatura de
artesanato.
A associação de erveiras é de grande relevância para a comunidade, preserva a cultura local e faz
dela uma forma de gerar renda. Tais associações atuam na conscientização das mulheres, com um olhar
ecofeminista, desconstruindo paradigmas da soberania patriarcal, onde elas mesmas se percebem
responsáveis pela perpetuação da fitoterapia popular.
Durante a pesquisa, a fala das erveiras deixava transparecer, que o fortalecimento da fitoterapia
popular, como sistema de saúde local, trouxe autoestima, ocupação do tempo com atividades
construtivas para a vida profissional delas, mais renda e qualidade de vida, tanto material, quanto
emocional e social. Isso se refletiu diretamente no posicionamento político das mulheres, que por vezes
sofriam violência doméstica ou patrimonial, e o movimento do grupo Erva Vida foi importante também

76
nesse sentido, de acolher, resgatar o bem viver das pessoas e melhorar a qualidade de vida real dessas
mulheres, e isso se projetou na realidade de seus familiares e comunidade.
O crescente empoderamento da mulher no lar, na família e na comunidade, permite que ela
ocupe seu papel social como agente cooperadora, sendo nele reconhecida, e que seja protagonista no
desenvolvimento social da comunidade e na preservação do meio ambiente. A educação feminista,
motivadora da ação cooperativa e integrativa do ser humano no meio ambiente, tem impacto direto na
reconstrução da identidade da mulher e nas relações sociais dela com seu entorno. É uma reestruturação
de papéis e ações, a partir de um novo questionamento, se de fato, não há outra opção para gerar riqueza
que não seja o modelo capitalista neoliberal, patriarcal, já que esse sistema promove racismos e
desigualdades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação popular, de papel fundamental na estruturação de uma prática feminista
comunitária, pode se constituir numa saída para tempos em que a sociedade precisa se fortalecer como
organismo social democrático, unificando ideais referentes ao bem comum e à igualdade de direitos.
O presente documento pretende registrar o trabalho revolucionário do grupo Erva Vida, como
exemplo de transformações que vêm ocorrendo através da conscientização e da politização das mulheres
de uma comunidade rural-pesqueira. A relação entre o lugar social que a mulher ocupa e,
consequentemente, como a natureza é por ela tratada, é uma chave para a compreensão da urgente
necessidade de se experienciar e aplicar maneiras de educar, alternativas à lógica patriarcal, e neoliberal,
de exploração da mulher e do meio ambiente.
Uma das centralidades da abordagem e da reflexão na Etnofarmácia, a etnografia permite uma
leitura das práticas terapêuticas locais, que em outros contextos seriam interpretadas como senso
comum. A partir do olhar etnofarmacêutico, essas informações que fluem dentro do próprio processo de
educação popular, têm seus lugares registrados como parte importante da prática da fitoterapia popular,
também servindo como base para pesquisas interdisciplinares no âmbito acadêmico que beneficiem a
própria população.
O Diálogo de Saberes (SANTOS, 2012) propõe fazer o uso contra-hegemônico da ciência
hegemônica, entre conhecimento científico e saber popular, é uma possibilidade de a ciência participar
como parte de uma ecologia mais ampla. A sociologia das ausências pode apontar a direção que a
sociologia das emergências deve traçar através de uma tradução intercultural dos saberes que foram
suprimidos, o que conduzirá à "Ecologia de Saberes", permitindo à academia, a possibilidade do debate
epistemológico sobre a produção de diversos grupos culturais.
O caso do grupo Erva Vida, com o trabalho desenvolvido pelas erveiras, em parceria com o
Laboratório de Etnofarmácia da UFPA, é um exemplo da quebra de paradigmas da ciência moderna e
do nascimento de uma nova lógica do conhecimento. Através da Ecologia de Saberes, com a prática da
tradução intercultural, a universidade, via LaEf, valoriza os conhecimentos de outros grupos que não os
acadêmicos, que por expressarem seus saberes de forma empírica, carecem de inclusão em ações
afirmativas sistêmicas.
A articulação da sabedoria local, no caso a fitoterapia popular das erveiras de Marudá, ao
conhecimento tecno-científico da academia, em um processo de tradução intercultural, produz dados
importantes para a formulação farmacêutica, para o planejamento estratégico situacional (gerencial e
financeiro), para o cultivo agroecológico, onde a comunidade é parceira e grande beneficiada. Dessa
forma, a universidade passa a não ser mais a única produtora e detentora de conhecimento válido, pois o
diálogo dos saberes constrói a base das ações, concretizadas em projetos de pesquisa aplicada e extensão
universitária.
Como biotecnologia social, a Etnofarmácia atua na documentação ou registro, na tradução e
sistematização, para a preservação e manutenção de saberes da flora, levando em consideração a

77
importância cultural que os saberes sobre plantas medicinais possuem. A maneira efetiva para preservar a
biodiversidade nas comunidades locais e tradicionais, passa pela ampla divulgação do saber popular, pela
conscientização para o uso sustentável de recursos naturais, utilizando o próprio conhecimento dessas
comunidades, o qual provém da íntima relação delas com a natureza, e da percepção de que seres
humanos são parte do meio ambiente. Completa a efetividade relacionar a preservação do meio ambiente
com a sobrevivência do ser humano, uma espécie que compõe a biodiversidade.
Conhecer a própria cultura, apontando a importância e o valor das raízes culturais, pela sua
documentação, ou registro, para compartilhá-la com as novas gerações, para promover o bem viver da
comunidade e o incremento e manutenção da qualidade de vida de seus membros, são papéis
importantes, desempenhados pelas mulheres do grupo Erva Vida, que possuem uma relação íntima com
a natureza, e vivem prioritariamente dela.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Wagner Luiz Ramos (Org.). Etnofarmácia: Fitoterapia Popular e Ciência Farmacêutica. 2.
ed.Curitiba (PR): CRV, 2012. 130 p.
______. Etnofarmácia, Saberes e Gênero. Curitiba (PR): CRV, 2012. 118 p.
BAUMGARTEN, Maíra. Tecnologias sociais e inovação social. Porto Alegre, abril de 2006.
FOLTER, Regiane. Ecofeminismo: você sabe o que é? Politize, 2020. Disponível em:
http://www.politize.com.br/o-que-e-ecofeminismo. Acesso em: 20 abr. 2021.
OLIVEIRA. Andréa Lúcia Ramos de. Abordagem epistemológica da Etnofarmácia: Diálogo de Saberes
e Tecnologia Social em Plantas Medicinais. Trabalho de Conclusão de Curso (Ciências Sociais) -
Universidade Federal do Pará, Belém, 2014. 54 f.
POLÍTICA NACIONAL DE PLANTAS MEDICINAIS E FITOTERÁPICOS
PROGRAMA NACIONAL DE PLANTAS MEDICINAIS E FITOTERÁPICOS
POLÍTICA NACIONAL DE PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES DO SUS
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências.
In: Conhecimento Prudente para uma vida decente:‘Um discurso sobre as Ciências’. São Paulo: Cortez,
2006. 821 p.
SHIVA, Vandana. Ecofeminismo. Unisinos, 2020. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-
noticias/602416-ecofeminismo-artigo-de-vandana-shiva. Acesso em: 04 mai. 2021.

78
ECO-CONVERSAS: RELATO DE VIVÊNCIA COLETIVA DIANTE DE PERSPECTIVAS
ECOFEMINISTAS E DO BEM-VIVER

Lucideyse de S. ABREU1
Valdete Gomes SANTOS2
Fernanda Marla C. SILVA3

INTRODUÇÃO
“Que nenhuma mulher seja violada, e que
nenhuma espécie desapareça”
Shiva

O que é se sentir/ser mulher na Amazônia paraense? Um questionamento que nos impulsiona a


buscar respostas, pois entendemos que em suas múltiplas vivências e experiências, o sentir-se amazônica
paira no esquecimento e na não afirmação. Assim como a perda da identidade, esquecemos das nossas
raízes ancestrais para aderir uma cultura que nos fora imposta, negando e, muitas vezes, desconhecendo
o poder que nós, mulheres, possuímos.
Eco-conversa é uma vivência de trocas de saberes itinerante, promovido pela organização
Coletiva caboca - Atualmente, estamos com a organização em dez pessoas. E, objetiva a ser uma rede de
apoio para desenvolvimento de projetos, eventos e ações vinculadas de algum modo ao meio ambiente,
direitos das mulheres, feminismos e ecofeminismo decoloniais, coletiva independente e sem fins
lucrativos. -A primeira edição aconteceu no mês de agosto de 2018 no sítio do SINTEPP de
Capanema- Pará, com o tema: “Experiências femininas amazônicas e interações com a natureza”, naquele
momento tivemos a oportunidade de realizar trocas de experiências que foram muito relevantes para o
fortalecimento de nossa organização e ações políticas dentro dos contextos em que pertencemos. O
segundo encontro Eco-conversa propiciou mais espaços de compartilhamento, aprendizagens e reflexões,
por meio de rodas de conversas e oficinas.
A segunda vivência foi realizada no espaço SER - Sítio Ecopedagógico Raiz Forte na Vila do
Camutá, Bragança-Pará em 27 de julho de 2019. O público-alvo foram predominantemente mulheres
em suas diversidades, no entanto, qualquer pessoa independente de sexo e identificação sexual poderão e
podem sempre participar e contribuir. Ademais, a segunda edição do evento foi realizado com as
parcerias do: Centro de artes e terapias integradas- Patuá, Associação dos Pós-Graduandos e Graduandas
- UFPA Bragança, Grupo de leitura Leia Mulheres Bragança, Movimento de Mulheres do Nordeste
Paraense (MMNEPA), Grupo de Mulheres de Belém (GMB) e Grupo de Artesãs da vila que é,
Instituto Nova Amazônia (Inã) e. Studio Duo +, promovendo e criando uma rede de apoio.

1
(Coletiva caboca). E-mail: deyse4e@hotmail.com
2
(Coletiva Caboca). E-mail: detegomesdossantos@hotmail.com
3
(Coletiva caboca). E-mail: marla.silvaufpa@gmail.com

79
Figura 1 - Roda de abertura da I Eco-conversa promovido pela organização Coletiva Caboca em
Capenema-2018

Fonte: Arquivo pessoal da Coletiva, 2021

Portanto, este evento parte da iniciativa de um coletivo de mulheres, artistas, professoras,


líderes comunitárias, dentre outras que nos organizamos sem fins financeiros em coletiva, as cabocas,
mulheres buscando fomentar a discussão em torno das práticas das vivências sociais que nos envolvem
em nossa região.

OBJETIVOS
a) Com o intuito de partilhar teorias e práticas das diversas relações de ser mulher
amazônida no nordeste paraense atrelado aos conceitos e vivências do ecofeminismo e o
bem-viver.

METODOLOGIA
A Eco-conversa promove vivências por meio de rodas de conversas, canto, dança, capoeira e
oficinas, fortalecendo os conhecimentos regionais, ancestrais e, principalmente, os vínculos da relação da
mulher, os ecofeminismos e o bem-viver. Possibilitando a reflexão sobre as práticas concernentes à
temática do evento, e também dos diálogos com feminismos interseccionais e decolonial. Pois,
“Transformar el modelo androcéntrico de desarrollo, conquista y explotación destructivos implica tanto
asumir una mirada empática sobre la Naturaleza como un análisis crítico de las relaciones de poder” diz
Puelo (2002, p. 22), e acrescentar um olhar para o local, e nossas necessidades. Assim como também,
baseando-se na teoria ecofeminista de Guebara (2017, p. 2) conceitua em uma vontade de ser, em suas
palavras: “um alerta à poesia da vida” e também, “a necessidade vital de sua manutenção.”.

80
RESULTADOS E DISCUSSÕES
O projeto promovido pela coletiva caboca manteve o cronograma previsto, nos dois encontros
realizados anualmente, distribuídos em vários eixos temáticos: 1) ecofeminismos; 2) bem-viver 3)
diversidade e 4) decolonialidade. Com aspecto político, social e cultural, contrapondo ao individualismo
de hierarquização dos saberes.
As rodas de conversas para a troca de experiência entre mulheres, com o intuito de ampliar as
discussões acerca da desvinculação da dominação masculina, a libertação da natureza, aceitação e
compreensão do processo de que a mulher é cíclica, trazendo também para as rodas a aproximação da
dança como um processo de conexão com a espiritualidade, resgate da autoestima feminina e da
liderança feminina na construção da coletividade. Assim como, as oficinas: Corpo e Movimento
Capoeira Angola; Plantar para curar- permacultura em bem-viver. Como alternativas para pensar as
experiências e a vida em uma cosmologia holística.
Todos os objetivos propostos foram atingidos: ao promover o espaço para a troca de
experiências foi ampliada as teorias de forma prática permitindo a disseminação do conhecimento para
que a semente plantada nos encontros floresce ao longo da jornada de todas as mulheres, todos e todes
presentes.
Abaixo, apresenta-se registros das práticas vivenciadas no encontro.

Figura 2 - Roda de abertura da II Eco-conversa promovido pela organização Coletiva Caboca em


Bragança- Cametá 2019

Fonte: Arquivo pessoal da Coletiva, 2021

81
Figura 3 - II Eco-conversa: Roda Meio Ambiente no contexto da Mulher Amazônida (Inã)

Fonte: Arquivo pessoal da Coletiva, 2021

Figura 4 - II Eco-conversa: Oficina de Corpo em Movimento- Capoeira Angola

Fonte: Arquivo pessoal da Coletiva, 2021

82
Figura 5 - II Eco-conversa: Roda Meio Ambiente no contexto da Mulher Amazônida
(Inã- 2019)

Fonte: Arquivo pessoal da Coletiva, 2021

Figura 6 - Registro de participantes e organização na II Eco-conversa: Experiências Femininas na


Amazônia realizado em 2019

Fonte: Arquivo pessoal da Coletiva, 2021

83
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alguns relatos durante as Rodasde conversas e oficinas, nos permitiu entender que um parcela
das mulheres presentes nas vivências ainda não se davam conta da opressão vivenciada pelo patriarcado,
bem como o não conhecimento acerca do ecofeminismo, mesmo que já na prática já estivessem
trabalhando e promovendo ações que são semelhantes. Portanto, a Eco-conversa é um importante
encontro coletivo para nossas transformações e das transformações dos tipos de organização e do nosso
meio. Assim, comprova-se a necessidade de realização permanente dos encontros, pois os
ecofeminismos e o bem-viver vão muito além de uma teoria, o que disseminamos é uma prática social
para auxiliar na qualidade de vidas de todas as mulheres que podemos alcançar com o projeto.
Pautando-se nessas esferas, a vivência não foi realizada nos anos de 2020 e 2021 devido a pandemia do
novo coronavírus, pois, respeitamos a vida, e a crença no isolamento social e na ciência. Logo, ficamos
na esperança de medidas eficientes, para que logo, com segurança, possamos retomar nossas conversas
ecológicas.

REFERÊNCIAS
GUEBARA, Ivone. Ecofeminismo: desafios para repensar a teologia. São Paulo: Edições Terceira Via,
2017
PULEO, Alícia H. Feminismo y Ecología. El Ecologista. Nº 31. Espanha, 2002.

84
A FOTOGRA(FIA) COMO REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL DAS
MULHERES AGRICULTORAS DA FLORESTA NACIONAL DE TEFÉ (FLONA) NA
CONSTRUÇÃO DO LUGAR

Marcela da Silva BARBOSA1


Rita de Cassia MACHADO 2

INTRODUÇÃO
Com o passar dos tempos em meio a tantos desafios, conflitos e desigualdades no meio
ambiente e social, as mulheres foram construindo suas identidades e independências em uma sociedade
humana desigual, com a finalidade de terem um reconhecimento positivo, justo e igualitário. Por meio
de suas lutas e batalhas, trazem suas contribuições significativas para a sociedade, possuindo um
importante e enriquecedor papel junto às suas forças com o empoderamento feminino na construção do
lugar. Nesse sentindo, essa construção se dar por vários aspectos no que envolve a mulher no seu meio
comunitário, como, cuidar dos filhos, da roça, da casa e, em muitas vezes, da pesca para a subsistência da
família, como afirma Machado (2020, p. 31) “[...] a elas cabem as responsabilidades com o bem-estar
de sua família e com a alimentação de qualidade, estabelecendo os cuidados sobre os seus cultivos e a sua
saúde, usando os conhecimentos da agroecologia para melhorar a sua qualidade de vida, sem afetar a si
próprio e a natureza.
Por este motivo, é de fundamental e notória importância a compreensão da Identidade Cultural
das mulheres agricultoras da Floresta Nacional (FLONA) de Tefé na construção do lugar. Ponty
(1945, p. 13) destaca que “[...] o mundo não é aquilo que penso, mas aquilo que eu vivo”. As vivências
através da percepção são formas de compreender as situações passadas e presentes, e talvez
possibilitando a organização para tais relações vividas futuras, nos fazendo entender as relações destas
nos aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais e naturais. É importante relacionar a teoria com a
prática, experienciar, vivenciar o lugar, aceitar os conhecimentos vividos dos sujeitos da pesquisa, abrir
caminhos para as novas ideias com o auxílio da fotografia.
As relações das mulheres em seus lugares vividos fazem entender com que surja a construção do
lugar, por meio destas relações, têm-se as questões culturais de cada grupo, relações de afetividade pelos
indivíduos em seus diferentes ambientes sociais, tanto coletivas como individuais, impulsionando a
construção do lugar, onde essas mulheres são protagonistas no projeto de agricultura orgânica na
comunidade. A interação do sujeito com o meio em que vive é essencial para que ocorra a representação
do lugar, dando a percepção um sentido real e humano nas particularidades e singularidades das
vivências das mulheres agricultoras da FLONA. Complementando esta ideia Reigota (1995, p. 14)
afirma que na construção do conhecimento “[...] cada pessoa o delimita em função de suas
representações, conhecimento específico e experiências cotidianas nesse mesmo tempo e espaço”, ou seja,
cada indivíduo traz uma bagagem significativa de conhecimentos advindos de suas vivências e
experiências.

1
PPGED/UEA / Universidade do Estado do Amazonas – UEA. E-mail: miguel261016@gmail.com
2
PPGED/UEA / Universidade do Estado do Amazonas – UEA. E-mail: rmachado@uea.edu.br

85
Podemos dizer que a multiplicidade de conhecimentos e trocas é algo muito forte entre as
mulheres da FLONA de Tefé, pois a cada encontro na comunidade, ou até mesmo no plantio dos
produtos orgânicos, é notável a sabedoria que cada uma traz consigo.

OBJETIVOS
Objetivo Geral:
a) Compreender a fotografia como representação da identidade cultural das mulheres
agricultoras da FLONA de Tefé na construção do lugar.

Objetivos Específicos:
b) Descrever o modo de vida das mulheres agricultoras da Floresta Nacional de Tefé nos
aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais e naturais;
c) Demonstrar através dos registros fotográficos o cotidiano das agricultoras da FLONA,
na organização das feiras orgânicas e organização comunitária;
d) Discutir o papel das mulheres agricultoras da FLONA de Tefé na construção e
modificação do lugar.

METODOLOGIA
A metodologia empregada neste projeto de pesquisa tem sua natureza básica e aplicada, e a
abordagem do problema possui cunho qualitativo e quantitativo. Seus objetivos serão realizados de
maneira descritiva, exploratória e explicativa.
Os procedimentos técnicos aplicados para a realização desta pesquisa utilizar-se-ão da pesquisa
bibliográfica, sendo necessário um levantamento sobre a Geografia Cultural, a Fenomenologia como um
caminho importante para o compreender das relações humanas e o modo de vida das mulheres
agricultoras da Floresta Nacional de Tefé nos aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais e
naturais. A pesquisa também realizará o método participante.
Fazendo parte da prática de campo, propõe-se passar uma semana na FLONA fotografando
diferentes mulheres agricultoras (dia e noite), e participando do dia a dia dessas mulheres para
compreender de forma mais real e humana suas identidades culturais. De acordo com o trabalho,
entende-se que como pesquisador, é fundamental nos doarmos de corpo e alma à pesquisa, caso
queiramos realmente compreender as realidades, deixar fluir de forma natural e prazerosa no local da
pesquisa, tentar se colocar no lugar do sujeito ao menos, para chegar o mais próximo possível das
relações praticadas num determinado lugar.
Os registros fotográficos serão de fundamental importância para a compreensão da identidade
cultural das mulheres agricultoras da FLONA, registrados não apenas pelo pesquisador, mas
principalmente pelas mulheres residentes das comunidades mostrando os seus cotidianos.
No final da pesquisa, pretende-se montar um portfólio com as principais fotografias da
pesquisa e apresentar para a comunidade.

RESULTADOS

86
O projeto encontra-se em fase inicial, com o acervo de aproximadamente duas mil fotos das
mulheres no planejamento das feiras e no comércio dos produtos orgânicos na cidade de Tefé-AM, essas
imagens foram capturadas no processo de organização na comunidade, onde se destacam a união e
discursão em torno do momento mútuo entre as mesmas, destaca-se também a importância da
comunidade como um todo (Cidade de Tefé, Universidade) no apoio com divulgações da feira,
transporte e na compra dos produtos na feira das mulheres agricultoras da FLONA de Tefé. Conforme
Figuras a seguir destacam-se um dos principais momentos da feirinha de produtos orgânicos na cidade
Figura 1 - Mulheres apresentando a horta a professora Rita, coordenadora do projeto da feirinha
orgânica da FLONA de Tefé

Fonte: Marcela da Silva Barbosa, 2021

Figura 2- Um dos momentos mais importantes da feira de produtos orgânicos é a troca de sementes

Fonte: Marcela da Silva Barbosa, 2021

87
de Tefé.

Figura 3 - Troca de semente entre uma agricultora da Flona, e uma cultivadora de verduras da
cidade de Tefé-AM

Fonte: Marcela da Silva Barbosa, 2021.

Figura 4 - Troca de conhecimentos entre as mulheres da FLONA de Tefé e os Universitários da


Universidade do Amazonas

Fonte: Marcela da Silva Barbosa, 2021.


88
CONCLUSÕES
O presente trabalho, como já falado anteriormente está em fase inicial, porém nos mostra desde
o início através da fotografia a potencialidade na união dessas mulheres agricultoras, pescadoras, donas
de casa, não param de se inovar e aumentar o poder de decisão dentro da sua comunidade, no momento
da captura das imagens, o fotógrafo, fica ali paralisado, esperando pelo “melhor” click, porém a essência
capturada nessas imagens vai mais além que qualquer técnica fotográfica, está no ser mulher da
comunidade, está no protagonismo, estar no olhar da menina vendo pela primeira vez as mães tomando
decisão dentro da comunidade, sendo protagonistas do seu lugar e transformando o que sempre foi igual
e desigual.

REFERÊNCIAS
CASTRO, C. M. Visões das paisagens e da percepção ambiental:contribuições para e educação
ambiental. Rio de Janeiro: CECIERJ, 2008. CLAVAL, Paul. Terra dos homens: a Geografia. Tradução:
Domitila Madureira. São Paulo: Contexto, 2010.
CRISTOFOLETTI, A. Perspectiva da Geografia. Tradução de Neide Piran e Antônio Cristofoletti, In.
(org.). DIFEL, SP. 1985.
DARDEL, E. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. Tradução: Werther Holzer. São
Paulo: Perspectiva, 2001.
FREIRE, P. Educação na cidade. 5. Ed. São Paulo: Cortez, 2001.
MACHADO, R. C. F. Mulheres e Agroecologia:o ecofeminismo de Emma Siliprandi, Ana Primavesi,
Shiva Vandana. In: CASTRO, A. M.; MACHADO, R. C. F. (org.). Estudos Feministas, Mulheres e
Educação Popular. 1. Ed. São Paulo: Editora Liber Ars, 2020. p. 27-39.
PERUCCHI, J.; ADRIÃO, K. G. Mulheres em movimento: histórias do feminismo pela fotografia.
Cadernos pagu (29), julho-dezembro de 2007: 469-473. (Artigo)
PONTY, M. M. (1994). Fenomenologia da percepção. (Tradução: Carlos Alberto de Moura) - 3ª ed.
– São Paulo: Martins Fontes (Texto original publicado em 1945).
REIGOTA, M. Meio Ambiente e Representação Social. São Paulo: Cortez 1995.
TUAN, Y. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina: Eduel,
2012.

89
Círculos de Saberes e afetos 02
EDUCAÇÃO POPULAR, FEMINISMO NEGRO,
COLONIALISMO, INTERSECCIONALIDADE
A MEMÓRIA NA AMAZÔNIA SOB O OLHAR MIGUEL DOS SANTOS PRAZERES, DE
BENEDICTO MONTEIRO

Cristina Dias NOGUEIRA1

INTRODUÇÃO
Esta pesquisa foi desenvolvida ao longo de dois anos e meio no Programa de Mestrado em
educação da Universidade do Estado do Pará e comunga a junção entre a fundamentação teórica da
disciplina Cultura, saberes e imaginário na educação amazônica e o encantamento pela literatura
brasileira de expressão amazônica, mais especificamente no que tange à obra do romancista paraense
Benedicto Monteiro. Tomando como principais fontes a chamada tetralogia monteriana, composta
pelos romances Verdevagomundo, O Minossauro, A terceira Margem, Aquele um e O Homem rio, que
têm como elo o personagem Miguel dos Santos Prazeres, que é a caracterização literária do caboco
amazônida.
Este estudo permitiu analisar, a partir dos indícios fornecidos pelas obras, os processos
educativos não formais, no contexto da Amazônia. Estes processos são silenciados e postos à margem
das discussões sobre educação, doravante a sua relevância histórica para o contexto desta região. E falar
sobre eles na academia passa a ter uma característica de inovação, do ponto de vista da cientificidade,
uma vez que a educação formal carrega o status de o único processo sobre o qual se estrutura a formação
dos diversos homens e mulheres para a vida.
Entretanto, na Amazônia, a educação desenvolvida no dia a dia da comunidade permite, por
exemplo, a sobrevivência das tradições; a formação do amazônida para a produtividade, práticas
medicinais e curativas e o conhecimento acerca da natureza e de todos os aspectos relacionados à vida do
homem naquela sociedade.
Estes estudos destacaram a relevância da linguagem oral, para a região. Ela é o suporte da
memória e o meio de sobrevivência das tradições. O que conta muito sobre os processos identitários,
narrados através das aventuras do personagem Miguel dos Santos Prazeres.
No que tange à metodologia da pesquisa, foi feita pesquisa documental, com um mergulho
sobre outros trabalhos, mídias, entrevistas, que nos deram indícios sobre o próprio escritor e o contexto
histórico de elaboração. E bibliográfica, conhecendo outros recortes de estudos científicos acerca da
obra do autor. Se configurando em uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório, seguindo uma
abordagem etnometodológica, com enfoque materialista histórico-dialético, por apresentar crítica social,
econômica e cultural.

OBJETIVOS
O Objetivo geral deste estudo é:
a) Estudar a cultura, a memória e a educaçãodo caboco amazônida, no personagem Miguel
dos Santos Prazeres, de Benedicto Monteiro.

Secretaria de Educação do Estado do Pará. E-mail: cristina.nogueira@escola.seduc.pa.gov.br


1

92
Mais especificamente, o estudo buscou:
a. Descobrir que elementos da cultura amazônida são presentes na tetralogia monteriana;
b) Construir uma visão mais complexa acerca da memória do amazônida nas aventuras e
nos conflitos vividos pelo herói;
c) Entender os processos educativos não formais na Amazônia, tendo em vista a cultura e
a memória, nestas histórias, visando a superação da estereotipização do caboco
amazônida.

METODOLOGIA
Acerca da metodologia utilizada para o desenvolvimento da pesquisa, foi desenvolvida através
de pesquisa qualitativa de natureza documental e bibliográfica como tipos de pesquisas predominantes.
A pesquisa qualitativa se encontra em um status inovador, do ponto de vista das ciências sociais. Pois
estas foram tradicionalmente estruturadas sob uma óptica positivista e quantitativa.
Além disso, trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório, para atender à demanda
de complexidade deste objeto de estudo, tendo em vista a abordagem, a análise histórica da literatura, na
perspectiva de Antônio Cândido (1976) pois entre as obras estudadas, o contexto histórico e geográfico
é importantíssimo para o entendimento da caracterização do personagem estudado e para um olhar sob
outro ângulo do estereótipo do caboco amazônida, criado pela dominação da cultura capitalista.
No entanto, a situação específica ocupada por esta pesquisa no campo educacional é, inclusive,
caracterizada pela pluralidade de enfoques, que passa a ser realidade das ciências sociais, a partir da
consideração da importância destes aspectos que não têm natureza quantificável. E estando fora da área
da educação formal, considera educação os processos outros, além dos formais, valorizando, neste
contexto, a memória e a cultura dos povos da Amazônia e suas características sociais e históricas.
Além disso, é de suma importância mostrar óptica da etnometodologia, de Watson e Gastaldo,
isto porque um olhar sobre os processos educativos não formais, construídos no leito das comunidades,
de pai para filho, em que se pese a importância no modo de vida e da organização econômica e estrutura
de vida produtiva do caboco amazônida são um aspecto central das análises construídas nesta
investigação.
Ao longo deste processo, foram apontados pelas obras aspectos envolvendo o ideário, uma
cultura movente, com tantas bases originárias (o multiculturalismo na composição histórica e a
consequente formação da diversidade cultural da Amazônia) que nos desembocam de mitos e lendas, tão
importantes para a educação e para a formação moral dos homens desta região.
Dentre as fontes trabalhadas as cindo obras literárias (Verdevagomundo, O Minossauro, A
terceira Margem, Aquele um e O Homem rio); toda documentação, dos arquivos pessoais de Benedito
Monteiro, aos quais tivemos acesso, a partir do contato com a curadora sua obra, a filha do escritor e
poetiza Wanda Monteiro, assim como outros trabalhos que já foram desenvolvidos dentro da temática,
com outras abordagens e outros recortes, por pesquisadores brasileiros e de outros países.
Além de uma economia estruturada sob a floresta, em formas bastante específicas de
organização comunitária, que evoluem ao longo da história e se situam no Mundo globalizado, tais
como setores importantes da economia local: o comércio de madeiras, a exploração de minérios, a pesca,
a pecuária, a agricultura, a exploração das espécies animais e vegetais, a produção de farinha e a história
exploração do látex da seringueira, que é tão importante para a reflexão acerca da contextualização da

93
Amazônia ao processo de colonização. O turismo é outro setor econômico que gira em torno da floresta
e que vem se destacando, paulatinamente.
Tudo isso, são aspectos que, na pesquisa, com a presente estrutura científica proposta, como o
objeto de estudo apresentado, o problema sobre o qual se debruça e a metodologia sugerida, acabam
emergindo. Assim, conjectura-se que, tendo em vista toda a experiência vivida pelo escritor Benedicto
Monteiro, nas suas vivências em comunidade com os diversos caboclos amazônidas, bem como de seus
estudos desenvolvidos com fins científicos, como foi apresentado pelo professor Doutor José Guilherme
de Oliveira Castro, ele construiu material vasto sobre a memória, cultura e os processos educativos não
formais, desenvolvidos pelos cabocos amazônidas, tão relevantes para os processos identitários da região.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir da análise da tetralogia monteriana, com a fundamentação teórica correspondente, a
pesquisa levou a uma visão mais complexa acerca da vida do caboco amazônida, que se materializa
diversidade étnica e cultural, que configuram os aspectos históricos, linguísticos, econômicos. Tais
nuances são personificadas no caboco Miguel, que estabelece um elo narrativo entre as obras em
questão.
Através das aventuras e lembranças do personagem, foram extraídos conhecimentos acerca da
formação histórica dos povos da Amazônia; das características linguísticas da região; dos saberes que
configuram os processos educativos não formais, passados de pai para filho, no leito das comunidades;
das práticas econômicas e medicinais e do forte signo identitário que se configura o rio o caboco
amazônida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em primeiro lugar, a relevância histórica da diversidade étnica produz grande riqueza cultural.
Percebe-se que, na origem de ocupação desta região, ocorre um grande processo de miscigenação, através
de várias origens étnicas, o que é percebido nos detalhes revelados ao longo da tetralogia, como os
saberes dos homens da floresta. Essa percepção se dá, principalmente, através da história de vida do
personagem, tendo ele filhos com mulheres de sete origens étnicas diferentes, de modo a tornar toda a
diversidade de forma mais evidente: seu filho de origem caboca, para mostrar a existência da própria
natureza multiétnica da região; os de origem japonesa, turca e portuguesa mostra a relevância histórica
da imigração destas etnias para a região norte; as etnias negra e os nordestinos (abarcando aí formação
étnica historicamente constituída especificamente) se deu em virtude da própria história de ocupação do
Brasil.
A linguagem oral sobre a qual se estruturam os processos educativos não formais, nas
comunidades, os quais são responsáveis pela sobrevivência das tradições e, por consequência, todos os
aspectos relacionados à vida e à produtividade dos homens da região.
Os saberes, tais como aqueles relacionados à origem dos componentes mitológicos, que tomam
forma de elementos da natureza e podem estar relacionados às origens indígenas ou africanas, com
influências das outras etnias e assumem destaque nas narrativas na região e assumem configurações
identitárias que sobrevivem através da oralidade.
O estudo mostrou a forma como o homem da floresta vê seus personagens mitológicos, que são
tão presentes no ideário popular. O compartilhamento dessas crenças, através da linguagem oral
evidencia posturas e modos de pensar e atuar no mundo, ou seja, são também fatores identitários. Logo,

94
a linguagem oral é muito importante para estes processos de educação não formais que estruturam uma
cultura que ocupa espaços marginalizados no contexto amazônico.
Além disso, o trabalho levou ao entendimento acerca da importância do rio para este homem,
que atua no Mundo através deste recurso da natureza. Assim, o personagem Miguel apresenta um
homem (o amazônida) que vive num contexto histórico marcado pelo período da ditadura militar e pela
dominação do ambiente rural por parte da cidade, que invade a floresta e seus homens.
O dilema vivido Miguel mostra a realidade do amazônida, atraído pela cidade, pelo discurso de
progresso e oportunidades, que foi popularizado no interior através do rádio – principal meio de
comunicação aí utilizado – a partir do período da ditadura militar, no Brasil. No entanto, a formação do
caboco, que se dá em meio social, na comunidade, de pai para filho, caracteriza os processos educativos
não formais, que mantém práticas, tais como a agricultura, a pesca, a produção de farinha, a medicina
popular, etc.
Em contrapartida, em ambiente urbano, a maioria das práticas laborais giram em torno de
atividades que necessitam de instrução formal. Daí o surgimento de atividades que passam a absorver os
cabocos que migram para a cidade. Na obra síntese, O homem rio, Benedicto fala da atividade do
operador de carga avulso, o estivador, categoria que se destaca por trabalhar sem vínculo empregatício,
cujos direitos trabalhistas são garantidos através de organização de cooperativa; assim como o taxista que
trabalha como autônomo.
No entanto, poderíamos citar as diversas atividades informais, tão importantes no norte do
Brasil. Sem a instrução formal, que os habilitem a exercer atividades importantes em meio urbano, o
amazônida que migra para a cidade, é absorvido por essas atividades para a garantia do seu sustento.
Importante destacar que, diante das diferentes realidades que opunham a floresta e a cidade o
caboco Miguel perde o norte de sua vida e jamais consegue adaptar-se e encontrar a felicidade. Tanto
que, é sobre as águas que ele tenta buscar, novamente um lar ou alguma coisa que se aproxime. Afinal,
são tantos saberes que giram em torno da mata, das águas, dos animais que, em ambiente urbano, se
tornam sem um sentido.
O rio. Este elemento da natureza sobre o qual o amazônida aprende tantas coisas, como nadar,
pescar, navegar, perceber as estações é, para o personagem, que apresenta ao leitor o olhar do escritor, o
lugar mais importante da vida e das aprendizagens diversas, para os povos da floresta. Tanto que, ao
final de sua saga o caboco Miguel encontra, nele, seu destino: “Sigo viagem. Mas vale voltar para as
águas dos rios. Encontrar com as linhas d’água. Vencer distâncias. Como já lhe disse, são os rios que dão
o destino de minha vida” (MONTEIRO, O homem rio, 2008, p. 199).
Por fim, olhar para a Amazônia através dos olhos de Miguel é encontrar com as contradições e
conflitos que giram em torno da oposição entre o interior e cidade, tais como as diferenças demográficas
– se, por um lado, o interior apresenta uma esparsa concentração de pessoas e, por outro, na cidade, há
maior concentração, o que requer um ritmo mais acelerado. Existem, também, diferenças de organização
produtiva e de subsistência, ou seja, enquanto no interior, as atividades produtivas estavam relacionadas
às águas e à terra, na cidade, a produtividade dos homens está voltada para os a indústria, comércio e
serviços, o que requer habilidades construídas através de processos de educação formais.
No contexto histórico da ditadura militar, no Brasil, até anos 2000. Este é o período de
construção das obras analisadas, daí a apresentação de um texto literário atual, que coloca a realidade
local diante do contexto mundial. Para tanto, o rádio, surge como o veículo de informação para o
personagem, dado seu impacto de relevância no que tange ao acesso às informações, em lugares mais
remotos, até os dias atuais, dentro das narrativas.

95
Mas o principal resultado obtido com as pesquisas é de que a relevância geográfica dos
processos educativos não formais para o amazônida, em relação à subsistência e ao espaço do homem no
mundo reside, justamente, na relação de marginalização da floresta (ou campo?) em relação à cidade. O
movimento histórico da globalização age sobre os povos da floresta como um processo de dominação da
cultura urbana.
Assim, apesar de a instrução formal ter se configurado como a única realidade com relevância
socialmente aceita, os processos outros têm sua relevância relacionada a diversas práticas humanas na
Amazônia: artísticas, medicinais, religiosas, etc. Tendo grande impacto sobre a sobrevivência, à
identidade, ao pertencimento, à produtividade, à atuação deste homem no Mundo, sendo fruto da
memória e das práticas orais. O que foi cartografado por Benedicto, em um momento em que Miguel,
ao final de sua saga, consegue mapear os entendimentos acerca da linguagem de cada localidade por
onde passou ao longo de suas viagens.
O principal fator que comprova que a instrução formal não se sustenta como único processo
educativo, é a realidade atual, em que o Mundo vive uma pandemia (Covid 19), causando prejuízos para
todas as áreas de atuação humana e impossibilitando o retorno seguro das atividades em sala de aula,
dando maior destaque para a educação em ambientes não escolares.
O olhar sobre esta relevância demanda reconhecimento e valorização por parte do próprio
Estado, no sentido de reconhecer as práticas não formais de ensino, a linguagem praticada pelas
comunidades rurais da Amazônia, suas práticas orais, as práticas medicinais, a mitologia, como
patrimônio imaterial, cuja resistência pode receber o suporte de políticas públicas, como sugere, para o
contexto da América Latina (CANCLINI, 2008).

REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5ª ed. revista. São
Paulo, Editora Nacional, 1976.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2008. Introdução à edição de
2001. As culturas hibridas em tempos de globalização.
_____ . CONSUMIDORES E CIDADÃOS. Conflitos multiculturais da globalização. Tradução de
Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
MONTEIRO, Benedicto. O Homem rio: A saga de Miguel dos Santos Prazeres - 1ª Ed. Belém: Editora
Amazônia, 2008.
MONTEIRO, Benedicto. O minossauro - 4ª Ed. Belém: Editora Amazônia, 2010.
WATSON, Rod, GASTALDO, Édson. Etnometodologia e Análise da Conversa. Petrópolis, RJ:
Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC – Rio, 2015.

96
EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO EM ANGELA DAVIS: A EDUCAÇÃO COMO
FERRAMENTA EMANCIPATÓRIA PARA AS MULHERES NEGRAS

Kananda Vasconcelos NASCIMENTO1


David Machado de OLIVEIRA2

INTRODUÇÃO
Por conta de sua insistente luta no movimento negro e anticapitalista, o pensamento de Ângela
Davis permanece como referencial teórico para discussão da situação da mulher negra na sociedade, esse
pensamento, notado principalmente em Mulheres, Raça e Classe (2016), sua obra mais popular no
Brasil. O presente trabalho investiga uma relação entre os conceitos de educação e emancipação da
mulher negra a partir do pensamento da filósofa, cabe, pois, assinalar a importância da educação a partir
de uma análise de referencial histórico da luta negra, para que de fato se alcance a emancipação, e a
importância do papel das mulheres negras nessa luta.
A partir da análise histórica da escravidão nos Estados Unidos, a autora busca investigar as
experiências e lutas das mulheres negras diante de uma desumanização colossal, e aponta as dificuldades
enfrentadas ao decorrer da escravidão e também no pós-abolição, mostrando o que foi o trabalho
escravo para as mulheres, a construção da resistência negra, e como esta luta feminina acreditava na
educação como parte essencial da luta pela liberdade. De outro modo, a obra de Davis leva a reflexão de
que a abolição não trouxe, em verdade, o fim da escravidão, e os prometidos direitos civis a população
negra, pelo contrário, expôs a mulher negra como as primeiras a trabalharem fora de casa, com os
trabalhos mais marginalizados, que pouco se distinguem da escravidão.
A partir do pensamento de Ângela Davis, é inegável a importância da mulher no papel
educacional como ferramenta para uma ampliação da liberdade, a filósofa aponta vários nomes de
mulheres que lutaram por acesso à educação nas construções de escolas, em movimentos políticos e lutas
individuais, muitas dessas na clandestinidade, arriscando suas próprias vidas, pois acreditavam na
educação como indispensável para o início de uma luta constante, para o alcance de uma verdadeira
emancipação.
Mas, Ângela Davis na medida em que defende a educação como libertadora abre espaço para
pensarmos numa visão mais ampla sobre a emancipação, onde a educação se torna uma ferramenta
indispensável, vinculada com outras esferas, abordando raça, gênero e classe como indissociáveis, sendo,
somente a partir da superação dessas, possível uma verdadeira emancipação.

OBJETIVOS
a) Apresentar, conhecer e discutir a vida e obra de Ângela Davis, apresentando a sua
concepção de emancipação e como a educação pode auxiliar contra a opressão de seu
sistema interligado (raça, gênero e classe);

Graduanda em Filosofia/UVA, Membra do Grupo de Pesquisa Filosofia da Existência, E-mail: kanandavn1@gmail.com


1

Graduado em Filosofia/UVA, Mestrando em Filosofia/UVA, Membro do Grupo de Pesquisas em Filosofia da


2

Religião/GEPHIR, E-mail: david.machado199@gmail.com

97
b) Explicar como o capitalismo reproduz estruturalmente o racismo e a violência de
gênero. Compreender a relação da mulher negra para com a educação. Explicar a
herança escravista e como ela é fundamental para a opressão racial e de gênero nos dias
de hoje. Identificar na autora como a educação é indissociável da luta da mulher negra
para ser totalmente livre das opressões.

METODOLOGIA
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica que efetua com base na literatura já definida nas
referências bibliográficas. No intuito de fazer uma análise mais aprofundada do objeto da pesquisa:
Educação e Emancipação em Ângela Davis, fundamentalmente a partir da obra Mulheres, Raça e Classe
(2016).A primeira fase da pesquisa teve como constituição um levantamento bibliográfico e leitura do
material para a produção de resenhas, ensaios e artigos, buscando textos de produção tanto nacional
quanto a internacional, em língua portuguesa, quanto espanhol, inglês.
A segunda fase da pesquisa consistiu na leitura integral dos textos da Ângela Davis e artigos
sobre a autora.
A terceira fase teve como composição na participação de cursos e eventos sobre a temática e a
autora, um deles realizado pela Boitempo, o curso online: Introdução à Ângela Davis. E dois foram
realizados na escola As Pensadoras sendo estes: As Pensadoras e o Direito e As Pensadoras 2ª Edição.
Atualmente estamos participando do I Curso de Aperfeiçoamento em Filosofia Feminista também
realizado pela escola As Pensadoras.
A quarta fase da pesquisa constituirá na escrita de um artigo científico sobre a temática da
emancipação e educação em Ângela Davis com sua apresentação em eventuais encontros acadêmicos.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Não há como falar em Educação Popular sem citar Ângela Davis, mulher negra, militante
comunista e filósofa. As suas contribuições para o movimento feminista negro são inestimáveis, pois
dedica sua obra para abordar um pensamento a partir da Interseccionalidade, gênero raça e classe para
fundamentar sua busca por uma emancipação sendo a educação um dos meios para esse caminho.
Em sua obra Davis apresenta como a Proclamação da emancipação foi ineficaz no que diz
respeito a libertação do povo negro, principalmente para as mulheres, pois sua maioria permaneceu em
situações de trabalho escravo com uma expressão mais polida, denominada de trabalho doméstico, onde
mais de 90% das mulheres negras se encontravam inseridas, sendo expostas a agressão sexual, e diversos
tipos de violência. Davis eleva a falsa emancipação a pura abstração conceitual, pois as mulheres negras
se encontravam nos lugares mais marginalizados não possuindo direitos, nem mesmo a educação, que
seria, segundo a autora um dos principais meios para a verdadeira emancipação, pois o conhecimento
torna uma pessoa “inadequada” para a escravidão,

O povo negro percebeu que os “quarenta acres e uma mula” da emancipação


era um boato mal-intencionado. Teriam de lutar pela terra; teriam de lutar
pelo poder político. E, depois de séculos de privação educacional,
reivindicariam com ardor o direito de satisfazer seu profundo desejo de
aprender. Por isso, assim como suas irmãs e irmãos em todo o Sul, a

98
população negra recentemente liberta de Memphis se reuniu e decidiu que a
educação era sua maior prioridade (DAVIS, 2016, p.108).

No que diz respeito ao contexto feminino, a filósofa aponta as mulheres como principais
mobilizadoras por direito ao acesso à educação, mesmo antes da Proclamação da emancipação já haviam
surgido movimentos em busca de direito a educação,

Talvez a demonstração mais impressionante dessa demanda antiga por


educação tenha sido o trabalho de uma ex-escrava nascida na África. Em
1793, Lucy Terry Prince corajosamente requisitou uma reunião com o
conselho do recém-criado Colégio Williams para Homens, que se recusou a
admitir seu filho (DAVIS, 2016, p.109).

Em sua obra Davis expõe que os próprios negros acreditavam na educação como emancipatória,
comprovando isso através de registros escolares antigos de alunos negros e ex-escravos, onde eles
respondiam a seguinte pergunta “sobre o que você mais pensa?” e em sua maioria, as respostas
associavam a educação como uma forma de melhorar sua situação de vida ou de libertar familiares ainda
escravizados,

[...] Estamos estudando para tentar arrebentar o jugo da escravidão e partir as


correntes em pedaços para que a posse de escravos termine para sempre (Doze
anos) 5) Vamos voltar ao passado e observar o modo como os bretões, os
saxões e os germânicos viviam. Eles não tinham estudo e não conheciam as
letras. Não parece, mas alguns deles foram nossos antepassados. Vejam o rei
Alfred, que grande homem ele foi. Por um tempo, ele não sabia o abecedário,
mas antes de morrer comandou exércitos e nações. Ele nunca desanimou,
sempre olhou adiante e estudou com mais afinco. Acho que, se as pessoas de
cor estudarem como o rei Alfred, elas logo poderão se livrar do mal da
escravidão. Não consigo entender como os estadunidenses dizem que este é
um país de liberdade, com toda a escravidão que existe (DAVIS, 2016,
p.112-113).

No período da Reconstrução, é inegável a importância das mulheres nesse movimento de tratar


principalmente da importância do acesso à educação para a construção desse novo mundo, das
condições de trabalho e dos direitos civis da população escrava emancipada,
Nas narrativas sobre a era da Reconstrução e nos registros históricos do Movimento pelos
Direitos das Mulheres, as experiências das mulheres negras e brancas em seu trabalho conjunto na luta
por educação receberam atenção escassa. Entretanto, a julgar pelos artigos no Freedmen’s
Record(Arquivo do bureau Freedmen), não há dúvidas de que essas professoras se inspiravam
mutuamente e também tiravam inspiração de suas alunas e alunos. Quase sempre as anotações das
professoras brancas mencionavam o comprometimento obstinado das ex-escravas e ex-escravos com a
aquisição de conhecimento. Nas palavras de uma professora que trabalhava em Raleigh, na Carolina do
Norte, “para mim, é surpreendente ver o grau de sofrimento que muitas dessas pessoas enfrentam a fim
de mandar suas crianças para a escola”. O conforto material era sacrificado sem hesitação para garantir o
progresso educacional: “Vê-se uma pilha de livros em quase todas as cabanas, ainda que não haja móveis,
além de uma cama simples, uma mesa e duas ou três cadeiras quebradas”(DAVIS, 2016, p.115).

99
A educação é um ato de liberdade e um grandioso e indispensável passo para a verdadeira
emancipação, pois os maiores avanços de libertação do povo negro vieram a partir do sistema
educacional,
Na época da traição de Hayes e da derrocada da Reconstrução Radical, as realizações na área da
educação haviam se tornado uma das provas mais contundentes dos avanços durante aquele período
potencialmente revolucionário. A Universidade Fisk, o Instituto de Hampton e diversas outras escolas e
universidades negras haviam sido criadas no Sul no período seguinte à Guerra Civil. Cerca de 247.333
estudantes frequentavam 4.329 escolas – que foram a base para o primeiro sistema de escolas públicas
do Sul, o que beneficiaria tanto as crianças negras quanto as brancas. Embora o período pós
Reconstrução e a concomitante ascensão do modelo educacional Jim Crow tenham diminuído de modo
drástico as oportunidades de educação para a população negra, o impacto da experiência da
Reconstrução não podia ser totalmente eliminado (DAVIS, 2016, p.115-116).
Sendo as mulheres as principais mobilizadoras desse movimento de educação emancipadora,

Com a ajuda de suas aliadas brancas, as mulheres negras tiveram um papel


indispensável na criação dessa nova fortaleza. A história da luta das mulheres
por educação nos Estados Unidos alcançou o auge quando as mulheres negras
e brancas comandaram juntas, depois da Guerra Civil, a batalha contra o
analfabetismo no Sul. A união e a solidariedade entre elas ratificaram e
eternizaram uma das promessas mais férteis de nossa história (DAVIS, 2016,
p.116).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluímos, portanto, que o trabalho de Ângela Davis, estimula a desconstrução da ideia de
que o senso comum atribui a luta negra a deslegitimando, apontando-a como desnecessária, já que
segundo as leis gerais “somos todos iguais”. Davis denuncia como o sistema se mostra como principal
responsável pelas opressões presentes na sociedade, apontando como as lutas de gênero, raça e classe são
indissociáveis para o alcance de um novo mundo, enfatizando a necessidade da busca pela emancipação,
e que a educação se torna essencial, pois o conhecimento norteia a luta, para uma sociedade justa e
igualitária, na concepção da filósofa, uma sociedade comunista.
O trabalho ainda busca identificar na autora como a educação pode auxiliar na conscientização
de classe e na organização da classe trabalhadora, além também de fazer considerações sobre a revolução
e como seria organizado a educação e essa luta, a fim de erradicar as opressões de raça e também de
gênero tendo como base material o modo de produção, e como a educação se faz necessária, para que
este seja compreendido e assim, possa ser superado.

REFERÊNCIAS
DAVIS, Ângela. A liberdade é uma luta constante. Organização de Frank Barat. Tradução de Heci
Regina Candiani. São Paulo, SP: Boitempo, 2018.
DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani (1 Ed.). São Paulo:
Boitempo, 2016, 248 pp. ISBN 978-85-7559-503-9 [Também disponível em versão eletrônica].
DAVIS, Ângela. Uma autobiografia. Tradução de Heci Regina Candiani. Prefácio de Raquel Goulart
Barreto. São Paulo, SP: Boitempo, 2019.

100
YANCI, George. African-American Philosophers: 17 conversations. New York, NY: Routledge, 1998.

101
EDUCAÇÃO POPULAR NA FRONTEIRA: EXPERIÊNCIAS DE FORTALECIMENTO
COMUNITÁRIO DE MULHERES MIGRANTES E REFUGIADAS EM RORAIMA

Clara CUNHA1
Hannah Maia NORONHA2

INTRODUÇÃO
A proposta deste trabalho é compartilhar sobre experiências juntamente à populaçãomigrante e
refugiada em Boa Vista, Roraima, no apoio ao fortalecimento comunitário destes grupos a partir da
educação popular e da psicologia social. Desde 2016, o intenso fluxo de venezuelanas(os) tem
impactado fortemente o estado de Roraima (FGV, 2020). Apesar dos esforços da Operação Acolhida,
uma grande força-tarefa humanitária executada e coordenada pelo Governo Federal com o apoio de
agências da ONU e de mais de 100 entidades da sociedade civil (GOV, 2018), na construção de
abrigos e na acolhida destes grupos, o grande fluxo impossibilita a acomodação de toda essa população
em abrigos humanitários ou em casas e apartamentos alugados ou cedidos. Por essa razão, muitos
grupos se organizam eestabelecem comunidades em ocupações urbanas ao longo da cidade de Boa Vista.
Segundo o informe da Organização Internacional para as Migrações (OIM, 2021), no mês de abril de
2021 havia 594 migrantes e refugiados vivendo nas ocupações, das quais 329 são mulheres emeninas.
A educação popular se mostra uma ferramenta útil na construção de diálogos com a população
deslocada. Nas palavras de José Francisco de Melo Neto (CRUZ, 2019), a educação popular é um
fenômeno de ensino e aprendizagem que tem como intencionalidade política a emancipação de todas as
pessoas, particularmente as que estão em processo deexclusão social. O ponto de partida deve ser sempre
o mergulho na realidade social para que apartir dos temas geradores que evocam dessa realidade, seja um
ensino-aprendizagem voltado a responder às demandas que a realidade pulsa e provoca. Um dos
principais diferenciais da educação popular é a construção com as pessoas, a partir do "chão do
cotidiano", "dos territórios da vida"; é ser uma ferramenta a mais nas lutas que as pessoas já
empreendem para pensar nos inéditos viáveis, ou seja, pensar conjuntamente em novas possibilidades
parasuperar os problemas (CRUZ, 2019).

OBJETIVOS
a) Sistematizar como a educação popular e a psicologia social colaboram na prática para a
integração de migrantes e refugiadas ao país de acolhida e na transformação deambos.
b) Identificar como as atividades propostas colaboraram para fortalecer a liberdade,
emancipação e autonomia de mulheres migrantes e refugiadas.

METODOLOGIA

Educadora jurídica popular. E-mail: claraocunha@gmail.com


1

Psicóloga comunitária. E-mail: hannahnoronhaa@gmail.com


2

102
O Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas (2014) propõeum
percurso metodológico baseado nos princípios da Educação Popular, de seis espaços para percorrer,
assegurando a proposta metodológica da educação popular. São estes espaços: 1. O cenário 2. O espaço
do encontro 3. Problematização 4. Ação/reflexão 5. Aprendizagem criativa (transformação) 6.
Reinvenção.
O cenário seria o espaço onde o sonho e a realidade se encontram, também chamadocomo
espaço do “esperançar” (BRASIL, 2014, p. 56). A partir da realidade, que é a históriadessas sujeitas, da
comunidade e da troca dos saberes, busca-se estimular a construção decaminhos para alcançar a
realidade almejada. Para tanto, deve-se primeiramente conhecer a realidade, demandas e trajetórias de 2
ocupações bem oaVista.
O espaço de encontro deve promover, como o próprio nome diz, o encontro entre comunidades
deslocadas e comunidade de acolhida. Para tal, mobilizar e articular parceiros é fundamental (BRASIL,
2014,p. 57). Nesse contexto, os parceiros estão pensados principalmente enquanto rede de serviços
disponíveis no território das ocupações e que podem colaborar para o acesso a direitos, a integração
social, a proteção e a redução da vulnerabilidade dessas comunidades. Esse espaço de encontro também
se propõe a inverter a lógica das relações de poder existentes entre Estado e comunidade, o que, nesse
contexto, está permeada por discriminação e xenofobia. A aproximação dos serviços à comunidade e
vice-versa visac onstruir uma horizontalidade nessa relação, sensibilizando os/as funcionárias/os dos
serviços para a realidade e necessidades dessas comunidades.
O espaço de problematização é o "momento de questionamento dos problemas e desafios”
(BRASIL, 2014, p. 57). Essa “leitura parte da significação que os sujeitos fazem dasituação” e é a partir
da dialogicidade, da troca entre ambos os grupos, que será possível ampliar-se a compreensão e a análise
crítica da situação, potencializando as possibilidades para a sua superação (BRASIL, 2014, p. 57).
O espaço de ação e reflexão é o momento de diálogo ampliado, o qual permite partir-se do
micro e ampliar-se ao macro, percebendo os desafios conjunturais. É pedra fundamental da educação
popular o diálogo horizontal com movimentos sociais, justamente por entender que estes possuem um
conhecimento acumulado e sistematizado. A organização das ocupações espontâneas comprova essa
constatação. As ocupações são espaços de autonomia para as migrantes e refugiadas em comparação a
aquelas abrigadas. Em uma ocupação que chegou a reunir quase mil pessoas, compopulação indígena e
crioulla (definição para não indígenas na sociedade venezuelana), a vice-cacique declarou:
Acreditamos que um espaço como esse (da ocupação espontânea) é bem melhor que
um abrigo, pois todos nos sentimos livres para as tomadas de decisões, criar normas
que nortearam nossa vida, normas essas que são assumidas, respeitadas e vividas por
todos, somos uma comunidade (AMAZÔNIA REAL, 2020).
O termo ocupação contrapõe-se ao termo invasão, buscando legitimar a mobilização por
moradia. A própria Constituição Federal aponta a necessidade do cumprimento da função social da
propriedade e, portanto, legítima a ocupação de espaços vagos. As ocupações urbanas, diferentemente de
outras ocupações irregulares, são uma ação planejada e, portanto, ultrapassam unicamente a questão
habitacional carregando uma conotação política de movimento organizado (LOURENÇO, 2014).
A aprendizagem criativa é o momento de construção coletiva no qual novas
propostaseaçõesserãopactuadas (BRASIL, 2014, p. 58). É também o momento de fortalecimento
comunitário, tanto da comunidade quanto da rede. Visando alcançar esse fortalecimento comunitário e
participação política é que o Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas
recomenda a existência de espaços como conselhos, fóruns e comitês. A sensibilização para as
103
demandase necessidades específicas da população migrante pelos serviços da rede pode ser identificado
como esse momento de inovação, de aprendizagem criativa. A pactuação de como adaptar o
acolhimento de migrantes e refugiados (as) e o funcionamento desses serviços seria um caminho rumo a
transversalização de uma política pública para a população deslocada em toda a rede de serviços
públicos.
Finalmente, o espaço da reinvenção seria a análise dos resultados alcançados acompanhada do
reinício do ciclo para buscar novas soluções aos desafios não superados (BRASIL, 2014, p. 59). A busca
por novas soluções deve sempre visar maior autonomia, protagonismo e soberania dos grupos
envolvidos, pois é na auto-organização que os sujeitosse identificam enquanto sujeitos históricos e
grupos organizados. Sendo assim, “a partir do diálogo entre os diferentes saberes, relacionados à sua
realidade, conseguem perceber as reais causas dos problemas, tomam consciência dele e se organizam
coletivamente e solidariamente para superá-los” (BRASIL, 2014, p. 60).
A sistematização do ciclo de percurso metodológico proposto no Marco de Referênciada
Educação Popular para Políticas Públicas é definida no mesmo documento como:
Apropriar-se da experiência vivida e dar conta dela, compartilhando com osoutros o aprendido.
Interpretação crítica de uma ou várias experiências que, apartir de seu ordenamento e reconstrução,
descobre ou explicita a lógica do processo vivido, os fatores que intervieram no processo, como se
relacionaram entre si e porque o fizeram desse modo (BRASIL, 2014, p.46).
Portanto, a comunicação oral traria o compartilhamento de experiências das oficinas
organizadas nessas ocupações, explicitando as justificativas para a escolha dos temas das oficinas, dos
autores envolvidos, dos fatores que intervieram no processo e quais os desfechos ou as reinvenções
surgidas desse ciclo.
Importante também alertar para a problemática relacionada à perda de experiência, no sentido
de uma dissolução da tradição compartilhada entre os membros da comunidade, especialmente entre
distintas gerações (BENJAMIN, 1987). O verdadeiro exercício à experiência é, nesse sentido, permitir-
se demorar nos detalhes, buscar aquilo que nos fazsentido, que nos toca, o que produz afeto. Assim, só é
possível pensar em Educação Popular para Políticas Públicas a partir do exercício à experiência, produto
da construção no cotidiano, no coletivo.
Para identificar se a proposta freiriana na educação popular de garantir mais liberdade,
emancipação e autonomia para mulheres migrantes e refugiadas foi alcançada, utilizaremos a história
oral de mulheres, que permite que as sujeitas usem as próprias vozes e experiências, trazendo à tona
parcelas da experiência histórica feminina, e, mais ainda, possibilita umagrande contribuição nos alertas
para os mecanismos de inclusão e exclusão imbricados nas memórias e discursos públicos dominantes.
Seguindo essa linha, Salvatici (2005) afirma que a partir de 1980, como desenvolvimento da história
oral de mulheres como método de pesquisa, houve uma tentativa de luta contra assertivas abrangentes,
passou-se de formas individuais a formas coletivas de memória e expressão. Assim, a partir da percepção
das falas, será identificado se as mulheres se perceberam mais autônomas ao final do processo.

