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Geografia

Organização do Espaço

Eugênia Maria Dantas


Ione Rodrigues Diniz Morais
Organização do Espaço
Eugênia Maria Dantas
Ione Rodrigues Diniz Morais

Geografia

Organização do Espaço

2ª Edição

Natal – RN, 2012


Governo Federal
Presidenta da República
Dilma Vana Rousseff

Vice-Presidente da República
Michel Miguel Elias Temer Lulia

Ministro da Educação
Aloizio Mercadante Oliva

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN


Reitora
Ângela Maria Paiva Cruz

Vice-Reitora
Maria de Fátima Freire Melo Ximenes

Secretaria de Educação a Distância (SEDIS)


Secretária de Educação a Distância Secretária Adjunta de Educação a Distância
Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo Eugênia Maria Dantas

FICHA TÉCNICA

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS EDITORAÇÃO DE MATERIAIS


Marcos Aurélio Felipe Criação e edição de imagens
Adauto Harley
Anderson Gomes do Nascimento
GESTÃO DE PRODUÇÃO DE MATERIAIS Carolina Costa de Oliveira
Luciana Melo de Lacerda Dickson de Oliveira Tavares
Rosilene Alves de Paiva Leonardo dos Santos Feitoza
Roberto Luiz Batista de Lima
Rommel Figueiredo
PROJETO GRÁFICO
Ivana Lima
Diagramação
Ana Paula Resende
REVISÃO DE MATERIAIS Carolina Aires Mayer
Revisão de Estrutura e Linguagem Davi Jose di Giacomo Koshiyama
Eugenio Tavares Borges Elizabeth da Silva Ferreira
Janio Gustavo Barbosa Ivana Lima
Jeremias Alves de Araújo José Antonio Bezerra Junior
Kaline Sampaio de Araújo Rafael Marques Garcia
Luciane Almeida Mascarenhas de Andrade
Rossana Delmar de Lima Arcoverde Módulo matemático
Thalyta Mabel Nobre Barbosa Joacy Guilherme de A. F. Filho

Revisão de Língua Portuguesa


IMAGENS UTILIZADAS
Camila Maria Gomes
Acervo da UFRN
Cristinara Ferreira dos Santos
www.depositphotos.com
Emanuelle Pereira de Lima Diniz
www.morguefile.com
Janaina Tomaz Capistrano
www.sxc.hu
Priscila Xavier de Macedo
Encyclopædia Britannica, Inc.
Rhena Raize Peixoto de Lima
Rossana Delmar de Lima Aroverde

Revisão das Normas da ABNT


Verônica Pinheiro da Silva

Catalogação da publicação na fonte. Bibliotecária Verônica Pinheiro da Silva.

Dantas, Eugenia Maria.


Organização do espaço / Eugenia Maria Dantas e Ione Rodrigues Diniz Morais.
– 2. ed. – Natal: EDUFRN, 2012.

244 p.: il.

Disciplina ofertada ao curso de Geografia a Distância da UFRN.

1. Território. 2. Espaço. 3. Organização. 4.Globalização. I. Morais, Ione Rodrigues


Diniz. II. Título.
CDU 913(99)
D192o

© Copyright 2005. Todos os direitos reservados a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – EDUFRN.
Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização expressa do Ministério da Educacão – MEC
Sumário

Apresentação Institucional 5

Aula 1 Despertando para a leitura do espaço 7

Aula 2 Aprofundando o conceito de espaço 23

Aula 3 A Organização do Espaço: um desafio inter-trans-disciplinar? 41

Aula 4 A dinâmica entre o global e o local na globalização 63

Aula 5 Paisagem como categoria da análise geográfica 83

Aula 6 Lugar e (des)identidade 105

Aula 7 Território e territorialidade: abordagens conceituais 127

Aula 8 Território e territorialidade: abordagens conceituais (parte II) 147

Aula 9 Por entre territórios e redes: múltiplas leituras 165

Aula 10 Região e a Geografia tradicional 183

Aula 11 Região no contexto da renovação da Geografia 205

Aula 12 Organização do espaço: do universo conceitual ao ensino da Geografia 227


Apresentação Institucional

A
Secretaria de Educação a Distância – SEDIS da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte – UFRN, desde 2005, vem atuando como fomentadora, no âmbito local, das
Políticas Nacionais de Educação a Distância em parceira com a Secretaria de Educação
a Distância – SEED, o Ministério da Educação – MEC e a Universidade Aberta do Brasil –
UAB/CAPES. Duas linhas de atuação têm caracterizado o esforço em EaD desta instituição: a
primeira está voltada para a Formação Continuada de Professores do Ensino Básico, sendo
implementados cursos de licenciatura e pós-graduação lato e stricto sensu; a segunda volta-se
para a Formação de Gestores Públicos, através da oferta de bacharelados e especializações
em Administração Pública e Administração Pública Municipal.
Para dar suporte à oferta dos cursos de EaD, a Sedis tem disponibilizado um conjunto de
meios didáticos e pedagógicos, dentre os quais se destacam os materiais impressos que são
elaborados por disciplinas, utilizando linguagem e projeto gráfico para atender às necessidades
de um aluno que aprende a distância. O conteúdo é elaborado por profissionais qualificados e
que têm experiência relevante na área, com o apoio de uma equipe multidisciplinar. O material
impresso é a referência primária para o aluno, sendo indicadas outras mídias, como videoaulas,
livros, textos, filmes, videoconferências, materiais digitais e interativos e webconferências, que
possibilitam ampliar os conteúdos e a interação entre os sujeitos do processo de aprendizagem.
Assim, a UFRN através da SEDIS se integra o grupo de instituições que assumiram
o desafio de contribuir com a formação desse “capital” humano e incorporou a EaD como
modalidade capaz de superar as barreiras espaciais e políticas que tornaram cada vez mais
seleto o acesso à graduação e à pós-graduação no Brasil. No Rio Grande do Norte, a UFRN
está presente em polos presenciais de apoio localizados nas mais diferentes regiões, ofertando
cursos de graduação, aperfeiçoamento, especialização e mestrado, interiorizando e tornando
o Ensino Superior uma realidade que contribui para diminuir as diferenças regionais e o
conhecimento uma possibilidade concreta para o desenvolvimento local.
Nesse sentido, este material que você recebe é resultado de um investimento intelectual
e econômico assumido por diversas instituições que se comprometeram com a Educação e
com a reversão da seletividade do espaço quanto ao acesso e ao consumo do saber E REFLETE
O COMPROMISSO DA SEDIS/UFRN COM A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA como modalidade
estratégica para a melhoria dos indicadores educacionais no RN e no Brasil.

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


SEDIS/UFRN

5
Despertando para
a leitura do espaço

Aula

1
Apresentação

V
ocê esta iniciando os estudos referentes à disciplina Organização do Espaço. Mas, o
que é esta disciplina? Qual sua importância para Geografia? Em que ela contribuirá
no processo de formação do professor? Muito bem, esta disciplina é fundamental
para a compreensão do espaço como objeto de estudo da Geografia. Por meio dela,
problematizaremos e discutiremos teorias, conceitos e categorias básicas para fundamentar
você na leitura espacial. Iniciamos a nossa trajetória abordando, nesta primeira aula, a
relação homem-natureza na perspectiva de introduzir as noções que embasam o espaço
como objeto de estudo geográfico.

Desta feita, trataremos três sub-temas – O homem e a natureza: uma “Geografia do


Concreto”; O homem e a natureza: acelerações históricas; A relação homem natureza e a
emergência do Espaço Geográfico – que, articulados a um conjunto de atividades práticas,
visam despertar o aluno para a leitura do espaço. Por meio desses temas, você será levado a
construir um conjunto de reflexões, “colocando em prova” os conteúdos envolvidos na aula,
sendo a auto-avaliação um ponto de convergência e síntese desse processo.

Objetivos
Refletir sobre a relação homem-natureza na tessitura do
1 conhecimento geográfico.

Discutir a construção do espaço geográfico a partir da


2 ação humana mediada pelo trabalho em uma perspectiva
histórica.

Definir o espaço como o objeto de estudo da ciência


3 geográfica.

Aula 1 Organização do Espaço 9


Problematizando o conhecimento
a partir da experiência
Para iniciarmos a nossa aula, convidamos você a pensar sobre a sua vivência no espaço
em que mora. Para isso:

a) observe um local de sua cidade com o qual tenha laços de afetividade;

b) desenhe o local observado.

10 Aula 1 Organização do Espaço


A partir do que você desenhou e de sua experiência responda a questão a seguir.

a) Como você descreve a sua relação com a natureza?

Vamos ampliar as idéias!

Aula 1 Organização do Espaço 11


O homem e a natureza:
uma “Geografia do Concreto”

O
homem, desde os tempos mais remotos, esteve vinculado à natureza. Ao fazer
tal afirmação, nos aproximamos, inicialmente, da condição primeira que coloca
o sujeito imerso e diante do mundo. Também de um homem que é induzido a
interpelar a natureza, utilizá-la e conhecê-la sem ter à disposição manuais de classificação
e caracterização, formas adequadas de utilização, fórmulas que descrevem propriedades e
combinações (Figura 1). E ainda de uma “geografia do concreto”, que analogicamente pode
se aproximar da idéia de “ciência concreta”, tratada por Claude Lèvi-Strauss, como uma
trama que faz parte da condição humana de viver.

O conhecimento da natureza pela prática cotidiana do saber-fazer humano revela-se


associando o conhecimento de si ao da natureza. Explicamos melhor. O homem ao fazer uso
do que estava a sua volta, tinha a disposição um conjunto diversificado de espécies vegetais
e animais; ao fazer a escolha de uma espécie sobre as outras, demarca a sua utilidade para si.
Testando a natureza, testava a si mesmo, alimentando um ciclo de trocas mútuas. A doença,
a cura, a nutrição, o frio, o calor, a resistência e a exposição às intempéries ambientais
vão sendo (re) conhecidas por estratégias em que não há separação entre o conhecer e o
fazer. Ou seja, há a necessidade de viver para conhecer e de conhecer para viver, em um
jogo dialógico que faz da distinção, classificação, comparação e analogia procedimentos
necessários à religação, reutilização, reciclagem e manutenção da vida em seu sentido mais
amplo. O homem, ao conhecer a natureza, conhecia a si mesmo, fazendo reverberar a tese
de Edgar Morin de que o homem é 100% natureza e a natureza é 100% cultura.

Figura 1 – O homem na natureza, a natureza no homem

Fonte: <http://www.prof2000.pt/users/jdsa03/olho/Out_2002/histor8.jpg>.Acesso em: 25 jun. 2008.

12 Aula 1 Organização do Espaço


Os ensinamentos de Lèvi-Strauss nos fornecem elementos que ampliam a
compreensão da relação homem-natureza ao problematizar uma constelação de
exemplos que dizem da forma como os diversos povos da superfície terrestre
conhecem, afirmando que “as espécies animais e vegetais não são conhecidas
porque são úteis; elas são consideradas úteis ou interessantes porque são primeiro
conhecidas” (LÈVI-STRAUSS, 1997, p. 24), neutralizando o argumento de que a
utilidade precede o saber. Para ampliar a questão a respeito do processo de como
os homens conhecem, Lèvi-Strauss acrescenta:

O homem do neolítico ou da proto-história foi, portanto, o herdeiro de uma longa


tradição científica; contudo, se o espírito que o inspirava, assim como a de todos os
seus antepassados, fosse exatamente o mesmo que o dos modernos, como poderíamos
entender que ele tenha parado e que muitos milênios de estagnação se intercalem,
como um patamar, entre a revolução neolítica e a ciência contemporânea? O paradoxo
admite apenas uma solução: é que existem dois modos diferentes de pensamento
científico, um e outro funções, não certamente estádios desiguais de desenvolvimento
do espírito humano, mas dois níveis estratégicos em que a natureza se deixa abordar
pelo conhecimento científico – um aproximadamente ajustado ao da percepção e ao da
imaginação, e outro deslocado; como se as relações necessárias, objeto de toda ciência,
neolítica ou moderna, pudessem ser atingidas por dois caminhos diferentes: um muito
próximo da intuição sensível e outro mais distanciado (LÈVI-STRAUSS, 1997, p. 30).

Assim, a natureza é, desde os primórdios, o grande desafio a ser enfrentado,


pois, ao mesmo tempo em que se revela por meio de formas, esconde seus
sentidos. A forma que a natureza assume é a senha de entrada no labirinto de
sentidos que ela guarda em potência. Daí, estabelece-se a dialogia entre a forma
e o conteúdo, a certeza e a incerteza, a precisão e a ambigüidade do que pode
ser dito ou revelado, constituindo-se em marcas contundentes e necessárias à
condição humana de conhecer e viver.

A abordagem da natureza é mais do que revelação, é imputação de sentido.


E como os sinais que a natureza emana podem ser entendidos e “revelados”?
É por meio da linguagem que o homem compreende e diz o que é a natureza,
explicita seus sinais, tornando o dito inscrição, tatuagem, imprinting, mas também
possibilidade de reinterpretação, recriação e desvio. A linguagem nos coloca no
seio da determinação e da indeterminação, da estrutura e da reorganização das
idéias. Por meio dela, compreendemos a singularidade e a diversidade da natureza,
seus movimentos e características em tempos e espaços diferenciados. Com isso,
afirmamos que vivemos mediados pelo jogo de determinação, indeterminação e
incerteza em que a narrativa da natureza pelo homem é sempre parcial, posto que
está no limite das condições de revelação da própria natureza.

Aula 1 Organização do Espaço 13


A “Geografia do Concreto” é aquela que se estabelece na alma do homem a
partir de práticas e vivências que o levam a ter que, interpretando o que está em seu
entorno, recriar a natureza de sua existência. Assim, podemos imaginar que ela não
está presa, inicialmente, a um tempo histórico determinado, mas é re-significada a
partir da mudanças implementadas no decorrer do tempo.

Atividade 1
Após a leitura, exercite o que você aprendeu. Para isso, volte às atividades
que você realizou no início da aula. Em seguida, relacione o que considera
ter aproximação com o que a abordagem do conteúdo. A partir dessa
relação, elabore uma síntese do que é a “Geografia do Concreto”.

14 Aula 1 Organização do Espaço


Após você ter feito o exercício, vamos continuar a nossa aula, observando agora
duas figuras:

a) b)

Figura 2 – A natureza em transformação


Fonte: (a) <http://www.goianesia.go.gov.br/portal/imgs_releases/patrulha02.jpg>
(b)<http://www.cdcc.sc.usp.br/ciencia/artigos/art_23/sampahojeimagem/edific~1.jpg>. Acesso em: 25 jun. 2008.

Atividade 2
As duas imagens revelam a natureza em condições diferentes. Compare-as e
em seguida responda as questões a seguir.

a) Qual das imagens apresenta, na sua opinião, uma maior intervenção


humana? Por quê?

b) Relacione três elementos os quais você considera responsáveis pelas


modificações.

Aula 1 Organização do Espaço 15


Vamos refletir!

O homem e o trabalho
transformando a natureza
A natureza transforma-se em ritmos distintos ao longo do tempo. O homem habita a
Terra há cerca de 160 milhões de anos, tendo alterado a fisionomia desse planeta de formas
diferenciadas. Tais alterações resultam da criação, incorporação, difusão e sofisticação dos
meios e instrumentos de extração e produção de riquezas responsáveis pela complexificação
das relações entre o homem e o espaço vivido.

Figura 3 – O homem, a natureza e o trabalho (des) construindo espaços

Fonte: (a) <http://profviseu.com/pessoal/ANEWTON/homem.jpg>. (b) <http://www.colegiosaofrancisco.com.br/alfa/numero-natural/imagens/numero-natural-1.jpg>.


(c)<http://cache01.stormap.sapo.pt/fotostore01/fotos//37/f4/cf/1940488_ZYhOt.jpeg>.(d)<http://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos/fotos045.jpg>.
(e) <http://static.flickr.com/113/296600933_635e672563.jpg>.(f) <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/foto/0,,11268037,00.jpg>.

16 Aula 1 Organização do Espaço


As necessidades inerentes à condição humana de viver, como morar, vestir e alimentar, vão
sendo ampliadas e conduzidas na dinâmica das condições objetivas da produção que, na medida
em que se sofisticam, proporcionam um alargamento das necessidades atreladas a outros bens
e consumos, estabelecendo uma relação de reciprocidade, em que se perde a dimensão do que
é realmente necessário. Assim, “produzir” as condições de sobrevivência institui-se em um jogo
dialógico que abriga materialidade e simbolismo.

O homem, nesse processo de “produção” das condições de sua sobrevivência é enredado na


trama do fazer e do como fazer, articulados na relação homem-trabalho-técnica-natureza. O homem
passa a transformar a natureza a partir de um conjunto de necessidades que ultrapassam a esfera da
“cozinha” e se alargam para o “quintal”, a aldeia, a vila, o burgo em escalas variadas e crescentes. O
trabalho, uma das forças motrizes no processo de hominização vai se especializando, separando o
homem da natureza. “A ação do homem deixa de estar submetida à natureza, à medida que evoluem
com o meio natural circundante. Alguns instrumentos passam a ser descobertos e apropriados, sua
submissão à natureza vai diminuindo, o espaço começa a ser produzido” (ROSSINI, 1996?, p. 2).

O trabalho institui-se como uma ferramenta de transformação da natureza, cuja sofisticação


técnica acelera a diferenciação e as especializações entre as funções dos homens no trato com a
natureza. Observe que o trabalho faz emergir uma condição especial qual seja de se sobrepor às
condições ambientais existentes. Podemos perguntar: o que é então o trabalho? É a ação humana
articulada a estratégias refletidas para transformar objetos em outros objetos ou a natureza primeira
em outra natureza. A expressão o homem conhece a natureza para dominá-la assume relevância
em uma sociedade dada. Desta feita, podemos considerar momentos em que houve uma ação
mais direta do homem sobre a natureza, enquanto em outros o processo de mediação técnica se
tornou mais relevante. Assim, temos que compreender o trabalho em um processo que relaciona
desenvolvimento técnico e força humana, intervindo na transformação da natureza. Quanto mais
desenvolvimento técnico, menor a ação direta do homem, quanto menor o desenvolvimento técnico,
maior sua ação sobre a natureza. Podemos, então, dizer que o sentido da relação homem-natureza
não se define a priori, mas se revela no contexto histórico de sua produção. É dessa relação que
emerge o meio geográfico ou espaço geográfico.

Reelaborando o conhecimento...

Aula 1 Organização do Espaço 17


Atividade 3
Você foi levado a responder duas questões que tinham como suporte inicial
imagens diferentes da natureza. Agora, a partir da leitura do conteúdo, reelabore
suas respostas levando em consideração a relação homem-natureza-trabalho.

Vamos pensar!
O que é o espaço geográfico?

18 Aula 1 Organização do Espaço


A relação homem/natureza e a
emergência do espaço geográfico
Espaço é um vocábulo usado correntemente, seja na vida cotidiana, seja no
ambiente das ciências. É comum expressões do tipo: espaço pessoal, espaço
econômico, espaço sideral, espaço arquitetônico, espaço artístico, dentre outras. O
espaço parece ser transversal a diferentes experiências de vida. Nessa perspectiva,
qual a especificidade e o sentido de espaço na ciência geográfica?

A Geografia como ciência está preocupada em problematizar a relação homem-


natureza, mediatizada pelo trabalho. Nessa relação, o homem desenvolve ações/
intervenções no meio, alterando as feições pré-existentes, criando novas formas
espaciais. Dessa relação, emerge a singularidade do espaço geográfico. De acordo
com Milton Santos, “O espaço geográfico é a natureza modificada pelo homem através
do seu trabalho.” (SANTOS, 1978, p. 119). A concepção de uma natureza natural,
onde o homem não existisse ou não fosse o seu centro, cede lugar a idéia de uma
construção permanente da natureza artificial, sinônimo de espaço humano.

A partir da definição apresentada, podemos compreender a imbricação entre


natureza e homem na produção do espaço geográfico. Em qualquer época e lugar, o
espaço humano é conhecido como o resultado da produção que se realiza, de acordo
com uma dada organização social.

Produzir significa tirar da natureza os elementos indispensáveis à reprodução da vida.


A produção, pois, supõe uma intermediação entre o homem e a natureza, através das
técnicas e dos instrumentos de trabalho inventados para o exercício desse intermédio.
(SANTOS, 1978, p. 161/162).

O espaço geográfico é, portanto, uma produção humana, produto do trabalho


humano, modificando a natureza. Apresenta uma feição própria e uma estrutura
organizacional que diz respeito às condições em que ocorre a relação do homem com
a natureza e o estágio em que se encontra a sociedade em termos de conhecimento,
técnicas e formas de interação sócio-espacial.

Nas próximas aulas, vamos aprofundar esse conceito.

Agora é com você!

Aula 1 Organização do Espaço 19


Resumo
Esta foi a nossa primeira aula de um total de 12. Você foi levado a refletir
sobre a relação homem-natureza, percebendo como ocorre esse processo
e quais os elementos responsáveis para tecer o que denominamos de
espaço geográfico. Nesse sentido, a tessitura do conhecimento geográfico
foi sendo construída a partir de situações-problema em que estiveram
presentes noções e conceitos inter-relacionados às variáveis que compõem
o cotidiano do homem transformando a natureza. Dessa perspectiva, estudar
a transformação da natureza pela técnica e pelo trabalho foi o tema central,
pelo qual você foi compreendendo como ocorre o processo de conhecimento
e dominação da natureza pelo homem. Desta feita, nesta aula, emergiram os
elementos primordiais que possibilitam definir o espaço como o objeto de
estudo da ciência geográfica.

Autoavaliação
Agora, é chegado o momento em que você deverá submeter o que aprendeu
a uma avaliação especial. É você consigo mesmo, mostrando para nós o
seu percurso de compreensão dos conteúdos conceituais, atitudinais e
procedimentais. Assim, reflita e sistematize sobre as questões a seguir.

a) O que você já sabia a respeito do que foi abordado na aula?

b) O que você aprendeu com a aula?

c) A aula foi importante para aprofundar o que você já sabia? Que aspectos
você pode destacar?

d) Quais as dificuldades que você teve nesta aula? Que estratégias foram
utilizadas para superá-las?

20 Aula 1 Organização do Espaço


Referências
LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. 2. ed. São Paulo: Papirus, 1997.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários a educação do futuro. Tradução de Catarina


Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

______. Ciência com consciência. Lisboa: Publicações Europa-América, 1994.

ROSSINI, R. E. Natureza e sociedade. [S.l.]: [S.n.], [1996?]. Texto sem publicação.

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. São Paulo: HUCITEC, 1978.

Anotações

Aula 1 Organização do Espaço 21


Anotações

22 Aula 1 Organização do Espaço


Aprofundando
o conceito de espaço

Aula

2
Apresentação

N
a aula passada, foi abordada a discussão do espaço geográfico a partir da relação
homem-natureza. Nesta aula, aprofundaremos a discussão, verticalizando a noção de
espaço geográfico a partir da inter-relação que se estabelece com o tempo. Assim,
a aula está dividida em duas partes que se articulam e se complementam. Na primeira,
estabelecemos um diálogo entre o espaço e as diversas faces do tempo; na segunda,
aproximamos as variáveis espaço e tempo a uma sociedade dada, ou seja, à sociedade
capitalista, mostrando a relação entre essência e aparência na leitura da ciência geográfica.
No enredo da aula, você será levado a refletir sobre o espaço geográfico a partir de sua
conexão com o tempo em uma sociedade específica.

Objetivos
Entender a definição de espaço como objeto de estudo
1 da ciência geográfica.

Saber como criar situações-problema reveladoras da


2 relação entre espaço-tempo e sociedade.

Compreender a relação entre sociedade-tempo na


3 interpretação do espaço geográfico.

Aula 2 Organização do Espaço 25


O espaço e o tempo:
um casamento indissolúvel
Trabalhar o conceito de espaço geográfico relacionado-o à variável tempo, eis o desafio
inicial desta aula. Para isso, vamos refletir sobre a seguinte afirmação de Milton Santos:

“... O espaço é a acumulação desigual de tempo.”

Figura 1 – O que é o tempo?

26 Aula 2 Organização do Espaço


Uma afirmação curta e densa de sentidos. Para compreendermos o que ela significa,
um bom exercício inicial é identificar os termos da questão. Nela, encontramos: espaço
– acumulação – desigualdade – tempo. Parece ser muita coisa junta. E é mesmo! Então,
vamos por parte.

A afirmação de Milton Santos nos leva a querer entender melhor o espaço geográfico
a partir do diálogo que deve se estabelecer entre os elementos que interferem na sua
composição. Nesse diálogo, que sugerimos ser aberto e reflexivo, o tempo assume uma
posição central.

Assim, perguntamos: o que é o tempo?

Vejamos, para responder a essa questão, algumas expressões em que esse termo
aparece.

Não tenho tempo para nada!


O tempo está fechado.
O tempo parece veloz!
No tempo do meu avô, as coisas eram diferentes!
Esta rua não é mais a mesma, o tempo passou, as coisas mudaram!
(Eugênia Dantas e Ione Rodrigues).

Você deve ter percebido nas expressões que a palavra tempo foi empregada em uma
linguagem corrente, incorporando-se como uma variável do cotidiano. Na vida diária, há a
necessidade de localizar as ações, visões e procedimentos no tempo. Por meio dele, pode-se
enxergar os limites e as possibilidades dos fazeres e saberes dos homens.

Partindo da perspectiva de que o tempo está presente em todas as ações humanas,


vamos aprofundar a relação espaço/tempo, por meio de um conjunto de análises necessárias
à leitura do espaço geográfico.

A Geografia, ciência cujo objeto de estudo é o espaço, estabelece com a História um


diálogo de conflitos e complementaridades. Desde os primórdios da história do pensamento
geográfico, essa aproximação está rodeada de debates e reflexões, cujos objetivos variam
e alimentam a (in) certeza de que a totalidade do espaço se realiza no conteúdo do tempo.

Assim, vamos colocar mais lenha nessa fogueira?

Aula 2 Organização do Espaço 27


Atividade 1
Procure em diversos meios, como literatura, música, jornais ou
1 revistas, imagens que possibilitem revelações distintas do tempo.
Escreva no espaço a seguir comentários a respeito do que você
encontrou.

Com base no que você encontrou, elabore algumas afirmações


2 ampliando as noções de tempo até aqui trabalhadas.

A partir dessa atividade, você pôde perceber que o tempo não é só companheiro da
Geografia, mas está em diferentes campos de interpretação humana. Ele é uma variável que
transversaliza as variadas esferas de representação social.

No entanto, com o desenvolvimento da humanidade e da Ciência, o estudo do tempo


passou a ser matriz de reflexão teórica e metodológica de diversas áreas de estudo, como a
Física, a Filosofia, a Biologia, a História. Em cada uma delas, há uma abordagem que pretende
se diferenciar da outra, de forma a garantir o seu “quinhão científico” na interpretação da
realidade. No entanto, nessa diversidade há que se encontrar uma unidade, qual seja o eterno
desejo humano de revelar as faces da natureza e do homem tecendo a vida na Terra. A
Geografia como a ciência que é responsável pela “escrita da Terra” estabelece com o tempo
um casamento indissolúvel

Assim, para você compreender o espaço geográfico é necessário “treinar” o olhar a fim


de enxergar nas formas espaciais as marcas do tempo, da natureza e do homem.

28 Aula 2 Organização do Espaço


Figura 2 – As faces do tempo

Para exercitar o olhar, é necessário saber observar, caminhar, parar, registrar e perguntar:

O que vejo?
Como surgiu?
Por que existe?
Desde quando?
Quem o construiu?

A resposta a essas perguntas pode ser dada submetendo-se o que foi visto à variação
temporal, social e cultural.

Assim, veja: tomando uma realidade espacial qualquer, você pode ampliar as questões
anteriores interrogando:

Isto é novo?
Isto é velho?
Isto é atual?
Isto é natural?
Isto é artificial?

Aula 2 Organização do Espaço 29


As perguntas feitas levam você, impreterivelmente, a colocar na interpretação
geográfica o tempo perpassando as ações humanas. No espaço, revelam-se as marcas do
tempo. Temos, simultaneamente, o registro do que foi o passado, das deformidades do
presente, do que é atual e real, do imbricamento entre o natural e o artificial na tessitura do
ser e do cotidiano, construindo a vida no ambiente terrestre.