RESULTADOSEDISCUSSÃO
A partir do processo de fortalecimento comunitário e de dialogicidade entre mulheres migrantes
e refugiadas e a população de acolhida - aqui representada pelos serviços de saúde, assistência social,
conselho tutelar entre outros disponíveis no território das ocupações – os resultados esperados são um
melhor acesso a estes serviços pela população deslocada. Espera-se que a melhoria nos atendimentos a
104
essa população, fortalecida por passar a contar com essa rede de serviços, transforme-se em mais
emancipação e autonomia para as mulheres das ocupações participantes.
Ademais, é um dos objetivos da pedagogia social contribuir para “a integração do indivíduo ao
seu meio social, capacitando-o ao mesmo tempo, para as possibilidades de transformação do seu próprio
lócus" (KEURBAY; GONDIM, 2020). Esse processo, partindodo micro rumo ao macro, visa
construir um caminho rumo a transversalização de uma política pública para a população deslocada em
toda rede de serviços públicos. Como em outras experiências de educação popular com migrantes e
refugiadas (os), parte-se de um território específico, para o envolvimento de outros atores, para uma luta
pela efetivação de políticas públicas para migrantes (GREICON et al., 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse sentido, buscar respostas no micro é encontrar caminhos e possibilidades em todos os
lugares, mesmo que esse lugar seja debaixo de uma lona rasgada, sentada numpedaçodemadeira que
resolveram chamar de banco. É produzir algo que também destrói, pois rompe com as verdades rígidas,
desconstrói as certezas. Trata-se, portanto, de saber se decompor, errar, costurare descosturar.
Pensar em políticas públicas realmente emancipatórias é pensar na possibilidade deconstrução
de um campo de experimentação e compartilhamento de experiências, é apostar notransbordamento das
fronteiras bem delimitadas, e isso só é possível ouvindo as narrativas das vozes as sujeitadas.

REFERÊNCIAS
AMAZONIA REAL. Exército ameaça despejar ocupação de venezuelanos em Roraima. Publicada em
02 de outubro de 2020.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, Walter. O Brás escolhidas.Vol.
Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie
Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119.
BRASIL. Secretaria Nacional de Articulação Social. Marco de Referência da Educação Popular para as
Políticas Públicas. Departamento de Educação Popular e Mobilização Cidadã. Brasília, 2014.
CRUZ, Pedro. Educação Popular em saúde - bate papo na saúde. Canal Saúde Oficial, 2019.
Disponívelem:https://www.youtube.com/watch?v=S4qSP5t2QrI>. Acesso em: 10 maio 2021.
FGV. A economia de Roraima e o fluxo venezuelano [recurso eletrônico]: evidências e subsídios para
políticas públicas. Fundação Getúlio Vargas, Diretoria de Análise de Políticas Públicas. Rio de Janeiro:
FGVDAPP, 2020.
GOV. A Operação Acolhida. Disponível em:<https://www.gov.br/acolhida/historico/>.Acessoem:
10 maio 2021.
GREICON, Allan Macedo Lima et. al. Educar para o mundo: experiência extensionista popular
paradireitos humanos e migrações. Rev. Cult. e Ext. USP, São Paulo, n. 13, p.65-82, maio 2015
KERBAUY, Ana Cristina Vigar; GONDIM, Janaina Silva. Reflexões sobre ações educativas para
migrantes internacionais: diálogos com a pedagogia social. Itinerarius Reflectionis, Revista eletrônica de
graduação e pós-graduação em educação, v. 15 n.4, p.01–14, 2020.

105
LOURENÇO, T.C.B. Cidade ocupada. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Núcleo
de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte,
p.232, 2014.
SALVATICI, Silvia. Memórias de gênero: Reflexões sobre a história oral de mulheres. História oral,
v.8, n.1, p. 29-42, 2005.

106
OS DESAFIOS DO CURSINHO POPULAR ENEIDA DE MORAES NO MUNICÍPIO DE
SÃO MIGUEL DO GUAMÁ – PA

Ana Lucia dos S. SANTANA1


Taynara Nayara P. de OLIVEIRA2

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar as estratégias de docentes da universidade do
estado do Pará, utilizadas para engajar o ensino popular e gratuito no município de São Miguel para
alunos e alunos da rede pública de ensino do município e zonas rurais com o intuito de preparar esses
alunos para o vestibular, tendo em vista que para muitos desses alunos e alunas a universidade pública é
o único meio de mudança e transformação de suas vidas.
Sabemos que a educação como um todo tem sofrido drásticas transformações, em especial a
educação popular que é vista como uma espécie de retribuição do estado à sociedade na tentativa de
formar bons cidadãos aptos à cidadania e ao trabalho, no entanto, ao trilhar este caminho a mesma vem
se tornando alvo de muitas discussões no âmbito político e social.
O artigo 205 da Constituição Federal de 1988 diz: “A educação, direito de todos e dever do
Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho”. Mas, ainda que a constituição de 1988 tenha assegurado a educação como um dever do
estado sabemos que essa educação será de acesso lento e gradual das categorias mais pobres e excluídas
da sociedade brasileira.
Desde a colonização do território brasileiro pode-se observar a instauração de um “sistema
educacional” excludente, onde nem todas as pessoas tinham acesso direto a essa educação, como
indígenas e negros africanos, a “educação” estava mais ligada ao aspecto religioso onde os Jesuítas na
tentativa de catequizar esses indivíduos ensinavam e pregavam o cristianismo. A educação era sinônimo
de poder, deste modo não é à toa que está ficava restrita a uma pequena parcela da população.
Todavia, a educação com o passar dos anos se tornou sinônimo de evolução, o século XX traz
transformações e alimenta ideais de avanço tecnológico e social, assim um país para se considerar
desenvolvido deveria ter uma população bem instruída apta as necessidades do novo século e da nova
sociedade que se formava, no entanto, o Brasil estava longe de ser símbolo de desenvolvimento
educacional, político e social em detrimento de sua colonização e do pouco interesse e investimentos no
desenvolvimento de seus cidadãos.
Desta forma vamos observar diferentes levantes populares na tentativa de democratização da
educação por parte do estado e de suas autoridades competentes, como colocado por Brandão (1983):

É apenas com o início da industrialização e do avanço dos países vizinhos que


o Brasil se sente pressionado a estabelecer novas estratégias para o avanço da

Universidade do estado do Pará. E-mail: santanavir918@gmail.com


1

Universidade do estado do Pará. E-mail: taynarapinheiroliveira@gmail.com


2

107
educação popular no país. É preciso lembrar que não foi apenas o trabalho
político pela escola pública, nem uma súbita tomada de consciência do poder
de Estado, o que, nas primeiras décadas do século XX, provocou o advento
do ensino escolar oficial. Interesses e pressões de setores urbanizados da
população brasileira, ao lado das vantagens que o empresariado via em uma
melhoria do nível escolar e da capacitação da força de trabalho de migrantes
rurais ou estrangeiros reunidos em suas indústrias, foram também fatores
muito importantes (BRANDÃO, 1983, p.19).

Ou seja, é somente a partir da necessidade de desenvolvimento econômico que se começa a


pensar um possível projeto educacional para a sociedade brasileira, a partir das transformações e da
indispensabilidade de progresso que o novo século provocava no cenário mundial. A educação não
estava ligada ao desenvolvimento e humanização dos indivíduos, mas sim a necessidade econômica
impulsionada pela revolução industrial e pela migração em massa.
É por este fato que a educação popular tem caminhado a passos lentos, mesmo após muitos
anos podemos observar que a luta por uma educação que alcance a todos e seja de fato emancipadora
tem sido desafio de educadores, educandos, militantes, e movimentos sociais, já que o projeto
educacional do estado ainda hoje acaba por excluir um grande número de pessoas o que torna o desafio
da educação popular e universal ainda maior.
Tendo em vista isto, muitas têm sido as estratégias de educadores, educadoras e militantes da
educação para sanar os danos causados por esse processo violento estruturado a partir de um processo
de colonização com objetivo de manter privilégios da camada mais rica da sociedade. Mas ainda que
tenhamos avançado, há muito que conquistar. Pessoas pobres e que se encontram em bairros periféricos
ainda encontram maior dificuldade para permanecer na escola, bem como as pessoas do campo.
É pensando neste cenário que ao longo dos anos podemos observar diferentes levantes
populares para tornar a educação um bem para todos e todas, em busca de uma educação de qualidade e
inclusiva, que possa contribuir para radicalizar desigualdades sociais estruturais que pairam sob o
sistema educacional brasileiro e que é refletido quando ainda podemos observar níveis de analfabetismo
altos em relação a outros países em desenvolvimento.
Em busca de combater essas desigualdades há um movimento crescente dentro e fora das
universidades com a iniciativa de professores em formação e já formados, de promover uma educação de
fato popular que alcance alunos da rede pública de forma gratuita e que possa contribuir para uma
melhor desenvoltura de alunos e alunas que buscam através de vestibulares ingressar em uma
universidade pública, tendo o ENEM (exame nacional do ensino médio) como principal meio de
ingresso.
Deste modo, este trabalho tem como objetivo falar um pouco acerca de como essa iniciativa de
uma educação popular e gratuita foi tomada no município de São Miguel do Guamá – Pará, por
discentes em formação da Universidade do Estado do Pará – UEPA, CAMPUS XI que percebendo a
necessidade de incentivo para alunos e alunas da rede pública de ensino do município, tendo em vista
que a maioria destes não tinham condições de financiar aulas preparatórias para o Enem em cursinhos
privados.
Estes tomam para si este compromisso ainda que sem apoio financeiro e também sem nenhum
incentivo por parte da gestão municipal da cidade de São Miguel do Guamá, mas sem pensar nas faltas e
sim no que poderia fazer para somar na educação política, social e pessoal destes para além somente da

108
preparação para o ENEM, nasce o cursinho popular Eneida de Moraes tendo como principal objetivo a
humanização, inclusão e formação de cidadãos politicamente aptos a cidadania e ao trabalho.
O Cursinho Popular Eneida de Moraes foi batizado com este nome no ano de 2018 em função
da grande importância da escritora, jornalista e militante paraense Eneida De Villas Boas Costas de
Moraes (1904-1971) no cenário político e literário brasileiro. Ele teve desde seu início como único
apoio a Gestão da UEPA-CAMPUS XI sendo cedido pela coordenação do Campus-XI um número
reduzido de salas para que o cursinho pudesse ser realizado aos finais de semana e feriados.
Assim o cursinho acabou crescendo com o passar dos anos e alcançando cada vez mais um
número maior de alunos tendo antes da Pandemia do COVID-19 matriculados mais de 100 alunos e
alunas todos da rede pública do município e da zona rural. Tendo uma base de professores preparados e
aptos às aulas, o cursinho funcionava aos sábados e domingos com a supervisão de professores e
professoras voluntárias que se dedicavam e davam a devida atenção a alunos e professores.
No entanto, com a pandemia do COVID-19 a gestão de coordenação de 2020 acabou ficando
prejudicada e o cursinho impossibilitado de funcionar por medidas de segurança sanitária, deixando
então uma gama de alunos e alunas sem a possibilidade de estudar e se preparar para o vestibular. Desde
então o cursinho está sem funcionar e sem previsão de retorno.

OBJETIVOS
A partir disso, este trabalho tem como objetivo:
a) Discutir acerca das dificuldades enfrentadas por professores e alunos diante deste
cenário pandêmico que acaba cada vez mais contribuindo para o descaso da educação
pública, tendo em vista as estratégias utilizadas para manter as aulas ainda que de
maneira remota.
Ainda que houvesse esperanças de um possível retorno em outubro de 2020 para o ensino
fundamental e infantil no estado do Pará deixando apenas os alunos do 3º ano do ensino médio tendo
aulas remotas, essa foi uma esperança que com o passar dos meses se tornou impossível de manter
levando em consideração o cenário pandêmico em que o país se encontra e que se mantém mesmo após
um ano.
Deste modo, além dos alunos concluintes que estavam em busca de se preparar para o ENEM
2020 muitos outros alunos da rede pública ficaram prejudicados e estão até o momento sem previsão de
aulas presenciais. Situações como estas são alarmantes principalmente quando as medidas tomadas pelos
governantes não têm a eficácia desejada.
Dados do relatório do fundo das nações unidas (Unicef) publicadas em janeiro de 2021
apontam que:

[...] uma compilação de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de


Domicílios (Pnad) que avaliou a situação da educação durante a pandemia —,
em outubro de 2020, o percentual de estudantes de seis a 17 anos que não
frequentavam a escola no país chegava a 3,8% (1.380.891 milhão). Para
termos de comparação, a média nacional de 2019 era de 2%, segundo a Pnad
Contínua. Somam-se a esses mais de 1,3 milhão, outros 4.125.429 milhões
que afirmaram frequentar a escola, porém, sem acesso às atividades. Assim, as
estimativas apontam para mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes que
109
tiveram o direito à educação negado no ano passado (KOSACHENCO,
2021).

Assim, abre-se mais uma vez um grande abismo na educação de crianças e adolescentes pobres e
em sua maioria negros, no Brasil e na América Latina, já que estes sem terem acesso aos meios
necessários para estudar acabam desestimulados e por sua vez sendo excluídos desse sistema de ensino.
Fatores como estes acabam colocando os avanços educacionais alcançados nos últimos anos em risco de
serem revertidos negativamente.
Situações como estas estimulam as desigualdades já presentes em nossa sociedade já que
segundo estimativas do Fundo das Nações unidas para a infância - UNICEF (2021) apesar dos esforços
governamentais, apenas um em cada dois estudantes de escola pública está tendo acesso a um ensino a
distância de qualidade em casa, mas quando colocados em comparação com redes privadas de ensino
observa-se que três em cada quatro estudantes de escola privada estão tendo acesso a um ensino de
qualidade.
Dessa forma, podemos observar o quanto a pandemia do COVID-19 colocou em xeque mais
uma vez as desigualdades educacionais do Brasil estimulando cada vez mais a expulsão de alunos e
alunas das escolas o que fará do futuro destes ainda mais cruel no mercado de trabalho visto que estes
sem a formação escolar completa acabam não concorrendo de igual para igual com aqueles que têm
acesso direto a educação de qualidade.

METODOLOGIA
A metodologia utilizada para traçar a discussão deste trabalho é a pesquisa qualitativa já que,
segundo (GERHARDT e SILVEIRA, 2009) na pesquisa qualitativa, o cientista é ao mesmo tempo o
sujeito e o objeto de suas pesquisas. Pois, através deste busca-se partilhar um pouco da experiência
vivida através da proposta de uma educação popular no município de São Miguel do Guamá- Pará
enquanto alternativa de preparação para o vestibular e para formação de cidadãos que estejam cada vez
mais conscientes politicamente para exercerem suas funções em sociedade, discutindo e ensinando a
partir de suas realidades.
Segundo (GERHARDT e SILVEIRA, 2009) a pesquisa qualitativa preocupa-se, portanto,
com aspectos da realidade que não podem ser quantificados centrando-se na compreensão e explicação
da dinâmica das relações sociais. Deste modo, pensar a educação popular de qualidade tem sido a busca
constante de transformar a realidade social de jovens e adultos que buscam através da educação melhoria
e qualidade de vida para si e seus familiares.

RESULTADOS/DISCUSSÃO
Dentro da universidade pública podemos conhecer sua realidade e descobrir como nossa
formação poderia contribuir para a formação de outras pessoas. No momento em que recebemos o
convite para ministrar aulas no cursinho popular da UEPA – CAMPUS XI (universidade do estado
Pará) que ainda não tinha o nome de Eneida de Moraes, pois o mesmo só levará esse nome a partir de
2018 quando tivemos a oportunidade de estar como coordenadoras e professoras voluntárias até o final
do ano letivo de 2020.
Na oportunidade tivemos a honra de trabalhar com uma equipe de extremo esforço e entrega
para com os alunos e com o compromisso de entregar de fato aulas de qualidade que pudessem somar
110
na formação desses alunos e alunas para que estes conseguissem alcançar a tão sonhada vaga em uma
universidade pública. Ainda que a princípio o número de aprovações não fosse tão alto quando colocado
em comparação com cursinhos da rede privada, a cada ano que passava o cursinho popular ganhava mais
procura.
Na UEPA – CAMPUS XI funcionava todo o trabalho, organização, planejamento, matrículas e
aulas. Dentre as pessoas que procuravam matricular seus filhos (as) estavam mães, pais, avós e até
mesmo os próprios alunos, em 2019 foram mais de 100 matrículas e infelizmente tivemos que criar
uma lista de espera devido à grande procura por vagas, mas que infelizmente por conta da quantidade
pequena de pessoal (professores, coordenadores e etc.) não podíamos trabalhar com mais de 100 alunos
e alunas.
No entanto, apesar da grande procura com o passar das semanas sempre víamos o número de
alunos irem reduzindo por conta de diferentes aspectos. Muitos dos nossos alunos estudavam a semana
inteira e quando chegava nos sábados e domingos não tinham o mesmo estímulo já que as aulas
aconteciam pela parte da manhã e da tarde no sábado e no domingo apenas no horário da manhã.
Mesmo com as dificuldades muitos desses alunos persistiram até chegado o dia da prova e
felizmente tivemos algumas aprovações em 2019 para a alegria de professores, coordenação e alunos,
isso acabou incentivando cada vez mais nossa equipe, cada professor e professora que sonhava junto
com cada aluno domingo a domingo.
Poder reencontrar algumas de nossas alunas no Campus XI, agora como universitárias foi muito
gratificante, para compor este relato tivemos a honra e privilégio de conversar com algumas delas e
perguntar sobre suas experiências no cursinho popular Eneida de Moraes e como este contribuiu para
que estas conseguissem dar o primeiro passo para a realização de seus sonhos.
Conversamos com uma ex-aluna que ingressou no curso de filosofia na UEPA – CAMPUS XI,
e quando questionada sobre como o cursinho contribuiu para sua formação a mesma relata que jamais
imaginou aprender tanto em tão pouco tempo, que por ser negra achava que tudo era mais difícil e que
o cursinho lhe estimulou a acreditar em seus sonhos e a perder o medo da discriminação “pela sua cor e
sexo”, disse ela (R.S, 27 anos).
Conversando com mais duas ex-alunas negras e de família humilde questionamos sobre qual
seria a importância de cursar uma universidade pública uma delas (L.F, 18 anos) respondeu que por ser
de família pobre era o único meio pelo qual ela poderia fazer um curso superior, já a outra (M.N, 20
anos) respondeu que é importante para ter um bom currículo e poder ingressar no mercado de trabalho
além de possibilitar o desenvolvimento de senso crítico.
Ela também relatou que o cursinho contribui muito para sua formação política enquanto
mulher negra, para “conhecer seus direitos, como eles foram conquistados e mudar sua visão de mundo,
sair da bolha” diz ela, (M.N, 20 anos). A partir desses relatos pudemos nos alegrar bastante e ter a
certeza de que a educação popular é fundamental e necessária, que o compromisso de uma educação que
possa alcançar alunos com dificuldades financeiras e realidades diversas é essencial para radicalização de
desigualdades sociais estruturais em nossa sociedade.
O cursinho popular além de prepará-los para o ENEM, coloca alunos e alunas de encontro com
suas realidades enquanto sujeitos sociais, é instrumento de politização e autorreconhecimento, onde
meninas negras se reencontram com suas histórias, onde sonhos são alimentados e sonhados juntos
porque o professores e professoras sabem o valor social do seu trabalho.

111
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, a partir deste relato buscamos discutir acerca de como a educação tem papel
fundamental na nossa sociedade, já que graças a esse compromisso tomado por professores, movimentos
sociais e militantes da educação conseguimos estabelecer estratégias que cada vez mais impulsionam o
trabalho de educadores e educadoras da educação popular a continuarmos acreditando em nosso
trabalho.
Afinal, o compromisso de uma educação popular de qualidade tem impacto na sociedade em
seu todo, contribuindo para o combate contra as desigualdades educacionais e sociais existentes no
Brasil. Entendendo que a educação como diria Bell Hooks (2013) é também possibilidade de
autorreconhecimento. Desta forma trabalhamos para que fosse honrado esse compromisso levando
conhecimento e através dele proporcionar este autorreconhecimento.
Apesar das dificuldades poder proporcionar estímulo, coragem, e segurança para nossos alunos e
alunas é impagável, ensinamos e junto com eles também aprendemos e buscamos cada vez mais nos
humanizar e entender o verdadeiro valor do nosso trabalho e missão enquanto educadores e educadoras
em transmitir um conhecimento pautado na realidade de nossos alunos e alunas e no que vivemos no
presente de nossa sociedade.
Como colocado por Moacir Gadotti (1981):

A educação é um lugar de interpelação e de interrogação filosófica por


excelência, na medida em que muito particularmente, a educação é um lugar
onde o homem se interroga, responde diante do outro e por si mesmo, ao
problema da existência, de seu ser-no-mundo. A educação é este lugar que o
chama e o coloca totalmente em questão (GADOTTI, 1981, p. 31).

Desta forma, nossa tarefa torna-se, portanto, mediar essas interrogações proporcionando meios
para que estes alunos possam refletir e questionar a si e ao mundo ao seu redor, colocando-se em
questionamento enquanto agente de seu próprio eu, dando a possibilidade de transformação de si do
mundo, afinal este é o papel do educador (a) e da educação.
Portanto, pensar a educação enquanto projeto político é fundamental para que possamos sanar
desigualdades estruturais existentes em nossa sociedade e levar novas perspectivas de vida e possibilidade
de sonhar cada vez mais alto, tendo a educação enquanto base dessa transformação, podendo assim
manter vivo o sonho destes de ingresso em universidades públicas.
“A educação como pratica da liberdade é uma forma de ensinar que qualquer um pode
aprender” – Bell Hooks.

REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação popular. Ed. Brasiliense, 1982.
G1 PA. secretária doestado do Pará diz que governo vai distribuir chips para estudantes acessarem aulas
remotas. Por G1 PA – Belém. 31, agosto, 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2020/08/31/sec-de-educacao-do-pa-diz-que-governo-vai-
distribuir-chips-para-estudantes-acessarem-aulas-remotas.ghtml

112
GADOTTI, Moacir. A educação contra a educação / Moacir Gadotti – Rio de janeiro: Paz e Terra.
1981 (coleção educação e comunicação: v, 7).
GERHARDT, T. E.; SILVEIRA, D. T.; Métodos de pesquisa / [organizado por] Tatiana Engel
Gerhardt e Denise Tolfo Silveira; coordenado pela Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFRGS e
pelo Curso de Graduação Tecnológica – Planejamento e Gestão para o Desenvolvimento Rural da
SEAD/UFRGS. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade / Bell Hooks; tradução
de Marcelo Brandão Cipolla. – São Paulo: Editora WMF Martins fontes, 2013
KOSACHENCO, Camila. Desafios da educação pública na pandemia passam por aprimorar o ensino
remoto. GZH – Educação e Trabalho. 31, Março, 2021. Disponível em:
https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2021/03/desafios-da-educacao-
publica-na-pandemia-passam-por-aprimorar-o-ensino-remoto-ckmxwqz9p008j016uksglnnju.html
UNICEF, Brasil. Covid-19: mais de 97% dos estudantes ainda estão fora das salas de aula na américa
latina e no caribe. 09, novembro, 2020. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-
de-imprensa/covid-19-mais-de-97-por-cento-dos-estudantes-ainda-estao-fora-das-salas-de-aula-na-
america-latina-e-no-caribe

113
A LITERATURA INDÍGENA NA ESCOLA: A ESCRITA LITERÁRIA DE MULHERES
INDÍGENAS NA SALA DE AULA

Jairo da Silva e SILVA1

INTRODUÇÃO
Este trabalho tem o propósito de problematizar e colaborar com a desconstrução de
determinados paradigmas de subalternização que produzem injustiças étnico-raciais e de gênero, dentro
e fora do escopo literário. Discutimos, portanto, o ensino da literatura indígena, sobretudo, a potência
pedagógica da escrita de mulheres indígenas que utilizam a literatura para contar/registrar suas próprias
narrativas e de seus povos, manifestando as marcas da ancestralidade, saberes e resistências.
Neste sentido, o presente trabalho atua em duas frentes: uma teórica e a outra prática, pois,
apresentamos a descrição de uma prática pedagógica de formação inicial e continuada no que diz
respeito ao ensino e aprendizagem da literatura indígena, considerando produções literárias de cinco
escritoras indígenas: Graça Graúna (2013), Eliane Potiguara (2019), Márcia Kambeba (2018, 2020),
Julie Dorrico (2019) e Auritha Tabajara (2018).

OBJETIVOS
De forma ampla, pretende-se:
a) Discutir sob o viés teórico-prático a literatura indígena no âmbito escolar.
Em específico,
b) Evidenciar a produção literária de escritoras indígenas e, destacar a potência de tal
escrita no contexto do ensino médio, a fim de ampliarmos o debate literário na escola
básica a partir de vozes literárias femininas.

METODOLOGIA
Este trabalho inscreve-se junto às inquietações propostas pelas literaturas impulsionadas no país
mediante a Lei nº 11.645 (BRASIL, 2008), a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-
brasileira e indígena”. Em especial, a literatura indígena, isto é, a produzida por sujeitos indígenas
(DORRICO et al, 2018).
Assim, caminhamos pela abordagem qualitativa segundo a concepção apresentada por John W.
Creswell (2010, p. 43): “[...] um meio para explorar e para entender o significado que os indivíduos ou
os grupos atribuem a um problema social ou humano”. Para esse estudioso, estes são os principais
procedimentos qualitativos: amostragem intencional, coleta de dados abertos, análise de textos ou de
imagens e interpretação pessoal dos achados. Dentre os quais, optamos pela análise de textos, neste caso,
textos literários de escritoras indígenas.

Instituto Federal do Pará-IFPA/Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC/Associação Multiétnica Wyka Kwara. E-


1

mail: jairodasilvaesilva@gmail.com
114
Neste sentido, para a elaboração deste estudo realizamos vasta pesquisa bibliográfica, que, por
sua vez “é realizada a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios
escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de websites” (FONSECA, 2002, p. 32).
Quanto à fundamentação teórica, recorremos às contribuições do pensamento Decolonial, um
“movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da
modernidade/colonialidade” (MIGNOLO, 2008, p. 249). Tal quadro epistemológico colabora com
possíveis respostas a algumas pesquisas que realizamos sobre gênero na literatura produzida por
mulheres indígenas na contemporaneidade (SILVA, 2020; 2021).
A literatura indígena, em seus respectivos formatos e tipos (prosa, poesia, drama, narrativas
orais, etc.), se apresenta como instrumento de resistência frente às violentas práticas de silenciamento
histórico, político e cultural impostas aos povos indígenas nos últimos 520 anos, tal como disserta o
escritor Daniel Munduruku (2014, p. 181):

São aproximadamente uns 40 autores e autoras que lançam livros com alguma
regularidade. Há centenas de “escritores indígenas anônimos”, que mantém
blog, sites, perfis nas redes sociais. Há entidades indígenas preocupadas em
utilizar a escrita como uma arma capaz de reverter situações de conflito,
denunciar abusos internos e externos, mostrando que a literatura – seja ela
entendida como se achar melhor – é, verdadeiramente, um novo instrumental
utilizado pela cultura para atualizar a Memória ancestral.

Neste caso, direcionamos a atenção para a produção de escritoras indígenas. Contudo, não
estamos a desmerecer a vasta e rica escrita literária de homens indígenas. A opção pela investigação da
literatura escrita por mulheres se dá pelo motivo de priorizar a produção que tem menos visibilidade no
circuito literário nacional. De acordo com o estudo Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil2,
um amplo levantamento de dados compilados por Daniel Munduruku, Aline da Silva Franca e Thulio
Dias Gomes, em que se verifica que a existência de 57 escritores e escritoras, sendo, apenas 16 mulheres.
Portanto, dada à baixa quantidade de mulheres indígenas que escrevem literatura na contemporaneidade,
consideramos ser oportuno e relevante focar na produção literária feminina.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Nesta seção, descrevemos uma prática pedagógica de formação inicial e continuada acerca da
literatura indígena segundo a produção de cinco escritoras. Desta forma, consideramos a execução de
uma oficina pedagógica intitulada Não somos Iracema! Tal oficina é parte dos resultados de um projeto
de pesquisa e iniciação científica com o caráter extensionista desenvolvido no âmbito do Instituto
Federal do Pará (IFPA/Campus Abaetetuba).
O mencionado projeto contou com a colaboração de três discentes bolsistas de iniciação
científica, no processo de investigação e análise das diversas materialidades literárias e midiáticas de e
sobre subjetividades indígenas no passado e na atualidade. As análises nos permitiram comparar essas
práticas subjetivas com a desconstrução da representação do sujeito feminino indígena segundo a
idealização romântica proposta por José de Alencar em Iracema (ALENCAR, 1865/1991).

2
Inicialmente, o estudo foi divulgado em 03 de janeiro de 2019, sendo atualizado pela derradeira vez na data de 16 de
dezembro de 2020.
115
Inicialmente, a referida atividade foi direcionada às turmas da mencionada instituição, no
entanto, em segundo momento, direcionamos a algumas escolas públicas da região atendida pela
instituição. E, atualmente, com o quadro de pandemia instalado no país, temos realizado em outras
regiões, neste caso, por meio virtual.
Não somos Iracema! conta com 2h de duração e tem por objetivo destacar as expressividades de
vozes femininas mediante a literatura escrita por mulheres, comparando as distintas vozes indígenas
femininas na literatura brasileira, em oposição à representação da mulher proposta em Iracema, de José
de Alencar. Realizada numa perspectiva dialógica, a oficina apresenta sintéticas orientações da
elaboração da literatura de cordel, pois, ao final da atividade, espera-se que o público-alvo realize a
produção de versos acerca das temáticas abordadas. Para tal atividade, consideramos o processo criativo
das escritoras Márcia Kambeba (2018, 2020) e Auritha Tabajara (2018). Assim, estas são as escritoras
e suas respectivas produções que destacamos durante a oficina em questão: Graça Graúna, Eliane
Potiguara, Márcia Kambeba, Julie Dorrico e Auritha Tabajara.
Graça Graúna: Escritora, crítica literária e professora de Literaturas de Língua Portuguesa e
Cultura Brasileira na Universidade de Pernambuco (UPE). Indígena potiguara, Graúna é natural de São
José do Campestre (RN). Quanto à sua formação, é licenciada, mestra e doutora em Letras e possui
pós-doutorado em Educação e Direitos Humanos. A produção literária dessa escritora perpassa por
poesia, infanto-juvenil, crônica e ensaios da crítica literária. Seus livros de poesias são: Canto mestizo
(1999), Tessituras da terra (2001), Tear da palavra (2007), Flor da mata: poesia indígena (2014). O
público infanto-juvenil pode contar com Criatura de Ñanderu (2010). Lugar e memória (2008) é um
livro de crônicas e, destacamos a obra Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil
(2012) enquanto leitura/referência obrigatória para os estudos e compreensão das dinâmicas que
constituem a literatura indígena na contemporaneidade.
Márcia Wayna Kambeba: de etnia Omágua/Kambeba, do estado do Amazonas, é graduada e
mestra em Geografia e, atualmente, doutoranda em Letras. No mestrado, pesquisou o território e
identidade da sua etnia. Sua poesia é semelhante à literatura de cordel e reverbera a violência contra os
povos indígenas e os conflitos trazidos pela vida na cidade. Destacamos duas obras dessa autora: Ay
kakyri Tama – Eu Moro na Cidade (2018) e O lugar do saber (2020).
Eliane Potiguara: Apesar de sua vasta produção literária como uma das pioneiras da propagação
da literatura indígena no Brasil (desde a década de 1970), para atingir os objetivos da oficina,
destacamos a obra com o maior número de ocorrência de vozes indígenas femininas enquanto resistência
contra a colonialidade: Metade cara, metade máscara (2019).
Da escritora Julie Dorrico, destacamos o livro Eu sou macuxi e outras histórias (2019), uma
potente coletânea de contos sobre descobertas, encontros e mergulho na ancestralidade do rico universo
cultural do povo macuxi. Doutora em Teoria da Literatura, Julie é uma potente voz de disseminação,
divulgação da literatura indígena no país por meio de canais em redes sociais, tais como:
@leiamulheresindigenas no Instagram e Literatura Indígena Contemporânea no Youtube.
Por fim, destacamos o processo criativo de Auritha Tabajara por meio da literatura de cordel no
Brasil, sendo uma voz representativa em defesa e atenção às mulheres originárias por meio do versejar
indígena contemporâneo. Na oficina, consideramos o livro Coração na aldeia, pés no mundo (2018).
Ao longo da narrativa, memórias pessoais da narradora e o imaginário do seu povo se entrecruzam
mediante uma linguagem envolvente e poética.

116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, procuramos evidenciar o quanto a Literatura Indígena pode (e deve) colaborar
com a efetivação da Lei nº 1.645/2008 no âmbito escolar, e, na mesma esteira, ratificamos a produção
literária de mulheres indígenas frente às insígnias impostas implícitas ou subliminarmente pela
colonialidade, ontem e hoje.
Oportunamente, os resultados revelam que há certo grau de desconhecimento da autoria
feminina indígena no âmbito escolar, isso tudo, consequência das sucessivas tentativas de apagamento/
aniquilação dos povos originários desde a invasão, em 1500. Mostramos, portanto, algumas das
estratégias de reação por parte desses sujeitos na contemporaneidade, várias (e vários) intelectuais
indígenas fazendo uso da escrita literária enquanto instrumento de enunciação da ancestralidade e
resistência.

REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. Iracema. [1865]. São Paulo: Ática, 2000.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de
20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil: seção 1, Brasília, DF, ano 145, n. 48, p. 1, 11 mar. 2008. Disponível
em: https://bit.ly/2Hj5tRQ. Acesso em: 07 maio 2021.
CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Trad. Magda
Lopes. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.
DORRICO, Julie. Eu sou macuxi e outras histórias. Nova Lima: Caos & Letras, 2019.
DORRICO, Julie et al. Considerações iniciais. In: DORRICO, Julie; DANNER, Leno Francisco;
CORREIA, Heloisa Helena Siqueira; DANNER, Fernando (org.) Literatura indígena brasileira
contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.
FONSECA, João José Saraiva da.Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UECE, 2002.
GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. 2. ed., Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2013.
KAMBEBA, Márcia Wayna. Ay kakyri Tama – Eu Moro na Cidade. 2. ed., São Paulo: Pólen, 2018.
KAMBEBA, Márcia Wayna. O lugar do saber. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. Disponível em:
http://www.casaleiria.com.br/acervo/olma/olugardosaber/. Acesso em: 07 maio. 2021.
MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade
em política. Cadernos de Letras da UFF - Dossiê: Literatura, língua e identidade, n. 34, 2008, p. 287-
324.
MUNDURUKU, Daniel. Literatura indígena e as novas tecnologias da memória. In: MARTINS,
Maria Sílvia Cintra (org.). Bibliografia das publicações indígenas do Brasil, 2019-2020. Disponível em:
https://bit.ly/2Sx7rDH. Acesso em: 07 maio 2021.

117
MUNDURUKU, Daniel; FRANCA, Aline da Silva; GOMES, Thulio Dias (org.). Ensaios em
interculturalidade literatura, cultura e direitos de indígenas em épocas de globalização. Campinas:
Mercado de Letras, 2014.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. 3. ed. Rio de Janeiro: Grumin Edições, 2019.
SILVA, Jairo da Silva e. Não somos Iracema! Vozes de mulheres indígenas: dos estereótipos à
resistência. Gênero na Amazônia, v. 16-18, p. 105-116, 2020.
SILVA, Jairo da Silva e. Os cordéis de Auritha Tabajara como instrumento pedagógico: versos que
ecoam a luta de mulheres indígenas. Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade - Igarapé,
2021 (no prelo).
TABAJARA, Auritha. Coração na aldeia, pés no mundo. Lorena: Uk'a Editorial, 2018.

118
ERGUER A VOZ, TOMAR A PALAVRA E RECONSTRUIR A SI MESMAS –FEMINISTAS
NEGRAS E SUAS RESISTÊNCIAS

Vanilda Maria de OLIVEIRA1

Que palavras ainda lhes faltam? O que necessitam dizer?


Que tiranias vocês engolem cada dia e tentam torná-las
suas, até asfixiar-se e morrer por elas, sempre em silêncio?
Talvez para algumas de vocês hoje, aqui, eu represento um
de seus medos. Porque sou mulher, porque sou negra,
porque sou lésbica, porque sou eu mesma – uma poeta
guerreira Negra fazendo seu trabalho.
Pergunto: vocês, estão fazendo o seu?
Audre Lorde

INTRODUÇÃO
Esse trabalho consiste num exercício de reconhecer que há uma produção teórico-acadêmica
feminista negra rica e brilhante que nos ajuda a compreender significados e mazelas das relações de
gênero e raça no capitalismo ocidental. Mas, para além dele, existem também coletivos de mulheres
negras periféricas, com pouca escolarização e quase nenhum acesso a recursos financeiros para construir
sua militância feminista negra. Em suas trajetórias, essas mulheres foram narrando suas histórias e
construindo seus espaços de fala, partilhando com outras mulheres negras as possibilidades de uma
(re)existência feminista negra destemida e orgulhosa e se apropriando das ferramentas disponíveis para o
enfrentamento do racismo e sexismo tão arraigados na sociedade brasileira.
Realizei como pesquisa de mestrado em 2005 uma investigação sobre a militância de feministas
negras de Goiânia, Goiás. Um grupo formado por pouco mais de meia dúzia de mulheres, de baixa
renda, pouca escolaridade e poucos recursos. A sede da Ong que criaram ficava em um barracão no lote
do pai da presidente do grupo. Depois de observá-las por meses, resolvi que estava pronta para a
realização das entrevistas e, nestas, foi-me dito que um dos principais obstáculos para essa militância se
consolidar foi lidar com a fala pública. Duas razoes diferentes geravam essa dificuldade: não terem uma
linguagem elaborada como a de outras pessoas que ocupavam espaços na militância ou entre seus
interlocutores no Estado e na sociedade civil e a falta de legitimação do que era dito por parte dos
interlocutores. O conteúdo do que diziam era recorrentemente colocado em dúvida, sobretudo quando
se tratava de racismo. São esses dois temas que quero desenvolver aqui.
Desencorajar e deslegitimar a fala de mulheres negras é parte importante do epistemicídio.
Rebaixamento da autoestima e da confiança intelectual de negros são os subsídios para o epistemicídio
da população negra, como elucidou Carneiro (2005). Diante dele, é preciso um enfrentamento do
racismo e da tentativa de invalidação do pensamento negro e da expressão pública desse pensamento. O

Unemat. E-mail: vanildamo@gmail.com


1

119
racismo que afeta a autoimagem negra funciona de modo a impedir que o negro tome a palavra. Gilda
revelou que tipo de sentimentos e pensamentos lhe vem à cabeça quando precisa falar em público.
As mulheres negras são muito... O povo critica, sabe? Porque a maioria das
negras, nem todas negras sabe direito duas coisas: elas não sabem direito falar,
elas não sabem direito se vestir. Isso tudo provoca os outros falar “Olha lá, ela
além de ser negra, pobre, não sabe escrever, não sabe falar e não sabe vestir”
(Gilda, idosa, aposentada, integrante do grupo feminista negro).
Gilda era a que mais se sentia intimidada com a fala pública, a mais velha do grupo, apenas
alfabetizada, acreditava que vários julgamentos cruéis eram direcionados às mulheres negras quando em
público. Esse era um desconforto para todas do grupo, superado especialmente pela presidente, mas
partilhado por elas. Por isso, trago aqui depoimentos dessas mulheres e reflexões de feministas negras
que superaram obstáculos e se apropriaram da língua falada e escrita, inclusive na academia, para trazer
reflexões que construíram as bases do feminismo negro. Obviamente, pelo tamanho e natureza desse
trabalho, não será um trabalho amplo ou denso, mas focado em reflexões necessárias para que as
mulheres negras “tomassem a palavra”.

OBJETIVOS
a) O objetivo desse trabalho é tratar do exercício da fala publica de feministas negras
populares e como elas tem enfrentado desafios para realizá-lo. Trago depoimentos de
feministas negras goianas a respeito do seu desconforto, das razoes dele e da superação
por parte de algumas delas em nome de sua militância feminista negra.

METODOLOGIA
Os resultados da pesquisa aqui apresentada foram obtidos por meio de pesquisa de campo com
observação participante e realização de entrevistas semiestruturadas. A pesquisa se deu em 2005, mas
seus dados ainda fornecem subsídios para uma discussão atual, reacendida atualmente com publicações
de Audre Lorde, Sueli Carneiro, Grada Kilomba, Patricia Hill Collins, bell hooks e Djamila Ribeiro.
Sobre o papel do diálogo na militância feminista negra. Então, o debate aqui e feito a partir dos
importantes apontamentos feitos pelas feministas negras pesquisadas e do recurso teórico adotado.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Vamos voltar aqui ao que foi dito por Gilda sobre como se sentia em relação ao julgamento da
fala pública da mulher negra. Criar no imaginário de mulheres negras que sua fala pública é inadequada
foi parte importante do projeto colonial, como já destacou Kilomba (2020). Em seu livro Memórias da
Plantação, Kilomba fala da função da máscara do silenciamento, objeto de tortura, feito de ferro, que era
colocado na boca dos negros na escravidão para impedir que o negro falasse e que o branco tivesse que o
ouvir.
Tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou parte do projeto
colonial europeu por mais de trezentos anos. Ela era composta por um pedaço de metal colocado no
interior da boca do sujeito Negro, instalado entre a língua e a mandíbula e fixado por detrás da cabeça
por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra em torno do nariz e da testa. Oficialmente, a
máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/ as comessem cana-
120
de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um
senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar tanto de mudez quanto de tortura. Neste
sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de
conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’:
Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar? (KILOMBA, 2020,
p. 21).
Ainda que hoje a máscara não seja usada, os regimes de silenciamento postos em prática
permanecem, renovados na sua violência, mas ainda legitimando a fala como algo de branco. Quantas
vezes diante de um pronunciamento negro são usadas expressões contemporâneas como “mimimi”, com
o intuito de desqualificar o que é dito. Por isso, falar publicamente para as mulheres negras é um ato de
resistência. Tomar a voz foi um tema discutido por Lélia Gonzáles, para a qual, esse ato é um meio de
se assumir o pretuguês como resistência à dominação linguística. Ao tomar a voz, a negra não apenas
ocupa lugares de poder anteriormente ocupados pelos brancos, mas evidencia a cara de um país cuja
dominação racial nunca teria se completado pois vê na própria língua falada um modo de resistência.
Neste caso, assumir a fala não é sinônimo apenas de tomar a voz ou ocupar lugares de poder
que historicamente foram negados aos negros. Trata-se de uma proposta ainda mais radical:

[...] assumir a fala é assumir nosso modo de falar, assumir nosso pretuguês,
assumir que aquilo que se mostra como mais estrangeiro às instâncias
(psíquicas e sociais) dominantes, na verdade, as constitui inexoravelmente.
Isso implica não em equilibrar a balança, mas em questionar a própria raiz de
seu sistema de medida. É por isso também que não toma a crítica branca do
falar errado da população negra como uma violência em si, mas como a marca
de uma verdade incômoda, a saber, que no Brasil não se fala português, mas
pretuguês (GONZALEZ, 1984, p. 235).

Para bell hooks (2019), ao erguer a voz e falar dos padrões racistas e sexistas que compõem seu
cotidiano, a mulher negra está denunciando o contexto de opressão e dominação em que está inserida.
Nesse sentido, Bia, outra integrante do grupo feminista negro pesquisado, fez um apontamento bastante
pertinente, de que a mulher negra deve falar, pois, ainda que não seja uma mulher com formação
acadêmica, é uma mulher com história.
A mulher negra tem voz, ela sabe fazer fala, ela tem potencial, seja ela quem
for, de que grupo que ela seja. Eu acho importante a gente ressaltar a
participação delas e dar esse momento de falar, porque elas são discriminadas
até nessa questão do falar, porque acham que ela não tem capacidade.
Principalmente por essa questão de ela não ser letrada. Tem que ser letrada. E
eu acho que eles perdem muito nisso porque mesmo a mulher que não tem
curso superior é uma mulher que tem uma história (Bia, estudante
universitária e secretaria do grupo).
Ao contar sua história, as mulheres negras politizam o privado, denunciam as artimanhas do
racismo e do sexismo nas interações rotineiras quando vão à rua, no relacionamento amoroso e no
trabalho, na luta cotidiana. Ao erguer a voz, ela desafia os atos de opressão e vai produzindo
transformações em sua vida em direção à liberdade. É nesse exercício discursivo que a própria narradora
vai descortinando e ajudando a desvendar os mecanismos da opressão (hooks, 2019).

121
Erguer a voz e tomar a palavra têm sido temas repetidamente discutidos entre as feministas
negras. Para Patricia Hill Collins (2019), pode se começar esse processo por espaços considerados
seguros para se falar, como nas famílias extensas, organizações religiosas e comunitárias.
Esses espaços seriam privilegiados até porque é fácil demonstrar neles, entre tantos falantes do
pretuguês, que as ditas inadequações da fala da mulher negra são resultado de uma ideologia dominante
à qual se deve resistir. Esses espaços podem se tornar então locais importantes de resistência à
objetificação da mulher negra como outro.
Mas é preciso lembrar que a comunidade negra é muito extensa e heterogênea. Já há muitas
mulheres negras se expressando nos mais diferentes espaços e das mais diferentes formas, no seu
ativismo acadêmico, artístico ou comunitário, entre outros. O importante é que essas mulheres têm
construído uma rede de relações que as fortalecem e têm construído sua visibilidade e a escuta de suas
vozes. O que acontece quando elas falam? Segundo Patricia Hill Collins, elas ajudam a destruir os
estereótipos que tem sido construídos sobre as mulheres negras e que tem na verdade se consolidado
como imagens de controle.
Collins (2019) mostra que essas imagens são usadas de forma a naturalizar o racismo, o
sexismo, a pobreza e as demais injustiças sociais que perpassam o cotidiano das mulheres negras. São
imagens estereotipadas, que confirmam uma determinada performance de gênero, representam uma
sexualidade dessas mulheres, essencializam preconceitos raciais e sexuais, justificam hierarquias entre
mulheres. Por meio delas, as mulheres negras são apresentadas como agressivas, mal-educadas,
escandalosas, promíscuas, sem educação ou profissionalização, mães dependentes da assistência social, a
empregada que faz parte da família, a mulher forte e batalhadora capaz de superar todas as privações,
para ficar nesses exemplos.
Como enfrentar as imagens de controle? Segundo Collins, pela autodefinição e autoavaliação. É
preciso superar o imaginário da mulher negra como outro, objetificada e vulnerabilizada. Collins explica:
A autodefinição envolve desafiar o processo de validação do pensamento
político que resultou em imagens estereotipadas externamente definidas da
condição feminina afro-americana. Em contrapartida, a autoavaliação enfatiza
o conteúdo específico das autodefinições das mulheres negras, substituindo
imagens externamente definidas com imagens autênticas de mulheres negras
(COLLINS, 2019, p. 107).
Para fazer isso, é preciso usar a voz. Essa parece uma tarefa complexa, mas pode ser enfrentada
de diferentes maneiras. Em diversas atividades públicas das feministas negras pesquisadas, elas se
apresentavam e falavam tanto as mulheres com o pretuguês quanto as mulheres com português
articulado, mas todas muito empoderadas e bem-informadas, convidando as demais mulheres para o
amor-próprio, o orgulho de si mesmas, a autovalorização, a aliança para enfrentar as adversidades da
vida.
Assim, Collins (2016) tem insistido na importância dessa ação das mulheres negras em se
autodefinirem e autoavaliarem porque é preciso construir uma consciência e uma identidade a partir do
próprio ponto de vista e isso é não se permitir ocupar o status de ser o “outro”. É tomar para si a
posição de produtora da sua imagem, definições e desafios. A mulher negra não é o outro do homem,
branco ou negro, nem a outra mulher, que não a branca. Ela fez do seu lugar de subordinação
interseccional um lugar de produção de uma resistência interseccional, desafiando mesmo os sujeitos que
se julgavam atores de contestação.

122
No trabalho pela ressignificação positiva dos corpos das mulheres negras, as integrantes da
organização feminista negra pesquisada demonstram como corpos e identidades estão associados a
determinadas marcas corporais, resultantes de relações sociais específicas, e que seria necessário
apropriar-se de outros sinais, códigos e atitudes a fim de produzir novas referências. Isso é promover
autopercepção. Mas elas faziam esse trabalho com um público que, como muitas delas, não tiveram
acesso à muita escolarização. Como elas fazem isso? Por meio de atividades que parecem simples ou
ingênuas, como fazer oficinas de moda e maquiagem para reafirmar a pele negra com sua beleza e
estética próprias e não como outra e muito menos inferior.
Enquanto maquiam, elogiam suas peles negras, seus lábios volumosos, seus olhos escuros.
Diziam que os brancos costumam falar que preto tem que usar cores mais discretas, mas que as
mulheres negras ficam lindas com maquiagens e roupas coloridas. Nas oficinas de penteados, mostravam
várias possibilidades de tranças, rastafáris, dreads, cachos e volumosos blacks que deixavam as mulheres
lindas em sua negritude, sem ter que imitar cabelo de branco. Em oficinas de vestimentas, divertiam as
convidadas com vestidos com tecidos de temas africanos, estampados e coloridos. Também ensinavam
como usar o turbante. Suas convidadas não saiam com livros, referências bibliográficas ou aprendizado
de novos conceitos elaborados parra traduzir suas vidas, mas saiam mais orgulhosas e até envaidecidas de
seus traços e sua beleza negra e sabedoras de que era possível questionar pretensas verdades que foram
ditas sobres elas. Os eventos se repetiam com certa periodicidade e, assim, ficava possível construir uma
identidade que não fosse mais elaborada a partir da assimilação do discurso do branco e, portanto, da
vergonha e desprezo por si, mas, ao contrário, da resistência orgulhosa de ser si mesmo.
Havia rodas de conversa e palestras para quem esperava sua vez de ser atendida. Nessas rodas,
abordavam como, em decorrência do colonialismo, os sujeitos são classificados e hierarquizados de
acordo com a aparência de seus corpos (especialmente as marcas de raça, gênero e classe).
Argumentavam que as características atribuídas aos corpos em uma cultura diferenciam sujeitos e
funcionam de modo a justificar desigualdades, deixando as mulheres negras mais sujeitas à pobreza,
violência e opressão. E faziam isso com uma linguagem acessível às participantes. E por fim, diziam que
elas precisavam se orgulhar de suas peles negras, de sua beleza negra, cultura negra. Nos cursos, falavam
também da possibilidade de unir essa valorização da negritude com geração de renda, fazendo
maquiagem e tranças.
Enfim, seja organização não governamentais, na academia ou em comunidades periféricas, as
feministas negras estão construindo seus espaços de fala, explicitando os objetivos do feminismo negro
de enfrentamento interseccional do racismo e sexismo. Fazendo isso, estabelecem diálogos com a
sociedade estabelecendo seus lugares de fala, como resistência e também denúncia de que o pensamento
e a voz criados como legítimos pela colonização é branco, eurocristão e patriarcal. Essa resistência se dá
com a consolidação de suas perspectivas posicionadas como feministas antirracistas, reconhecendo seus
valores e saberes (RIBEIRO, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acredito que essas mulheres pesquisadas representavam uma parte importante das feministas
negras que tanto contribuem para a luta antirracista e antipatriarcal no mundo, impondo-se, resistindo e
lutando, apesar de não serem detentoras de privilegiados recursos econômicos e acadêmicos.
Assumindo seu lugar de fala, partindo da sua autodefinição, autovalorização e saberes, elas
ergueram as vozes, construíram suas militâncias e contribuíram para que outras mulheres negras também
pudessem se enxergar para além da imagem criada pelo colonizador. Assim, as feministas negras vão
123
rompendo com as armadilhas do silenciamento e epistemicídio e construindo sua própria trajetória para
além do lugar designado pela sociedade racista.

REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Tese (doutorado)
em Educação. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.
COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do
empoderamento. Boitempo Editorial, 2019.
______________. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento
feminista negro. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-127, abril de 2016. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69922016000100099&lng=en&nrm=iso .Acessoem 20 maio de
2020. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006.
GONZALEZ, Lélia. “A importância da organização da mulher negra no processo de transformação
social”. Raça e Classe, Brasília, ano 2, n. 5, p. 2, nov./dez. 1988.
_____________ Raça e Gênero. In: BRUSCHINI, C. & UNBEHAUM, S. (org.) Gênero, democracia
e sociedade brasileira, p. 167-194, Editora 34, São Paulo, 2002.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2019.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2020.
LORDE, Audre. A transformação do silêncio em linguagem e ação. Associação de Línguas Modernas,
painel Lésbicas e literatura, 1977.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

124
“MENSTRUAÇÃO PARECE MALDIÇÃO”:REFLEXÕES SOBRE A COLONIZAÇÃO DE
CORPOS E SABERES

Caroline Luiza WILLIG 1

INTRODUÇÃO
A concepção de que o sangue menstrual é uma doença ou maldição que acomete as pessoas com
útero é o centro desta discussão, um recorte de minha pesquisa de mestrado, que busca elucidar a
respeito desta noção cerzida por ideologias colonialistas e religiosas de cunho misógino. A pesquisa se
construiu por meio de revisão bibliográfica, seguida de bricolagem, cujos materiais foram apurados com
inspiração no método de análise de conteúdo. Amostra dos referenciais teóricos e do corpus midiático
foram apresentadas para um grupo focal de professores de uma escola pública de Novo Hamburgo/RS.
Esta trajetória resultou em uma análise que conectou e se propôs a desmistificar estigmas que envolvem
a menstruação, entre eles o da doença e maldição.

Reflexões interseccionais sobre pobreza e menstruação no brasil


Reverenciada como sinônimo de abundância, fertilidade e saúde por civilizações da já na era
paleolítica, a menstruação, para um quarto das adolescentes brasileiras, é sinônimo de pobreza,
isolamento e, também, de doença. No cenário da América Latina, tal inversão de valores, que se deu
através da colonização imperialista e patriarcal, em cerca de 500 anos, tornando-se ainda mais voraz
com o avanço capitalista, genocidando povos inteiros, com corpos e saberes lançados à fogueira. Embora
haja (r)existências que lutem pela imortalidade de seus conhecimentos ancestrais, há desdobramentos
que seguem oprimindo corpos e seus saberes, a exemplo da menstruação em cenário de pobreza. Tal
relação é tão severa, que coloca especialmente as mulheres racializadas, periféricas e menores de idade,
no cerne da falta de dignidade menstrual, resultando em cerca de 25% de adolescentes entre 12 e 17
anos que não têm itens de higiene ou informações para lidarem com o período de forma digna, segundo
pesquisa de 2018 da Sempre Livre, que caracteriza a situação como “pobreza menstrual”.
A noção interseccional de gênero, raça e classe é fundamental para compreender as relações de
poder que colocaram a menstruação no lugar onde ela está hoje: encoberta atrás de contraceptivos que
além de prevenirem a gravidez, são usados especialmente na para medicalizar a natureza das pessoas com
útero, “regulando” o ciclo menstrual que na puberdade é variável; suavizada através do sangue azul que
insiste em protagonizar nas propagandas de absorvente, acompanhado das justas e brancas roupas na
realidade são evitadas por pessoas menstruadas pelo risco de a menstruação vazar para a esfera pública.
Silenciada dentro das residências, a menstruação só importa a (r)existências que têm seus
direitos humanos negados quando não têm alternativa frente ao isolamento forçado por falta de
absorventes, ou falta de conhecimento após anos de expropriação de seus saberes, e ausência saneamento
básico para a higiene em suas casas e também escolas, tornando os tradicionais “paninhos” uma porta
para doenças ginecológicas e fazendo do absorvente descartável uma das únicas formas de trazer
liberdade de ir e vir para quem menstrua, atuando a curto prazo como solucionador de problemas, que
se reflete em outros com a estimativa de cerca de 150 kg de absorventes que não podem ser reciclados e

Universidade Feevale. E-mail: carol.willig@gmail.com


1

125
têm por destino aterros sanitários, que mais uma vez, retornam aos territórios subalternizados, onde
residem as existências mais vulnerabilizadas pela pobreza menstrual.
O entrecruzamento de opressões ocasiona fronteiras, cujos corpos que lá habitam são
negligenciados e silenciados, impedidos de seu direito básico, que é o acesso à educação, “amaldiçoados”
por sua condição de sangrar todos os meses. O acesso à educação, por sua vez, não é negado apenas
quando há falta de absorventes para ir à escola. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar
(PENSE), censo realizado pelo IBGE em 2015, 1,5 milhão de brasileiros que menstruam vivem sem
banheiro. No cenário escolar os índices demonstram que cerca de 213 mil estudantes frequentam
escolas sem banheiro em condições de uso para trocarem o absorvente. Deste último percentual, a
pesquisa aponta que 65% são pessoas negras.

CAMINHOS METODOLÓGICOS
A pesquisa se deu em etapas, sendo a primeira delas a busca por referenciais teóricos que deram
o tom das problematizações, seguida da busca por referenciais midiáticos cuja temática fosse a
menstruação em seu âmbito cultural, me utilizando da metodologia de bricolagem proposta por Neira e
Lippi (2012). Posteriormente, me inspirei na metodologia de criação de categorias de conteúdo
propostos por Bardin (2011). Amostras das categorias localizadas, bem como recortes do aporte teórico
foram apresentados a professores e professoras das séries finais da Escola Municipal de Ensino
Fundamental Adolfina Diefenthäler, localizada em Novo Hamburgo/RS. Esta trajetória de diálogos e
problematizações rendeu uma análise que elucidou sobre sete estigmas envolvendo a menstruação, entre
eles o da doença e maldição, ao qual este trabalho se atém.

COLONIZAÇÃO, CRISTIANIZAÇÃO E O PECADO ORIGINAL


A realidade que se constitui diante da sociedade brasileira, demonstrando índices que vinculam
a pobreza à menstruação é fruto de meio século de colonização de corpos, saberes e territórios. Tal
cenário pode ser demonstrado a partir da análise da categoria 5, Doença ou Maldição, que foi localizada
38 vezes no corpus midiático da pesquisa. Nas transcrições da sensibilização com os professores da
Escola Municipal de Ensino Fundamental Adolfina Diefenthaler, termos, expressões e ditados populares
que remetem aos estigmas da doença ou maldição foram detectados 109 vezes, entre eles “remédio”,
“doença”, “bruxa”, “pecado”, “maldição”, “não pode molhar os pés”, “não pode sair de casa”, entre
outros.
Os participantes da sensibilização detectaram por eles mesmos a presença do estigma da doença
ao assistirem ao documentário Absorvendo o Tabu. A compreensão de que a menstruação é uma
doença, mais especificamente uma doença de mulher, é um estigma que unifica as visões material e
espiritual de que a pessoa com útero é inferior. Segundo os estudos de Federici (2017), a concepção de
que o corpo da pessoa do sexo feminino é malformado, em comparação ao do sexo masculino, mais
forte e inteligente, e que só serve para ser o meio de transporte para os herdeiros da acumulação
primitiva ou mão de obra escravizada. A segunda, amplamente disseminada pela igreja católica com a
caça às bruxas, de que a pessoa do sexo feminino é impura, pecaminosa e a menstruação, como uma
disfunção corpórea, é o sinal de que aquele corpo serve ao demônio.

126
Figura 1 - Meme A origem da menstruação

Fonte: Pinterest

A figura acima, retirada de um meme que circulou amplamente na internet, revela a íntima
relação do tabu da menstruação com uma maldição divina imposta às mulheres por serem pecaminosas.
Ela rememora o pecado original cometido por Eva, ato que expulsou ela e Adão do paraíso – comer o
fruto proibido e ser levada pelos instintos, representados pela cobra, animal que segundo Bolen (1990) é
um símbolo associado ao sagrado feminino. Tal mito, segundo Federici (2017), evidencia a ascensão da
Igreja Católica e do patriarcado sobre a antiga religião, o paganismo, tradicionalmente matrifocal. Em
sua condição de bruxa, a mulher foi “perseguida como a encarnação do ‘lado selvagem’ da natureza, de
tudo aquilo que na natureza parecia desordenado, incontrolável e, portanto, antagônico ao projeto
assumido pela nova ciência” (FEDERICI, 2017, p. 366).
Além de se referir aos analgésicos, o termo “remédio” foi também utilizado como sinônimo da
pílula anticoncepcional, como se servisse para curar a menstruação ou seus sintomas. Tanto que nas
farmácias do Sistema Único de Saúde (SUS), ele é distribuído gratuitamente mediante receita médica,
mesmo para pessoas menores de idade, acompanhando o plano de saúde sexual e controle de natalidade,
especialmente de gravidez na adolescência.
Entretanto, estas mesmas pessoas com útero menores de idade com acesso ao anticoncepcional e
à camisinha, mesmo em situação de vulnerabilidade social ou aquelas que já são assistidas por programas
do governo, não recebem o absorvente gratuitamente, nem mesmo na cesta básica ele consta como um
item essencial. Os professores e professoras mencionaram que na escola há a disponibilização de
absorventes, mas que tal iniciativa partiu do próprio grupo docente, não se tratando de uma política
pública.
Com isso, se faz importante questionar se a educação menstrual não deve ser um assunto
explorado dentro das propostas de educação sexual. Com políticas públicas de saúde e educação que
tenham consciência de classe e sejam voltadas para pessoas com útero para além da possibilidade de
gravidez ou doenças sexualmente transmissíveis. Afinal, o período menstrual também faz parte da vida e
precisa ser incluído nas discussões escolares, já que há uma negação do período menstrual e seu
funcionamento no currículo escolar obrigatório da educação básica – séries finais e iniciais.

127
O período menstrual visto como doença é algo instituído na crendice popular e esse tabu vira
uma questão estrutural na sociedade brasileira quando se percebe a ausência de políticas públicas de
educação básica e também de auxílio a pessoas em situação de vulnerabilidade social – que não têm
acesso à água tratada, moradia, esgoto tratado, alimentação, entre outros insumos para uma
sobrevivência com dignidade.
A respeito do isolamento causado por conta da visão de que a menstruação é originária de uma
doença de mulher ou de uma maldição imposta às mulheres como se fosse uma dívida a pagar por ela
ser pecaminosa, trago o conceito de cercamento utilizado por Federici (2017). Trata-se de uma forma
de expropriar os sujeitos da riqueza coletiva, dos bens materiais e imateriais, passando de terras a o
poderio sobre o próprio corpo (escravidão) ou (des)conhecimento sobre ele e seus ciclos, como o caso
da menstruação.
Na América Latina, a caça às bruxas se deu como uma estratégia de cercamento, utilizada pelas
autoridades para “propagar o terror, destruir resistências coletivas, silenciar comunidades inteiras e
instigar o conflito entre os seus membros” (Federici, 2017, p. 382). Em terras ameríndias, a caça às
bruxas “foi, sobretudo, um meio de desumanização e, como tal, uma forma paradigmática de repressão
que servia para justificar a escravidão e o genocídio” (FEDERICI, 2017, p. 392).
Existem pesquisas como a de Federici (2017) que observam o impacto que a obra Malleus
Malleficarum exerce até hoje sobre o imaginário coletivo. Na obra, conforme Federici destaca, havia
referências às mulheres amaldiçoadas e tocadas pelo diabo, com luxúria insaciável, que “eram lindas de
se ver, mas contaminavam ao serem tocadas”. É possível perceber resquícios dessa lógica do contágio
com o meme a seguir, publicado no Instagram da marca de coletores menstruais Violetacup:

Figura 2 - Meme da Violeta Cup

Fonte: Instagram @violetacup

Trata-se de uma ironia por parte da marca de coletores menstruais, que sugere implicitamente
que se deve manter mais distância de quem acha que menstruar é nojento, do que o distanciamento
seguro sugerido para evitar o contágio pelo Covid-19. A imagem revela um preconceito da sociedade
diante da menstruação e contextualiza com o cenário de uma pandemia mundial.
Como o próprio exemplo de meme apresentado, o novo Covid-19 afetou esta pesquisa de
diversas formas. Tanto através do corpus midiático de pesquisa, quanto na mudança de planos de optar
128
por realizar encontros com professores e professoras e não com estudantes. Tal atitude teve de ser
tomada em função da impossibilidade de realizar uma sensibilização com os adolescentes, já que as aulas
de todas as escolas públicas do Brasil foram suspensas em função da desigualdade social, por nem todos
os alunos terem acesso ao computador e à internet em casa, passando a viabilizar a pesquisa através de
encontros com os professores e professoras da escola.
Outro fator que ficou evidente através das pesquisas e também relatos dos professores, foi o
impacto social da pandemia, ampliando a desigualdade em grande escala – com todas as intersecções. A
exemplo disso está a pesquisa Mercado de Trabalho e Pandemia da Covid-19: Ampliação de
Desigualdades já Existentes?atualizada em setembro de 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) e publicada pelo Portal G1, que evidencia o fato de que “Com creches fechadas na
pandemia, participação de mulheres no mercado de trabalho é a menor desde 1990”.
Este é um demonstrativo do quão frágil é a estada da mulher no mercado de trabalho e também
na esfera pública, pois quando há uma estrutura de família nuclear, a mulher com sua dupla jornada de
trabalhadora e doméstica, é quem deve abdicar do emprego para cuidar das crianças, considerando a
situação das aulas suspensas. Mas, esta é apenas uma faceta dessa espécie de “pandemônio” que a
pandemia alimentou, já que aqui neste capítulo me atenho a analisar a categoria de doença ou maldição.
Tal desigualdade se reflete também ampliando a vulnerabilidade social das pessoas que
menstruam, considerando que o tabu da menstruação se soma às demais opressões, as pessoas em
especial menores de idade e periféricas, se encontram em uma situação de ainda mais vulnerabilidade,
aumentando os índices de pobreza menstrual no Brasil.

“VOCÊ VAI PAGAR COM SANGUE”


Pontos distantes foram alinhavados para se perceber a menstruação culturalmente tratada como
uma doença de mulher, como se fosse um castigo divino por sua alma pecaminosa. Em contraponto a
esta visão presente no imaginário coletivo, como doença ela é estruturalmente negada pelo sistema, vista
a recomendação de contraceptivos para “regrar” a menstruação e controlar a natalidade, e a não
existência de políticas públicas nacionais ou mesmo estaduais e municipais, como o caso de Novo
Hamburgo/RS, cidade em que a escola Adolfina se localiza, para distribuição gratuita de absorventes.
Se faz importante, entretanto, refletir sobre a relevância de iniciativas educativas além de insumos para
higiene, a fim de combater também a pobreza de conhecimento, reflexo colonial.

REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 2003.
NEIRA, Marcos Garcia; LIPPI, Bruno Gonçalves. Tecendo a colcha de retalhos: a bricolagem como
alternativa para a pesquisa educacional. Revista Educação &Realidade, vol.37, n.2, pp.607-625, 2012.
Disponível em:<https://doi.org/10.1590/S2175-62362012000200015>.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante,
2017.

129
SEMEANDO RESISTÊNCIA: A MÍSTICA NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO
MOVIMENTO DE MULHERES PELA TERRA

Eliene TEIXEIRA1
Carina RIBEIRO2

"[...] há muito o que se aprender (e refletir) com essas


mulheres negras que, do abismo do seu anonimato, têm
dado provas eloquentes de sabedoria"
Lélia Gonzalez.

INTRODUÇÃO
“Carta à mulher ao norte que teima ser mesmo sem espaço.
Que insiste ocupar lugar que dizem ser um vazio demográfico:
A mãe não foi apoiada
A vó também não
As tias tampouco
Acostumadas com a falta de apoio
Criou resistências às desistências
Embora acabrunhada
Criou uma linha no chão só de ida
E prometeu
Não parar a cada falta.

Pois o que carrega


Não tem nome nem forma
É difícil de conter
Porque nasce com ela
A cada dia que com coragem
Ela se levanta e anda.

Se levanta e anda.
Só de ida
Anda e se levanta.
Eu sei, tem sido muito difícil.
Com ou sem a falta.
Se anda e se levanta.”
Marcela Inajá.

1
E-mail: elieneteixeira34@yahoo.com.br
2
E-mail: carina.tavares@yahoo.com.br
130
Apesar das muitas experiencias pedagógicas desenvolvidas a partir dos movimentos sociais, as
teorias pedagógicas clássicas costumam ignorá-los como espaços legítimos de formação, invalidando os
processos de aprendizagem que se dão pelas práticas coletivas de luta e organização. Desse modo,
seguindo uma perspectiva freiriana de educação e considerando o papel pedagógico desses espaços,
vistos como lugares autênticos de produção de saberes e conhecimentos, busca-se, nesta pesquisa,
explicitar as contribuições que trazem os movimentos sociais para a prática educativa, dentro de suas
linguagens e valores próprios.
Nesse viés, partindo das experiências com o movimento de mulheres do acampamento Terra
Cabana (MST), localizado no município de Benevides-Pará, este trabalho pretende refletir sobre o papel
da mística no processo educativo da educação popular, pelo seu caráter formador e mobilizador.
Atentando para o sentido e significado da mística enquanto forma de conhecimento, resistência, prática
social/coletiva e como linguagem educativa na construção de um projeto político, social e educativo,
integrado a vida da comunidade e das suas relações com o território.

OBJETIVOS
O programa de reforma agrária do MST (Movimento Social de Trabalhadoras e Trabalhadores
sem Terra) busca mudanças estruturais na forma do acesso e uso da terra e de seus recursos para
produção da vida, que pertencem por direito a toda sociedade, na organização da produção e das
relações sociais. A luta do movimento se organiza sobre algumas estruturas organizacionais de base,
sendo dentre elas, na forma dos acampamentos. Acampamento como define Vieitez e Dal Ri (2004):

O acampamento é a forma primária de organização e luta no MST, pois ele


ou prepara a ocupação de terra ou é organizado imediatamente após esta. O
acampamento organiza as famílias, tendo em vista a realização de atos,
especialmente a ocupação, que conduzam à conquista da terra. Nesse sentido,
o acampamento é uma instância de luta (p.46).

O acampamento Terra Cabana, localizado no município de Benevides-Pará, inaugurado na


manhã do dia 26 de junho de 2015, completa 6 anos de resistência. No que tange ao coletivo, no total
são 58 famílias no território de ocupação, organizadas em três 03 núcleos. Cada núcleo possui dois
coordenadores que se reúnem com as famílias para discutir os problemas do território, soluções e
encaminhamentos e colocarem as demandas de saúde, produção, segurança, educação, conflitos etc.
Dentro dessa organização, foram identificadas, majoritariamente, mulheres negras chefes de família que
trouxeram à tona demandas de seus cotidianos de luta, juntamente com a urgência da organização entre
elas. Assim, após várias reuniões, culminando no evento do I encontro de mulheres acampadas do MST
do acampamento Terra Cabana, se consolidou o Movimento de Mulheres Cabanas que segue tecendo
em solidariedade seus caminhos de resistência.
Ao tratar da mística como linguagem educativa, nos encontros e práticas coletivas do
Movimento de Mulheres Cabanas do acampamento Terra Cabana, se pretende mostrar que a educação
popular envolve modelos e linguagens pedagógicas próprias, que serão analisadas no cotidiano e na
trajetória das mulheres da ocupação, de forma a registrar os modos pelos quais essas mulheres, em suas
narrativas, percebem suas relações e suas condições perante o conflito social da conquista da terra,
dentro de um processo educativo-formativo, tendo a mística como práxis humana desse processo.

131
Assim, a investigação terá de responder a seguinte questão: como a inserção dos rituais da mística é
utilizado na luta política da conquista definitiva da terra em uma região de grande especulação
imobiliária, combinada com engajamento das mulheres atravessadas pelo cotidiano de conflitos no
território que ocupam, com as ameaças de despejos e a crise sanitária e alimentar?
Nesse sentido, nesta pesquisa tem-se o conceito de educação como um processo muito além do
reprodutivo, que se reduz a criação de capital humano, pois como explica Paulo Freire, na perspectiva da
educação popular, “[...] formar é muito mais do que puramente treinar o educando no desempenho de
destrezas” (FREIRE, 2001, p.15). Mas, outrossim, formá-lo no sentido ético, humano, político e
social, para que, despertado o pensamento crítico, ele seja capaz de pensar autonomamente sua realidade
e agir para além dos seus condicionamentos estruturais.
Desse modo, a formação proposta pela pedagogia popular está inevitavelmente ligada a
transformação da realidade, na busca pela criação básica das condições de reprodução e produção da
vida. Ou seja, na educação popular desenvolvida pelos movimentos sociais “a formação humana é
inseparável da produção mais básica da existência, do trabalho, das lutas por condições materiais de
moradia, saúde, terra, transporte, por tempos e espaços de cuidado, de alimentação, de segurança”
(ARROYO, pág.31).
Portanto, dentro dessa perspectiva pedagógica, nosso objetivo está em avaliar como os rituais de
mística propostos pela organização do Acampamento Terra Cabana do MST, revelam processos
educativos referentes à luta, conquista e afirmação política da terra. Identificando, primordialmente, o
lugar das mulheres na criação e reprodução da vida na comunidade que ali se forma.

METODOLOGIA
Neste trabalho a pesquisa qualitativa se apresenta como a mais apropriada para os fins
investigativos almejados, tendo em vista a variedade de abordagens e métodos e seu caráter não-
padronizado. Desse modo, registrar-se-á, por entrevistas semiestruturadas a compreensão dos rituais da
mística como processo educativo para as/os acampadas/acampados, priorizando a narrativa dos sujeitos
envolvidos na luta pela afirmação do território e da relação de valorização das histórias dos mártires
dessa luta, invocados pelos rituais da mística e de como se percebem inseridos nesse contexto. A
pesquisa também contará com a observação participante nos processos de ocupação do acampamento,
de modo a atentar para como a mística é usada nos trabalhos de base.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Assim como “a relação com a terra funda-se em princípios comunitários, na coletividade e na
invenção da vida” (RAMOS, 2020, p.233) a educação popular é um trabalho coletivo, construído e
pensado por todas/todos e para todas/todos, respeitando e cultivando, como nos ensinou Paulo Freire,
a autonomia do educando, sabendo-o capaz de criar conhecimentos através dos saberes que traz da sua
experiência e daqueles que o antecederam. A mística então, como o lugar em que “todos são
coparticipantes”, tal qual explica Walter Malter, parte dos mesmos princípios e permite que esses
saberes sejam acessados através das histórias contadas e recriadas coletivamente, dentro de uma relação
pedagógica produzida pela reencarnação dos legados históricos de luta.
A mística, como preconizou Fernando Bernardo Mançano, em o “Pequeno vocabulário da luta
pela terra”, é “também uma forma de linguagem dos iletrados que constroem suas expressões, se

132
comunicam e se interagem na construção da consciência da luta pela terra”. Desse modo, dentro de um
universo de sujeitos oriundos das massas populares, que em sua maioria foram privados de direitos
fundamentais, dentre eles o direito do acesso à educação formal, perante suas condições de pobreza
material e exploração laboral, a mística se apresenta como a estratégia e exercício da pedagogia popular
por excelência. Pois como explicou Paulo Freire os signos apreendidos nos processos de alfabetização
precisam fazer sentido ao contexto simbólico dos educandos, partindo de sua realidade. Nessa função
tal como ainda discorre Walter (2008): “Sociologicamente mística pode ser compreendida como ação
coletiva expressiva, cuja importância tem por suposto a capacidade de comunicar valores, fundamentos
ideológicos, propósitos políticos de um movimento social e, ao evocar referências simbólicas sagradas”
(p.08).
Nesse viés, Lélia Gonzalez, já nos anos 80 chamava atenção para a necessidade das mulheres
negras em se organizarem entre si, tendo como referência suas culturas ancestrais, revivificadas pelos
rituais da mística, na luta contra o sexismo, o machismo e o capitalismo, que não podem serem feitas, ao
contrário do que pregava o feminismo branco, apartado de seus companheiros homens de luta.
Portanto, falar sobre um projeto político pedagógico em construção, atrelado a luta pela terra e da
autonomia das mulheres e de suas comunidades deve ter como referência a história daquelas que,
contrariando o discurso colonial, nunca se permitiram submissas aos processos de opressão que sofreram
e sempre estiveram como protagonistas de suas lutas.
Portanto, a mística se apresenta como uma forma de produzir conhecimento para além da
racionalidade moderna/ colonial tida como instrumento e linguagem pedagógica para o entendimento,
expressão e reflexão sobre as violências que incidiam em suas vidas e dos processos de resistência de suas
comunidades, no reconhecimento e valorização de suas histórias. Pois a função do ritual da mística
revelou a função também de contar e recriar motivações que possibilitam melhor entendimento na
formação educacional/política com a missão da conscientização das/dos trabalhadoras/trabalhadores
acampados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiências de mulheres organizadas, principalmente negras e de camadas populares, são
germinadoras de um projeto de transformação social que abarca e move também toda suas comunidades.
Pois a práxis desse movimento está fundada na coletividade, na solidariedade e na relação respeitosa com
a terra. Os espaços de luta protagonizados por elas, trazem consigo valores e histórias de resistência
ancestrais, revivificados nos passos e caminhos de suas ações, na superação de um sistema histórico de
opressão.
A mística nesse contexto, como “ação cultural de conscientização” reconstrói a memória viva
daquelas e daqueles que tombaram na luta pela liberdade e dignidade de seu povo e são o nutriente de
fortalecimento para as lutas presentes e vindouras. A educação popular, então, como uma forma de
apreensão do mundo e do nosso lugar nele e como um projeto de transformação, não pode prescindir
em reconhecer os saberes e conhecimentos produzidos pelos movimentos coletivos, e o valores políticos
e sociais trazidos por ele.

“Juntemonos y sigamos con esperanza defendiendo y cuidando la sangre de la


tierra y los espíritos!” (Berta Cáceres).

133
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel G. Pedagogia em Movimento: o que temos a aprender dos Movimentos Sociais?
Currículo sem Fronteiras, v.3, n.1, pp. 28-49, Jan/Jun. 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São Paulo: Paz e
Terra, 2004.
GONZALEZ, Lélia. A importância da organização da mulher negra no processo de transformação
social. In: Lélia Gonzalez: primavera para as rosas negras. São Paulo: UCPA Editora, 2018.
MARSCHNER, Walter. A mística da terra e a educação popular. IX Congreso Argentino de
Antropología Social. Facultad de Humanidades y Ciencias Sociales - Universidad Nacional de
Misiones, Posadas, 2008.
RAMOS, Márcia M. Educação popular: instrumento de formação, luta e resistência no projeto
educativo do MST Fractal: Revista de Psicologia, v. 32, n. esp., p. 233-238, jun. 2020.

134
LABUTAS DE MULHERES IDOSAS PARA ACESSAR À ÁGUA EM BREVES MARAJÓ-PA:
TRAJETÓRIAS PERMEADAS POR DIFICULDADES

Elizandra Gomes de LIMA1

INTRODUÇÃO
A água é um recurso intrínseco à manutenção e reprodução da vida, sua disponibilidade e
potabilidade são essenciais para garantir a saúde individual e coletiva. É um direito humano, possui
aparatos jurídicos que asseguram sua importância para condições mínimas de sobrevivência, contudo, a
política de saneamento básico enfrenta diversos entraves para se efetivar em regiões como a cidade de
Breves, situada no Arquipélago do Marajó, no Pará.
Este trabalho contém a revisão bibliográfica e documental sobre a importância do acesso à água
e da política pública de saneamento básico, bem como relata as dificuldades enfrentadas por mulheres
idosas residentes na área urbana do município para acessar à água e torná-la potável, com o intuito de
viabilizar reflexões sobre a situação enfrentada ao longo da trajetória das participantes da pesquisa de
campo, na busca por fomentar o debate e contribuir no diálogo em prol de melhores condições de vida
para a população marajoara.

OBJETIVOS
a) Este texto objetiva proporcionar a reflexão acerca das demandas identificadas na
trajetória das mulheres idosas pertencentes a área urbana do município de Breves-PA,
ocasionadas pela ineficiência/inexistência da política de saneamento básico, com
enfoque no acesso à água. Além de expor os entraves coletivos notados nos relatos;
identificando os prejuízos existentes na vida das mulheres idosas marajoaras na labuta
por água potável.

METODOLOGIA
Utilizou-se a pesquisa bibliográfica em autores como: Lima (2020) e Rocha (2017);
documental: Mulheres & Saneamento (TRATA BRASIL, [s.d.]), Observatório do Marajó (2020),
Brasil (2007); e de campo: os dados foram coletados ao longo do desenvolvimento do projeto de
pesquisa na modalidade PIBIC/PRODOUTOR intitulado A luta pelo acesso à água em Breves
Marajó-PA: um estudo pautado na história de mulheres idosas e suas narrativas, coordenado pela
professora Dra. Ana Maria Smith Santos, proposto e aceito pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-
Graduação-PROPESP UFPA, com vigência de 08/2019 a 07/2020.
O projeto teve versão prorrogada nomeado Problemas de Acesso à Água em Breves Marajó-PA:
um estudo pautado nas narrativas de mulheres idosas em tempos de COVID-19, sob mesma
coordenação, ambos possuem como bolsista a discente Elizandra Gomes de Lima, com vigência de

1
Graduada em Letras: com habilitação em Língua Portuguesa (UNOPAR), discente e bolsista da Faculdade de Serviço
Social na Universidade Federal do Pará Campus Universitário do Marajó-Breves (FACSS/UFPA/CUMB). E-mail:
lillydelima.ldl@gmail.com
135
08/2020 a 07/2021, porém, as atividades estão ocorrendo remotas devido ao isolamento social
recomendado pela Organização Mundial da Saúde-OMS.
Optou-se nas pesquisas em campo pelo uso da História Oral e da observação para captar todas
as informações oportunizadas pelas participantes, pois além de ser um método atrelado a pesquisa
qualitativa2, propõe aos sujeitos da pesquisa explicitar suas vivências, possibilitando-os opinar sobre a
sua realidade, conforme relata Felipe e Alves (2016).

[...] a história oral busca dar voz aos pequenos eventos do cotidiano, que
fazem parte de nossas vidas, dá ouvidos aos silenciados, mostrando o quanto
também são sujeitos da história. Assim, uma das características dessa
metodologia está no fato de que ela pode apresentar uma riqueza de detalhes
que, muitas vezes, não são encontrados nos documentos (FELIPE; ALVES,
2016, p. 3).

O contato com as idosas e o conhecimento de seus relatos via história oral oportuniza a
pesquisa ir além de autores e documentos, mas alcançar a parte da história que foi silenciada, as
estratégias de resistência cotidiana somente conhecidas por quem vivenciou, junto ao enfoque
qualitativo, pois “[...] a abordagem qualitativa aprofunda-se no mundo dos significados, das ações e
relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas”, contudo,
dados qualitativos e quantitativos não se opõem, mas se complementam (MINAYO, 1994, p. 22).

RESULTADOS
A água é um bem essencial para a vida em geral, é um recurso utilizado para satisfazer desde as
necessidades biológicas até as sociais como higienização dos ambientes, alimentos e demais serviços
domésticos. Entretanto, apesar da Organização das Nações Unidas-ONU considerá-la um direito
humano desde 20103, boa parte da população brasileira possui dificuldades no acesso, apesar do serviço
ser responsabilidade do Estado e deveria ser efetivado através da política pública de saneamento básico.
Essa política possui regulamentação jurídica vigente, uma delas é a Lei 11.445 de 5 de janeiro
de 2007, que dispõe sobre a política federal de saneamento básico, a qual conceitua o termo conforme o
Art. 3º, inciso I, o saneamento básico é o conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações
operacionais de abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de
resíduos sólidos; drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Embora seja composta por várias ações,
este texto terá como recorte o acesso à água, garantido por lei e “[...] constituído pelas atividades e pela
disponibilização e manutenção de infraestruturas e instalações operacionais necessárias ao abastecimento
público de água potável, desde a captação até as ligações prediais e seus instrumentos de medição”
(BRASIL, 2007).
Apesar dos avanços no debate e na criação de leis, planos e projetos que fomentaram a discussão
sobre esta política pública, a maioria das regras ainda não saiu do papel, e isso tem gerado impactos
negativos na vida de milhões de pessoas, principalmente as mulheres, pois em vários lares ainda é

2
Visa a qualidade das informações e não a quantidade de entrevistados.
3
“Em 28 de Julho de 2010 a Assembleia Geral das Nações Unidas através da Resolução A/RES/64/292 declarou a água
limpa e segura e o saneamento um direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os outros direitos
humanos” (UNW-DPAC, 2005-2015).
136
comum atribuir a responsabilidade dos afazeres domésticos a esse grupo social, lhes impondo
indiretamente o contato primário com a água.
Pesquisas divulgadas pelo Instituto Trata Brasil em seu documento Mulheres & Saneamento
relatam acerca desses impactos na vida da mulher brasileira, e salientam que “Devido ao papel
desempenhado pela mulher nas atividades domésticas e nos cuidados com pessoas, a falta de água afeta
de maneira mais intensa a vida das mulheres do que a dos homens [...] ”, pois de acordo com um
relatório das Nações Unidas (2016), as mulheres exercem trabalhos não remunerados três vezes mais e
adoecem pela inadequação do acesso à água, ao esgotamento sanitário e à higiene (TRATA BRASIL,
[s.d.], p. 2). “A falta de saneamento tem implicações imediatas sobre a saúde e a qualidade de vida [...],
principalmente a das mulheres mais novas e a das mais velhas, pois aumenta a incidência de infecções
gastrointestinais” (Ibidem, p. 25).
As doenças e demais problemas afligem as mulheres de todas as idades, todavia, o dado mais
chocante está na incidência de óbitos ocorrer com frequência na população idosa, conforme notado na
pesquisa mencionada pelo mesmo documento.
A taxa de mortalidade em razão de doenças gastrointestinais infecciosas foi maior entre as
mulheres do que entre os homens. [...] considerando as faixas etárias, a maior proporção de mortes
ocorreu na população feminina com mais de 60 anos de idade: 12,9 pessoas a cada 100 mil mulheres. A
mortalidade entre jovens também foi elevada em relação à média: 1,9 morte por 100 mil meninas até 14
anos de idade (TRATA BRASIL, [s.d.], p. 30)
As mulheres são mais atingidas por doenças gastrointestinais, além de outras problemáticas
ocasionadas pela falta ou ineficiência da política de saneamento básico, entre elas o Instituto Trata
Brasil relata que ocorrem internações, acamamento, atraso escolar, faltas no trabalho e lhes tiram o
tempo de atividades de lazer devido ao aumento da carga horário ao cuidarem das doenças adquiridas
ou de algum membro familiar acometido por doenças resultantes do acesso à água não potável, por
exemplo. “Nesse sentido, as infecções associadas à falta de saneamento básico afetaram a vida das
mulheres de todas as idades, raças e classes sociais [...] Em outros termos, a falta de saneamento trouxe
perdas de bem-estar às brasileiras” (TRATA BRASIL, [s.d.], p. 33).
Na cidade de Breves, localizada no sudoeste do Pará, considerada a capital do Arquipélago do
Marajó , a situação não é diferente. As mulheres idosas enfrentam diversos desafios para ter acesso à
4

água potável, fato que marcou a trajetória de vida desses sujeitos de forma física e psicológica. Segundo
dados disponibilizados no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística -IBGE cidades (2010) o
município possui estimativa populacional para 2020 de 103.497 pessoas, com Índice de
Desenvolvimento Humano-IDH de 0,503, é considerado baixo. A economia local está pautada em
extrativismo, comércio e varejo, junto aos salários dos funcionários da prefeitura e aos benefícios sociais
(bolsa família, aposentadorias, benefício de prestação continuada), o principal meio de transporte para
chegar à cidade é o hidroviário (embarcações pelos rios), fica a 12 horas de navio da capital paraense.
Outro ponto importante são informações dispostas no Caderno do Marajó: edição especial, 40
dias do Marajó com coronavírus (2020), formulado pelo Observatório do Marajó, no capítulo sobre
Breves relata que a população está dividida entre 49% na área rural e 51% na urbana, 49% mulheres e
51 homens, 80% negras (não brancas: pardos, amarelos e pretos, conforme autodeclaração ao IBGE).
Em relação ao abastecimento de água via rede geral de distribuição 31,7% possui, enquanto 68.3% não

É referência em serviços para alguns municípios próximos menores em extensão ou sem a prestação de alguns serviços como:
4

Universidades, atendimento médico de média e alta complexidade, instituições bancárias e outros.


137
acessa;23% têm banheiro e água encanada, 77% não possui; 7,6% com esgotamento sanitário e fossas
sépticas, 92,4% sem ambos os serviços (OBSERVATÓRIO DO MARAJÓ, 2020).
Nesse contexto, mulheres negras, a maioria sem acesso aos serviços de saneamento básico estão
expostas a diversos riscos de saúde física e psicológica, dado que somente 31% das famílias acessa os
serviços de abastecimento de água prestados pela Companhia de Saneamento do Pará-COSANPA5 no
município. Contudo, a empresa não tem cumprido seu papel, deixando a maior parte da população
responsável por criar estratégias para ter água em suas residências. Rocha (2017) relata como ocorreu o
processo de assinatura do contrato com a empresa:
Por intermédio da Lei Municipal 2.234, de 26 de maio de 2011, foi realizada a delegação da
prestação dos serviços públicos municipais de abastecimento de água, assim como de esgotamento
sanitário, de Breves para a COSANPA. Esta transferência se deu por intermédio do contrato de
programa nº 06/2012, firmado entre ambos, que vigorará pelo prazo de 30 anos, ou seja, até o ano de
2042. A cláusula terceira, do referido contrato, determina que a prestação dos serviços de abastecimento
de água deverá abranger toda a área urbana da sede do município [...] (ROCHA, 2017, p. 71-72).
A companhia deveria prestar serviços a toda a área urbana do município, tanto de acesso à água
quanto de esgotamento sanitário, todavia, os serviços se restringem ao abastecimento de água, porém,
limitados ao bairro Centro e algumas ruas pertencentes a outros, além de não haver ampliação ou
manutenção nas redes há bastante tempo, deixando a população a própria sorte.

DISCUSSÃO
Ao longo das pesquisas de campo no desenvolvimento do projeto: A luta pelo acesso à água em
Breves Marajó-PA: um estudo pautado na história de mulheres idosas e suas narrativas, contatou-se
diversos problemas enfrentados por esse grupo social para trazer o recurso até suas famílias, descritas no
relatório final nomeado Narrativas de Mulheres Idosas: um estudo sobre as vivências e dificuldades de
acesso à água em Breves Marajó-PA (2020).
Alcançou-se treze mulheres; oriundas de outras cidades ou da área rural do município; possuem
idades de 54 a 80 anos; residem com outros familiares, a maioria em áreas de várzea (inapropriadas para
cavar poços) nos bairros periféricos 6: Aeroporto, Cidade Nova, Castanheira e Estrada Breves-Arapijó;
sobrevivem de benefícios assistenciais (benefício de prestação continuada, aposentadorias, pensões),
estáveis na área urbana do município de 10 a 47 anos.
Entre as dificuldades relatadas pelas idosas, foi possível identificar: *falta de ações concretas do
Estado para amenizar as demandas pelo serviço; *ineficiência dos serviços prestados pela Companhia de
Saneamento do Pará que não consegue atender nem metade da população, além disso, não amplia ou
melhora o fornecimento de água; *as entrevistadas residem em áreas inapropriadas para cavar poço, de
modo a criarem estratégias como emprestar áreas para fazer esses poços grandes sem a devida
potabilidade, que em vezes, transbordam no inverno e secam no verão, uma água de coloração laranja
nomeada de “nata” pelas moradoras; compram garrafões nos valores de R$ 1,00 a R$ 2,00 reais por
unidade; conseguem materiais e pagam terceiros para fazer ligações independentes de autorização na
rede da empresa; contam com doações de vizinhos, entretanto, nem todos compartilham; armazenam

5
A responsabilidade atual da prestação dos serviços de abastecimento de água na cidade é da Companhia de Saneamento do
Pará, no município tem-se uma filial da instituição, encontra-se na Avenida Rio Branco/SN, bairro Centro em Breves-PA.
6
No sentido de carência ou ineficiência de bens serviços públicos que não atendem as necessidades da população residente na
área como: escolas, postos de saúde ou profissionais, serviços no Centro de Referência de Assistência Social-CRAS.
138
água da chuva, de igarapés ou de outras instituições do município sensibilizadas com os problemas
coletivos.
As idosas ao serem informadas das pesquisas do projeto se disponibilizaram a contribuir,
percebeu-se a necessidade sentida pelas participantes em relatar as demandas enfrentadas no cotidiano,
aparentavam tristeza por tantos anos na área urbana do município e nada ter mudado em relação a
problemática; revolta ao refletirem sobre o desrespeito com que a população é tratada pelo Estado; e
cansaço nos olhares, nos movimentos corporais e nas expressões ao respirar fundo e relatarem diversas
ações como carregar, armazenar, tratar para poder amenizar possíveis contaminações por acesso à água
não potável.
A maioria das narrativas evidenciaram cicatrizes deixadas por anos na labuta para ter acesso a
esse recurso intrínseco às necessidades vitais, divididas entre as físicas: quedas, marcas no corpo ou perda
parcial da movimentação de algum dos membros, dores constantes de cabeça e problemas de coluna; e as
psicológicas ao relembrarem as humilhações, doenças adquiridas por contato com água não potável e
inviabilidade de realizar a higiene pessoal dos membros de suas casas por não ter o recurso.
Nas casas atendidas pela COSANPA, o tempo para abastecimento dura em torno de 1 a 2
horas, às vezes, nem chega a 1 hora, não sendo possível armazenar o suficiente, sem falar que quando
ocorrem problemas com a bomba, já teve casos de passar quase uma semana sem água, situação
aparentemente invisibilizada pelo governo, pois a cada eleição são realizadas inúmeras promessas,
entretanto, nenhuma efetivada para suprir as verdadeiras necessidades da população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A água é um recurso necessário para a sobrevivência, é essencial e um direito à vida, além de ser
indispensável para realizar as atividades individuais e coletivas. A ONU reconhece a importância de
tratar esse bem enquanto direito humano, entretanto, em Breves-PA existem pessoas que enfrentam
diversas dificuldades para acessá-la. Os serviços de abastecimento prestados pela Companhia de
Saneamento do Pará (COSANPA) na localidade ainda precisam melhorar bastante para suprir as
demandas dos usuários e atender os que nem ainda acessam por falta de estender a rede de distribuição
em alguns bairros, deixando a população responsável por criar estratégias para levar água até suas casas,
sobrecarregando as mulheres idosas.
O Estado tem invisibilizado esta demanda que se tornou permanente na área urbana do
município, e os relatos das idosas evidenciaram o descaso governamental em solucionar a situação. Desta
feita, é necessário e urgente se pensar, criar e implementar uma política de saneamento básico disposta a
realmente atender às necessidades da população, não como favor, mas obrigação, pois já deveria ter sido
discutida e efetivada, por respeito as pessoas e a vida das mulheres brevenses. Vale ressaltar que esta
pesquisa não se exaure aqui, fica o convite a mais pessoas interessadas em se debruçar sobre a temática,
para juntos construirmos propostas coletivas passíveis de contribuir com as políticas públicas no intuito
de oportunizar saúde e qualidade de vida tanto as idosas marajoaras quanto a população brevense em
geral.

REFERÊNCIAS
Água para a Vida, 2005-2015. Programa da Década da Água da ONU-Água sobre Advocacia e
Comunicação (UNW-DPAC). Escritório das Nações Unidas de apoio à Década Internacional de

139
Ação(UNO-IDFA): 2005-2015. Disponível em:
https://www.un.org/waterforlifedecade/pdf/human_right_to_water_and_sanitation_media_brief_po
r.pdf. Acesso em 10/04/2021.
BRASIL. Lei nº 11.445, dispõe sobre as diretrizes nacionais para o saneamento básico e para a política
federal de saneamento básico. Planalto, 11/01/2007. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm. Acesso em:
06/05/2021.
FELIPE, Márcia Leyla de Freitas Macêdo; ALVES, José Willame Felipe. A importância da fonte oral
como instrumento de resgate histórico das mulheres do quilombo sítio arruda, no estado do Ceará. IN:
Anais do XIII Encontro Nacional de História Oral: História oral, práticas educacionais e
interdisciplinaridade. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 01 a 04/05/2016. Disponível em:
https://www.encontro2016.historiaoral.org.br/resources/anais/13/1461934941_ARQUIVO_CON
GRESSONACIONALDEHISTORIAORAL.pdf. Acesso em: 14/05/2021.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA-IBGE. Breves, Pará: Panorama.
IBGE Cidades, 2010. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/breves/panorama.
Acesso em: 15/05/2021.
LIMA, Elizandra Gomes de. Relatório Final: Narrativas de Mulheres Idosas: um estudo sobre as
vivências e dificuldades de acesso à água em Breves Marajó-PA. Projeto de Pesquisa: A Luta pelo Acesso
à Água em Breves Marajó-PA: Um estudo pautado na história de mulheres idosas e suas narrativas.
Faculdade de Serviço Social-Breves/UFPA: Breves, 2020.
MINAYO, Marilia Cecília de Souza (Org.); et al. Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade.
Vozes: Petrópolis-RJ, 21ª ed. 1994.
Mulheres & Saneamento. BRK Ambiental; Instituto Trata Brasil, [s.d.]. Disponível em:
https://static1.squarespace.com/static/5beeb2594611a0f1b6318134/t/5c1d28cf03ce64afea2c667d
/1545414939516/brk-ambiental_instituto-trata-brasil_mulheres-e-saneamento.pdf. Acesso em:
14/05/2021.
OBSERVATÓRIO DO MARAJÓ/LUTE SEM FRONTEIRAS. 40 dias de Marajó com
Coronavírus. Cadernos do Marajó –Edição Especial, publicado no dia 01/06/2020. Disponível em:
https://www.observatoriodomarajo.org/40diasmarajocovid19. Acesso em: 22/04/2021.
ROCHA, Caroline Silva Nepomuceno. Desafios para a universalização do abastecimento de água no
município de Breves-Pará. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Pará. Núcleo de Altos
Estudos Amazônicos, Programa de Pós-Graduação em Mestrado em Gestão Pública, Belém, 2017.

140
UM ESTUDO COMPARATIVO DA LITERATURA BRASILEIRA DE CONCEIÇÃO
EVARISTO E DE PAULINA CHIZIANE DE MOÇAMBIQUE NAS OBRAS INSUBMISSAS
LÁGRIMAS DE MULHERES E NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA

Wellyson Gomes dos SANTOS1


Joyce Cordeiro Rebelo Cordeiro REBELO2

INTRODUÇÃO
O presente trabalho é um recorte de parte da escrita de um artigo em andamento sobre
comparativos do lugar de fala, resistência, submissão e lutas das mulheres negras na literatura brasileira
na obra Insubmissas lágrimas de mulheres (2011)de Conceição Evaristo e a obra Niketche: Uma
História de Poligamia (2002)da autora moçambicana, Paulina Chiziane relacionando apontamentos
para o ensino de literatura nas escolas de educação básica do ensino médio e o ensino superior, por meio
de suas obras.
De acordo com Fuks (2020), Maria da Conceição Evaristo de Brito é uma notável professora e
escritora brasileira contemporânea sendo especialmente ativa nos movimentos pela luta negra. A
estudiosa, que publica poemas, ficção e ensaios, nasceu no dia 29 de novembro de 1946 em Belo
Horizonte, Minas Gerais. Filha de Joana Josefina Evaristo, Conceição teve pouco contato com o pai,
tendo sido criada pela mãe, uma lavadeira, e pelo padrasto (Aníbal Vitorino), que era pedreiro, numa
comunidade da Avenida Afonso Pena. A autora cresceu na companhia de três irmãs filhas do mesmo pai
e da mesma mãe (Maria Inês, Maria Angélica e Maria de Lourdes) e dos cinco irmãos filhos do novo
relacionamento da mãe com o padrasto. Quando a menina tinha sete anos foi viver com a tia, Maria
Filomena da Silva, a irmã mais velha da mãe, que também era lavadeira e o tio, Antônio João da Silva,
que era pedreiro. O casal não tinha filhos. Aos oito anos, Conceição começou a trabalhar como
empregada doméstica.
Ademais, no ano de 1973, Conceição Evaristo se mudou para o Rio de Janeiro. Lá se formou
em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mais tarde, concluiu um mestrado em
Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro defendendo a
dissertação Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (1996). Posteriormente cursou o
doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) tendo defendido a
tese Poemas malungos, cânticos irmãos (2011).
Paulina Chiziane é escritora moçambicana e nasceu em Manjacaze, em Gaza em 04 de Junho de
1955. De uma família protestante, cresceu na cidade de Maputo e falavam as línguas nativas Chope e
Ronga. Paulina, já aprendeu a Língua Portuguesa na escola e cursou Linguística na Universidade
Eduardo Mondlane.
Participou efetivamente do cenário político de Moçambique da Frelimo (Frente de Libertação
de Moçambique), em sua juventude. Atualmente, não gosta de que relacionem suas obras literárias com
a política, pois justifica que não gosta dos políticos, bem como não quer ser enquadrada no rol dos
romancistas que vivem ao redor das regras da construção e estruturas dos romances.

1
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. E-mail: wellysongomesdossantos@gmail.com
2
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. E-mail: rainha.joyce@gmail.com
141
Atualmente, se considera uma escritora de estórias de mulheres negras que não tem espaço
social e não possuem respeito nas hierarquias patriarcais. É considerada, a primeira mulher que publicou
um romance moçambicano, iniciando com seus contos publicados e 1984.
Por entender uma nova visão de mundo e de concepção, suas obras sempre levantavam muitas
polêmicas, a exemplo de Balada de Amor ao Vento (1990) e Niketche: Uma História de Poligamia
(2002).
Paulina Chiziane, não tem mais realizado publicações e também sofreu muito na sociedade com
os temas tratados sobre a subalternidade das mulheres e exposição da sociedade machista. Tem se
debruçado em entrevistas para propagar suas ideias e ganhar maior visibilidade sobre as condições das
mulheres.

OBJETIVOS
a) Identificar na obra literária os espaços de falas das personagens protagonistas das
mulheres negras nas obras.
b) Analisar os espaços de falas, resistência, submissão e lutas das mulheres negras na
literatura brasileira e moçambicana.
c) Relacionar a importância da literatura brasileira e moçambicana sobre a vida das
mulheres para o ensino e aprendizagem na educação básica e superior.

METODOLOGIA
A metodologia pauta-se pela metodologia de pesquisa bibliográfica e análise literária das
estudiosas Conceição Evaristo, com a obra Insubmissas lágrimas de mulheres e Paulina Chiziane com a
obra Niketche: Uma História de Poligamia. Dessa forma, realizar-se um estudo analítico de maneira
mais detalhada das narrativas que constitui o corpus da pesquisa por meio da pesquisa bibliográfica.
A pesquisa bibliográfica procura explicar e discutir um tema com base em referências teóricas
publicadas em livros, revistas, periódicos e outros. Busca também, conhecer e analisar conteúdos
científicos sobre determinado tema (MARTINS, 2001). Podemos somar a este acervo as consultas a
bases de dados, periódicos e artigos indexados com o objetivo de enriquecer a pesquisa.
Em suma, com esse arcabouço podemos discorrer sobre essas duas mulheres feministas, negras e
que retratam as dores, o apagamento e a violência sofrida diariamente pela sociedade. Além disso,

RESULTADO E DISCUSSÕES
O recorte da análise das obras nos aspectos que tangem resistência, submissão e lutas das
mulheres negras na literatura brasileira e moçambicana se entrelaçam em suas mais diversificadas relações
de poder construída pela sociedade patriarcal.
Conceição em Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), nos mostra a empatia e a sensibilidade
ao dar vozes a mulheres negras, marginalizadas, subalternas e que sofrem opressão. A obra Insubmissas
lágrimas de mulheres foi baseada em entrevistas reais da autora com mulheres negras de todas as idades.
Contudo, antes de narrar os 13 contos, Conceição Evaristo alerta logo sobre a veracidade das histórias
das personagens “Estas histórias não são totalmente minhas, mas quase que me pertencem (…).
142
Invento? Sim, invento, sem o menor pudor (…). Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu”
(EVARISTO, 2011).
É pertinente pontuarmos que ao discorrer as narrativas, Conceição escreve os contos em
primeira pessoa em sua maioria e em terceira pessoa, mostrando também o momento em que ela se
encontra com as entrevistadas. Contudo, ao longo da narrativa, Evaristo dá vozes e protagonismo para
essas mulheres que são marginalizadas. Assim sendo, Evaristo retrata as dores, o apagamento e a
violência sofrida diariamente por negras na sociedade. O conto de Insubmissas lágrimas de mulheres que
escolhemos para fazer alguns apontamentos é intitulado Shirley Paixão. Essas estórias refletem sobre a
violência imposta às mulheres negras. O tom que perpassa o livro, no entanto, é de altivez: são todas
histórias tristes, porém, acima de tudo, são todas histórias de superação.
A personagem Shirley Paixão tenta matar seu marido após ele agredir e abusar de uma de suas
enteadas. Antes de se casar com Shirley, o homem era casado com outra mulher, mas ela morreu. Ao
mudar-se para a casa de sua nova esposa, ele levou suas três filhas, nas quais somam com duas filhas de
Shirley. Conceição narra que a personagem Shirley não se arrepende do ato e que faria novamente.
Já, no romance Niketche: Uma História de Poligamia (2002)da autora moçambicana, Paulina
Chiziane trata da condição das mulheres moçambicanas com relação a poligamia entre os casais e o
sofrimento, dor e conscientização da posição das mulheres na sociedade conforme, Chiziane (2002,
p.14) “Agora danço a solo num palco deserto. Estou a perdê-lo. Ele passa a vida a fazer companhia às
mulheres mais lindas da cidade de Maputo, que lhe chovem aos pés como diamantes”.
Paulina, desenha a personagem Rami que descobre que em seu casamento há poligamia, que faz
a mesma a começar a ir atrás de cada uma das mulheres que se relacionaram e tiveram filhos com seu
marido. Nisso, descobre também a história das mulheres, que à priori, seriam suas rivais no
acometimento de adultério, mas na verdade são também mulheres abandonadas.
A literatura moçambicana nesta obra é o retrato social da realidade das mulheres. O abandono
das mulheres transformará a personagem tomando uma nova atitude de também começa a refletir sobre
os sofrimentos e começar a indagar sobre a permissão destas situações de poligamia em seu país.
Podemos dizer que as duas obras, com narrativas bem peculiares, sensíveis e impactantes.
Conceição e Paulina dão vozes a diferentes mulheres, cada uma com uma história diferente. Questões de
gênero, raça e social são destacadas em cada relato. Ao dar voz a essas personagens, as autoras nos fazem
refletir sobre o lugar de fala de cada mulher no seu espaço feminino em diferentes países entre Brasil e
Moçambique.
Discorre sobre as vulnerabilidades e marginalização das mulheres negras. E como já pontuado
acima, as duas autoras usam esse lugar de fala para denunciar a sociedade machista e preconceituosa. A
compreensão do conceito de lugar de fala permite entender que as palavras não são
construçõesmecânicas, mas representações coletivas que atravessam as experiências individuais
do seu autor, conforme Ribeiro (2017).
Ribeiro (2017) discorre para uma história que foi capaz de desumanizar a população negra,
principalmente a mulher, fadada ao silêncio até mesmo nas pautas feministas universalizantes. O
racismo, como protagonista de um cenário social, isolou a mulher negra e a reduziu a um corpo
inexpressivo. Contudo, não quer dizer que essa mulher negra não tivesse tentado falar, ela só não foi
ouvida. As autoras mostram isso em suas obras, a exemplo de Conceição em a Insubmissas lágrimas de
mulheres, dá voz a essas mulheres, pois é negra, mulher e que fala não só por experiências individuais,
mas coletiva.

143
Somado ao que foi dito acima, para Freitas (2019), Conceição Evaristo apresenta a fala como
arma contra qualquer opressão. Logo ela, que aos 71 anos de idade concorreu à vaga da cadeira número
7 da Academia Brasileira de Letras. Conceição Evaristo leva consigo uma multiplicidade de mulheres
negras e todas nós, em um só coro gritamos: existimos! Com isso, podemos apontar que o falar e o
ouvir, é resistência.
Outrossim, vale pontuarmos que nas obras na qual as personagens mostram a submissão, chega
um momento em que elas fazem uma ruptura com essa submissão e mostram o renascimento das
resistências e das mudanças, modificando seus espaços de fala e reposicionando-os na sociedade.
Achugar (2006) discorre que é necessário compreender o lugar a partir de onde se fala, de onde
se constrói as experiências. De acordo com Achugar (2006), o balbucio é uma forma de diferenciação
diante dos “centros culturais”, e que devemos reivindicar o balbucio para que ele seja escutado,
percebido, notado na sua alteridade, naquilo que lhe é peculiar, a forma orgulhosa de manifestar a
diferença “nosso discurso queer” (ACHUGAR, 2006, p. 14). E é isso que as estudiosas trazem em suas
obras e nos faz refletir, questionar e fazer com que as mulheres negras marginalizadas sejam ouvidas,
sejam notadas, pois foram duramente apagadas e injustiçadas, tanto no passado quanto no presente.
São obras críticas que contextualizam e mostram a realidade social para um debate
contemporâneo absolutamente necessário, sobretudo na educação. Diante disso, a importância dessas
obras literárias para o ensino em sala de aula, seja na educação básica, seja na educação superior. A
leitura segue sendo a principal forma de se construir opiniões próprias, de ter- se embasamento
necessário para toda e qualquer atividade ou área o ato de ler é imprescindível para que o indivíduo
exerça sua cidadania, compreenda criticamente as realidades sociais e nela atue efetivamente.
Assim, as obras literárias é a vivência das mulheres negras marginalizadas com as personagens
protagonistas são repletas de reflexões e questionamentos acerca das profundas desigualdades raciais
brasileiras e moçambicanas, impostas pela sociedade branca, machista, elitista dominante. Diante disso,
os temas tratados podem ser trabalhados no aspecto do ensino e aprendizagem da literatura na educação
básica do nível médio, bem como nas universidades para contribuir nas construções de novas
mentalidades e cidadãos brasileiros que possam entrelaçar as discussões sobre a realidade de países
diferentes.
As obras tratam da realidade e ficção e seus textos são valorosos retratos do dia a dia, no qual,
podemos apontar denúncias das opressões raciais e de gênero contra a mulher negra, podendo também
serem abordados no ensino médio para os estudantes.

REFERÊNCIAS
ACHUGAR, Hugo. Espaços incertos, efêmeros: reflexões de um planeta sem boca. In: ACCHUGAR,
Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Trad. Lyslei Nascimento.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006 (p.09-26).
DALCASTAGNÉ, Regina. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira
contemporânea. In: DALCASTAGNÉ, Regina; EBLE, Laeticia Jensen. Literatura e exclusão. Porto
Alegre: Zouk, 2017. (p.217-238).
FANON, Frantz. A mulher de cor e o branco. In: FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad.
Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. (p.53-68).

144
FUKS, Rebeca. Conceição Evaristo. RJ. Disponível em:
https://www.ebiografia.com/conceicao_evaristo/ acesso em: 10 de maio de 2021.
FREITAS, Thayanne Tavares. Resenhas. Horiz. antropol. vol.25 no.54 Porto Alegre May/Aug. 2019
Epub Aug 05, 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
71832019000200361 acesso em: 10 de maio de 2021.
MARTINS, Gilberto de Andrade; PINTO, Ricardo Lopes. Manual para elaboração de
trabalhos acadêmicos. São Paulo: Atlas, 2001.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos
Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

145
ENTRE LINHAS, CORES E PONTOS: MÃOS-MULHERES-MÃES-NEGRAS-MULHERES
COSTURANDO E CONSTRUINDO A ORGANIZAÇÃO POPULAR

Martha Morais MINATEL1


Ana Cristina Cassiano de CAMPOS2
Larissa Alves de Camargo ALBINO3
Giovana Garcia MORATO4

INTRODUÇÃO
Somos artistas, somos trabalhadoras
Somos garotas com sonhos e horrores
Somos assim, somos coração
Somos poesia, blues, somos canção.
Somos mulheres em guerra
Filhas da dor, das injustiças
Somos mulheres guerreiras
Somos pretas, somos negras de alma preta.
(Lu Dandara)

“Somos assim, somos coração [...] Somos mulheres em guerra”, é assim que nos apresentamos
para compartilhar este trabalho, um trabalho escrito a oito mãos, mas que traz em sua essência muitos
corações, muitas experiências, que aqui, tentaremos sistematizar, no limite do que pode ser transcrito,
pois,

[...] o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo,


contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos
acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não
fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é
para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O
saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo
concreto em quem encarna (BONDÍA, 2002, p.27).

1
Universidade Federal de São Carlos/ Departamento de Terapia Ocupacional/ Rede Solidária e de Apoio da Região do
Cidade Aracy. E-mail: marthaminatel@ufscar.br
2
Instituto Cultural Janela Aberta /Rede Solidária e de Apoio da Região do Cidade Aracy. E-mail:
anacris@janelaaberta.art.br
3
Moradora da comunidade/ Rede Solidária e de Apoio da Região do Cidade Aracy. E-mail: laalcamargo@gmail.com
4
Universidade Federal de São Carlos/ Departamento de Terapia Ocupacional/ Rede Solidária e de Apoio da Região do
Cidade Aracy. E-mail: giovanamorato@ufscar.br
146
Assim, por meio dos sentidos que fomos capazes de nomear, nos propomos aqui compartilhar a
sistematização de uma experiência vivida por pessoas de uma comunidade periférica de uma cidade do
interior do estado de São Paulo a partir da organização de um coletivo de apoio e solidariedade liderado
por mulheres negras, no qual somos presença, reflexão, ação - somos práxis.
Tecer esse relato a partir da experiência de mulheres negras, exigiu de nós uma imersão reflexiva
e teórica a respeito das diferenças que nos atravessam enquanto mulheres e, aqui, as construções teóricas
do feminismo negro em torno da Interseccionalidade têm sido para nós acolhimento, despertar e ação.
Nascido da crítica feminista negra contra o racismo patriarcal, aInterseccionalidade refere-se a
uma estrutura resultante da relação inseparávelentre racismo, capitalismo e o cisheteropatriarcado que
produz um sistema de opressões pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe
(AKOTIRENE, 2019). Como nos ensinou Kimberlé Crenschaw em 1989 (PASSOS; PEREIRA,
2017) saber nomear aquilo que nos atravessa, desvela as múltiplas formas de dominação e subordinação,
assim como impulsiona para a luta e organização política.
Com o óculos do feminismo negro decolonial, pudemos nos acolher e nos organizar enquanto
comunidade, refletindo criticamente sobre as iniquidades sociais, as vulnerabilidades da vida e violências
cotidianas sentidas por nós e por muitas mulheres, crianças, jovens, sentidas também, em diferentes
intensidades, por todos os moradores e moradoras da comunidade que compomos.

OBJETIVO
a) O objetivo deste trabalho é compartilhar a sistematização da experiência vivida por
mulheres na organização popular para viabilizar a construção de projetos coletivos de
cuidado, proteção, desenvolvimento, emancipação e autonomia aos moradores da
comunidade em um contexto periférico do interior do estado de São Paulo.

METODOLOGIA
Somos quatro mulheres que compartilharam da mesma vivência a partir do projeto, a qual
produziu experiências singulares e subjetivas, mas também coletiva, possível pelo encontro de quatro
mulheres: uma mulher negra, mãe, publicitária, estudante de serviço social e conselheira tutelar; uma
mulher negra, mãe, artista visual e administradora; uma mulher branca, mãe, terapeuta ocupacional e
professora e uma mulher branca, terapeuta ocupacional e professora.
A proposta metodológica da sistematização desta experiência fundamenta-se na perspectiva de
Holiday (2006), que a localiza como um processo particular, parte de uma prática social e histórica
igualmente dinâmica, complexa e contraditória, composta por uma riqueza de elementos acumulados
que valem ser compreendidos, deles extraídos seus ensinamentos e, assim, serem compartilhados.
A proposta do método possui cinco momentos: 1) O ponto de partida; 2) As perguntas iniciais;
3) Recuperação do processo vivido; 4) A reflexão de fundo; 5) Os pontos de chegada (HOLIDAY,
2006).

147
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Consoante com a metodologia de sistematização da experiência, os resultados e discussões serão
apresentados conjuntamente a partir dos cinco momentos: o começo; o objeto da experiência; a tecitura
da memória; a tecitura de reflexões e o arremate.

A costura: os primeiros pontos


A partir de um projeto de extensão universitária, que tem a Educação Popular (Freire, 1979;
1987; 2002) como base, desde junho de 2020 ações de organização popular e de produção de inéditos
viáveis foram construídas com uma comunidade periférica da região sul de um município do interior do
estado de São Paulo, que integra dez bairros, caracterizados por um alto índice de vulnerabilidade social
(GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2010), com uma população estimada em 80 mil
habitantes (IBGE, 2012).
O projeto iniciou-se com a organização de um grupo pelo WhatsApp de lideranças
comunitárias a fim de articular demandas, serviços e ações de solidariedade diante da crise
potencializada pela pandemia da COVID-19. Desde então, o grupo tem crescido em tamanho e força,
integrando diferentes atores da comunidade, dos serviços comunitários, territoriais e da região, na
proposição coletiva de projetos de cuidado e proteção aos moradores da comunidade e se organizado
formalmente com a constituição de uma associação de moradores dos bairros da região.
Os elementos aqui compartilhados são frutos dos registros realizados do grupo de WhatsApp,
das atas das reuniões virtuais por meio de plataformas digitais, prints de diálogos, encontros e trocas,
construções materializadas em produções de materiais audiovisuais, impressos e ações concretas na
comunidade registradas nos cadernos de campo.