Figura 3 – Entre o natural e o artificial, o fazer cotidiano

Para dar mais substância as nossas discussões, leia um trecho de Milton Santos (1986,
p. 10) a seguir.

O passado passou, e só o presente é real, mas a atualidade do espaço


tem isto de singular. Ele é formado de momentos que foram, estando agora
cristalizados como objetos geográficos atuais; dessas formas-objetos, tempo
passado, são igualmente tempo presente, enquanto formas que abrigam uma
essência, dada pelo funcionamento da sociedade atual.

30 Aula 2 Organização do Espaço


Atividade 2
Agora, exercite mais um pouco.

a) Observe a escola. O seu ambiente de trabalho é a escola que você


leciona e o seu entorno. Submeta o espaço observando aos
questionamentos anteriormente apresentados.

b) Procure identificar a variável do tempo a partir da aplicação das


perguntas.

c) Elabore uma descrição do ambiente observado, articulando as idéias


colocadas por Milton Santos.

Aula 2 Organização do Espaço 31


Voltemos agora à afirmação inicial desta aula.

“... O espaço é a acumulação desigual de tempo.”

Vamos submeter está frase a pergunta “por quê?” Para responder a essa pergunta,
é necessário considerarmos o que foi dito até agora e acrescentarmos à palavra tempo a
designação social. Assim, o tempo para a Geografia é uma construção social. O que nos
remete a condição de que no tecido espacial a ação humana institui-se como tempo social. O
que isso significa? Significa que quando nos referimos ao espaço estamos considerando o
registro de tempos em sucessões desiguais, que se acumulam em formas ou feições distintas.
Isso ocorre a partir de interesses, saberes, fazeres, técnicas, conhecimento e trabalho que
variam, fazendo coexistir feições fragmentadas de tempos distintos em ambientes também
distintos, porém complementares.

Henri Lefbvre nos ajuda a pensar sobre essa coexistência de tempo no espaço, ou no
espaço como uma memória ampliada do tempo. Leia a seguir o que ele afirma.

Consideramos a relação entre o espaço e o tempo. Os dois infinitos simultâneos


e atuais se diferenciam e se cruzam na representação. Cada um se representa
no outro e somente se representa através desse encontro. (LÉFBVRE apud
SANTOS, 2002, p. 26/27).

A afirmação do geógrafo nos sugere que há “uma cumplicidade” entre estrutura espacial
e estrutura social. Assim, o desenvolvimento social marca o desenvolvimento espacial, que
por sua vez, condiciona o próprio desenvolvimento social. Temos a forma espacial sendo
organizada em um movimento espiralado que se alimenta da dinâmica sócio-espacial que
une e separa, dialogicamente, homens e coisas.

Figura 4 – Espaço e sociedade: onde está o começo, será que tem fim?

32 Aula 2 Organização do Espaço


Para ampliar a nossa problematização no sentido de se compreender da afirmação que
movimenta esta aula, vamos a mais um exemplo.

Tomemos a cidade como uma forma sócio-espacial e procuremos encontrar em sua


organização as variáveis postas na afirmação (espaço, tempo, desigualdade, acumulação). O
que você tem diante de seus olhos e sob os seus pés? A expressão máxima dessa afirmação.
Na cidade, encontram-se de forma imbricada os termos propostos na máxima de Santos.

Atividade 3

Faça você um exercício. Tome a sua cidade como forma espacial. Caminhe
por suas ruas, praças, bairros... Observe o que ela é. Registre as diferentes
imagens que você encontrou e monte um quadro, procurando aproximar
imagens do passado a imagens do presente. Encontre o que une e separa os
homens no tecido urbano visitado. Responda a questão: o que é a cidade em
termos sócio-espaciais?

Aula 2 Organização do Espaço 33


Agora, vamos aprofundar o que institui e é instituinte da “cumplicidade” entre estrutura
espacial e estrutura social.

Da aparência à essência
A cidade que você viu pode ser considerada uma forma espacial. O que você registrou
pode ser lido de maneira metafórica, a casca do ovo, o invólucro, o papel que embrulha
um presente. Ela constitui a primeira impressão sobre algo, podendo ser considerada a
aparência das coisas. É uma parte de um todo. Assim, no que vemos existe um conjunto de
elementos que não vemos e que são fundamentais para que aquilo que se vê possa existir. É
a incorporação ou incrustação de idéias, procedimentos, técnica, trabalho e meios utilizados
para a produção de um determinado objeto ou forma espacial. O que não se vê, mas que está
lá constitui a essência do que foi visto. É a outra parte da totalidade espacial.

O espaço geográfico como acumulação desigual de tempo contém o conjunto das


forças produtivas que foram responsáveis para uma organização espacial específica. Nela,
estão a força de trabalho, o valor de uso e de troca, os desejos e as necessidades humanas,
as realizações e frustrações de uma sociedade, que ao longo do tempo submeteu a natureza a
uma transformação de físico-natural para humano-artifical. O motor dessas transformações
está preso às diferentes formas dos homens produzirem e acumularem riquezas. Na
sociedade capitalista, os desejos estão enredados na teia do fetiche e da mercadoria. Nesta,
não sabemos distinguir o que é necessário do que é supérfluo. Tudo é, simultaneamente,
supérfluo e necessário para fazer girar a roda do capitalismo.

Figura 5 – O motor do capitalismo

34 Aula 2 Organização do Espaço


Epa, agora complicou! Quantas palavras difíceis apareceram! Forças produtivas,
força de trabalho, valor de uso e de troca, fetiche, mercadoria. É possível
simplificar?

Não! Mas, para entender melhor, vamos definir e caracterizar o capitalismo?

O capitalismo é uma estrutura que se enraíza sócio-econômica e culturalmente, cuja


mola propulsora é a acumulação de riquezas em fatias específicas da sociedade. A maneira
como essa estrutura realiza-se parte da relação que se estabelece entre o trabalho e a
capacidade de criar excedentes, ampliando em proporções geométricas a possibilidade de
consumo da população.

Como funciona essa estrutura? De maneira resumida, pode-se dizer que há a


propriedade privada dos meios de produção (máquinas, utensílios, ferramentas, matérias-
primas etc.) nas mãos de uma parcela da sociedade denominada de capitalista, a qual é capaz
de assegurar o funcionamento desses meios comprando força de trabalho humano, cuja
remuneração se dá por pagamento de salários. O que temos como síntese primeira e básica
dessa estrutura: uma divisão social do trabalho e a concentração dos meios de produção. Há
muitos aspectos a serem debatidos, mas vamos nos ater apenas às características relativas
à propriedade privada (já definida anteriormente), à divisão social do trabalho e à capacidade
de trocar, típica de uma sociedade produtora de mercadorias.

A divisão social do trabalho refere-se à incapacidade que os indivíduos têm de


assumirem todas as profissões necessárias para suprir as suas necessidades. Vejamos
como exemplo: todos nós temos necessidade de estudar, de comer, de vestir... Mas, não
temos a condição de sermos, simultaneamente, professores, agricultores, costureiros. Por
isso, na sociedade capitalista, há ocorrência de muitas profissões, por que os indivíduos
passam a ser vistos como “máquinas” capazes de transformar matéria-prima em produtos
diversos através da sua força de trabalho. Como “máquina”, o homem está condicionado a
uma capacidade produtiva relativa ao tempo necessário para produzir um equivalente que
será recompensado em salário. O trabalho é uma força motriz que se introduz no mercado
de trocas material e simbólica.

A capacidade de trocar os produtos, resultantes de diferentes especialidades, constitui


a condição básica que alimenta a teia sócio-econômica e cultural dessa sociedade. O produto
a ser trocado denomina-se mercadoria.

Aula 2 Organização do Espaço 35


De maneira geral, precisamos compreender o que é mercadoria.

[...] a mercadoria é concebida, em primeiro lugar, como uma coisa ou um objeto que
satisfaz uma necessidade qualquer do homem; em segundo lugar, como uma coisa
que se pode trocar por outra. A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso, isto
é, tem utilidade específica para o seu consumidor. Conseqüentemente, pode-se afirmar
que as mercadorias diferenciam-se umas das outras pelo seu valor, uma vez que a cada
necessidade específica corresponde uma mercadoria com características específicas. Por
sua vez o valor de troca (ou simplesmente valor) poderia ser caracterizado como sendo
a relação ou a proporção na troca de um certo número de valores de uso de uma espécie
contra um certo número de valores de uso de outra espécie. (CATANI, 1983, p. 22)

A capacidade de trocar o valor que a mercadoria assume no mercado é relativo à variável


força de trabalho, sofisticação dos meios de produção, valor de uso e valor de troca. Para que se
realize enquanto mercadoria, os produtos são revestidos de um conjunto de atributos que os
tornam essenciais no viver cotidiano. Esses atributos precisam ser veiculados e consumidos
como necessidades sociais, que ultrapassam as fronteiras espaciais, transformando-se em
desejos e necessidades sociais. A mercadoria, para se realizar no mercado de trocas, tem
agregado um valor simbólico que ilude e que recria o sentido do que é necessário para se
viver. Essa idealização do objeto a ser consumido é o que se chama fetiche da mercadoria.

Figura 6 – O fetiche da mercadoria

Nesses termos, a realização do capitalismo ocorre na medida em que se ampliam


as oportunidades de produção de mercadorias para serem consumidas em um mercado
ávido por novidades. Nele, as fronteiras são obstáculos a serem transpostos, desafios
mercadológicos que instigam a criação de meios técnicos capazes de dominar as dificuldades
existentes. As distâncias, as intempéries físico-ambientais, as disparidades regionais se, por
um lado, podem ser empecilhos ao motor do capitalismo, por outro, se constituem “reserva
de valor” a ser incorporado à dinâmica das trocas comerciais e simbólicas. O que não pode
ser transformado em mercadoria, hoje, não está descartado para o amanhã.

36 Aula 2 Organização do Espaço


O espaço e o tempo para esse modelo de organização social não se revelam de maneira
linear, mas apresentam uma composição complexa. O que isso quer dizer? “Que o homem
trabalha sobre herança”. O que ele vive e constrói é sempre um acoplamento entre as forças
do passado e as do presente, reorganizando as relações sócio-espaciais. “Através do espaço,
a história se torna, ela própria estrutura, estruturada em formas”.

Para isso, é necessário termos claro que estamos tratando da organização espacial
em um contexto sócio-histórico, ou seja, a criação do espaço geográfico está atrelada ao
processo de produção social do tempo.

Para ampliar o nosso entendimento, vamos ler o que Milton Santos diz:

Produzir significa tirar da natureza os elementos indispensáveis à reprodução da vida.


A produção, pois, supõe uma intermediação entre o homem e a natureza, através das
técnicas, dos instrumentos de trabalho inventados para o exercício desse intermédio.
O homem começa a produzir quando, pela primeira vez, trabalha junto com outros
homens em um regime de cooperação, isto é, em uma sociedade, a fim de alcançar
os objetivos que haviam antecipadamente concebido, antes mesmo de começar a
trabalhar. A produção é a utilização consciente dos instrumentos de trabalho com um
objetivo definido, isto é, o objetivo de alcançar um resultado preestabelecido. Nenhuma
produção, por mais simples que seja, pode ser feita sem que se disponha de meios de
trabalho, sem vida em sociedade, sem divisão do trabalho. [...] Cada atividade tem um
lugar próprio no tempo e um lugar próprio no espaço. Aquilo que é criado pela vida
não pode ser morto ou imóvel. As maneiras de produzir mudam; as relações entre o
homem e a natureza mudam; a distribuição dos objetos criados pelo homem para poder
produzir e assim reproduzir a sua própria vida podem igualmente mudar. (SANTOS,
1978, p 162/163).

Para exemplificar a relação existente entre sociedade e organização do espaço, vejamos


as seguintes figuras:

Figura 7 – Onde está a natureza?

Aula 2 Organização do Espaço 37


Se perguntarmos o que vemos, somos capazes de responder sem vacilar: um carro,
uma cadeira. Mas, se perguntarmos como eles são feitos, para que eles são feitos, em que
período foram fabricados, quais os materiais utilizados, vamos precisar de mais elementos
para chegar próximos de uma resposta plausível. Assim, sobre o visível, encontra-se uma
enorme quantidade de informações que não aparecem de imediato, pois estão incrustadas
nos objetos.

O mesmo exercício vale para o espaço geográfico. Quando olhamos, somos capazes
de identificar formas, contornos, sinais... Adentramos suas formas como se fossem portas
abertas para um universo complexo de informações, sentidos, simbologias, técnicas, idéias.
Sob um objeto fixo, subjaz um conjunto de informações que não aparecem de imediato e
que o põe em movimento, dando fluxo e vida a sua existência. O ato de criar espaço está
submetido às regras dialógicas que satisfazem as distintas maneiras de (dês) organização
de uma sociedade. Quando construímos uma casa, um bairro, uma cidade, é uma sociedade
que se revela em fragmentos.

Figura 8 – “Tá vendo aquele edifício, moço, ajudei a levantar...” (Lúcio Barbosa).

O espaço é a movimentação geral da sociedade edificando uma massa heterogênea


de formas que se impõem ao cotidiano, ao trabalho, ao lazer. Essas formas, por vezes,
seduzem, por vezes, aprisionam. Em alguns momentos são reais, em outros, imaginárias.
Ao assumir as diferentes faces de uma mesma realidade, pode engana o leitor desavisado.

Em verdade, todas essas faces do espaço são cunhadas na fetichização de um processo


de criação que é sempre histórico, gravado com as marcas indeléveis do tempo, em que a
natureza primeira se transforma em uma segunda natureza, que por sua vez se transforma
novamente. Assim, podemos dizer que a natureza do espaço está em revelar as distintas
faces da natureza humana em sua trajetória pela Terra. Nessa trajetória, encontramos no
espaço a acumulação desigual dos tempos.

38 Aula 2 Organização do Espaço


Resumo
Nesta aula, abordamos a relação existente entre espaço e tempo,
contextualizados em uma sociedade capitalista. Mostramos a interdependência
existente entre a organização social e a interpretação do espaço geográfico.
Demonstramos como se realiza a acumulação desigual do tempo a partir da
relação de coexistências e complementaridade que se realiza entre homem e
natureza, mediatizados pelas relações técnicas e de trabalho, as quais variam
com o desenvolvimento social. Por fim, concluímos que a organização espacial
é uma criação histórica que sintetiza a transformação de uma natureza natural
em uma natureza transformada, alimentando um ciclo de trocas mútuas e
dependentes.

Autoavaliação
a) A partir do que você estudou e realizou ao longo desta aula, defina o que é o espaço
geográfico como objeto de estudo da Geografia.

b) Crie uma situação-problema de caráter geográfico em que estejam presentes as


variáveis espaço, tempo e sociedade.

c) Explique a situação criada por você utilizando os conhecimentos discutidos nesta aula
a respeito do espaço, do tempo e da sociedade.

Aula 2 Organização do Espaço 39


Referências
CATANI, Afrânio Mendes. O que é capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.

DOWBOR, Ladislau. O que é capital. São Paulo: Brasiliense, 1985.

MENDONÇA, Francisco; KOSEL, Salete (Org.). Elementos de epistemologia da geografia


contemporânea. Curitiba: UFPR, 2004.

SANTOS, Douglas. A invenção do espaço: diálogos em torno do significado de uma categoria.


São Paulo: UNESP, 2002.

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica.
São Paulo: HUCITEC, 1978.

______. Pensando o espaço do homem. São Paulo: HUCITEC, 1986.

______. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996.

Anotações

40 Aula 2 Organização do Espaço


A Organização do Espaço:
um desafio inter-trans-disciplinar?

Aula

3
Apresentação

E
sta aula é uma ampliação/aprofundamento das aulas anteriores. Trazemos para você
uma abordagem da organização espacial à luz dos desafios inter-trans-disciplinares.
Assim, trataremos do modo como se dá a relação entre objeto/problema/método
no seio da Geografia e as interfaces que se estabelecem com outras ciências e saberes,
de maneira a definir o caráter disciplinar e transdisciplinar que movimenta a produção
geográfica. Pretende-se destacar como os problemas espaciais podem ser compreendidos,
explicados e analisados no âmbito dessa ciência e quais as relações que estabelecem com
outros campos, demonstrando a complexidade que rege o conhecimento.

Bons estudos!

Objetivos
Compreender a relação objeto/problema/método na
1 Geografia e as interfaces com outras ciências.

Saber definir inter-trans-disciplinaridade.


2
Compreender os significados da inter-trans-
3 disciplinaridade para Edgar Morin e Milton Santos.

Elaborar síntese a respeito da relação entre objeto/


4 problema/método no âmbito da ciência geográfica,
articulando a uma visão inter-trans-disciplinar.

Aula 3 Organização do Espaço 43


Há uma pedra no meio do caminho:
a Geografia precisa do Tempo

C
oncluímos a aula anterior mostrando como o tempo passou a reger a vida das pessoas
enquanto células individuais, mas também como isso é importante para mover uma
determinada sociedade com características capitalistas. Você pôde ver como o
espaço geográfico participa desse enredo, sendo em alguns momentos o ator principal e,
em outros, coadjuvante.
Agora, você vai adentrar mais um pouco nesse enredo e perceberá que, a cada página
virada dessa história, há mais conexões a serem feitas. Não é só com o tempo histórico que
a Geografia dialoga, comunica-se também com um conjunto de disciplinas e/ou áreas do
conhecimento para compreender os problemas espaciais.
Antes, porém, vamos voltar um pouco à aula passada, retomando a interferência do
tempo, metrificando as ações humanas e como isso atravessa o dia-a-dia da sociedade.
Da aula passada para esta, muita coisa pode ter acontecido. Diariamente, quando você
se olha no espelho, pela manhã para fazer a barba, pentear o cabelo, fazer a maquiagem,
percebe que o tempo está passando, seja lá o que isso signifique. É uma pequena ruga que
não existia que agora insiste em aparecer, é um fio de cabelo branco que se apresenta em
meio a tantos louros, negros, ruivos. É uma foto amarelada que mostra, sem subterfúgios,
você e o movimento dos acontecimentos naquilo que chamamos de tempo.
Já havia elaborado a aula anterior quando me deparei com mais um conjunto
de reflexões a respeito do tempo, o qual achei importante trazer para você, visando
ampliarmos a discussão sobre o espaço geográfico. Você perceberá por que o homem,
ao querer compreender o seu deslocamento, os eventos ou acontecimentos que ocorrem,
sente necessidade de colocá-los em uma escala temporal. E mais, terá contato com alguns
pensadores do tempo, o que lhe permitirá verificar que este assume definições distintas, a
partir da área de atuação de cada um desses estudiosos.

44 Aula 3 Organização do Espaço


Pois bem, tanta informação desperta mais curiosidade, na mesma medida em que
mantém alerta a questão: por que o homem tem necessidade de se guiar pelo tempo?

Essa necessidade, talvez, resulte da falta de informação que o homem teve quando
emergiu na Terra. No entanto, a escassez de informações prévias foi compensada pelo
dispositivo da linguagem, indispensável para a comunicação, adaptação, reflexão, vivências
e sentidos. Assim, compreender a si mesmo passou a ser um exercício que supunha
conhecer o nascer e por do sol, os pontos que iluminam o céu, o desencontro do dia e da
noite na esfera terrestre, a diversidade de espécies e sua localização em áreas distintas, o
aparecimento e a extinção dos seres, a água, o ar, o frio, o calor, o mar, a floresta, a terra,
os minerais, os ventos, entre tantos outros. Esse cenário submeteu o homem a uma busca
incessante pelo conhecimento do seu habitat, impulsionando-o a uma reflexão que coloca
os elementos percebidos em um movimento de anterioridade, atualidade e posterioridade.

Dito de outra forma, o homem, observando o seu entorno, elabora uma interpretação que
diz sobre o que ver, mas não é só; quer saber de onde veio e procura registros anteriores. Não
contente ainda com o que sabe, quer saber como será e faz projeções. O mundo conhecido
deixa de ser uma experiência localizada ou enraizada em um ponto específico da Terra, para
navegar em ritmos e velocidades distintos. Tal condição requer desse próprio homem saber
encontrar as explicações que o satisfaçam, submetendo-as a escalas distintas. As alterações
encontradas no entorno, como, por exemplo, em uma planta que nasce, cresce e morre, são
vistas como uma distensão de algo que não é visto, mas que precisa ser compreendido para
se saber por que ocorre; é uma das suposições para se entender a existência do tempo. A
partir daí, criamos e alimentamos a tese de que o tempo passa, que as coisas se modificam
com o tempo.... O tempo passa a enredar as nossas ações cotidianas.

No texto a seguir, você vai ver situações que estão ancoradas nessa visão de tempo em
movimento.

Aula 3 Organização do Espaço 45


O tempo perpassa a existência de tudo, dos seres vivos à matéria inorgânica.
Os dinossauros dominaram a Terra por mias de 150 milhões de anos. Deixaram
como marcas de passagem suas carcaças mineralizadas, para encanto das
crianças e dos paleontólogos. Os tubarões vivem há 400 milhões de anos, mas,
como aconteceu com seus parentes lagartos, um dia também serão extintos.
As estrelas, que parecem eternas, nascem, vivem e morrem, ainda que isso
possa significar bilhões de anos. As azuis e brancas são jovens e quentes.
As amarelas são bem velhas e algumas já podem estar mortas. Apenas nas
suas imagens viajam pelo espaço tempo, à velocidade da luz, como fantasmas
cósmicos. Habituamo-nos a identificar o fluxo do mundo com a passagem do
tempo, mas curiosamente não sabemos [ao certo] o que o tempo é. Sua natureza
controvertida tem preenchido páginas e páginas de escritos da Filosofia, caso
de Henri Bérgson, à Cosmologia, com Albert Einstein, que fundiu espaço e
tempo num contínuo, o espaço-tempo. Sem falar da literatura, na qual autores
como Proust escavam fundo em busca de um tempo perdido.

(PARADOXOS..., [2007?], p. 3).

Atividade 1
Mas, será que é o tempo que se movimenta? Ou são as coisas em seu
movimento que criam a sensação de que o tempo existe e perpassam todas as
coisas? O que você acha disso?

46 Aula 3 Organização do Espaço


Agora, leia o que dizem alguns intérpretes do tempo.

Santo Agostinho – teólogo que viveu no século V d.C

Grande conhecedor dessa matéria, ficou surpreso quando lhe


perguntaram o que era o tempo. Faltaram-lhe as palavras para
definir com precisão esse ente que atravessa a todos, mas que
se torna silencioso quando exige uma definição.

Benjamin Franklin – Presidente dos Estados Unidos da América,


século XVIII.

Tempo é dinheiro!

Albert Einstein – Físico que viveu no século XX.

Em carta a um amigo, esse físico demonstrou que o passado,


o presente e o futuro são apenas ilusões, ainda que tenazes. A
teoria da relatividade, criada por ele, nega qualquer significado
absoluto e universal ao momento presente. Dois eventos que
ocorrem no mesmo momento, quando observados a partir
de um determinado quadro de referência, podem ocorrer em
momentos diferentes.

Interpretando em parte as idéias de Einstein, o físico Paul Davies afirma que:

Esse tipo de desencontro torna cômica qualquer tentativa de conferir um status


especial ao momento presente. Se você e eu estivéssemos em movimento relativo,
um evento que eu poderia considerar como parte do futuro ainda não decidido poderia
já existir para você no passado fixo. Conclusão mais imediata disso é que tanto o
passado quanto o futuro são fixos. Por essa razão, os físicos preferem pensar o tempo
como inteiramente mapeado - uma paisagem temporal (timesacape), em analogia a
uma paisagem espacial (landscape) – contendo todos os eventos passados e futuros
(DAVIES, 2007?, p. 11-12).

Aula 3 Organização do Espaço 47


Machado de Assis – Escritor que viveu no século XIX

O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma


flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também
se pode bordar nada. Nada em cima do invisível é a mais sutil
obra deste mundo, e acaso do outro.

Franklin Leopoldo e Silva – Professor de história da filosofia


que vive no século XXI

E o que o real tem de mais íntimo e de mais essencial é aquilo que


para nós é mais fugidio, evanescente e imperceptível: o tempo. A
realidade de direito percebida está na dimensão da invisibilidade.

A essência da realidade é imperceptível não porque a transcende, mas porque está


profundamente arraigada no seu interior. [...]. A luta pela expressão é o esforço de fixar
esse movimento absoluto do tempo; e é um esforço da imaginação, que, portanto, é órgão
do conhecimento, de acesso mais profundo e mais direto à realidade. (SILVA, 1992, p.147)

Adauto Novaes – Jornalista e professor que vive no século XXI

O que é a experiência com o tempo? [...] Por que memória e futuro?


Nossa história foi construída no esquecimento daquilo que Paul
Valéry chamou de as duas maiores invenções da humanidade, o
passado e o futuro.

Sem passado e sem futuro, essa história oficial esvazia não apenas nossos pensamentos,
mas, principalmente, a própria idéia de História. Narrar a história de um povo a partir
apenas do tempo presente, tempo fragmentário, direcionado, “instante fugidio tido como
único tempo real” é negar a articulação de épocas e situações diferentes, o simultâneo, o
tempo da história e o pensamento do tempo. Ora, é essa articulação que permite diferenciar

48 Aula 3 Organização do Espaço


condutas múltiplas no tempo e reconhecer que práticas políticas e culturais, consideradas
estranhas e indesejáveis em determinado momento, sejam vistas de maneira diferente em
outro. Esquecer o passado é negar toda efetiva experiência de vida; negar o futuro é abolir a
possibilidade do novo a cada instante. Mais ainda, as idéias de justiça, liberdade, alteridade,
pensamento tornam-se abstrações, vazias no espaço e no tempo, a partir do momento em
que qualquer ação já se sabe “eternamente feita e absolutamente irreparável”. (NOVAES,
1992, p. 9).

Atividade 2
Será que o que você descreveu na atividade 1 tem alguma relação com
1 o que dizem esses pensadores do tempo? Mostre as semelhanças e
diferenças existentes.

Teste a importância do tempo na sua vida:


2
a) conte quantas vezes você se refere a ele no seu dia;

b) identifique em quais situações você se refere a ele;

c) cite as referências que você usa para medir o tempo.

Aula 3 Organização do Espaço 49


Muito bem. Agora, é possível que com as atividades você tenha sentido a força do
tempo a ritmar a sua vida. E mais ainda: deve ter constatado que ele se tornou mais
concreto, na medida em que exigiu de você colocar o seu fazer em horas, minutos,
segundos. Essa condição é a expressão máxima da sociedade moderna, que foi capaz de
inventar um instrumento que marca com precisão as horas gastas em cada ação. Esse
instrumento poderoso é o relógio.

Figura 1 – E o tempo não pára...

Fonte: <www.masterfile.com>

A necessidade de marcar as divisões do dia e da noite fez antigos egípcios, gregos e


romanos criarem relógios de sol, de água e outros instrumentos cronométricos. Mas, é o
relógio mecânico, criado por volta do século XIII, que foi capaz de impulsionar reviravoltas,
sempre crescentes, em termos de aperfeiçoamento da medição precisa do tempo. Essa
condição permitiu fracionar todas as atividades desenvolvidas e determinar equivalentes
de valor, capazes de direcionar, no dia-a-dia, a otimização dos lucros, do trabalho e da
produção. O relógio é máquina perfeita da modernidade. Ele é capaz de tornar independentes
e articuladas as ações dos homens sobre o espaço em escalas distintas, suprimindo os
limites da localização geográfica, da rotação da Terra, das variações climáticas. Sabe-se, a
partir do relógio, precisar as ações no tempo, em espaços distintos. Assim, veja que ocorre
uma alteração significativa em termos de organização espacial. Os elementos da natureza,
como o Sol e a água deixam de ser referentes para guiar as atividades humanas. O homem
não acorda mais com os primeiros raios solares, mas com ruídos do despertador do relógio
programado para despertar na hora certa. Isso, que é programado na esfera da casa, é
apenas um sinal daquilo que ocorre em todos os lugares. Os espaços funcionam obedecendo
à sincronicidade imposta pelo tempo do relógio. Nessa condição, o tempo é sincopado,
metrificado para permitir o controle, o êxito e a eficiência dos mecanismos necessários à
reprodução e recriação de uma dada sociedade.