Alinhavando o ponto principal: o objeto da experiência


Do tanto que foi e tem sido construído, queremos lançar luz e compartilhar a construção e
organização de um grupo comunitário e alguns projetos por ele disparados. Importa essa partilha para
que possamos acolher, emprestar, inspirar outras mulheres e comunidades na formação de um projeto de
organização popular, que desvele as durezas da vida, as desigualdades sociais e iniquidades, as violências
estruturais, marcas e intersecções que atravessam as vidas e seus existires, mas também, que das situações
limites podem surgir proposituras, que contemplem inéditos viáveis, que garantam pela práxis, a
transformação da realidade concreta material e simbólica.
Nessa perspectiva, a sistematização dessa experiência busca dar luz ao protagonismo das
mulheres negras periféricas na construção de um projeto de vida coletivo por meio da construção de
inéditos viáveis tendo como perspectiva a transformação social, cultural e política.

Entre linhas e cores: tecendo a memória da experiência


Junho de 2020, duas professoras universitárias, a partir de um projeto extensionista,
propuseram a articulação de um grupo com lideranças comunitárias com o objetivo de integrar as
demandas emergentes do cenário pandêmico de uma região periférica e as ações do poder público,
organizações da sociedade civil e comunidade com foco no apoio e solidariedade. Do convite a uma
148
liderança comunitária, este foi se multiplicando para e entre outras lideranças, fazendo nascer um grupo
remoto, pelo WhatsApp, inicialmente com 9 pessoas, destas 5 mulheres e 4 homens moradores da
comunidade, mais as duas professoras e 5 alunas de graduação em Terapia Ocupacional.
De apenas agenciador de demandas e estratégias de apoio, o grupo foi crescendo e se
fortalecendo enquanto coletivo e passou a fomentar, diante das situações limite identificadas pela
comunidade, projetos que viabilizassem inéditos viáveis, no sentido atribuído por Paulo Freire (1987).
Para citar alguns, foram criadas ações de educação popular em saúde, com a produção de uma História
em Quadrinhos com super heróis que simbolizavam as estratégias de enfrentamento ao coronavírus;
doação e entrega de máscaras e folhetos explicativos; ações voltadas à garantia de direitos e
acessibilidade, tanto em relação à ampliação das linhas de transporte coletivo como da implementação
de um “covidário” para acolhimento e detecção das pessoas sintomáticas na região, além da elaboração
de um documento enviado ao Comitê Emergencial de crise do Município, sinalizando todas as
fragilidades do território e estratégias possíveis para enfrentar a realidade pandêmica.
Todas essas ações foram realizadas com todos os membros do coletivo, liderado essencialmente
por mulheres negras. Dentre estas ações, destacamos uma que foi pensada especialmente a partir das
falas e experiências das mulheres da comunidade no contexto da pandemia - um contexto de aumento
significativo de desemprego, do fechamento dos dispositivos de proteção e educação das crianças e
adolescentes, impedindo que muitas, que ainda tinham seus trabalhos remunerados, tivessem que
abandoná-los para o cuidado das filhas e filhos em casa - uma realidade que potencializou o cenário de
pobreza, fome e violência (em diferentes dimensões). Propusemos um projeto de geração de renda,
pautado pela Economia Solidária, que pudesse incluir as mulheres interessadas neste empreendedorismo
coletivo, organizado por meio da costura, tanto para as que sabiam costurar quanto para aquelas que
gostariam de aprender e participar de alguma etapa desse trabalho.
O projeto tem sido tecido com as mulheres, desenhado de forma que possa suprir a necessidade
de renda e autonomia financeira, mas também de cuidado consigo e com suas filhas e filho (a partir da
possibilidade de um espaço de acolhimento às crianças enquanto as mães trabalham ou da realização do
trabalho em suas próprias casas). A tecitura está em exercício, agregando outros fios (atores) e moldes
(propostas) - de máscaras de tecido a roupas sustentáveis (slow fashion) - unindo outras mulheres, da
comunidade ou não, que têm se colocado nesse “fazer junto”, para juntas “serem mais”.

O ponto zig-zag: o exercício dialógico da reflexão-ação-reflexão-ação-reflexão


Todos os projetos realizados pelo Rede Solidária e de Apoio, principalmente o projeto de
geração de renda, foram possíveis pelo engajamento de pessoas que buscaram, no coletivo, na comunhão
- como diria Freire (1987), uma comunidade mais justa socialmente. Ainda que o coletivo seja plural,
em sua maioria, temos a militância de mulheres, muitas negras, que se assumiram “rede solidária e de
apoio”, reconheceram-se “mulheres em guerra” e protagonistas de suas histórias.
O exercício da práxis (reflexão-ação-reflexão) (Freire, 1987) possibilitou a nós mulheres e a
todo o grupo comunitário, compreender a vida em comunidade em sua complexidade, ou seja, a partir
de um todo que é tecido junto - não é possível pensar os processos comunitários e seu cotidiano com
seus desafios, injustiças e potencialidades, descolado do todo.
A construção de uma comunidade que preze pelo bem viver de todas e todos, garantindo o
acesso e fruição dos direitos, da cidadania, da elaboração de projetos de vida individuais e coletivos,
exige a tecitura cotidiana de uma rede intersetorial formada por sujeitos, grupos, coletivos,

149
compartilhando diferentes saberes e se corresponsabilizando no enfrentamento de problemas
específicos, engajados em um compromisso social coletivo, como nos aponta Inojosa (2001).
A organização popular não se tece alijada dos processos de opressão presentes na sociedade -
que a análise interseccional desvela no cruzamento entre raça, gênero, classe social, geração e território,
por exemplo - o investimento na comunhão e busca pela união para o bem comum vem carregado da
necessidade constante da práxis, tanto a nível micro (das relações, vínculos que se tecem, confiança)
como macro (no diálogo com saberes, políticas, instituições e diferentes poderes - executivo, legislativo e
judiciário).
Em meio às tensões e contradições colocadas nessa construção, que é cotidiana e, essencialmente
relacional, apostar na dialogicidade pautada no amor ao homem e ao mundo, tem produzido processos
de libertação para diferentes atores. Podemos afirmar que a educação popular tem sido uma
metodologia potente na tecitura da rede solidária e de apoio, convidando opressores e oprimidos a
reconhecerem, cada qual, o seu status atual e repensarem-no.

Arrematando: na mira de outras linhas, cores e texturas


O ponto de chegada dessa experiência, onde ela se encerra, não pela finalização, mas para
compartilhar uma produção - de sentidos, de saberes, de fazeres- é onde arrematamos para poder incluir
novas cores, linhas, texturas e desenhos. Assim seguimos.
O que essa experiência tem nos revelado é que muitas coisas nos passaram, nos aconteceram,
nos tocaram (BONDÍA, 2002), de forma a nos ensinar, pelo saber da experiência, os diversos e
possíveis “como fazer”, que a cada situação se impunham como condição de passagem, nos convocando
a lançar mão da criatividade, inventividade e de muito desejo de construção. Aprendemos a utilizar as
mídias sociais, aprendemos a pedir ajuda e, por meio do pedido, a fazer composição, o que expandiu as
habilidades e os recursos tecnológicos por nós utilizados para comunicação, divulgação, realização de
encontros virtuais, produção de materiais e pontes! E quantas pontes foram construídas, nos permitindo
muitas conexões via reuniões virtuais com outras lideranças, organizações populares, poder público,
organizações da sociedade civil, dentre outros.
Podemos inferir desta experiência sobre a potência dos encontros, da disponibilidade e das
relações, da construção coletiva, compartilhada, democrática, amorosa que possibilita um contínuo
esperançar. As cores, linhas e desenhos partilhados nessa costura, até aqui, nos permitem comunicar
sobre a produção de tecnologias comunitárias, sociais, de cuidado, de transformação por meio da
comunhão entre pessoas que estão dispostas a lutar. Compreendemos que esta tecitura coletiva tem sido
existência para cada uma e cada um dos sujeitos envolvidos, tem sido resistência diante das intersecções
que oprimem o viver e as vidas, têm sido possibilidades para novos projetos de vida coletivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tal como o ofício de costureira, tivemos muitos começos, muitos pontos “corrido”, “atrás”,
“luva” iniciados, por vezes deixados em suspenso, até que outros novos surgissem para com estes
compor e, unidos, resultassem no que é hoje, uma espécie de trama justa, forte, trama esta que vem
amparando com muita beleza, dedicação e aprendizado os pequenos e promissores projetos que o
coletivo vem idealizando e concretizando. Pequenos projetos, tal como pequenos sonhos, têm sido
matéria prima fértil na construção de realidades possíveis, e a mais nova delas é o empreendimento de

150
costura, que em processo vem ganhando materialidade a cada dia e que tão bem simboliza a construção
processual - tecitura - desse coletivo.
Coletivo este, nutrido e tecido sim a muitas mãos, mas certamente a mãos-mulheres-mães e
negras-mulheres, que têm liderado e sustentado com bravura e amorosidade os diversos “vir a ser” deste
grupo-comunidade.
Com a sistematização dessa experiência manifestamos nossa forma de resistir e agir diante de
uma política e sociedade que desconsideram as interseccionalidades, que ainda são essencialmente
branca, colonial e cisheteropatriarcal. A partir da dureza vivida, das dores, e constantes situações de
violação, a alternativa por nós escolhida foi a de nos fortalecermos mutuamente e coletivamente -
fortalecer os corpos femininos, negros, periféricos dentro de suas casas, ruas e comunidades - como
ferramenta social e afetiva criando dentro dos espaços comunitários um lugar de vozes potentes capazes
da transformação social, cultural e política.

REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 152p. (Feminismos
Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro)
BONDIA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ., Rio de Janeiro, n.
19, p. 20 - 28, Apr. 2002.
FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade (9ª. Ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 23. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à Prática Educativa. São Paulo: Paz e Terra,
2002.
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS).
2010. Disponível em: http://ipvs.seade.gov.br/view/index.php. Acesso 27 de abril de 2021.
HOLIDAY, O. J. Para sistematizar experiências. Tradução de Maria Viviana V. Resende. 2 ed. revista.
Brasília: MMA, 2006. 128p.
IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2010.
Rio de Janeiro, 2012.
INOJOSA, R. M. Sinergia em política e serviços públicos: desenvolvimento social com
intersetorialidade. Cadernos FUNDAP, v.22, 2001. p. 102-110.
PASSOS, R. G.; PEREIRA, M.O. Luta Antimanicomial, feminismos e interseccionalidades: notas para
o debate. In: PASSOS, R. G.; PEREIRA, M.O. (Orgs). Luta antimanicomial e feminismos: discussões
de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. 1 ed. Rio de Janeiro: Autografia, 2017. p.
25-51.

151
AS PROSAS E AS POESIAS DE MULHERES NEGRAS CONSTRUINDO AFROMEMÓRIAS

Luzia Gomes FERREIRA1


Jomara Ferreira Chaves SANTOS2
Julie Castro de SOUSA3

INTRODUÇÃO
Esta proposta de comunicação pretende apresentar as ações realizadas nos Projetos Xirê da
Leitura: Mulheres Negras Grafando Memórias em Letras de Poesia (Extensão) e Memórias que vêm das
palavras: olhares museológicos para as literaturas de mulheres negras (Pesquisa), coordenados pela Prof.ª
Dr.ª Luzia Gomes Ferreira e que têm como bolsistas as discentes pesquisadoras Jomara Ferreira Chaves
Santos e Julie Castro de Sousa. Os projetos surgem da necessidade de trazer para o âmbito acadêmico e
fora dele as produções literárias de mulheres negras como fundamentos instituintes de afromemórias,
nas quais, os corpos negros são apresentados com humanidade, subjetividades e dignidade.
Compreendemos que as memórias da população negra nos contextos afrodiaspóricos, não estão
restritas aos objetos bi e tridimensionais musealizados nos espaços museais hegemônicos, por isso,
buscamos construir diálogos transdisciplinares entre as prosas e as poesias produzidas por mulheres
negras e a Museologia. Consideramos as escritas de mulheres negras uma forma de resistência no
mundo, um patrimônio contemporâneo, assim como, um vetor de alteração dos conhecimentos
colonizados a partir de uma perspectiva eurocêntrica, brancocentrada e falocêntrica. Dessa forma,
convocamos a Museologia a considerar outras plataformas de memórias em consonância com as
demandas sociais contemporâneas apresentadas pelas mulheres negras.
O Projeto de Extensão Xirê da Leitura: Mulheres Negras Grafando Memórias em Letras de
Poesia, em funcionamento desde 2019, realiza sarais literários aberto ao público, primeiramente, na
modalidade presencial na Livraria Ifá, no bairro do Marco em Belém do Pará. Devido a pandemia
causada pelo novo coronavírus migramos para o ambiente virtual, a partir de uma pareceria estabelecida
com o Projeto Negras Conexões da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). No projeto, procuramos
proporcionar um espaço seguro de escuta política dos poemas de poetas negras, bem como, um local de
enunciação protagonizado por mulheres negras.
1
É baiana do Recôncavo, poeta, feminista negra, professora do curso de Museologia na Faculdade de Artes Visuais (FAV),
Instituto de Ciências da Arte (ICA), Universidade Federal do Pará (UFPA). Em 2017 publicou na cidade de
Lisboa/Portugal o seu primeiro livro de poemas intitulado Etnografias Uterinas de Mim. No ano de 2018, participou com
poemas de sua autoria na antologia Djidiu: A Herança do Ouvido - Doze formas mais uma de se falar da experiência negra
em Portugal, em parceria com poetas de Angola, Guiné Bissau e Cabo Verde residentes em Portugal. É criadora e editora do
blog Etnografias Poéticas de Mim. Atualmente realiza projetos de pesquisa e extensão na UFPA, estabelecendo diálogos
transdisciplinares entre literaturas de mulheres negras (prosa e poesia) e Museologia. E-mail: luziagomes@ufpa.br
2
É paraense, graduanda em Museologia na Faculdade de Artes Visuais (FAV), Instituto de Ciências da Arte (ICA),
Universidade Federal do Pará (UFPA) discente pesquisadora no projeto de pesquisa: Memórias que vêm das palavras:
olhares museológicos para as literaturas de mulheres negras. E-mail:jomaramuseo@gmail.com
3
É paraense, graduanda em Museologia, na Faculdade de Artes Visuais (FAV), Instituto de Ciências da Arte (ICA),
Universidade Federal do Pará (UFPA)discente pesquisadora no Projeto de Extensão: Xirê da Leitura: Mulheres Negras
Grafando Memórias em Letras de Poesia. E-mail:castrojulie18@gmail.com
152
Fundamentadas no tríadeensino-pesquisa-extensão, em 2020 criamos o Projeto de pesquisa
Memórias que vêm das palavras: olhares museológicos para as literaturas de mulheres negras , em
parceria interinstitucional com o curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
através do Projeto de pesquisa Museologia e Literatura de Mulheres Negras: Descolonização do Olhar
em Arte Decorativa, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Joseania Miranda Freitas. Nesses projetos, trabalhamos
com romances de escritoras negras brasileiras e estrangeiras, mapeando os seus olhares sobre o mundo
que as cercam, filtrados pela ficção. Entrelaçar essas prosas com a Museologia é a nossa tentativa de
apresentar à teoria museológica pensamentos negros que contribuam para a construção de processos de
musealização antirracistas e antissexistas no contexto amazônico. É uma tarefa museológica descentrada
que busca valorizar novas perspectivas no âmbito do fazer museal em toda a sua complexidade diante do
tratamento teórico e prático da Museologia (documentação, conservação, pesquisa, exposições,
salvaguarda de objetos).
Sabemos que a escrita é uma forma de poder no mundo ocidental e ocidentalizado, porém,
escrever por muito tempo foi um ato interditado à população negra afrodiaspórica. Contudo, isso não
significa que as mulheres negras não estivessem escrevendo e criando estratégias de registrar os seus
conhecimentos produzidos a partir de saberes endógenos. Ao nos debruçarmos sobre as prosas e as
poesias de autoras negras, encontramos narrativas que nos dão aparato teórico para reformular o ensino,
a pesquisa e a extensão na academia, criando diálogos com o público não acadêmico, evidenciando as
memórias afrodiaspóricas e africanas com respeito, com o direito de narrar a si, as suas e os seus.

OBJETIVOS
O nosso principal objetivo, a partir nos projetos de pesquisa e extensão, é construir novos
referenciais teóricos, culturais e artísticos, intermediados pela arte literária de mulheres negras. Entender
as literaturas de autoras negras como produção de conhecimentos é uma forma de alterar as construções
de epistemologias na teoria e prática museológica, mas também, de tensionar as representações dos
corpos negros nos espaços museais na cidade de Belém do Pará.
Tanto a academia quanto os museus, em muitos aspectos, ainda materializam o racismo
sistêmico. Isso é evidenciado diante da não presença com equidade de referências de autorias negras em
nossos projetos pedagógicos e planos de ensino, até a não identificação com nome e sobrenome de
pessoas negras, muitas vezes expostas em pinturas e fotografias de artistas renomadas e renomados.
Dentre as características perniciosas do racismo temos o apagamento de memórias e narrativas negras a
partir do seu lugar de enunciação. Construir novos referenciais teóricos e artísticos não é uma tarefa
fácil, uma vez que a colonialidade segue imperando nas instituições de ensino e de arte. Porém,
acreditamos ser necessário esperançar utopicamente e contribuir com ações práticas para erradicação do
racismo do tecido social brasileiro.
Outro objetivo, almejado nos dois projetos, é apresentar as pluralidades das escritas de mulheres
negras, pois, outra forma de apagamento construído pelo racismo é a transformação dos corpos negros
numa massa homogênea. A colonização nos destituiu de individualidades e subjetividades e essa
permanência continua por conta da colonialidade vigente. As prosas e as poesias de romancistas e poetas
negras tratam de diversos temas com estilos e características singulares em diferenciação. Também
explicitamos: autoras negras não escrevem apenas sobre o tema do racismo. Sim, o racismo atravessa
perversamente as vidas das mulheres negras, mas ele não é definidor e nem limitador das nossas
existências.

153
Por mais que pareça um mantra contemporâneo, muitas vezes, um dos nossos objetivos é a
descolonização: do olhar, do escutar, do ler, do escrever e do musealizar. Não é possível ressignificar e
reconstruir as memórias negras se não houver um movimento comprometido com a descolonização dos
saberes. Isso implica deslocar nossos olhares, nossas escritas, nossas leituras e nossas escutas. Esses
processos são construções sociais continuamente alinhadas e desalinhadas de acordo com as perspectivas
de pertenças dos grupos humanos racializados e não racializados. Ou seja, cada grupo constrói suas
narrativas de acordo com o seus modos de pensar e notar o mundo.

METODOLOGIA
O projeto de Extensão, o Xirê da Leitura: Mulheres Negras Grafando Memórias em Letras e o
de Pesquisa, Memórias que vem das palavras: olhares museológicos para as literaturas de mulheres
negras, apesar de dialogarmetodologicamente com a interseccionalidade e a multivocalidade, a própria
metodologia se torna um tema de estudos e experimentação. Nesse sentido sempre estamos
questionando: Quais metodologias usar? Como pensar metodologias e métodos de investigação
descolonizantes? Como ultrapassar a barreira do descrédito dada diante da escrita das/os não-
brancas/os, muitas vezes consideradas sem rigor científico? Quais fontes utilizar? Como lidar com as
lacunas do conhecimento acadêmico museológico?
De acordo com Aimé-Césaire (1978): “[…] a civilização nunca foi feita até agora senão pelos
brancos.” (CÉSAIRE, p. 34). Se as Epistemologias não são neutras, evidentemente que as Metodologias
não são imparciais. Um único ponto de vista do que é “ciência” não cabe mais nessa tal
contemporaneidade, porque isso se configura como hegemonia epistêmica e metodológica. Não
podemos, por fim esquecer, que nenhuma hegemonia se materializou sem os recursos das violências
física e simbólica. Pensamos a metodologia num construto dos eus para o nós numa singularidade-
plural. Pois, como nos lembra a artista e intelectual Grada Kilomba:
Quem pode falar? Quem pode produzir conhecimento? Que conhecimento é
reconhecido como tal? (…) Não estou interessada em trabalhar numa só
disciplina; estou interessada em contar histórias. Depois cada uma dessas
histórias precisa de formatos diferentes […]. É uma forma de subverter as
práticas artísticas que têm sido representadas pelo homem branco, pelo sujeito
dominante. […] descolonizar o conhecimento, é trazer a questão da raça, do
género, da sexualidade como partes inseparáveis de um discurso. Eu não sou
apenas uma mulher, sou uma mulher negra (KILOMBA, 2017, sítio web).
Teoricamente, embasamo-nos nos pensamentos e teorias pós-colonial, decolonial e do
feminismo negro. Nos dois projetos optamos por romper com “as disputas de teorias” e metodológicas.
Partimos da premissa de que a Museologia precisa lançar um olhar plural, interseccional e multivocal
nas suas teorias e práticas. Nesse sentido, a metodologia se mostra descentrada no momento em que
busca saberes em intelectuais afrodiaspóricas.
Além disso, utilizar os sarais para dialogar sobre a literatura produzida por mulheres negras (no
âmbito nacional e internacional) tem sua configuração diferenciada dos tradicionais métodos de
pesquisa lineares, ou seja, nos sarais existe uma troca de escutas e falas dando liberdade às interpretações
e saberes de cada pessoa. E, é nessa trama do sarau, que a pesquisa se regula e se reforça no âmbito
público e coletivo de vozes. Ademais, também não queremos propor uma metodologia que vise a
oralidade dos saraus como única forma de romper com métodos tradicionais, mas, a partir da
perspectiva decolonial, dialogar com metodologias novas entre o oral e o escrito, o escrito e o oral.
154
RESULTADOS E REFLEXÕES
Os dois projetos aqui apresentados estão em funcionamento, porém, com a execução deles,
consideramos de suma importância refletir sobre o papel desempenhado por mulheres negras na arte
literária, como um ato político, subversivo e insubmisso. Visto o caráter embranquecedor no qual a
academia e os museus, na maioria das vezes, nos apresentam, é necessário pensar e agir diante dos
apagamentos culturais e sociais praticados tanto pela Academia quanto pelos museus, assim, a autora
Eliana Alves Cruz (2018), em seu livro Água de Barrela, nos diz:

[...] não queremos mais aquilo que embranquece a negra maneira de ser. Não
queremos o lento e constante apagamento da cor da terra molhada, suada,
encantada [...] Queremos os remendos dos panos, nas tramas dos anos
sofridos, amados [...] e acima de tudo, apaixonadamente vividos (CRUZ,
2018,p. 11).

Outro aspecto a ser destacado é que com a realização do projeto, pensamos cada vez mais sobre
alguns questionamentos: o que é ser mulher negra amazônida brasileira, o que é ser mulher negra
brasileira vivendo na Amazônia e a nossa invisibilidade dentro da Região Norte. Temos uma
dificuldade constante de encontrar publicações literárias de mulheres negras amazônidas, especialmente,
na categoria romance. E nos questionamos: Onde estão as romancistas negras amazônidas brasileiras?
Por que temos dificuldades de acessar as produções literárias de mulheres negras dos países que fazem
fronteiras com a Amazônia Brasileira? A cientista social Tainara Pinheiro (2020) ressalta que os
resultados da política de embranquecimento da população são manifestados a todo momento e que, em
alguns casos, como na capital belenense, a caracterização de “cidade morena” arquitetada com o
propósito de apagamento da identidade negra nos impossibilita de reconhecer uma Amazônia que
também é negra (PINHEIRO, 2020).
Outro aspecto que trazemos para reflexão é que além de escrever, também necessitamos ter
escuta política e representatividade igualitária nas diversas instituições da sociedade brasileiras. Ainda é
preciso indagar: As mulheres negras são escutadas com respeito e têm credibilidade nos espaços
hegemônicos de artes e da academia? Ofertamos de fato, atenção cuidadosa as memórias negras nos
museus paraenses? Nos espaços hegemônicos da arte literária, dentro e fora da academia legitimamos da
mesma forma a escrita das contemporâneas Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector? Quais são os
corpos produtores de “obras clássicas” seja na Arte Literária ou na Ciência?
Partindo da importância da Década Internacional dos Afrodescendentes 4declarada pela ONU;
assim como, de toda a herança negro-africana na formação da sociedade brasileira e reivindicando o
direito à memória e à literatura que todas as pessoas devem ter, acreditamos que as artes literárias
contemporâneas produzidas por mulheres negras, brasileiras e estrangeiras, é de suma relevância para o
contexto belenense da mesma forma que as artes criadas por pessoas brancas, as quais conhecemos com
certa propriedade devido ao brancocentrismo premente nas produções acadêmicas, nos museus e nos

4
A ONU (Organização das Nações Unidas) declarou a «Década Internacional de Afrodescendentes», no período de 2015 a
2024. “Ao declarar esta Década, a comunidade internacional reconhece que os povos afrodescendentes representam um
grupo distinto cujos direitos humanos precisam ser promovidos e protegidos. Cerca de 200 milhões de pessoas auto
identificadas como afrodescendentes vivem nas Américas. Muitos outros milhões vivem em outras partes do mundo, fora do
continente africano. Segundo BAN KI MOON, Secretário-geral das Nações Unidas: ‘Devemos lembrar que os povos
afrodescendentes estão entre os mais afetados pelo racismo. Muitas vezes, eles têm seus direitos básicos negados, como o
acesso a serviços de saúde de qualidade e educação’” (ONU, 2015, sítio web). Disponível em: http://decada-afro-onu.org/.
Acesso em 31/12/2018.
155
espaços oficiais de arte. Movimentar as prosas e as poesias de mulheres negras em Belém a partir da
pesquisa, da extensão e do ensino, é uma forma de desestabilizar a pirâmide normativa, forjada e
mantida por um projeto colonial brancamente masculino e eurocêntrico de desumanização e
objetificação humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acessar as prosas e as poesias de mulheres negras pode ser um movimento político para a
descolonização das mentes de todas as pessoas envolvidas na produção científica (Academia, museus,
galerias, exposições, feiras de ciência e arte, etc.). Por mais que reconheçamos a importância da oralidade
para diversos coletivos afrodiaspóricos, ainda assim não podemos esquecer que muitas vezes, esses
grupos precisam recorrer à escrita para ter seus saberes reconhecidos e legitimados. Essa oralidade tão
necessária e dignificante na manutenção da ancestralidade negra no continente americano, em muitos
contextos precisa ser transformada em texto escrito, grafado no papel. Podemos afirmar que o domínio
da leitura e da escrita pela população negra foi e continua sendo é um projeto político das nossas mais
velhas e dos nossos mais velhos, para que possamos assim reescrever novas histórias e memórias com
dignidade, humanidade e respeito.
Reconhecemos as artes literárias de mulheres negras como um patrimônio contemporâneo que
não passa pela chancela do Estado, porém é desestruturador da colonialidade presente em nossa
sociedade. A ruptura com os legados coloniais não ocorrerá sem a participação das mulheres negras na
condição de agentes reflexivas. Consideramos que os nossos projetos configuram uma forma de desatar
os nós do racismo e sexismo epistêmico e artístico, criando laços de acolhida, cura, amor e deslocamento
teórico. É uma possibilidade cuidadosa de pluralizar as narrativas escritas e imagéticas do povo negro na
sociedade brasileira como um todo.
Por fim, consideramos que a literatura dialogada com o conhecimento científico pode
fundamentar propostas construtivas de epistemologias antirracistas e antissexistas na
contemporaneidade. A arte literária não pode e nem deve ser vista como um apêndice da ciência e sim,
uma interlocutora transdisciplinar que rompe com as fronteiras teóricas e metodológicas, muitas vezes,
limitantes da nossa percepção de mundo na vida acadêmica.

REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma única história. Tradução Julia Romeu. 1ª Edição.
São Paulo: Companhia da Letras, 2019.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo horizonte (MG): Letramento, 2018.
AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte – MG: Letramento: Justificando,
2018.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o Colonialismo. Livraria Sá da Costa Editora. Tradução Noémia de
Sousa. 1ª edição. 1978.
CRUZ, Eliana Alves. Água de Barrela. Rio de Janeiro: Malê, 2018.
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução de Marcelo
Brandão Cipolla. São Paulo: editora WMF Martins fontes, 2013.

156
FREITAS, Joseania Miranda; OLIVEIRA, Lysie dos Reis. Memórias de um tamborete de baiana: as
muitas vozes em um objeto de museu. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica, Salvador, v. 05,
n. 14, p. 541-564, maio/ago. 2020.
KILOMBA, Grada. apud. DUARTE, Mariana. «Grada Kilomba é a artista que Portugal precisa de
ouvir». Matéria In: Jornal Publico, publicada no dia 18 de agosto de 2017. Disponível em:
https://www.publico.pt/2017/08/18/culturaipsilon/noticia/grada-kilomba-e-a-artista-que-
portugal-precisa-de-ouvir-1782377. Acesso em 19/04/2021.
PINHEIRO, Tainara. Negra quando?: Identificação de si enquanto evento e tipificação do racismo
como temporalidade em Belém-Pa. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UFPA. Orientadora: Carmem
Izabel Rodrigues 2020.

157
Círculos de Saberes e afetos 03
EDUCAÇÃO POPULAR, MULHERES, RELIGIOSIDADE,
SABERES ANCESTRAIS
NARRATIVAS DE PARTEIRAS: VALORIZAÇÃO E PRESERVAÇÃO DE SABERES E
PRÁTICAS TRADICIONAIS NA CIDADE DE TEFÉ-AMAZONAS

Thaila Bastos da FONSECA1


Marcilene Queiroz Cabral SANTOS2
Andrea Barros QUEIROZ 3

INTRODUÇÃO
A presente pesquisa visa, sobretudo, evidenciar os saberes tradicionais de parteiras e benzedeiras
da cidade de Tefé-Amazonas, como também descrever as experiências vividas por mulheres
sobreviventes de uma doença muito comum nesta localidade, a “Mãe do Corpo”. Ela se manifesta após
o parto, e quando a mulher não tem um bom “resguardo”, pode vir a óbito. Vale frisar que o universo
das crenças e os conhecimentos de práticas tradicionais são imprescindíveis, pois curam e salvam pessoas
que moram em comunidades tradicionais rurais distantes da cidade.
Os saberes tradicionais não estão constituídos na mesma lógica que o saber biomédico, por isso
pode fazer pouco sentido para um profissional de saúde a ideia de existir uma “mãe do corpo” e que
esta interfere nos processos de gestação, parto e nascimento. No entanto, afirmamos que os saberes
tradicionais não necessitam do reconhecimento da ciência para se constituírem como saber, pois existem
e estão presentes na vida das pessoas, e, mais, tem eficácia. Com isso, pretendemos colocar em evidência
e em análise o saber tradicional das parteiras em torno de um dos fenômenos que cercam a vida das
mulheres que é a “mãe do corpo”.
A metodologia empregada centrou-se na história oral e para amostragem da pesquisa trazemos
relatos e experiências de quatro parteiras. O respectivo método é uma das possibilidades de privilegiar e
legitimar os saberes que durante muito tempo ficaram à margem como fonte de conhecimentos. A
história oral possibilita compreender os saberes interligados às gerações passadas, mas que refletem de
forma significativa no presente, revelando aspectos imprescindíveis para a compreensão histórica de
comunidades com práticas e medicinas tradicionais.
Este método é fundamentado nas experiências humanas, que de acordo com Walter Benjamin,
no prefácio do livro A voz do passado, “... qualquer um de nós é uma personagem histórica.”
(THOMPSON, 1992, p.19). Neste aspecto, a utilização do método da história oral é de grande
relevância, pois contribui para a preservação e ressignificação da tradição oral de um povo, posto que:

[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória
nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de
pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial,
como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um
pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos
(THOMPSON, 1992, p.17).

1
SEDUC/ UEA. E-mail: thailabastos@yahoo.com
2
SEDUC/ UEA. E-mail: mqcsantos@gmail.com
3
SEDUC/ UEA. E-mail: andreaqueiroz10@hotmail.com
159
Desse modo, é muito importante a presença das pessoas como testemunhas do passado, visto
que, ao ouvi-las, observamos que elas têm sempre algo de importante a nos dizer e que podem
contribuir para a construção histórica e identitária de determinado povo. Assim, como principais
resultados inferimos que as parteiras carregam uma multiplicidade de saberes e fazeres oriundos de
práticas tradicionais que salvam vidas nas localidades mais longínquas, e é necessário que reconheçamos
o poder que essas pessoas engendram em suas mãos. A “mãe do corpo” guarda diferentes significados,
interpretações e práticas, como qualquer fenômeno social, e tentamos juntos construir uma fala diversa
sobre o tema. Por fim, entendemos que a “mãe do corpo” faz parte do universo social das mulheres e
que habita o corpo feminino, necessitando que as parteiras, os benzedores e outros cuidadores estejam
presentes para cuidar das mulheres para que a sua “força vital” permaneça como sinônimo de vida e
saúde e não de doença e morte.
De acordo com os relatos de algumas parteiras de Tefé, os problemas com a “Mãe do Corpo”
se dão após o parto, podendo ser entendido como uma doença. Segunda elas, uma das possíveis causas é
a falta de cuidado das mulheres em relação à sua vida sexual, adquirindo doenças que não foram tratadas
adequadamente. Outra causa da “Mãe do Corpo” aparecer é quando a mulher não cumpre o período do
resguardo, fazendo força ou sofrendo uma queda. Existe também outro motivo, o fato de a mulher,
durante o resguardo, ficar sem se alimentar, ou passar do horário de comer, pois é quando a doença se
manifesta.
Segundo Wawzyniak (2008) o corpo humano não se autorregula, não se desenvolve
independente das múltiplas intervenções realizadas sobre ele, ao longo da vida das pessoas. De forma
análoga aos espaços e seres, o corpo humano também é regulado por uma mãe: a “mãe do corpo”. O
tratamento da “mãe do corpo” envolve massagem e remédios caseiros, que são utilizados para a
melhoria do mal-estar causado pela doença. A autora destaca ainda que, os transtornos de uma “mãe do
corpo” fora do lugar ou dispersa podem ser chamados de doença, mas não é a mãe do corpo em si. A
“mãe do corpo” está mais associada à uma questão positiva do que negativa, ou seja, a sua dispersão ou
perda pode gerar a doença. Por isso, uma mãe do corpo centrada promove a saúde.
Na perspectiva das parteiras de Tefé, quando a “Mãe do corpo” sai na hora do parto, é
necessário colocar a placenta em cima da barriga da mulher para ajudar no tratamento. Se sair antes do
bebê nascer, provavelmente haverá a morte de ambos. Uma das explicações para esse problema seria a de
que após o parto o útero ficaria procurando o bebê que ficou nove meses ali dentro. A outra seria a de
que durante a gravidez os órgãos se deslocam para o encaixe da criança e após o parto começam a
retornar para seus lugares de origem. Nos relatos das parteiras percebemos que há diferentes explicações
para os significados para a “mãe do corpo”. As mais antigas dizem que é uma tripa existente dentro das
mulheres, em contrapartida, as mais novas afirmam que é o útero se movimentando.
Percebemos que as parteiras tradicionais também incorporaram conhecimentos biomédicos,
pois tem contato com as equipes de saúde, passaram por processos formativos e participam de
atividades educativas. Por outro lado, o contato das parteiras com os serviços nas comunidades rurais e
ribeirinhas é mais constante devido à ampliação da cobertura da atenção básica em saúde pela Secretaria
Municipal de Saúde.
Dessa forma, ao ser questionada sobre o que é a “mãe do corpo”? E como ela aparece? Dona
Maria Ninita, moradora do Bairro Colônia Ventura, na cidade de Tefé, com 84 anos e atuando há mais
25 anos como parteira relatou:
É quase como nossa tripa, mas é nossa vida, como dizem vamos matar a mãe
do corpo, não mata, porque mata a pessoa, aí quando ela sai, fica avermelhada,
160
e quando passa da hora que ainda está fora, ela incha, é outra coisa ruim, se
não souber vão operar, mas quando a parteira sabe como vai fazer, esquenta a
folha do algodão roxo, amorna e espreme, levanta a perna da mulher, espreme
e recolhe para dentro. Depois que recolhe, a parteira puxa para o canto dela e
pronto. Ela acontece, quando a mulher não se cuida e fica uma mulher doente,
sempre com dor na “pente” 4. No período da gravidez, e depois da gravidez a
parteira puxa, mas a mãe do corpo dói mais (Entrevista realizada em Tefé no
dia 05 de outubro de 2019).
Mediante o exposto, a parteira compara a “Mãe do Corpo” a uma tripa, que seria a vida da
mulher, adquirindo a cor avermelhada quando sai do corpo. Quando isso acontece é feito um
tratamento à base de massagem e do chá da folha do algodão roxo. Nesta narrativa é nítida a presença
do saber popular e tradicional, sendo saberes e práticas que atravessam gerações e salvam mães e
crianças. A parteira menciona ainda os cuidados que as mulheres devem ter depois do parto, seguindo o
“resguardo”, assim como as mulheres menstruadas. “O esforço físico realizado pela mulher durante a
gravidez e os cuidados que ela tem com o seu corpo, tudo isso influencia o bebê que está no ventre da
mãe” (WAWZYNIAK, 2008, pg. 112).
A parteira Maria Das Dores tem 42 anos, nascida na Ilha do Batalha, no Município de Fonte
Boa, Amazonas, residente na cidade de Tefé, diz que sua experiência enquanto parteira se iniciou aos 6
anos de idade, pois é filha de parteira e nos relatou que:
Nós sabemos quando o bebê está na barriga, os nove meses, quem faz todo
um trabalho de alimentação, de mandar avisar que o bebê tá com fome, é o
cérebro. Ele trabalha todo o domínio do nosso corpo. Então é na minha
concepção e de ouvir das outras parteiras, de ouvir outros relatos, e eu vejo
que eu tenho esse dom de fazer essa leitura. Eu faço essa leitura da seguinte
forma, que quando o bebê sai da barriga, ao nascer, o útero continua lá e o
cérebro fica procurando, quando ele não termina de processar, quando ele não
consegue entender que esse bebê não está dentro da barriga, ele fica
processando, fica procurando. Nessa concepção que eu digo que existe a mãe
do corpo, porque faz parte do corpo dela e faz parte do cérebro desse
domínio (Entrevista realizada em Tefé no dia 05 de outubro de 2019).
Desse modo, a “mãe do corpo” aparece em todas as mulheres, estando presente não somente no
momento do parto, pois pode ser responsável pela própria gestação. Observamos uma relação vital entre
a concepção da mãe do corpo com a gestação, parto e nascimento. Vemos nessa fala a incorporação de
expressões da biomedicina, mas ressignificadas com os saberes populares e das crenças. O antropólogo
Eduardo Galvão em estudo numa comunidade do Estado do Pará diz que: “Parteiras, especialmente
dotadas, são muito conhecidas como rezadeiras ou benzedeiras, e utilizam desse conhecimento nos
partos como cura de muitos tipos de doenças” (GALVÃO, 1955, p. 122).
A parteira Terezinha Maciel, aposentada, de 65 anos, moradora do Bairro do Abial, situado na
Cidade de Tefé, trabalhou a vida toda como agricultora, tem 15 anos de prática no ato de partejar:
A “mãe do corpo” quando está inflamada é o útero. Eu creio que seja o útero,
a gente vai fazer o remédio, o chá e dá pra mulher beber. A mãe do corpo não
aparece só na gravidez, quando se tem a criança também, fica doendo, aí a
4
A pente, para a dona Ninita é o “pé da barriga”, ou seja, a região abdominal que está localizada na parte inferior da barriga
da mulher. Segundo a entrevistada, é onde a cabeça do bebê se encaixa na hora do parto.
161
gente vai puxa, puxa, coloca no lugar e aí dá o chá pra ela tomar, o chá da
casca do algodão roxo (Entrevista realizada em Tefé no dia 05 de outubro de
2019).
Observamos na fala da parteira Terezinha que a “mãe do corpo” pode passar por uma
inflamação no útero da mulher e o tratamento começa com chás e massagens. Em outros estudos,
mostra a relação da “mãe do corpo” como sendo o útero, quando se espalha causa dor, precisando ser
colocado no lugar ou quando a mulher não faz o resguardo direito (LIZARDO, 2016). O problema
pode surgir depois da gravidez, através de sua vasta experiência como parteira, destaca ainda que o chá
da casca do algodão roxo é fundamental para auxiliar no tratamento. Além do chá, “o tratamento desses
pequenos males é feito pelas benzedeiras que de pé, recitam largo tempo a reza apropriada,
acompanhando a oração com repetidos sinais da cruz sobre a parte afetada do corpo do paciente para
que sejam realmente eficientes” (GALVÃO, 1955, p. 122).
Neste aspecto, Lizardo (2017), no estudo da etnia Baré no Rio Negro, descreve três tipos de
problemas afetados pela mãe do corpo e os modos como são e por quem são tratados.
Tem a mãe do corpo que sobe para o estômago que é quando a doente diz ‘minha madre subiu’,
tem a outra que desce que é quando a doente diz que a madre desceu e que em alguns casos faz com que
o útero da mulher chegue a sair, e o terceiro tipo é o pior de todos que é aquele que encosta na coluna,
que segundo as benzedeiras é a mais perigosa (LIZARDO, 2016, p. 100).
Sobre o processo de cura da “Mãe do Corpo” Dona Sebastiana, aposentada, de 79 anos,
moradora de Tefé e parteira de vasta experiência relata que:
Eu pego a mãe do corpo e faço massagem pra colocar ela no lugar, e quando
ela tá com muita dor né, eu faço compressa de água quente. Eu ajeito todinho
ela, aí eu a esquento pra poder parar a dor senão a pessoa grita. Isso acontece
porque cria a frieza, nasce como uma criança, no meu tempo quando eu
morava no Uarini (município próximo de Tefé, na região do Médio Rio
Solimões), morreu uma sobrinha minha com a mãe do corpo. A mãe do corpo
é o útero, dizem que é o útero, aí a criança, a criança se cria junto dela,
quando a criança, ela ficando, aquela bola, pra lá e pra cá, aí tem que fazer o
chá caseiro pra poder ela parar, o chá de arruda, alho e a folha da
“mucuracaá” pra parar né, ela aparece se a gente passar da hora de tomar
qualquer coisa quente ela dói, dói, dói que na mulher fica insuportável”
(Entrevista realizada no dia 05 de outubro de 2019).
A “Mãe do Corpo” segundo Dona Sebastiana seria um ser que vive dentro do corpo durante a
gravidez e após o parto, o qual fica procurando a criança. Quando não encontra o bebê, ela fica
impaciente e persiste na busca, sendo neste momento que as dores se agravam levando as mulheres para
a morte quando não cuidada de forma adequada. As parteiras identificam o problema com apenas um
toque na área afetada, sentem o estado em que o útero se encontra. Pela fala da D. Sebastiana a “mãe do
corpo” precisa ser ajeitada e colocada no lugar. Há uma noção geral de que há uma dispersão ou um
deslocamento da “mãe do corpo”, que precisa ser “ajeitada” para reduzir as dores e poder ajudar na
gravidez, como se fosse uma força vital capaz de produzir uma vida.

Assim, “puxar a mãe do corpo” é o uso da técnica de massagear a barriga da


mulher para colocar a mãe do corpo no lugar, que se localiza “logo abaixo do
umbigo”. Esse deslocamento pode acontecer tanto com gestantes como não

162
gestantes e pode causar doença e morte. Por isso, que a parteira deve “logo
após a expulsão da placenta, uma mulher mais velha e experiente deve
reposicionar a mãe do corpo por meio de uma sériede massagens sobre o
ventre da parturiente” (SCOPELet al, 2017, p. 188).

Entendemos, portanto, que a “mãe do corpo” guarda diferentes significados, interpretações e


práticas, como qualquer fenômeno social, e tentamos juntos construir uma fala diversa sobre o tema. Por
fim, entendemos que a “mãe do corpo” faz parte do universo social das mulheres e que habita o corpo
feminino, necessitando que as parteiras, os benzedores e outros cuidadores estejam presentes para cuidar
das mulheres para que a sua “força vital” permaneça como sinônimo de vida e saúde e não de doença e
morte. Ao final, nossa gratidão a essas mulheres que mantem o equilíbrio da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A motivação de escrita e de escuta sobre o tema “mãe do corpo” é, antes de tudo, uma opção
ético-política em relação ao conhecimento e também aos processos de emancipação das pessoas. Assim,
escrever juntos traz consigo uma opção por um conhecimento mais aberto e libertador, abrindo a roda
para a inclusão de outras formas de conhecimento que sempre estiveram presentes na Amazônia, mas
que foram esquecidas e invisibilizadas pelo conhecimento hegemônico das ciências e pelas práticas de
saúde que também impõem os saberes biomédicos sobre os corpos das pessoas. Por fim, tomamos esse
exercício como aprendizado e uma opção metodológica pela participação.
As parteiras carregam uma multiplicidade de saberes e fazeres oriundos de práticas tradicionais
que curam e salvam vidas nas comunidades mais isoladas e remotas da Amazônia. A presença dessas
mulheres é fundamental para a saúde das mães e crianças que as procuram para aliviar as dores que as
afligem na gestação, no parto e no pós-parto ou no resguardo. Apesar da importante presença dos
serviços de saúde, principalmente da atenção básica, entendemos que precisamos ampliar os espaços de
diálogo e exercitar a prática do cuidado intercultural, ou seja, participação de diferentes perspectivas nas
cenas e cuidados.
Demonstramos com este trabalho, que as rezas, massagens e as plantas medicinais podem ajudar
no cuidado e no tratamento da “mãe do corpo”, mas também contribuem para colocar em ordem
àquelas doenças que produzem desordem na vida das pessoas. Desse modo, não é só o reconhecimento
desses saberes, mas também a construção de diálogo entre os serviços e esses cuidadores populares é de
extrema importância para a produção do cuidado nos diferentes territórios (FEICHAS, et al, 2019).
O poder que essas pessoas engendram pelas mãos e, sobretudo, pela força da medicina
tradicional, mostra os limites da ciência moderna cartesiana. O universo das crenças tradicionais está
para além da história natural das doenças ou pela comprovação empírica, pois jamais poderíamos trazer
“evidências” experimentais sobre a “mãe do corpo”. Assim, a construção de espaços que promovam a
proposta da Ecologia dos Saberes é uma forma de repensarmos as nossas práticas científicas para a
abertura às outras formas de construir o conhecimento. Portanto, o reconhecimento da pluralidade de
interpretações do mundo passa pela visibilidade de outros saberes que foram ignorados pelo pensamento
científico moderno europeu. A questão que fica é como produzimos um saber em redes, em que todos
possam participar a partir das suas cosmologias e seus lugares de fala. Assim, temos a tarefa de
descolonizar o pensamento com o exercício de escritas compartilhadas que demonstram a
potencialidade e a criação de novas formas de relação com o outro, com o diferente e o com a vida nos
territórios da Amazônia.

163
REFERÊNCIAS
FEICHAS, N. M.; SCHWEICKARDT, J.C.; LIMA, R.T.L. Estratégia Saúde da Família e práticas
populares de saúde: diálogos entre os saberes em um território de Manaus. In: Schweickardt, J.C.; Kadri,
M. R.; Lima, R.T.L. (orgs.). Atenção Básica na Região Amazônica: saberes e práticas para o
fortalecimento do SUS. Porto Alegre: Rede Unida, 2019.
GALVÃO, E. Santos e Visagens um estudo da vida religiosa em Itá: Amazonas. São Paulo: Editora
Nacional, 1955.
LIZARDO, L. MUTAWARISÁ: benzimento entre os Baré de São Gabriel da
Cachoeira - Alto Rio Negro. Dissertação de Mestrado. Antropologia Social. Manaus: Ufam, 2017.
SCOPEL, R. D.; SCOPEL, D.; LANGDON, E.J. Gestação, Parto e Pós-parto entre os
Munduruku do Amazonas: confrontos e articulações entre o modelo médico
hegemônico e práticas indígenas de autoatenção. Ilha. v. 19, n. 1, p. 163-182, 2017.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. [1978]
WAWZYNIAK, J. V. Assombro de Olhada de Bicho. Uma Etnografia das concepções e ações de
saúde entre ribeirinhos do baixo rio Tapajós, Pará-Brasil. Programa de Pós-graduação da Universidade
Federal de São Carlos (UFScar), 2008.

164
O PERFIL DE LIDERANÇA DA MULHER NEGRA EM LENDAS AFRICANAS E NAS
RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

Márcia Gomes de OLIVEIRA1

INTRODUÇÃO
Quando o mundo se torna sombrio por causa das opiniões
contraditórias e ambivalentes, a estética, a ficção, a arte, a
poesia, a teoria, a metáfora – vem iluminar a nossa difícil
situação cultural e política.
Homi Bhabha

Quando trazidos para o Brasil pelos europeus no período colonial, negros e negras trouxeram
consigo sua cultura, linguagem, seus modos e suas histórias de vida, pois muitos foram arrancados de
suas realidades como, por exemplo, a princesa ‘Aqualtune’ (MASSA, 2012), e um desses elementos da
cultura trazidos por eles foi a religião denominada de afro-brasileira e conhecida como candomblé.
Desde a travessia do povo negro por meio dos navios negreiros o tratamento dispensado era indigno e
desumano, justamente visando retirar-lhes a dignidade de pessoa humana, aqueles que sobreviviam
perdiam o espírito orgulhoso de se saberem cidadãos livres e independentes. Ao chegarem em terra
tinham sua cultura negada e excluída caracterizando opressão por parte do sistema escravocrata, isso fez
com que seus cultos fossem além da prática de sua religiosidade, mas também uma forma de resistência.
Eram cruciais, no preparo das pessoas africanas para o mercado de escravos, a destruição da
dignidade humana, a eliminação de nomes e status, a dispersão de grupos, para não haver uma língua
comum, e retirada de qualquer sinal evidente de herança africana (HOOKS, 2020, p.43)
Nesse sentido uma curiosidade e ao mesmo tempo uma forte característica dentro do
candomblé no Brasil merece destaque, o fato de mulheres e principalmente mulheres negras, como, por
exemplo, Mãe Stella de Oxossi (CAMPOS, 2003) na Bahia liderarem os ilês (terreiros)
candomblecistas, reforçando inclusive a existência de um matriarcado dentro dos terreiros de
candomblé, são elas as referências religiosas e por vezes também políticas de suas comunidades. Nada
mais justo, pois foram elas (mulheres negras) as idealizadoras e responsáveis pela formação das primeiras
casas de candomblé no Brasil, ocupam atualmente na maioria dos ilês, o mais alto posto na hierarquia
candomblecista.
Dada a relevância da discussão para a sociedade optou-se por abordar o tema do título acima,
para tanto busca-se responder as seguintes perguntas: a) Como se dá o perfil de liderança da mulher
negra no campo literário e religioso no Brasil? b) Como pode-se inserir a discussão do feminismo negro
nesse campo literário e religioso? c) Qual a relevância de perfis como Aqualtune (Lendas) e Mãe Stella
(Religioso) na discussão de questões raciais e de intolerância religiosa?
Para esta análise partirmos de conceitos como feminismo, liderança, negritude, religiosidade,
empoderamento e discriminação. Serão pertinentes os estudos de Hooks, Verger, Benjamin, Bhabha,

Unifap. E-mail: gomesmrcia979@gmail.com


1

165
Freitas e estudos de religiões de matriz africana entre outros pertencentes ao universo das lendas, mitos e
religiosidades acerca da cultura negra.
O histórico opressor por parte dos negros e negras trazidos para cá ainda no período colonial
está consolidado nas estruturas sociais, apesar do senso comum tentar vender a falsa ideia de uma
democracia racial, as relações escravocratas se atualizam o tempo todo. A primeira vítima da covid 19
no Brasil foi uma empregada doméstica negra, não adianta camuflar o racismo se a casa grande atualiza a
senzala todos os dias em condomínios e prédios luxuosos.
É a partir desse olhar histórico de opressão do período colonial que observamos a trajetória da
mulher, evidentemente que da mulher negra, ressaltando não apenas opressão em particular sofrida por
ela, mas também o quanto isso serviu de base para que ela protagonizasse papel essencial na história de
construção de um povo, de uma civilização, deixando um legado de resistência, coragem, bravura e luta
pelos seus ideais de humanidade.
Para iniciar essa observação comecemos por duas importantes figuras de mulher negra: a
princesa Aqualtune e Mãe Stella de Oxóssi, ambas despertam para um importante aspecto que chama
atenção, o predomínio da liderança feminina e uma centralidade do princípio feminino dentro dos
cultos afro-brasileiros, bem como nas lendas africanas, principalmente no que concerne à mitologia que
é fundamento e dá base a estes cultos em muitos cantos do Brasil.
Segundo Barbara (2002, p.9),

Ao longo do processo ritual, as sacerdotisas adquirem uma sabedoria sobre o


corpo e através do corpo que as ajuda e as fortalece no desempenho de tarefas
cotidianas, esse processo, abre a possibilidade corporal de criar e de orientar
novas maneiras de viver. A experiência da fé transborda da força e alegria
evidenciadas nos rituais através do grande cuidado para e com o orixá,
experiência que a condição histórica dasmulheres negras trazidas ao Brasil
como escravas, não conseguiu abalar. As mulheres afrodescendentes
continuam no candomblé a cultuar suas divindades, continuam a louvar as
águas, continuam, enfim praticando os preceitos das “antigas” como dizem as
velhas sacerdotisas, dando força a si mesmas e conselhos a quem as procuram.

Ainda que a lei 10.639 tenha sido construída a base de muitas reivindicações, muito pouco se
tem em livros didáticos e paradidáticos acerca da cultura e história afro-brasileira e a história da princesa
Aqualtune se insere nesta situação; Ressalta-se que as lendas são baseadas em pessoas reais, a princesa
Aqualtune é pois um ancestral vivo, que deve ser do conhecimento de todos, porque sua história tem
muito da nossa história e da nossa cultura, um símbolo de resistência que mais tarde daria à luz a mãe
daquele que viria a se tornar um mártir da causa negra ‘Zumbi dos Palmares.’

[...] essas ligações por muito tempo foram esquecidas e desprezadas pelas
narrativas literárias destinadas ao público infantil e juvenil. Entretanto, a
partir do ano de 2003, com a promulgação da Lei 10.639/03, o mercado
editorial e o sistema educacional passam a produzir e consumir literatura,
história e cultura africanas e afro-brasileiras em resposta às ações afirmativas
que reivindicam o reconhecimento e legitimidade da história desse povo. A
partir disso, os escritores brasileiros voltaram os olhares para o continente
esquecido, e passaram a inserir, nas narrativas infantis e juvenis, personagens

166
negros com raízes nas histórias africanas e afro-brasileiras. Dentre esses
personagens que, mesmo de maneira tímida começaram a aparecer na
literatura, estão as princesas africanas (SEGABINAZI, 2017, p.206).

Na certeza de que esse diálogo, a reflexão, respeito e equidade de direitos aconteçam mediados
pela literatura e pelos estudos étnicos-raciais, construímos um efeito discutível acerca de verdades
institucionalizadas, no século XXI, vigente modernidade. Tal debate se justifica como oportunidade de
ampliar os conhecimentos e informações acerca da temática mencionada, estabelecer tal diálogo é
conhecer um pouco mais da história da nossa cultura brasileira, uma vez que tal sincretismo afro-
brasileiro só foi possível porque os negros escravizados trazidos para cá mantiveram suas raízes e
tradições.

OBJETIVO GERAL
a) Discorrer acerca do perfil de liderança da mulher negra em diferentes contextos como
as leituras de origem africanas e o candomblé do Brasil.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
b) Contextualizar o perfil de liderança da mulher negra no campo religioso e literário no
Brasil.
c) Discutir o feminismo negro no campo literário e religioso.
d) Evidenciar a importância de perfis como Aqualtune (Lendas) e Mãe Stella (Religioso)
na discussão de questões raciais e de intolerância religiosa.

METODOLOGIA
Para que essa pesquisa de fato aconteça, levando em conta os objetivos traçados, opta-se pela
pesquisa bibliográfica e documental com método qualitativo. Tal pesquisa bibliográfica/qualitativa tem
como particularidade o foco no caráter subjetivo do objeto analisado por meio de livros, revistas,
dissertações; e tantos outros meios para se alcançar o propósito de compreensão da abordagem da
temática em sociedade proposta neste projeto.
Já no aspecto da pesquisa documental/qualitativa objetiva-se analisar documentos que podem
ser antigos ou atuais para uma contextualização histórica, cultural, social, memorial de um lugar ou
grupo de pessoas, nesse sentido é uma complementação da pesquisa bibliográfica muito utilizada nas
ciências sociais e humanas.
Deste modo, pode-se dizer que a pesquisa documental é aquela onde os dados obtidos são
provenientes de documentos com o objetivo de extrair informações contidas neles para se compreender
determinado fenômeno. Tal método chama-se método de análise documental e utiliza técnicas para a
apreensão e compreensão de variados tipos de documentos ou ainda estratégias complementares para
outros métodos.
A pesquisa documental é diferente da pesquisa bibliográfica. Ainda que ambas utilizem
documentos, o que as diferencia é a fonte dos documentos, sendo no primeiro caso fontes primárias, as

167
quais não passam por um tratamento analítico, no segundo caso as fontes são secundárias, pois
englobam toda a bibliografia já tornada de ordem pública em relação ao tema.
No entendimento de Oliveira (2007), diferentemente da pesquisa documental, a pesquisa
bibliográfica, corresponde a uma modalidade de estudo e de análise de documentos de domínio
científico, cuja principal finalidade é o contato direto com documentos relativos ao tema de estudo, é
importante neste caso a certificação de que as fontes pesquisadas já são reconhecidas do domínio
público.
Lüdke e André (1986, p.17) a pesquisa qualitativa é escolhida quando o pesquisador adota um
caso a ser estudado, onde o objeto de pesquisa apresenta uma situação singular e particular. A
preocupação com determinada pesquisa é retratar a complexidade de uma situação particular,
focalizando o problema em seu aspecto total.
Para a concretização desta pesquisa aqui proposta escolheu-se análise bibliográfica já
mencionada anteriormente, uma vez que haverá uma busca por memórias, leituras, análises,
interpretações de livros, artigos, dissertações, textos que contribuam cientificamente com a temática em
questão.
Propõe-se um levantamento de passagens discursivas que evidenciem a liderança feminina negra
desde os seus primórdios no período colonial até os dias atuais, iniciando com a princesa Aqualtune e
sua história até mãe Stella de Oxóssi e seu legado atual; após isso, os dados passarão por um
desvendamento das manifestações do preconceito racial e religioso ainda tão presente atualmente
Segundo Gil (2010) na pesquisa documental, como os dados são obtidos de maneira indireta,
ou seja, por meio de livros, jornais, papéis oficiais, registros estatísticos, fotos, discos, filmes e vídeos,
essas fontes documentais evitam desperdício de tempo e constrangimento, possibilitando obter
quantidade e qualidade de dados suficiente para a realização da pesquisa.
Também ressalta que algumas pesquisas sociais somente seriam viáveis por meio de análises de
documentos. O autor apresenta também como vantagens da pesquisa documental a possibilidade de
conhecimento do passado, investigando processos de mudanças sociais e culturais, permitindo a
obtenção de dados com menor custo e ainda favorecendo obtenção de dados sem constrangimento dos
sujeitos envolvidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar da pouca visibilidade que pautas como essas têm em espaços acadêmicos, um caminho já
começou a ser percorrido por intelectuais, ativistas, militantes negros como Lélia Gonzales, Neusa
Santos Souza, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento, Virginia Bicudo e tantos
outros nomes não menos importantes nessa luta por ocupação de espaços de poder pela comunidade
negra, os debates que esses vanguardistas propuseram acontecem desde a década de 70, mas infelizmente
as universidades silenciaram estes teóricos, priorizando um currículo branco.
Muito embora tenha existido um epistemicídio em relação às produções dos intelectuais negros
como diz Sueli Carneiro, eles abriram o caminho e levantaram estes debates e cabe a todos,
principalmente dentro dos ambientes acadêmicos lê-los e reverenciá-los para que esta caminhada seja
sequenciada no sentido de garantir o espaço pelo qual tanto lutamos.
Outros importantes avanços surgiram no sentido de valorizar essa cultura afro-brasileira
contemplados, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais na forma de temas transversais que
168
tratam da diversidade cultural, tal qual os PCNs também temos a lei 10.639/03 que trata justamente da
implementação e valorização da cultura africana e afro-brasileira dentro das escolas.
Para que tal assunto por tanto tempo marginalizado e pouco difundido possa finalmente ganhar
os lares escolares, familiares, acadêmicos e sociais, dessa forma permitindo que muitos brasileiros
conheçam sua própria história, oficial e não distorcida pelas elites brancas e racistas deste país que
pesquisas como essas devem ser incentivadas, principalmente levando em conta o resgate histórico de
um povo que a vida e o legado de Aqualtune e Mãe Stella nos permitem.
São questões relevantes de muito impacto social que precisam ser revistas junto à sociedade para
que uma política de reparação histórica seja feita e isso pode começar por meio de políticas públicas
voltadas para os negros, bem como o incentivo em massa para os movimentos sociais negros, sem os
quais não sobreviveríamos a tantos casos de racismo existentes neste país, esses movimentos dão espaço
e lugar de fala para os negros, principalmente dentro das universidades onde existe a política de cotas
ainda tão atacada pela hegemonia branca que teme perder seus privilégios de maioria nos espaços de
poder.
Para Lima (2018, p.7),

Ao averiguar o processo histórico e a abolição da escravatura, constata-se que


ínfima ou nenhuma política pública foi providenciada para sanar tantas perdas
de vida e de trabalho forçado, sustentado por tantos séculos. Quase ao mesmo
tempo, incentivos à vinda de imigrantes europeus eram dadas, enquanto os
“novos libertos” foram “jogados à própria sorte”. Concomitante a estas
questões, a história transmitida de geração em geração elegeu as versões que
sempre colocaram os brancos e homens como destaque, deixando de lado os
inúmeros personagens negros que influenciaram e determinaram fatos
importantes na história brasileira; como Zumbi dos Palmares que comandou
o maior quilombo brasileiro.