Após as leituras e a realização das atividades, você deve estar se perguntando “por
quê?”; “por que será que o ser humano tem a necessidade de ritmar a vida no tempo?”. E
mais: “e o espaço geográfico, onde entra nisso tudo?”.

Vamos lá! O percurso que envolve o conhecimento é longo, pode ser cheio de atalhos,
mas na essência é um encontro. Assim, o espaço geográfico vai se cristalizando e se
transformando nas distintas formas do homem pensar e agir sobre a natureza, mediado

50 Aula 3 Organização do Espaço


pelo ritmo do trabalho, da técnica e do conhecimento. Tudo isso torna a leitura do espaço
geográfico uma tarefa complexa, pois nele vamos encontrar camadas de fixos interligados
por fluxos, revelando as condições de espacialização da sociedade.

Figura 2 – Espaços e fluxos

Fonte a: <www.masterfile.com>. b: <http://oglobo.globo.com/fotos/


2007/03/05/05_PHG_sp_25marcoaberta.JPG>.

A interpretação do espaço geográfico supõe saber relacionar os fenômenos às múltiplas


escalas, local, regional, global. E mais, saber lidar com as interfaces entre os distintos saberes
construídos em períodos e áreas distintas da Geografia. Essas interfaces constituem-se de
linhas, pontos e nós que cingem a trajetória do conhecimento e as práticas utilizadas, tendo
como bússola a interdisciplinaridade.

Para problematizar essa questão, observe a imagem a seguir.

Figura 3 – Sertão

Fonte: Jucicléa Medeiros de Azevedo(2007).

Será possível fazer uma leitura geográfica dessas imagens? A resposta é sim. Mas,
como proceder? É necessário, inicialmente, identificar um tema, que pode ser degradação
ambiental. Após a identificação do tema, é necessário perguntar: “por que isso acontece?”.
Ao fazer essa pergunta, você está procurando encontrar as causas que são responsáveis pela
ocorrência do fenômeno. A partir daí, você irá sentir-se estimulado a querer compreender,
explicar, analisar tais causas. Nesse item, começam a aparecer as dificuldades. É que não
há uma só explicação, um único caminho, uma única teoria... Na diversidade encontrada, o
leitor precisa tomar um caminho. Essa decisão só pertence a ele. Assim, ele tem diante de
si diversas opções, cujos resultados possibilitarão dar respostas próximas ao que foi visto.
A questão fundamental é: qual o caminho que permite uma maior aproximação com a
realidade?

Aula 3 Organização do Espaço 51


Essas escolhas são sempre marcadas por tensões e debates que se estabelecem no
seio da ciência e do próprio indivíduo produtor de ciência. Estamos falando de método, que,
de forma sintética, pode ser definido como caminho. E como tal, parafraseando o poeta
Antônio Machado, o caminho se faz ao caminhar. É nele que você irá encontrar as pedras
e os espinhos, as veredas e as estradas largas, as bifurcações e as continuidades. Limpar
o caminho, antecipadamente, como meio de proteção para evitar se perder, pode ser a sua
própria perdição, na medida em que o afastamento do problema do local no qual ele está
inserido reduz o seu dinamismo e a sua capacidade de revelar-se, levando à interpretação e
formulação de sentenças em sínteses precárias e distantes do dinamismo fenomenológico.
Na Geografia, esse caminho está marcado por abordagens positivistas, neo-
positivistas, dialéticas, fenomenológicas, hermenêuticas, que você estudou bastante
quando aprendeu a respeito das correntes de pensamento geográfico. Em cada uma,
havia um caminho de interpretação que interferia diretamente na definição do que é
Geografia, qual o seu objeto de estudo e os conceitos/noções pertencentes a essa área de
conhecimento. Aqui, nós vamos tomar o método em seu sentido etimológico de caminho,
pois este é transversal a todas as classificações anteriores e nos permite adentrar na
natureza do problema, antes de submetê-lo a classificações.
A leitura geográfica das imagens anteriores supõe um problema a ser compreendido
e, portanto, requer de você saber guiar o seu olhar para encontrar os caminhos da revelação
fenomenológica. Portanto, não há a priori uma interpretação pré-estabelecida, mas indícios
que sugerem possibilidades de leituras, cuja efetivação se constitui um exercício de juntar
pedaços, fragmentos dispersos em campos e registros distintos. Assim, a interpretação
dos fenômenos ocorre pelo entorno, pelas franjas, já o núcleo tem uma temperatura
efervescente que queima, ofusca e inibe o olhar do leitor. Com isso, queremos dizer que
todo conhecimento das coisas se dá por aproximação, cuja síntese será sempre parcial,
pois sujeita a reorganizações.

Atividade 3
Observe mais atentamente as imagens e crie duas hipóteses capazes
1 de explicar “o que se apresenta na imagem”.

Observação – Estamos considerando aqui hipótese como uma suposição


provisória, que serve de guia para uma investigação que permita dar ordenamento
lógico àquilo que se apresenta à realidade e sugere uma explicação.

a) Descrição da hipótese 1 b) Descrição da hipótese 2

Agora, tente comparar as suas hipóteses e procure identificar quantos


2 elementos aparecem e que estabelecem relações entre si.

52 Aula 3 Organização do Espaço


Aula 3 Organização do Espaço 53
Então, para esses elementos que apareceram e que parecem terem relações entre
si, precisam ser compreendidos e explicados, exigindo de você mais um procedimento:
selecionar de um extenso panorama de informações aquelas que são fundamentais, os
conceitos que são pertinentes, as teorias que auxiliam na condução da reflexão. Desse
modo, você também irá perceber que a explicação dos fenômenos se espraia por diversos
ramos do saber que são simultaneamente geográficos, históricos, sociológicos, biológicos...

Parece que, quando se elege o problema e não a área de conhecimento, o que se revela
é sempre uma explicação de fronteira, ou seja, de transição entre uma coisa e outra. Ocorrem
mais simbioses do que cisões.

Essa condição é bastante exigente. Pense: você é um sujeito que está sendo formado
em Geografia e, por isso, há todo um caminho a ser seguido na direção do reconhecimento
do que é específico ou particular dessa área. Se for assim, o que fazer para encontrar a
natureza do espaço geográfico? Saber dialogar com as distintas áreas do saber, levando
para o seio do debate “as metamorfoses do espaço habitado” como sendo produto das
diversificadas formas do homem se relacionar com a natureza, criando formas espaciais
singulares. É do jogo das singularidades que emergem as sínteses esclarecedoras a respeito
dos fenômenos. O singular não é o que é próprio de um fenômeno, mas as distintas faces
que um mesmo fenômeno apresenta.

No espaço, os problemas se apresentam como um todo. Conforme você pôde ver na


imagem, não é possível separar o homem do solo, da erosão, da queimada, da degradação.
A inseparabilidade dos elementos coloca para o homem dificuldades de interpretação, o que
ele procura resolver submetendo o problema a parcelamentos, cisões, fragmentações. Esse
procedimento, que pode ser considerado um esquartejamento, resulta em um afastamento
da compreensão do fenômeno em sua totalidade.

Na disciplina Metodologia Científica, você aprende como o conhecimento se torna


ciência, bem como discute a respeito da especialização deste em áreas como Geografia,
História, Física, Biologia e assim por diante. Compreende que a partir de um dado momento
da nossa história ocorreu um processo de fragmentação do saber, o qual resultou na
compreensão fragmentada dos problemas, visando, cada vez mais, a se aproximar dos
fenômenos em busca de sua verdadeira face. O caminho para isso encontra-se na precisão,
na objetividade, na cisão entre o que é real e o que não é real, o que se pode medir e o que é
incomensurável. Dessa forma, nem todos os problemas podem ter uma abordagem científica,
na medida em que há fatos, acontecimentos, que fogem à precisão e à quantificação exigidas
pela ciência. Tal abordagem ancora-se em procedimentos e técnicas, cujo centro estratégico
está no controle que o sujeito conhecedor tem do objeto conhecido. Nesse sentido, o objeto
é submetido à lógica interna das regras que geram e criam um conhecimento que se qualifica
de científico.

Esse tipo de abordagem foi e é experimentado amplamente em áreas que se denominam


físicas, exatas e biológicas, mas também por aquelas que se denominam de humanas, como
Geografia, Ciências Sociais, Antropologia.

54 Aula 3 Organização do Espaço


Você já deve ter percebido aonde estamos querendo chegar: à premissa de que é no
interior da própria ciência que são geradas as divisões e cisões para a compreensão dos
problemas.

Dito de outra forma, é no seio da ciência que ocorre a especialização dos problemas
em físicos, geográficos, biológicos, antropológicos etc. Os problemas em si não têm uma
natureza específica, sendo, portanto, simultaneamente, físicos e humanos. A realidade dos
fenômenos obedece a uma lógica sistêmica complexa em que ocorrem movimentos de
autonomia e dependência, entre as partes e o todo. O relevo dado às partes pela ciência, a
partir do século XIX, resultou em uma hierarquização e seleção da realidade pelos diversos
ramos do saber. Por isso, cada ciência tem um objeto de estudo que representa o seu cartão
de acesso e reconhecimento no panteão da Ciência.

Meio

Ação Ação
1ª Natureza 2ª Natureza
humana humana

Transformado

Figura 4 - Espaço da Geografia

A Geografia tem como objeto o espaço ou a morfologia que emerge a partir da


ação humana. No espaço, estão tatuadas as diversas formas de interação, interesses e
procedimentos que se apresentam entre o homem e a natureza. No espaço, realiza-se a teia
complexa da vida que mistura formas criadas e recriadas pelo homem.

Aula 3 Organização do Espaço 55


Atividade 4
Agora, volte à Figura 3 (Sertão) e procure encontrar uma explicação
1 geográfica para ela, tomando como parâmetro o que foi dito a respeito
da ciência e da Geografia.

Você achou difícil responder à questão anterior? Por quê?


2

Se a sua resposta foi sim e a justificativa foi a dificuldade de encontrar um conceito


geográfico que pudesse dar suporte a sua explicação, já que, para responder sobre o que
a imagem sugere, é necessário ativar conhecimentos que provêm de áreas como ecologia,
edafologia ou pedologia, climatologia, sociologia, entre outras, você considerou as imagens
como um problema que ultrapassa a fronteira geográfica, sendo necessário estabelecer com
outras ciências uma aliança dialógica para poder discorrer sobre elas.

Se sua resposta foi não, o esforço reflexivo fixou-se na fronteira geográfica, levando
você a querer interpretar o problema à luz dessa ciência especificamente.

Se você ficou entre o sim e o não e procurou encontrar o talvez, demonstra a abertura
para o diálogo com os demais ramos do conhecimento, sendo a Geografia, simultaneamente,
protagonista e coadjuvante nesse processo, que envolve faces e interfaces diversas.

Assim, você deve ter compreendido que há o envolvimento de áreas distintas da


Geografia, as quais também estão preocupadas com a compreensão de fenômenos que são
estudados no âmbito dessa ciência. Pois bem, agora vamos avançar e refletir sobre o porquê
disso e se há zonas de intersecção entre elas.

Conforme foi dito anteriormente, os problemas apresentam-se enquanto totalidade. A


sua fragmentação é resultado da especialização do conhecimento científico. Agora, é preciso
fazer o caminho inverso e procurar discutir como as especializações podem dialogar para
construir explicações mais abrangentes dos problemas.

Você está cada vez mais se enredando pelos meandros dos discursos e práticas
inter-trans-disciplinares.

Leia algumas afirmações a esse respeito.

56 Aula 3 Organização do Espaço


Edgar Morin

Para esse pensador, a inter-trans-disciplinaridade pode ser vista


como um desafio complexo. Isso porque exige conceber o
entendimento dos problemas a partir do que está ligado, do que é
tecido em conjunto. Nas palavras de Morin (2002, p. 566):

se quisermos um conhecimento segmentário, encerrado


e a um único objeto, com a finalidade única de manipulá-
lo, podemos então eliminar a preocupação de reunir,
contextualizar, globalizar. Mas se quisermos um
conhecimento pertinente, precisamos reunir, contextualizar,
globalizar nossas informações e nossos saberes, buscar,
portanto, um conhecimento complexo.

Para ele, a complexidade é um exercício de fronteira, de ultrapassagem de fronteiras, de


“contrabando de saberes”. É um problema para a própria ciência clássica que se tornou matricial
ao orquestrar a explicação dos fenômenos pela especialização. Em Morin, a complexidade é
um problema, é um desafio e não uma resposta. Nesse desafio, está o saber reunir o que está
disperso. A inter-trans-disciplinaridade é, portanto, uma atividade que religa e reorganiza os
saberes, assumindo a priori os problemas como multidimensionais.

Milton Santos

Em sua abordagem sobre o espaço geográfico, Milton Santos


chama a atenção para a necessidade da interdiscipinaridade, na
medida em que há uma relação entre desenvolvimento técnico e
a constituição de uma configuração espacial particular, ou seja, a
cada mudança de padrão tecnológico, ocorre uma nova forma de
organizar o espaço. O geógrafo não pode prescindir da compreensão
dessa inter-relação, sob pena de perder de vista a significação do
espaço e dos instrumentos de trabalho, produzindo casas, estradas,
fábricas, barragens, entre outros. Em realidade, para Santos (1978,
p. 108/109),

a lista de ciências chamadas afins da geografia se escrevia acompanhada de nomes


como história, sociologia, economia (se nos limitarmos a geografia humana) tornou-se
muito mais longa porque devemos acrescentar-lhes outros domínios do saber como
a tecnologia (ciência das forças produtivas) e ciência política, o urbanismo, a técnica
gerencial, a semiologia, a epistemologia, os negócios internacionais, a história das
ciências, a ciência das ciências, chamada cienciologia, e mesmo a lógica e a dialética.

Aula 3 Organização do Espaço 57


Esses dois fragmentos anteriores informaram que, associado a um processo de
especialização do saber, ocorre, paralelamente um movimento de integração entre as distintas
áreas do conhecimento. Essa integração não se realiza automaticamente, mas requer do
sujeito saber, a partir do seu ponto de vista, articular outros pontos de vista.

Em Edgar Morin, essa proposição é radical. O avanço das especializações na direção


das hiper-especializações tem necrosado a capacidade de reflexão articulada da ciência em
torno de uma compreensão abrangente dos problemas. Saber exaustivamente como funciona
uma parte de um problema não garante a compreensão deste. Da mesma forma, procurar
a explicação do todo, esquecendo as partes, pode criar uma abordagem generalizante,
que pouco revela da dinâmica interna e externa dos fenômenos. Assim, o desafio é saber
compreender os problemas à luz da dinâmica de autonomia e dependência que regem os
movimentos do todo nas partes e das partes no todo.

Para esse pensador sem fronteiras, o conhecimento é adquirido por meio de um


caminho complexo, ou seja, é no encontro das variáveis que são tecidas em conjunto que
se tem a perspectiva de se aproximar da realidade fenomênica. A estratégia básica nessa
empreitada é a dialogia. Mas, o que isso significa? Significa que para conhecer é necessário
submeter o que já foi dito e sistematizado a zonas de conflito em que se pode colocar idéias
contrárias àquelas estabelecidas, sendo estas também verdadeiras. Nesse patamar, têm-se
verdades, mesmo que contraditórias, a respeito de um mesmo fenômeno. Assim, a dialogia
possibilita o contato entre idéias antagônicas, mas que podem se tornar complementares na
identificação e compreensão de um problema. Nesta, não há a necessidade de se confundir
ou construir sínteses totalizantes, mas sim permitir a pluralidade e diversidade de pontos de
vista. Em Morin, as ciências não são auxiliares entre si, mas são auxiliares à revelação dos
problemas. Por isso, a base teórica, metodológica e conceitual se organizam em função de
uma reorganização no interior da própria ciência. Compreender os problemas é reorganizar
as estratégias para conhecer.

Dessa perspectiva, uma Geografia inter-trans-disciplinar supõe trabalhar a organização


espacial, interligando ou interconectando o tempo ao espaço, o físico ao humano, o natural ao
artificial, o singular ao universal, o regional ao global. Uma Geografia inter-trans-disciplinar
supõe, antes de tudo, geograficizar, ou seja, encontrar no espaço a intrínseca relação que
se estabelece entre o movimento e o repouso tramado a partir das condições bio-sócio-
geográficas da natureza no homem, do homem na natureza.

Em Milton Santos, a proposição é menos radical. Pretende o autor manter a autonomia


da Geografia frente às demais ciências. Para ele, é necessária uma abordagem conceitual
geográfica para que esta possa dialogar com os demais campos, sem perder as fronteiras
disciplinares que lhes dá identidade. Em Santos, o problema deve ser entendido em sua
natureza geográfica, que requer uma abordagem conceitual precisa, sendo os demais campos
do conhecimento considerados auxiliares ou afins à compreensão geográfica. Conceitos
como região, paisagem, lugar e território devem ser precisamente teorizados pelos geógrafos
para alimentarem o estudo do espaço como objeto da Geografia. A organização do espaço
será uma interpretação guiada por esses conceitos, auxiliado por outros, como globalização,
técnica, informação, conhecimento. O espaço, como uma instância da sociedade, deve ser

58 Aula 3 Organização do Espaço


entendido na articulação entre os objetos distribuídos sobre o território ou sua configuração
geográfica e a maneira como esses objetos aparecem aos nossos olhos em sua continuidade,
que é a paisagem. Nesta, há a necessidade de se compreender o que dá vida a esses objetos,
ou seja, os processos que os instituíram alimentados por funções que se realizam através de
formas. Bem, mas isso já são elementos para as nossas próximas aulas.

Na aula seguinte, você verá como essas noções auxiliares participam da produção do
conhecimento geográfico. Até lá!

Resumo
Nesta aula, foi discutida a relação entre objeto/problema/método/ciência em uma
perspectiva inter-trans-disciplinar, problematizando a necessidade de trabalhar
nessa direção, apontando, ao mesmo tempo, o desafio que se apresenta na
construção do conhecimento geográfico. Você estudou conceitos/noções do
que é o método, do papel do sujeito, das interfaces que se estabelecem na
produção do saber. De forma resumida, viu como a inter-trans-disciplinaridade
é concebida por Edgar Morin e Milton Santos, quando foi ressaltado o desejo
de ambos em produzir o conhecimento nessa perspectiva, como também as
diferenças entre os dois para se chegar a esse objetivo. Por fim, em toda a aula,
você foi chamado à reflexão e à sistematização do que foi aprendido, colocando
em prática a idéia de que é fazendo e refletindo sobre o que foi feito que se
realiza uma aprendizagem significativa.

Autoavaliação
A partir da leitura e das atividades realizadas, no decorrer desta aula, como você
1 define inter-trans-disciplinaridade?

O que significa inter-trans-disciplinaridade para Edgar Morin e para Milton Santos?


2
Você acha que a inter-trans-disciplinaridade é importante para a compreensão do
3 objeto de estudo da Geografia? Justifique sua resposta.

Aula 3 Organização do Espaço 59


Referências
DAVIES, Paul. Esse fluxo misterioso. In: PARADOXOS do tempo. Revista Scientific American
Brasil, São Paulo: Ediouro, n. 21, [2007?]. Edição especial. p. 10-15.

MORIN, Edgar. O método IV: as idéias: a sua natureza, vida, habitat e organização. Portugal:
Publicações Europa América, 1991.

______. O desafio da complexidade. In: Edgar Morin. A religação dos saberes: um desafio
do século XXI. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p. 559-567.

NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PARADOXOS do tempo. Revista Scientific American Brasil, São Paulo: Ediouro, n. 21,
[2007?]. Edição especial

SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. São Paulo: HUCITEC, 1978.

______. Espaço e método. São Paulo: Nobel, 1985.

SILVA, Franklin Leopoldo;. Bérgson, Proust. tensões do tempo. In: NOVAES, Adauto (Org.).
Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 141-153.

Anotações

60 Aula 3 Organização do Espaço


Anotações

Aula 3 Organização do Espaço 61


Anotações

62 Aula 3 Organização do Espaço


A dinâmica entre o global
e o local na globalização

Aula

4
Apresentação

N
as aulas anteriores, estudamos a relação homem/natureza e sua importância para a
emergência do meio geográfico. Além disso, discutimos um dos conceitos básicos
da Geografia: o de espaço geográfico.

Prosseguindo a análise sobre o espaço, iremos abordar um tema de suma importância


para entendermos a sociedade atual. Trata-se das relações globais-locais (e vice-versa),
viabilizadas pelo meio técnico-científico-informacional no período da globalização.
Focalizaremos, nesta aula, as características do meio técnico-científico-informacional,
o significado do processo de globalização, a relação entre Revolução Técnico-Científica e
globalização e, nesse contexto, a dinâmica entre o local e o global na atualidade.

Objetivos
Caracterizar o meio técnico-científico-informacional.
1
Apreender o significado do processo de globalização.
2
Entender a relação entre a Revolução Técnico-Científica
3 e a globalização.

Compreender a dinâmica das relações entre o local e o


4 global no contexto da globalização.

Aula 4 Organização do Espaço 65


Navegando pelas teias do meio
técnico-científico-informacional
e da globalização
Você já parou para pensar como as coisas mudaram nos últimos tempos? Parece que
tudo se acelerou e se tornou mais próximo...

Você sabia que, em 1950, um avião cumpria o percurso entre Londres (Inglaterra) e
Nova York (EUA) em 18 horas e que, desde 1976, os aviões supersônicos l (aqueles que
têm uma velocidade maior que a do som) levam apenas cerca de 3,5 horas para fazer essa
mesma rota? Você já observou quantas pessoas do seu convívio têm celular? E quantas
usam a internet, se comunicando com pessoas que estão em outros países e até em outros
continentes? Pois é, os meios de transporte e comunicação estão no centro de todas
essas modificações que nos dão a impressão de que o mundo ficou menor. O que será que
aconteceu no final do milênio?

Fonte: <www.masterfile.com>. Acesso em: 4 maio 2008.

Figura 1 - Meios de transportes e comunicação.

66 Aula 4 Organização do Espaço


Zarpando...
Você está sendo convidado a fazer essa maravilhosa viagem em busca do
conhecimento que permitirá entender o que tem provocado ou contribuído para
tantas mudanças.

As últimas décadas do século XX e o início do século XXI estão sendo marcados por
mudanças significativas que afetam a forma de pensar e de agir do homem. Tais mudanças
estão vinculadas ao nível de desenvolvimento científico-tecnológico, que influenciou as
relações sociais e ampliou os horizontes da criação, inovação e reinvenção do saber-fazer
humano, imprimindo um novo ritmo de vida, assinalado pela aceleração do tempo e pelo
encurtamento das distâncias. Analisando esse período, Santos (1994, p. 29) assim se
manifesta: “acelerações são momentos culminantes na História, como se abrigassem forças
concentradas, explodindo para criarem o novo”.

Mudanças... acelerações... forças concentradas, precisamos esclarecer do que


estamos a tratar. Por isso, é oportuno perguntar: em que reside a força motriz
que impulsiona as céleres mudanças? De quais mudanças estamos falando?

As referências dizem respeito à nova fase vivenciada pelo sistema capitalista e pela
sociedade moderna, do final da década de 1970 até os dias atuais, em que se destacam
a Revolução Técnico-Científica ou Terceira Revolução Industrial e a globalização. Tais
fenômenos são interligados e interdependentes, constituindo-se faces do processo de
mudanças econômicas, políticas e culturais que delinearam um novo padrão tecnológico e
um novo perfil social.

Você já leu ou ouviu falar nestes termos: Revolução Técnico-Científica ou


Terceira Revolução Industrial e globalização? O que apreendeu sobre eles?

Em nossa viagem pelos caminhos da Ciência, iremos buscar o conhecimento necessário


para que possamos compreender a sociedade em que vivemos. Por isso, outras perguntas
insistem em aparecer: por que a Revolução Técnico-Científica também é chamada de Terceira
Revolução Industrial? O que caracteriza essa revolução? Qual a relação entre esse fenômeno
e a globalização? Qual o significado do termo globalização? A que se refere esse processo?
Partindo de tais questionamentos, caminhemos em busca de suas respostas como forma de
buscar a compreensão dos fenômenos em destaque.

Aula 4 Organização do Espaço 67


Pelo enredo da
Revolução Técnico-Científica
Considerando o elenco de questões formuladas, enfrentemos o desafio de elucidá-las.
Nesse trajeto, a História é nossa companheira e, a partir de seus registros, permite resgatar
aspectos que são fundamentais. Embalados pelo prazer da leitura, façamos uma viagem no
túnel do tempo...

Reportemo-nos à segunda metade do século XVIII, quando surge o processo


de industrialização. Sua origem está diretamente vinculada ao capitalismo, sistema
socioeconômico baseado em uma economia de mercado e em uma sociedade de classes.

Você compreendeu a definição relativa ao sistema capitalista? Como aprender


mais é sempre positivo, faça uma paradinha no roteiro para pesquisar: consulte
livros que abordam o tema “capitalismo” e leia sobre as características de
uma economia de mercado e de uma sociedade de classes. Com certeza, ao
final da pesquisa, você terá ampliado sua compreensão sobre esse sistema
político- econômico.

Até os dias atuais, a industrialização, sob o ponto de vista da complexidade tecnológica,


se realizou a partir de três etapas, descritas a seguir.

 Primeira Revolução Industrial – Ocorreu entre a segunda metade do século XVIII até
meados do século XIX, sendo deflagrada a partir do Reino Unido, que, especialmente
a Inglaterra, assumiu a dianteira desse processo porque contava com equipamentos,
capital e estabilidade política. Nesta fase, em que predominou o uso da máquina e do
transporte a vapor, a fonte de energia básica foi o carvão; destacaram-se as indústrias
têxtil, naval e siderúrgica.

68 Aula 4 Organização do Espaço


 Segunda Revolução Industrial – Teve início nas últimas décadas do século XIX e se
estendeu até os anos de 1970, aproximadamente. Neste período, o poder da Inglaterra
foi declinando e em seu lugar surgiram outras potências, principalmente, os Estados
Unidos - EUA. A atividade industrial difundiu-se para outros países da Europa (Alemanha
e França), além dos EUA e Japão. Houve a descoberta da eletricidade e a invenção dos
motores elétricos, que provocaram expressivas inovações técnicas. As transformações
se multiplicavam e surgia um novo mundo e um novo estilo de vida. As indústrias
petroquímica e automobilística são os ramos emblemáticos desta fase em que o
petróleo foi a principal fonte de energia.

 Terceira Revolução Industrial ou Revolução Técnico-científica – Foi desencadeada a


partir dos últimos decênios do século XX, especialmente na segunda metade da década
de 1970. Portanto, esta é a etapa da industrialização atual, cujas características serão
mais detalhadamente apresentadas a seguir.

Torna-se importante registrar que a difusão da industrialização não ocorre de


forma igualitária entre os países do mundo, não sendo possível considerar que
todos estão no mesmo nível de desenvolvimento industrial.

Com essa sucinta caracterização das etapas da industrialização da humanidade, torna-


se claro o motivo pelo qual a fase atual é chamada de Terceira Revolução Industrial. Nossa
investida, agora, é desvendar as suas características. Pronto para continuar?

A Terceira Revolução Industrial ou Revolução Técnico-Científica aporta-se em um ciclo


de inovações, ancorado na informática, na biotecnologia, na automatização e na robotização
dos processos produtivos, na síntese de novos materiais e no desenvolvimento de novas
tecnologias de geração de energia. Nesse sentido, uma das características marcantes dessa

Aula 4 Organização do Espaço 69


fase é a importância e o papel que assumem o conhecimento e a tecnologia avançada.
Diferentemente das revoluções anteriores, as atividades econômicas de destaque não são
aquelas que transformam matérias-primas em produtos manufaturados, mas aquelas que
produzem serviços: idéias, técnicas, designs, programas etc. Portanto, a Revolução Técnico-
Científica baseia-se na informática, ou seja, no entrelaçamento da indústria de computadores
e softwares com a das telecomunicações.

Será que essa revolução chegou ao meu município? Será que você faz parte desse
mundo da informática e das telecomunicações? Reflita sobre o que estudou, procure
identificar as características da Revolução Técnico-Científica e estabelecer em que ela se
diferencia das anteriores. Esta é uma paradinha necessária para você fazer as conexões entre
a referida revolução e o meio em que você vive, respondendo a questão: Quais as referências
dessa revolução no cotidiano do meu lugar?

Esse tema tem sido alvo de estudos de cientistas de diversas áreas, cujas leituras também
são bastante variadas. Produzindo uma visão esclarecedora desse momento histórico,
Castells (1999, p. 22) afirma que “uma revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da
informação está remodelando a base material da sociedade em ritmo acelerado.” Deriva de tal
processo uma nova sociedade, capitalista e informacional, embora apresente diferenciações
que dizem respeito às especificidades históricas e culturais existentes entre os países e a
relação que estes mantêm com o capitalismo global e a tecnologia informacional.

Para Santos (1993, p. 35), a referida fase, corresponde ao momento no qual se constitui,
sobre territórios cada vez mais vastos, o que identificou de meio técnico-científico, ou seja,
“o momento histórico no qual a construção ou reconstrução do espaço se dará com um
crescente conteúdo de ciência, de técnicas e de informação.” Considerando que os objetos
técnicos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e informacionais, porque já surgem como
informação, e tem como principal fonte de energia de seu funcionamento a informação,
o autor propõe que se utilize a definição de meio técnico-científico-informacional. Neste
cenário, a informação é considerada o vetor fundamental do processo social e os territórios
são devidamente equipados para facilitar a sua circulação (SANTOS, 2002, p. 239).

70 Aula 4 Organização do Espaço


Atividade 1
Identifique os fenômenos responsáveis pelas mudanças que
1 marcaram os últimos decênios do século XX e o início do século XXI.

Explique por que a fase atual é chamada de Terceira Revolução


2 Industrial e em que ela se diferencia das anteriores.

Descreva as principais características da Revolução Técnico-Científica


3 ou III Revolução Industrial.

Aula 4 Organização do Espaço 71


”Reduzindo a marcha... para um alerta importante”:

Os cientistas sociais não têm dúvida de que vivemos a era da informação, do


espaço dos fluxos, das relações virtuais, da sociedade em rede. Todavia, é
preciso reconhecer que a base tecnológica que sustenta a Terceira Revolução
Industrial, mesmo tendo o poder de articular o planeta, está desigualmente
distribuída no espaço e é, também, desigualmente apropriada pela sociedade.

Neste contexto, o meio técnico-científico-informacional representa a feição


geográfica da globalização. Assim, o meio geográfico, por ser técnico-científico-
informacional, tende a ser universal e mesmo onde sua ocorrência assume
uma escala pontual, ele assegura o funcionamento dos processos da chamada
globalização (SANTOS, 2002, p. 240).

Cumprimos o primeiro percurso da nossa viagem e, através dessa exposição,


você deve ter percebido os marcos da trajetória do desenvolvimento científico
e tecnológico que conduziram ao estágio atual em que impera o meio técnico-
científico-informacional. Merecemos um pouso mais demorado para refletir
sobre o conteúdo estudado.

Atividade 2

Conceitue meio técnico-científico-informacional.


1
Cite dois exemplos que demonstrem como a Revolução Técnico-
2 Científica afetou o seu município.

72 Aula 4 Organização do Espaço


Pelas trilhas da globalização
Passada a primeira etapa, a viagem continua e temos novos horizontes a desbravar. No
início do nosso roteiro, definimos objetivos que desejamos alcançar. Você já percebeu por
onde vamos trilhar?

Na perspectiva de compreendermos a relação entre a III Revolução Industrial,


viabilizadora do meio técnico-científico-informacional, e o fenômeno da globalização,
caminhemos em busca de seu significado e de suas referências.

Conforme anteriormente mencionado, a Revolução Técnico-Científica e a globalização


constituem fenômenos interdependentes, que se desenvolvem sob um mesmo enredo
histórico: o final do século XX e início do novo milênio. Já tendo estudado as características
dessa revolução, torna-se fundamental desvendar o significado de globalização e os seus
mecanismos de funcionamento para compreendermos as relações de interdependência
entre os fenômenos citados.

A palavra globalização tornou-se amplamente utilizada nos últimos anos, passando a


fazer parte da mídia cotidianamente, chegando a ser identificada como uma “palavra da moda”
(BAUMAN, 1999, p. 7). O termo disseminou-se ao longo da década de 1980, inicialmente,
em universidades norte-americanas, no âmbito dos cursos de administração de empresas.
A difusão do termo está diretamente vinculada ao aprofundamento da internacionalização
capitalista, através das multinacionais, que exigiu a definição de estratégias de atuação
global para essas empresas.

Quanto à origem da palavra globalização, uma outra possibilidade remete ao campo da


comunicação, mais especificamente aos escritos de Mashall McLuhan (1969), que ao analisar
a crescente interconexão mundial como resultado dos avanços das telecomunicações, criou
a metáfora de “aldeia global”.

Aula 4 Organização do Espaço 73


Embora sendo um termo cujo emprego é recente, “como fenômeno concreto, a
globalização é nada mais do que um processo histórico, que, aliás, vem de longa data.”
(SENE, 2003, p. 37). Suas raízes remetem ao final do século XV e início do século XVI,
quando se deu a expansão capitalista através das Grandes Navegações, que deflagrou a
criação do chamado mercado mundial.

Entre os séculos XVIII e XIX, a ocorrência da I e da II Revolução Industrial constituíram-se


novas etapas do processo de mundialização capitalista, caracterizadas pelo desenvolvimento
dos trustes e cartéis e pelo imperialismo.

No início do século XX, conflitos entre Estados imperialistas conduziram à Primeira e


à Segunda Guerras Mundiais, respectivamente de 1914-1918 e 1939-1945. Nesse intervalo,
houve a crise da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, que levou à Grande Depressão
dos anos de 1930. Apesar dessas ocorrências, até meados do século XX, o capitalismo
prosseguiu em sua expansão, embora em ritmo lento e desigual.

Sinal amarelo... Atenção!

Pesquise sobre a I Guerra Mundial, a queda da Bolsa de Valores de Nova


York, a Grande Depressão e a II Guerra Mundial. Procure saber sobre o
contexto de ocorrência desses eventos que redefiniram o curso da História da
humanidade: Por que e como aconteceram? Quais os países envolvidos? Quais
as conseqüências que produziram?

Para essa atividade, utilize como fonte bibliográfica: Hobsbawm (1995).

No entanto, após a II Guerra Mundial, o sistema capitalista vivenciou três décadas de


crescimento econômico, via expansão e consolidação das multinacionais, responsáveis pela
mundialização da produção. Esse crescimento rebateu desigualmente sobre os Estados-
nações, evidenciando com maior nitidez as características entre países desenvolvidos
e subdesenvolvidos. Nesse período, foram gestadas as principais condições para a
emergência da globalização.

74 Aula 4 Organização do Espaço


Você conseguiu apreender as informações? Percebeu a importância da História
para compreendermos os fenômenos que estamos estudando?

Convidamos você a uma breve pausa para organizar as idéias. Tratamos da


origem do termo e, em seguida, dos antecedentes históricos do processo.
Para contribuir com sua compreensão, que tal pesquisar sobre o significado
de palavras como cartel, truste e imperialismo? Ah! Também será interessante
saber quais as características dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos.

Sinal verde! Podemos avançar...

A leitura desse fenômeno em uma perspectiva histórica permite a interpretação


de que corresponde a atual fase de expansão do capitalismo. Para Santos
(2000, p. 23), constitui “o ápice do processo de internacionalização do mundo
capitalista”, em que as economias nacionais se reorganizam em função da
hegemonia do mercado global. No dizer de Sene (2003, p. 40) “a globalização,
calcada nos avanços da revolução técnico-científica ou informacional, é,
ao mesmo tempo, continuidade e aceleração do processo de mundialização
capitalista.”

Na tentativa de apreender a época em que vivemos, recorremos a Stiglitz (2002, p.


36), que assim define a globalização: “Fundamentalmente, é a integração mais estreita dos
países e dos povos do mundo que tem sido ocasionada pela enorme redução de custos
de transportes e de telecomunicações e a derrubada de barreiras artificiais aos fluxos
de produtos, serviços, capital, conhecimento e (em menor escala) de pessoas através
das fronteiras.” A base material desse processo está na revolução tecnológica que tem
avançado através da informática (computação microeletrônica), das telecomunicações,
da biotecnologia e da engenharia genética, da invenção de novos materiais, dentre outros
(GORENDER, 1995, p. 93).

Aula 4 Organização do Espaço 75


Mas, afinal o que
é essa tão falada
globalização?

Considerando o exposto, depreende-se que a globalização é um processo


multifacetado que tem entre suas características centrais a aceleração em todos os
setores da vida. A aceleração contemporânea está ancorada nas novas tecnologias, que
viabilizam o aumento da velocidade do deslocamento de capitais, mercadorias, informações
e pessoas provocando mudanças econômicas, políticas, sociais, culturais e espaciais.
Essas mudanças atingem, inclusive, a percepção das pessoas e das empresas em relação
ao espaço geográfico local e mundial, intensificando a inter-relação dos países e dos povos,
propiciando, entre outros, um maior intercâmbio cultural e a difusão de certos valores, como
democracia, desenvolvimento sustentável, respeito aos direitos humanos, os quais tendem
a se universalizar. Mas, é importante ressaltar que, apesar de todas essas possibilidades
positivas, a base tecnológica que dá suporte à globalização também é utilizada para conexões
de redes que operam na ilegalidade (por exemplo, tráfico de drogas, prostituição, entre
outros) e para manifestações antiglobalização, permitindo inferir que os questionamentos
formulados por seus adeptos restringem-se a certos aspectos do fenômeno.

Refletindo sobre as múltiplas dimensões da globalização, constata-se que a


econômica é a mais focalizada e, dentre os fluxos que gera, o financeiro é o
mais veloz e aquele que melhor representa o fenômeno em pauta. Chesnais
(1996, p. 239) enfatiza que “a esfera financeira representa o posto avançado
do movimento de mundialização do capital, onde as operações atingem
o mais alto grau de mobilidade, onde é mais gritante a defasagem entre as
prioridades dos operadores e as necessidades mundiais.” A hegemonia do setor
financeiro na globalização econômica articula-se aos avanços tecnológicos nas
telecomunicações e na informática, os quais tornaram o dinheiro eletrônico,
desmaterializado, virtual. A transferência de expressivas somas de dinheiro de
um lugar para outro tornou-se uma atividade relativamente simples, envolvendo
a digitação de números e códigos em um teclado, ou seja, o domínio da
linguagem e das ferramentas digitais.

76 Aula 4 Organização do Espaço


Dadas às condições técnicas da “era da informação”, as relações em escala mundial
são assinaladas pela supressão ou relativização das distâncias, posto que os sistemas
de comunicação possibilitam o intercâmbio de informações em tempo real, interligando
instantaneamente os diferentes espaços do planeta. Dessa forma, é perceptível que a
Revolução Técnico-Científica, ao produzir as tecnologias de informação, viabilizou a
existência do meio técnico-científico-informacional, instituindo a sociedade em rede, no
âmbito do capitalismo globalizado.

Sobressaltos na estrada em busca do conhecimento? Então, façamos uma outra pausa


visando continuar a trajetória de forma segura! Revisite os objetivos da aula e veja que,
nesta etapa, o desafio é entender o significado da globalização e a relação existente entre tal
fenômeno e o meio técnico-científico-informacional. Por isso, vale o esforço para responder
as atividades propostas e avaliar se o objetivo foi alcançado.

Atividade 3

A que se refere o processo de globalização?


1
Qual a relação entre globalização e capitalismo?
2
Qual o papel do meio técnico-científico-informacional na globalização?
3
A globalização é um processo que atinge exclusivamente a economia?
4

Percurso bem pavimentado, navegando pelas teias do meio técnico-científico-


informacional e da globalização, enfim vislumbramos a última etapa de nossa aula. Nossa
investida agora é compreender a dinâmica entre o global e o local na tessitura de relações
mediatizadas pelo meio técnico-científico-informacional, em plena globalização.

Os conhecimentos já adquiridos sobre o assunto nos colocam diante da afirmação de que


o desenvolvimento técnico-científico e a globalização repercutem desigualmente tanto entre
os países, como no interior de seus territórios. Segundo Sene (2003, p. 119), “os avanços
tecnológicos nos transportes e nas telecomunicações mudaram a perspectiva do mundo de
forma bastante desigual, segundo a posição das pessoas no espaço geográfico e sua inserção
na sociedade.” A “geografia das redes” (SANTOS, 2002), que se institui com a globalização,
revela que este é um processo extremamente seletivo em termos de lugares e de pessoas,
construindo-se a partir de dinâmicas de inclusão-exclusão, articulação-fragmentação.

Aula 4 Organização do Espaço 77


Sinal amarelo! Atenção!

Isso não parece contraditório? Se o fenômeno é, como o próprio nome revela,


globalizador, como pode ser seletivo e excludente? A globalização não é
global? Vamos prosseguir e, sem pressa, avançar pelas sinuosas estradas do
conhecimento...

A análise do contexto atual revela que a globalização é, de fato, um processo que


seleciona os lugares e as pessoas e, ao se manifestar assim, gera a exclusão. Nesse cenário,
os fluxos da globalização atingem o planeta Terra inteiro, mas não a totalidade do espaço
geográfico mundial, ou seja, não todos os seus lugares. Na “geografia das redes”, os países
industrializados dominantes (EUA, Japão e países europeus), além dos países recentemente
industrializados (emergentes), embora nem todos os lugares de seus territórios nacionais,
estão fortemente articulados à globalização. Enquanto isso, parte do espaço latino-americano
e asiático e a maioria do espaço africano encontram-se marginalizados do processo.

Isso demonstra que, a despeito do nome, a globalização está longe de ser global, posto
que a densidade da técnica, do capital e do conhecimento está altamente concentrada, em
termos geográficos, assim como os fluxos de investimentos e comerciais. Sendo assim, na
chamada “geografia das redes”, como pensar as relações entre o global e o local? Qual o
sentido de lugar no âmbito de uma sociedade globalizada?

O caráter seletivo e excludente da globalização produz a fragmentação espacial,


pinçando os espaços que interessam a lógica do capitalismo global, transformando-os em
nichos de produção e/ou consumo, e relegando à margem os demais espaços, que não se
mostram atraentes sob a ótica economicista do sistema. Dessa forma, paralelamente aos
circuitos que vinculam local e global no sistema-mundo, há toda uma massa de excluídos
(HAESBAERT, 1999, p. 28).

Nesse contexto, os lugares podem assumir diferentes significados, podendo


representar pontos de conexão, nós da teia de relações globalizadas, ou núcleos de
enfrentamento das forças fragmentadoras dos fluxos hegemônicos, focos de resistência.
Isso porque é no lugar que se materializam as relações sociedade-espaço geográfico;
nele, as pessoas vivem e interagem entre si e com a paisagem, constroem as relações do
cotidiano. Para Felipe (2002, p. 235):

o local é o lugar da fixidez, onde os moradores criam significados, símbolos e imagens,


que vão forjar as identidades e as aderências que prendem o indivíduo e o seu grupo
social a esse espaço particular, resultado da memória, da produção e da técnica, mas,
acima de tudo, resultado de suas vidas.

78 Aula 4 Organização do Espaço


Considerando a perspectiva do local em sua articulação com a dinâmica global, é
possível apontar as duas faces desse mesmo processo. Haesbaert (1999, p. 25), ao analisar
a dinâmica global-local, evidencia que “a luta entre uma face homogeneizadora e uma face
heterogeneizadora demonstra que processos globais implantam-se no local, adaptando-se
a ele, ao mesmo tempo em que o local pode globalizar-se na medida em que expande pelo
mundo determinadas características locais.” Na visão desse autor, pode-se ter uma dinâmica
do global para o local e o seu inverso, do local para o global. Considerando a primeira
perspectiva, tem-se que o local não é necessariamente um simples reflexo do global, visto
que impõe condições para a realização da globalização (por exemplo, espaços de produção
de frutas tropicais no Semi-Árido do Nordeste). Na segunda, o local produz a diversidade no
âmbito do global, tornando mais complexas as características da globalização (por exemplo,
culinária chinesa que se projetou para o mundo).

Desse modo, as relações global-local contemporâneas não estão pautadas apenas


na globalização homogeneizadora, que padroniza as desigualdades, e em localismo
diferenciadores que resistem, promovendo a heterogeneização. Essas relações se firmam
tanto na possibilidade da globalização de se condensar em nível local, quanto na perspectiva
de que o local pode se projetar globalmente. É possível ainda que condições originalmente
locais possam se tornar globais e que a própria globalização, com o seu potencial de
transformação, possam re-criar ou reinventar o local. Dessa forma, pode-se afirmar que,
com a globalização, o local contém o global, mas o global também contém o local.

Assim, embora a globalização tenha atingido uma escala planetária, aportada no discurso
da homogeneização e uniformização dos lugares, tornou-se evidente que esse processo
também produziu desigualdades e acentuou as diferenças. A despeito da universalização das
técnicas e do imperativo do meio técnico-científico informacional, na atualidade, não há um
espaço global, mas apenas espaços da globalização, ligados por redes. (SANTOS, 2002). São
estes os espaços que definem a dinâmica das relações entre o local e o global na atualidade.

Atividade 4

Explique por que a globalização não é, efetivamente, global.


1
Examine as faces da articulação entre o global e o local no contexto
2 da globalização.

Aula 4 Organização do Espaço 79


Chegamos ao final da nossa aula. Desejamos que a travessia pelos temas meio técnico-
científico-informacional, globalização e relações global-local tenha sido proveitosa e que
você se sinta capaz de compreender melhor, através desse estudo, a sociedade em que
vivemos. Gostaria de saber mais sobre o assunto? Consulte livros, revistas e jornais, ouça
noticiários de TV e de rádio, acesse a internet. Lembre-se de que você é um cidadão inserido
numa sociedade globalizada!

Resumo
Nesta aula, aprendemos que a sociedade do final do século XX e início do novo
milênio vivencia a Revolução Técnico-Científica, que produziu expressivos
avanços tecnológicos os quais remodelaram a forma de pensar e de se
comportar do homem atual, criando o meio técnico-científico-informacional.
Nesse contexto, surgiram as condições para a emergência do fenômeno da
globalização, que se traduz pela possibilidade de articulação e interdependência
entre países e povos do planeta. No âmbito desse fenômeno, desenvolve-se
uma dinâmica global-local, que se firma tanto na possibilidade da globalização
de se condensar em nível local, quanto na perspectiva de que o local pode se
projetar globalmente.

Autoavaliação
Elabore um texto analítico estabelecendo as relações entre o meio-técnico-
1 científico-informacional e a globalização e as perspectivas de articulação entre o
global e o local nesse contexto.

Na sua avaliação, a cidade em que você vive está fortemente, razoavelmente ou


2 fracamente articulada à globalização? Por quê?

80 Aula 4 Organização do Espaço


Referências
BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1999.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação – economia, sociedade e


cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

FELIPE, José Lacerda Alves. O local e o global no Rio Grande do Norte. In: VALENÇA, Márcio
Moraes; GOMES, Rita de Cássia Conceição (Org.). Globalização e desigualdade. Natal: A.
S. Editores, 2002.

GORENDER, Jacob. Estratégias dos estados nacionais diante do processo de globalização.


Revista Estudos Avançados, São Paulo: IEA-USP, v. 9, n. 25, 1995.

HAESBAERT, Rogério. Região, diversidade territorial e globalização. Geographia, Rio de


Janeiro, ano 1, n. 1, 1999.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.

MCLUHAN, Mashall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo:


Cultrix, 1969.

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1993.

______. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional. São


Paulo: HUCITEC, 1994.

______. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de
janeiro: Record, 2000.

______. A natureza do espaço: técnica e tempo, espaço e razão. São Paulo: EDUSP, 2002.

SENE, Eustáquio de. Globalização e espaço geográfico. São Paulo: Contexto, 2003.

STIGLITZ, Joseph E. A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2002.

Aula 4 Organização do Espaço 81


Anotações

82 Aula 4 Organização do Espaço


Paisagem como categoria
da análise geográfica

Aula

5
Apresentação

N
esta aula, vamos refletir sobre a paisagem como categoria de análise geográfica.
A abordagem está ancorada em reflexões que apresentam a trajetória desse conceito
no âmbito da ciência geográfica, mostrando as vertentes teórico-metodológicas
envolvidas. Assim, analisa a dialética presente na dinâmica do visível e do invisível compondo
a interpretação paisagística; discute a oposição entre paisagem natural x paisagem
transformada, problematizando essa questão e sua validade para se compreender a relação
homem/natureza no contexto das transformações espaciais contemporâneas; e, por fim, de
maneira a estimular a reflexão autônoma do aluno, sugere alguns temas de pesquisa que
podem ser desenvolvidos pelo aluno.

Objetivos
Compreender o conceito de paisagem a partir de
1 diferentes perspectivas teórico-metodológicas.

Analisar a dialética da paisagem presente na dinâmica


2 do visível e do invisível.

Refletir sobre a validade das definições de paisagem


3 natural e humanizada no contexto da ciência
geográfica atual.

Aplicar o conteúdo conceitual em situações-problema.


4

Aula 5 Organização do Espaço 85


Iniciando um caminho...

C
omo já dissemos, esta aula traz como tema a paisagem. Você já estudou a respeito
do espaço como objeto e conceito da ciência geográfica. Agora, vai adentrar pelos
meandros da Geografia, tendo inicialmente por guia a visão, o tato, a audição e o
olfato, possibilitando o encontro com as formas geográficas.

Todos os dias, ao sair de casa, você se depara com um conjunto de elementos que
facilitam, disciplinam ou impedem o seu trajeto. São ruas, pontes, semáforos, calçadas,
carros, pessoas, bicicletas, árvores, animais etc. que se impõem combinando-se ao seu
passo, a sua escuta, a sua visão e ao seu olfato.

Atividade 1
Assim, pare e pense sobre um trajeto feito diariamente e reflita como os seus sentidos
são acionados para fazer esse percurso.

Será que você consegue distinguir cheiros, sons, cores e texturas no compasso que o
seu pé é levado a ter ao colocar-se em contato com o espaço?

Registre aqui a sua experiência.

Tipos de cheiros Tipos de sons Tipos de cores Tipos de texturas

86 Aula 5 Organização do Espaço


Você deve estar se perguntando em que essa tarefa se relaciona com o tema da nossa
aula. Pois muito bem, ela é um desafio à leitura da paisagem, na medida em que exige de cada
um o esforço para estranhar aquilo que é mais familiar, e de distinguir o que parece homogêneo.
Você foi estimulado a colocar-se diante do “mundo”, de corpo e alma, para experimentar as
sensações que, possivelmente, foram adormecidas pela “tirania” da repetição.

Para estudar a paisagem, é necessário:

 olhar aquilo que é mais familiar, como se estivesse diante de algo estranho;

 descrever o que é visto, aproximando as sensações de familiaridade –estranhamento


dos elementos móveis e fixos na cena;

 revelar cores, odores, texturas e sons que, misturados, compõem a morfologia, guiando
o olhar a identificar, na homogeneidade da cena, a heterogeneidade das formas.

Assim, o sujeito se relaciona com a paisagem em seu movimento cotidiano de ir e


vir, seja na cidade ou no campo, na rua ou na casa, no bairro ou na vila. Os objetos fixos e
móveis se (re)organizam, compondo o cenário em que se desenrola a vida, em processos de
redefinições sócio-ambientais e afetivas.

Outras experiências no meio do caminho...


A experiência do homem com a natureza criando cenários geográficos é descrita e
sentida de formas distintas. A você, foi sugerido vivenciar essa prática de estranhar o familiar.
Vamos apresentar agora algumas experiências que tiveram no espaço o ponto de encontro,
intersecção, intervalo, dúvida... do corpo e da alma.

A casa materna, do poeta brasileiro Vinícius de Morais, faz surgir as imagens impressas
na memória da casa materna como se fosse um reservatório de lembranças e sentimentos que
permanecem e dão ritmo ao olhar que volta para encontrar, na forma, a vida que a faz pulsar.
Leia o texto e perceba como o poeta utiliza o jogo da descrição, trazendo à tona o detalhe.

Há, desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão


têm uma velha ferrugem e o trinco se encontra num lugar que só a mão filial conhece.
O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas palmas, tinhorões
e samambaias, que a mão filial, fiel a um gesto de infância, desfolha ao longo da haste.
É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se
pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional
silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. O assoalho encerado,
sobre o qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha preta, guarda as mesmas
manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em
preces, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos maternas quando eram moças
e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem
mudamente. O piano fechado, com uma longa tira de flanela sobre as teclas, repete
ainda passadas valsas, de quando as mãos maternas careciam sonhar.

Aula 5 Organização do Espaço 87


A casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial admirava
ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o absurdo bibelô.
E tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz morta, com negras
aberturas para os quartos cheios de sombra. Na estante junto à escada há um Tesouro
da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali que o olhar filial primeiro viu
a forma gráfica de algo que passaria a ser para ele a forma suprema da beleza: o verso.
Na escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos passos
filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se processa a vida
presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre coisas fabulosas na
geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos, mangas-espadas,
untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta - pois não há lugar mais
propício do que a casa materna para uma boa ceia noturna. E porque é uma casa velha, há
sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe. Em
cima ficam os guardados antigos, os livros que lembram a infância, o pequeno oratório
em frente ao qual ninguém, a não ser a figura materna, sabe por que queima às vezes uma
vela votiva. E a cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia.
A imagem paterna persiste no interior da casa materna. Seu violão dorme encostado
junto à vitrola. Seu corpo como que se marca ainda na velha poltrona da sala e como que
se pode ouvir ainda o brando ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre de sua
casa materna, a figura paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto
as mãos maternas se fazem mais lentas e as mãos filiais ainda mais unidas em torno à
grande mesa, onde já agora vibram também vozes infantis. (MORAES, 1991).

Do Brasil contemporâneo, voltamos à Renascença do século XIV. Lá encontramos A


ascensão ao Monte Ventoux, do Petrarca, poeta italiano, considerado pelos estudiosos da
paisagem uma pedra fundamental. Aqui sintetizamos algumas idéias apresentadas por Jean-
Marc Besse (2006) sobre esse poeta, no artigo “Petrarca na montanha: os tormentos da
alma deslocada”. Para esse autor, por meio dessa descrição inaugura-se uma nova forma de
ver a paisagem pautada pelo distanciamento do sujeito do cenário que o envolve. Ao escalar
a montanha “para simplesmente verificar o que poderia ser visto do seu cimo, teria sido o
primeiro a encontrar a fórmula da experiência paisagística, no sentido próprio do termo: a
da contemplação desinteressada, do alto do mundo natural, aberto ao olhar” (BESSE, 2006,
p. 1/2). Petrarca, ao eleva-se para um ponto mais alto, toma a distância necessária para ver
a natureza por ele mesmo, na mesma medida em que se põe dentro dela como se estivesse
a ritualizar uma peregrinação espiritual. Ao chegar ao cume e experimentar as primeiras
sensações que ela provoca, parece elevá-lo a certeza de “uma assunção e uma confirmação
do espaço intelectual inicial no qual Petrarca inscreveu sua empresa, a da busca da grandeza
da alma, que obtém no exercício de olhar o mundo do alto” (BESSE, 2006, p. 5). Esse
exercício vai ser configurado por um processo de tensão entre viver e conhecer, mediado
pela curiosidade. Assim, olhar a paisagem é repousar sobre um ambiente para desvelar as
suas entranhas, mantendo-se distante dele para ver aquilo que “não nos diz respeito”. No
entanto, ao desejar isentar-se do espaço para ver melhor, o poeta não extingue as marcas
que a paisagem vai imprimindo na alma de maneira que se pode sintetizar a ambivalência da
familiaridade e estranhamento na descrição da paisagem por meio da seguinte afirmação:
“enfim, experimentei quase tudo e em nenhum lugar encontrei repouso”. O que de fato

88 Aula 5 Organização do Espaço


Petrarca encontra ao contemplar a paisagem? Ele encontra um intervalo, uma distância
tanto no aspecto geográfico quanto temporal, os quais não podem ser suprimidos, apenas
percorridos pelo olhar e pela reflexão. “A separação é vivida em dois planos: o topográfico,
do aqui e dali, e o cronológico, do presente e do passado”. (BESSE, 2006, p. 6)

A partir dos dois relatos, o ambiente se releva por meio do sujeito que olha, contempla,
sente, distancia-se e aproxima-se do cenário visto. Temos a experiência registrando o
encontro do homem com a fisionomia, levando-os a criar representações de sua superfície
como se fosse possível fazer cópias do mundo visto.