É justamente por conta desse não-reconhecimento citado acima que tal compromisso na
incorporação da comunidade negra brasileira ao mercado de trabalho, dentro das universidades, na
política, na ampliação da educação formal, enfim na criação das condições infraestruturais de uma
sociedade de classes que diminua os estigmas criados pela escravidão deve ser um compromisso adotado
por todos numa postura antirracista. A imagem do negro enquanto povo e o banimento, no pensamento
social brasileiro, do conceito de "raça", substituído pelos de "cultura" e de formação da identidade
nacional brasileira, são as expressões maiores desse compromisso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÁRBARA, Rosamaria. A dança das iabás: dança, corpo e cotidiano das mulheres de candomblé. Tese
(doutorado em sociologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
BRASIL, Ministério da Educação (MEC). Secretaria de Educação Fundamental (SEF). Parâmetros
Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais, pluralidade cultural. Brasília, DF:
MEC/SEF, 1997.
CAMPOS, Vera Felicidade de Almeida. Mãe Stella de Oxóssi: perfil de uma liderança religiosa. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003.

169
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed., 3 reimpr. São Paulo: Atlas, 2010.
HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher?Mulheres negras e o feminismo/Bell Hooks; Tradução Bhuvi
Libânio. 3º ed.-Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2020.
LIMA, Fabiana Ferreira de. “Personalidades negras?! Só conheço zumbi, professora!” - a construção do
“herói” e a invisibilização do negro na história. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as
Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 10, n. Ed. Especial, p. 05-21, jun. 2018. ISSN 2177-2770. Disponível
em: <https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/383>. Acesso em: 30 dez. 2020.
LÜDKE, Menga e ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo:
EPU, 1986.
MASSA, Ana Cristina. Aqualtune e as histórias da África. Paraná: editora Gaivota, 2012.
OLIVEIRA, Maria Marly de. Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
SEGABINAZI, Maria Daniela. As princesas africanas na literatura juvenil: do branqueamento
silenciador ao protagonismo questionável. Caderno Seminal Digital, v.1, nº27, 2017, Pag. 203-244.

170
SABERES ANCESTRAIS E PRÁTICAS DE RESISTENCIA: A EXPERIENCIA DO COLETIVO
ANGOLEIRAS CABANAS EM BELÉM-PA.

Alessandra Ferreiras MARINHO1


Brenda Thais Kalife de ASSUNÇÃO 2

INTRODUÇÃO
O coletivo de capoeira angola Angoleiras Cabanas nasceu em 2018 da força do encontro e da
partilha de sentires e saberes ancestrais, entre mulheres praticantes de capoeira angola em Belém do Pará.
Este coletivo vivencia e difunde a capoeira angola com o intuito de acolher e encorajar jovens mulheres a
superar as dificuldades encontradas nesse universo, o qual ainda é referenciado como um universo
masculinizado. O coletivo tem por objetivo questionar as opressões de raça, gênero e classe,
promovendo desde encontros periódicos para treinos e conversas entre mulheres, até a promoção de
eventos, no meio urbano e rural, destinado especialmente as mulheres, que travam a luta contra o
racismo, contra o machismo, entre outros temas como o fortalecimento de lutas pelo cuidado com a
vida e pela soberania alimentar dos povos. A priori o coletivo recebeu o nome de Flores de Angola e
posteriormente no ano de 2021 foi renomeado para Angoleiras Cabanas com o intuito de rememorar a
resistência do povo cabano.
A capoeira é historicamente conhecida como uma prática de resistência afro diaspórica no
Brasil, com destaques para as capitais de Salvador e Rio de Janeiro, chegando a ser criminalizada e
saindo do código penal, somente na década de 30, em que deixa de ser nomeada apenas como capoeira
de rua e passa por transformações que perpassam por questões intelectuais e normativas, surgindo assim
as denominações: capoeira angola e regional, as quais tiveram como seus principais mentores: Mestre
Pastinha e Mestre Bimba, respectivamente.
A capoeira angola caracterizava-se como aquela que permaneceria com uma ligação maior com
os saberes ancestrais africanos e a capoeira regional como aquela que inseriu na sua prática elementos
que se assemelhavam as artes marciais ocidentais, a exemplo dos cordéis. Isso dentro de um modelo de
governo da época, o governo Vargas que tinha como estratégia política criar uma identidade nacional.
Mas é importante ressaltar que ambas as modalidades passaram por modificações, pois também havia o
intuito de retirar a imagem marginal que a capoeira carregava nos anos anteriores.
Belém-PA, apesar do pouco reconhecimento, também consta como uma das capitais mais
antigas em que a capoeira esteve presente, desde a primeira metade do século XIX. Vicente Salles em seu
trabalho “A defesa pessoal do negro – A capoeira no Pará” afirma que a capoeira existiu e se justificou
no passado entre interesses políticos e os brincantes do boi – bumbá. Segundo o autor, “os negros não
só aprimoraram sua técnica, como ampliaram seus recursos de agressão ou de defesa, incluindo navalhas,
facas, paus ou cacetes. Estes últimos instrumentos foram tomados do opressor” (SALLES, 2004 p.
114).
Neste período que dura até a década de 20 do século XX, a capoeira era uma prática de rua e
não possuía a conformação de escola, como atualmente, era tida como uma prática de vadiagem, a qual

UEPA/Coletivo Angoleiras Cabanas). E-mail: lecamarinho21@gmail.com


1

Coletivo Angoleiras Cabanas. E-mail: brendakalife@gmail.com


2

171
se desenvolveu tanto relacionada à autodefesa quanto em seu aspecto lúdico, misturado aos folguedos,
aos bois-bumbás e aos batuques, manifestações que na referida capital estavam em desacordo com a
conduta social considerada correta à época.
Atualmente Belém possui uma diversidade de estilos de capoeira (regional, contemporânea,
angola, apenas capoeira), pois como uma manifestação da cultura popular afro-diaspórica está em
constante processo de resistência e negociação.
Nesse processo histórico a capoeira permanece resistindo e se conformando historicamente em
uma lógica diferenciada da racionalidade moderna ocidental, a qual exclui outras possibilidades de
saberes, servindo como forma de resistência à dominação colonial e a colonialidade, que “são invenções
europeia-cristã, cujos agentes foram as monarquias e, em seguida os estados nacionais do Atlântico”
(MIGNOLO, 2008, p. 239).
As relações de gênero que são hierarquizadas pelos valores ideológicos da cultura ocidental têm
forte influência no terreno tradicional da capoeira angola, ainda que esta tenha sido uma arma de
resistência e luta do povo negro no Brasil. Desse modo apesar desta prática ser conhecida como um
universo masculino, a presença de mulheres não é nova, havendo registros de mulher capoeira 3 desde o
final século XIX (LEAL e PANTOJA, 1997). Não obstante, na contramão desse processo há uma
invisibilidade dessas mulheres, assim como de seus protagonismos na luta pela permanência e
emancipação no terreno da Capoeira, a partir de uma “invenção de tradições” que limitam ou até
excluem as mulheres de rituais considerados de maior hierarquia na Capoeira, a exemplo de tocar o
gunga (berimbau que rege a roda). Além disso, assim como no Brasil o mito da democracia racial como
valores não racistas dificultou o debate sobre políticas de ação afirmativas (MUNANGA, 2003), no
universo da capoeira angola a falsa ideia da igualdade de gênero e da não divisão sexual -todos na roda
são capoeiras- dificulta os debates acerca das relações de gênero. O que não se consolida ao vermos a
realidade: quanto mais alto a hierarquia da capoeira, menor é o número de mulheres.
Sendo importante ressaltar que a capoeira em todos os seus elementos carrega esse feminino
ancestral, começando pela própria palavra “CAPOEIRA”, assim como pela ginga, movimento
primordial da capoeira, que recebe esse nome inspirado na Rainha Nzinga Nbandi. Além da cabaça,
parte do berimbau, instrumento que rege a roda e que segundo a filosofia yoruba é responsável pelo
mito de criação do universo.
Nesse sentido foi com o intuito de criar ambientes saudáveis para a propagação dos saberes
ancestrais inerente a capoeira angola, assim como na busca de refletir e intervir nessas contradições ainda
existentes nessa prática que algumas mulheres praticantes dessa manifestação em Belém- PA propuseram
a formação do coletivo Angoleiras cabanas.

OBJETIVOS
a) Refletir a importância do coletivo Angoleiras Cabanas como mantenedoras de saberes
ancestrais e práticas de resistência que questionam a colonialidade de gênero no terreno
da capoeira angola.

3
A notícia, “QUE MULHER CAPOEIRA!”, foi veiculada no jornal A constituição publicado em 21 de novembro de
1876 em Belém do Pará. A citada mulher era Jerônima, escrava de Caetano Antônio Lemos, autuada por transgressão de
ordem pública na pratica de capoeiragem.
172
METODOLOGIA
Este artigo caracteriza-se por refletir criticamente a relevância do coletivo angoleiras cabanas,
que é um coletivo de mulheres praticantes de capoeira angola em Belém-PA. Para isso o trabalho
contará com abordagem qualitativa que segundo Menga-Ludke (1986, p. 11) “tem no ambiente natural
sua fonte de pesquisa e o pesquisador seu principal instrumento”, a partir de uma perspectiva teórico
metodológica da história oral, buscando relacionar a importância dos saberes ancestrais da capoeira
angola como instrumento de resistência das participantes do coletivo. Para Arias (2010) “La historia
oral, no se convierte solamente en una distinta perspectiva teórico-metodológica para la reconstrucción
del pasado de los pueblos indios, si no en un instrumento político in urgen te necesario para la
decolonización coletiva de la historia”.
É objetivando essa descolonização coletiva que a pesquisa buscou ouvir e registrar as vozes das
mulheres do coletivo, incluindo as autoras, as quais são integrantes e fundadoras do coletivo, por meio
das entrevistas semiestruturadas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Como já referendado o coletivo Angoleiras Cabanas nasce no ano 2018 como Flores de Angola,
a fim de criar um espaço de acolhimento para conhecer e reconhecer as angoleiras presentes no estado
do Pará, em que praticantes são bem-vindas independente de camisa, escola e mestre. Nasce como uma
oportunidade de criação de vínculo e de trocas que possam favorecer o fortalecimento das manas na
prática d'angola, em treino e rodas, de modo a contribuir com a permanência de mulheres, em sua mais
ampla diversidade, nos espaços da capoeiragem.
Nos primeiros momentos os encontros ocorriam em espaços públicos como praças, parques e
outros e mesmo sendo esses espaços públicos havia constante repressão por parte das forças
fiscalizadoras desses espaços, os questionamentos vinham principalmente em torno do “barulho ecoado”
pelos instrumentos, os quais são totalmente acústicos, contudo a resistência também foi constante e
permanecemos alternando a buscas desses espaços.
Nesse processo além de compartilhar treinos de movimentação e musicalidade, bases de saber
ancestral da capoeira angola, também compartilhávamos as inquietações perante o fato de mesmo sendo
essa uma prática de resistência à sociedade moderno/colonial, ainda havia uma grande propagação de
machismos, que inclusive tornavam nossos grupos de origem ambientes hostis, havendo mesmo
mulheres que naquele momento não conseguiam permanecer em nenhum grupo. Em vista dessas
contradições, Araújo (2016, p.88) aponta que “a necessidade de ampliarmos os estudos sobre a
diversificada presença feminina no contexto da cultura afro-brasileira é fundamental ao fortalecimento
dos feminismos contemporâneos”.
Araújo (2016) também ressalta a necessidade de estudos interseccionais. A capoeira angola,
atualmente, assume um cenário internacional e em alguns casos tem se afastado dos barracões da
periferia e de sua ancestralidade originaria: o corpo negro. No que concerne às mulheres esta realidade é
pior ainda, pois essas têm seus corpos destinados ao trabalho e a exploração moral e sexual desde o
período escravagista e continuam até hoje, não por uma emancipação financeira e desejo de liberdade,
mas sim por uma privação econômica, com jornadas de trabalho extensivas que cada vez mais privam
tais mulheres de estarem em espaços de coletividade e resistência, a exemplo da capoeira.

173
Além disso, ainda há toda a representação masculinizada e heteronormativa que a capoeira
carrega. A maioria das mulheres que permanece na capoeira angola não tem uma trajetória desde a
infância, aproximam-se desta prática já na idade adulta, através do contato com outras práticas
corporais, movimentos sociais ou universidades, o que tem garantido também um cenário mais
questionador no que tange as relações de gênero, numa visão não binaria, contudo que traz a necessidade
de discutirmos a garantia desta prática às meninas e às jovens negras e periféricas, traçando assim a
interseccionalidade de raça4, classe, gênero e sexualidade, tal qual proposto por Lugones (2008). A
expressão dessas múltiplas opressões pode ser observada na entrevista realizada com uma angoleira,
praticante há doze anos, quando perguntada se há diferença nos ensinamentos desta prática, por ser
mulher e ela responde:
Já senti muita INDIFERENÇA, por ser mulher negra sobretudo, pois se tiver
no treino alguma mulher branca, sobretudo gringa, até ela receberá mais
atenção do que eu. Daí a necessidade de um recorte racial, além do recorte de
gênero (Jocicleide Belém, 34 anos, profissional da saúde).
A falta de reconhecimento aos nossos saberes também se configura como um processo de
deslegitimação, Brenda relata:
Já rodei por três espaços de capoeira, no primeiro, em Belém, tinha umas
meninas experientes, mas não lembro de serem reconhecidas, aliás não eram
bem-vindas. No terceiro (com vocês), vejo um esforço da liderança em
compreender nossas angústias, anseios e críticas, há uma postura de dar
visibilidade as minas da casa, até porque elas têm feito mais presença nos
trabalhos, mas sinto que não é um processo fácil e rápido, pois quanto aos
visitantes ainda vejo uma postura retraída quando uma mina demonstra
alguma força. Sinto que há um incomodo por parte de alguns homens ao nos
verem nos berimbaus. Teve uma roda que eu estava no gunga, me tiraram do
gunga, foi para o médio, me tiraram do médio. Como se eu não tivesse
competência para ficar no berimbau. (Brenda Kalife, 32 anos, Grupo Eu Sou
Angoleiro).
Percebemos assim a colonialidade de gênero (LUGONES, 2008) no relato da angoleira, pois
há um “incomodo” em ver as mulheres exercendo seus protagonismos. Na capoeira angola, não
diferente dos outros estilos, e como intensamente perpetuado pelas cantigas, foi relegado à mulher o
lugar da subalternidade, daquela que cuida dos homens, seja na figura da esposa ou da mãe, daquela que
organiza as burocracias do grupo, mas que não deve estar no lugar do reconhecimento, esse lugar é
voltado ao homem. Outra problemática está no demonstrar de “força” relatado que se consolida as
contribuições de Oyewúmi (apud LUGONES, 2008) que traz a reflexões sobre a “complacência dos
machos”, imposto pelo sistema colonial/moderno, pois mesmo em busca da igualdade de gênero dentro
do referido grupo, quando se há rodas abertas para outros visitantes há uma supremacia masculina,
principalmente no que tange ao acesso aos berimbaus. E apesar do “esforço da liderança em dar
visibilidade as minas do grupo” a liderança não se manifesta diretamente aos outros homens quando
esses se sentem incomodados com a autonomia exercida pelas mulheres. Bem como nota-se a exigência

4
No Brasil o conceito ideológico de raça volta-se sobretudo para aqueles que fenotipicamente salientam a descendência
africana e indígena. No caso específico da região amazônica os sujeitos têm utilizado bastante a autoidentificação de afro
amazônico(a) pelo misto de características tanto negra quanto indígenas presentes no fenótipo e na identidade de nós
amazônidas.
174
de um nível de perfeição para se permanecer nos instrumentos, o qual não é exigido para os homens, o
que se traduz em constantes constrangimentos as mulheres.
Outro questionamento que reforça o coletivo é sobre o baixo número de mulheres que durante
a sua trajetória na capoeira recebem o título de mestra. Mestra Janja em seu artigo intitulado “Elas
gingam” chama a atenção para tal reflexão.
Levando-se em conta a pluralidade de formas de expressão da violência, queremos começar
destacando a baixa expectativa em torno da própria formação destas no que diz respeito ao aprendizado
da capoeira, denotando permanente crença na sua fragilidade e, consequentemente, na (de)limitação nos
espaços que estão autorizadas a atingir e a transitar. Isto pode nos permitir reafirmar a existência de uma
dominante masculinidade, cujo padrão hegemônico estabelece condutas valorativas de práticas concretas
e imaginaria de uma virilidade heroica” (ARAUJO, 2016, p.86).
Baseado nessa “virilidade heroica” que homens possuem uma compreensão que nós mulheres
não somos aptas o suficiente para “segurar a roda 5”. Contudo, quando se juntam angoleiras de vários
grupos, sente-se a energia de cada uma penetrar na outra, uma conexão que reverbera em um sucesso
coletivo, uma irmandade que circula, no tocar, no cantar e no jogar.
O compartilhamento dos relatos nos fortalece enquanto mulheres buscando, tanto ampliar
nossas ações enquanto coletivo, quanto questionar as ações machistas/patriarcais estabelecidas em
nossos grupos de origem.
Nessa busca de ampliar a atuação enquanto coletivo Angoleiras Cabanas, conseguimos, por
meio da articulação da angoleira Carmen Virgolino, um espaço com o apoio do CAC (Centro de Arte e
Cultura) e nos últimos tempos os encontros ocorriam na segurança que esse espaço possibilita, devido
agravamento da pandemia da Covid-19 ainda não retornamos.
Além disso, o coletivo já produziu alguns eventos na cidade de Belém, e mantem a prática de
capoeira angola com as crianças do Movimento Sem Terra no distrito de Mosqueiro e com a
comunidade da Vila do Apeú, em Castanhal, atividades que também estão temporariamente suspensas.
Nosso objetivo é oportunizar o contato com a capoeira ancestral com foco em mulheres e
crianças para que sintam que o espaço da capoeira também pertence a elas, a nós.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O coletivo Angoleiras Cabanas proporciona o fortalecimento das mulheres angoleiras em
Belém-Pa e a construção de outras narrativas, que não somente a da representação de “valentões”, mas
também a partir da visibilidade, dos protagonismos e da emancipação de mulheres angoleiras.
Compreendermos as bases matrilineares da cultura de matriz africana como saberes ancestrais na
capoeira angola, promove epistemologicamente, em nós a necessidade de problematizar a visão
sexual/biológica de como os debates de gênero são tratados nessa prática, a partir da imposição da
colonialidade de gênero. Questionamos assim, o baixo número de mulheres nesta prática, além do
menor ainda de mulheres negras e periféricas, buscando assim que mais meninas e mulheres adentrem e
possam continuar sua trajetória e não ser interrompida pela colonialidade de gênero presente na grande e

5
A responsabilidade de segurar a roda está com aqueles que regem os instrumentos e o canto. A roda de capoeira angola é
composta por oito instrumentos: atabaque, três berimbaus (gunga, médio e viola), dois pandeiros, reco-reco (macumba) e
agogô.
175
na pequena roda. E buscando que essa prática de resistência conclua sua missiva libertária contra a
sociedade capitalista/colonial/moderna/patriarcal/cristã.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Rosângela Costa. Elas gingam! Author(s).Citation. CIAS discussion paper No.64: Capoeira
Angola, an Afro-Brazilian Culture-The World. Connected through Bodies that Dialogue (2016), 64:
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ARIAS. P. G. Corazonar. Unaantropología comprometida com la vida mi radasotras desde abya-yala
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LUGONES, María. “Heterosexualism and the Colonial/Modern Gender System”.Hypatia,
22(1):186–209, 2007.
LUGONES, María. Colonialidad y Género. Colombia: Tabula Rasa, nº 09, Julio-diciembre, 2008. p.
73-101
LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. Temas
básicos de educação e ensino. São Paulo: EPU, 1986.
MIGNOLO, Walter. Novas reflexões sobre a “ideia de América Latina” a direita, a esquerda e a opção
descolonial. Caderno CRH, Salvador, v. 21, n. 53. maio/Ago. 2008.
MUNANGA, Kabengele. UMA ABORDAGEM CONCEITUAL DAS NOÇÕES DE RACA,
RACISMO, IDENTIDADE E ETNIA. Palestra proferida no 3º Seminário Nacional Relações Raciais
e Educação-PENESB-RJ. Rio de Janeiro, 2003.
SALLES, Vicente. A defesa pessoal do Negro – A capoeira no Pará. O negro na formação da sociedade
paraense. Belém: Parakatu, 2004, p. 113-141.

176
VIDA DE PARTEIRA E O OFÍCIO DO PARTEJAR: AS TRAJETÓRIAS E MEMÓRIAS DE
PARTEIRAS TRADICIONAIS DO MÉDIO SOLIMÕES

Patrícia Torme de OLIVEIRA 1


Betânia de Assis Reis MATTA2

INTRODUÇÃO
As parteiras tradicionais da região do Médio Solimões herdaram o conhecimento e os saberes
do partejar, em geral advindos de suas mães ou avós. Em suas comunidades rurais, sejam ribeirinhas ou
indígenas elas são respeitadas e valorizadas por este ofício. Este respeito e valorização contribui para a
construção de uma nova perspectiva no campo científico, que busca no conhecimento destas parteiras os
caminhos para a humanização do parto na área de saúde da mulher, o que demonstra o reconhecimento
e a legitimação social do ofício de parteira. Refletindo e analisando sobre a importância destas mulheres,
tanto no sentido cultural da transmissão destas práticas, quanto ao serviço primoroso que prestam à
saúde destas populações.
Estas mulheres são personagens de uma história específica no “ofício de partejar”, e transmitem
seus saberes oralmente de mãe para filha, de avó para neta ou de comadre para comadre. Por serem
detentoras desta sabedoria as parteiras são consideradas em muitas comunidades, as pessoas mais
importantes no atendimento à saúde da mulher e da criança. “São herdeiras de um legado cultural de
seus antepassados e de um saber histórico-cultural que passa de geração a geração” (BARROSO, 2009,
p.07)
Mas quem são estas mulheres? Qual o contexto que vivem? Como chegaram ao ofício de
partejar?
Registrar as trajetórias e memórias das parteiras tradicionais surgiu como proposta durante a
oficina de escrita participativa, realizada na sede administrativa do Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá – IDSM, sob a orientação do professor Dr. Júlio César Schweickardt e com
apoio da Associação da Parteiras Tradicionais do Estado do Amazonas Algodão Roxo. Após nos
organizarmos em grupo e trocarmos algumas ideias, decidimos o tema, que partiu da vontade de todas
as entrevistadas deste texto, cuja percepção se voltou a necessidade de proporcionar maior visibilidade e
ênfase na história destas mulheres, no ofício de partejar. Neste sentido buscamos dar voz para as
parteiras tradicionais desta região, e contribuir para a expansão dos olhares, além, da oportunidade de
relatarem suas trajetórias de lutas e desafios para chegarem até aqui.
Nessa perspectiva, suas vozes e experiências, transcendem a prerrogativa oral dos conhecimentos
das parteiras, passando a contribuir com a história geral e com a produção de conhecimento local.

OBJETIVOS
Este trabalho teve por principal objetivo:

1
UEA-PPGICH. E-mail: patriciacancio@hotmail.com
2
UEA-PPGICH. E-mail: betaniamatta@hotmail.com
177
a) Registrar os relatos de três parteiras tradicionais, moradoras de comunidades rurais do Médio
Solimões, estado do Amazonas. Também registrar suas experiências e percepções a partir do
ofício que exercem seja ele no contexto rural ou urbano. Além de proporcionar maior
visibilidade a estas personagens sociais, os relatos descrevem como elas chegaram ao ofício do
partejar, e quais as suas perspectivas em relação à valorização e reconhecimento do ofício.

METODOLOGIA
A pesquisa envolveu depoimentos pessoais e memória, cujo método adotado foi a história oral,
onde utilizamos a técnica da entrevista aberta com narrativas livres, em que entrevistadas fizeram parte
do processo de tessitura do trabalho, o que as tornou efetivamente protagonistas legítimas do processo
de produção escrita, transfigurando para um trabalho coletivo, pois autores e pesquisadas são sujeitos da
proposta.
Para Alberti (2005, p.175) as entrevistas de história de vida estão centradas no entrevistado.
Nesta perspectiva as entrevistadas relataram e descreveram lembranças que remeteram ao ofício do
partejar. Muitas dessas memórias demonstraram nitidamente os momentos felizes ou dolorosos, de
dificuldades ou grandes desafios, ou ainda, de enfrentamento aos preconceitos presentes da medicina
acadêmica.
Nas considerações de Thompson (1992), a História Oral tem uma capacidade única de nos dar
acesso às experiências daqueles que vivem às margens do poder, cujas vozes estão ocultas porque suas
vidas são muito menos prováveis de serem documentadas nos arquivos. Essas vozes ocultas são
sobretudo de mulheres e é por isso que a História Oral tem sido tão fundamental para a valorização da
história das mulheres (THOMPSON, 1992, p. 16-17).
Ainda a respeito do uso das fontes orais, estas são capazes de contribuir para uma memória mais
democrática do passado como instrumento de mudança, possibilitando novas versões da história ao dar
voz a múltiplos e diferentes narradores, permitindo a construção da história a partir das próprias
palavras daqueles que vivenciam e participam de um determinado período, mediante suas referências e
seu imaginário.
Para Thompson (1992) na técnica de História Oral o entrevistado ao rememorar trajetórias,
esforça-se para demonstrar, mesmo que de forma subjetiva, a construção de sua própria identidade, que
de acordo com o autor, é resultado de um processo de apropriação simbólica do real. Ao contar suas
experiências, emitir suas opiniões e conferir sentido aos gestos, o ator se torna sujeito de seus próprios
atos, percebendo seu papel singular na totalidade social em que está inserido (THOMPSON, 1992, p.
13)
As histórias orais também são concebidas como fontes históricas, e compreendidas como
resultado da experiência social, em que subjetividade encontra potencialidade. Suas contribuições
refletem-se na valorização dos sujeitos e dos processos sociais, desenvolvidos e protagonizados em
contextos específicos de formação e interação.
De acordo com Orlandi (2020, p. 31), “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que
retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível”. Curiosamente, o indivíduo
não tem consciência que “o dizer não é propriedade particular. As palavras não são nossas. Elas
significam pela história e pela língua. O que é dito em outro lugar também significa nas nossas palavras”
(ORLANDI, 2020, p. 30)

178
Neste sentido é que valorizamos os saberes contidos nas falas dessas mulheres. Os relatos orais
foram gravados individualmente, mas, respectivamente no coletivo, pois, todas foram ouvintes, inclusive
emocionando-se ao escutar o relato de cada uma. A partir disso, ao adotarmos a abordagem
participativa, as parteiras também contribuíram no processo de produção. Todos os relatos orais
gravados, foram transformados em texto, e optamos por identificá-las com seus verdadeiros nomes. A
narrativa ocorreu sem interrupções, proporcionando a cada entrevistada seguir uma lógica própria de
pensamentos, possibilitando que descrevessem sua trajetória de vida, de acordo com aquilo que a
memória permitisse.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Neste tópico destacamos alguns trechos de entrevistas no qual trazemos as vozes de quatro
parteiras, que resultou de um processo metodológico pensado e executado por meio da análise de seus
discursos. Atitude essa que nos possibilitou conhecer e valorizar a história e memória dessas mulheres.
Foi um trabalho realizado de forma coletiva, e tais entrevistas possibilitaram uma construção livre das
suas trajetórias além da representação social destas mulheres no contexto em que vivem e estão inseridas.
Diante do contexto apresentado, esclarecemos que as análises deste estudo se pautaram nas
narrativas das parteiras, reconhecendo-as como sujeito que fala e desempenha diferentes papéis no
cenário social. Cabe-nos ressaltar que, na análise do discurso, a memória é versada como interdiscurso.
Neste processo de construção coletiva a primeira entrevistada foi D. Antônia, parteira há mais
de 20 anos, o trecho a seguir contém parte de seu relato, no qual transmitiu muita emoção e orgulho de
seu ofício, sentimento conquistado ao longo dos anos que atua como parteira tradicional.
[...] E trabalhei tanto na agricultura, fui professora, fui agente de saúde, fui
parteira muito cedo, sou parteira ainda, e me sinto honrada pelo que eu sou
[...] quando eu continuei a ser parteira, foi assim, significante, porque, quando
eu morava no interior eu chegava a não dormir quase em casa. Tem uma
época do ano que as mulheres parem muito, então eu era chamada em muitas
comunidades, e para honra e a glória do Senhor nunca um bebê morreu na
minha mão. Eu partejei uma mulher que ela teve o primeiro filho, nasceu
morto, mas eu tinha aprendido com o médico pediatra, já fazendo esses curso
de reciclagem, que a gente deitava o bebê no braço e começava a massagear a
costa e ele revivia e realmente eu vivi esse momento, a bebê nasceu morta, mas
eu deitei no meu braço e a família dizendo: "minha filha, você não tem culpa,
você não tem culpa"... E eu orando naquela hora: "Deus, eu sei que Tu nunca
permitiu que um bebê viesse morrer na minha mão, esse não será o primeiro,
eu não aceito..." E orando e massageando, quando eu virei a criança foi
abrindo os olhos, assim, abrindo a boca e foi chorando, e hoje ela já vai ser
mãe, ela tem 15 anos e já vai ser mãe... Então é muito importante ser parteira.
E ver que elas precisam ser bem tratadas, porque este é um momento único,
que você precisa realmente que alguém lhe ame, que alguém lhe abrace, que
alguém diga para você: "eu estou aqui do teu lado e vou te ajudar", uma
mulher precisa disso, muito mesmo, eu acho que acima de tudo o amor tem
que estar no nosso coração, tem que tá, porque se não tiver[...].
No fragmento destacado é perceptível o quanto a religiosidade está presente durante este
momento. Destacamos que rezas são priorizadas antes do ato de partejar, e, que dentro deste saber
179
tradicional a religiosidade tem um espaço que está associado para além de um sentimento de fé, mas
também de confiança durante a realização do parto.
D. Francisca Leila, uma pessoa muito alegre e falante, colocou-se à disposição para ser a
próxima entrevistada. Ela é parteira tradicional que atualmente trabalha em várias comunidades na
Estrada da Emade3, na zona rural do município de Tefé, estado do Amazonas, inclusive em
comunidades indígenas. Sua história também é emocionante, e está diretamente ligada ao ofício de
parteira, já que foi de sua mãe que herdou este legado.
Sou muito conhecida dentro da unidade do hospital, sempre procurei fazer
um bom trabalho, passei a estudar enfermagem, que era um sonho meu, levar
melhoria pra minha comunidade, pro meu povo kokama, então visito muitas
aldeias, gosto muito da aldeia do Porto Praia, faço palestras junto com eles, e
faço parte da FUNAI, trabalhei em uma temporada aqui em Tefé
administrando um posto de saúde porque o prefeito gostava do meu trabalho,
trabalhei também já no Caiambé. Me contrataram como técnica, não só como
parteira, mas também como técnica, e também eu conto muito paras minhas
filhas como minha vida... Ela não foi só de coisas boas, mas também de
ruins... Muitas coisas ruins... [emoção] Porque meu pai, ele maltratava muito
minha mãe, então, como nós morávamosno interior, eu queria dar o melhor
pra minha mãe, e por isso eu e outra irmã, a gente veio de lá pra estudar na
cidade de Tefé, sem conhecer ninguém, morando pela casa de um e de outro
para alcançar o nosso objetivo de ser alguém na nossa vida [...]o meu
aprendizado, veio de minha mãe e vou seguir ensinando minhas filhas,
ensinando como a minha mãe me ensinou, porque minha mãe me ensinava
muito a fazer parto porquê eu não saía do lado dela, então como ela me
ensinava as outras mulheres, ela queria que eu aprendesse também, né, e
quando foi uma coisa assim, que eu comecei a estudar...
No relato de D. Francisca fica evidenciado que o partejar é um saber que ocorre como uma
herança transmitida de geração a geração. Contudo esta continuidade tem sofrido quebra, em virtude
das transformações e modernizações na área da saúde. Os impactos desse processo no que tange ao
ofício tem como resultado o desinteresse das gerações atuais, além disso hoje as gestantes optam por dar
à luz aos seus filhos nas unidades vinculadas a rede pública de saúde.
O próximo trecho é da história de Dona Luísa, parceira e amiga de Dona Leila. De acordo com
seu relato, ela demonstra muita gratidão, pelo dom que afirma ter recebido de Deus, ainda que não
tenha tido a mesma oportunidade da amiga de ter estudado enfermagem, o compartilhamento de saberes
e conhecimentos entre elas fica evidente em seu relato, e há uma reciprocidade no ofício de partejar, pois
como ela mesma destaca há um apoio mútuo entre ambas.
Não tive o curso que graças à Deus a minha amiga teve (D. Leila), assim, o
que eu sei eu quero passar pra vocês o que eu sei, como se diz, é dom de Deus,
nunca fiz um curso, nunca fiz uma coisa assim que dissesse: "poxa, que bom".
[...]E uma coisa que eu nunca tive oportunidade fazer um curso, assim para eu
me aperfeiçoar, para ter a perfeição daquilo que a gente está fazendo, está
entendendo? Aí, porque a gente não tem o recurso, ninguém tem dinheiro pra

A estrada da EMADE, é a estrada que liga a zona urbana a parte da zona rural do município de Tefé, onde encontram-se
3

muitas comunidades rurais e comunidades indígenas.


180
isso, né... Então, mas eu me alegro pelo dom que Deus me deu, eu me alegro
por trabalhar por um dom que Deus dá, que ele é uma coisa muito especial do
que muita sabedoria que se torna inútil, aí por isso que às vezes eu digo assim:
"Senhor, muito obrigada", e sempre Deus coloca do meu lado pessoas que já
tem aquela coisa que já encaixa uma com a outra e a gente caminha, a gente
vai de caminho, tá entendendo? Então, eu me alegro muito, quando algumas
pessoas foram lá procurar a gente, ninguém se prontificou, tinha vergonha,
pois tinham vergonha de chegar lá e dizer: "ah, eu trabalho como parteira...,
eu dizia e pensava, essa vida não é pra mim", e depois de eu ter chegado aqui
fico feliz e orgulhosa [...].
No depoimento de Dona Luísa, nota-se que o preconceito e a discriminação a este ofício
considerado sem suporte científico, fazendo com que ela se apegue a religiosidade como um subterfúgio
para se sentir reconhecida, atribuindo desta forma seu conhecimento como um dom divino, que a
capacita para o ofício. Haja visto que por intermédio de suas mãos ela traz ao mundo a vida.
Dona Tereza, é considerada uma anciã entre as parteiras, em virtude de seu saber acumulado ao
logo de sua trajetória. Aos 74 anos ainda se mantém ativa no ofício de parteira. A história retrata um
passado não muito distante e que por vezes ainda é uma realidade. Assim como as demais o ato de
partejar também foi herdado pela mãe, e ela em sua sabedoria faz referência a visibilidade dada as
parteiras tradicionais atualmente, uma percepção do quanto os saberes tradicionais têm sido
reconhecidos. Este fato é motivo de orgulho para esta mulher que se considera feliz e realizada com
ofício que herdou.
A história é essa minha filha... Vida de parteira, depois que eu fiquei mesmo
para pegar neném, e aí, não faltou gente na minha casa..., aí eu fui
continuando... aí a minha mãe falou: "minha filha é contigo agora, não é mais
comigo, então já não tenho mais força na minha mão, não quero mais essas
coisas, eu já te ensinei, agora é contigo..." Aí era comigo... É todo santo dia,
toda hora! (risos) Quando eu estou almoçando, não demora: (batidas) "Dona
Teresa! Vim aperrear!" "Entra, mana! Empurra a porta..." Aí fica, quando
demora, fica! Eu digo: "olha, tem a vez..." Ainda digo com molecagem! "Tem
a vez! Qual é a próxima?" Aí eu vou só na molecagem, e a gente vai... Mana,
eu fiquei feliz, e quando eu fui para uma entrevista na rádio, eu fiquei feliz
porque agora estão nos enxergando, antes não, agora somos ... Eu fiquei feliz,
por que eu falei lá na rádio o quanto estavam me apoiando... Fiquei com
muito medo... Fui, mas fiquei muito feliz!
Assim como nos demais trechos, observamos o quanto é importante a visibilidade e o
reconhecimento ao ofício e até mesmo a arte do partejar. Neste contexto destacamos a relevância da
realização de pesquisas científicas que busquem trazer luz a esta temática, valorizando o saber
tradicional sobretudo na Pan Amazônia. Resumindo este entendimento nos apropriamos dos
ensinamentos do teórico Boaventura Souza Santos (2006, p.44) ao destacar que o saber é construído de
forma horizontal e plural, ou seja, o conhecimento é uma constelação de saberes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os relatos das parteiras tradicionais analisados neste estudo tiveram como propósito dar
visibilidade social as trajetórias e vivências dessas mulheres. Por meio de suas histórias podemos
181
apreender o contexto social, cultural e histórico em que compõe o cenário das parteiras tradicionais do
Médio Solimões.
Com isso destacamos as informações que evidenciam os desafios enfrentados por cada uma
delas. Ficando notório que todas possuem histórias de vida marcadas por múltiplas trajetórias e
adversidades, de modo geral relacionadas ao preconceito, discriminação e invisibilidade. Todavia,
afirmam que sempre buscaram os meios necessários para superá-las. Neste sentido podemos inferir que
estas parteiras dispõem de uma capacidade de superação de seus problemas, sejam eles de cunho social,
emocional e familiar na luta por seus objetivos.
O protagonismo das parteiras nas comunidades onde atuam fica marcado em seus relatos, e à
guisa de exemplo citamos a Associação Algodão Roxo que contribui com o fortalecimento do ofício de
partejar, além de dar visibilidade, ressaltamos ainda que esta base é primordial para que se consolide
ainda mais a luta dessa categoria. Logo, não se pode mais aceitar a invisibilidade imposta durante séculos
às parteiras de nossa região. Neste sentido, a valorização dos saberes tradicionais das parteiras é uma das
formas de dar continuidade e garantir que os conhecimentos continuem sendo repassados para as
gerações futuras.
Da mesma forma, é notório que as parteiras da região do médio Solimões têm buscado meios
de fortalecer seu ofício e se manter no cenário social atual, estando inseridas nos contextos que
participam, e, tendo ciência de sua importância na região e no Estado. São elas que tem garantido para
muitas crianças e mães o direito à vida, como estabelece o artigo 5º da Constituição Federal do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI. Verena. Histórias dentro da história. in: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.) Fontes Histórias.
São Paulo: Contexto, 2005.
BARROSO. Iraci de Carvalho. Os saberes de parteiras tradicionais e o ofício de partejar em domicílio
nas áreas rurais. PRACS: Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da
UNIFAP, Nº 2. dez. 2009.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de
outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 13ª. Edição, Pontes Editores,
Campinas, São Paulo, 2020.
SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula; NUNES, João Arriscado. Conhecimento e
Transformação Social: Por uma Ecologia de Saberes. Revista de Direito Ambiental da Amazônia,
Manaus, ano 4, n. 06, 2006. Disponível em: Acesso em: 14 jul. 2019.
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. São Paulo: Paz e terra, 1992.

182
O SENTIR/FALAR A PARTIR DOS (RE) ENCONTROS COM MULHERES AMAZÔNICAS

Kaly Nancy REGO1


Alessandra dos S. da SILVA2

INTRODUÇÃO
Esta produção é sobre as narrativas de mulheres, pesquisadoras, mães e avós que contam seus
afetos e atravessamentos no contexto Amazônico. Diante dessas histórias de vida de mulheres
amazônidas, foi possível sentir o mundo, em diferentes (re) encontros. As autoras relatam encontros que
fazem parte de suas memórias, captadas da sabedoria popular resultantes de diálogos e reflexões entre as
mulheres em seus campos de pesquisas. Considerando a metodologia da oralidade, narram o que seria
uma vida melhor. Foi percebido nas falas os diferentes sentidos e significados disto, dentre eles a
mudança do seu lugar de origem, a busca de oportunidades de trabalho, a constituição da família, direito
à terra para produzir e o acesso a escola/universidade. Para isso, as conversas com as mulheres foram
transcritas com as devidas autorizações para fins de pesquisa, e em algumas conservou-se na transcrição
a maneira de falar da pessoa, feito com muito respeito, pois o texto mistura sotaques e corpos-políticos
de conhecimento, relaciona histórias de vida com vozes. Por meio das narrativas, foi possível conhecer
os saberes, os modos de sentir, fazer, principalmente, os dilemas e lutas diante da invasão cultural, uma
floresta de produção de conhecimentos outros e de uma educação (por vezes analfabeta) como cultura.

(RE) ENCONTROS E AFETOS…


O isolamento social por vezes nos faz lembrar encontros e pessoas importantes. Os relatos aqui
são feitos por pesquisadoras que também são mães, filhas e tantas outras em uma só. Foi no início de
2021, em um desses encontros via plataformas digitais que Alessandra Silva e Kaly Nancy Rego, ex-
colegas de turma 2017 do Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Pará, sentiram a
necessidade de escrever sobre seus afetos como pesquisadoras, pesquisando no contexto Amazônico,
acerca das histórias de pesquisas e dos reencontros com outras mulheres amazônidas que se constituiu o
enredo deste texto. As autoras destacam a presença de mulheres que se fixaram como representações do
mundo amazônico durante pesquisas e posterior a elas, como exemplos de vidas, por meio das memórias
dos diálogos, captadas da sabedoria popular, resultantes de conversas e reflexões em laços de vivências.
Ficou claro nas mulheres apresentadas nas narrativas, os diferentes sentidos e significados do que seria
uma vida melhor na Amazônia, dentre eles a mudança do seu lugar de origem, a busca de oportunidades
de trabalho, a constituição da família, direito à terra para produzir e o acesso a escola/universidade.
Para isso, as conversas com as mulheres foram transcritas com as devidas autorizações para fins
de pesquisa, e em algumas conservou-se na transcrição a maneira de fala da pessoa, feito com muito
respeito, pois o texto mistura sotaques e corpos-políticos de conhecimento, relaciona histórias de vida
com vozes. O objetivo principal é dar voz àquelas queforam silenciados por pesquisas convencionais,
marginalizadas ou colocadas em situações de vulnerabilidade na vida social, mas quando lhe

CUMA/PPGED/UEPA. E-mail: kalynanci@hotmail.com


1

PPGEDUMAT/UFMS. E-mail: profa.alessandrass@gmail.com


2

183
oportunizam, falam de maneira ímpar o mundo que é o fio condutor de suas trajetórias.A história de
vida é entendida como uma possibilidade de descobrir uma dada realidade social, na qual os sujeitos são
importantes e interagem.
A narrativa pessoal pode ser entendida como uma forma de usar a linguagem ou outro sistema
simbólico para permear eventos de vida com um ordem temporal e lógica, para desmistificá-los e
estabelecer coerência entre os passado, presente e uma experiência não realizada, acredita-se na diferença
entre contar uma história sobre outra pessoa e contar uma história com outra é importante bem como
pesquisando e pesquisando com (OACHS & CAPPS, 2001 apud MORIÑA, 2017).

“OUTRAS EPISTEMOLOGIAS, SIM! DE MULHERES AMAZÔNIDAS"


As vivências narradas e dissertadas neste texto vão em direções diferentes daquelas que estamos
acostumadas, pensamos juntas com Gebara (1997) ao trazer os sentimentos, dizeres e fazeres, por vezes
tratados como assuntos abstratos, difíceis de compreender na nossa vida cotidiana mas de perceber a
importância capital de questões epistemológicas consideradas a partir de nossa experiência, trazendo a
palavra “epistemologia” num sentido amplo, não restrito à filosofia que se preocupava em refletir a
adequação de nossas ideias à realidade (GEBARA, 1997, p. 28).
A tarefa epistemológica não é desmascarar nossas utopias, desvendar nossos sonhos ou destruir
a poesia de nossa existência. Sua tarefa é mostrar que o “conhecimento” no sentido religioso pode ser
um caminho de Justiça e de Amor, ou de submissão e Injustiça, se não estivermos atentas(os) para o fato
de que contém uma força incrível. E a força de nossos sonhos e crenças profundas, do fio que interliga
todos os elementos de nossa vida e ajuda a construir o sentido dado a nossa existência (GEBARA,
1997, p.27).
A região Amazônica sendo composta de uma diversidade sociocultural é importante a
discussões sobre as diferentes educações, considerando que a Educação está em todos os lugares e no
ensino de todos os saberes, reduzir nossas experiências a um modelo único de educação, e a escola por
vezes o único lugar onde ela ocorre, consequentemente, somos condicionados a sermos professores com
legitimidade para educar.“Da família à comunidade, a educação existe difusa em todos os mundos
sociais, entre as incontáveis práticas dos mistérios do aprender” (BRANDÃO, p.04). Existem inúmeras
educações e cada uma atende a sociedade em que ocorre, pois é a forma de reprodução dos saberes que
compõe uma cultura, portanto, a educação de uma sociedade tem identidade própria.

AS FALAS QUE ENSINAM…


Aprendi a ler em casa com minha cunhada, mas só com 42 anos de idade eu
tive meu primeiro contato com o Ensino Regular quando estudei até a quarta
série, na cidade de Paraíso do Tocantins. Os professores eram ótimos e a
merenda também, o que me motivou a estudar foi a vontade de escrever e ler
corretamente, minha disciplina favorita é português, mas encontro dificuldade
para ler palavras complicadas. Durante minha vida trabalhei lavando roupas
para fora e costurando, em uma missão árdua para vencer um dos maiores
desafios de minha vida; criar nove filhos sem ajuda do pai. Três filhos meus
vieram a Santana do Araguaia em busca de oportunidade de trabalho e eu os
acompanhei. Enfrentei muitos obstáculos até realizar o sonho de ter minha

184
própria casa, se vocês me consideram vencedora, foi assim que eu venci! (Rosa
Coutinho - 70 anos)
As narrativas das mulheres como a da senhora Rosa Coutinho Martins que nasceu dia 05 de
setembro de 1950 na cidade de Grajaú - MA (seus pais morando na roça e vivendo da agricultura
familiar) nos ensina a história de boa parte do povo Amazônida. Ela conta que as coisas eram muito
difíceis e todos da casa tinham que trabalhar, além disso, as escolas ficavam muito distantes de casa e
por esse motivo não frequentou a escola na infância. Já em outra narrativa, Maria Pereira Morais,
mulher de 64 (nascida em Cristalândia, Goiás) desde pequena sempre morou na “roça”, aos 16 anos
veio para o Estado do Pará, já com três filhas, teve ao todo treze filhos. Suas filhas não terminaram o
ensino médio e até não estudam mais, porém muitos dos seus netos já são formados e ela fica muito
feliz com isso. Em relação à escolaridade, nunca chegou a frequentar uma escola, pois sempre teve que
trabalhar para sustentar a casa, casou-se cedo o que dificultou ainda mais a ida para a escola, pois tinha
agora filhos para cuidar. A educação para a Dona Marina, como gosta de ser chamada, baseia-se no que
dizia seus pais, seu bom comportamento mostrava que ela era educada.
Como diria Paulo Freire, Dona Marina é protagonista de sua história “gosta de discutir sobre
isto porque vivo assim. Enquanto vivo, porém, não vejo. Agora sim, observo como vivo” (FREIRE,
1987, p. 07). As falas carregadas de saberes do cotidiano, fazem a análise do que mudou dos tempos de
outrora para os dias de hoje, suas condições de analfabetas no mundo atual e seu papel de mulher,
esposa, mãe e mantenedora de seu sustento.
Narrativas outras originam-se do contexto de pesquisa de reconhecimento com estratégias
etnográficas na comunidade da Vila de Santa Maria de Tracuateua/PA onde iria se realizar uma
pesquisa maior com as crianças da Vila.
“A modernidade... pode falar que a energia, né. A energia que antes tava no
escuro. A energia. A água, agora encanada. Que mais?... O tempo tá mais fácil.
Tá melhor. Com a minha família tá melhor, agora com os outros eu não sou
chegado, sabe como é, eu não sou chegado.
É ruim esse negócio de ladrão. Antes não tinha. Dormia de porta aberta.
Agora tá perigo. Agora tá perigo muito mesmo, que a gente não pode nem sair
de noite. Esse que é o lado que tá mais ruim pra nós, é isso. É um risco doido
da gente sair, agora tá essa arrumação.
Eu faço muitas coisas antigas, nós idosos não esquece dos antigo. É minha
filha... tá na vida. O celular que eu pego telefono pros meus filhos, Aí não sei
o núero, aí eles deixam no papel pra mim. Eu sou analfabeta né, mas eu vejo
no papel e boto no telefone.
Não é todos mas, muitos tem cavalo, muitos tem gado, tudo tem. Eu tenho
uma família que Deus ajuda e eles tem tudo. E continua nos mais novos.
Antes era muito difícil. Muita coisa era muito difícil. Agora tá mais fácil. Nós
andava de pé. Agora ninguém anda mais de pés, é difícil. Tracuateua, pensa
que tá lá, já tá aqui, rapidamente. Nós ia de manhã, chegava já de noite. Agora
não, a gente vai de moto, é carro, é bicicleta. A gente vai depressa. Não
imagina mais ir lá. Eu quero dizer que tá mais fácil, né” ( Maria Rosa Reis de
Aviz (D. Rosa - 78 anos).

185
Na forma de expressão peculiar de mulher simples nos remetendo a um clima no campo, um
panorama da vida na Amazônia (daquele pedaço de Amazônia). Mas o que essas mulheres
apresentavam como vidas em suas narrativas naquele momento, envolveu-nos de tal forma que estas
mulheres foram durante toda a pesquisa maior em curso e até hoje o pano de fundo ilustrativo da ação
do tempo, da cultura e dos sentimentos que prendem aquela gente naquele lugar.
É doença que modificou muito nesse tempo... não ver mulher, tinha filho em
casa não, não ia para o hospital, tinha gozava saúde e agora mais mulher
nesses tempos tão parindo só tem no hospital e às vezes ficam doentes de
barriga e isso e aquilo. No nosso tempo nós tinha resguardo e as mulheres de
agora não tem resguardo. Tudo isso modificou muito, as crianças adoeciam,
mas era essa dor de cólica, mas então era difícil aparecer e agora de vez em
quando tá morrendo uma criança lá pro hospital, mas eu não sei,aí eu não sei.
Esse negócio de doença coisa que nunca ouvir falar agora que tô vendo nome
de doença que tá dando no hospital.
Muitas coisas tá diferente do meu tempo. No meu tempo de nova achava
outra coisa melhor, agora melhora porque passa na porta não carece você ir
atrás agora passa na porta, tenho dinheiro e vem a carne, padeiro, e muito, a
carne, o peixe, tudo para aí, açaí, tempo de abacaba.
O povo, ele pesca, tem malhadeira, caniço, quando o peixe dá mesmo, é muita
gente pegando peixe, asvezes o peixe dá até R$8,00 reais. É, tem algumas
coisas que não muda, tem, tem muitas que mudaram...
A farinha só tem tempo que dá, agora porque o pessoal começaram a lavrar a
roça uns começaram a desmanchar e outros com precisão pra vender, tava
dando dinheiro, agora fracassou porque ela baixou e não são todos que tem
roça, muitos acabaram mais muitos tem ainda. Quando dava até R$350,00
reais o saco e agora foi baixando, baixando. No tempo que tinha marido, nós
tinha roça, mas depois que ele morreu tá com 18 anos de morto, depois que
ele morreu não tem.
Agora tá melhor pra quem tem o dinheiro pra comprar o que passa na porta,
tá melhor. Na porta vem laranja, vem tudo, tendo dinheiro. O leite vem 3
vezes na semana. Hoje ele não veio, ficou de vim hoje, mas ele não veio. 3
vezes na semana, aquele garrafão de 2 litros é R$5,00 reais. É R$2,50 o litro”
(Eulália Maria de Aviz (D.Dadá - 95 anos).
Há de se perceber que na comparação entre os dois mundos vividos (o ontem e o hoje) essa
Amazônia representada mudou. E que uma invasão de culturas mil se apresentahoje, principalmente
pelos mais novos da Vila. Por isso a fala da D, Rosa sobre o uso do celular. Nossa compreensão de
invasão da Amazônia está baseada na teoria de invasão cultural presente em Freire (2006) e utilizada
por muitos outros (WALSH, 2009;OLIVEIRA, 2015) em que a invasão cultural se funde à
dominação colonial num esforço de destruição.
Loureiro (1995) consegue descrever bem a cultura nas Vilas Amazônicas contando o cotidiano
de “atividades que não estão diretamente voltadas para o mercado, mas garantem parte considerável da
autossubsistência” citamos: a virada de terra, o lavoura, a capinação, a colheita, a farinhada, o
extrativismo das frutas, o cultivo das ervas. E ainda acompanha a descrição desenvolvida pelo autor “as
atividades que geralmente estão pouco articuladas com o mercado [...], mas garantindo parte de sua
186
autossuficiência” no qual podemos citar: a preparação das festas da Santa, as rezas, as procissões, as
danças, cantos e competições. Povos da floresta inferiorizados, sentenciados em suas filosofias e
oprimidos em seus desejos e esperanças.
A propósito da discussão sobre modelos interpretativos é bem exemplificador ouvir os
indígenas de nossa região sobre algumas convenções sociais à modelo de uma racionalidade ocidental
moderna. Temas como educação, constituição do jovem índio, religiosidade e sagrado, relação homem /
natureza fogem completamente a qualquer padronização “branca”. Tem um homem da floresta, como
conceitua Loureiro (1995), de enraizado “devaneio” com a natureza, onde tudo se explica da floresta,
dos rios e dos espíritos. Como explica o próprio Loureiro (1995, p.16), “onde os mistérios da vida se
expõem com naturalidade, o numinoso acompanha as experiências do cotidiano e os homens são eles
ainda e ainda não os outros de si mesmo”.
Mota-Neto (2016) ainda acrescenta que outro ponto de análise nesta colonialidade é que o
europeu, no inchaço da verdade única de sua cultura, foi incapaz de entender a ótica desconhecida que
eram as Américas. As narrativas de mulheres Amazônidas retratam o espaço que temos, o saber que
acumulamos e o poder que resistiremos ver roubado, Amazônidas que somos.

REFERÊNCIAS
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1993.
Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
MORIÑA. Isabel. Investigar con Historias de vida: Metodología biográfico-narrativa. Narcea, 2017.
FREIRE, Paulo. Conscientização / Paulo Freire; tradução de Thiago José Risi Leme. São Paulo:
Cortez, 201.
____________. Pedagogia do Oprimido. 29ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GEBARA, Ivone. Teologia ecofeminista: ensaio para pensar o conhecimento e a religião. Olho d’agua,
1997.
LOUREIRO, Jesus Paes. Cultura Amazônica: Uma poética do imaginário. Belém: CEJUP, 1995.
MIGNOLO, Walter.El Pensamiento Decoloni Desprendimiento / A – pertura. Um manifesto In:
CASTRO – GOMEZ, Santiago; GRUSFOG Ramos (Org.). El Gino Decolonial: Reflexines para uma
diversidade epistémica ma alliá Del capitalismo global: Siglo de Hombre Editores; Universidad Central,
Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos, Ponlificia Universidad Javerina, Instituto Pensar, 2007.
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do pensamento de Paulo Freire e Orlando Falo Borda / João Colares da Mota Neto. Curitiba: CRV.
2016.
OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Paulo Freire: gênese da educação intercultural no Brasil. Curitiba:
CVR, 2015.
QÜIJANO, Aníbal. Mundos / Conocimientos de Otro modo: El programa de investigacion de
modernidad / Colonialidad.

187
WALSH, Catharine. Interculturalidade Criticae pedagogia Decolonial: in - surgir, reexistir e reviver. In:
CANDAU, Vera Maria (ORG.). Educação intercultural na América Latina: entre consepções, tensões e
propostas. Rio de Janeiro: sete letras, 2009.

188
AS VOZES FEMININAS DO CARIMBÓ: UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL SOBRE AS
MEMÓRIAS NAS NARRATIVAS CANTADAS E CONTADAS DE MULHERES DA
AMAZÔNIA PARAENSE

Natasha de Queiroz ALMEIDA 1

INTRODUÇÃO
A presente pesquisa é um estudo afetivo sobre as memórias que formatam as narrativas orais e
como o tema dessas narrativas contempla as memórias das mestras de Carimbó da Amazônia no contar
e cantar. Esse estudo segue em andamento, e a princípio, se localiza no campo Literatura comparada por
trabalhar dois objetos da oralidade: o conto popular IFNOPAP e o canto de Carimbó. Contudo, por se
tratar de um diálogo entre ambos, na busca pela fronteira das memórias cantadas e contadas. O Carimbó
é um ritmo, canto e dança, referências do Pará, mas desde 2014 ele tem sido vivido como Movimento
de Salvaguarda, visto possuir o status de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro.
Uma das referências documentais sobre o Carimbó é o sociólogo Vicente Salles (2016), que fez
um trabalho também historiográfico em sua obra “Lundu canto e dança do negro no Pará”, qual base
do presente estudo. E a partir desse mapeamento de Vicente Salles, é importante perceber o movimento
do Carimbó como um processo ancestral que envolve o fortalecimento da identidade da cabocla e de
como tanta sabedoria e ciência está na voz posta e valida a nossa literatura oral. Esse estudo pensa a
mulher da Amazônia e seus saberes ancestrais como a intérprete fronteiriça, cuja voz precisa ser
compreendida dentro de sua própria lógica, interseccionada por questões étnicos-raciais e de gênero,
frente ao universo extremamente patriarcal do movimento do Carimbó. Para tanto, as considerações
sociológicas de Carla Akotirene (2020) sobre a busca de uma epistemologia peculiar que dê conta de
repensar a condição da mulher no Brasil frente às questões sociais que lhe atravessam; bem como as
reflexões de Heloisa Buarque de Hollanda (2020) acerca das relações (de) coloniais que se configuram
nos movimentos sociais e artísticos neste século, trazem para esta pesquisa uma perspectiva decolonial.
Posto que se trate de uma abertura sob o olhar decolonial, a partir de uma pesquisa em
Literatura Comparada, de fontes orais, é imprescindível que seja sempre percebido o olhar poético de
quem canta e de quem conta, a partir de suas memórias. Nesse fazer, Paul Ricouer e Paul Zumthor são
leituras imprescindíveis na percepção destas poéticas orais.