Você já estudou noções básicas de cartografia e sabe que o mapa é uma tentativa
nessa direção. Sabe também, estudando Introdução à Ciência Geográfica, que a Geografia
é herdeira da cartografia e das narrativas de viagem, de maneira que, mesmo estando
distantes séculos dessa tradição, ainda permanece como se fosse uma “marca genética”
no exercício do geógrafo a atenção aos signos do mundo, incrustados nas distintas formas
espaciais. Assim, na grade de comunicação com a semiótica do espaço, a paisagem é uma
representação que deve ser contemplada pelo sujeito. Nesse sentido, o indivíduo, de forma
intencional ou não, a representa como espaço do qual é preciso se afastar, ou em relação ao
qual é preciso se elevar para apreendê-la como imagem. Contemplar a paisagem se efetiva
em um prazer estético em que o olhar capta a “ordem do mundo que se faz visível”. Ou seja,

tudo se passa como se justamente fosse preciso não está ocupado com o trabalho para
estar em condições de apreender visualmente a paisagem como tal. Como se fosse
necessário colocar o mundo à distância ou, mais exatamente, colocar-se à distância
do espaço terrestre para percebê-lo em sua dimensão de paisagem. Como se não
houvesse paisagem a não ser na distância de um olhar por assim dizer exterior, se não
estrangeiro, um olhar que passa e julga (BESSE, 2006, p. 35).

Aula 5 Organização do Espaço 89


A partir das experiências narradas, podemos apresentar algumas dimensões que estão
presentes na paisagem. Quais sejam:

1) a dimensão física e objetiva limitada aos elementos que estão na superfície e que podem
ser vistos pelo homem;

2) a dimensão humana, subjetiva e contemplativa que diz respeito ao encontro do homem


com essa superfície, provocando sensações de familiaridade e estranhamento;

3) a dimensão representacional e imagética que se apresenta como uma objetivação da


relação entre a dimensão física e humana, configurando-se em elaborações sintéticas do
mundo visto e sentido;

4) as dimensões ética e estética que se referem às ações e ao prazer estabelecidos a partir


das concepções e interações do homem com a superfície terrestre.

Atividade 2
Agora vamos refletir e praticar mais um pouco!

Veja a fotografia a seguir.

a) Identifique os elementos presentes na fotografia que compõem a paisagem.

b) A partir dos elementos identificados e tendo por parâmetro as dimensões presentes na


paisagem, anteriormente definidas, faça uma descrição da imagem.

c) A partir da resolução das questões a) e b), das reflexões até então apresentadas e da
sua percepção, o que é paisagem?

90 Aula 5 Organização do Espaço


Aula 5 Organização do Espaço 91
O que é paisagem?
Vamos colocar a sua definição em contato com outras abordagens para que você seja
capaz de reorganizar as suas idéias, ampliando a sua percepção inicial.

Até o século XVI, não se conhecia a paisagem em uma dimensão estética, ou seja, como
uma imagem a ser refletida, contemplada e sentida. Ela estava imersa na noção de país ou na
fração de espaço identificado por território, ou ainda, em um lugar do ponto de vista de suas
características físicas, humanas e econômicas. Ao se confundir com base física do espaço, a
paisagem até então se aparentava com a materialidade revelada de imediato ao sujeito, que,
por sua vez, atrelava a feição à prática e ao uso da forma. Nessa perspectiva, a paisagem era
entendida como espaço objetivo da existência, mais territorial e geográfica do que estética. É,
somente, a partir do século XVII, com a pintura, que vai aparecer o valor estético da paisagem,
alimentando-se da imaginação e da contemplação. Com essa ampliação, o inventário das
imagens da Terra são ressignificados, trazendo à tona um vasto quadro que aparece a partir
dos caminhos feitos pelo olhar. Até o século XVIII, a percepção estava atrelada à pintura e
à arte e representava o sítio – lugar – visto. “Tomada pelo individuo, a paisagem é forma e
aparência. Seu verdadeiro conteúdo só se revela por meio das funções sociais que lhe são
constantemente atribuídas no desenrolar da história” (LUCHIARI, 2001, p. 13). Ou melhor,

A paisagem é denotada pela morfologia e conotada pelo conteúdo e processo de


captura e representação. A paisagem como representação resulta da apreensão do olhar
do indivíduo, que, por sua vez, é condicionada por filtros fisiológicos, psicológicos
socioculturais e econômicos, e da esfera da rememoração e da lembrança recorrente.
A paisagem só existe a partir do indivíduo que organiza, combina e promove arranjos
do conteúdo e forma dos elementos e processo, num jogo de mosaicos [...] Assim
a paisagem tem sua existência condicionada pela capacidade do indivíduo reter,
reproduzir e distinguir elementos significativos (culturais ou naturais, circunstanciais
ou processuais, adventícios ou genuínos, entre outros aspectos) desse mosaico
construído. A paisagem evoca significados a partir dos signos e valores atribuídos.
Esses signos assumem amplo espectro de propriedades e escalas numa grade
semântica própria. (GOMES, 2001, p. 56/57).

Assim, a paisagem se define como sendo tudo aquilo que nós vemos, o que nossa
visão alcança. Pode ser circunscrita ao domínio do visível, daquilo que a nossa visão
consegue abarcar de um só lance. Não é formada somente de volumes, mas também de
cores, movimentos, odores, sons e texturas.

Nessa perspectiva, os limites da paisagem são dados pelo olhar e pela localização do
sujeito com relação à linha do horizonte. A paisagem assume escalas distintas aos nossos
olhos a partir do ponto em que nos encontramos. O que se revela está de acordo com a
capacidade de perceber, sentir, escutar e tocar. Na leitura da paisagem, os sentidos são
aguçados para ativar a percepção, por isso o aparelho cognitivo tem importância capital,
posto que regula e filtra a extensão das sensações para um campo representacional em que
interferem o capital cognitivo acumulado no processo de formação do sujeito.

92 Aula 5 Organização do Espaço


A abordagem da paisagem no seio da Geografia institui a sua ascensão no patamar
da Ciência. No entanto, desde a Antiguidade, ela está presente nos registros de filósofos-
matemáticos, considerados também “geógrafos”, que construíam representações da
superfície terrestre, procurando detalhar as suas singularidades e movimentos. A corografia
praticada por Estrabão é um exemplo disso. Humbolt e Ritter, séculos depois, ao se
debruçarem para encontrar uma explicação para a dinâmica da Terra, também traziam como
ponto de partida a descrição do cenário que lhe chegava por meio da visão e das experiências
que se estabeleciam com esse mundo visto. Assim, a Geografia partia da descrição dos
aspectos físicos ou naturais, sentidos e percebidos pelo olhar. Os geógrafos do final do
século XIX e das primeiras décadas do século XX vão fazer uso das mesmas estratégias para
procurar consolidar a Geografia no espaço científico.

No entanto, cabe destacar que, nesse período, a Ciência assume contornos distintos,
aprofundando o racionalismo como meio para se chegar a um conhecimento verdadeiro. Desta
feita, há que reduzir as interferências subjetivas provocada pelo olhar. E assim, ao assumir a
descrição e o olhar como meio de ascensão ao conhecimento, à ciência geográfica, ressalva-
se ser necessário contemplar, mas como o legítimo interesse de conhecer. Portanto, o olhar
não é despretensioso, mas erudito, alicerçado em teorias e procedimentos metodológicos.
Olhar, descrever, comparar e analisar constituem mecanismos de objetivação para
compreender a singularidade da Terra, revelada em suas múltiplas paisagens. A Geografia
toma a materialidade da paisagem como uma objetivação analítica que impede o sujeito da
ciência de se enganar. É dessa perspectiva que o viés positivista se instaura, alimentando
espíritos como Ratzel e La Blache.

Para Ratzel, é preciso compreender a dinâmica da natureza para entender a dinâmica


humana. O homem se faz como tal na natureza, sendo necessário encontrar a explicação
para essa relação. Nesse sentido, a natureza exerce uma ação poderosa que se manifesta
através de todas as fases da história, bem como em todas as esferas da vida. O homem
se vê como espécie livre, mas na realidade ele é servil, pois como as raízes que fixam as
plantas ao solo, o homem também está preso ao solo que recebeu de herança. Assim, o
ponto de partida para compreender esse processo de servidão parte da observação da
natureza, das condições objetivas que se revelam inicialmente ao olhar de um observador
erudito. Desvendar a dinâmica dos elementos naturais é o caminho para estabelecer as leis
explicativas da dinâmica do homem na paisagem natural, pois este é visto como mais um
elemento da natureza a compor o cenário geográfico.

Em La Blache, a paisagem é a revelação da Terra como um organismo em equilíbrio. O


homem ao interferir na natureza cria o meio geográfico, e é a partir da observação e descrição
desse meio que podemos compreender a dinâmica a Terra. Assim, a paisagem assume
importância central, sendo a porta de entrada do geógrafo para fazer o inventário da Terra. Olhar
e descrever, comparar e sintetizar constituem ferramentas básicas para a leitura da paisagem.

Em relação à perspectiva cultural de Carl Otto Sauer – para ampliarmos mais um


pouco essa discussão –, podemos ainda trazer à tona a idéias de Carl Otto Sauer, geógrafo

Aula 5 Organização do Espaço 93


americano do século XX, que problematizou e discutiu a ciência geográfica, colocando luzes
sobre a morfologia da paisagem. Para ele, a paisagem deve ser o objeto da ciência geográfica,
sendo concebida como “uma associação de formas, físicas e culturais, resultado de um
longo processo de constituição e diferenciação de um espaço” (GOMES, 1996, p, 231).
Sauer sublinha a importância da análise da estrutura e das funções de cada paisagem, que
deve ser vista sobre um plano sistemático e geral, em que possa ficar evidente a estrutura
metodológica e teórica, possibilitando analisar os elementos significativos na estruturação da
paisagem e criando tipologias morfológicas. A partir das tipologias, é possível compreender
a diferenciação regional, objeto último da Geografia. Para Sauer, a paisagem forma-se da
combinação de elementos naturais e humanos. Assim, ela pode ser classificada em paisagem
natural e artificial, na medida em que o homem se defronta com a natureza, estabelece uma
relação cultural, que é também política e técnica. Dessa relação cultural, o espaço geográfico
assume feições distintas, sendo estas resultado dos diferentes níveis de intervenção humana.

No que diz respeito à visão dialética de Milton Santos, a percepção é “um processo
seletivo de apreensão da realidade. Se a realidade é apenas uma, cada pessoa a vê de forma
diferenciada; dessa forma, a visão pelo homem das coisas materiais é sempre deformada”
(SANTOS, 1994, p. 62). Assim, para esse teórico, a percepção é apenas o primeiro dispositivo
que nos permite ver a paisagem, não é conhecimento da mesma. O que o homem vê é
apenas sua forma e aparência, não distinguindo pelo olhar o que a constitui. A percepção
que estimula a visão representa apenas a entrada na análise que desvela o conteúdo. Para
adentrar seu significado, é necessário ultrapassar a forma vista, o seu aspecto visível, sendo
necessário ultrapassar a aparência para conhecer a sua essência ou gênese. É necessário, para
isso, compreender a dinâmica da produção de uma sociedade historicamente organizada. A
proposição de Milton Santos está apoiada em uma perspectiva dialética de leitura do espaço
em que a relação homem/natureza se dá pela mediação da técnica e do trabalho, ainda em
Santos (1994, p. 66), verifica-se que a noção de

paisagem não se cria de uma só vez, mas por acréscimos e substituições; a lógica
pela qual se fez um objeto no passado era a lógica da produção daquele momento.
Uma paisagem é uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades
diferentes, é uma herança de muitos diferentes momentos.

Dessa perspectiva, depreende-se que para além das sensações iniciais que mobilizam
o sujeito este deve tomar o distanciamento necessário para reconhecer na forma o
conteúdo, e desta maneira, conhecer a adentrar nos sistemas técnicos e sociais que movem
a transformação da natureza primeira em segunda Natureza. A paisagem geográfica é a
fisionomia que assume a segunda natureza, marcada pelas contradições sociais, econômicas
e culturais que moldam a sociedade capitalista.

94 Aula 5 Organização do Espaço


A perspectiva
fenomenológica de Eric Dardel
Nesta abordagem a percepção é o meio e o fim do conhecimento, pois o mundo não
é exterior, nem abstrato a vida do sujeito, é sempre uma experimentação, uma vivência, ou
como sugere Merleau Ponty, “ o mundo é não aquilo que penso, mas aquilo que eu vivo”.
A fenomenologia prioriza o ser no mundo. Assim, a paisagem, nessa vertente, resulta da
geograficidade perene nas diversas maneiras pelas quais sentimos e conhecemos em todas
as suas formas. Originalmente, a Geografia é um prolongamento da experiência, em que a
paisagem é uma dimensão da condição humana de habitar. É uma força imanente que
transforma todos os homens em seres topológicos. “A função da paisagem se precisa então:
ela permite manter uma relação viva entre o homem e a natureza que o envolve imediatamente.
A paisagem desempenha o papel de mediação, que permite a natureza subsistir como mundo
para o homem” (BESSE, 2006 p. 82). Assim, a Geografia, tem o seu valor positivo como
ciência, mas representa também um elo fundamental do homem com a natureza.

A paisagem geográfica é a síntese primeira dessa condição. Por ela, entramos no espaço
geográfico, encontramos seus limites, conhecemos o mundo e a nós mesmos. A paisagem
aqui é designada como uma dimensão da sensação, da percepção, como uma orientação
no e sobre o mundo. Eric Dardel (apud BESSE, 2006) colocou o sentido da Geografia no
meio caminho entre o saber disciplinar e o eminentemente humano. Em suas indagações,
se pergunta “o que é habitar a Terra”? cuja resposta assume a dimensão originária da
existência humana. Para além de uma dimensão epistemológica e científica, o sentido da
Geografia está “na frequentação do mundo e na paixão pelo mundo, na sua densidade e
variedade fenomenal, ao mesmo tempo em que procura compreender-lhe as estruturas e os
movimentos” (BESSE, 2006, p. 82). Assim, a paisagem, nessa perspectiva, está atrelada ao
espaço vivido, sentido e percebido. A Geografia, ou de forma sinonímica, a paisagem não

procura revelar aos homens o sentido oculto dos lugares, mas ela procura
apreender como, no contato, com os lugares, as significações ‘pegam’, ou
como se diz que uma maionese ‘pega’, ou que uma forma nasce de repente,
num fenômeno de emergência que é a aparição inata de um sentido (BESSE,
2006, p. 89).
A paisagem é para Dardel expressão do encontro singular entre a Terra e o projeto
humano. Não há paisagem de sobrevôo. Olhar a paisagem é um movimento de intimidade
e de profundidade na relação de experimentação que vincula o homem à Terra. É por esse
vínculo que se revela a “geograficidade originária do ser humano, que é, para o espaço, o
par daquilo que a noção de historicidade representa para a relação do homem com o tempo”.
(BESSE, 2006, p. 93).

Aula 5 Organização do Espaço 95


A paisagem é criação e recriação da natureza no homem, na medida em que este, ao
modificar as formas originais, percebe, experimenta e vivencia os processos sócio-afetivos
que estruturam e constituem a sua relação com a natureza. Na mesma dimensão, ocorre a
criação e recriação do homem na natureza, visto que esta, ao assumir contornos moldados
pela ação humana, ressignifica suas formas originais, passando a adquirir ritmos e feições
vinculados ao resultado do encontro do homem com a natureza. De uma perspectiva
fenomenológica, a paisagem possibilita ao homem relembrar esse encontro. E mais, permite
refletir que a ‘habitalidade’ do mundo deve se pautar por um compromisso ético e estético
em que se possa concretizar uma vivência mais equilibrada entre os limites da natureza e os
desejos humanos. A percepção da paisagem não é uma atitude passiva do sujeito diante do
mundo, mas uma experimentação, criando o espaço vivido. A percepção é um exercício de
objetivação da natureza no homem, do homem na natureza.

Atividade 3
Vamos praticar!

Pesquise como o tema paisagem é abordado em livros didáticos de 9º ano e de


Ensino Médio.

Apresente o conceito(s) de paisagem abordado(s) no livro didático escolhido por você.

Compare as noções encontradas com as idéias postas até aqui nesta aula e apresente
três pontos semelhantes e três diferenças.

96 Aula 5 Organização do Espaço


A trama do visível e do invisível
Você viu até agora que a paisagem é um conceito que se define a partir da perspectiva
teórico-metodológico utilizada. Assim, na perspectiva positivista, ela fica presa ao universo
do visível e do que pode ser descrito dos elementos que se encontram ao alcance da visão do
observador. É claro que tal observação/descrição procura neutralizar as variáveis subjetivas
que podem interferir na análise e na síntese. Assim, há uma preponderância do que se vê e da
identificação dos elementos como fundamentais no processo de explicação das diferenciações
paisagísticas. O que está disponível à visão se torna central na compreensão da paisagem.

Já na abordagem dialética, tem-se o reconhecimento da percepção como caminho inicial


para a compreensão da paisagem, mas é necessário ao sujeito saber ultrapassar o aspecto
visível a fim de encontrar os elementos que são responsáveis pela trama paisagística. Assim,
ganha centralidade a produção da paisagem como resultado dos movimentos estruturantes
da sociedade, como o trabalho, a técnica e as condições de realização de dominação do
homem sobre a natureza, alterando a natureza primeira em uma segunda natureza. A paisagem
revela o aspecto imediato desse processo, mantendo em sua fisionomia as contradições,
permanências e rupturas que regem a sociedade em sua relação com a natureza.

A vertente fenomenológica assume a percepção como condição para compreender a


paisagem, sem cisões ou fragmentações. A paisagem é o elo de comunicação do sujeito com
o mundo. A percepção da forma é condição de objetivação do sujeito no mundo. Não há,
portanto, subordinação entre as condições subjetivas e objetivas na produção da paisagem,
na media em que o espaço geográfico é a própria vivência do homem na Terra. O visível se
mistura ao invisível, de maneira que o que aparece é sempre o resultado de processos de
experimentação e vivência do homem na natureza.

Assim, você deve ter percebido que a discussão da paisagem está enredada na trama
do visível e do invisível, sobre a qual se estabelece a lógica de explicação da sociedade. Tal
explicação decorre da combinação das técnicas e saberes culturalmente organizados. Assim,
o que vemos e sentimos é mediado por essa combinação.

Para compreender melhor o que está sendo dito, podemos perguntar: o que é a Terra?
Se tomarmos o conjunto de imagens de satélites que são feitos sobre o planeta, podemos
enxergar uma superfície marcada por grandes transformações, em que a técnica e ação
humana se apresentam como mestras.
Captada de longe, pelas lentes de câmeras em órbita, a Terra deixa entrever imensos
oceanos, imponentes cadeias de montanhas, vastas massas continentais. As imagens
noturnas revelam manchas luminosas e pontos de luz que correspondem às cidades,
às concentrações de poços de petróleo e até mesmo aos faróis de frotas de navio
pesqueiros (MAGNOLI, 2005, p. 13).

Se recuarmos no tempo e fizermos a mesma pergunta tendo por referência a Antiguidade,


a resposta, porém, não será a mesma. Essa diferença resulta, justamente, das condições de
objetivação da técnica e do conhecimento produzidos em escalas distintas.

Aula 5 Organização do Espaço 97


Hoje, por meio dos instrumentos técnicos e das informações existentes é possível
encontrar a paisagem do alto sem precisar se elevar ao cume de uma montanha, como
fez Petrarca. Pode-se ver a superfície da Terra como uma incorporação das técnicas e da
tecnologia criando a multiplicidade de paisagens. Quando observamos a paisagem, podemos
enxergá-la como uma composição de tempos que misturam ações do presente, do passado
e direcionam modelagens futuras. Na trama do visível, podemos avaliar, criticar e intervir no
resultado da ação humana, pois ela está tatuada na paisagem.

Assim, “as paisagens não existem a priori, como um dado da natureza, mas somente em
relação à sociedade. Em diferentes períodos históricos, o olhar lançado sobre o meio elege
e inventa paisagens em uma construção social que não cessa” (LUCHIARI, 2001, p. 20). Por
meio da habilidade humana, a natureza não se esgota, mas regenera-se, refaz-se, renova-
se. Esse processo está atrelado ao compromisso do sujeito com o entorno, reconhecendo
nele a sua própria existência. Desta feita, o sujeito, ao se colocar na paisagem, deve assumir
o compromisso ético e estético com a mesma. Essa perspectiva exige dele saber olhar,
se posicionar diante do que está sendo visto. Pense que na paisagem está a História e a
Geografia simultaneamente enlaçadas. Verifique que é possível ver as mazelas do mundo
com apenas um olhar. Assim, ver a paisagem é olhar a realidade em um grande espelho que
reflete diversas faces da própria humanidade.

Atividade 4
Vamos Praticar!

Veja as imagens:

A partir delas, o que você pensa da relação entre paisagem e ética? Reflita e escreva a
sua opinião.

98 Aula 5 Organização do Espaço


Paisagem
natural x paisagem transformada:
uma oposição possível?
Vamos analisar um outro ponto que é bastante tradicional no estudo da paisagem
geográfica: a diferença entre paisagem natural e paisagem humanizada. Define-se paisagem
natural como resultado de uma combinação singular de elementos, como relevo, solo e as
formações vegetais. Esses elementos se modificam ao longo do tempo, em um ritmo lento
e quase imperceptível.

A paisagem humanizada refere-se àquelas formações resultantes da ação humana


ou das sociedades na superfície terrestre. Elas são produtos do trabalho social, isto é, do
esforço coletivo e organizado das gerações que, por meio de técnicas disponíveis, instalam
artefatos os quais são utilizados e recriados a partir das múltiplas interações que se realizam.

Essas definições têm hoje valor apenas didático, não se constituindo um viés de
interpretação e análise das formas espaciais. Não se pode mais considerar uma fronteira material
entre o físico e o humano na leitura do espaço. A fisionomia do espaço assumiu uma feição em
que elementos da natureza se misturam ao humano criando feições espaciais heterogêneas. As
relações homem-natureza responsáveis pela trama paisagística combinam ritmos diferenciados,
distensões e próteses. O natural não é um dado do real, mas uma construção do real. É,
segundo Armando Corrêa da Silva (1993), um ponto de vista derivado da observação. Por isso,
“a natureza só se apresenta ao indivíduo, ao grupo por meio de um treinamento” (SILVA, 1993,
p. 42). E acrescenta: “então, não se trata de procurar o natural nos lugares ainda intocados pela
humanidade. O natural está presente na informática, na cibernética, na robótica, na telemática”
(Idem, ibdem). A paisagem não é única, mas revela o grau de bricolagem em que se encontra
a informação e a comunicação na relação homem-natureza.

A partir daí, é possível perceber que “o equilíbrio resultante dessas combinações não
têm nada de estável, que ele está à mercê de modificações cuja multiplicidade de fatores
abrem uma ampla margem” (LA BLACHE, 1985, p. 43). Os estudos geográficos sobrevivem
das transformações remanejadas no tempo, das misturas, dos resíduos que se incrustam nas
formas espaciais, resultantes da indissociável relação entre o homem e a natureza. Afirma
Vidal de La Blache (1985, p. 42) que “a obra do passado persiste através do presente como
matéria sobre a qual se exercem as forças atuais. A partir daí estamos em plena Geografia”. A
superfície da Terra é laboratório de múltiplos resíduos que, ao se combinarem, formam o meio
geográfico, exigindo do geógrafo o saber olhar. Para saber olhar, é necessário compreender
a priori esse laboratório marcado por relações de interdependência entre o movimento e a
inércia, a rugosidade e a transformação, o fluxo e o repouso, o real e o virtual, a convivência
e a barbárie, o símbolo e a matéria, superando as fronteiras pragmáticas e paradigmáticas
que estão fincadas nas estranhas de sua trajetória.

Aula 5 Organização do Espaço 99


Assim, a paisagem é uma categoria da análise geográfica que possibilita problematizar
o espaço a partir do conjunto de objetos fixos dinamizados por meio dos fluxos de idéias,
percepções, valores, condutas, usos apropriações que variam no tempo. A natureza coloca
seus elementos; o homem coloca as suas técnicas; a paisagem é síntese dessa combinação
natureza-técnica, em que não se pode separar uma da outra sob o risco de cairmos na
armadilha da fragmentação, que isola o homem da natureza, a partir de conceitos que
dificultam a compreensão dos problemas. No mundo técnico-científico e informacional,
o qual caracteriza a era da globalização, a paisagem concretiza múltiplos usos e funções.
Sugere inúmeras apropriações em função da utilização do espaço como mercadoria. Pode-
se falar, de acordo com Milton Santos (1996, p. 191), em uma cientificização e tecnicização
da paisagem, em que cada vez mais são colocadas próteses visando ampliar o raio de
acumulação de capitais e de sedução às práticas inovadoras ativadas por agentes sociais
distintos. O meio geográfico globalizado impõe-se como uma lógica que estimula no espaço
a realização do particular no universal, do universal no particular. Assim, a Geografia é
um empecilho ou uma abertura a esse modelo, constituindo um ponto ou nó na rede de
informações e trocas que alimentam a sociedade hoje.

Finalizando a nossa abordagem, sugerimos alguns temas para reflexões, os


quais você pode assumir como caminhos de pesquisa.

1) A noção de ecossistemas e paisagem: qual é o lugar do homem nesse


contexto?

2) Biomas e paisagens: como compreender a natureza em transformação?

3) Paisagens urbanas: onde está a natureza?

4) Paisagem: qual o lugar da natureza e do homem na trama morfológica?

Resumo
Nesta aula, foi feita uma abordagem teórico-metodológica e prática da paisagem
como categoria da análise geográfica. Contextualizamos a reflexão em situações
de ensino-aprendizagem, a qual exigiu do aluno a leitura e a participação ativa
nas atividades. Assim, vimos que a paisagem é um conceito e uma prática de
análise do espaço, constituindo-se em um campo de reflexão e ação do sujeito.

100 Aula 5 Organização do Espaço


Autoavaliação
Tendo em vista que a paisagem está enredada na trama do visível e do invisível, observe
esta imagem.

A partir do que você observou, elabore um texto reflexivo em que seja feita uma descrição
e uma análise teórico-metodológica da paisagem como categoria de análise geográfica.

Referências
BESSE, Jean-Marc. Ver a terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. São Paulo:
Perspectiva, 2006.

GOMES, Edvânia Torres Aguiar. Natureza e cultura: representações na paisagem. In:


ROSENDHAL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.). Paisagem, imaginário e espaço. Rio
de Janeiro: EDUERJ, 2001. p. 50-70.

GOMES, Paulo César da Costa Gomes. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1996.

LA BLACHE, P. V. As características próprias da geografia. In: CHRISTOFOLETTI, A. (Org.).


Perspectivas geográficas. 2. ed. São Paulo: DIFEL, 1985.

LUCHIARI, Maria Tereza Duarte Paes. A (re)significação da paisagem no período


contemporâneo. In: ROSENDHAL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.). Paisagem,
imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. p. 09-28.

Aula 5 Organização do Espaço 101


MAGNOLI, Demétrio; REGINA Araújo. Geografia: a construção do mundo. São Paulo:
Moderna, 2005. (Geografia Geral de Brasil).

MORAES, Vinícius. Para viver um grande amor: crônicas e poemas. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. 3. edição. São Paulo: HUCITEC, 1994.

______. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996.

SILVA, Armando Corrêa. A geografia humana e a abordagem naturalista. In: SOUZA, M. A et


al. (Org.). Natureza e sociedade de hoje: uma abordagem geográfica. São Paulo: HUCITEC,
1993. (p. 42-45).

Anotações

102 Aula 5 Organização do Espaço


Anotações

Aula 5 Organização do Espaço 103


Anotações

104 Aula 5 Organização do Espaço


Lugar e (des)identidade

Aula

6
Apresentação

N
esta aula, você será levado a refletir sobre o conceito de lugar na ciência geográfica.
A abordagem está ancorada em reflexões que contextualizam essa noção a partir
de referências como localização, experiência e globalização. Dessa forma, discute-
se a relação entre a localização e o lugar; o lugar e a experiência tramando a identidade
e o pertencimento; a globalização e a definição do lugar e do não-lugar. Partindo dessas
relações, analisamos as diferenças e conexões que perpassam esse conceito, sintetizando
que na esfera do lugar se realiza o não-lugar, no processo de identificação se estabelece
a não-identificação, no sentimento de estranhamento pode emergir a familiaridade. É do
jogo da negação e da afirmação que se revela o sentido do espaço e do lugar no mundo
contemporâneo. De maneira sistemática, são sugeridos alguns exercícios para serem
realizados por você, de forma a estimular a reflexão teórica articulada à prática.

Objetivos
Compreender o conceito de lugar a partir de diferentes abordagens.
1
Analisar a relação entre localização, experiência e globalização na
2 definição de lugar.

Entender a relação entre lugar e não-lugar no contexto da globalização.


3
Saber aplicar o conteúdo conceitual em situações-problema.
4

Aula 6 Organização do Espaço 107


Localizar: um ponto, um lugar

Esta aula aborda a noção de lugar. Imagine um ponto, uma pedra, um quadro,
uma cadeira, uma casa, uma rua, uma cidade, um país, um continente, a
Terra. Todo esse enunciado contém lugares, mas será que todos os lugares
anunciados podem ser considerados geográficos?

Dê sua opinião.

Agora, vamos ampliar a nossa abordagem. Retomemos a noção de Geografia como


a descrição da Terra. A partir dessa definição, impõem-se ao sujeito que quer descrever a
necessidade de inventariar, localizar e caracterizar a distribuição dos fenômenos na superfície
terrestre, levando-o ao encontro da forma, do contorno e do limite. Nesse encontro, o sujeito
percebe a diferenciação espacial existente entre as diversas áreas visitadas, mapeando os
locais de ocorrência dos fenômenos. Considerando a preocupação em precisar ONDE os
fenômenos se situam, a Geografia foi tramando a sua trajetória como Ciência.

Veja o mapa a seguir:

Figura 1 - O planisfério e as coordenadas geográficas


Fonte: Magnoli e Araújo (2005, p. 37).

108 Aula 6 Organização do Espaço


A partir do mapa, você é capaz de determinar de maneira precisa a localização geográfica
dos continentes. Tal LOCALIZAÇÃO é denominada de ABSOLUTA, pois é convencionada por
um sistema de coordenadas geográficas que lhe permite identificar os lugares a partir da
latitude e da longitude.

No entanto, o espaço não se revela apenas por sua abordagem geométrica, mas
também pela dinâmica de sua organização social e articulação técnica. A noção de espaço,
conforme você já estudou, está ligada à concepção de tempo, assim como a de movimento
e, consequentemente, a de estrutura e processo. Dessa perspectiva, agrega-se à noção
de localização absoluta a de LOCALIZAÇÃO RELATIVA, a qual diz respeito à posição que
um lugar ocupa em relação a outras localidades, podendo ser expressa das mais variadas
maneiras (em tempo de percurso, em custo dos transportes, em freqüência de comunicação
etc.). (CRISTOFOLETTI, 1985, p. 84). De forma sintética, pode-se dizer que enquanto a
localização absoluta é fixa e constante, a relativa pode sofrer alterações com o tempo, de
acordo com as inovações técnicas, dos meios de comunicação e informação, fazendo com
que haja aproximação, encurtamento e intensificação dos contatos entre os lugares.

O espaço vai sendo revelado a partir da malha de informações que a ele se agrega,
configurando-se em lugares para morar, trabalhar, amar, casar, ter filhos... Enfim, os lugares
são pontos onde as múltiplas dimensões da vida (física, econômica, política, cultural) fincam
suas raízes. Essa condição atravessa o tempo e se institui como necessária à reprodução da
vida. Veja um exemplo que confirma essa afirmação.

Figura 2 – Noções cartográficas


Fonte: Didonê (2008).

Se você observar bem essa figura, deverá perceber que, independente da organização
social e do tempo histórico, o espaço vai se desenhando a partir de uma malha de pontos e
nós que permitem a sociedade fincar as matrizes materiais e simbólicas que as regem. Assim,

Aula 6 Organização do Espaço 109


a localização geográfica é, simultaneamente, absoluta e relativa. Absoluta, na medida em
que permite que sejam visualizados e identificados os locais onde a ação humana interveio,
colocando na paisagem as próteses necessárias a sua sobrevivência enquanto ordem social.
Relativa, na medida em que é possível analisar as distintas maneiras de comunicação e
articulação entre as formas e funções que tocam o espaço, constituindo os (des) níveis nas
negociações e trocas simbólicas que enredam a tessitura do espaço.

Vamos Praticar!

Atividade 1
a) Junto às pessoas mais velhas (na faixa de 60 anos), procure saber quais
eram os meios de comunicação que serviam para articular a sua cidade à
capital do Estado.

b) Identifique os meios de comunicação utilizados atualmente para realizar a


mesma função.

c) Compare as duas realidades, reflita e elabore uma síntese sobre a noção de


localização absoluta e relativa.

110 Aula 6 Organização do Espaço


Da localização ao lugar:
a perspectiva da experiência
Você estudou a dimensão da localização para ciência geográfica. É muito comum,
na linguagem cotidiana, as palavras localização e lugar assumirem o mesmo sentido. No
entanto, como conceitos geográficos passam a figurar como suportes à compreensão da
realidade. Assim, já abordamos o lugar na perspectiva da localização, agora vamos adentrar
o campo da experiência vivida como referência para definir e explicar o lugar.

Nessa direção, apresentamos um pouco as idéias de Yi-FU-Tuan (1983) a respeito de


espaço e lugar. Para ele, esses termos são familiares, indicam um campo de experiência
do sujeito com o meio que pode ser expressa em afirmações correntes como: “vivemos no
espaço”, “não há lugar para outro edifício no lote”. Assim, no cotidiano esses vocábulos
habitam a nossa linguagem e, mais, alimentam imagens e representações que são guardadas
na memória, passando a compor o repertório de lembranças que se tem dos espaços vividos.

Leia o fragmento a seguir. Sinta o sertão nas palavras, navegue pelas veredas abertas
pelo texto. Pense qual é o sertão que está dentro de você.

Cada vivente tem o seu sertão. Para uns são as terras além do horizonte e para
outros o quintal perdido da infância. É o interior mais distante. As entranhas
da terra. [...]. É quando a gente dá as costas para o mar e se interna de terra
a dentro, vai deixando para trás o chão arenoso do litoral e passa a pisar o
terreno mais barrento do agreste. [...] Ali (sertão) os invernos são escassos
e irregulares [...]. Os matos como que tiveram de aprender a viver com pouca
água. São mais baixos, ralos, de folhas grossas e galhos contorcidos como
torturados e mais das vezes espinhentos. Desde as mais rasteiras touceiras
de xique-xique e macambira até as plantas de maior porte como a jurema, a
unha-de-gato, o juazeiro, a quixabeira e a favela. É que ali as plantas também se
defendem. Daí os vaqueiros envergarem encouramento para traquejar o gado Traquejar
na caatinga. Quando aparta o inverno as folhas amarelam e caem, deixando os Aqui está empregado no
galhos como garranchos nus implorando chuva. É o belo-horrível da caatinga sentido de correr atrás,
em dormência, paisagem de uma natureza morta. Mas logo nas primeiras perseguir.

chuvas acordam numa explosão verde e do descampado dos chãos brota o


panasco como um arrepio vegetal. Ali a erosão fez aflorar pedras de todos os Panasco
tamanhos. Quando graúdas, como monumentos, os sertanejos as chamam de
Vegetação que serve de
serrotes. (LAMARTINE, 2004). alimento para o gado.

Aula 6 Organização do Espaço 111


Ao ler o fragmento, pode-se perceber que a narrativa está baseada na experiência que
o sujeito tem com o lugar, definindo as suas vivências e pertencimentos. As experiências
dizem respeito às diferentes maneiras que os indivíduos têm de conhecer e construir a
realidade. Elas se alimentam e são alimentadas pelo espaço vivencial em que se faz presente
o campo material e simbólico em as fronteiras são tênues e indefinidas. Não saberíamos
responder se são as características físicas do sertão que definem as experiências ou se
são as imagens que o habitante faz do sertão que definem as suas experiências. Assim, o
lugar na perspectiva da experiência define-se como a base de reprodução da vida, a seiva
do pertencimento. É a partir do estabelecimento dos vínculos com o espaço que o homem
cria representações e vivências, que finca a identidade do sujeito e do lugar.

Conforme Carlos (1996, p. 20) “o lugar é a porção do espaço apropriável para vida –
apropriada através do corpo – dos sentidos – dos passos de seus moradores, é o bairro,
a praça, é a rua [...]”. O lugar se estabelece a partir do plano do vivido, do conhecido e
reconhecido como parte de pertencimento do habitante em um espaço delimitado, que
aprofunda os laços entre habitante-lugar, habitante-habitante. Nesse sentido, nem todos
os espaços são lugares. Os lugares

São aqueles que o homem habita dentro da cidade que dizem respeito ao seu cotidiano
e ao seu modo de vida, onde se locomove, trabalha, passeia, flana, isto é, pelas formas
através das quais o homem se apropria e vão ganhando o significado dado pelo uso.
Trata-se de um espaço palpável – extensão exterior, o que é exterior a nós, no meio
do qual nos deslocamos. Nada também de espaços infinitos. [...] São as relações que
criam o sentido dos lugares... Isto porque o lugar só pode ser compreendido em suas
referências, que não são específicas de uma função ou de uma forma, mas produzidas
por um conjunto de sentidos, impressos pelo uso (CARLOS, 1996, p. 22).

O lugar se revela na prática imediata e cotidiana do indivíduo com o ambiente que lhe
está mais próximo. É a familiaridade que transforma o espaço em lugar habitado. O tempo
e a memória são responsáveis por assegurar uma feição identitária, a partir das camadas
de significações que se compactam, minimizando a força da razão e ampliando os canais de
comunicação subjetiva que enraíza o homem ao lugar. De forma sugestiva, pode-se pensar o
lugar como uma duplicação do mundo real, tramado nas teias da imaginação.

Nessa sentido, leia o que pensa Yi-fu-Tuan sobre a relação tempo e lugar.

Saber como tempo e lugar estão relacionados é um problema intrincado que requer
diferentes abordagens. Vamos explorar três delas: tempo como movimento ou fluxo,
e lugar como pausa na corrente temporal; afeição pelo lugar como uma função de
tempo, captada na frase: ‘leva tempo para se conhecer um lugar’; e lugar como tempo
tornado visível, ou lugar como lembrança de tempos passados. O lugar é um mundo
de significados organizados. É essencialmente um conceito estático. Se víssemos o
mundo como processo, em constante mudança, não seríamos capazes de desenvolver
um sentido de lugar. (TUAN, 1983, p. 198).

112 Aula 6 Organização do Espaço


O que será que Tuan quer dizer? Vamos tentar decifrar.

1. O tempo como movimento e fluxo; o lugar como parada – imagine que você tem uma
meta a ser cumprida e que para isso precisa percorrer um caminho. O movimento que será
feito para atingir o objetivo se constitui um ponto no tempo e no espaço. O lugar, nesta
perspectiva, aparece como acampamento ou uma parada no caminho para atingir o que se
vislumbra para o futuro. A construção do sentido de lugar pautada na experiência apresenta
a conotação de um ponto de parada, repouso, descanso em uma escalada de pretensões a
serem alcançadas. O lugar é passagem.

2. Afeição pelo lugar como uma função de tempo – uma das características do homem
moderno é o deslocamento, sem tempo para criar raízes. Sua experiência e apreciação do
lugar são sempre superficiais. Leva tempo para se afeiçoar a um lugar. Isso ocorre a partir
de uma mistura particular de vistas, cheiros, sons, uma harmonia ímpar de ritmos naturais e
artificiais. “Sentir um lugar é registrado pelos nossos músculos e ossos”. A experiência com
o lugar pode ser intensa ou discreta, fugaz ou demorada, sofrida ou prazerosa; elas ocorrem
ao longo de toda uma vida, sendo percebida e sentida na dinâmica dessa trajetória. Destas,
resultam as distintas formas de afeição que o sujeito tem com o espaço. Assim, “A sensação de
tempo afeta a sensação de lugar”. À medida que se vive aumenta o peso do tempo, marcando
a experiência com o espaço. Pode-se perguntar: O que isso significa? Como se dá a relação
passado, presente e futuro tecendo o sentido do lugar? Muitas podem ser as respostas. Porém,
pode-se destacar que é necessário considerar a passagem do tempo relacionado ao ciclo da
vida humana. Dessa relação, emergem as distintas percepções e vivências com o lugar. Não
existe lugar, mas lugares que se revelam pelas múltiplas experiências que os indivíduos têm
com o meio, instituindo o processo de identificação do indivíduo com o espaço.

3. Lugar como tempo tornado visível, ou lugar como lembrança de tempos passados
– o lugar materializa a experiência por meio de um campo simbólico em que os “objetos
seguram o tempo”. O bairro, a rua, o bar, a escola, os amigos, a fotografia, o desenho, o
baralho, a baixela, a escrivaninha são partes que possibilitam reencontrar o lugar como
cenário que abarca a teia da identidade.

A literatura é uma boa companheira para nos ensinar mais sobre isso. Leia esse
fragmento de Marcel Proust, extraído do livro Em busca do tempo perdido.

Aula 6 Organização do Espaço 113


Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo que não fosse o teatro e o drama do
meu deitar não existia mais para mim, quando num dia de inverno, chegando eu em casa,
minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de
chá. A princípio recusei e, nem sei bem por que, acabei aceitando. Ela então mandou buscar
um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter sido
moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado
pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma
colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleine. Mas no mesmo instante
em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento
ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem
a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha
vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o
amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim,
ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa
alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o
infinitivamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha? Que significaria? Onde
apreendê-la? Bebi um segundo gole no qual não achei nada além do que no primeiro, um
terceiro que me trouxe um tanto menos que o segundo. É tempo de parar, o dom da bebida
parece diminuir. É claro que a verdade que busco não está nela, mas em mim. Ela a despertou,
mas não a conhece, podendo só repetir indefinidamente, cada vez com menos força, o mesmo
testemunho que não sei interpretar e que desejo ao menos poder lhe pedir novamente e
reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um esclarecimento decisivo.
Deponho a xícara e me dirijo ao meu espírito. Cabe a ele encontrara verdade. Mas de que
modo? Incerteza grave, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo;
quando ele, o pesquisador, é ao mesmo tempo a região obscura que deve pesquisar e onde
toda a sua bagagem não lhe servirá para nada. Procurar? Não apenas: criar. Está diante de
algo que ainda não existe e que só ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua luz.
E recomeço a me perguntar o que poderia ser esse estado desconhecido, que não
apresentava nenhuma prova lógica, e sim a evidência de sua felicidade, de sua realidade, ante a
qual as outras se desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Pelo pensamento, retrocedo ao
instante em que tomei a primeira colherada de chá, e encontro a mesma situação, sem qualquer
luz nova. Peço a meu espírito mais um esforço, que me traga ainda uma vez a sensação que
escapa. E, para que nada quebre o impulso com que ele vai procurar recuperá-la, afasto todos
os obstáculos, toda idéia estranha, protejo meus ouvidos e minha atenção contra os rumores
da sala ao lado. Porém, sentindo que o espírito se cansa sem proveito, forço-o, ao contrário, a
aceitar a distração que lhe recusava, a pensar em outra coisa, a se refazer antes de uma tentativa
suprema. Depois, pela segunda vez, faço o vácuo diante dele, e coloco-o de novo em face do
sabor ainda recente daquele primeiro gole, e sinto palpitar em mim algo que se desloca, desejaria
elevar-se, algo que teria se soltado a uma grande profundidade; não sei o que é, mas aquilo sobe
devagar; experimento a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas.
Certamente, o que palpita desse modo bem dentro de mim, deve ser a imagem, a
lembrança visual, que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até mim. Mas debate-se muito longe,
muito confusamente; mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o inatingível turbilhão
de cores remudadas; e não consigo distinguir a forma, pedir-lhe como ao único intérprete
possível, que me traduza o testemunho de sua contemporânea, de sua companheira inseparável,
pedir-lhe que me diga de que circunstância particular, de que época do passado se trata.

114 Aula 6 Organização do Espaço


Será que vai chegar até a superfície de minha clara consciência, essa lembrança, o
instante antigo que a atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, comover,
erguer do fundo de mim? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, desceu de novo talvez;
quem sabe se nunca mais voltará de sua noite? Dez vezes é preciso que eu recomece, que me
debruce para ele. E, a cada vez, a canseira que nos desvia de toda tarefa difícil, de toda obra
importante, me aconselhou largar aquilo, beber meu chá pensando apenas nos aborrecimentos
de hoje, nos desejos de amanhã, que se deixam remoer sem fadiga.
E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedacinho de madeleine
que minha tia Léonie me dava aos domingos pela manhã em Combray (porque nesse dia
eu não saía antes da hora da missa), quando ia lhe dar bom-dia no seu quarto, depois
de mergulhá-lo em sua infusão de chá ou de tília. A vista do pequeno biscoito não me
recordara coisa alguma antes que o tivesse provado; talvez porque, tendo-o visto desde
então, sem comer, nas prateleiras das confeitarias, sua imagem havia deixado aqueles
dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, dessas lembranças
abandonadas há tanto fora da memória, nada sobrevivesse, tudo se houvesse desagregado;
as formas – e também a da pequena conchinha de confeitaria, tão gordamente sensual
sob as suas estrias severas e devotas – tinham sido abolidas, ou, adormentadas, haviam
perdido a força de expansão que lhes teria permitido alcançar a consciência. Mas, quando
nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destrui-
ção das coisas, sozinhos, mais frágeis, porém mais vivazes, mais imateriais, mais
persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como
almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se
submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações.
E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que
me dava minha tia (embora não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde
a descoberta de por que essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta
que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se
colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos
(o lanço truncado que era o único que recordara até então); e com a casa, a cidade,
da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do
almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom
tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia
de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal
são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se
Fonte: Proust (2002, p. 51-53).

flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do


nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente
da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas,
tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.

Aula 6 Organização do Espaço 115


A literatura e o lugar
A descrição apresenta, de forma exemplar, a volta do lugar como um reencontro com
o tempo das vivências singulares do indivíduo. O que retorna vem à tona através de cheiros,
sabores, imagens, frustrações e decepções que estão no enredo da vida e tecem os fios da
memória, da lembrança e da imaginação. O lugar, adormecido nos recônditos da memória, é
um fragmento das experiências vividas que se refugiou a “sete chaves”, fazendo amortecer
a força dos detalhes na construção dos lugares.

A narrativa pode ensinar sobre distintos elementos que estão presentes na leitura do
lugar, quando escolhemos a percepção e a experiência como guias da interpretação do que ele
é. Dela, você pode extrair e refletir sobre diversos aspectos que estão implicados na noção de
lugar. No entanto, destacamos lugar e memória, lugar e experiência, lugar e afetividade como
relações que estão presentes na chama imprecisa da lembrança e que se revela a partir de
um gole de chá. O passado se recuperava, fazendo o indivíduo experimentar a busca de um
tempo perdido. Nesta, o lugar se desvela pela composição que mistura emblemas, formas,
imagens e sensações. A partir daí, o lugar, assim como Cambray, conquista a eternidade, e
como tal é imóvel, indissolúvel, matéria que cimenta a identidade que mesmo, parecendo
perdida, retorna numa memória involuntária despertada por um sabor, um gesto, um gole de
chá. A afeição ao lugar é tramada na teia complexa da identidade, de modo que muitas vezes
não se distingue se é o lugar que tece o indivíduo ou indivíduo que cria os lugares.

Vamos praticar!

Atividade 2
Você até agora viu duas perspectivas para se compreender o lugar: a primeira
pelo viés da localização geográfica de um ponto; a segunda como resultado da
experiência do indivíduo com o espaço.

 Escolha um texto literário (conto, poesia, cordel, romance, etc);

 Selecione do texto uma descrição do lugar em que se desenvolve o enredo;

 Analise o fragmento selecionado de acordo o conceito de lugar na


perspectiva da experiência.

116 Aula 6 Organização do Espaço


Do lugar ao não-lugar:
desconstruindo a identidade?
A partir desse título, você pode está se perguntando: o que foi dito até agora não tem
mais sentido?

Calma, a construção do conhecimento é assim mesmo. Você precisa aprender sobre


as diversas faces de uma mesma questão. Portanto, o lugar como categoria de análise
geográfica deve ser problematizado a partir de contextos diversos, sem que uma visão
anule a outra.

Assim, vamos seguir a trilhar dos lugares procurando, agora, encontrar na identidade
a não-identidade, no lugar o não-lugar.

Vimos que o lugar pode ser um ponto ou uma construção que resulta de uma
experiência singular. Vamos submeter essas noções a um contexto sócio-espacial
específico que especialistas das mais diferentes áreas denominam de globalização. Você
já viu no início dessa disciplina o que é esse processo, como ele se caracteriza e quais as
implicações para a organização do espaço geográfico. Não vamos descrever mais esses
elementos, pois você já os tem disponível em aula anterior.

Partimos, portanto, de alguns questionamentos para problematizarmos esse tópico


da nossa aula. Vamos a eles.

1. É possível falar da singularidade como característica do lugar em um período de


globalização acelerada, que tende a transformar os espaços em feições homogêneas?

O mundo hoje sobrevive de mudanças. Elas estão em todas as esferas da vida.


Não é necessário ir muito longe para encontrar o ritmo das transformações da
sociedade atual. Basta olhar para dentro de sua casa e verificar os meios que você
tem disponível para se comunicar: rádio, televisão, telefone, internet... Na base das
alterações, está o desenvolvimento técnico, a informação e a comunicação. Olhe o
seu entorno e veja como esses elementos se fazem presentes em sua vida. Observe
como eles condicionam o seu dia-a-dia e perceba que isso não ocorre somente com
você mais está presente no cotidiano dos habitantes da cidade. Podemos dizer ainda
que essa realidade não é somente vivida por você ou pelas pessoas de sua cidade,
mas também por inúmeras outras localidades que almejam, consomem, produzem as
mesmas mercadorias guiadas por ideais e valores universalmente partilhados. Nesse
contexto, o sentido do lugar parece esvaziar-se. O processo de diferenciação dos
lugares parece perder-se na ciranda da globalização, que tende a tornar homogêneo
todos os espaços, anulando o seu papel no processo de produção e significação da

Aula 6 Organização do Espaço 117


vida. No entanto, é preciso saber olhar para enxergar nesse movimento a força do
lugar como o cenário em que a globalização se materializa. Assim, o lugar, ao invés
de se tornar uma feição discreta, assume um papel fundamental para a compreensão
do desenvolvimento da sociedade atual. Por meio dele, pode-se compreender as
diferentes texturas que a globalização assume quando toca o solo no qual se produz
a vida; pode-se compreender a diferenciação do processo de integração espacial que
articula a realidade local ao feixe de relações que movimentam a realidade mundial;
pode-se ainda analisar o sentido da experiência a partir da articulação do lugar e do
mundial, do singular e do universal. Assim, da relação entre o global e o local, pode-se
reconhecer a singularidade dos lugares, na medida em que é aí que o mundial ganha
expressão. O singular não se define pelo isolamento, mas, pelo contrário, revela-se
pela integração. “o lugar abre a perspectiva para se pensar o viver e o habitar, o uso
e o consumo, os processos de apropriação do espaço. Ao mesmo, tempo, posto que
preenchido por múltiplas coações, expõe as pressões que se exercem em todos os
níveis” (CARLOS, 1996, p. 15).

2. O lugar pode ser visto como um ponto, em uma rede de articulações múltiplas que
redefinem o sentido da identidade e da experiência?

Desta feita, é possível falar do lugar como um ponto, um nó em uma rede ampla de
experiências. Estas não se restringem ao universo das vivências individuais, mas são
organizadas no âmbito da sociedade que deseja, trabalha, produz e acumula riquezas.
Nesse contexto, o espaço é objeto e condição para a realização da sociedade. Ele pode
ser um obstáculo ou facilitador para as redes de trocas que alimentam os fluxos de
mercadorias, idéias e informações. Se o espaço é um sistema de objetos e um sistema
de ações, como afirma Milton Santos, o lugar é a combinação singular desses dois
sistemas. Cada lugar corresponde, em cada momento, a um conjunto de técnicas e
instrumentos de trabalho que se articulam, definido os níveis de inserção do espaço
local no espaço global.

118 Aula 6 Organização do Espaço


Para exemplificar essa relação entre o local e o global veja a tabela a seguir.

Tabela 1 - Os 15 principais países comerciantes do mundo (2005) (em bilhões de dólares).

Participação sobre Participação sobre o


Posição/ país Exportações Posição/ país Importações
o Total mundial (%) Total mundial (%)

1. Alemanha 969,9 9,3 1. Alemanha 1.732,4 16,1


2. Estados 2. Estados
904,4 8,7 773,8 7,2
Unidos Unidos
3. China 762,0 7,3 3. China 660,0 6,1
4. Japão 594,9 5,7 4. Japão 514,9 4,8
5. França 460,2 4,4 5. França 510,2 4,7
6. Países 6. Países
402,4 3,9 497,9 4,6
Baixos Baixos
7. Reino Unido 382,8 3,7 7. Reino Unido 379,8 3,5
8. Itália 367,2 3,5 8. Itália 359,1 3,3
9. Canadá 359,4 3,4 9. Canadá 319,7 3,0
10. Bélgica 334,3 3,2 10. Bélgica 318,7 3,0
11. Hong
11. Hong Kong,
Kong, 292,2 2,8 300,2 2,8
China
China
12. Coréia 13. Coréia do
284,4 2,7 261,2 2,4
do Sul Sul
13. Rússia 243,6 2,3 14. Rússia 231,7 2,1
14. Cingapura 229,6 2,2 15. Cingapura 200,0 1,9
15. México 189,1 2,1 20. México 125,3 1,2
16. Brasil 118,3 1,1 28. Brasil 77,6 0,7

Fonte: Moreira e Sene (2007, p. 306).

A partir da tabela você pode ter, em parte, uma visualização do que estamos falando.
No processo de articulação do espaço global com o local, as diferenças aparecem, revelando
as múltiplas faces que conformam a realidade local. Para compreender melhor, consulte um
mapa mundi e identifique onde estão esses países. Veja que quase todos os continentes estão
representados, exceto o africano, mas que há uma desigualdade entre as nações quanto
aos fluxos de compra e venda de mercadorias. Essa situação diz respeito, justamente, à
diferenciação dos lugares quanto a sua capacidade de combinar tecnologia, informação e
consumo no processo de desenvolvimento local. Pode-se dizer que o lugar na globalização
unifica e diferencia o padrão técnico, científico, informacional e comunicacional, que rege o
planeta, reorganizando-se na esfera do lugar.

Veja mais algumas figuras que trazem outros exemplos de conexões diferenciadas do global
com o local. Muitas outras existem e podem ser organizadas no decorrer desse processo.

Aula 6 Organização do Espaço 119


Figura 3 – O local e o global: intersecções.
Fonte: Moreira e Sene (2007, p. 304).

Figura 4 – Redes e conexões


Fonte: Moreira e Sene (2007, p. 365).

A superfície terrestre conectada por redes, por meio das quais circulam dinheiro,
pessoas, mercadorias, informações, constituem-se de nós que se distribuem desigualmente,
sendo mais densas ou menos densas de acordo as regiões. Assim, o lugar pode ser visto como
um ponto, um nó na cadeia de relações que se estabelecem entre os espaços. Essas relações
interferem na construção da experiência do sujeito com o espaço e, consequentemente, no
lugar como referência ou identidade. Quanto mais articulados os lugares, mais dinâmico
se torna o processo de diferenciação espacial. Ou seja, o aparato técnico-científico e

120 Aula 6 Organização do Espaço


informacional, que direciona o modelo de reprodução da vida na globalização, exige uma
homogeneização infra-estrutural para se estabelecer e alimentar o ciclo de reprodução
das riquezas em uma sociedade capitalista, sendo o fetiche que seduz, atrai e dinamiza
as experiências, seja em uma escala micro ou macro das realizações humanas. Todos os
lugares almejam o status de global, na mesma medida em que o discurso global se realiza
pela diferença. Com essa afirmação, adentramos os argumentos pertinentes ao último
questionamento.