OBJETIVOS
a) Identificar a relação entre as memórias das vozes femininas com o que tematizam
cantando e contando sobre seus saberes ancestrais;
b) Refletir sobre as interseccionalidades trazidas à tona pelas vozes femininas;

1
Doutoranda da UFPA/ professora de Linguagens (SEDUC). E-mail: nasha.almeida@gmail.com

189
METODOLOGIA
A presente pesquisa analisa quais as correspondências entre os temas e as memórias registradas
em narrativas orais, registradas no acervo IFNOPAP, e as narrativas cantadas e compostas pelas mestras
de carimbó. Trata-se de um estudo comparado entre dois objetos, frutos da Literatura Oral produzida
na Amazônia, posto que a literatura comparada “requer que uma obra, autor, tendência ou tema sejam
realmente comparados a uma obra, autor, tendência ou tema de outro país ou esfera” (REMAK, 1984,
p.184), pressuposto metodológico este bastante condizente com o estudo em questão, que compara as
narrativas orais catalogadas em Belém, Marapanim e Marajó e as narrativas cantadas do município de
Belém, em suas “inter-relações”.
Desta feita, tendo em vista, não apenas a mera comparação de ambos os modelos de narrativas,
considerando que cada um está impregnado de concepções e posicionamentos típicos de determinada
época, mas destacando uma abordagem narratológica, buscam-se tanto a leitura e análise de narrativas
sobre temas ainda recorrentes nas composições orais dos contos e dos cantos de carimbós das mestras
do Estado do Pará, quanto às memórias perpetradas em ambas as composições orais.
As narrativas orais transcritas, enquanto fonte parcial desta pesquisa, foram recolhidas no
período de 1994 a 2004 e fazem parte do acervo audiográfico do projeto IFNOPAP – O imaginário
das Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense, que reúne hoje 1.439 narrativas
digitalizadas, com áudio em formato mp3, e transcritas, de 114 municípios, dentre os quais está o
município de Belém, primeiro município escolhido para a presente investigação. O acervo narrativo
deste município é composto por contações selecionadas dentre 26 bairros, distritos e ilhas da capital
paraense: Ananindeua, Batista Campos, Benguí, Canudos, Cidade Nova, Coqueiro, Cremação,
Entroncamento, Guamá, Icoaraci, Ilha do Combú, Jurunas, Marambaia, Marco, Mosqueiro, Nazaré,
Outeiro, Pedreira, Pratinha, Reduto, São Brás, Souza, Tapanã, Telégrafo, Terra Firme e Val-de-Cans.
As narrativas orais coletadas em Belém do Pará constituem um corpus de relevante quantidade,
a saber, 57% do total de narrativas recolhidas em todo o acervo, totalizando 823 narrativas
(ALMEIDA, 2013, p.2) com impressivas notações temáticas e mnemônicas ainda recorrentes quando se
equipara às narrativas orais cantadas repercutidas contemporaneamente nas letras das mestras de
Carimbó da Amazônia.
É impossível não indiciar o interessantíssimo aspecto do canto que pressupõe os sentimentos
latentes por ocasião da performance nestas narrativas entoadas que complementam o presente estudo,
mesmo que para o efeito desta investigação narratológica seja interessante primordialmente a letra da
canção. A performance aqui referida diz respeito ao ‘ato chave de recepção de um enunciado’, conforme
refere Paul Zumthor(1997, p.51-52); enunciados estes guardiões de elementos vivos e persistentes. Eis a
Literatura oral em sua constante gênese, sendo tudo aquilo que resiste, entre saldos de memórias
coletivas e individuais, vivas ou apagadas, silenciadas ou esquecidas. As narrativas cantadas de Carimbó,
semelhantemente às narrativas contadas, são guardiãs de conhecimento, sabedoria, valores de um tempo
e da cor local.
A riqueza de tais composições orais entoadas no Carimbó, ritmo marcadamente percussivo
típico do Estado do Pará, tem em suas origens a influência dos indígenas, dos negros e dos europeus.
Do tupi Korimbó, veio a primeira denominação do tambor que daria nome a essa importante
manifestação da cultura brasileira. Junção de curi (pau oco) e m’bó (furado, escavado), traduzido por
“pau que produz som”, ao longo do tempo o termo foi adaptado e/ou transformado em curimbó,
corimbo e carimbó. [...] inicialmente esta nomenclatura era utilizada para definir o instrumento
principal dos batuques: um tambor feito de um tronco escavado e encoberto com um couro de animal
190
onde o tocador (ou batedor) sentado sobre o corpo do instrumento produz um som grave e constante
que dita o ritmo e a dança do carimbó (IPHAN, 2013, p.14)
Além de ser considerado um ritmo particular do Estado do Pará, o Carimbó na região
amazônica é uma forte expressão cultural que está inscrita nas letras das canções, no canto, na dança, na
música e na formação instrumental. Desde 2013, o Carimbó é considerado patrimônio cultural imaterial
brasileiro, dada a sua riqueza que também

congrega um conjunto de práticas sociais festivas seculares, mas também


religiosas incorporadas no cotidiano das populações do Pará. Estas práticas
estão dispostas em torno da elaboração musicada, cantada e dançada dos
conjuntos de carimbós produzidas nos contextos de trabalho e lazer dos seus
reprodutores (IPHAN, 2013, p.15).

A força cultural das práticas sociais e dos cotidianos dos povos da Amazônia é notória nas
letras das músicas de Carimbó, posto que “as letras das músicas em geral fazem alusão ao cotidiano do
trabalho de agricultores e pescadores, mas também há temas em voga divulgados pelos meios de
comunicação, como questões políticas, sociais e ambientais” (IPHAN, 2013, p.15).
Estes modos de vida também expressos nas letras de carimbó atestam e contribuem para a
grande diversidade temática das narrativas que assumem esta configuração cantada. Desta feita, em
pesquisa de campo e bibliográfica prévia, a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas desde 2017,
mestres e mestras foram entrevistados a respeito de suas histórias de vida, bem como a relação que têm
com o Carimbó e de suas experiências com suas composições musicais.
Percebeu-se, nesse ínterim, a vastidão e a variadíssima temática narrativa na Amazônia paraense
que certamente vem a somar-se aos estudos narratológicos em sentido strictu, e no sentido lato, literário,
em textos cantados carregados de memórias e experiências. Por isso, o recorte da presente comunicação
pretende verificar e analisar tais memórias presentificadas nas letras de cantos de Carimbós DAS
MESTRAS, a fim de ampliar o diálogo narratológico entre os contos salvaguardados no acervo
IFNOPAP e as narrativas cantadas contemporâneas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dar prosseguimento a uma pesquisa cujo corpussão tanto de responsabilidade do projeto
IFNOPAP, quanto são oriundos de uma oralidade contemporânea nascida e perpetuada pelas vozes das
mestras de Carimbó, significa potencializar os estudos em função de produção de um texto sobre
memória e tema amazônicos, viabilizando o acesso a este material tão rico e diverso, de forma
organizada e sistemática, principalmente no que tange à ainda carente visibilidade das vozes femininas
nos espaços literários e artísticos de uma Amazônia paraense violentada sobremaneira pela suposta
modernização tardia ditada pelo capitalismo e suas indulgências que sufocam as vozes marginalizadas.
A verificação da variedade de temas e memórias nas narrativas orais populares foi assentada em
um trabalho prévio de classificação destas narrativas transcritas e armazenadas no banco de dados do
acervo IFNOPAP, realizados: de 2008 a 2009, intitulado “Temas e Tipologias em narrativas, do acervo
IFNOPAP, recolhidas no campus Belém”, com o fomento do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica – PIBIC/CNPQ; de 2009 a 2010, intitulado “Estudo da narrativa: temática,
tipologia e memória em narrativas amazônicas no campus Marajó” novamente com o fomento do
PIBIC/CNPQ; e de 2011 a 2013, com o projeto intitulado “Metamorfoses: fronteiras entre narrativas
191
orais e os mitos”, apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
CAPES. Este trabalho contínuo considerou as narrativas, segundo os temas mais recorrentes em sua
estrutura e sua relação com a memória na tessitura narrativa.
Sobre esta estrutura, as narrativas são complexas, em virtude do que significa o tema de uma
narrativa oral. Conforme Boris Tomachevski, o tema trata da “significação de elementos particulares da
obra na constituição de uma unidade” (TOMACHEVSKI, 1973. p.169); tema é ainda “aquilo de que
se fala” (idem). Em virtude do fato de que toda obra literária possui uma unidade, quando construída a
partir de determinado tema, que se desenvolve paulatinamente, em relação a essa pesquisa, em Literatura
oral, a saber, a estrutura dessas narrativas orais, não se apresenta de forma diferente.
Desse pressuposto decorrem várias consequências, pois considerando a escolha do tema de uma
narrativa, com vistas à classificação, foi identificado um verdadeiro embate para a captação temática,
sobretudo para um simples leitor das narrativas. Isto porque Tomachevski delimitou categoricamente a
função de um leitor, como captador do tema, posto que mesmo depois deste deixar de ler a obra, ainda
assim encontrará as significações dos elementos particulares dela.
Nesses termos, selecionar e delimitar o tema das narrativas orais referidas implica captar qual a
proposta do narrador por ocasião do ato narrativo, pois mesmo que este aborde vários assuntos, os
tópicos narrativos que ele elabora ao narrar confluem para a construção de uma unidade, a saber, a
narrativa, e o que ele quer dizer com esta.
E é esta unidade que se apresenta carregada de memórias, entendidas aqui como “uma série de
relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura” (2000, p.119), que pelo
seu imaginário organizam seu passado, constroem seu presente e articulam seu futuro, como bem elucida
Maria do Socorro Simões. Partindo da premissa de que a memória social, como a individual é seletiva,
faz-se necessário identificar os princípios de seleção e observar como eles variam de lugar para lugar, ou
de um grupo para outro, como se transformam no transcorrer do tempo e que símbolos são
resguardados e/ou esquecidos como representações imagéticas no discurso narrativo qual reprodutor de
uma cultura num dado recorte temporal. Conforme Burke, “as memórias são maleáveis, e é necessário
compreender como são concretizadas, e por quem, assim como os limites dessa maleabilidade”
(BURKE, 2000, p.85).
Desta feita, os temas de narrativas configuram-se como a culminância e concretização destas
maleáveis memórias plurais como bem assinala Paul Ricouer,
Elas se apresentam isoladamente, ou em cachos, de acordo com as relações complexas atinentes
aos temas e às circunstâncias, ou em sequências mais ou menos favoráveis à composição de uma
narrativa. Sob esse aspecto, as lembranças podem ser tratadas como formas discretas com margens mais
ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que poderíamos chamar de fundo memorial, com o
qual podemos nos deleitar em estados de devaneio vago (RICOUER, 2007, p.43), e que impregnam e
servem como arrimos às narrativas orais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desta feita, o presente estudo apresenta um panorama sobre a tradição oral no movimento do
Carimbó, a partir das vozes de mulheres da Amazônia paraense, enquanto portadoras das memórias nos
temas que corporificam suas narrativas cantadas no devir da linguagem, o qual também é exercitado nas
narrativas de mitos circulantes da Amazônia paraense, na letra e na voz.

192
Sobre a conformação do tema dentre as memórias da cabocla desta Amazônia, a sua
estruturação tem nascente tanto nas experiências individuais destas intérpretes, quanto nas experiências
coletivas e são reveladoras das diversas formas de existência das mulheres da Amazônia.

REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
ALMEIDA, Natasha de Queiroz. Vêm de Belém e vêm da Grécia! Metamorfoses: fronteiras entre
narrativas orais e os mitos (Dissertação de mestrado). UFPA, Belém: 2013.
BURKE, Peter. História como memória social. In: Variedades de história cultural. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista hoje: perpectivas decoloniais. Rio de Janeiro:
Bazar do tempo, 2020.
IPHAN. Dossiê IPHAN Carimbó. JUNIOR, Edgar Monteiro Chagas (org.). Belém, 2013, disponível
em: www.portal.iphan.gov.br>Dossie_carimbos (1). 214p.
REMAK, Henry H. H. Literatura comparada: definição e função. In: COUTINHO, Eduardo F.;
CARVALHAL, Tania Franco (org.) Literatura comparada: Textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco,
1994.
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. trad. Alain François. Campinas, São Paulo:
editora da Unicamp, 2007.
SALLES, Vicente. Lundu: canto e dança do negro no Pará. Jonas Arraes (coord.). 1.ed. Belém, PA:
Paka-Tatu, 2016.
SIMÕES, Maria do Socorro (org.). Memória e Comunidade – entre o rio e a floresta. Belém: UFPA,
2000.
TOMACHEVSKI, Boris. Teoria da literatura, formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1973.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira et al. São Paulo: Editora
Hucitec, 1997.

193
JUNTAS SOMOS MAIS FORTES AOS PASSOS DE MADA: MULHERES QUE AMAM
DEMAIS ANÔNIMAS

Sandra Helena Salgado de MORAIS1

INTRODUÇÃO
O tema proposto pode parecer clichê, porém não deixa de ser real em meio ao grupo MADA-
Mulheres Que Amam Demais Anônimas esse problema de saúde atinge pessoas de qualquer nível social,
econômico, cultural e religioso. Algumas pessoas que apresentam o sintoma de dependência afetiva não
aceitam ou não assumem que se tornaram dependentes de outra pessoa, mas não param de pensar, falar e
agir sempre em torno daquela pessoa. Mais do que uma doença física, a dependência afetiva é um
verdadeiro massacre ao indivíduo, que passa a ser segregado, ocasionando-lhe profundo sentimento de
culpa, dificultando a sua saída da dependência. Essa temática de MADA faz parte do Trabalho de
Conclusão de Curso, realizado na Universidade Federal do Pará. Um tema que ainda há muito para ser
explorado na busca de entendimento e conhecimento sobre o universo das mulheres que amam demais
em meio à busca por um relacionamento saudável.
O homem é uma criatura ativa, vinculada com seu meio social, que vive em interação com os
outros, mas também realiza um trabalho individual muitas das vezes sem considerar as influências e
interesses coletivos. As formas de interação que os indivíduos aprendem uns com os outros como parte
de sua cultura são os elementos mais importantes para a formação de todas as suas ideias, sentimentos e
respostas. Esta aprendizagem é feita por meio da vivência em grupos. A sociedade em geral não tem
conhecimento de que a dependência afetiva é uma doença e, por isto, estigmatiza essas pessoas em seu
cotidiano, excluindo-as, maltratando-as e vendo-as com indiferença, isso também ocorre no grupo
familiar por não terem a compreensão da doença, a família em muitos casos não é um grupo acolhedor
para o enfrentamento da doença.
O grupo teve sua criação baseada no livro “Mulheres que Amam Demais”, em 1985 por uma
terapeuta familiar, Robin Norwood que escreveu o livro baseada na sua própria experiência, e na
experiência de centenas de mulheres envolvidas com dependência afetiva MADA partiu de sua
percepção ao comportamento comum a todas elas. O grupo MADA cresceu e atualmente conta com
reuniões semanais no Brasil distribuído em 11 Estados e o Distrito Federal. O grupo MADA é uma
irmandade com programa de recuperação para mulheres que têm como objetivo primordial se recuperar
da dependência afetiva de relacionamentos destrutivos, aprendendo a se relacionar de forma benéfica
consigo mesmas e com os outros.

OBJETIVO
A dependência afetiva seus riscos e proteção em meio ao grupo MADA com utilização de
métodos que dão subsídios para enfrentá-lo e sair fortalecido das adversidades pelos métodos e crenças
que a irmandade propaga para compreender o limite do “amor adoecido e o seu superar” uma vasta
revisão bibliográfica disponíveis sobre o tema para fazer os aportes teóricos. Através dessa metodologia

1
Assistente Social. E-mail: sandramorais25@yahoo.com.br

194
objetivou-se extrair e compilar as informações relevantes e necessárias relativa ao problema investigado,
buscando o entendimento e esclarecimento sobre o superar adversidades, adaptação,
enfretamento/transformação que a vivência em grupo proporciona.

METODOLOGIA

A busca por um relacionamento saudável


Iniciar o tratamento grupo não significa terminar o relacionamento e sim lograr uma vida
saudável, o grupo MADA apresenta atributos de um grupo resiliente com características de fatores de
proteção que ajudam a melhorar o funcionamento social das participantes através das experiências de
grupo e a enfrentarem de modo mais eficaz, os seus problemas pessoais. Pode ser considerado como
uma prática que visa minorar o sofrimento e melhorar o funcionamento pessoal.
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a saúde “é o estado de completo bem-estar
físico, psíquico, social e espiritual, e não somente a ausência de doença ou enfermidade”. Konopka
(1964) traz um ponto importante quando assenta que a necessidade do homem de alimento e abrigo, de
amor e carinho, de realização e de satisfação de sua rede de conhecimento depende da interação do
homem com seu semelhante. A autora ainda enfatiza que após as necessidades biológicas, os anseios
mais profundos do homem é o de ser amado e de ser importante para alguém; e desse anseio que se
origina todas as outras necessidades.
Konopka (1964) diz que “existe uma inseparável conexão entre o respeito próprio e um
relacionamento livremente concedido a outra pessoa [...] todos os seres humanos não têm apenas
necessidades básicas de serem amados, mas capacidade e força para amarem, em retribuição”. Mais
também sinaliza que isso não é realizado sem uma luta constante para vencer outras tendências e
combater forças ambientais que podem impedir, suprimir ou diminuir essa capacidade.
O grupo MADA traz um ponto importante quando deixa claro que o grupo de ajuda mutua é
para pessoas que sofre de dependência afetiva seja ela de mulher e homem, mãe e filho, ou seja, que uma
mulher transmita seu comportamento doentio possessivo o grupo recebe de portas abertas, no entanto a
aderência por mulheres com dependência de relacionamento conjugal, amoroso é maior “Um dos
postulados do trabalho com grupo é que qualquer pessoa que ingressa numa situação de grupo se
modifica graças à sua interação com os demais e, do mesmo modo, o grupo se modifica como resultado
da admissão do novo membro” (KONOPKA, 1964).

Enfrentamento/transformação.
Os estereótipos atribuídos ao grupo MADA em decorrência da dependência afetiva são
diversos. Dessa forma, um estudo aprofundado faz-se necessário para o entendimento de uma doença
que tem afetado milhares de pessoas. Esse mecanismo é válido e necessário na medida em que é difícil
viver em um ambiente em que não se utilizam categorias para classificá-lo e entendê-lo.
O grupo para ser efetivado necessita de muitos elementos sendo que o primeiro é representado
pelos princípios que propiciam orientação espiritual e inspiração aos membros. Um segundo elemento é
representado pelos serviços que mantêm comunicação e cuidados das operações e rotinas para que possa
assegurar um funcionamento eficaz, uma livre troca de informações e ajuda gratuita (membros, a

195
unidade básica e o grupo MADA) que pode constituir de duas ou mais mulheres que se reúnem para se
ajudar mutualmente.
O grupo MADA baseia a recuperação em compartilhamento com as recém-chegadas e com as
adeptas da irmandade, entendendo que todas têm algo em comum e compreendem o problema que a
companheira passa, o grupo MADA vislumbra novas possibilidades e ilumina a saída para enfrentar
novos dilemas o grupo extrai o melhor de uma situação trágica encontrando algo e enxergando novas
possibilidades em meio à crise.
O anonimato está contido em uma das tradições utilizada pelo grupo e é considerado o alicerce
espiritual da irmandade no programa de recuperação. Não é uma irmandade secreta todos devem saber
da existência deste grupo, mas é bem explícito que tudo o que ocorre na sala de reunião é absolutamente
confidencial, dizendo respeito somente a quem participou da mesma.
O anonimato é um dos comprometimentos das participantes por isso recomenda-se respeitar o
“anonimato” de cada participante, não se deve falar das mulheres que participam das reuniões, nem a
respeito do que ouviu delas. Por isso é de costume a coordenadora destacar em todas as reuniões os
seguintes dizeres:
“Quem você vê aqui, o que você ouviu aqui, ao sair daqui, deixe que fique aqui”
No grupo MADA todas são bem-vindas, independente de idade, profissão, formação cultural e
nível econômico, as frequentadoras acreditam que a dependência de relacionamentos afeta
profundamente suas vidas, nas reuniões, as participantes transmitem sua mensagem para as
companheiras no drama da dependência afetiva e um intenso diálogo se inicia entre as MADA’s em
recuperação, que surgem como protagonistas de uma história de sofrimento. A plateia é formada por
mulheres que enfrentam situações semelhantes de dependência afetiva.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Vivência em grupo
Konopka (1964) diz que o indivíduo é capaz de lograr um desenvolvimento sadio através, de
uma vida em grupo sadia e adequada, no decorrer do seu ciclo de vida. Para a autora o grupo de vida
sadia apresenta as seguintes características: proporciona identificação com os que são iguais; proporciona
satisfação de pertencer a mais de uma pessoa. Quando, no curso da vida, não se estabelece um
relacionamento mais amplo, existe sempre o temor da perda da única pessoa amada; apresenta liberdade
de ser e de expressar o próprio eu e de ser diferente, na presença dos outros; liberdade de escolher os
amigos que prefere juntamente com a responsabilidade de aceitar os outros, caso este precise ser aceito,
muito embora nenhum relacionamento amigável e estreito tenha se estabelecido; oportunidade de
experimentar a própria individualidade, ao mesmo tempo em que permite usufruir as características
únicas dos outros; oportunidade de utilizar a independência e de poder ser dependente, quando for
necessário tanto na infância ou em situações afetivas, na idade adulta. “A dignidade da pessoa deve ser
manifestada pela liberdade de expressar seus pensamentos e ideias e seu direito de participar em assuntos
que se relacionem com ela e com a sua comunidade” (KONOPKA, 1964).
O grupo MADA é formado por duas ou mais mulheres que se reúnam regularmente com o
objetivo de se recuperarem da dependência de relacionamentos destrutivos, ou seja, de comportamentos

196
obsessivos/compulsivos, de padrões de comportamentos codependentes, através da prática do Programa
de Recuperação de MADA.
Chok Hiew e colegas (2000) descobriram que as pessoas resilientes eram capazes de enfrentar
adversidades. Advertiram também que a resiliência reduzia a intensidade do estresse e a diminuição de
sinais emocionais negativos. A exemplo disto destaca-se a ansiedade, depressão ou raiva, ao mesmo
tempo que aumentava a curiosidade da saúde emocional. Portanto, a resiliência é efetiva não apenas para
enfrentar adversidades, mas também para a promoção da saúde mental e emocional (MELLILO,
OJEDA e colaboradores, 2001).
As mulheres que se familiarizam com o grupo MADA apresenta essa conexão, aproximação
com características resilientes sendo uma dimensão muito importante esse o vínculo emocional entre os
membros do grupo que tendem a funcionar melhor quando equilibram proximidade e compromisso, o
grupo conectado busca satisfação, apoio mútuo e colaboração e ao mesmo tempo respeitam a diferenças
entre si.
Segundo Dorsch, Hacker e Stapf (2008) dependência, em geral, designa a sujeição inevitável a
um ou mais indivíduos, caracterizando-se como um vício. Depender da pessoa que se ama é uma atitude
de se sepultar em vida, um ato de automutilação psicológica em que o amor-próprio, o autorrespeito e
as particularidades são proporcionados e doados irracionalmente, fazendo percorrer o anormal como
normal, provocando uma inversão de valores.
Conforme Riso (2008) metade das consultas psicológicas se deve a problemas originados ou
relacionados com a dependência patológica interpessoal. A dependência afetiva faz adoecer, castra,
incapacita, extingue critérios, degrada e submete, deprime, gera estresse, assusta, cansa, desgasta e,
finalmente, acaba com todo resquício de humanidade possível.
Segundo Barcelos (1993), alguém envolvido em um relacionamento desse tipo tem
frequentemente a sensação de dor, seu discurso é sempre recheado de muito ressentimento (mágoa) e
tem dentro de si um forte sentimento de injustiça. Pois não é fácil para o dependente aceitar que possui
uma disfunção emocional. Em contrapartida, também não é fácil ficar sozinho em um mundo no qual,
aparentemente, a maioria deseja viver aos pares. Isso a nosso ver ocorreria devido à reciprocidade
desejada que aparentemente permeia as relações de amor, onde se consolida uma tendência entre dar e
receber atenção e afeto do outro com a mesma intensidade e isso nem sempre ocorre existindo, sim, um
desequilíbrio entre pessoas que são extremamente felizes e outras nem tanto.
Segundo Piéron (1996) é todo e qualquer estado afetivo, sentimento e emoção. Podem-se
considerar os afetos como ordenados entre dois polos: prazer – desprazer ou agradável – desagradável.
Esse afeto quando confundido com posse, passa a ser considerado patológico.
O amor patológico seria qualificado pela conduta de apresentar cuidados e atenção ao parceiro,
de maneira repetitiva e desprovida de controle em um relacionamento amoroso. É um quadro pouco
estudado cientificamente apesar de não ser raro e de gerar sofrimento (SOPHIA, 2008). Segundo a
autora existem alguns discernimentos para identificação de um quadro para quem possui um amor
patológico:
Sinais e sintomas de abstinência - quando o parceiro está distante (física ou emocionalmente)
ou mediante ameaça de abandono, como o rompimento da relação, por exemplo, podem ocorrer:
insônia, taquicardia, tensão muscular, alternando-se períodos de letargia e intensa atividade;

197
O ato de cuidar do parceiro ocorre em maior quantidade do que o indivíduo gostaria – o
indivíduo costuma se queixar de manifestar atenção ao parceiro com maior frequência ou por período
mais longo do que pretendia inicialmente;
É dispendido muito tempo para controlar as atividades do parceiro em detrimento do
abandono de interesses e atividades antes valorizadas – como o indivíduo passa a viver em função dos
interesses do parceiro, as atividades propiciadoras da realização pessoal e desenvolvimento profissional
são deixados de lado, incluindo, por exemplo: cuidado com filhos, investimentos profissionais, convívio
com colegas, etc. (SOPHIA, 2008).
A questão da quantidade de amor é abordada especialmente pela psicoterapeuta de casal
Norwood (2005), no famoso best-seller de sua autoria “Mulheres que amam Demais”, base da criação
do grupo de autoajuda denominado MADA (Mulheres que Amam Demais Anônimas). Conforme
indica o próprio título do livro, por meio de relatos de casos de diversas mulheres atendidas em sua
clínica aparece o fenômeno denominado por ela “amar demais” que se expressa pelo comportamento de
só pensar no outro, no cuidado excessivo e na necessidade progressiva de dar amor e atenção ao
parceiro, o qual levaria algumas mulheres a se tornarem viciadas na relação e no parceiro, em geral,
desatencioso e distante. Segundo Rodrigues &Chalhub (2009).
“O que aflige mulheres que amam demais não é como se fosse um processo doentio; é um
processo doentio, requerendo um diagnóstico e um tratamento específicos [...]”. Segundo Norwoord
(2005,p.227) para muitos profissionais é um conceito difícil de conceituar quando a doença tem
manifestações comportamentais, em vez de físicas. A autora diz que “Talvez seja até mais difícil
reconhecer o fato de se amar demais como uma doença, pois o vício não se relaciona a uma substância,
mas a uma pessoa” sendo uma maior barreira para reconhecê-lo como uma condição patológica
requerendo cuidados, enfim, todos nós, alimentamos certas crenças profundamente arraigadas sobre as
mulheres e o amor(NORWOORD, 2005, p. 227).
O vício afetivo tem as particularidades de qualquer outra adição, mas com certas características
que ainda precisam de estudos afundados. Não existem campanhas de prevenção primária ou secundária,
nem tratamentos muito sistematizados contra o mal do amor. Em termos psicológicos, alcançamos
muito mais a depressão do que a mania, ou dito de outra configuração, a carência de amor nos preocupa
muito mais do que o excesso afetivo (RISO, 2008).

CONCLUSÃO
O trabalho de recuperação da dependência de relacionamentos no Brasil tem sido comumente
realizado por irmandades, sem qualquer uso de medicamento assim como no grupo de MADA seu
modelo terapêutico é voltado, fundamentalmente, à recuperação individual e pessoal de seus membros,
que parecem ter perdido o controle agindo compulsivamente.
O MADA pode ser considerando como fator de proteção uma vez que a mulher se encontra em
risco. O indivíduo dependente apresenta problemas físicos, sociais e emocionais e o grupo ativa o
enfretamento e o fortalecimento transformado por experiências adversas na pessoa e vice-versa
reduzindo as reações negativas.
Quando o indivíduo se insere em um grupo ele se protege e encontra forças para enfrentar e
tratar da doença, conforme está inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, art.29: “O
indivíduo têm dever para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno
desenvolvimento de sua personalidade”.
198
BIBLIOGRAFIA
BARCELOS, Carlos. Criando sua liberdade: Amor sem dependência. São Paulo: Gente, 1993.
Constituição da República Federativa do Brasil Constituição do Estado de São Paulo Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Imprensa Oficial, São Paulo, Outubro de 2011 Disponível em:
http://www.imprensaoficial.com.br/PortalIO/ download/pdf/ Constituicoes_declaracao.pdf
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199
EDUCAÇÃO POPULAR E AUTONOMIA DE SER ERVEIRA: AS MULHERES E SEUS
MODOS DE ENSINAR E APRENDER SOBRE ERVAS MEDICINAIS NO VER-O-PESO

Louise Rodrigues CAMPOS1


Ivanilde Apoluceno de OLIVEIRA2

INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta como objetivo discutir sobre os modos de ensinar e aprender
protagonizados pelas mulheres, erveiras que trabalham no setor das ervas no Ver-o-Peso. Concernente a
isso, o foco é para a autonomia de ser erveira, referente aos cotidianos de ensino e aprendizagem, e
sustento material, vivenciados por estas mulheres.
A educação é construída por mãos, pés, olhos, vozes, de cada sujeito, ao ensinarem e
aprenderem uns com os outros. Sujeitos, movidos por seus sonhos, suas crenças, suas sabedorias, e por
suas fomes e sedes de cada dia. Acerca disso, há fomes de ensinar e aprender que são motivadas pela
sobrevivência de si e da família, como os modos de saber-fazer que são sabedorias e também sustento.
Desse modo, ao tratar-se de prática educativa, esta não se desenvolve distante das trajetórias de
vida de cada pessoa. Nas trajetórias de vida das mulheres erveiras, situam-se as suas práticas de trabalho
com as ervas medicinais, referente ao preparo dos remédios naturais, chás, banhos, dentre outros. O
trabalho como erveira, o qual está relacionado ao sustento de si e das suas famílias, e aos cotidianos de
ensino-aprendizagem que estas mulheres vivenciam.
Nesse contexto, referente ao trabalho desenvolvido no setor das ervas no complexo
arquitetônico do Ver-o-Peso, são cinco mulheres que relataram os seus modos de ensinar e aprender
sobre ervas medicinais. São estas: Edna, Maria, Elizangela, Socorro e Vanessa. Elas contaram as suas
experiências no trabalho como erveiras, a partir das suas trajetórias de vida, em que há memórias
familiares, formas de trabalho e sobrevivência, ensinos e aprendizagens.
As trajetórias de vida de cada uma destas mulheres, em que há os seus tempos de vivência no
Setor das ervas (Maria há trinta e dois anos, Edna há quarenta e seis anos, Socorro há cinquenta anos,
Elizangela há quinze anos e Vanessa há vinte e um anos) compõem a memória e a história dos trezentos
e noventa e dois anos de existência do Ver-o-Peso.
Estas mulheres não somente se integram ao Ver-o-Peso, mas o transformam, enquanto são
transformadas, a partir das relações econômicas, familiares, de ensino-aprendizagem, de amizades, dentre
outras, que as erveiras tecem com esse lugar. Relações estas que dizem respeito ao que representa ser
erveira, que corresponde às suas memórias, às suas compreensões de mundo, às suas formas de
sobrevivência, às suas sabedorias.

METODOLOGIA
1
Núcleo de Educação Popular Paulo Freire NEP/UEPA. E-mail: louisercampos8@gmail.com
2
Núcleo de Educação Popular Paulo Freire NEP/UEPA. E-mail: nildeapoluceno@uol.com.br
200
Em relação à caracterização metodológica, trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa,
(MINAYO, 2009) e uma pesquisa de campo (SEVERINO, 2007), cuja coleta dos dados ocorreu no
setor das ervas. Esse setor está situado no complexo do Ver-o-Peso, conhecido como a maior feira a
céu aberto da América latina, localizado na região metropolitana de Belém, na avenida Boulevard
Castilhos França. O Ver-o-Peso consiste no complexo arquitetônico formado por: dois mercados (de
carne e de peixe); feira do açaí; doca de embarcações; duas praças (do pescador e do relógio) e pelo
Solar da beira.
Consiste em um estudo de caso (LUDKE; ANDRE, 1986) e situa-se a presente pesquisa de
acordo com o enfoque crítico-dialético (SANCHEZ GAMBOA, 2012). Adotou-se como estratégia
metodológica a cartografia de saberes, com base na cartografia simbólica de Boaventura de Sousa Santos.
Referente aos procedimentos metodológicos foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais
com as erveiras no setor das ervas; observação in loco e registros fotográficos.
Para a sistematização e análise dos dados foram construídas categorias analíticas e temáticas. A
construção das categorias teve como referência técnicas da análise de conteúdo, (BARDIN, 2011). A
partir da organização dos dados coletados emergiram os temas autonomia de ser erveira; saber-fazer e
ensinar-aprender. Para a participação nesta pesquisa, foi realizado o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE).

RESULTADOS E DISCUSSÕES
A expressão ser erveira e suas motivações diz respeito às mulheres se afirmarem como erveiras,
referente aos aspectos como: afetividade, aprendizagem, sobrevivência, dentre outros. Nesse sentido,
observou-se a relação entre ser erveira e o trabalho que elas desenvolvem no setor das ervas. Essa relação
diz respeito ao que motiva o estar sendo sujeito erveira e a realização dos seus modos de saber-fazer o
preparo das ervas. A questão do aprendizado e da qualificação são importantes ao intuito de atender a
problemáticas de saúde e bem-estar, por meio dos remédios naturais, como presente no seguinte relato:
trabalhando com amor a sabendo que tu tá fazendo um produto que vai trazer
um benefício, que vai curar um cliente. 5 Isso é muito importante. Eu
trabalho por amor. Eu sou muito dedicada, têm dias que eu trabalho das seis
da manhã às sete da noite, chego na minha casa só faço tomar um banho e
fico trabalhando a noite todinha, até quatro, cinco horas da manhã. É
gratificante o meu trabalho. Então, a pessoa tem que estar capacitada pra fazer
o produto, vender para o cliente e fazer efeito (MARIA, 2020).
Além da afetividade ressaltada por ela como motivação às suas atividades de trabalho, foi
mencionada a importância capacitação para a funcionalidade dos produtos naturais, conforme os
resultados esperados.
Sobre ser erveira também foi ressaltado o ato de conhecer as ervas para o preparo dos remédios
naturais, de modo que “É onde eu me identifico, com os meus conhecimentos de remédio” (EDNA,
2020). Além disso, foi possível observar a expressão ser erveira referente ao íntimo, à alma, à conexão
com a natureza, como assinalado pela Maria:
a gente vem predestinada pra tua profissão. Eu escolhi as ervas. Quando eu
casei e ganhei essa barraca. Quando eu comecei a trabalhar aqui eu vi é isso
que eu quero, porque eu gosto muito de ervas. Eu sou mato! Eu sou terra, eu
gosto do cheiro de mato, eu gosto do cheiro de sementes, de raízes. Se
201
dependesse de mim eu só comia ervas, verduras e legumes. Eu comeria só
sementes, raízes e folhas. Eu me alimentaria só disso! É algo do meu interior,
do meu íntimo, da minha alma. Eu gosto de tomar banho de cheiro; banho de
descargo, tanto faz eu estar feliz ou de cabeça baixa. Eu gosto muito de
banho, de canela, de cravinho, de louro, eu gosto de tudo que é folha, raiz. Eu
sou apaixonada pelas ervas! Eu sou apaixonada por tudo o que vem debaixo
da terra! Eu faço defumação na minha casa, eu gosto de passar as essências na
casa (MARIA, 2020).
Maria demonstra a sua conexão com a natureza, mediante à afetividade que ela tem pelos
recursos naturais e pelo que é possível criar e utilizar a partir desses recursos, como os banhos feitos a
partir das folhas e raízes, como as defumações, as essências de cada erva.
Acerca disso, observa-se o termo ser erveira entendido como uma profissão e também como
parte do próprio sujeito, como no caso da Maria, ao afirmar que se trata do seu íntimo. Além disso, foi
ressaltada a necessidade de garantir o sustento de si e da família, pois:
eu nunca pensei na minha vida que eu ia ser erveira, porque eu vinha pra cá via
a minha avó trabalhando e eu nem me dedicava, só ficava olhando, mas
quando chegou uma época que eu vim pra cá trabalhar, fiquei grávida e vim
trabalhar aqui aí eu gostei em termo de trabalho, de ter o meu dinheiro,
trabalhei e adorei e eu adoro trabalhar aqui, tenho muito orgulho!
(SOCORRO, 2020).
Nesse contexto, vê-se a autonomia da mulher, acerca da sua profissão, de realizar o seu trabalho,
a partir dos seus conhecimentos, dos seus saberes. Diante disso, observa-se a questão da sobrevivência,
conforme as seguintes explicações:
porque isso é tudo, meu trabalho, é como eu me sustento, é como eu levo o
meu dia a dia, eu pago as minhas contas. E a minha formação foi a partir
daqui que eu consegui pagar faculdade e eu quero pagar para o meu filho
(ELIZANGELA, 2020).
é uma renda, porque daqui eu ajudo na minha casa, ajudei meus filhos, ajudei
a pagar faculdade do filho, ajudei a pagar o colégio da minha neta (EDNA,
2020).
Desse modo, o trabalho foi ressaltado como forma de sustento da família, da casa, e de
possibilitar a conquista dos objetivos delas, como uma formação acadêmica. Além de estar relacionado
às atividades de trabalho. Ser erveira foi expresso como um estar sendo, que se trata da vida dessas
mulheres, visto que:
pra mim é tudo. Tudo na minha vida. Por isso, quando alguém me pergunta:
“o que você faz? Qual a sua profissão?” eu digo que eu sou feirante. Eu sou
erveira, trabalho com ervas medicinais, tratando das pessoas no Ver-o-Peso
(EDNA, 2020).
pra mim é tudo, no financeiro, como de bem-estar, felicidade. Ela me
preenche. Eu me vejo ficar velhinha vendendo ervas, igual a minha avó, minha
bisavó, minha mãe (VANESSA, 2020).

202
Percebe-se além dos fatores financeiro e de bem-estar, está presente a relação familiar, conforme
demonstrado na afirmação da Vanessa, referente à profissão de erveira realizada de forma geracional,
praticada por membros em diferentes gerações da mesma família, como afirmado a seguir:
pra mim é muito gratificante tudo o que eu aprendi. Aprendi com a minha
mãe os conhecimentos. Eu devo muito a ela. Tudo o que eu sei, o que eu
aprendi, devo a minha mãe. Então, para mim é gratificante trabalhar aqui
(EDNA, 2020).
Em vista disso, é possível compreender os atos ensinar e aprender desenvolvidos de forma
geracional, de modo que:

nas famílias, a aprendizagem e o desenvolvimento ocorrem nas próprias


relações cotidianas, através de observações, atividades rotineiras realizadas em
conjunto, padrões de interação progressivamente mais complexos presentes
nessas atividades, afetividade, equilíbrio/ desequilíbrio de poder e valores
presentes nas relações interpessoais entre os membros do contexto familiar.
Por fim, cabe destacar que apesar de todos os grupos familiares apresentarem
valores, hábitos, mitos, pressupostos, formas de sentir e de interpretar o
mundo que são transmitidos através das gerações, tais aspectos mostram-se
arraigados a uma cultura familiar própria, em que cada família apresenta
peculiaridades e padrões interacionais específicos (GARCIA et al, 2007, p.
97).

Além dos aprendizados em família, mediante a forte influência materna no trabalho como
erveira, também foi ressaltado o aprendizado no âmbito familiar, referente a outros ofícios como os de
benzedeira e parteira, presente na fala da Maria, sobre o seu contato com produtos naturais, como chás,
que ocorreu da seguinte forma:
como a minha mãe era benzedeira e parteira eu aprendi muitas coisas com ela.
Eu fui criada tomando chá, garrafada. Se tava com dor de cabeça fazia um
banho. Sempre com remédio caseiro, produtos naturais (folhas, sementes,
cascas, raízes) (MARIA, 2020).
Vê-se que o aprendizado da Maria se caracterizou como um processo de experienciar os
conhecimentos sobre os produtos naturais no seu cotidiano, ou seja, praticar os banhos, tomar os chás e
as garrafadas. No relato da Maria sobre as suas vivências, compreende-se um banhar-se de aprender.Essa
expressão caracteriza um modo de aprender que tem o seu sentido de ocorrer relacionado à própria
vivência do sujeito.
Desse modo, a afirmação dela que passou a conhecer os remédios naturais, ao tomar os que a
sua mãe preparava, demonstra a experiência, no sentido do que nos acontece, ao entender-se que “é a
experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e
nos transforma” (BONDÍA,2002, p.26). Segundo Bondía (2002) a experiência é peculiar a cada ser,
visto que é algo que nos afeta, nos acontece, aquilo que nós sentimos e interpretamos de uma
determinada forma. Por isso, há singulares experiências, ainda que referente a um mesmo acontecimento.
Neste processo, este autor compreende a existência do saber da experiência, o qual:

se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe


acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao
203
acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da
verdade do que são as coisas, mas no sentido ou do sem-sentido do que nos
acontece (BONDÍA, 2002, p. 27).

Nas produções das erveiras os modos de preparo estão entrelaçados às suas condições sociais, às
suas visões de mundo, às suas interpretações sobre os recursos naturais e a relação destes com o corpo e
a mente. Dessa forma, a mente concentrada e o espírito, em par com o corpo, influenciam no preparo
dos produtos, como nos banhos, conforme a seguinte explicação:
quando a gente vai manipular um produto natural tu tem que estar preparada
para aquilo. Primeiro lugar, o espírito. A higiene, as mãos, rosto, boca, os
olhos têm que estar saudáveis. E o ambiente que tu faz o produto, isso é
muito importante! Tem que estar com uma áurea boa, porque não pode errar
nenhuma medida, nada para não ter nenhum efeito colateral. Então, você tem
que estar com uma higiene perfeita, o ambiente limpo, as vasilhas têm que
estar combinando. Uma combinação, um conjunto de todos os elementos que
vão ser usados, inclusive o elemento principal que é o corpo, pois se o corpo
não está bem, a mente não está bem. Se você não está com as mãos bem
lavadas, se você não está com o corpo limpo, não dá para manipular nada.
Então, corpo, ambiente, utensílios limpos, principalmente o corpo, o
ambiente e as ervas, tudo tem que estar impecável. Tem que ter uma boa
ventilação também, porque tudo influencia. Não pode fazer nada se tiver
estressado, aborrecido, principalmente doente, é melhor nem começar. Tudo
interfere, tudo tem a ver (MARIA, 2020).
Esta conexão entre corpo e espírito pode ser compreendida ao entender-se o ser humano como
uma integralidade, que é razão, é emoção, é corpo e alma. Como sujeito que não somente age, mas tem a
capacidade de refletir sobre o seu agir, pois:

como presenças no mundo, os seres humanos são corpos conscientes que


transformam, agindo e pensando, o que os permite conhecer ao nível
reflexivo. Precisamente por causa disso podemos tomar nossa própria
presença no mundo como objeto de nossa análise crítica. Daí que, voltando-
nos sobre as experiências anteriores, possamos conhecer o conhecimento que
nelas tivemos (FREIRE, 1981, p. 72).

Compreende-se a possibilidade de os sujeitos refletirem sobre si mesmos e sobre as relações que


tecem com o mundo, como o ato de conhecer. Por conseguinte, através dos modos como realizam as
suas sobrevivências, estas mulheres vivenciam as condições sociais relacionadas ao ser mulher, mãe,
trabalhadora, conhecedora e sábia no campo da saúde, referente às ervas com propriedades medicinais.
O trabalho com as ervas são modos culturais de saber-fazer, pelas mãos das mulheres que
separam as raízes para o preparo de um chá e desse modo garantem o seu sustento, se reconhece como
erveira, e intervém sobre estados de saúde e bem-estar. Segundo Albuquerque (2015) todo o saber está
inscrito em uma ordem cultural e diz respeito aos modos como os grupos criam e recriam os seus
cotidianos socioculturais. Dessa forma, esta autora compreende saberes culturais:

como uma forma singular de inteligibilidade do real, fincada na cultura, com


raízes na ardidura das relações com os outros, com a qual determinados
204
grupos reinventam criativamente o cotidiano, negociam, criam táticas de
sobrevivência, transmitem seus saberes e perpetuam seus valores e tradições
(ALBUQUERQUE, 2015, p. 664).

De acordo com esta perspectiva, os saberes culturais constituem formas criativas de como os
sujeitos desenvolvem sua vida material e simbólica, nos âmbitos de suas experiências de trabalho,
educativas, religiosas. Diante disso, as erveiras com os seus familiares e colegas de trabalho, ensinam e
aprendem os procedimentos que caracterizam a sua sabedoria. Constituem corpos e mentes que
expressam culturas, experimentam aprendizagens, pensam, agem e sentem, pois:

veja que a mão humana é tremendamente cultural. Ela é fazedora, ela é


sensibilidade, ela é visibilidade; a mão faz proposta, a mão idealiza, a mão
pensa e ajeita [...] o corpo se transforma em corpo percebedor. E ele descreve,
ele anota que, em sua transformação, a vida social está mudando também. O
corpo age e, durante suas atitudes, ele desaninha de si e de suas relações o
conhecimento sobre a vida. Uma das facilidades que a gente aprende aí é essa
multiplicidade de códigos e linguagens (FREIRE, 2005, p.34).

Esta combinação entre o corpo e a mente sintonizados, estruturam as presenças dos sujeitos, os
quais são indissociáveis dos atos de saber, e de educar, pois dão vida a estes atos. A energia espiritual que
circula nos sentimentos, pensamentos e gestos corporais dos sujeitos acompanham os seus modos de
saber e fazer, a socialização de ensinos e aprendizagens.
Este entendimento de conhecer por meio do corpo, o qual sente, age, comunica, acontece, por
exemplo, nos momentos de identificação das ervas e suas propriedades medicinais. Nestes momentos de
saber-fazer são expressos modos culturais de convivência aprendidos e transformados ao longo do
tempo, visto que a cultura: “é algo que sempre e inevitavelmente estamos criando. Não apenas as coisas
da matéria da Terra transformadas em objetos da Vida, mas as tessituras de palavras, de ideias
partilhadas que em nós tornam possível o viver e o conviver” (BRANDÃO, 2015, p. 111).
Mediante isso, os gestos, as palavras e ideias compartilhadas nas formas como saber reconhecer
uma raiz, uma folha e se estas apresentam propriedade medicinal, como fazer um banho, expressam os
modos de vida culturais de ser erveira, em que ocorrem ensinos e aprendizagens. Por isso, ressaltam-se
os modos de saber-fazer das erveiras referente à expressividade cultural presente nas suas atividades, a
partir de como têm sido compartilhados os saberes sobre as ervas; e a representatividade destes saberes a
estas mulheres, aos seus cotidianos, às relações de convívio familiar e de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse sentido, são tratadas questões como o reconhecimento dos saberes e dos ensinos e
aprendizagens das erveiras; os seus acervos de conhecimentos; as suas memórias; os objetivos que
impulsionam estes sujeitos a ensinarem e a aprenderem, os modos como interpretam e transformam os
seus cotidianos; as problemáticas que eles/elas enfrentam nos seus contextos de trabalho; a
representatividade e relevância das suas atividades de trabalho e da existência do setor das ervas; a
relação destes conhecimentos sobre as ervas medicinais e demais conhecimentos, como o científico.
Os seus atos de ensinar e aprender em que expressam modos culturais de manipular as ervas
com propriedades medicinais, conforme as suas compreensões sobre cura, corpo, espiritualidade, saúde e
bem-estar. O trabalho e o ensino e aprendizagem sobre ervas medicinais constituem a autonomia de ser
205
erveira. Este estar sendo corresponde à sustento material, à herança familiar, à afirmação no campo do
conhecimento e do saber.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa. Educação e saberes culturais: apontamentos
epistemológicos. In: PACHECO, Agenor Sarraf; NASCIMENTO, Genio; SILVA, Gerônimo da Silva;
MALCHER, Maria Ataide (Orgs.). Pesquisas em estudos culturais na Amazônia: cartografias,
literaturas e saberes interculturais. Belém: EditAEDI, 2015.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista brasileira de
educação, nº 19, p. 20-28, 2002.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Nós, os humanos do mundo à vida, da vida à cultura. São Paulo:
Cortez, 2015.
FREIRE, Paulo; Nogueira, Adriano. Teoria e prática em Educação Popular. 8º ed. Rio de Janeiro:
Petrópolis, Vozes, 2005.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. 12ª Edição. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1981.
GARCIA, Narjara Mendes; YUNES, Maria Ângela Mattar; CHAVES, Priscila Freitas; SANTOS,
Lídia Oliveira dos. Educando Meninos e Meninas: Transmissão geracional da pesca artesanal no
ambiente familiar. Psicol. Educ. [online].2007, n.25 pp.93-112. ISNN. 1414-6975.
MINAYO, CECÍLIA de Souza. Trabalho de Campo: contexto de observação, interação e descoberta.
In:_____; DESLANDES, Suely; GOMES, Romeu. (Orgs.). Pesquisa social: teoria, método e
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Argos, 2012.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 23 ed. São Paulo: Cortez, 2007.

206
VELHICE E EDUCAÇÃO: NOVOS SABERES PARA NOVOS FAZERES

Betânia de Assis Reis MATTA3


Patrícia Torme de OLIVEIRA 4

INTRODUÇÃO

Em abril de 2002, a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Envelhecimento, realizada
em Madri, com a participação de 160 países, concluiu que em 2050 o número de idosos no planeta
triplicará. (MARTINELLI, 2013)
Não podemos negar o fato que a população idosa, ou seja, com 60 anos ou mais, vem
aumentando exponencialmente a nível mundial e, no Brasil não é diferente, pois o cenário brasileiro
aponta que o crescimento da população idosa é relevante, tanto em números proporcionais como
absolutos. De acordo com estatísticas levantadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) a população acima de 60 anos em 2018 correspondia a 13,5 % de toda população brasileira.
Em dez anos estima-se que chegará a 17,4 % do total de habitantes. Em 2042, a projeção da população
idosa é ainda maior chegando a 24,5%, ou seja, teremos 57 milhões de idosos.
O crescimento econômico do país, o acesso à água tratada e ao esgoto, a ampliação do acesso a
saúde através Sistema Único de Saúde (SUS), os programas de atenção à Saúde da família, a concessão
do benefício assistencial ao idoso e ao deficiente em situação de pobreza foram fatores que tiveram
papel decisivo no aumento da longevidade.
A partir do aumento do contingente populacional de idosos, é que as questões que envolvem
envelhecimento ganham expressão e legitimidade no campo das preocupações sociais. (DEBERT, 2012)
Neste contexto, estabelecer diálogos permanentes e plurais é imprescindível para compreendermos as
características e as necessidades dessa categoria social, sobretudo, fomentar novas referências sociais e
culturais, desconstruindo percepções equivocadas e descontextualizadas da realidade social que, de modo
geral, tem transformado o idoso em seres invisíveis.
Beauvoir (2018) sinaliza para a necessidade de quebrarmos com a “conspiração do silêncio”
quando se trata de velhice, visto que são irrevogáveis as transformações da velhice nas últimas décadas. A
partir desta perspectiva, compreendemos que não basta envelhecer, é preciso que este envelhecimento
esteja alicerçado por fatores como bem-estar físico e psicológico, nível de independência, relações
sociais, ambientes de trabalho e lazer, educação, dentre outros. (SANTOS et al, 2007)
Pacheco (2015, p. 234) afirma que:

Barreiras relacionadas à idade têm produzido ao longo do tempo uma forma de


dividir as instituições eminentemente humanas em três segmentos: a educação para os
jovens, o trabalho para os adultos e o descanso para os velhos. Hoje, mediante as

UEA/PPGICH. E-mail: betaniamatta@hotmail.com


3

UEA/PPGICH. E-mail: patriciacancio@hotmail.com


4

207
pesquisas realizadas, podem-se avaliar as consequências negativas dessa rígida forma
de periodização na organização do curso da vida, que particulariza atividades
específicas para específicos estádios de desenvolvimento.

Nessa mesma direção, Debert (2012) pondera que a vida em sociedade é periodizada, ou seja,
marcada por fronteira entre idades. De acordo com a autora à divisão da sociedade em diferentes grupos
etários é uma prática observada nas sociedades ocidentais, a qual se orienta pela idade cronológica dos
indivíduos como mecanismo de atribuição de status e de definições de papéis sociais. Frisamos que essas
teorias, ainda hoje, têm influenciado “o estabelecimento de políticas sociais, de organizações de trabalho
e de formas da organização escolar que definem critérios etários de inclusão, de participação e a exclusão
de pessoas”. (PACHECO, 2015, p. 233)
Por tudo isso, a escolha do tema parte de uma proposta que visa refletir acerca da importância
da educação no processo de democratização do conhecimento oportunizando novos caminhos no
exercício genuíno da cidadania. Corroborando com essa ideia, Santos et al (2007, p. 79) afirma que
“educar os idosos, os adultos, os jovens e as crianças significa acreditar em seu contínuo processo de
desenvolvimento e nas possibilidades de sua construção como sujeitos”. Em síntese, compreendemos a
educação como um instrumento de transformação e inclusão social, que permite superar os preconceitos,
a falta de oportunidades, promove a qualidade de vida e favorece ao genuíno exercício da cidadania.

OBJETIVOS

O presente artigo tem por objetivo refletir sobre a práxis da educação na construção de
caminhos alternativos a inclusão social de idosos, reconhecendo-os como atores sociais no processo de
construção sociopolítico do país. Com isso nosso estudo consiste em uma análise da percepção de uma
idosa - integrante do Grupo de Idosos Renascer que está inserido no Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos do CRÁS I no Centro Municipal de Convivência da Família em Tefé
(AM) - acerca da educação como um caminho possível a emancipação e inclusão social da pessoa idosa.

METODOLOGIA

Para alcançar o nosso objetivo lançamos mão do uso do estudo de caso por ser uma modalidade
de pesquisa muito utilizada no campo das Ciências Humanas e Sociais. Trata-se de um estudo profundo
e detalhado que permite um amplo conhecimento do objeto investigado. Para Minayo (2014, p.19)
“fazer pesquisa constitui um processo de trabalho complexo que envolve teoria, método,
operacionalização e criatividade”.
Ainda de acordo com a autora mencionada “[...] a abordagem qualitativa se aprofunda no
mundo dos significados. Esse nível de realidade não é visível, precisa ser exposta e interpretada, em
primeira instância, pelos próprios pesquisados.” (MINAYO, 2014, p. 22). Diante do exposto,
concluímos que a metodologia mais adequada para esse fim é a história oral, a qual requer uma
abordagem qualitativa. Para Freitas (2006, p.18), “a história oral é um método de pesquisa que utiliza a

208
técnica da entrevista e outros procedimentos articulados entre si, no registro da experiência
humana”.Neste aspecto, possibilita desvelar a lógica interna dos processos sociais, valores, crenças,
representações e opiniões, assim, propiciando novas abordagens, revisão e criação de conceitos e de
categorias. (MINAYO, 2014) Com isso, a metodologia foi canaliza em três desdobramentos que se
articularam entre si: bibliográfico, documental e estudo de caso.
A partir deste ponto de vista, a pesquisa transcorreu sobre as questões da educação, da velhice e
de gênero, tendo como fonte primordial a narrativa de uma idosa com 74 anos. Assim sendo, a
investigação buscou, através do estudo de caso, compreender a trajetória de vida desta senhora que
durante a infância teve seu estudo interrompido mediante as adversidades impostas pela realidade social
na qual encontrava-se inserida. A retomada ao ambiente escolar ocorreu graças ao programa de
Educação de Jovens e Adultos (EJA), modalidade que faz parte do quadro de cursos ofertados pelo
SESC Ler unidade de Tefé. É oportuno frisarmos que no Estatuto do Idoso, capítulo V versa
especialmente sobre aos direitos da pessoa idosa, sobretudo no que tange a educação, a cultura, o esporte
e o lazer. Destacamos, ainda, que no campo da educação é de competência do Poder Público apoiar a
criação universidades abertas que abarquem técnicas de comunicação, computação e demais avanços
tecnológicos, que visem a favorecer a integração do idoso à vida moderna.
De acordo com os dados da pesquisa “Idosos no Brasil: Vivências, desafios e experiências na
terceira idade”, em 2006 – de iniciativa da Fundação Perseu Abramo (FPA) em parceria com o Serviço
Social do Comércio (Sesc) –, é na educação em que se encontram os maiores desafios diante das
desigualdades sociais, econômicas e regionais que atravessam nosso país.
É neste cenário que apresentamos a senhora Zilma Ferreira da Silva, com 74 anos de idade,
natural de Fonte Boa, viúva, servente aposentada pelo Ministério do Trabalho como protagonista e
colaboradora desta pesquisa. Ela frequentou a modalidade de ensino do EJA no período de fevereiro de
2008 a dezembro de 2013, assim, concluindo sua alfabetização estudando até o quinto ano do ensino
fundamental, última etapado projeto SESC Ler, no município de Tefé. Sendo o próximo ciclo ofertado
pela rede Estadual de Ensino.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

É oportuno ressaltarmos que não somente a população de idosos vem crescendo, bem como está
ocorrendo um processo de feminilização da velhice. (NERI, 2007) Sob essa ótica é importante
compreendermos as mudanças no contexto social e cultural ante a “velhice feminina”.
Para Lopes (2015), a feminilização da velhice conjectura a necessidade de novas formas de a
sociedade lidar com essa etapa da vida, sobretudo com relação ao novo papel das mulheres idosas.
Todavia, as características dessas mudanças podem variar de acordo com a classe social de
pertencimento, as políticas públicas, a educação, o lazer, as relações de trabalho e familiares, dentre
outros. Em suma, “as novas imagens do envelhecimento e as relações que se estabelecem ao longo desse
processo [...] expressam mudanças sociais e redefinem identidades, relações familiares, o próprio curso
da vida e a dialética de dependência/interdependência”. (LOPES, 2015, p. 139-140)
Há de se destacar que, hoje, transcorre um processo de flexibilização do papel social da mulher
se comparado a décadas passadas. Assim, assuntos como sexualidade, trabalho, educação, liberdade de
decidir por si, lazer, deixam de ser tabu e começam a fazer parte do cotidiano feminino, como
evidenciado no depoimento abaixo:
209
Quando criança fui a escola, mas por pouco tempo. Na minha época estudo não era
para mulher. Tínhamos é que saber lavar e cozinhar [risos] Meu marido até que era
bom, mas tinha que cuidar da casa e dos filhos... aí como estudar? Tive 10 filhos. Era
uma rotina dura para dar conta de tudo [risos].