3. O lugar e o não-lugar são as faces de uma mesma moeda quando se trata de


compreender o espaço geográfico na era da globalização?

O lugar e o não-lugar são as faces de uma mesma moeda em um cenário de


globalização. O espaço é alimento e seiva para os processos de identidade e não-identidade,
de reconhecimento e estranhamento que caracterizam essa fase da nossa história. A
velocidade com que ocorrem as transformações atravessa todas as esferas da vida de modo
que da casa ao bairro, passando pela cidade e pelo campo, experimentam-se processos
de ressiginificação sócio-espacial. Cada vez o espaço é apropriado para ser consumido
e é nesse processo que são entrelaçadas as teias complexas do lugar e do não-lugar.
Leia a seguir o Prólogo do livro Não-Lugares: introdução a uma antropologia da
supermodernidade, escrito por Marc (1994, p. 7-11).

Aula 6 Organização do Espaço 121


122 Aula 6 Organização do Espaço
Neste prólogo, o autor apresenta de forma sugestiva as condições de realização e
experimentação do homem pós-moderno. O espaço como um caminho a ser percorrido
com identificação e sem identidade. São aeroportos, auto-estradas, estações ferroviárias,
metrôs, supermercados, parques temáticos que os indivíduos passam, usam, consomem,
sem estabelecer vínculos afetivos com nenhum deles. Na solidão do caminho, o encontro
com vazio, com o fragmento daquilo que vê em instantâneos fugazes. “Se um lugar pode se
definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como
identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá o não-lugar” (AUGÉ, 1994, p.
73). A oposição constitui a parte essencial que anima a dinâmica dos lugares na globalização.
Os lugares são habitados por não-lugares, realidades construídas de simulacros que animam
os indivíduos a se deslocaram em busca do trabalho, do lazer, do prazer e da perdição.
No percurso, a identificação das transformações espaciais vai despertando no indivíduo
a sensação de estranhamento causada pela desfiguração de uma “paisagem querida que
morre.” Não cabe fugir desse cenário, mas compreender que a desaparição faz emergir uma
outra encenação: a construção de novos mundos.

Assim, na esfera do lugar, realiza-se o não-lugar, no processo de identificação estabelece-


se a não-identificação, no sentimento de estranhamento, pode emergir a familiaridade. É do
jogo da negação e da afirmação que se revela o sentido do espaço e do lugar no mundo
contemporâneo.

Para finalizar a nossa abordagem, você deve perceber que a noção de lugar pode ser
diferente a partir do elemento que está sendo levado em consideração para sua definição
(localização experiência, globalização). Mas, deve compreender também que na diferença se
revela a semelhança e é da localização que emerge o significado, o qual, por sua vez, enlaça
os nós das redes simbólicas e materiais, tecendo as vivências nos e dos lugares.

Resumo
Você viu nesta aula a importância que tem a noção de lugar para a ciência
geográfica. Foi abordada, nesse sentido, a localização, a experiência e a
globalização como elementos que interferem na definição desse conceito. O
lugar tratado no âmbito da localização assume a conotação de um ponto, seja
ele relacional ou absoluto; quando articulada, a esfera da experiência se amplia
assumindo a noção de espaço carregado de identidade e pertencimentos; se
referenciado no contexto da globalização, é um nó em uma rede de múltiplas
articulações, é um lugar e um não-lugar. Assim, nesta aula, você pode
compreender que a noção de lugar é diferente a partir do elemento que está
sendo levado em consideração para sua definição. Deve ter percebido também
que na diferença se revela a semelhança. É a partir da localização que emerge o
significado, o qual, por sua vez, enlaça os nós das redes simbólicas e materiais,
tecendo as vivências nos e dos lugares.

Aula 6 Organização do Espaço 123


Autoavaliação
Vamos verificar o que você aprendeu!

Volte ao início desta aula e releia a sua opinião sobre os objetos e os lugares
1 geográficos. Reflita sobre o que você escreveu e reescreva uma nova visão, agora
aportada no que você estudou sobre o conceito de lugar na ciência geográfica.

O turismo apresenta-se como uma atividade consumidora de lugares. A sua

2 principal característica é atrair pessoas para viajar por cenários que misturam
formas naturais e formas propositadamente criada para tal fim. Pesquise sobre a
atividade turística no seu estado e identifique:

a) os lugares mais procurados;

b) as características desses lugares.

A partir desses dois pontos, analise essa atividade, vinculando as idéias de lugar e
não-lugar na era da globalização.

Escreva uma crônica sobre o seu lugar e socialize para os colegas através do
3 moodle, na página da disciplina Organização do Espaço.

Referências
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo:
Papirus, 1994.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: HUCITEC, 1996.

CHRISTOFOLETTI, Antonio. As características da nova geografia. In: CHRISTOFOLETTI, A.


(Org.). Perspectivas geográficas. 2. ed. São Paulo: DIFEL, 1985.

DIDONÊ, Débora. Brasil antes do Brasil. Nova escola, São Paulo: Abril, Ano XXIII, n. 212, p.
42-49, maio 2008.

GOMES, Paulo César da Costa Gomes. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1996.

124 Aula 6 Organização do Espaço


LAMARTINE, Oswaldo. O sertão. Diário de Natal, Natal, Fascículo 11, p. 1-2, 2004. Leituras
Potiguares.

MAGNOLI, Demétrio; ARAÚJO, Regina. Geografia: a construção do mundo. São Paulo:


Moderna, 2005. (Geografia geral e do Brasil).

MOREIRA, João Carlos; SENE, Eustáquio. Geografia para o ensino médio: geografia geral
do Brasil. São Paulo: Scipione, 2007.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swamm: em busca das


moças em flor. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. 3ª edição. São Paulo:HUCITEC, 1994.

______. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: HUCITEC,
1996.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL, 1983.

Anotações

Aula 6 Organização do Espaço 125


Anotações

126 Aula 6 Organização do Espaço


Território e territorialidade:
abordagens conceituais

Aula

7
Apresentação

C
ontinuando a busca pela compreensão dos aportes conceituais da Geografia,
estudaremos, nesta aula, a noção de território. A trajetória de análise pretende
contemplar território e territorialidade sob diferentes perspectivas da Ciência,
enfatizando aquelas que se difundem no âmbito da Geografia. Priorizaremos, agora, o
enfoque materialista por meio das concepções naturalista, econômica e jurídico-política.
Para uma melhor compreensão do conceito de território, será necessário reler as aulas de
Introdução à Ciência Geográfica.

Objetivos
Entender o conceito de território nas perspectivas
materialistas.
1
Estabelecer a relação entre o conceito de território e o
processo de territorialidade nas abordagens estudadas.
2
Aplicar o conhecimento em situações-problemas,

3 apresentados nas propostas de atividades.

Aula 7 Organização do Espaço 129


Território: notas introdutórias
Certamente, você já ouviu, de alguma forma, a definição do termo território ou já
vivenciou uma dada situação que remete a ele. Veja algumas situações em que esse conceito
é veiculado e que remetem ao nosso dia-a-dia.

Meios de comunicação
Ao assistir a televisão, diariamente, você deve ter acompanhado as notícias sobre a
invasão dos Estados Unidos ao Afeganistão, no ano de 2000, ou os conflitos que ocorrem nas
favelas do Rio de Janeiro, para ficarmos em apenas dois exemplos amplamente focalizados
pela mídia. Veja, então, que essas situações conflituosas se estabelecem em uma base
espacial geográfica que pode ser compreendida a partir da noção de território, na medida em
que envolvem uma disputa entre agentes/atores sociais que divergem e lutam pela posse,
domínio ou ocupação de uma fração do espaço.

Trabalho
Você é professor e está inserido no ambiente escolar. Muito bem, a escola também
pode ser vista pela ótica do território. Por exemplo, a atuação de cada um dos profissionais
envolvidos no processo de funcionamento é bem definida e demarcada, inclusive

130 Aula 7 Organização do Espaço


espacialmente. A direção, a secretaria, a coordenação, entre outros, não têm apenas
especificidades quanto às funções que cada agente assume no processo educativo, mas
ocupam espaços definidos no ambiente escolar. Desse modo, a sala de aula, como o espaço
destinado ao exercício da prática docente, também pode ser entendida como um território,
na medida em que o professor atua na coordenação do processo ensino-aprendizagem em
um espaço com limites definidos que interferem nos horizontes de sua ação. A sala de aula
vizinha já tem o seu domínio e controle sob a responsabilidade de um outro professor.

Habitar
Se avançarmos um pouco mais em busca de referências vinculadas à noção de território,
certamente, iremos nos deparar com algumas situações emblemáticas que instigaram a
reflexão teórica e exigem novas formulações sobre o tema. Estamos falando de processos
que conduzem à perda e/ou à reconstrução de territórios. Por exemplo, a transferência de
populações citadinas para um outro local, em função da construção de barragens. No Rio
Grande do Norte, essa experiência foi vivida pelos moradores da cidade de São Rafael, em
1983, quando tiveram de deixar o seu ambiente de moradia devido à construção da Barragem
Armando Ribeiro Gonçalves no Vale do Açu. A antiga cidade foi inundada pelas águas e os
habitantes foram transferidos para uma nova cidade, construída especialmente para esse
fim. O exemplo revela que o antigo território urbano foi perdido, embora uma reconstrução
territorial tenha sido ensejada na nova São Rafael. Os desdobramentos de situações como
essas serão analisados adiante, porém, a intenção é alertar para as diferentes nuances nas
quais a questão do território pode emergir.

A sociedade em rede
Na atualidade, a discussão sobre território está associada ao contexto do meio técnico-
científico-informacional, ou seja, da sociedade em rede. Neste, a leitura dos processos
sócio-espaciais permite a discussão sobre a noção de território como unidade geográfica
fixa, colocando a coexistência de ações como uma teia das complexas relações que se
estabelecem, ampliando os horizontes de leitura e reconhecimento da existência das
modalidades espaciais que colocam em contato a realidade multifacetada da sociedade em
sua relação com o espaço. Nesse contexto, o território vai ser discutido na interface da
dinâmica social, que é capaz de articular, a partir de pontos distintos, relações de trocas,
sejam elas simbólicas, materiais, econômicas, políticas.... O território define-se a partir de
sua rede de interações, seus limites e fronteiras são estabelecidos de forma mais flexível, sua
compreensão torna-se mais complexa.

Aula 7 Organização do Espaço 131


Atividade 1

Foram citados alguns exemplos em que o termo território pode ser empregado.
Você é professor de Geografia, identifique um conteúdo em que o território
pode ser trabalhado como categoria de análise geográfica. Justifique como ele
é abordado.

132 Aula 7 Organização do Espaço


Território, territorialidades:
de que estamos falando?
Os exemplos que iniciam nossa aula estão colocados no nível de aplicação cotidiana,
de apropriação social que serve para contextualizar a explicação e/ou divulgação de um fato
ou acontecimento. No entanto, há mais coisas por traz dessa evidência. Você vai percorrer o
território dos conceitos e, nesse aspecto, encontrará a amplitude que ele assume ao adentrar
as distintas disciplinas que alimentam o conhecimento científico.

A discussão sobre território está presente em diferentes áreas do conhecimento


científico, desde a Etologia, da qual surgiram as formulações iniciais sobre territorialidade,
passando pela História, Ciência Política, Antropologia e Sociologia, até aportar na Geografia,
na qual se constitui um dos conceitos básicos. Ao perpassar esses diferentes campos, o
conceito assume uma enorme polissemia, posto que cada área sintetiza um enfoque a partir
de uma determinada perspectiva.

No âmbito da própria Geografia, as diferentes definições de território atestam essa


condição, cujos sentidos variam de uma abordagem jurídica, social e cultural, e mesmo
afetiva, cuja problematização se ancora em aspectos vinculados a relações que a sociedade
estabelece com a natureza, mediadas por mecanismos de apropriação, dominação, ocupação
ou posse de uma fração do espaço. Dessa relação, emerge a fragmentação do espaço
com distintas funções, cuja organização, gestão, manutenção ou, mesmo, reorganização
conjugarão interesses dos atores envolvidos.

Aula 7 Organização do Espaço 133


Você sabe qual é a etimologia da palavra “território”?
Vamos aprender?

Território deriva do vocábulo latino terra e, nessa língua, corresponde a territorium.


Conforme Di Méo (1998, p. 47 apud HAESBAERT, 2004, p. 43), o jus terrendi confundia-se
com o direito de aterrorizar. Embora não ocorrendo consenso sobre essa origem etimológica,
é importante ressaltar que, direta ou indiretamente, o que se propagou sobre território diz
respeito a um duplo sentido: à terra, o território como materialidade, e aos sentimentos que
o território inspira, por exemplo, medo (para quem é dele excluído) e satisfação (para quem
dele usufrui ou com ele se identifica).

Agora, que você já sabe a origem da palavra Território, que tal


aprofundarmos nosso conhecimento na perspectiva teórico-
conceitual?

O conceito de território tem assumido grande relevância no campo da Geografia.


Dentre os geógrafos que vêm se dedicando, atualmente, aos estudos desse tema, destaca-
se Rogério Haesbaert, professor da UFRJ. Para ele (2001; 2002; 2004), é possível agrupar as
várias concepções de território em quatro vertentes básicas: política, cultural, econômica e
natural. Mas, ele também chama a atenção para o fato de que essa separação ocorre apenas
para fins de análise, pois a dinâmica territorial, muitas vezes, conjuga várias dimensões.
Vejamos o que nos diz o autor sobre cada uma delas.

Território – Dimensão política


Refere-se às relações espaço-poder, em geral, ou jurídico-político, que dizem respeito às
relações espaciais que se estabelecem na esfera do Estado-Nação. Nestas, o território é visto
como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, na
maioria das vezes, mas não exclusivamente, relacionado ao poder político do Estado.

Território – Dimensão cultural


Nessa concepção, o conteúdo cultural ou simbólico-cultural delimitam o território a
partir da teia de representações e subjetividades que se enraízam em porção do espaço
território, dando-lhe identidade. Nesse sentido, o território é visto como produto da
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido.

134 Aula 7 Organização do Espaço


Território – Dimensão econômica
A vertente econômica focaliza o espaço como fonte de recursos e/ou incorporado
no embate entre classes sociais; e na relação capital-trabalho, como produto da divisão
territorial do trabalho.

Território – Dimensão natural


A perspectiva naturalista emprega uma noção de território baseada nas relações entre
sociedade e natureza, especialmente no que se refere ao comportamento natural dos homens
em seu ambiente físico. Essa é uma noção antiga e pouco difundida nas Ciências Sociais,
atualmente.

No que se refere à territorialidade ou à “contextualização territorial”, tem-se que esta é


inerente à condição humana. Além da concepção genérica, na qual é vista como a simples
“qualidade de ser território”, é muitas vezes entendida no âmbito da dimensão simbólica
do território. Todavia, assim como território, é um termo polissêmico, de forma que a
compreensão de seu sentido estará vinculada às perspectivas teóricas.

Atividade 2
A partir de uma das definições de território, apresente e justifique um exemplo
que você considera estar a elas vinculado.

Aula 7 Organização do Espaço 135


O território: uma teia teórica
As quatro dimensões anteriormente mencionadas estão vinculadas a um conjunto de
perspectivas teóricas, através das quais o conceito de território é discutido. De modo geral,
podemos agrupá-las da seguinte forma:

 perspectiva materialista – concepções naturalistas, econômicas e jurídico-políticas;


 perspectiva idealista – concepção simbólico-cultural;
 perspectiva integradora;
 perspectiva relacional.
Vejamos como é tecida a teia teórica que nos permite entender o conceito de território
e sua vinculação à noção de territorialidade a partir dessas diferentes abordagens...

Território na perspectiva
do materialismo
a) As concepções naturalistas

As concepções naturalistas de território reduzem a territorialidade ao seu caráter


biológico; consideram a própria territorialidade humana como moldada por um
comportamento instintivo ou geneticamente determinado. Nesse sentido, é importante
refletir até que ponto é possível conceber uma definição naturalista de território. É possível
pensar o território restrito ao mundo animal ou sob a ótica de um comportamento natural
dos homens, portanto, no âmbito do comportamento dos animais? É possível apreender
o território na relação sociedade x natureza, sendo este definido a partir da relação com a
dinâmica e/ou poder natural do mundo? Dentre as concepções mais primitivas de território,
encontra-se a que corresponde a um espaço defendido por todo animal confrontado com a
necessidade de se proteger (DI MÉO, 1998, p. 42 apud HAESBAERT, 2004, p. 45).

A tese de que a territorialidade animal pode ser estendida ao comportamento humano


foi fervorosamente defendida por Robert Ardrey (1969, p. 10 apud HAESBAERT, 2004, p.
44) que, em sua leitura neodarwinista sobre territorialidade, afirma que não só o homem
é uma espécie territorial, mas que esse comportamento territorial corresponde ao mesmo
percebido entre os animais. Para esse autor, o território é uma área do espaço que um
animal ou grupo de animais defende como uma reserva exclusiva; pode também descrever a
compulsão interior em seres animados de possuir e defender tal espaço.

Embora sendo reconhecíveis as possibilidades de encontrar analogias entre a territorialidade


animal e a humana, no campo da Geografia, as discussões pouco ou nada se referem à primeira

136 Aula 7 Organização do Espaço


delas. Contudo, faz-se mister ressaltar que a relação sociedade/natureza se coloca no centro
do debate geográfico. Entre os geógrafos anglo-saxões, emergem estudos sobre Geografias
Animais, que discutem as formas de incorporação dos animais ao espaço social. E, apesar
das críticas, as teses que tratam das semelhanças entre as territorialidades animal e humana
apresentam uma tendência ascendente, especialmente a partir dos avanços da biogenética.

No atual cenário, em que coexistem diferentes visões, chama-se a atenção para o


risco que é o de secundarizar a análise sobre a relação sociedade-natureza e submergir
em um naturalismo que tudo atribui ao campo biológico ou natural, o que na Geografia
corresponderia a um retorno ao determinismo geográfico; ou, em um outro extremo, imergir
em um antropocentrismo, que tudo atribui ao homem.

Os fenômenos atuais, como os conflitos pelo domínio de recursos naturais, não deixam
dúvidas sobre a necessidade de articular natureza e sociedade, comportamento biológico
e social. Até mesmo na delimitação das chamadas reservas ecológicas, uma espécie de
território natural, em que são vedadas a intervenção e a mobilidade humanas em seu interior,
encontram-se imbricadas questões de ordem política, econômica e/ou cultural.

Dessa forma, no que diz respeito à perspectiva material do território, é preciso


considerar a sua dimensão natural, que em alguns casos se revela como um de seus
elementos fundadores, embora nunca dissociada das relações sociais.

Atividade 3
Releia as aulas da disciplina Introdução à Ciência Geográfica, principalmente
as que se referem ao “determinismo geográfico”, e estabeleça relações com
o conceito de território que está sendo estudado. Reflita sobre a seguinte
questão: faz sentido, nos dias atuais, pensar o território como sendo definido a
partir do comportamento natural do homem, como se a territorialidade humana
fosse moldada por um comportamento instintivo ou biológico? Justifique
sua resposta.

Aula 7 Organização do Espaço 137


b) As concepções econômicas

As concepções materialistas de território, sob o enfoque econômico, estão presentes em


diferentes áreas do conhecimento, assumindo certas especificidades. Estudos antropológicos
priorizam o mundo simbólico, porém, ao se reportar à dimensão material, utilizam a noção
de território. Uma referência dessa abordagem pode ser encontrada em Godelier (1984, p.
112) que designa território como

uma porção da natureza e, portanto, do espaço sobre o qual uma determinada


sociedade reivindica e garante a todos, ou à parte de seus membros, direitos estáveis
de acesso, de controle e de uso com respeito à totalidade ou parte dos recursos que aí
se encontram e que ela deseja e é capaz de explorar.

Nessa definição, há uma forte referência à natureza e ao território como fonte de


recursos, cuja importância está no seu acesso, controle e uso. Trabalhos recentes no campo
da Antropologia ainda mantêm essa idéia de território sob a ótica econômico-materialista
como “área defendida em função da disponibilidade e garantia de recursos necessários à
reprodução material de um grupo” (HAESBAERTH, 2004, p. 56).

Na atualidade, a maioria dos lugares encontra-se cada vez mais distante da noção
de território como fonte de recursos ou como simples apropriação da natureza, o que
não significa dizer que essas características estão superadas. É importante ressaltar que
dependendo das bases tecnológicas do grupo social, sua territorialidade pode remeter a
profundas ligações com a terra, no sentido físico do termo. Além disso, há áreas em que
a sociedade tem sua vida influenciada por fenômenos naturais (por exemplo, vulcanismos
e furacões) ou está submetida a um contínuo clima de tensão em função de problemas
ambientais que levam a uma crescente valorização dos recursos naturais e de seu controle
(por exemplo, Sahel africano e Bacia do Tigre e do Eufrates).

Segundo Haesbaerth (2004, p. 58), na Geografia, o território sob o enfoque econômico


tem em Milton Santos et al (2000) sua concepção mais relevante e teoricamente mais
consistente. Segundo Santos, o uso (econômico, sobretudo) é o definidor por excelência do
território. Dessa forma, “O território usado constitui-se como um todo complexo onde se tece
uma trama de relações complementares e conflitantes. Daí o vigor do conceito, convidando
a pensar processualmente as relações estabelecidas entre o lugar, a formação sócio-espacial
e o mundo” (SANTOS et al, 2000, p. 3).

Na concepção de Santos et al (2000), a expressão território usado é correlata a espaço


geográfico, podendo ser visto, distintamente, como recurso e como abrigo. Segundo o autor,
“para os atores hegemônicos o território usado é um recurso, garantia de realização de seus
interesses particulares” e para os “atores hegemonizados” corresponde a um abrigo, no qual
buscam constantemente “se adaptar ao meio geográfico local, ao mesmo tempo em que
recriam estratégias que garantam sua sobrevivência nos lugares” (SANTOS et al, 2000, p.
12-13). Essa perspectiva de pensar o território a partir do seu uso torna explícita a priorização
da dimensão econômica, porém, não remete apenas a uma lógica zonal (território-zona),
mas também a uma lógica de relações em rede, que se estabelecem material e virtualmente
(território-rede). Conforme os escritos de Santos et al (1994, p. 16), “o território, hoje, pode
ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede”.

138 Aula 7 Organização do Espaço


No contexto atual, a informação, instrumento de interligação entre as diversas partes do
mundo, assume um papel fundamental na construção do território. Este reúne informações
local e externamente definidas, vinculadas a um conteúdo técnico e a um conteúdo político. O
comando local do território depende de sua densidade técnica e/ou funcional/informacional,
enquanto o comando global, a escala da política, é distante e completamente dissociado,
o que acirra os conflitos entre um espaço local, vivido por todos os vizinhos, e um espaço
global, racionalizador e em rede, vinculado a formas e normas a serviço de alguns.

Na obra de Santos, o espaço geográfico, sinônimo de território usado, é definido como


resultante da interação entre um sistema de objetos e um sistema de ações, e a análise do
território enfatiza a sua funcionalização e o seu conteúdo técnico. Tais aspectos explicitam
a base materialista de fundamentação econômica presente em sua concepção de território.

Importante
A obra de Milton Santos não se restringe a formulações de base econômica,
embora esta tenha prevalecido. O autor ampliou e complexificou suas
elaborações teóricas, fazendo associações entre territorialidade e cultura
e territorialidade e memória, desenhando um outro horizonte de leitura e
interpretação do território.

Atividade 4
Você deve acompanhar muitas notícias que dizem respeito à apropriação do
espaço geográfico por atores sociais distintos. Pesquise em jornais, revistas
e na Internet um fato que esteja relacionado a essa dinâmica. Descreva-o e
explique-o de acordo com a noção de território em sua acepção econômica.

Aula 7 Organização do Espaço 139


A vertente jurídico-política
de território
A temática espacial é bastante ampla, repercutindo em termos de conceitos geográficos,
os quais são levados a priorizar um determinado tipo de questão e uma específica dimensão
social, por exemplo, o tratamento das questões políticas por meio do conceito de território.
No segmento da Geografia Política, território e territorialidade são tidos como conceitos
fundamentais. Inclusive, a origem etimológica dos referidos vocábulos está associada à idéia
de apropriação ou dominação (política) do espaço pelos homens.

Segundo Haesbaerth (2004, p. 62), “o vínculo mais tradicional na definição de território


é aquele que faz a associação entre território e os fundamentos materiais do Estado”. Dentre
os geógrafos que se destacam nessa perspectiva, encontra-se Ratzel, que define o território
como “um espaço qualificado pelo domínio de um grupo humano, sendo definido pelo controle
político de um âmbito espacial” (apud MORAES, 2000, p. 19). Para Ratzel, no mundo moderno
há áreas de dominação estatal e, mais recentemente, estatal nacional, sendo impossível
compreender o incremento da potência e da solidez do Estado sem considerar o território.

Ressalta-se que a distância entre as visões naturalista e política do território nem


sempre foram claramente evidenciadas, de modo que as teorizações fizeram pontes, às
vezes inusitadas, entre as construções política e biológica de território. Dentre as referências
que fazem analogias entre a territorialidade animal e a humana, destaca-se a premissa de

140 Aula 7 Organização do Espaço


que a sociedade teria o direito natural a um espaço ou mesmo a uma propriedade privada
da terra, quase dever, na medida em que corresponderia ao espaço vital, imprescindível ao
progresso social. Os adeptos dessa afirmação, em maior ou menor grau, desenvolveram
a associação que fez do território político – principalmente o território do Estado – uma
extensão da dinâmica do mundo biológico (animal). Verifica-se a transposição dos espaços
vitais da Biogeografia para a realidade territorial do Estado, sendo este também uma forma
de propagação da vida na superfície da Terra.

Ratzel foi o elaborador do conceito de espaço vital como sendo o espaço ótimo para a
reprodução de um grupo social, considerados os recursos disponíveis que devem ter uma
relação de correspondência com as dimensões do agrupamento humano nele existente.
Dessa forma, é possível inferir que, em Ratzel, o território se define através do elo entre uma
dimensão natural (física) e uma dimensão política (que se confunde com o Estado). Essa
concepção aproxima-se daquela que valoriza a dimensão econômica e percebe o território
como fonte de recursos para a reprodução social, já que Ratzel usa a disponibilidade de
recursos como parâmetro para sua formulação conceitual.

Na Geografia Política, uma outra importante contribuição ao debate sobre território


é proveniente da concepção de Gottman (1952), que amplia o conceito para além do
Estado-Nação, embora mantenha seu caráter jurídico-administrativo. Para ele, no mundo
compartimentado da Geografia, a unidade política é o território, definido como o “conjunto
de terras agrupadas em uma unidade que depende de uma autoridade comum e que goza
de um determinado regime” (GOTTMAN, 1952, p. 71). O autor também incorpora uma
dimensão mais idealista ao analisar o território através dos sistemas de movimento, ligados
a tudo o que envolve a circulação no espaço, e os sistemas de resistência ao movimento ou
iconografias, constituídos por uma série de símbolos. Nessa concepção, verifica-se uma
vinculação entre mundo material e ideal e a perspectiva de compreender o território ligado
à idéia de movimento, e não apenas de enraizamento ou estabilidade. Para ele, as divisões
mais importantes estão nos espíritos, mais do que nas fronteiras físicas (GOTTMAN,
1952, p. 220).

Entre autores clássicos e recentes, parece haver um consenso de que a dimensão


política, para além da perspectiva jurídica e estatal, é a que melhor expressa a conceituação
de território. Em decorrência dessa importância, e a partir do sentido relacional atribuído
ao conceito de poder, a análise da dimensão política do território será retomada adiante por
meio do pensamento de Sack e Raffestin.

Aula 7 Organização do Espaço 141


Atividade 5

Vamos imaginar como a perspectiva jurídico-política do território pode ser


apreendida a partir de uma situação concreta? Nos primeiros meses de 2008,
criou-se uma polêmica em torno da questão da soberania e das fronteiras
territoriais do Brasil, em decorrência da demarcação da reserva indígena
Raposa Serra do Sol, em Roraima. Dessa forma, analise a questão do território
e da territorialidade através da política de demarcação de reservas indígenas na
fronteira amazônica, procurando observar o papel dos atores sociais envolvidos
nessa trama e a relação entre as fronteiras do Brasil e os limites das reservas.
Para fundamentar sua resposta, pesquise em revistas e na Internet sobre o tema.