No relato de Dona Zilma verificamos que o papel social da mulher ainda está muito atrelado às
funções de casa e de cuidar dos filhos, tarefas que no imaginário social são atribuídas quase que
exclusivamente às mulheres. O casamento e a maternidade são comportamentos conferidos como
destino “adequado” e o “ofício” desejados para todas as mulheres, além do que, “[...] qualquer atividade
profissional será considerada como um desvio dessas funções sociais, a menos que possa ser representada
de forma a se ajustar a elas.” (LOURO, 2003, p. 96). Registra-se ainda que recai sobre a mulher o ônus
de cuidar do cônjuge, pais, parentes mais velhos(as) e ainda filhos(as) e netos(as). Atividades
consideradas de menor status social.

Só depois que os filhos cresceram e fiquei viúva consegui realizar meu sonho que era
estudar...ler a minha bíblia...uma carta...assim, a vida não ensina tudo, né? [...] porque
tem muito velho, que sofre com a família. Mana, quando vejo isso vem aquela coisa
em mim que tomo a frente. Aí eu digo: “senhora não pense que a senhora não vai
ficar velha!” eu sempre fui muito bem tratada. Quando estudava todos na escola me
tratava bem. No início eu ficava meio assim, sabe? Com vergonha. Não sabia como ia
ser, mas depois eu gostei muito. Não queria sair da escola, mas não teve jeito. Porque
eu me divertia com os professores, fiz muitas amizades que tenho até hoje. Aprendi a
cuidar das minhas coisas, vou a banco, pago as minhas contas. Tudo sozinha.
Ninguém sabe minha senha do banco. [risos]

Esse relato converge com o pensamento de Debert (2012), que disserta sobre a nova velhice
feminina, vislumbrando que a viuvez assume um novo contexto ao despertar um sentimento de
autonomia e de emancipação, definindo-a como uma fase de novas oportunidades para as mulheres.
Resumindo, a viuvez é ressignificada como uma retomada de antigos projetos de vida. Essa liberdade
corrobora com o processo de redefinição de suas identidades ao permitir que elas reassumam as “rédeas”
de suas vidas. Partindo desta conjectura, entendemos que passa pela educação os caminhos que
possibilitam a autonomia e o crescimento intelectual dos atores envolvidos. A Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB), de 1996, ratifica em seu artigo 35 “o aprimoramento do educando como
pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico”.

Eu tenho muito conhecido mesmo, onde eu ando, a minha colega pra cá, a minha
colega pra acolá, maior coisa mais maravilhosa do mundo é a pessoa ter muito
conhecido, né? Quando estudei no SESC fiz muitos amigos. Gostava muito das
aulas. Os professores me adoravam. Sempre fui alegra, sabe?

210
A emancipação feminina é otimizada através da educação que possibilita sobrepujar as barreiras
do preconceito e discriminação, assim, desconstruindo o processos culturais e históricos que reforçam a
subalternidade e submissão feminina. Neste contexto, a educação para a mulher idosa representa uma
estratégia que rompe a concepção homogênea do universo feminino, demonstrando a pluralidade de
papéis que desempenha na estrutura social, desta forma, oportunizando um (re)encontro com os seus
projetos, proporcionando uma participação mais ativa dos processos decisórios de seu interesse,
exercendo plenamente sua cidadania. Nesse escopo, o acesso à informação é condição essencial para que
essas mulheres persigam a inclusão social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O envelhecimento da população brasileira é uma realidade atual e irreversível. Esse novo cenário
propiciou uma maior visibilidade às questões relacionadas à velhice e ao envelhecimento, sobretudo sob
um enfoque heterogêneo, multidirecional e cultural. Hoje, o envelhecimento vem sendo amplamente
debatido pela sociedade contemporânea diante do inquestionável crescimento da população idosas.
É fato que são inúmeros os desafios que envolvem o retorno ao ambiente escolar, à guisa de
exemplo ressaltamos, a precariedade das políticas públicas na área da educação preconizadas pelo
pensamento neoliberal responsável por acirrar um contexto marcado pela desigualdade social, econômica
e cultural num país de dimensões continentais.
Outro aspecto observado é que o casamento e a maternidade, podem configura-se como um
obstáculo a continuidade dos estudos, pois historicamente é atribuído a mulher o papel de cuidadora do
cônjuge e filhos retirando delas a possibilidade de continuarem sua formação intelectual. Convém ainda
destacarmos que a vergonha e o medo são sentimentos que dificultam o retorno de mulheres mais velhas
ao ambiente escolar, bem como a falta de incentivo dos familiares.
Por fim, compreendemos que a educação na velhice representa o reconhecimento de uma dívida
para com aquelas que tiveram seu direto de frequentar o ambiente escolar negado ou restringido.
Reiteramos que a educação é um caminho possível que permite a todos os indivíduos, em especial as
mulheres, independente da fase da vidadesenvolver suas habilidades e potencialidades intelectuais,
cívicas, psicológicas, emocionais e culturais, dessa forma, mantendo conquistando sua autonomia e sua
autoestima fomentando um envelhecimento ativo e com qualidade de vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAUVOIR, S. A velhice. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
BRASIL.Lei º Lei 9394 de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional. Brasília, 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso: 03 de março de 2021.

______. Lei n. 10741 de 03 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso. Brasília, 2003.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm. Acesso em: 03 de
março de 2021.
211
DEBERT, Guita Grin. A Reinvenção da Velhice: socialização e processos de reprivatização do
envelhecimento. 2ª ed. São Paulo: Fapesp, 2012.
FREITAS, Sônia Maria de. História Oral: possibilidades e procedimentos. 2. ed. São Paulo: Associação
Editora Humanitas, 2006.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Projeção da População das
Unidades da Federação por Sexo e Idade para o Período 2000/2030. Disponível em: Acesso em:12 de
abril de 2021.
LOPES, Ruth Gelehrter da Costa. Imagem e auto-imagens: homogeneidade da velhice para a
heterogeneidade das vivências. In: Idosos no Brasil: Vivências, desafios e expectativas na terceira idade.
São Paulo, SP: Editora Fundação Perseu Abramo, Edições SESC SP, 2007, p. 141-152.
LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. Petrópolis/
RJ: Vozes, 1997.
______. Mulheres nas salas de aulas. In: Del Priore, Mary. (Org.) História das mulheres no Brasil. São
Paulo: Contexto, 1997.
MARTINELLI, João Carlos José. O direito de envelhecer num país ainda jovem: uma análise da Lei
10.173/2001. Editora Inhouse, 4ª ed. Jundiaí, São Paulo, 2013.
MINAYO, Maria Cecília de Souza; COIMBRA, Jr. Carlos E. A. (org). Antropologia, Saúde e
Envelhecimento. Editora FIOCRUZ, 2ª ed. Rio de Janeiro. 2002
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O Desafio do Conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14 ed.
São Paulo: Hucitec, 2014.
NERI, Anita Liberalesso. Renda, consumo e aposentadoria: evidências, atitudes e percepções. In: Idosos
no Brasil: vivências, desafios e expectativas na terceira idade. Editora Fundação Perseu Abramo, Edições
SESC SP, 2007.
PACHECO, Jaime Lissandro. As universidades abertas à Terceira Idade como espaço de convivência
entre gerações. In: As Múltiplas Faces da Velhice no Brasil. 3ª ed. Campinas, SP: Editora Alínea, 2015,
p. 227-253.
SANTOS, Geraldine Alves dos; LOPES, Andréa; NERI, Anita Liberalesso. Escolaridade, raça e etnia:
elementos de exclusão social dos idosos. In: Idosos no Brasil: vivências, desafios e expectativas na
terceira idade. Editora Fundação Perseu Abramo, Edições SESC SP, 2007.

212
Círculo de Saberes e afetos 04
EDUCAÇÃO POPULAR, GÊNERO, SEXUALIDADE,
LGBTQIA+
A PARTICIPAÇÃO DA MULHER NA POLÍTICA: AS ELEIÇÕES DE 2008, 2012 E 2016 EM
CATALÃO (GO)

Monique Cardoso de ALMEIDA1


Carmem Lúcia COSTA2

INTRODUÇÃO
O tema da participação da mulher na política brasileira vem sendo amplamente discutido tanto
dentro do espaço acadêmico como fora dele, em especial pelos movimentos feministas. Dessa forma, já
são encontrados artigos, monografias, dissertações, teses e livros que abordam o tema. Entre eles tem o
livro Feminismo e Política de Miguel e Biroli (2014), o artigo Posicionamento das Mulheres na Rede
de Financiamento Eleitoral e seu Desempenho nas Eleições de 2010 no Brasil: a dinâmica estrutural da
exclusão e marginalização feminina no poder político da Silva et al. (2014) e o artigo Análise da
Participação Política Feminina nas Assembleias Legislativas da Região Sul do Brasil Resende et al.
(2010). No entanto, poucas são as pesquisas que tem como recorte espacial Catalão.

OBJETIVOS
A presente pesquisa tem como objetivo geral:
a) Analisar a participação feminina na política brasileira, especificamente, no município de
Catalão localizado no estado de Goiás, a partir da Minirreforma Eleitoral (Lei n°
12.034/2009), que alterou o artigo 10, §3° da Lei das Eleições (Lei n° n.
9.504/1997). Segundo essa alteração, os partidos políticos devem preencher o mínimo
de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo nas disputas
proporcionais.
b) Comparar as duas eleições subsequentes a de 2008 pra identificar se essa alteração
resultou na alteração do quadro político da Câmara Municipal de Catalão de modo a
diminuir a desigualdade de gênero nesse espaço.

METODOLOGIA
Para alcançar o objetivo desta pesquisa, foram realizadas pesquisas bibliográficas. Os autores
buscados são Feitosa (2012), Miguel (2003), Silva et al (2014), Araújo (2004) e Saffioti (2004). Além
de buscas dados primários em sítios oficiais, são eles Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Tribunal
Regional Eleitoral (TRE).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Universidade Federal e Catalão. E-mail: moniquegeo25@gmail.com


1

Universidade Federal e Catalão. E-mail: clcgeo@gmail.com


2

213
Entre os anos de 2008 e 2016, compreende-se 3 mandatos em níveis do legislativo. Em 2008,
dos vereadores eleitos para compor a Câmara Municipal de Catalão 8 eram do sexo masculino e 2 do
sexo feminino. Em 2012, o número de cadeiras do legislativa passou para 17, sendo somente uma delas
ocupada por mulher. Enquanto em 2016, foram eleitas 2 vereadoras.
Nessa breve contextualização, observa-se que o espaço político institucional da Câmara
Municipal de Catalão, no período compreendido entre 2008 e 2016, é caraterizado por apresentar uma
desproporcionalidade no quantitativo de homens e mulheres. Em outras palavras, as mulheres são
minoria nesse espaço de decisão-política. Com isso, observa-se que a reserva de 30% das candidaturas às
mulheres, viabilizada pela Lei das Eleições (Lei n° 9.504/1997), não fomentou a inclusão da mulher na
política.
Um dos fatores que contribuem para esse desastroso resultado é a prática dos partidos políticos
de registrarem candidaturas femininas, que não tem pretensão de concorrer às eleições, com o intuito
único de alcançar o mínimo de 30% das vagas com candidatas da forma que especifica a lei supracitada.
Essas candidaturas são denominadas candidaturas “laranjas”.
Para identificar essas “candidaturas laranjas”, buscou-se entre as candidaturas aptas àquelas que
não receberam votos. Nas eleições de 2016 para vereadores/as em Catalão, 12 mulheres não receberam
nenhum voto, contra e 2 homens. Ao “tirar” essas mulheres da disputa, percebeu-se que 3 das 7
coligações não atingiriam o percentual mínimo de 30% com mulheres, são elas: Coragem Para
Reconstruir I (PRP/DEM/PRTB), Catalão Não Pode Parar (PSDB/REDE/PSB/PTN) e Por Amor
A Catalão (PROS/PT/PCdoB/PV/PDT). Aqui os partidos estão atuando contra a luta pela
igualdade de gênero na política.
A estrutura partidária é considerada, pelas mulheres que participam do sistema eleitoral, bem
como, por grupos de mulheres que estão organizadas nos partidos, umas das principais barreiras para
participação da mulher na política (PRÁ; EPPING, 2012). Como traz Feitosa (2012):

[...] os partidos políticos são instituições mais resistentes a abrir-se à


participação política das mulheres. Existe uma correlação de forças, uma
natural disputa por espaços de poder, uma vez que cada vaga que se abre a
uma mulher implica a redução da participação masculina” (FEITOSA, 2012,
p. 164).

Outro ponto que se levanta como importante para compreender o insucesso da política de
inserção de mulher na política e que explica a inexpressiva presença de mulheres na Câmara de
Municipal de Catalão, é o capital político, posto que esse é condição para se alcançar cargos políticos
representativos (MIGUEL, 2003; SILVA et al., 2014).
De acordo com Miguel (2003), o capital político se baseia em 3 formas distintas de capital,
quais sejam, capital cultural, capital social e capital econômico. Estes juntos formam a base que dá
legitimidade ao indivíduo para atuar politicamente. Esse, por sua vez, é desigualmente partilhado na
sociedade. De acordo com Miguel (2003):

O capital político é, em grande medida, uma espécie de capital simbólico: o


reconhecimento da legitimidade daquele indivíduo para agir na política. Ele
baseia-se em porções de capital cultural (treinamento cognitivo para a ação
política), capital social (redes de relações estabelecidas) e capital econômico
(que dispõe do ócio necessário à prática política). Como toda forma de
214
capital, o capital político está desigualmente distribuído na sociedade. Na base
da pirâmide, temos os simples eleitores, que podem apenas optar por uma
entre as alternativas propostas, sem praticamente nenhuma voz ativa na vida
política; no topo, os líderes que são os autores das alternativas em jogo e que
são reconhecidos como representantes dos diversos segmentos sociais
(MIGUEL, 2003, p. 121).

O capital político “[...] indica o reconhecimento social que permite que alguns indivíduos, mais
do que outros, sejam aceitos como atores políticos e, portanto, capazes de agir politicamente”
(MIGUEL, 2003, p. 115). Esse autor ainda afirma que há uma relação dialética entre capital político e
carreira política. Assim sendo, ao mesmo tempo em que é preciso capital político para progredir na
carreira política, ascender na hierarquia do campo político corresponde a uma ampliação do capital
político. Nas palavras de Miguel (2003):

Se a palavra não houvesse sido tão malgasta, poder-se-ia dizer que capital
político e carreira política estabelecem entre si uma relação dialética. É
necessário capital para avançar na carreira, ao mesmo tempo em que a
ocupação de cargos mais elevados na hierarquia do campo político representa
uma ampliação do capital (MIGUEL, 2003, p. 115).

No entanto, dentre os componentes constituintes do capital político, o capital social, a partir


do financiamento eleitoral, deve ser levado, especialmente, em consideração para compreensão da
dinâmica responsável pela marginalização e exclusão da mulher da política. Compreende-se que, é
preciso que candidatos/as estabeleçam relações sociais que invistam em suas candidaturas, para assim
conquistar cargos políticos representativos. Um lado da relação almeja poder político e o outro lado
representantes de seus/as interesses no Estado. Segundo Silva et al. (2014) a conquista de cargos
políticos implica, entre outros, o controle de “[...] uma complexa cadeia de relações de interesses de
diversas naturezas e escalas de ação, na qual cada candidato(a) tende a desenvolver estratégias de alianças
e oposições, visando a conquista do direito privilegiado de representar grupos sociais na esfera do
Estado [...]” (SILVA et al., 2014, p. 1135).
Através dessas relações sociais os/as candidatos/as buscam o tão almejado financiamento
eleitoral de suas campanhas. Isso, pois, como constatado acima, existe uma relação direta entre o êxito
eleitoral e o financiamento eleitoral dos/as candidatos/as. Assim, os/as candidatos/as buscam
financiadores que aumentam suas chances de ganhar as eleições. E por outro lado, na escolha dos/as
candidatos/as, os agentes financiadores levam em consideração o potencial de conquista dos cargos
eletivos. De acordo com Silva et al. (2014):

A configuração das redes de financiamento é resultado tanto da ação dos


financiadores em investir recursos financeiros em determinadas candidaturas
quanto da capacidade do(a) candidato(a) em atrair ou captar os recursos
financeiros. Se os financiadores tendem a investir recursos em candidatos(as)
com maior chance de sucesso eleitoral para aumentar sua influência nas
decisões de seu interesse na arena do Estado, a quantidade de investimentos
captados influência nas chances de vencer as eleições. Assim, o
posicionamento de determinados agentes na rede de financiamento eleitoral,
ao mesmo tempo em que aumenta ou diminui as chances de sucesso, é

215
também um indicador da viabilidade eleitoral do(a) candidato(a)(SILVA et
al., 2014, p. 1137).

Além disso, no estudo supracitado, constata-se que os homens, em sua maioria, tendem a ter um
maior financiamento eleitoral que as mulheres, visto que eles são preferidos pelos agentes financiadores
por apresentarem mais chances de serem eleitos. Vale ressaltar, que esses homens, em grande maioria,
possuem experiência na política, ou seja, capital político. Assim, [...] o financiamento é um fator
importante na conquista de cargos eleitorais e faz com que as mulheres tenham mais dificuldades de
participar das decisões políticas (SILVA et al., 2014, p. 1136).
Dessa forma, “[...] as mulheres estão menos presentes entre as candidaturas mais financiadas,
com maior votação e, finalmente, eleitas” (SILVA et al., 2014, p. 1161). Realidade essa, que é
produzida e reproduzida através da prática do financiamento de atores centrais, que podem ser tanto
empresas quanto partidos, que tem como foco candidaturas com grande potencial de alcançar espaço na
estrutura representativa do Estado, visto que, entre as preferências, as que mais se destacam são
políticos/as experientes e homens. Tem-se uma intensificação desse quadro quando analisado o papel
de intermediador dos partidos entre candidatos/as e doadores privados. De acordo com Silva et al.
(2014):

Os financiadores centrais, sejam empresas ou partidos, produzem e


reproduzem esta dinâmica, concentrando recursos numa pequena parcela de
candidaturas mais viáveis, com grande presença de políticos experientes e,
principalmente, de homens. Tal realidade é agudizada quando se pondera o
papel de intermediação dos partidos, vale dizer, de se colocar entre doadores
privados e candidaturas (SILVA et al., 2014, p. 1162).

Nesse sentido, considera-se que os/as candidatos que apresentam maiores chances de serem
eleitos são aqueles/as que já possuem capital político, dessa forma, tanto os partidos como os agentes
privados financiadores de campanhas eleitorais, tem preferência por investir em candidatos/as que estão
ocupando, ou que já ocuparam, cargos políticos e estão tentando a reeleição, ou os/as que tem histórico
partidário e/ou aqueles/as que estão concorrendo pela primeira vez mas apresenta o perfil tradicional
do representante partidário, sendo que, por fatores históricos e culturais, estes tendem a ser,
predominantemente, homens (ARAÚJO, 2004; SILVA et al., 2014).
Assim, os partidos políticos contribuem para a preservação da quase inexpressiva presença da
mulher nos espaços da política, o que colabora com a manutenção da divisão dos papeis de gênero. A
qual reserva a mulher o cuidado com a casa, com os/as filhos/as, com o marido e com idosos da
família, ou seja, com tudo que está relacionado ao espaço privado, aqui entendido como doméstico.
Enquanto os homens são responsáveis pela vida econômica e política, ou seja, pelo espaço público. Essa
divisão de responsabilidades tem sua base na chamada divisão sexual do trabalho, que segundo Saffioti
(2004), é um tipo de divisão social do trabalho que tem como base o sexo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com esta pesquisa se constatou que a alteração na Lei das Eleições feita em 2009 pela
Minirreforma Eleitoral não conseguiu resolver o problema da sub-representação da mulher na política e
não significou nenhuma melhora no quadro político da Câmara Municipal de Catalão. Ao contrário, na

216
primeira eleição depois dessa alteração o quantitativo de mulher eleita caiu, em 2008 foram eleitas 2
mulheres e em 2012 apenas 1.
Além disso, com a pesquisa bibliográfica e de dados sobre as eleições de 2008, 2012 e 2016,
concluiu-se que o principal obstáculo a inserção de mais mulheres na política são os partidos políticos,
ao adotarem a prática de candidaturas laranjas para preencher o percentual de 30%. E por privilegiarem
as candidaturas que tem maior capital político para apresentarem aos atores financiadores de campanha,
que em sua maior são homens. Dessa forma, se faz necessária uma mudança no comportamento dos
partidos para que mais mulheres estejam na política.
REFERÊNCIAS
MIGUEL, Luís Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. Editora Unesp, 2013.
PRÁ, Jussara Reis; EPPING, Léa. Cidadania e feminismo no reconhecimento dos direitos humanos das
mulheres. Estudos Feministas, p. 33-51, 2012
RESENDE, Roberta Carnelos; NICOLÁS, María Alejandra; ROSEVICS, Larissa. Análise da
participação política feminina nas Assembleias Legislativas da região sul do Brasil (1998-2006). Revista
Latino-Americana de Geografia e Gênero, v. 1, n. 2, p. 254-269, 2010.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo,
2004.
SILVA, Joseli Maria; et al. Posicionamento das Mulheres na Rede de Financiamento Eleitoral e seu
Desempenho nas Eleições de 2010 no Brasil: a dinâmica estrutural da exclusão e marginalização
feminina no poder político. Anais II Seminário Latino-Americano de Geografia, Gênero e Sexualidade:
Interseccionalidade, gênero e sexualidade na análise espacial. Porto Velho, Rondônia, p. 1131-1167,
2014.

217
RECORTES DOMÉSTICOS DA ABJEÇÃO EM REALIDADES HETERONORMATIVAS

Gerlândia de Castro SILVA1

O teu beijo é tão doce, Arlequim


O teu sonho é tão manso, Pierrô
Pudesse eu repartir-me, encontrar minha calma
dando a Arlequim meu corpo e a Pierrô, minha alma! ...
Penso que morreria o desejo da gente
se Arlequim e Pierrô fossem um ser somente.
Porque a história do amor só pode se escrever assim:
Um sonho de Pierrô E um beijo de Arlequim!2

INTRODUÇÃO: PRIMEIROS ALFARRÁBIOS


Arlequim e Pierrô compõem camuflagens, simulacros autênticos, lugares de fronteiras não fixas,
alameda deslizando-se, em invenção, em vazamento. Estar suspenso entre Arlequim e Pierrô é fazer-se
tomado pelo devir (MAUÉS, 2000).
Ao procurar uma viagem frincha e não abreviada, querendo uma narrativa autobiográfica, algo a
contar de sua trajetória em um espaço intransitivo, se deixa seduzir e interpelar por experiências em
traçados escapadiços e, em sobressaltados e prolixos, extensos, visíveis, mas imperceptíveis, busca àquele
livro de contos disposto na escrivaninha.
No livro faz marcas, puxa anotações, alterna alfarrábios, atem-se em outros, improvisa dobras
na página, adia a leitura e adsorve-se no rodapé. Parece ser o rodapé mais interessante. É uma palavra:
homo-não-sei-o-quê. Parece insolente, invasivo, expurgável, dá asco. É abjeto! E falar da abjeção
machuca! (KRISTEVA, 1980).
Os espelhos líquidos estão enevoados, mas deixam escapar algo que se assemelha a corpos
andrajosos, truncados e híbridos que se agitam e assumem novas formas rizomáticas, em composição e
indizíveis. Difícil assumir estes corpos, porque é abstruso assumir identidades quando as significações já
foram impostas a eles.
Deixemos tudo adiado para o depois/agora e dancemos neste baile na confusão de uma
escrivaninha enquanto confeccionamos fantasias e camuflagens sobre uma realidade abjeta de fazer-se
gay em uma realidade heteronormativa.

THIJM– Faculdade de Matemática, UFPA, Castanhal. PA. E-mail: gerlandia@ufpa.br


1

Máscaras. Menotti Del’Picchia.


2

218
SOBRE A ORIENTAÇÃO E O DESEJO COMO CULPA EM CASA
Força e poder incomodando, interpelamentos nietzscheanos reinventados pela crônica
foucaultiana ao denotar produtividade e potência criadora, mas que, sobre alguns corpos, inscrevem-se
com perversão, tornando-se traumáticos para uns e produtivos para outros. Um Raskólhnikov 3, sobre o
desejo de cometer um crime, indagaria, sem saber se este adviera, o porquê do castigo infligido.
Quisera procurar respostas e entender se de fato há crimes nos desejos, porém preferiu deixá-los
em expectativa e procurar, nos arabescos garatujados no lanço da epiderme, o que a sentença produz.
Sim há sentença, há culpa e sofrimento em quem quer afrontar uma atmosfera familiar saturada de
machismos, heteronormativismos e preconceitos. Mas isto deveria ser enfrentado, e a vida
experimentada,
Em meio a camuflagens, uma viravolta no pensamento, uma perversão excita a escritura a pinçar
breves recortes, takes e flashes e ressignificar, por exemplo, os cursos da vida: a Psicologia em poucos
anos, Letras, Pedagogia, à procura de uma explosão, a explosão do homoerótico da perdição do espírito
e construção da ambivalência. Queria uma licenciatura, ou mesmo lidar com a docência; queria um
público mais maduro; queria manejar com outro tipo de macho, ao estilo “mamão-macho”, como aquele
do mamoeiro que nascia em uma extremidade do muro da universidade, que desde pequeno ouvia em
casa que era um mamoeiro estranho. O mesmo mamão tão temido pelas avós que pintou o escritor. E
quem não se lembra, ou mesmo reinventa o que dizia a preconceituosa e cheia de astúcia a avó com:

suas palavras sobre o ‘mamão-macho’. Dizia que não podia cortar o olho do
mamoeiro ainda jovem porque senão ele se tornava macho. Um dia nasceu um
mamoeiro no quintal e logo que penderam aquelas flores a velha Bilinha
avisou: - Este mamoeiro é macho. Vou cortar. – Corte não mãe. – Pediu-lhe
[...] para deixar o mamoeiro vingar. Teve pena. Bonito, sobretudo as flores. –
Não vai botar mamão. – Respondeu e ainda acrescentou: – Bota apenas dois:
os quibas – E o mamoeiro ficou lá até finalmente nasceram dois únicos
mamões pendurados. Quando amadureceram a mãe os retirou e falou de um
certo doce muito perigoso que fazia com eles ainda verdes. O doce tinha um
estranho poder de fazer a pessoa mudar a preferência sexual. Depois ficou
olhando estranhamente para ela, a ponto de perguntar o que estava pensando.
Ela nada respondeu, apenas pinicou os mamões e jogou no lixo. Era criança
nesta época e só depois percebeu que a mãe pensou em dar-lhe o doce pra
comer (RAMOS, 2006. p. 20, grifo meu).

Desde muito cedo, ouviu receitas, e pior, viu as pessoas olharem-no como uma provável cobaia
para aquelas receitas que tornariam um mamão macho. Ainda bem que foram somente olhares.

CONTOS, TRAJETÓRIAS ESCOLARES E O SABOR DA DOCÊNCIA


De súbito para, contempla em volta e, como numa máquina desejante de um tempo
interrompido e incontínuo, embarca em uma viagem de cheiros, sons e sabores. Um fundo sonoro

3
Rodion Românovitch Raskólnikov é personagem principal da trama “Crime e Castigo” escrito por Dostoievski, em 1866.
Raskólnikov arquiteta a morte de sua velha vizinha e também, usurária, passando, nos dias que antecedem e sucedem a morte,
a flagelar-se em agonia por sua própria incapacidade de continuar vivendo.
219
atordoa e produz vida a mais uma manhã de fevereiro em plena Almirante Barroso4ao misturar sirenes,
buzinas e frenagens com roncos de motor, correria de vendedores e conversas na revistaria. Juntam-se a
esta sonoridade o cheiro de fumaça de escapamento com os cigarros acesos nas paradas de ônibus e o
aroma de café coado na hora. Estes eventos embaraçam os sentidos e dificultam distinguir passos firmes
e pesados, quase em marcha, acompanhados de passadas leves, mas apressadas, que tentam seguir os
primeiros.
Em poucos instantes os sons dos passos tornam-se mais próximos, descem as escadarias como a
sombra de Bown5, atravessam um hall de entrada de um casarão antigo e caminham em direção à rua.
Ouvem-se, baixinho, soluços, até os passos subitamente cessarem.
– Esta não é mesmo a escola dos meus sonhos – murmura-se.
– Tu és homem e homem que se preze e filho de militar, será militar também.
– Mas, por que nenhuma das meninas será militar?
– Dos três filhos que tivemos somente tu és homem. Não tem conversa, vais para a escola da
aeronáutica!
As sombras seguem e seus passos se tornam mais distantes até outros acontecimentos tomarem
a cena do dia. Estes episódios se tornarão comuns, inclusive banais, mesmo quando os pequenos e leves
passos caminharem sozinhos. Não se tardaria a perceber as máscaras confeccionadas cuidadosamente,
quando da espera de uma criança. Filho esperado, alento do pai da estirpe militar e da família demachos ,
como a árvore a balançar-se com o vento.
Na confusão estabelecida, não se pode vivenciar o sentimento da diferença que somente será
acidental, uma vez que todo um planejamento de uma família seria para uma formação que não condiz,
tampouco coexiste, com a docência.
O recorte no livro da existência o coloca dentro da Escola da Aeronáutica com todas as
sensações que este ambiente pode produzir quanto ao disciplinamento. Foi um dia excêntrico – o da
entrada na escola militar. E pensar que estudou a vida inteira nesta escola transitando entre a indisciplina
e a disciplinarização; entre a transgressão e o machismo; entre o querer e o fugir (FOUCAULT, 1984).
Desejos entorpecentes flamejam sobre o corpo fazendo brotar a cobiça de um microuniverso.
Um mundinho em que pudesse conviver com os alunos de Letras e vê-los passar com aquela pinta de
menina com o caderninho junto ao peito rebolando, uma vez que se colocassem os cadernos presos nas
mãos abaixo da cintura, já se sabia que eram de Engenharia ou de exatas, mas os meninos de Letras e os
de Pedagogia pareciam e muito o Balé Bolshoi. Juntava-se tudo: Comunicação, Arte e criava-se a casa da
Barbie.
Pouco percebe que estes jogos entorpecidos, adjacências de enunciados dispersos e inconclusos
provocam e movimentam performances envolvendo o masculino e o feminino e seus lugares reiterados
historicamente, criando-se mais que clichês ou lugares comuns que criam, subvertem, produzem cursos,
labirintos, disciplinas e indisciplinas aos que se atrevem à transgressão em que imagens abjetas
materializam metáforas e preceituam posturas prescritas repetidas e, portanto, performativas (BUTLER,
2016).

4
Principal avenida, ponto de entrada e saída de Belém.
5
Dan Brown, Inferno, 2013.
220
Encontra-se dentro de outro conto quando,com uma só olhada, percorre toda a sala escurecida
pela madeira envelhecida misturada ao amarelado dos acortinados estáticos pela falta de ventilação.
Atem-se na janela observando os jovens franzinos que, sem camisa, jogam futebol dentro dos muros da
escola ao mesmo tempo em que do alto de um prédio separado do seu, cuja sombra vai até o meio do
campo, em uma sala com imensas janelas de vidro, alguém observa e faz anotações exercendo a
enfadonha tarefa panóptica (FOUCAULT, 1984).
Acompanha a entrada das crianças, mas faz uma breve busca ao tentar capturar do livro de
experiência uma significação de lembrança sobre como entrou na docência. Aquela sensação de que as
pessoas iriam perceber sua aparência com traços delicados e julgarem-no afeminado, com jeito gay, ou
mesmo questionarem sobre a sua provaável idade relacionando-a à imaturidade ou inexperiência, pode
ser sentida até hoje, o que o obriga sempre a buscar provar sua competência e demonstar-se sisudo e
agressivo.
Não pode fugir da experimentação destes predicados: a sisudez, a agressividade e a seriedade
emergem como inscrições contrárias ao que se sente ou a uma ontologia homoerótica, ao mesmo tempo
em que: muito jovem e inexperiente aparecem como características mais próximas da ideia de
homoerotismo.
Tais posturas vão servir como uma carapaça, pois há certo pânico de que alguém na escola
pense estar sendo assediado ou que há interesse pelo corpo, em tocá-lo ou querê-lo. Neste caso, a
melhor saída é demonstrar ser sério, como se este atributo fosse exclusividade do macho – não deveria
esquecer o mamão. Então não sorri, não brinca, não brincava na escola, afastava todos do contato
afetivo. Não havia/há toque na pele, conversa de perto, olho a olho, para não se criar rumores ou se
cultivar a dúvida.
Mesmo tendo aberto o armário e retirado o volume que queria fazer a leitura, a visão daquela
tarde em que os garotos franzinos jogavam futebol na escola tornava-se cada vez mais reiterativa e fazia
ponderar sobre as brincadeiras que considerava masculinas e o desconforto com coisas femininas, ainda
dentro de uma perspectiva binarista. Gostava de futebol, de conversar sobre torneios e partidas; jogava e
se portava como osoutrosmeninos da escola, embora outros desejos se fizessem presente.
As escolhas convenientes, o disciplinamento dos desejos e a subjugação de corpos ocorriam de
forma naturalizada no ambiente escolar que operou eficientemente para que as manifestações
consideradas desviantes fossem reguladas tanto nas escolhas de brinquedos e brincadeiras, como no
processo de separação durante o desempenho de atividades diversas. Apreendeu que a escola estava
atenta, como se velasse, para a escolha dos brinquedos segundo o sexo. E o futebol, que segregava e
marcava os lugares performáticos, também permitiu borrões, rabiscos e garatujas da diferença
(GOELLNER, 2001).
Ao pensar no futebol e na molecada, lembra as tentativas de se separar meninas de meninos
fazendo-se aparente um propósito definido de garantir identificações a partir de definições biológicas
pela produção, circulação e inculpação de tecnologias do eu, aquelas técnicas e práticas discursivas que
induzem ao auto disciplinamento e levam o indivíduo a manter a si e aos outros sobre controle
(FOUCAULT, 1990).
Subtamente fica clara outra imagem, a da comemoração por ter passado na escola técnica,
naquele curso de Exatas cujas chamadas novas tecnologias de comunicação e informatização mostravam-
se interessantes e faziam promessas de um futuro/presente profissional promissor, ao mesmo tempo em
que potencializavam a vida entre os rapazes, porque se permitia vê-los, porque o afeto pelo mesmo era
mais interessante.
221
TENSÕES SOBRE FORMAÇÃO E PERFÓRMANCE NA DOCÊNCIA
Do armário em que esquadrinhava as prateleiras foi retirado o volume que procurava, mas sua
leitura projeta uma confusa reflexão, pois não houve descoberta de uma sexualidade biológica, mas a
vivência do homoerotismo em todas as suas dimensões, fossem elas afetivas, emocionais ou carnais, ao
lado de muitas indefinições, como a da carreira docente. Reconhece que estas imprecisões transitaram
pelo gosto dos cursos de exatas e a vida dos meninos. Transitavam, também, por inclinações artísticas
compreendidas ao se observar os lugares que se projetam para meninos e meninas ou para algumas
carreiras, como a docente.
Compreende que atuar como docente em uma universidade requer pensar sobre tais inclinações
em uma renúncia de tempo submetendo-se a uma temporalidade transitória que provoca escapes
deleuzianos e faz com que o contemporâneo seja visto pela janela retorcida enquanto se vive e se é
tomado por ele e enquanto os interpelamentos propiciam o olhar da tangente do tempo de modo que,
mesmo no exercício da docência, se retorne àquele lugar em que pensou admiti-la tornando-a
inseparável da vivência homoerótica (DELEUZE, 2002).
Por um tempo escapadiço, que lhe pareceu longo, questionou se a docência era o caminho a se
seguir e titubeou em recuar. Por um tempo irregular também ponderou sobre esta inclinação, pois tinha
aprendido a gostar de coisas incrustadas como sendo demacho: o futebol, a namorada, o curso de exatas
e o cálculo, pareciam ser a melhor definição da macheza. Mas o encontro das licenciaturas, a leveza dos
cabelos, a porosidade da pele, tudo isso lhe dava ares mais interessantes. Queria esta experiência como
lugar da abjeção transgressora, vivê-la, reiterá-la, atualizá-la num continuum de problematizações e
recolocações, constituindo-se enquanto lugar do adiamentoe da diferença.
Profusão de direções desalinhadas, burburinho de volições, efígies tencionados na silhueta de
um corpo cada vez difusos e dispersos em cerrações. Experimentos infames, misturas inconclusas: jogar
bola e vivenciar o homoerotismo; ser gay e ter relações com mulher; e fazer Psicologia e Letras e Artes –
Há muita frescura aí – pensou. Talvez o lugar da frescura ou do arejamento mesmo seja a Licenciatura.
Mas se gostava de exatas e de cálculo não poderia ser gay e sendo gay teria lugar na
docência?Presunçõesconfusas, transversalisadas e trituradas pela diferença. Incompletas respostas para
questões improváveis desconchavadas por um tempo prolixo. Olhou para o armário, examinou a sala,
explorou cada detalhe e esbarrou em um quadro militar que remetia àquela escola da infância.

ADIAMENTOS PARA OUTRAS PARAGENS (O QUE CHAMAM DE


CONSIDERAÇÕES FINAIS)
Lembranças ressignificadas e proeminências em inalcançáveis reinicializações. Nelas um vaivém
de mesas, livros, armários e lousas fazem hibridizar o pensamento: em meio a pinturas incandescentes,
um protótipo em que imagens são mescladas projeta ao fundo um grupo com silhuetas semelhantes às
quais há que se adequar, uma vez que a diferença se coloca enquanto esfinge problemática e enigmática.
Pensando na escola básica, lembrou que, por diversas vezes, tendo sido repreendido pelo
Diretor da escola, juntou um grupo de amigos e soltou “bomba-relógio” em lugares que causassem
danos ao patrimônio. A bomba consistia basicamente em um artefato que condensava pólvora de várias
bombinhas, vendidas nas proximidades da escola, dentro de uma garrafa tendo como pavio, preso por
chicletes, um cigarro que, após cinco minutos de aceso, chegava ao núcleo explodindo e causando as
avarias necessárias: podia abrir buracos no muro e no telhado ou arrebentar um vaso sanitário. E isso
222
ocorreu: a sala da direção teve sua maçaneta explodida, os vasos sanitários foram para os ares e o muro
ficou com várias fissuras. Sem contar nas vezes que atirou pedras nas residências oficiais da vila militar.
Fendas, frestas, rasgos, foram abertos na organização e no sistema certinho. Interstícios
recusaram o ser disciplinadinho e produziram agitação, desinibição e o gosto por atividades artísticas
como feiras culturais e jogos. A criança agitada, desinibida e com gostos para atividades artísticas,
embora sobreviva ao disciplinamento, cria formas de resistência e faz-se perceber diferente eliciando,
ainda mais, a necessidade de controle que atravessa a arena discursiva, fazendo-se sentir literalmente na
face, em sua superfície, atravessando-a.
A transgressão e a rebeldia também têm suas consequências e mesmo na sua negação constroem
positividade. Contudo, a experiência da desobediência tem sabor especial, como responder
propositalmente um questionário de maneira a não atingir a pontuação, para não seguir a carreira
militar. Não esqueceria a surra homérica, pois ela serviria para traçar no lanço da tez o disciplinamento
dado, para lembrar o planejamento e para demarcar posições ou mesmo para punir um delito e definir
os rumos das relações familiares, instalando um materializado e poético abalo.
Realidades, ficções, fantasias e repetições forjam em metal enferrujado reflexões voltadas para
uma escrita poética com metáforas e literalidades, com tragédias e comédias, que denunciam e anunciam
um deslizamento e um chamamento para outras reflexões.

REFERÊNCIAS
BROWM. Dan. Inferno (tradução Fabiano Morais e Fernanda Abreu). São Paulo: Arqueiro, 2013.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11ª ed.. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016. 288p
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, F. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. Trad. Peter Pál Pelbart e
Janice Caiafa. Vol. 5. 1. Reimpressão. São Paulo: Ed. 34, 2002.
DOSTOIEVSKI, Fyodor (1866). Crime and Punishment.Phoenix−Library.org. 2001.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir . 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1984.
__________, Tecnologias del yo – Y otros textos afines. Tradução de Mercedes Allendesalazar. 1a.ed.
Barcelona: Paidós Ibérica, 1990. 150p. (Coleção Pensamiento Contemporáneo, 7).
GOELLNER, S., Gênero, Educação Física e Esportes. In.: Votre, S. (org.).Imaginário e representações
sociais em educação física, esporte e lazer. Rio de Janeiro: Gama Filho, 2001. p. 215-227.
KRISTEVA, Julia. Pouvoirs de l'horreur. Essai sur l'abjection. Paris: Éditions du Seuil, 1980
MAUÉS, Josenilda. Casaco de arlequim: composições provocativas para outras práticas. In: SANTOS,
Eunice et al. (Orgs.). Territórios didáticos.Belém, E. F. S. 2000. p. 13-34.
RAMOS, Benedito. Doce de mamão macho. 1ª ed. Maceió: Catavento, 2006.

223
“TUDO BEM SER GAY, MAS NÃO PRECISA VIRAR MULHERZINHA”: UMA ANÁLISE
ETNOGRÁFICA DAS PERSPECTIVAS DE MASCULINIDADES E A AFEMINOFOBIA NA
CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE HOMENS GAYS

José Claudivam da SILVA1


Jônatan David Santos PEREIRA2

INTRODUÇÃO
A dicotomia do sexo biológico é disseminada na sociedade, se consolidando ao longo do tempo
e produzindo categorizações, de modo que os órgãos genitais, características pura e exclusivamente
biológicas, determinem e definam o “ser” mulher ou homem, sendo estes enquadrados dentro de uma
lógica cis heteronormativa de matriz hegemônica. Assim, o binarismo sexual representa uma dessas
categorizações quando afirma que o corpo possui somente duas formas constitutivas únicas, o feminino
e o masculino, e que consequentemente exprimem papeis sociais também binários.
Muito disso se dá em virtude da formação pessoal de cada um quando lhe é ensinado a agir, se
comportar ou possuir determinada aparência para adequar-se ao sexo masculino ou ao sexo feminino.
Deste modo, os sujeitos de identidade diversa do padrão preestabelecido representam uma quebra de
paradigma da lógica binária, uma vez que traços tidos como masculinos ou femininos, que não são
atribuições condicionadas ao sexo biológico, representam as características da identidade do indivíduo,
para além dessa noção de masculino para homens e feminino para mulheres, negando uma categorização
excludente e marcada de preconceitos.
Coloca-se então que, a identidade masculina, que ainda é fortemente marcada pelo padrão
hegemônico de construção de machos, entendidos como aqueles que repudiam traços femininos e
representam o caráter másculo “inerente” do ser masculino, que ocupam a posição de “ativos” e
possuem um lugar hierárquico privilegiado única e exclusivamente por possuírem um pênis; não possui
um viés de unicidade de construção identitária onde as questões de masculinidades, no plural, melhor
representa os indivíduos no meiosocial.
O afastamento do que é entendido como feminino pelos homens acaba abrindo precedente para
a perspectiva identitária dos homens gays afeminados no contexto da produção de masculinidades, bem
como para a situações de afeminofobia, preconceito pelos indivíduos de identidade dissidente, com
papel de gênero diverso; uma vez que a identidades homossexuais, mais especificamente as identidades
masculinas, já possuem um caráter de marginalização e subalternidade que as coloca num lugar inferior e
mais ainda quando associado ao feminino.
As bichas afeminadas3 fogem a regra lógica do padrão preestabelecido de masculinidade que
privilegia um determinado grupo de indivíduos, homens cis heteronormativos, uma vez que as

1 Graduando pelo Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE/SEDE); Graduado
pelo Curso de Direito da Faculdade Damas (FADIC), Integrante do Núcleo JUREMA: Feminismos, Agroecologia e
Ruralidades (DECISO/UFRPE). E-mail: jclaudivamsilva@hotmail.com
2 Graduado em Direito pela Faculdade de Integração do Sertão – FIS; pós-graduando em Direito Público pela Faculdade
Legale e em Direitos Humanos pela Faculdade CERS. E-mail: jonatan.david13@hotmail.com
3
A autora Eve K. Sedgwick traz o termo “ effeminate” para designar esses corpos, tendo tal termo mesmo caráter semântico
na sua tradução “afeminado”.
224
identidades masculinas quando associadas à feminilidade perdem o seu caráter hegemônico e são
condicionadas a passividade, tanto social quanto sexual e com isso reforçam situações de violências e de
negação dereconhecimento.
A negação deste sujeito desviante estrutura um pensamento para a categorização do sexo, de
modo que o binarismo homem/mulher represente o padrão correto e aceitável na sociedade. Contudo, a
desconstrução desse sujeito cis heteronormativo se faz necessária diante das diversas formatações de
gênero e identidades que são marginalizadas. Esta contribuição de exclusão e condicionante das
situações de afeminofobia é cada vez mais evidente, pois o binarismo sexual como padrão
preestabelecido ainda é fortemente marcado e enraizado na sociedade.
Não se negam os gostos e autonomia na hora de escolher o “jantar”, contudo o “cardápio”
apresentado nos aplicativos de relacionamento gay, quais sejam o Tinder e o Grindr 4, criados em 2012 e
2009, respectivamente, na imensa maioria das vezes, não dá lugar para as bichas afeminadas, sendo
observado que há uma rejeição em relação a elas e que tal rejeição está fortemente ligada a uma questão
de repúdio e misoginia, pois durante todo o percurso metodológico do trabalho, as palavras soavam
pejorativas, estritamente ofensivas e de distanciamento das identidades que possuem traços afeminados.
Falar em desejo também é uma coisa que nos leva a pensar e vivenciar os diversos tipos de
rejeições advindo da própria população gay, uma vez que os desejos são entendidos como algo
formalmente individual e subjetivo, quando na verdade estes partem de uma construção social, que a
autora traz como “effeminate”, possuindo o mesmo caráter semântico na sua tradução.
Vale salientar que muitos exemplos foram observados em conversas com perfis de usuários
desses aplicativos, onde foi questionado o porquê de eles não curtirem pessoas afeminadas, uma vez que
em diversos perfis estavam explicitamente identificados com um “X” em pessoas afeminadas para
determinar que não haveria possibilidade de envolvimento, sequer de algum tipo de conversa, como
ocorreu com alguns, e dentre as respostas obtidas a mais reproduzidas foi: “É broxante”.
Parece que coisificar e rejeitar de forma tão violentamente é um comportamento recorrente
reproduzido nos aplicativos de relacionamento gay e parte de um estereótipo impregnado culturalmente
na sociedade de reprodução de um macho hegemônico e predeterminado a um lugar de superioridade
em relação a tudo que perpasse a ideia de feminino ou feminilidade.

OBJETIVOS

Objetivo geral:
a) Analisar como a interação dos usuários dos aplicativos de relacionamento gay atuam na
manutenção de discursos afeminofóbicos que reforçam uma lógica restritiva e
excludente das identidades das bichas afeminadas por meio do viés da cis
heteronormatividade.

4
São aplicativos de relacionamento gay e/ou bissexual. A quantidade de usuários é imensa e frequentemente se encontram
perfis que discriminam outros usuários, na maioria afeminados ou que fogem dos parâmetros padronizados socialmente, e
reproduzem uma lógica do macho que deseja (sente tesão) por outros machos.
225
Objetivos Específicos:
b) Demonstrar como a perspectiva de interação dos usuários de aplicativos de
relacionamento gay favorece a reprodução ou reiteração de uma perspectiva cis
heteronormativa, por meio de um padrão dicotômico preestabelecido;
c) Identificar os discursos afeminofóbicos e as representações de violências nos aplicativos
de relacionamento gay a partir de uma lógica excludente e de marginalização de gays
afeminados.

METODOLOGIA
A pesquisa é constituída e construída a partir do caminho metodológico qualitativo, seguindo
uma análise de alguns perfis dos usuários do Grindr e do Tinder, que frequentemente são reprodutores
do que aqui se chama de afeminofobia.
Deste modo, a partir da etnografia virtual, que é a apropriação de sites de relacionamentos,
nesse caso específico, a partir do uso da etnografia tradicional, que é o estudo e entendimento sobre as
diversas culturas, muito frequentemente utilizada na Antropologia. Porquanto, a etnografia virtual se
coloca como o instrumento fundamental para a compreensão das culturas e reprodução de
comportamentos estereotipados nos aplicativos de relacionamento gay, que aqui são o corpus de análise,
sendo realizada no período de março a agosto de 2019 com a verificação de 24 perfis nos referidos
aplicativos, encontrando-se, deste modo, finalizada.
A análise foi pautada na observância dos nicknames, bem como na biografia e descrição postas
pelos usuários em seus perfis. Certamente, cada aplicativo tem uma logística diferente e foi
importantíssima essa diferenciação. A exemplo, a análise da descrição “Não curto afeminados” ou as
mais diversas frases pejorativas utilizadas; a etnia, a idade, a posição (ativo, passivo, versátil, versátil mais
ativo, versátil mais passivo etc.); a tribo, dentre outros elementos fundamentais para compreensão dos
aspectos que violam a dignidade dos usuários que fogem da padronização imposta pelos próprios
membros dos aplicativos, bem como da sociedade e as relações sociais.
Tem-se aqui a ligação das bichas afeminadas como lotadas da passividade sexual nestes
aplicativos, quando na verdade não há que se rotular apenas se baseando nesses conceitos que nos levam
para um binarismo e relação entre homem e mulher, exclusivamente.
Não bastando, uma outra metodologia também foi aplicada, a revisão bibliográfica de obras,
textos e artigos correlatos à temática posta. Nesta fase, foram utilizadas as obras da teórica norte-
americana dos estudos de gênero Eve Sedgwick, criadora do termo afeminofobia, que sustenta e dialoga
com questões propostas na pesquisa por meio das obras “Epistemologia do armário” e “ How to bring
your kids up gay: The war on effeminate boys” onde analisa as problemáticas das construções
identitárias masculinas.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
A perspectiva de construção identitária dos machos e a lógica de manutenção de características
simbólicas que assim os identifiquem carrega o estigma de negação dos corpos das bichas afeminadas,
tais características incluem, dentre outras, ter a voz grossa, não “dar pinta”, ter “jeito de homem” e se
portar como tal; características que podem estar presentes nos homens gays afeminados, mas que são
invisibilizadas a partir do reforço da afeminofobia.
226
A análise dos perfis inseridos nos aplicativos de relacionamento gay foram pautadas diante de
uma perspectiva de afastamento do lugar do feminino, de modo que a identificação deste era de fácil
visualização. O teor pejorativo estava presente nas descrições destes perfis, onde a lógica de construção
de uma figura masculina que performe um ideal de masculinidade introjetado na sociedade e
naturalizado antes mesmo do nascimento dos meninos – suas características de demarcação de uma
identidade masculina cisgênero e heterossexual reforçam, posteriormente, suas vinculações sociais e
afetivas.
Nestes perfis é comum não revelar a identidade e esse tipo de anonimato possibilita, inclusive,
que discursos misóginos e preconceituosos – partindo dos indivíduos que pertencem a mesma lógica
identitária – contudo, uma questão importante observada é o fato de homens gays não se identificarem
como gays ou sequer como bissexuais, mas sim como homens heterossexuais para, assim, afastar o teor
de marginalização que carrega, de algum modo, ser ou se reconhecer como gay.
Esse tipo de situação é fundamental para que, dentro dos aplicativos de relacionamento gay, a
performance masculina que não traga similaridades com o feminino e/ou afeminado seja privilegiado e
preterida.
Ser macho, no sentido estrito do termo, qual seja: a noção de um indivíduo ativo, social e
sexualmente, másculo e viril, é uma definição que não cabe às bichas afeminadas. Tal situação denota a
configuração de uma machonormatividade “que enaltece as características associadas à masculinidade
tradicional e muitas vezes é mobilizado na busca por estender tal masculinidade” (BRAGA, 2013, p.
13).
Nesse sentido, a percepção de um discurso misógino é evidenciado em uma dicotomia sobre a
condição de ser ativo e ou passivo no âmbito sexual, a partir da atribuição da passividade a papeis quase
que exclusivamente femininos denotando uma lógica pejorativa, onde a bicha afeminada é posta como
passiva sexual, já que quebra a ideia de macho e sua potencial virilidade por possuir traços dissidentes da
sua identidade masculina, sobretudo evidenciada nos aplicativos de relacionamento gay em que
homofobia e misoginia andam lado a lado e ter trejeitos femininos é característica de subalternidade
desses corpos de masculinidades diversas.
É nesse sentido que os desejos representam uma linha tênue nas perspectivas identitárias, uma
vez que há uma figura idealizada a partir de um homem viril, que exala testosterona e que é
heterossexual fazendo referência a um “homem de verdade”, pois a negação da identidade dos homens
gays afeminados os coloca numa situação de “não homens” ou “menos homens” por performarem uma
masculinidade que foge ao dito homem de verdade latente no mundo dos machos alfa com seus corpos
e sexualidades desejadas e desejáveis por grande parcela da comunidade LGBTQI+ inserida nos
aplicativos de relacionamento gay.
Como bem destaca a teórica Eve Sedgwick quando pontua que “[...] o desejo, desse ponto de
vista, subsiste, por definição, na corrente que flui entre um eu masculino e um eu feminino, em qualquer
sexo de corpos que esses “eus” se manifestem” (SEDGWICK, 1993, p. 30).
Os corpos abjetos e de identidades negadas nos aplicativos de relacionamento gay são os das
bichas afeminadas, que representam o corpus estruturante da pesquisa, já que representam uma afronta a
produção de masculinidades viris ou normais, carregando o estigma de ser um corpo dissidente, um
corpo gay, e mais ainda por ser afeminado/efeminado. “O estigma é definido como um atributo
psicológico ou físico, aparente ou não, que está relacionado a uma marca social de vergonha,
depreciando o indivíduo no convívio social” (GOFFMAN, 1988).

227
A negação da feminilidade se faz a todo custo para se colocar num lugar de privilégio, onde as
bichas afeminadas são inferiores; os homens gays que performam uma masculinidade hegemônica estão
em superioridade àquelas que não o fazem, determinando, enfaticamente, que tal negação se apresente
antes mesmo da autoafirmação das suas masculinidades. É ainda mais evidente a partir do uso recorrente
da seguinte frase: “tudo bem ser gay, mas não precisa virar mulherzinha”; reforçando o caráter
afeminofóbico e misógino da construção do homem viril dentro da própria comunidade LGBTQI+.
Durante toda a construção da temática neste trabalho, pontuamos que a mulher é colocada para
ocupar um lugar social que é marginalizado, munido de sentimentos e de fragilidade, sobretudo
esteticamente, uma vez que a mulher, por ser colocada num lugar de fragilizada e emocionalmente mais
sensível deve estar ocupando um espaço de subalternidade diante dos machos ou também dos
machonormativos, que, absurdamente, buscam fugir dessa lógica incorporada e culturalmente aceita
como feminina e, com isso, determinam que as bichas afeminadas estão, analogicamente, nesse mesmo
espaço – a rejeição dos traços de feminino e feminilidade contribuem para a produção de machos
embebidos de características cis heteronormativas.
Sobre essa perspectiva de repulsa qualquer comportamento que fuja dos atos performativos,
“entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que por
outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e
outros meios discursivos” (BUTLER, 2003, p. 194), caracterizados por esses machos cis
heteronormativos dotados de todos os seus instrumentos normativos e reconhecidos social e
culturalmente como o padrão é mais que fundante de uma lógica de perda do tesão, do desejo ou
qualquer que seja o substantivo que caracterize esse tipo específico de violência, qual seja, a violência
simbólica “que se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao
dominante” (BOURDIEU, 2012, p. 47).
Nesse sentido, destaca Bourdieu (1998, p. 23), “a dominação de gênero mostra que a violência
simbólica se dá por meio de um ato de cognição e de mau reconhecimento [...] dos esquemas de habitus
que são ao mesmo tempo generados e generantes”. Contudo, tal perspectiva independe do gênero, pois
ao que parece, há uma associação imediata do gay afemindado à mulher, quando na verdade, gays
afeminados são homem cis homossexuais que se identificam de pronto com o seu sexobiológico. Diante
disso, o que se percebe é o desejo/tesão, alimentado por uma lógica de fetiche, pautado numa
construção social e negada fortemente pelos machos que ainda enxergam os gays afeminados como
mulheres e não como homens com traços femininos e de feminilidade.
Os números de membros da própria comunidade LGBTQI+ praticando a afeminofobia são
imensos e os motivos estão colocados durante toda a construção do trabalho, porquanto, é relevante que
se note o papel imposto à mulher diante do sistema sexista e machonormativo; a construção de toda a
masculinidade pela população gay reproduz afeminofobia contra os próprios membros da sua
comunidade, evidente para aqueles que divergem da lógica do macho e todas as suas adjetivações
masculinizadas que destaquem a figura de superioridade dos machos alfa.
Essa dualidade e esse diálogo são as molas propulsoras de toda violência recorrente nos
aplicativos de relacionamento contra gays afeminados, pois a construção do que é feminino e a
construção do que é masculino ainda norteia as relações sociais, na seara do público, e sexuais, na seara
do privado, bem como, e principalmente, as relações virtuais aqui abordadas onde há, de certo modo,
maior liberdade de performar uma identidade com maior fluidez.

228
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As identidades masculinas são condicionadas a performarem uma masculinidade que preserva
características machistas, patriarcais e misóginas para reforçar traços, ditos, típicos dos homens, dos
machos alfacis heteronormativos e na manutenção da sua virilidade. Nesse sentido, as bichas afeminadas
quebram com a lógica de masculinidades hegemônicas que visam afastar características que remetam ao
feminino, bem como a feminilidade como pertencentes a homens, mais especificamente homens gays,
inseridos no meio social. Por possuírem traços afeminados esses homens gays são submetidos a situações
de violência e afeminofobia que marginalizam seus corpos e apagam suas identidades em detrimento de
um padrão estruturante dicotômico.
A afeminofobia denota um caráter de repulsa aos corpos afeminados num contexto social
hierárquico de dominação masculina com a reprodução de violências simbólicas que, de certo modo,
demarcam seus lugares de poder, o lugar do macho alfa. Assim, as violências são evidenciadas tanto no
âmbito do espaço público, quanto no privado e permeia a esfera dos desejos e dos fetiches, sendo
possível observá-la pelos membros da própria comunidade LGBTQI+ quando rejeitam parceiros que
tenham características que façam referência ao feminino, ainda mais flagrante nos aplicativos de
relacionamento gay, onde é comum encontrar a frase “não sou nem curto afeminados” para resguardar
sua masculinidade e procurar indivíduos que fujam aos trejeitos femininos.
Nesse sentido, a perspectiva afeminofóbica contribui para a manutenção de corpos e
identidades negadas e colocadas em situação de subalternidade por representarem uma afronta ao
sistema social que reforça estereótipos e não é capaz ou não quer alcançar noções identitárias diversas,
principalmente no que tange a produção de masculinidades de bichas afeminadas num contexto em que
os corpos são políticos e carregam um discurso de reconhecimento e de firmação de identidade para
além de uma lógica restritiva e excludente que é a do binarismo.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. A Dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand, 1999.
. Conferência do prêmio Goffman: a dominação masculina revisitada. In: LINS, Daniel (Org.).
A dominação masculina revisitada. Campinas (SP): [s.n.],1998. p.11-28.
BRAGA, Gibran Teixeira. “Não Sou nem Curto”: prazer e conflito no universo do homoerotismo
virtual. Dissertação de mestrado – UFRJ, 2013.
BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Tradução: Renato
Aguiar. — Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
LTC, 1988.
SEDGWICK, Eve Kosofsky. 1993. How to bring your kids up gay: The war on effeminate boys. In:
Tendencies. Durham: Duke University Press.
. A Epistemologia do Armário in Cad. Pagu [online]. 2007, n.28, p. 19-54.

229
O TRATAMENTO DADO AS MULHERES NO DECORRER DOS SÉCULOS

Jacinilda Pastana CAVALCANTE1


Ariete Pastana LEÃO2

INTRODUÇÃO
Considerando a importância que a mulher ocupa na sociedade brasileira, o presente artigo busca
discutir o tratamento dispensado a ela nos séculos passados até à atualidade. Este trabalho leva em
consideração as lutas, as formas de resistências e as conquistas alcançadas durante longos séculos da/na
sociedade.
Ao longo desse trabalho, vislumbrou-se analisar o tratamento feminino, de modo a possibilitar
à sociedade brasileira maiores subsídios para conhecer e assim compreender a importância vital da
mulher na sociedade, a fim de evitar diversas formas de preconceitos e violências, a exemplo do
feminicídio, das desigualdades existentes entre os gêneros e conceder à mulher o papel de protagonista
de sua própria história.
Desde os primórdios da sociedade, o papel da mulher é discutido devido aos mais diferentes
tratamentos que estas recebiam nas diversas civilizações. Podemos perceber a evolução desse papel
quando voltamos ao passado e vislumbramos como essa categoria era vista e tratada pela sociedade de
sua época até chegar à atualidade.
O presente artigo busca discutir o papel da mulher na sociedade no decorrer dos séculos,
levando em consideração os tratamentos dispensados a elas e que vem perdurando e/ou se modificando
no decorrer dos anos. Discute também as mudanças e conquistas que vem ocorrendo e fazendo com que
o papel feminino venha tomando proporções bem elevadas no seio da sociedade brasileira.

OBJETIVO GERAL
a) Analisar o tratamento dado para as mulheres no decorrer dos séculos.

Objetivos específicos
b) Conscientizar a sociedade da importância de assegurar os direitos e a valorização da
mulher;
c) Mostrar a importância do papel feminino no decorrer dos séculos;
d) Desconstruir o machismo enraizado na sociedade através da cultura patriarcal.

1
Universidade Federal do Pará/Campus Cametá. E-mail: nil26dacavalcante@gmail.com
2
Universidade Federal do Pará/Campus Cametá. E-mail: etyleao190693@gmail.com
230
METODOLOGIA
Para melhor compreensão desse trabalho buscou-se bibliografias que pudessem elucidar de
maneira clara e objetiva o assunto proposto. Para tanto, trabalhos de autores como Mary Del Priore,
Beatris Schorr Reckziegel, Luciano Zamberlan e Karolina Dias da Cunha entre outros que abordam essa
temática foram essenciais para a fundamentação teórica dessa pesquisa. Utilizou-se ainda informações de
jornais, revistas e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE a fim de apresentar
informações relevantes sobre o tratamento feminino nos últimos anos, visando mostrar as dificuldades e
desafios enfrentados pela mulher moderna, a mulher do/no século XXI.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
No livro “A história das mulheres no Brasil”, Mary Del Priore (2004) relata de forma bastante
precisa o tratamento que as mulheres recebiam desde o período colonial até aos nossos dias. Neste, a
autora destaca o papel das mulheres, sua fragilidade, sexualidade, submissão e lutas que elas enfrentaram
e ainda enfrentam diante de uma sociedade onde ainda é cultuado o machismo. Um trecho oportuno
encontra-se na página 69 do livro acima exposto, onde afirma que “a mulher não passava de um
mecanismo criado por Deus exclusivamente para servir à reprodução. [...], ela era só um instrumento
passivo do qual seu dono se servia” (PRIORE, 2004, p. 69) e, se esta não fosse sua função (a
reprodução), ou seja, “não ocorrendo a função reprodutora, o útero lançaria a mulher numa assustadora
cadeia de enfermidades, todas elas indício da ira divina ou um sinal do Demônio” (PRIORE, 2004, p.
80).
Através do trecho acima, se perceber a dureza com que as mulheres eram tratadas no decorrer
do século XV, tratamento este que seguiu para os séculos posteriores. Estas, segundo Priore (2004) não
gozavam de plena liberdade, mas eram tratadas apenas com finalidades sexuais e/ou reprodutivas, uma
vez que lhes era tirado o livre-arbítrio para tomar decisões.
Já no século XVIII, juntamente com crescimento populacional em torno das minas de Minas
Gerais, mulheres negras, mulatas e livres chegavam a esse lugar buscando melhores condições de vida que
o ouro lhes pudesse proporcionar. Porém, nem sempre elas conseguiam essa rápida riqueza através do
minério. Com isso, não tendo sucesso com a extração deste, viam-se “obrigadas” a entrar no mundo de
prostituição a fim de pagar os pesados impostos cobrados pelo governo mineiro, evitando assim seus
“confiscos, multas e prisões” (p. 132) se assim não o fizessem. A prostituição feminina era amplamente
disseminada no território colonial, já que neste os homens (principalmente mineradores solitários que
buscavam no ouro suas riquezas) as viam apenas como objeto de uso sexual e não como mulheres dignas
de se exercer matrimônio, pois eram consideradas como “contágio dos povos e estragos dos bons
costumes” (PRIORE, 2004, p. 130).
As mulheres que adentravam à prostituição recebiam nomes específicos nas vilas e comunidades
da colônia. Apelidos “como “Sopinha”, “Cachoeira”, “Rabada”, “Pisca”, “Comprimento”, “Foguete”,
“A mãe do mundo”, entre outros” (p. 130) eram comuns entre essas mulheres, os quais as distinguiam
das demais mulheres daquele local, apelidos estes que reforçava ainda mais a “desclassificação social de
mulheres negras, mulatas, carijós empurradas para aquela prática” (p. 130). O autor afirma que a
prostituição nessa época era uma “expressão tipicamente feminina da pobreza e da miséria social” (p.
130) em que se encontravam muitas delas naqueles locais tanto de Minas Gerais como em outros
lugares do Brasil colonial (PRIORE, 2004, p. 130-132).

231
No século XVIII, as mulheres exerciam um papel de extrema submissão a seus cônjuges diante
das leis eclesiásticas. As violências sofridas por elas não lhes era defendida pela Igreja, uma vez que a
submissão ao marido lhes geraria proteção e cuidado. Dessa forma, por muitas décadas, seus maridos as
espancavam dentro de suas casas e, se estas contassem as agressões sofridas ainda eram reprimidas a
ficarem caladas para não causar escândalos ao marido e nem tampouco à Igreja de Cristo (PRIORE,
2004, p. 145):

Se ouvirmos com atenção o discurso da Igreja, não será notada diferenciação


entre afeto e violência. É possível perceber que os visitadores episcopais que
julgavam os comportamentos da população não distinguiam qualitativamente
o parceiro que espancava sua mulher daquele que lhe dedicava um afeto
extremado. [...]. Na acusação dirigida ao tenente Manoel de Marins, em
Itaverava, foi afirmado seu amancebamento com a preta forra Josefa, solteira,
porque, entre outros agravantes, “ele lhe demandava zelos e por cujo respeito
algumas vezes lhe dá algumas pancadas”.

Percebe-se o tratamento dado a mulher durante o século XVIII, onde esta era vista ainda como
objeto de uso exclusivamente masculino, que se necessário fosse, aos olhos deste podia além de exercer o
papel de “dona do lar”, também podia ser espancada por este como forma de correção e/ou punição
por algum ato não aceito por ele. Para a Igreja, essas correções e/ou punições eram vistas como forma
de zelo, de afeição do marido para com a esposa, uma vez que espancamento e zelo eram tidos como
sinônimos.
Em algumas civilizações, a mulher casada, durante o século XIX, eram vistas como a esposa
submissa a seu marido, devendo mostrar para a sociedade da época, que era uma boa esposa, uma serva,
obediente a seu senhor. As moças solteiras deveriam ser pessoas bem “preparadas”, para ocupar o cargo
de mãe de família. As que ousavam romper com essa visão teriam que enfrentar as mais variadas formas
de preconceito se quisessem conquistar sua liberdade pessoal (CUNHA, 2013).
Até pouco tempos atrás, era difícil ver mulheres ocupando cargos importantes dentro de uma
sociedade, pois ela era vista apenas como a procriadora, a dona de casa, a boa esposa, e apenas isso. Em
muitos casos, ela estudava apenas para aprender a ler, escrever e aprender as artes que uma boa dona de
casa deve saber, pois o estudo, para muitos, era visto como uma forma de libertação, e por isso em
muitos casos, era-lhe tachado, cultura esta que atravessou séculos (CUNHA, 2013).
Durante o século XX e até mesmo no século atual, ainda existem países que tratam as mulheres
de forma segregada da sociedade da qual “pertencem”. O Líbano, é um exemplo disso. Segundo as leis
muçulmanas, as mulheres são propriedade dos homens. Eles, tendo poder sobre elas, as desrespeitam. A
mesmas são vistas como pessoas de uma classe inferior à dos homens, ficando à mercê de todo tipo de
abuso como; mutilações, maus tratos, estupros dentro de casa, sem ter a quem as defenda, e mesmo
quando elas querem o divórcio, alegando maus tratos, ainda assim, lhes é negado pelas autoridades
(Jornal O GLOBO, 2014).
Contudo, ainda que através de muitas lutas e reivindicações, o papel feminino vem se
destacando em vários países do mundo. De elemento secundário e submisso, a mulher passou a exercer
papéis de grande importância para a sociedade, sendo protagonista em trabalhos antes ocupados
somente por homens, fazendo em muitas situações que esse papel se inverta. Já, é possível ver mulheres
assumindo cargos públicos e privados antes dominados somente pela classe masculina, como tribunais,
senados, futebol, escolas, militarismo, engenharia, e até mesmo a presidência da república (como no caso

232
do Brasil, onde foi eleita através de eleições direta, a senhora Dilma Rousseff, de 2010 a 2016) sempre
com muita capacidade e eficiência. Sua sensibilidade em fazer seu trabalho acaba por torná-las
adaptáveis aos mesmos. Esse destaque no mercado mundial revela a força feminina, a qual antes era
subjugada por parte da sociedade, que as viam como uma classe de pessoas frágeis e que necessitavam da
“proteção” masculina (CUNHA, 2013).
As mulheres também contribuem de forma expressiva para a expansão do mercado de trabalho,
pois elas são grandes consumidoras de produtos como; cosméticos, roupas, bolsas, lingerie, sapatos,
joias, entre outros produtos que fazem do mundo feminino um consumidor em massa, cada vez mais
expansivo aos olhos dos vendedores, e com isso mais cobiçado aos olhos das mulheres. O mercado
investe cada vez mais em produtos atrativos ao universo feminino, buscando satisfazer as clientes, que
são cada vez mais exigentes em relação aos produtos oferecidos no mercado (RECKZIEGEL;
ZAMBERLAN, 2017).
Porém, embora as mulheres venham conquistando seus espaços na sociedade, suas lutas ainda
estão longe de terminar, pois estas continuam a sofrer com diversos preconceitos, sendo um desses
referente a diferença salarial entre os sexos, onde, por vezes, ainda que ocupando os mesmos cargos, os
salários das mulheres são bem inferiores que os dos homens (CUNHA, 2013).
Além das desigualdades no mercado de trabalho, em pleno século XXI, muitas mulheres lidam
também com rotinas pesadas de violência e preconceito vindas da sociedade e até mesmo do próprio
ambiente familiar, sendo esse fato uma crescente em inúmeros lares pelo mundo. Grande parte de
feminicídio e agressões contra as mulheres acontecem dentro de suas próprias casas (IBGE, 2021).
Diante de tanta violência e preconceito contra o sexo feminino, começaram a surgir movimentos
em torno dos direitos das mulheres, lutando por liberdade de expressão, direitos a trabalhos dignos,
igualdade salarial, proteção em seu ambiente familiar e seu reconhecimento nos mais diversos âmbitos da
sociedade. Esses movimentos começaram a tomar maiores proporções na sociedade, movimentos estes
que não lutam contra os homens, mas sim pela igualdade entre homens e mulheres, para acabarem com
o machismo. Movimentos estes que lutam pela igualdade, pela liberdade, para que as mulheres sejam
livres a exercerem seu papel de mulher, não somente a de dona de casa, esposa e mãe de filhos, mas da
mulher cidadã, que têm direitos e deveres iguais, sem com isso sofrerem discriminação.
No Brasil, as mulheres já conquistaram muitos benefícios que as amparam, como a Lei Maria da
Penha e as Delegacias da Mulher, por exemplo. Isso mostra que elas não estão sozinhas nas lutas por
seus direitos. Esses meios foram criados com o intuito de impedir ou diminuir os mais variados tipos de
violência que elas sofrem no decorrer de suas vidas. Contudo, no Brasil, o índice de violência contra as
mulheres ainda é preocupante, tanto no meio domiciliar, quanto nas ruas, onde muitas vezes sofrem de
agressão, abusos e outras formas de violências, além de torturas psicológicas (IBGE, 2021).
A cultura patriarcal, ainda tão presente em tantos países pelo mundo, tem levado muitas
mulheres a “uma corrida pela perfeição”, fazendo que estas tornem-se “reféns” de um padrão ideal de
beleza. Nessa corrida, estas se submetem aos mais variados procedimentos estéticos. Esse “culto ao
corpo”, de certa maneira, “tira”, de certa forma a liberdade, a qual por muito tempo lutaram que era de
se sentir livre, pois acabam se privando de si próprias por causa de um padrão de beleza ou postura
ditada por outros. Muitas, em busca desse ideal, acabam expondo-se a doenças mortais ou que deixam
sequelas em suas vidas, ocasionadas por procedimentos estéticos ilegais (RECKZIEGEL;
ZAMBERLAN, 2017).
Em síntese, embora as mulheres já tenham conquistado muitos espaços na sociedade, mostrando
cada vez mais o seu valor, percebe-se que ainda há muito que conquistar, existe muitos desafios a serem
233
enfrentados e superados. O primeiro seria lutar ainda mais contra o que restou da cultura machista, da
cultura patriarcal ainda tão enraizada na sociedade, melhorar o acesso aos cargos públicos, a melhores
salários, ter total direito sobre seu próprio corpo, sendo individualmente livre, ser protegida e amparada
cada vez mais pelo governo de seu país e dentro de seu lar. Quanto mais cedo essas resistências forem
quebradas, mais liberdade será gerada à todas as mulheres do planeta e isso gerará uma sociedade
mundialmente saudável, igualitária e humanizada.
Grandes são os desafios, porém não impossíveis para aquelas que nunca desistiram de suas lutas
e ideais, e isso é dever de toda a sociedade, tanto mulheres, quanto homens, sem que haja
questionamento ou resistência. A mulher atual, não deve ser vista como uma simples mulher, mas sim
como uma grande lutadora, evoluída, decidida, batalhadora, a que vai em busca de seus ideais e espaço,
por isso ela luta todos os dias contra os limites impostos pela sociedade em que ela vive, para poder
superá-los através de sua liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O papel feminino há tempo foi reprimido pelas sociedades ao redor do mundo. Essa cultura
atravessou gerações e chegou à atualidade, embora venha sendo amenizada através de Movimentos
Sociais que lutam em favor dos direitos das mulheres. Porém, ainda que esse tratamento tenha
melhorado, a desigualdade entre os sexos na sociedade contemporânea ainda está longe de terminar.
Através dessa pesquisa, concluiu-se ainda que o feminicídio – um dos mais cruéis atos de
violência contra mulheres - cresceu acentuadamente nos últimos anos, uma vez que as campanhas pela
quebra de silêncio da vítima têm encorajado inúmeras mulheres a denunciarem as agressões sofridas por
sua condição de gênero e ainda os Movimentos Sociais em torno dos direitos da mulher vem lutando
com mais ímpeto em busca de maiores e melhores formas de combate à violência.
Contudo grandes são os desafios, porém não impossíveis para aquelas que nunca desistiram da
luta por seus ideais. Portanto, a mulher atual, não deve ser vista como uma simples mulher, que deve se
ater aos serviços domésticos, mas sim como uma lutadora, evoluída, decidida, batalhadora e
empoderada, que vai em busca de seu espaço na sociedade, por isso ela luta diariamente contra os limites
que a sociedade a tenta impor, por vezes, ultrapassando-os.
Assim, embora as mulheres já tenham muito conquistado na sociedade, tornando-se cada vez
mais autônomas, percebe-se que há muito que o conquistar, que existem muitos desafios a serem
enfrentados e superados, como por exemplo, a continuação da luta contra o que restou da cultura
machista, o acesso aos cargos públicos, a melhores salários,ao total direito sobre seu próprio corpo, pois,
e somente dessa forma estas serão individualmente livre, protegida e amparada na sociedade. E, quanto
mais cedo essas resistências forem quebradas, mais liberdade e segurança serão garantida à mulher,
gerando assim uma sociedade igualitária e mais humanizada.
No decorrer dos séculos, mais precisamente, a partir do século XVI, no Brasil colonial, a
mulher vem recebendo diferentes tratamentos em todos os âmbitos da sociedade, tratamentos estes onde
a maioria foram agressivos vindos em grande parte de dentro do lar (pais e maridos), fato este que se
deveu a cultura do patriarcado, onde acreditou-se e ainda se acredita na submissão e obediência total da
mulher ao homem. Portanto, o papel feminino há tempo foi reprimido e essa cultura atravessou
gerações e chegou com ímpeto à atualidade, embora essa cultura venha sendo, aos poucos quebrada
através dos Movimentos Sociais que lutam em favor dos direitos femininos.

234
Contudo, através desse trabalho pode-se perceber que, mesmo que a mulher venha recebendo
um melhor tratamento pela sociedade atual, a desigualdade entre os sexos ainda está longe de terminar,
uma vez que em muitos setores essas diferenças são grandes, principalmente quando se trata de
igualdade nos setores trabalhistas e nos crescentes casos de feminicídio que assolam o país. Percebeu-se
ainda que o feminicídio cresceu acentuadamente nos últimos anos, fato este que levou uma maior
mobilização dos Movimentos Sociais em favor dos direitos da mulher, que embora já tenham alcançado
importantes conquistas continuam a buscar e consolidar mais e maiores direitos a estas na sociedade.

REFERÊNCIA
CUNHA, Karolina Dias da.As mulheres brasileiras no século XIX. Anais do Encontro Nacional do
GT-GÊNERO/ANPUH. Vitória, 2013.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA-IBGE. Parcela de homicídio de
mulheres dentro de casa é mais que o dobro do que a de homens. Disponível em:
<http://valor.globo.com/google/amp/brasil/noticia/2o21/03/04/ibge-parcela-de-homicdios-de-
mulheres-dentro-de-casa-mais-que-o-dobro-do-que-a-de-
homens.ghtml#aoh=16189685085805&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&amp_tf=Fon
te%3A%20%251%24s>. Acesso em 20 de abril de 2021.
JORNAL O GLOBO. As mulheres são vistas como propriedades dos homens no Líbano, 2014.
Disponível em: <http://novaescola.org.br/conteudo/16047/as-principais-conquistas-das-mulheres-
na-historia>. Acesso em 20 de abril de 2021.
REVISTA NOVA ESCOLA. As principais conquistas das mulheres na história. Disponível em:
<http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/06/mulheres-sao-vista-como-propriedades-dos-
homens-no-libano.html>. Acesso em 20 de abril de 2021.
PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. Contexto. São Paulo, 2004.
RECKZIEGEL Beatris SCHORR; Luciano ZAMBERLAN. Diagnostico do mercado de cosméticos:
uma análise do comportamento das consumidoras por meio da venda direta. Rio Grande do Sul, 2017

235
SENTIDOS BIBLIOGRÁFICOS:A PRODUÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA SOBRE
VIOLÊNCIA POR PARCEIROS ÍNTIMOS GAYS

José Maria Nascimento AMARAL NETO1


Eric Campos ALVARENGA2

RESUMO:
Este trabalho tem como objetivo realizar um levantamento de referências sobre a violência entre
parceiros íntimos homossexuais masculinos no Brasil. O levantamento foi realizado em três bases de
dados online: Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, Scielo e BVSalud.org. Utilizou-se os termos
“violência por parceiro íntimo”, “gay”, “homossexual”, violência doméstica”, “homens que fazem sexo
com homens”, “partner violence”, “domestic violence” e “men sex men”. Ao final, foram identificadas 3
publicações que contemplavam os critérios da pesquisa. Como resultados, verifica-se que há um
fortalecimento de discursos que promovem a compreensão da violência como um problema de saúde
pública. Além disso, os discursos preconceituosos ou equivocados ainda geram impactos na qualidade
dos serviços ofertados à população LGBTQI+. É possível perceber que ainda há muito a ser
consolidado tanto na esfera teórica, no que tange à adoção da perspectiva de gênero e
interseccionalidades para fundamentar as discussões e análises desse problema, quanto na prática
sociopolítica da questão em termos de acolhimento, enfretamento e proteção da população LGBTQI+.
INTRODUÇÃO
Violência por parceiro íntimo é um termo criado com o intuito de tipificar e dar conta das
violências ocorridas entre pessoas que se encontram em algum tipo de relação afetiva ou sexual,
independente de conjugalidade, por matrimônio ou união estável, conviventes ou não sob o mesmo teto,
em relação assumida ou não publicamente, casuais ou não. Sua criação é consequência do fortalecimento
de perspectivas teóricas que compreendem a violência ocorrida entre parceiros íntimos, como violência
de gênero consequente de práticas sociais patriarcais, sexistas e misóginas (CEZARIO, 2015; MEZA-
DE-LUNA et al., 2016; MOREIRA, 2017).
É comum a tentativa de unificar todas as violências ocorridas em relações afetivas à alcunha de
violência doméstica, entretanto se faz necessário sanarmos esse equívoco na tentativa de evitar a
invisibilização dos casos de violência entre casais dissidentes, principalmente em uma sociedade em que
temos experienciado constantes ataques e manifestações LGBTfóbicas. Consequência de uma
organização social cis heteronormativa, tais ataques e manifestações produzem o cenário marginalizados
e violador em que vivemos, alimentando concepções errôneas sobre nossas relações, construindo
obstáculos para o acesso a políticas públicas e desconsiderando a importância da inclusão nas pautas
legislativas para a proposição e efetivação de novas (SOUZA e HONORATO, 2020).
É nesse caminho que temos produzido esforços para construir uma abordagem teórica com base
em uma perspectiva feminista de compreensão dessas violências que traga consigo as contribuições dos
estudos das masculinidades e das relações de poder existentes nas dinâmicas baseadas em gênero e suas
interseccionalidades (raça, cor, classe, etnia etc.) (THÜRLER e MEDRADO, 2020). Pensar violência

PPGP/UFPA. E-mail: jn.amaral.psi2@gmail.com


1

FAPSI/UFPA. E-mail: ericsemk@gmail.com


2

236
por parceiro íntimo por si só já nos convida ao abandono da concepção hegemônica de mulher vítima e
homem agressor, assumindo a complexidade que o tema exige e propondo novas frentes de trabalho.
OBJETIVOS
a) Realizar um levantamento de referências sobre a violência entre parceiros íntimos
homossexuais masculinos no Brasil.
b) Identificar os diferentes discursos presentes nas publicações encontradas sobre o tema
em questão

MÉTODO
Trata-se de um estudo teórico caracterizado pela revisão realizada em três bases de dados
virtuais sobre o tema da violência entre parceiros íntimos homossexuais masculinos no Brasil, etapa
inicial da construção do projeto de pesquisa de mestrado do primeiro autor que objetiva analisar os
discursos de homens gays da região metropolitana de Belém sobre suas possíveis experiências de
violência por parceiro íntimo.
Foram realizadas pesquisas em três bases de dados online, o Catálogo de Teses e Dissertações
da CAPES, a Scielo e no BVSalud.org (acessa várias bases de dados como Medline, LILACS, IBECS e
muitas outras) utilizando termos eleitos mediante pesquisa em dois vocabulários de descritores, o
Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e o Medical Subject Headings (MeSH), sendo os termos
selecionados: “violência por parceiro íntimo”, “gay”, “homossexual”, “violência doméstica”, “homens
que fazem sexo com homens”, “partner violence”, “domestic violence” e “men sex men” alternados
entre si usando operadores lógicos boleanos “AND”.
Os critérios de inclusão foram: a disponibilidade do texto em língua portuguesa, pesquisas
realizadas no Brasil, o foco central da produção ser a população LGBTQI+ e a disponibilidade de
acesso online. Enquanto os critérios de exclusão foram: resultados em formato de livros, capítulos de
livro e resumos.
À medida que as buscas eram feitas, procedi à leitura do título e do resumo, visando dar
agilidade ao processo de seleção dos textos. Foram identificados apenas três textos dentro dos critérios
de inclusão, publicados em 2015, 2017 e 2020, sendo uma revisão bibliográfica (CEZARIO et. al.,
2015), uma dissertação de mestrado (MOREIRA, 2017) e um perfil das notificações de violência junto
ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) (PINTO, 2020), respectivamente. É
importante ressaltar que os critérios de inclusão e exclusão contribuíram bastante para refinar os
resultados, considerando que muitas publicações traziam o debate da VPI entre gays como dado
paralelo à discussão da VPI hétero. Esse é um dado importante, pois evidencia a escassez dos estudos e
possivelmente o pouco interesse pelo tema.
A leitura dos textos se deu de forma sistemática a priorizar os sentidos que emergiam a partir
do diálogo leitor-autor, considerando as intencionalidades percebidas na escrita, os questionamentos
proporcionados a cada parágrafo, as pistas dos repertórios interpretativos do autor sobre o assunto em
questão e dos sentidos que puderam ser produzidos a partir dos processos individuais de cada pesquisa.
Essa sistematização se pauta nas práticas discursivas enquanto abordagem teórico-metodológica
com base no construcionismo social e no pós-estruturalismo (SPINK, 2013). Ao escolher esta
metodologia propõe-se desconstruir verdades universais e buscar os sentidos produzidos a partir dos

237
repertórios interpretativos que mediam relações dialógicas cotidianas através dos diferentes contextos e
temporalidades.
A adoção dessa abordagem teórica possibilita [...] estudos que privilegiam investigações nos
vários domínios de saber. As produções discursivas desses domínios, entre eles os campos científicos,
contribuem para a formação e a difusão de repertórios interpretativos variados que continuamente
reconstroem conteúdos e geram novos sentidos, inclusive sobre si mesmos [...] (MIRIM, 2013, p.127).
A longo da leitura de cada texto fui tomando nota do que emergia enquanto sentido em um
editor de texto em disposição de tabela em uma coluna que denominei “primeiras impressões”, visando
organizar o que era encontrado e a realização de nova leitura posteriormente. Após a primeira leitura
criei uma coluna para cada texto onde marcava com um “x” a célula que alinhava o texto com um
sentido já encontrado em leitura anterior, evitando repetições e criando linhas novas para os diferentes
sentidos encontrados a cada novo texto. Ao todo foram criadas 35 linhas contendo frases que emergiam
ao longo das leituras, oferecendo uma visão geral acerca das diferenças e semelhanças entre os sentidos
produzidos por cada texto.
Posteriormente fiz a releitura dos sentidos acessados na etapa anterior, com o intuito de
apreender os discursos produzidos em cada texto, por um ou mais dos sentidos encontrados
anteriormente e servindo como base fundante das realidades ali expressas, refletindo práticas cotidianas.
“[...] produção discursiva da literatura científica, recuperadas a partir dos levantamentos bibliográficos,
são concebidas como discursos, ou seja, discursos peculiares a um estrato específico da sociedade (uma
profissão, um grupo etário etc.), num determinado sistema, em uma determinada época (Bakhtin,
1929/1995)” (MIRIM, 2013, p 129).

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Oito frases ou textos emergiram da análise das referências. Estas foram dispostas em uma nova
tabela de coluna única que denominei “reverberações” (Tabela 1), que expressam duas faces de uma
mesma sociedade, uma representada pelos esforços em tornar públicas as mazelas da população
LGBTQI+ e propor meios de enfrentamento e intervenção e uma que traduz em práticas sociais
discriminatórias e negligentes discursos de ódio e destrutivos contra existências dissidentes.

Quadro 1 - Frases e textos produzidos a partir dos sentidos encontrados na primeira etapa

Reverberações

Promovem a concepção multifatorial da violência e de suas consequências, de modo que amplie a


percepção não só ao âmbito biopsicossocial no sentido de saúde e doença, mas estrutural, econômico
e geopolítico.

Expõem a importância da diferenciação de violência doméstica e violência por parceiro íntimo como
parte do fortalecimento teórico acerca do assunto, contribuindo para intervenções que considerem as
peculiaridades da população LGBTQI+.

Instigam inquietações e a busca por aprofundamentos em resposta à escassez de iniciativas com foco
na problemática da violência por parceiro íntimo que ocorre entre a população LGBTQI+

238
Proporcionam outros olhares sobre as dinâmicas da violência por parceiro íntimo e dos impactos
sobre as produções e publicações sobre o tema

Fazem pensar que por mais que haja uma preocupação em ressaltar os sentidos que a própria
população LGBTQI+ atribui às suas experiências, as metodologias em sua maioria revelam uma
concentração numa perspectiva quantitativa, diagnóstica e explicativa do problema, visto que boa
parte das pesquisas trazem o tema como paralelo a outros interesses epidemiológicos

Evidenciam as consequências da manutenção de práticas violentas e segregadoras da sociedade,


deixando explicito o desinteresse na atenção e proteção da população LGBTQI+

Enfatizam a importância das contribuições feministas no que tange aos estudos sobre masculinidades
e da perspectiva de gênero e interseccionalidades para uma compreensão mais coerente das dinâmicas
da violência por parceiro íntimo considerando todos os fatores relacionados ao problema

Expõem que ainda há muito a ser construído para que se estruturem práticas alinhadas com a
promoção da dignidade e do reconhecimento da população LGBTQI+ em sua existência

Fonte:Autores

As três publicações se encaixam, com um sentido ou mais da primeira tabela, nos textos acima,
sendo possível perceber os discursos que ainda prevalecem entre a sociedade, científica e comum, e os
caminhos teóricos e práticos que têm sido percorridos para a construção de novos discursos em
confronto com práticas mantenedoras de concepções hegemônicas e organizações sociais cis
heteronormativas.
Entender a violência por uma perspectiva multifatorial é imprescindível, considerando que as
pessoas envolvidas no ciclo violento são atravessadas por vários níveis de influência, individual, social,
cultural e político, que acabam por produzir suscetibilidades ou resistências à experiência de situações
violentas (MOREIRA, 2017). Contudo, no caso das populações que possuem um ou mais marcadores
sociais de inferiorização ou estigmatizantes, a probabilidade de experienciar violências aumenta, tanto na
posição de vítima quanto de autor de violência.
A respeito das necessidades da população LGBTQI+ há muito a ser feito, desde a assimilação e
fomento de discursos mais coerentes, humanizados e dignificantes, até a mudança das bases educacionais
em nosso país. O problema da homofobia, do machismo, da misoginia é estrutural, está na base
formativa do ser, desde quando nascemos e somos interpelados por códigos cis heteronormativos, pelas
cores da roupa, pelos símbolos colocados nas paredes do quarto e pelas expectativas de decisões e
comportamentos baseadas no sexo (THÜRLER e MEDRADO, 2020).
É irrefutável que tivemos mudanças nas relações de gênero mediadas pelo movimento feminista
e pelo avanço nos estudos sobre masculinidades, que promovem desconstruções contínuas na
organização patriarcal e machista que dita historicamente os processos de subjetivação, proporcionando
novos discursos, e por consequência, novas realidades. Entretanto, no âmbito das violências por parceiro
íntimo, há que se promover mais inciativas de visibilização e investigação deste problema que produzam
impactos reais na sociedade, de modo a informar e desmistificar mitos dentro da própria população
LGBTQI+, que fortalecem obstáculos para a denúncia, notificação e atendimento das vítimas de
violência (MOREIRA, 2017; SOUZA e HONORATO, 2020; THÜRLER e MEDRADO, 2020).
239
Os textos selecionados para esse trabalho escancaram as dificuldades da nossa população
quando expõem a falta de iniciativa ou de interesse de profissionais nos dispositivos de saúde em
preencher corretamente a lacuna sobre orientação sexual no instrumento de notificação de agravos, ou
quando uma pessoa LGBTQI+ afirma que só buscaria os órgãos de proteção e segurança pública em
caso de risco de morte, justificado pela vergonha de ser humilhado ou violentado institucionalmente, ou
quando um adolescente LGBTQI+ prefere se apagar ou silenciar publicamente para não ser alvo de
maus-tratos e violências dentro da sala de aula tendo ainda a percepção de que nada será feito pela
direção ou equipe pedagógica da instituição ou que o ambiente familiar é um dos principais locais de
ocorrência de violências quando deveria ser uma rede de apoio e suporte (MOREIRA, 2017; PINTO
et al., 2020).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível concluir que há um fortalecimento de discursos que promovem a compreensão da
violência como um problema de saúde pública que, mais ainda no caso de corpos marginalizados como
da população LGBTQI+, promove altos níveis de comprometimento em todos os contextos da vida.
Fica claro que os discursos preconceituosos ou equivocados ainda geram impactos na qualidade
dos serviços ofertados à população LGBTQI+, causando em vários momentos re-vitimizações,
resistências (tanto nos profissionais quanto na população), novas violências ou exclusões e
subnotificações. No âmbito teórico, ainda é necessário avanços no que tange à adoção das novas
perspectivas teóricas, podendo encontrar conflitos entre os discursos presentes em um mesmo texto,
expresso por palavras usadas em um contexto equivocado, intencionalidades colocadas no texto ou
atribuindo significados equivocados.
Como já dito ao longo do texto e confirmado nas publicações, há uma escassez de produções
sobre o tema da violência por parceiro íntimo na população LGBTQI+ no Brasil, indo de encontro
com os altos índices de publicações em outros países, como nos EUA por exemplo, que investigam e
publicam sobre a temática desde o final da década de 80 (OSÓRIO; SANI; SOEIRO, 2020). Nesse
sentido a escolha do método deste trabalho se faz válida ao passo que nos permite acessar discursos que
expõem as resistências de uma sociedade que transita entre realidades conflitantes entre si, uma vivida
por toda uma população que não se encaixa nas normas e resiste a cada nova violência e outra que luta
incessantemente pela conservação e manutenção de valores e códigos sociais que não contemplam a
pluralidade das nossas existências.
Por fim, é necessário e imperativo, por uma sociedade em que se possa existir sem medo de ser
quem se é, a produção de investigações, intervenções e ações políticas permanentes de garantia dos
direitos da população LGBTQI+ e que estas se façam exequíveis por todos, considerando, por exemplo,
que ainda estamos longe de alcançar total execução e garantia da Política Nacional de Saúde Integral de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, instituída há 9 anos pelo Ministério da Saúde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CEZARIO, Ana Cláudia Ferreira; et.al. Violência entre parceiros íntimos: uma comparação dos índices
em relacionamentos hetero e homossexuais. Temas em Psicologia, v. 23, n. 3, p. 565-575, 2015.
Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/5137/513751492004.pdf Acessado em: 17ago. 2020.

240
DE SOUZA, Daniel Cerdeira; HONORATO, Eduardo Jorge Sant'Ana. Violência nas relações
homossexuais. Revista Espaço Acadêmico, v. 20, n. 225, p. 230-246, 2020. Disponível em:
https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-AW9G36 Acessado em: 11mar. 2021
MEZA-DE-LUNA, Maria Elena; et. all. Stereotypes of intimate partner violence: Do
sex and sexual orientation matter? Psicologia: teoria e pesquisa, v. 32, n. 3, 2016. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/0102-3772e323210Acessado em: 17ago. 2020.
MIRIM, Lia Yara Lima. Garimpando sentidos em bases de dados. In: SPINK, Mary Jane. Práticas
discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. Ed. Virtual.
São Paulo: Editora Cortez, 2013. p. 127-155
MOREIRA, Alexandro Martins. A violência por parceiro íntimo (VPI) em casais homoafetivos
masculinos: visibilizando o fenômeno. 105 f. Dissertação. (Mestrado Profissional em Promoção da
Saúde e Prevenção da Violência) - Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017. Disponível em:
https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-AW9G36 Acessado em: 17ago. 2020.
PINTO, Isabella Vitral et al. Perfil das notificações de violências em lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais registradas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Brasil, 2015 a 2017.
Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 23, p. e200006. SUPL. 1, 2020. Disponível em:
https://www.scielosp.org/article/rbepid/2020.v23suppl1/e200006.SUPL.1/ Acessado em: 26abr.
2021.
OSÓRIO, Lúcia; SANI, Ana; SOEIRO, Cristina. Violência na intimidade nos relacionamentos
homossexuais gays e lésbicos. Psicologia & Sociedade, v. 32, 2020. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-71822020000100209&script=sci_arttext&tlng=pt.
Acessado em: 17jul. 2020
SPINK, Mary Jane. Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e
metodológicas. Ed. Virtual. São Paulo: Editora Cortez, 2013.
THÜRLER, Djalma; MEDRADO, Benedito. Masculinidades contemporâneas em disputa. Revista
Periódicus, v. 1, n. 13, p. 01-08, 2020. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/38036. Acessado em: 19fev.
2021

241
MEMÓRIAS E VIVÊNCIAS DE PESSOAS LGBTQI+ NO BRASIL

Dantiely Martins FERREIRA1

INTRODUÇÃO
As memórias de pessoas LGBTQI+ sempre foram marcadas por violências de múltiplos
vetores, incluindo, por exemplo, o totalitarismo de Estado e as relações de gênero e sexualidade, que são,
ainda, nos dias atuais, pouco conhecidas e têm tímida visibilidade até mesmo nos meios públicos. O
atual governo tem, em sua estrutura, um quadro significativo de militares em cargos estratégicos que
estão constantemente atacando as instituições democráticas e promovendo o seu desmonte. Isto posto, a
população LGBTQI+, que, tradicionalmente, tem sido alvo de violências e, até mesmo, de extermínios,
teme que novamente tenha seus direitos violados e sua existência aniquilada como na ditadura cívico-
militar.
Ao tratar-se de memórias e vivências, pode-se falar dos meios públicos de ocupação do sujeito,
ocupações essas que, apesar de ser um direito, muitas vezes a transição de alguns corpos, que incluem a
diversidade, são impossibilitadas de realizá-las dentro das cidades como um todo. É possível definir a
cidade como uma maneira de escrita, pois, além dos documentos e inventários, a arquitetura também é
uma maneira de fixar a história na memória dos indivíduos a partir do momento em que estes passam a
habitar o espaço. Neste sentido, pode-se afirmar que a cidade guarda em si uma multiplicidade de
histórias – ou deveria guardar – visto que os indivíduos que a habitam são parte de uma sociedade.
Pode-se dizer que a “diversidade” contemplada pelas cidades é limitada, pois grupos sociais sofrem um
apagamento de suas memórias, dado que as cidades em geral são criadas a partir de uma ideia masculina
e cis heteronormativa.
Não é preciso ir longe no tempo para nos depararmos com o apagamento social de corpos e
vidas LGBTQI+, fato este que tem sido uma constante nos dias atuais, haja vista os dispositivos de
violência ainda acionados contra a integridade física, psíquica e social dessas pessoas, seja por meio de
projetos de lei que censuram o debate sobre as questões de gênero, incluindo as violências a estas
associadas, seja por meio de comportamentos e práticas discriminatórias que violam os direitos de essas
pessoas existirem fora dos padrões heteronormativos, tornando-as alvos de injúrias e violências de toda
ordem. Na atual conjuntura política brasileira, é comum haver discussões conservadoras e moralistas
voltadas aos assuntos de gênero e sexualidade promovidas por movimentos e organizações que
cunharam a terminologia “ideologia de gênero” para se referir a um conjunto de temas tratados como
impróprios, proibidos e que atacam a moral da “família tradicional brasileira”, a exemplo disso, há
vários planos de Leis em tramitação no ano de 2021. Com isso, o desaparecimento social de vidas
LGBTQI+ também se faz presente no cenário atual, pois, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), o
Brasil é “o país com a maior quantidade de registros de crimes letais contra LGBTQI+ do mundo”,
seguido pelo México e Estados Unidos. Assim, a partir dessas inquietações, essa pesquisa está sendo
realizada.

OBJETIVOS

Graduanda do curso de psicologia, pela Universidade Federal de Rondonópolis. E-mail: danntymartins@gmail.com


1

242
O objetivo desta pesquisa é:
a) Estabelecer um recorte a respeito da vivência de pessoas LGBTQI+ apontando a
importância da memória atrelada à cidade como aspecto fundamental de
reconhecimento da subjetividade dos indivíduos e como o espaço pode ser uma
ferramenta de silenciamento destes, considerando a interseccionalidade dos sujeitos
atravessados por gênero, raça e classe social e a importância do fortalecimento e
expansão de novos saberes na educação popular neste contexto.
Sendo assim, a articulação entre a pouca visibilidade das memórias de pessoas LGBTQI+,
dentre aquelas que se tornaram públicas, e as violências de gênero acionadas contra essas pessoas por
diferentes dispositivos sociais são um viés importante desta pesquisa. A partir de dados do presente, é
possível interrogar o passado, produzindo perguntas para as memórias do terror, na busca de
problematizar também o que – e como – dessas memórias ainda repercute no presente, incluindo o
tempo de pandemia da COVID-19.

METODOLOGIA
Para isso, está sendo realizada uma revisão bibliográfica/histórica acerca do silenciamento
destes grupos sociais e seu reflexo na cidade, considerando esta como, além de palco das relações
interpessoais, sociais e políticas, um instrumento de manutenção da memória dos indivíduos. Além
disso, a experimentação relacionada à vivência e impressões registradas no dia a dia da autora que
compilam vivências e memórias. Visto que a memória não é o reservatório ou o inventário de
acontecimentos e bens culturais, mas um exercício crítico e político de interpelação mútua do passado e
do presente (GAGNEBIN, 2014). Como diz Benjamin, a memória é movida e tocada pelos apelos e
inquietações do presente: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como de fato
foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.”
(BENJAMIN, 1985, p. 224, grifo do autor).

RESULTADOS (PARCIAIS)
Atualmente, no Brasil, temos uma supremacia branca, autoritarista, racista, machista e
LGBTfóbica no controle institucional que resulta em uma representatividade social reforçadora de
atitudes e estereótipos que condizem para a dominação violenta daqueles que não estão inseridos na
classe de poder, estando vulneráveis e passando por esse processo tão bem estruturado. O silenciamento
desses corpos é uma prática recorrente das estruturas opressoras que operam a longo prazo. A
manutenção deste poder pode ser vista no domínio patriarcal, que é explicitado ao analisarmos o local
de ocupação de homens e mulheres nas cidades. É possível perceber que há uma designação do espaço
privado como sendo o espaço natural da mulher, onde esta é a responsável por exercer as atividades
domésticas, cuidar dos filhos e da família. Em contrapartida, o espaço público é pensado para o
universo masculino cis heteronormativo, fazendo com que mulheres se sintam inseguras e
impossibilitadas de saírem sozinhas, sendo respeitadas apenas quando se encontram com algum homem
ao lado.
Ao considerar essas análises dos espaços de poder, podemos pensar nas vivências das mulheres
(cis/trans) lésbicas e bissexuais que se subalternizam quando comparadas à homens gays. Além disso, o
apagamento da memória das mulheres lésbicas e bissexuais é resultante deste pensamento
cisheterossexista na produção das cidades, que se priva de evidenciar memórias afetivas e histórias deste
243
grupo em suas marginais e avenidas. Portanto, o apagamento da memória nas cidades, a falta de
segurança, a impossibilidade de desfrutar do direito à cidade deste grupo, reflete a inutilização de um
instrumento de empoderamento de grupos vulneráveis, que poderiam e deveriam formar novos espaços e
ressignificar aqueles existentes, gerando pertencimento, segurança, autonomia e envolvimento político,
social e cultural aos indivíduos.
Desse modo, essas ideias colocadas, até hoje, na literatura e aqui compiladas parcialmente,
referem-se à necessidade de problematizar a ocupação de corpos que fogem da norma e dos padrões do
cistema2 e tornam-se corpos abjetos nos espaços. Judith Butler (2019) argumenta que o abjeto se
designa àquelas pessoas sobre as quais há um investimento social no rechaço por não se encaixarem ao
estatuto de sujeito imposto pela norma vigente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até nos dias atuais, o apagamento social de corpos e vidas LGBTQI+ tem sido uma constante,
haja vista os dispositivos de violência ainda acionados contra a integridade dessas pessoas, seja por meio
de projetos de lei que censuram o debate sobre as questões de gênero, incluindo as violências a estas
associadas, seja por meio de comportamentos e práticas discriminatórias que violam os direitos de existir
fora dos padrões heteronormativos. Ao contrário do que se espera, o Brasil segue em um ritmo cada vez
mais negacionista das barbáries da ditadura, da pandemia do novo Coronavírus, acrescido de um
saudosismo da época militar, promovido pelo atual governo do país.
Dessa forma, evidencia-se que, na atual conjuntura, faz-se muito necessário discutir políticas
públicas, mesmo vivenciando em um Estado de Necropolítica, e, pensar em memórias e vivências de
pessoas LGBTQI+ no Brasil, atualmente, torna-se imprescindível. Assim, apostar na educação popular
feminista aliada às conexões de saberes é o que, ainda, nos resta como um respiro.

REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. 2. ed. São Paulo: Brasiliense,
1985.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de
assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016.
BUTLER, Judith.Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
GAGNEBIN, Jeanne Marie.História e narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,
2007.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração: Ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo:
Editora 34, 2014.

2
A palavra não está errada! É CIStema mesmo. Refere-se ao sistema que favorece pessoas cisgênero em detrimento das
pessoas trans e não-binárias.

244
Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU Direito à Cidade: Uma visão por gênero - São
Paulo: IBDU, p. 126, 2017.
Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU Direito à Cidade: Vivências e Olhares de identidade
de gênero e diversidade afetiva e sexual. - São Paulo: IBDU, p. 29, 2017.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo:
n-1 edições, 2018.
OLIVEIRA, Luana Farias. Quem tem medo de sapatão? Resistência lésbica à Ditadura Militar (1964-
1985). Periódicus, Salvador, v. 1, n. 7, p. 06-19, 2017.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS: Violência contra pessoas trans é extremamente alta nas
Américas. São Paulo, 02 mar. 2020. Disponível em: https://nacoesunidas.org/violencia-contra-
pessoas-trans-e-extremamente-alta-nas-americas-apontam-onu-e-parceiros/. Acesso em: 27 abr. 2020.
PELBART, Peter Pál. Necropolítica tropical: fragmentos de um pesadelo em curso. Série Pandemia.
São Paulo: N-1 Edições, 2018.
PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.
REVISTA ESTUDOS FEMINISTAS. São Paulo: Dossiê Conjugalidade e Parentalidades de Gays,
Lésbicas e Transgêneros no Brasil, v. 2, n. 14, 2006. Maio-Agosto. p. 509-521. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2006000200011&script=sci_arttext#tx14.
Acesso em: 8 mar. 2021.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade? 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. 88 p.

245
VÍDEO E/OU PODCAST

246
Círculos de Saberes e afetos 01- Educação Popular, Feminismos
Comunitários, Ecofeminismo

DESABROCHANDO - FLOR DE CACTUS1


Tabatha BENITZ2
tabatha_bio@hotmail.com

RESUMO:
As mulheres atualmente ocupam diversos espaços na sociedade e essa conquista de espaço
(principalmente no mercado de trabalho) trazem também uma sobrecarga de tarefas. Nas comunidades
ribeirinhas e indígenas no Médio Solimões que tive contato até hoje, percebo que nem todas as
mulheres têm esse espaço aberto, por uma série de fatores que variam desde o cuidado com a casa e as
crianças até um discurso de que o espaço de reuniões e assembleias não são “lugar de mulher”. Esse
podcast tem como objetivo compartilhar algumas experiências de grupos e ações voltadas para mulheres
no Médio Solimões, construindo uma breve linha histórica de com essas ações vem sendo desenvolvidas
na região. No podcast temos a entrevista com uma liderança indígena Ticuna que contextualiza essa
temática sobre sua perspectiva.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Popular; Feminismo comunitário; Mulheres.

Link do vídeo ou podcast:


https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1mlGCepzpHCquP9Ng5VBNpGYFzrxfnGNG

1
Link com o Código da Licença de uso:
https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1mlGCepzpHCquP9Ng5VBNpGYFzrxfnGNG
2
Mestrado em Ciências Biológicas, Analista de inovação e pesquisa do Instituto de Desenvolvimento
Sustentável Mamirauá. E-mail: tabatha_bio@hotmail.com
247
MATAPI FEMININO
Rafaela da Cunha PINTO3
rafaela_cunha04@hotmail.com
Deise Sueli PANTOJA4

RESUMO:
Esse Podcast aborda os impactos ambientais na vida das ribeirinhas da Amazônia. Nesse episódio
Rafaela cunha entrevista Deise Sueli, moradora do Rio Araraiana, localizada em Ponta de Pedras,
Marajó- Pa. Deise destacou os problemas relacionados à pesca do camarão e demais situações do
cenário atual.
PALAVRAS-CHAVE: Ribeirinha, Pesca, Impactos-Ambientais.

Link do vídeo ou podcast:


I just published the first episode of my new podcast! Listen to Matapi Feminino on Anchor
https://anchor.fm/rafaela-cunha04hotmailcom/episodes/Matapi-feminino-e10v4gh

Socióloga , Mestre em Agriculturas Amazônicas


3

4
Ribeirinha do Marajó;
248
Círculos de Saberes e afetos 02- Educação Popular, Feminismo
Negro, Colonialismo, Interseccionalidade

COMO DAR AULAS DE INGLÊS COM ENFOQUE FEMINISTA: O RELATO DE UMA


EXPERIÊNCIA
Podcast
Larissa de Pinho Cavalcanti
laracvanti@gmail.com
Jussara Barbosa da Silva Gomes
sara28gomes@gmail.com

RESUMO:
A presença obrigatória da língua inglesa no currículo da educação básica, se contrapõe aos docentes
pouco fluentes na língua ou formados em perspectivas teórico-metodológicas calcadas em princípios
estruturalistas que negligenciam ou ignoram as demandas formativas da própria sociedade. Por outro
lado, não se pode ignorar os altos índices de feminicídio, violência doméstica e contra a mulher no
Brasil, e em Pernambuco de modo mais acentuado, nem a posição cada vez mais delicada do Brasil no
ranking de igualdade de gênero. Esse contexto torna urgente que a discussão de temas associados aos
gêneros e à valorização da mulher integrem o processo formativo do cotidiano escolar. Para isso,
enxergarmos na proposta de ensino de inglês como língua franca, em uma perspectiva intercultural
apresentada na Base Nacional Curricular Comum a possibilidade de construir práticas pedagógicas de
línguas adicionais com enfoques feministas que considerem a diversidade dos grupos de mulheres no
mundo e suas manifestações linguísticas e discursivas. A experiência que relatamos tem por base nossa
pesquisa de iniciação científica, ainda em desenvolvimento, que consiste na elaboração de aulas de língua
inglesa em um viés feminista a partir de temáticas referentes à participação da mulher na sociedade e sua
valorização. Para isso, buscamos respaldo nas diretrizes educacionais da educação básica (a Base
Nacional Curricular Comum), nos trabalhos de multiletramentos de Cope e Kalantzis (2000) e Roxo
(2009), nas práticas pedagógicas feministas já existentes em outros contextos educacionais com leituras
de Walsh (2013),Korol (2007) e Martín (2018) e no ensino decolonial e antirracista com base em
Bezerra (2019), Araújo e Ferreira (2018), entre outras. A partir de temas e de gêneros textuais
recorrentes nos currículos estaduais e na literatura da pedagogia feminista, estruturamos duas propostas
de trabalho com o léxico, a gramática e as habilidades linguísticas para língua inglesa.
PALAVRAS-CHAVE: ensino de língua inglesa; feminismo; mulher.

Link do podcast:
https://anchor.fm/jussara-barbosa7/episodes/I-Encontro-de-Educao-Popular-Feminista-da-Amaznia-
e10u8tt

249
Círculos de Saberes e afetos 03- Educação Popular, Mulheres,
religiosidade, saberes ancestrais
Vídeo

CUIDADOS DE ÁGUAS E ERVAS1

Luzia Gomes FERREIRA2


luziagomes@ufpa.br
Silvia Raquel PANTOJA3
silviakhaleesi@gmail.com
Cláudia LEÃO4
claudialeao@ufpa.br

RESUMO:
O Vídeo Exercício Cuidados de Águas e Ervasfoi produzido como trabalho final do curso
Representação, Imaginário e Imagens de Mulheres Negras, ministrado pela Prof.ª Dr.ª Rosane Borges
em julho de 2020, no Centro Cultural Barco de São Paulo – SP. O nosso objetivo com a criação desse
trabalho foi refletir sobre o cuidado a partir dos saberes tradicionais das populações negras e indígenas.
Pensamos: O que falar diante dessa nuvem cinza que sombreia toda a América Latina, onde nós
negras/negros e indígenas sabemos que estamos na mira há mais de quinhentos e tantos anos dos dias?
O que falar dessa Amazônia em chamas, que deixam nossos olhos ardendo e o sangue fervendo por

1
Ficha técnica - Narração: Luzia Gomes; Ação dos Banhos: Luzia Gomes, Peti Mama, Conceição Lisboa; Imagens: Cláudia
Leão, Dimitria Leão, Silvia Pantoja e Antonio Lima; Idealização: Luzia Gomes, Cláudia Leão e Silvia Pantoja;
Roteiro: Silvia Pantoja; Edição: Silvia Pantoja e Felipe Mendonça; Ervas dos banhos: aroeira, pau de angola, priprioca, abre
caminho, pataqueira, patchouli, alecrim, esturaque, erva cidreira, manjericão, alevante, anjo da guarda e catinga de mulata.
Excerto narrado se refere ao Texto Curatorial de Raphaella Marques (raphíssima) para o Projeto Caá - Inventário Místico
realizado em 2019 pelo Terreiro de Umbanda Casa de Mãe Herondina e coordenado por Mãe Juci d’Oyá. Disponível em
https://caa.hotglue.me/
2
É baiana do Recôncavo, poeta, feminista negra, professora do curso de Museologia na Faculdade de Artes Visuais (FAV),
Instituto de Ciências da Arte (ICA), Universidade Federal do Pará (UFPA). Em 2017 publicou na cidade de
Lisboa/Portugal o seu primeiro livro de poemas intitulado Etnografias Uterinas de Mim. No ano de 2018, participou com
poemas de sua autoria na antologia Djidiu: A Herança do Ouvido - Doze formas mais uma de se falar da experiência negra
em Portugal, em parceria com poetas de Angola, Guiné Bissau e Cabo Verde residentes em Portugal. É criadora e editora do
blog Etnografias Poéticas de Mim. Atualmente realiza projetos de pesquisa e extensão na UFPA, estabelecendo diálogos
transdisciplinares entre literaturas de mulheres negras (prosa e poesia) e Museologia. E-mail: luziagomes@ufpa.br
3
É paraense, museóloga, Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Museologia (PPGMuseu), na Linha de Pesquisa I
Museologia e Desenvolvimento Social, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: silviakhaleesi@gmail.com
4
É paraense, fotógrafa, pesquisadora e professora do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Artes Visuais, na Faculdade de
Artes Visuais (FAV) e do Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES), Instituto de Ciências da Arte (ICA),
Universidade Federal do Pará (UFPA). Possui experiência na área de artes, com ênfase em fotografia, vídeo, teoria da
imagem, antropologia da paisagem, saudade, esquecimento, apropriação, ética e afetação em imagens na/da Amazônia
paraense. Coordena o grupo de pesquisa Lab Ampe e o projeto de pesquisa História Crítica de Imagens da Amazônia
Paraense. Contribui e colabora em projetos artísticos independentes e movimentos de autonomia vinculado a povos
tradicionais na/da Amazônia. Desde 2011 trabalha com projetos de viagens como processos de criação e
ensino/aprendizagem em Arte. Desde de 2018, colabora com a criação da Sala Arthur Leandro Táta Kinamboji de Ensino,
Arte e Cultura Afro-Amazônica, assim como na continuidade de projetos vinculados a estudos e práticas antirracista. E-mail:
claudialeao@ufpa.br

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dentro? Queremos falar de cuidados! Cuidados com os nossos corpos de mulheres negras. Cuidados
com a terra, com as águas, com as matas, com o ar. Cuidados com as nossas encantadas e os nossos
encantados da floresta. Cuidados com reverência a Omulu: Atotô! Revisitamos as nossas tecnologias
ancestrais para ofertar a nós e ao mundo cuidados de águas e ervas, pois, na ausência de políticas
públicas para a saúde, especialmente para as populações negras e indígenas, é preciso mais uma vez
repetir que “não andamos sós” e partilharmos entre nós cuidados de aconchego, de acalanto, de
calmaria, de sossego e de amor. As águas ervadas escorrem da cabeça aos pés e beija o chão, entregando
à terra o peso que nos sufoca, mas também recebemos dela o alívio para seguir na luta por um mundo
sem racismo, sem machismo, sem LGBTfobia, sem transfobia, sem xenofobia, sem capacitismo e sem
todas as formas de opressões que nos impedem de viver plenamente partilhando “o comum do mundo”
conforme ressalta a Professora Rosane Borges. Sigamos com os nossos cuidados de águas e ervas!
PALAVRAS-CHAVE: Água; Ancestralidade; Cuidado; Ervas; Saberes Tradicionais

Link do vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=GpEGyOeI_EQ

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Círculos de Saberes e afetos 04- Educação Popular, Gênero,
sexualidade, LGBTQI+

O TABU DA MASTURBAÇÃO FEMININA E O REFLEXO NO COMPORTAMENTO


SEXUAL DA MULHER

Denise Baia SILVEIRA1


leilarodriguesfeio@gmail.com
Luanna Gyovanna Farias GOMES2
luannagyovanna@gmail.com
Leila do Socorro Rodrigues FEIO3
leilarodriguesfeio@gmail.com

RESUMO:
A quebra dos estigmas mediante o comportamento sexual feminino trouxe liberdadee autonomia para a
mulher, seja para o prazer, orgasmos ou autoestima, a prática masturbatóriatem sido constante na vida
sexual ativa da mulher e mesmo assim tem trazido grandesdiscussões na sociedade, tanto no meio social
e científico. Assim, o presente artigo buscacompreender como o tabu social em relação à masturbação
feminina pode prejudicar ocomportamento sexual da mulher, investigar a condição da sexualidade da
mulher ao decorrer dahistória, constatar quais fatores sócio-históricos que contribuíram para a
masturbação femininaser um tabu e identificar quais os impactos no comportamento sexual da mulher.
Buscamosresponder o porquê a masturbação feminina é um tabu social e quais os seus impactos
nocomportamento sexual da mulher. Para isso, trouxemos Foucault (2007, 1979, 2017), Cunha(2008)
entre outros autores para discutir os aspectos sócio-históricos em torno desse tema. Ametodologia
adotada foi tipo bibliográfica de abordagem qualitativa e de método exploratório. Osresultados
mostraram que há escassez, ainda, sobre o tema e que o corpo da mulher passa porum controle de poder
em vários dispositivos da sociedade, entre eles o controle médico, político ereligioso. Mostramos,
também, que a masturbação tem um potencial bem-estar para a saúde damulher, mas que ainda é
estigmatizado em uma sociedade heteronormativa. Da mesma maneira,o trabalho mostra que ainda há
muito o que se conquistar com o avanço da liberdade feminina,mas, oportuniza conhecimento acerca da
temática, visando contribuir na quebra de estereótiposconstruídos socialmente sobre o comportamento
sexual da mulher e motivar acadêmicos epesquisadores a realizarem estudos posteriores.
PALAVRAS-CHAVE: Masturbação; Sexualidade Feminina; Tabu Social; Auto Prazer;
Comportamento Feminino.
Link podcast com o Código da Licença de uso: https://youtu.be/_aIOHP209NY

1
Graduanda do 7º semestre do Curso de Bacharelado em Psicologia do Instituto Macapaense do Melhor
Ensino Superior — IMMES. E-mail: dnisebaia@gmail.com
2
Graduanda do 7º semestre do Curso de Bacharelado em Psicologia do Instituto Macapaense do Melhor
Ensino Superior — IMMES. E--mail: luannagyovanna@gmail.com
3
Doutora em Psicologia, Professora adjunta da Universidade Federal do Amapá — UNIFAP. E-mail:
leilarodriguesfeio@gmail.com
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