142 Aula 7 Organização do Espaço


Chegamos ao final da aula na qual analisamos o território através da visão materialista,
que focaliza a dimensão natural, econômica e política. Porém, o assunto não terminou.
O aprofundamento do estudo se dará por meio das perspectivas idealista, integradora e
relacional, tópicos da próxima aula. Até lá!

Resumo
Nesta aula, o foco da reflexão foi a noção de território. Para isso, problematizamos
a polissemia desse conceito a partir da perspectiva materialista, quando
procuramos aproximar as teorias a noções de território em uma abordagem
geográfica. Assim, esta aula objetivou apresentar, discutir e problematizar
o território em uma perspectiva de construção conceitual, levando você a
compreender o cenário geográfico como uma organização que se revela pela
interface sociedade-natureza, delimitando fronteiras e limites espaciais.

Autoavaliação
Agora, demonstre o que você aprendeu sobre território segundo as perspectivas
materialistas. Construa uma síntese dos conceitos de território, levando em
consideração as distintas abordagens teóricas apresentadas nesta aula;
identifique e cite um exemplo que permita vinculação a estas.

Aula 7 Organização do Espaço 143


Referências
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GOTTMAN, J. La polituque des états et as geographie. Paris: Armand Colin, 1952.

HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade.


Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

______. Territórios alternativos. São Paul: Contexto, 2002.

HAESBAERT, R.. Território, cultura e des-teritorialziação. In.:

ROSENDAHL, Z.; CORREA, R L. Religião , identidade e território. Rio de Janeiro:


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MORAES, A. C. Bases da formação territorial do Brasil: o território colonial brasileiro no


longo século XVI. São Paulo: Hucitec, 2000.

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______. O papel ativo da geografia: um manifesto. In: ENCONTRO NACIONAL DE GEÓGRAFOS,


12., 2000. Florianópolis. Anais... Florianópolis: 2000.

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SOUZA, M. J. L. de. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In:


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Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 77-140.

144 Aula 7 Organização do Espaço


Anotações

Aula 7 Organização do Espaço 145


Anotações

146 Aula 7 Organização do Espaço


Território e territorialidade:
abordagens conceituais (parte II)

Aula

8
Apresentação
Na aula anterior, estudamos o território sob a perspectiva do materialismo. Dando
prosseguimento à análise, iremos nos deter nas perspectivas téorico-conceituais idealista,
integradora e relacional. Associadas a essas abordagens, trataremos da noção de territorialidade,
enfatizando as discussões que se realizam no campo da Geografia.

Objetivos
Entender o conceito de território nas perspectivas
1 idealista, integradora e relacional.

Estabelecer a relação entre o conceito de território e o


2 processo de territorialidade em diferentes abordagens.

Aplicar o conhecimento em situações-problema,


3 conforme proposições de atividades.

Aula 8 Organização do Espaço 149


Território na perspectiva idealista

N
o âmbito dessa perspectiva, que remete a uma dimensão ideal ou à apropriação
simbólica do espaço, importantes contribuições derivam da Antropologia. Primeiro
antropólogo a empreender um estudo sistemático sobre territorialidade, Hall (1986)
defende que o território é considerado como um signo cujo significado somente é compreensível
a partir dos códigos culturais nos quais se inscreve.

Discutindo território, o antropólogo Garcia (1976 apud HAESBAERT, 2004, p. 69) é


enfático ao dizer que não são as características físicas do território que determinam a criação
de significados, sua semantização. Para ele, o território semantizado significa, em sentido
amplo, um território socializado e culturalizado, tendo em vista que tudo o que se encontra ao
redor do homem é dotado de algum significado, sendo este o elemento de interposição entre
o meio natural e a atividade humana.

Na Geografia, a dimensão materialista do território é mais difundida. Até mesmo a


produção da Geografia Cultural, associada à corrente idealista ou humanística da Geografia,
recorre a outros conceitos, como lugar e paisagem, ao tratar de fenômenos ligados à dimensão
cultural do espaço. Entre os geógrafos que priorizam a perspectiva ideal-simbólica do território,
ressaltam-se os franceses Bonnemaison e Cambrézy (1996).

Para os referidos autores (1996 apud HAESBAERT, 2004, p. 71), a lógica territorial
cartesiana moderna, baseada na cartografia dos Estados-nações, está sendo suplantada
pela lógica culturalista. Essa lógica pós-moderna não pode ser medida pela geometria nem
representada pela cartografia, posto que nessa perspectiva o pertencimento ao território implica

150 Aula 8 Organização do Espaço


a representação da identidade cultural e não mais a posição em um polígono. Também supõe
múltiplas redes e refere-se a geossímbolos mais que a fronteiras.

Interpretando o cenário atual, Bonnemaison e Cambrézy (1996) reconhecem a existência


de um processo de enfrentamento entre a lógica funcional estatal moderna e a lógica identitária
pós-moderna. Estas, em relação ao território, são contraditórias e reveladoras de sistemas
de valores e éticas distintas. Nesse contexto, há uma revalorização do local e um reforço do
território enquanto representação, valor simbólico.

Considerando que a abordagem utilitarista de território não responde aos principais


conflitos do mundo contemporâneo, os autores defendem uma concepção que valoriza o
princípio cultural da identificação ou de pertencimento, o que explica a intensidade da relação
ao território. Afirmam que o poder do laço territorial revela que o espaço está investido de
valores, não apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. É assim
que o território cultural precede ao território político e com ainda mais razão precede o espaço
econômico. Na compreensão de território manifestada pelos autores, fica evidente a natureza
simbólica das relações sociais, através de expressões como: pertencemos a um território, não
o possuímos, o habitamos, somos impregnados por ele; o território também é ocupado pelos
mortos que o marcam com o signo do sagrado. Para eles,

o território não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas ao ser. Esquecer este princípio
espiritual e não material é se sujeitar a não compreender a violência trágica de muitas
lutas e conflitos que afetam o mundo de hoje: perder seu território é desaparecer”
(BONNEMAISON; CAMBRÉZY, 1996, p. 13-14 apud HAESBAERT, 2004 p. 72-73).

Um aspecto a ser realçado é que os autores em foco ao tratarem de questões de ordem


simbólico-cultural utilizam mais o conceito de territorialidade que o de território. Nesse sentido,
a territorialidade é vista tanto como a qualidade de ser território, uma acepção genérica, quanto
como a dimensão simbólica do território, que exprime um significado mais estrito.

Depreende-se do exposto que a perspectiva idealista possui um forte conteúdo simbólico,


cuja fortaleza se traduz na construção identitária, ou seja, no sentido de pertencer ao território.

Aula 8 Organização do Espaço 151


Atividade 1

Estabeleça as principais diferenças entre as perspectivas idealista e materialista


de território.

152 Aula 8 Organização do Espaço


Território numa
perspectiva integradora
A perspectiva integradora de território somente admite sua apreensão a partir da
integração entre as diferentes dimensões sociais (e da sociedade com a própria natureza).
Todavia, uma abordagem sob essa ótica impõe reconhecer que dificilmente encontramos hoje
um espaço capaz de integrar de forma coesa as múltiplas dimensões econômica, política,
cultural e natural.

Diante desse quadro, a leitura do território aponta para dois caminhos: admitir vários tipos
de territórios que coexistiriam no mundo contemporâneo (territórios políticos, econômicos,
culturais, cada um com uma dinâmica própria) ou trabalhar com a idéia de construirmos o
território, se não de forma total, pelo menos de forma articulada, integrada.

Um outro aspecto importante refere-se à necessidade de contextualizar historicamente o


território que está sendo abordado, tendo em vista que as relações de domínio e apropriação
em relação ao espaço diferem consideravelmente na escala do tempo.

No cenário atual, é possível afirmar que a experiência integradora do espaço (mas nunca
total, como na antiga conjugação entre espaço econômico, político e cultural, contíguo e
relativamente bem delimitado) somente ocorrerá se estivermos articulados em rede, através
de múltiplas escalas. Assim, o território institui-se também no âmbito da rede que conecta
diferentes pontos e lugares, de modo que, hoje, prevalecem os territórios-rede.

Aula 8 Organização do Espaço 153


Os territórios-rede, configurados na lógica das redes, são espacialmente descontínuos,
dinâmicos e mais susceptíveis a sobreposições na partilha com múltiplos territórios. Tal
forma de organização espaço-territorial coexiste com os territórios-zona, mais tradicionais,
que se definem a partir de uma lógica zonal, com áreas e limites (fronteiras) relativamente
bem demarcados, com grupos mais enraizados, onde a organização em rede adquire um
papel secundário.

Enquanto a lógica dos territórios-rede é a do controle espacial através dos fluxos e/


ou conexões, nos territórios-zona prevalecem as dinâmicas sociais ligadas ao controle
de superfícies ou à difusão em termos de áreas (em geral contínuas), de fronteiras bem
demarcadas. É importante alertar que essas definições estão articuladas a referenciais teóricos,
espécies de tipos ideais, não passíveis de ser identificados separadamente na realidade efetiva.
Ou seja, a rede estaria, ao lado das superfícies ou zonas, compondo de forma indissociável o
conteúdo territorial.

Atividade 2

Na sociedade atual, é possível identificar vários exemplos relacionados aos


territórios-rede, ou seja, exemplos em que a rede aparece como um dos
elementos territorializadores. Identifique um deles e justifique sua escolha.

154 Aula 8 Organização do Espaço


Território numa
perspectiva relacional
O território sob a ótica de uma perspectiva relacional é visto pelo prisma de sua inserção
em relações social-históricas ou relações de poder. Ultrapassando a percepção de território
como enraizamento, estabilidade, delimitação ou fronteira, essa perspectiva o concebe como
movimento, fluidez, conexão e, em um sentido mais amplo, temporalidade.

Aportado nas proposições de Michel Foucault (1979), que concebe o poder não como um
objeto ou coisa, mas como uma relação, estando o mesmo em toda parte (não há um centro unitário
de onde emana, como o Estado), Raffestin (1993, p. 60) formula um conceito de território como
sendo a prisão que os homens constroem para si, ou melhor, o espaço socialmente apropriado,
produzido, dotado de significado. Neste, a idéia de controle do espaço se traduz no termo prisão.
Elaborando uma noção de poder bastante ampla, que comporta a natureza econômica e simbólica,
Raffestin afirma que “o ideal do poder é jogar exclusivamente com símbolos”.

os dias atuais, é reconhecível a força do poder simbólico, o qual, muitas vezes, confunde
realidade e representação, de tal forma que o próprio território passa a ser “visto” mais pelas
imagens dele produzidas do que pela realidade material-concreta que nele construímos.

Considerando que o território concreto tornou-se menos significativo que o território


informacional, Raffestin (1988, p. 177) afirma:
o território é uma reordenação do espaço na qual a ordem está em busca dos sistemas
informacionais dos quais dispõe o homem enquanto pertencente a uma cultura. O
território pode ser considerado como o espaço informado pela semiosfera [esfera da
produção de significados].

Aula 8 Organização do Espaço 155


Nesse sentido, o acesso ou o não acesso à informação comanda o processo de
territorialização e desterritorialização da sociedade.

O debate suscitado a partir de visões como a de Raffestin contrapõe as dimensões


materiais e imateriais do território e estabelece uma divisão entre os que admitem uma
existência efetiva do território e os que percebem a noção de território, basicamente enquanto
instrumento analítico para o conhecimento. De acordo com Haesbaert (2004, p. 91), o território
não deve ser visto nem simplesmente como um objeto em sua materialidade nem como um
mero conceito elaborado pelo pesquisador.

Torna-se fundamental apreender que enquanto a economia globalizada torna os espaços


mais fluidos, a cultura e a identidade, muitas vezes, re-situa os indivíduos em micro ou
mesoespaços em torno dos quais se agregam na defesa de suas especificidades histórico-
geográficas. A exclusão social que tende a dissolver os laços territoriais, por vezes, leva os
grupos a se aglutinarem em torno de ideologias e/ou de espaços mais fechados com vistas a
preservar a identidade cultural.

Mesmo entre as perspectivas que priorizam o conteúdo político, negligenciar a dimensão


simbólica do território é tornar parcial a compreensão dos complexos laços entre poder e
espaço. A leitura referente ao poder não pode restringir-se ao materialismo, como se este
pudesse ser localizado, e não pode desconhecer que o poder em uma perspectiva relacional
envolve não apenas as relações sociais concretas, mas também as representações que elas
veiculam e, até certo ponto, também produzem.

Portanto, questiona-se: é possível separar o poder político e o poder simbólico? Qual a


trama que enreda a construção do território nessa tessitura? Pode-se inferir que não há como
separar o poder político e o simbólico, tendo em vista o forte elo de ligação entre referente e
símbolo. O território é construído, enquanto mediação espacial do poder, na trama relacional
que envolve a interação entre as várias dimensões do poder, desde sua natureza eminentemente
política até sua dimensão simbólica, econômica e jurídico-política.

Ao contrário de Raffestin, que valoriza a semiotização do território, Sack prioriza o nível


material. Recorrendo mais à noção de territorialidade que de território, o autor considera
a fronteira e o controle do acesso atributos fundamentais na definição de territorialidade e
admite uma ampla escala de território, desde o nível micro, pessoal, de uma sala, até o nível
internacional, não restringindo a escala do Estado-nação.

Na visão de Sack, a territorialidade é uma base de poder, mas não se define pelo instinto e
nem está associada à agressividade. Outrossim, nem toda relação de poder é territorial ou inclui
territorialidade. Em sua concepção, a territorialidade corresponde “a tentativa, por um indivíduo
ou grupo, de atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos,
pela delimitação e afirmação do controle sobre uma área geográfica”, chamada de território
(SACK, 1986, p. 265). Contrariando a visão tradicional de território como algo estático, o
autor reconhece que a territorialidade pode ser ativada ou desativada, apresentando relativa
flexibilidade, constituindo-se num recurso estratégico que pode ser mobilizado de acordo com
o grupo social e seu contexto histórico e geográfico.

156 Aula 8 Organização do Espaço


Para Raffestin (1988, p. 265), que apresenta uma visão mais ampla, a territorialidade
corresponde ao “conjunto de relações estabelecidas pelo homem enquanto pertencente
a uma sociedade, com a exterioridade e a alteridade através do auxílio de mediadores ou
instrumentos.”

Nos autores mencionados, a visão de territorialidade é eminentemente humana, social,


portanto, totalmente distinta daquela relacionada ao comportamento animal.

Embora seja reconhecível que as formas mais tradicionais de territorialidade humana


estão vinculadas a territórios juridicamente reconhecidos, sua manifestação ocorre também
em diferentes contextos sociais.

Em Sack (1986, p. 22), encontramos que a definição de territorialidade envolve três


relações interdependentes: uma classificação por área; uma forma de comunicação pelo uso
de uma fronteira; e uma tentativa de manter o controle sobre o acesso a uma área e às coisas
dentro dela, ou às coisas que estão fora, através da repressão àquelas que estão no seu interior.
Dessa forma, o território torna-se um dos instrumentos usados em processos que visam algum
tipo de padronização na relação com outros territórios. Os indivíduos que vivem dentro de seus
limites tendem, em determinado sentido, a ser vistos como iguais em função de dois aspetos:
por estarem subordinados a um mesmo tipo de controle (interno ao território) e pela relação
de diferença que, de alguma forma, se estabelece entre os que se encontram no interior e os
que estão fora de seus limites.
Depreende-se, portanto, que

toda relação de poder espacialmente mediada é também produtora de identidade,


pois controla, distingue, separa e, ao separar, de alguma forma nomeia e classifica os
indivíduos e os grupos sociais. E vice-versa: todo processo de identificação social é
também uma relação política, acionada como estratégia em momentos de conflito e/ou
negociação. (HAESBAERT, 2004, p. 89).

Apesar da ênfase no território como instrumento concreto de poder, Sack não ignora
sua dimensão simbólica e o papel da cultura na definição da territorialidade. Para ele, assim
como a cultura e a história mediam a mudança econômica, também intervêm no modo como
as pessoas e os lugares estão ligados, como usam a territorialidade e valorizam a terra.

Aula 8 Organização do Espaço 157


A despeito do debate que contrapõe uma dimensão material e uma dimensão imaterial do
território, o ponto de vista de Haesbaert (2004, p. 91) é o de que este não deve ser visto como
um objeto, ou seja, somente pela ótica da materialidade, nem como um mero instrumento
analítico ou conceito formulado pelo pesquisador. O território na perspectiva relacional,
enquanto mediação do poder, é construído na interação diferenciada entre as múltiplas
dimensões desse poder (político, simbólico, econômico e jurídico-político).

Dessa forma, tendo como base a distinção entre domínio e apropriação do espaço
formulada por Lefebvre (1986), Haesbaert (1997, p. 42) propõe que o conceito de território
envolva, simultaneamente, “uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade
territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de ‘controle simbólico’ sobre o espaço
onde vivem (sendo também, portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão mais
concreta, de caráter político-disciplinar [e político-econômico, deveríamos acrescentar]: a
apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos.”

Para Lefevbre (1986), o conceito de apropriação remete a um processo efetivo de


territorialização, reunindo uma dimensão concreta, de caráter funcional, e uma dimensão
simbólica e afetiva. A dominação tende a originar territórios puramente utilitários e funcionais,
em que não há lugar para um sentido de partilha social e/ou relação de identidade. Dessas
concepções, deriva a premissa de que a territorialização pode ser empreendida, dependendo
de cada grupo social, através de processos de caráter mais funcional (econômico-político)
ou mais simbólico (político-cultural). Em casos de conflitos territoriais de fundo étnico-
religioso, a dimensão simbólico-cultural do poder se impõe, enquanto em outras situações,
os conflitos podem ter sua origem na esfera política ou em sua relação com determinados
agentes econômicos, fazendo ressaltar a dimensão funcional e utilitarista do espaço.

No que se refere à especificidade histórica do território e da territorialidade contemporânea,


emerge a noção de territórios construídos no e pelo movimento, os chamados territórios-rede,
descontínuos e sobrepostos, que superam a lógica político-territorial zonal (territórios zonas).

A realidade concreta envolve uma permanente interseção de redes e territórios: de redes


mais extrovertidas que, através de seus fluxos, ignoram ou destroem fronteiras e territórios

158 Aula 8 Organização do Espaço


(sendo desterritorializadoras), e de outras que, por seu caráter mais introvertido, acabam
estruturando novos territórios, fortalecendo processos dentro dos limites de suas fronteiras
(sendo territorializadoras). Deriva da complexa tessitura da sociedade em rede o debate sobre
território e territorialidade, que no atual contexto remete a processos de desterritorialização,
reterritorialização e multiterritorialidades. Estes serão os tópicos de estudo da nossa próxima
aula. Bons estudos e até breve!

Atividade 3
a) Sintetize o conceito de território, segundo a visão relacional.

b) Identifique o sentido de territorialidade em Raffestin e Sack e a especificidade


que envolve essas abordagens.

Aula 8 Organização do Espaço 159


Resumo
Nesta aula, prosseguimos com o tema território e territorialidade, sob as
perspectivas idealista, integradora e relacional. Aprendemos através de tais
abordagens que o termo território envolve múltiplos significados, desde
aqueles em que se sobressai a dimensão simbólica-cultural até aqueles em
que o poder está no centro da análise. Na tentativa de evidenciar os elos
entre diferentes visões, Haesbaert defende que o território apresenta um forte
conteúdo simbólico cultural e também um caráter político-disciplinar.

Auto-avaliação
Agora que você já estudou as diferentes concepções de território:

a) estabeleça as diferenças entre território-zona e território-rede;

b) elabore uma breve contextualização da emergência dos territórios-rede;

c) escolha uma situação concreta que, no seu entendimento, serve de exemplo para um
dos conceitos de território, segundo as concepções estudadas.

Referências
BONNEMAISON, J.; CAMBRÉZY, L. Le lien territoiral: entre frontières et identités. Geographies
et cultures, Paris: L.’Harmattan, n. 20, 1996.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio e Janeiro: Graal, 1979.

GARCIA, J. L. Antropologia del territorio. Madri: Taller de Ediciones, 1996.

HAESBAERT, R. Territórios alternativos. São Paulo: Contexto, 2002.

______. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

160 Aula 8 Organização do Espaço


HAESBAERT, R. Território, cultura e des-territorialização. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R. L.
Religião, identidade e território. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001.

HALL, E. A dimensão oculta. Lisboa: Relógio D’água, 1986.

LEFEVBRE, H. La production de l’espace. 3 ed. Paris: Anthropos, 1986.

______. Repères pours une théorie de la territorialité humaine. In: DUPUY, G. Reseaux
territoriaus. Caen: Paradigme, 1988.

RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.

ROSENDAHL, Z.; CORREA, R L. Religião, identidade e território. Rio de Janeiro:


EDUERJ, 2001.

SACK, R. Human territoriality: its theory and history. Cambridge: Cambridge University
Press, 1986.

Anotações

Aula 8 Organização do Espaço 161


Anotações

162 Aula 8 Organização do Espaço


Anotações

Aula 8 Organização do Espaço 163


Anotações

164 Aula 8 Organização do Espaço


Por entre territórios e redes:
múltiplas leituras

Aula

9
Apresentação
Nas aulas anteriores, estudamos as diferentes perspectivas de abordagens sobre
território. Daremos prosseguimento às análises sobre território a partir de novas leituras
referentes aos processos sócio-espaciais contemporâneos, os quais envolvem as noções de
desterritorialização, reterritorialização e multiterritorialidade.

Objetivos
Compreender o significado dos termos desterritorialização,
1 reterritorialização e multiterritorialidade e suas conexões
com os processos sócio-espaciais contemporâneos.

Reconhecer a ocorrência desses processos em situações


2 concretas.

Aula 9 Organização do Espaço 167


O tema e o contexto...

A
compreensão do que iremos estudar requisita uma releitura das aulas anteriores, que
tratam do fenômeno da globalização e do conceito de território. Será interessante
também buscar outras fontes de leitura que ampliem o entendimento sobre esses
temas. Que tal consultar as referências bibliográficas e procurar ler os livros ali relacionados?

O tema desta aula está vinculado ao contexto da globalização e tem como matriz conceitual
o território sob diferentes acepções. Iremos tratar de processos espaciais que se configuraram
no contexto da sociedade em rede e que envolvem questões atinentes à dimensão espacial e
à territorialização enquanto componentes indissociáveis da condição humana. Dessa forma,
como falar em desterritorialização, tendo em vista que não há como definir o indivíduo
ou a sociedade sem inseri-los num determinado contexto geográfico, territorial? Afinal, o
que significa esse processo? A partir desses questionamentos, outros se impõem: qual o
sentido de reterritorialização e em que contexto se tem a sua ocorrência? Por que falar em
multiterritorialidade?

168 Aula 9 Organização do Espaço


Da desterritorialização...
No final do século XX, junto com a propagação do fim do socialismo e, simultaneamente,
do fim da história; do fim da modernidade e do Estado nação, decretou-se o fim da geografia,
em função do desenvolvimento tecnológico, dos transportes e das comunicações, e o fim dos
territórios e o avanço dos processos de desterritorialização. Diante da decretação de tantos
fins, estaria a sociedade atual, de fato, se desterritorializando?

O discurso da desterrritorialização disseminou-se nas Ciências Sociais, sendo defendido


por autores que não são da área da Geografia. A tônica desse discurso baseia-se na premissa
de que os processos dominantes de globalização teriam feito imperar o mundo desenraizado,
móvel, dos fluxos e das redes, principalmente aquele das grandes corporações internacionais,
em detrimento do mundo mais controlado e enraizado dos Estados-nações e dos diferentes
grupos culturais. Nesse contexto, os territórios (geográficos, afetivos, sociológicos) estariam
sendo destruídos, juntamente com as identidades culturais/territoriais e com o controle
(principalmente estatal) sobre os espaços.

A configuração desse quadro de análise exige que a Geografia proceda a uma reavaliação
de seus conceitos básicos, inclusive o de território (considerado, hoje, o mais difundido
dessa ciência), e seja mais rigorosa na definição e utilização dos mesmos, tendo em vista as
ambigüidades e o caráter metafórico com que têm sido abordados em outras áreas. A maioria
dos trabalhos que focaliza o território não o faz pela ótica da sua relevância para a compreensão
do mundo atual, mas pelo prisma de sua destruição, ou seja, pelo viés da desterritorialização.

Todavia, reflexões construídas por Haesbaert (2004, p. 31) apontam três questões básicas
sobre os discursos e a prática da desterritorialização:

 de modo geral, não há uma definição clara de território nos debates que focalizam a
desterritorialização; o território ora aparece como algo dado, ora é definido de forma
negativa a partir do que ele não é;

 a desterritorialização é vista quase sempre como um processo genérico (e uniforme),


numa relação dicotômica e não vinculada à (re) territorialização;

 a desterritorialização significando o fim dos territórios aparece associada, sobretudo,


com a predominância de redes, completamente dissociadas de e/ou opostas a
territórios, e como se a crescente globalização e mobilidade fossem sempre sinônimos
de desterritorialização.

No âmbito do debate sobre desterritorialização, as principais vertentes interpretativas


podem ser agregadas em três dimensões sociais, segmentadas apenas para fins de análise:
econômica (menos comum), política e cultural. Explicita ou implicitamente, essas dimensões
estão articuladas a diferentes concepções de território. Chama a atenção o fato de que a
dimensão mais propriamente social da desterritorialização encontra-se praticamente ausente

Aula 9 Organização do Espaço 169


dos discursos, sendo o vínculo entre desterritorialização e exclusão socioespacial os mais
relevantes na visão de Haesbaert (2004, p. 172).

De maneira geral, a desterritorialização numa perspectiva econômica é percebida através


das relações capitalistas, especialmente da globalização econômica e mais enfaticamente no
campo financeiro e nas atividades ligadas ao ciberespaço, que promoveriam os principais
mecanismos de destruição de barreiras ou de fixações territoriais. Dessa perspectiva, derivam
três leituras possíveis:

 a desterritorialização, em um sentido mais amplo, vista como sinônimo de globalização


econômica ou, pelo menos, como um de seus vetores ou características fundamentais,
na medida em que ocorre a formação de um mercado mundial com fluxos comerciais,
financeiros e de informações cada vez mais independentes de bases territoriais bem
definidas, como as dos Estados nações;

 a desterritorialização, em um sentido mais restrito, vinculada a um dos momentos da


globalização (o mais típico deles), o chamado capitalismo pós-fordista ou de acumulação
flexível. A flexibilidade seria responsável pelo enfraquecimento das bases territoriais
ou, mais amplamente, espaciais, na estruturação da economia, em especial na lógica
da localização das empresas e no âmbito das relações de trabalho (precarização dos
vínculos entre trabalhador e empresa, por exemplo.). A desterritorialização seria sinônimo
de deslocalização, ressaltando o caráter multilocacional das empresas, derivado da
crescente autonomia em relação às condições locais/territoriais de instalação;

 a desterritorialização, em um sentido ainda mais restrito, seria um processo ligado a


um setor específico da economia globalizada, o setor financeiro, no qual a tecnologia
informacional tornaria mais evidente tanto a imaterialidade quanto a instantaneidade
(e a superação do entrave distância) nas transações, permitindo assim a circulação de
capital (especulativo) em tempo real.

As leituras possíveis relativas à desterritorialização pelo viés econômico estão intimamente


relacionadas ao discurso da globalização irrestrita num mundo efetivamente sem fronteiras,
servindo de matéria-prima ao argumento político daqueles que defendem o projeto neoliberal.

Independente do enfoque que apresenta, a desterritorialização de natureza


predominantemente econômica normalmente é tratada de forma parcial e subentende uma
perspectiva unilateral (economicista) e histórica do território. Na visão de Haesbaert (2004, p.
193), se existe uma desterritorialização do ponto de vista econômico, ela está mais ligada aos
processos de expropriação, precarização e/ou exclusão, inseridos na lógica de acumulação
capitalista do que nas simples esferas do capital fictício, da deslocalização das empresas ou
da flexibilização das atividades produtivas.

170 Aula 9 Organização do Espaço


Atividade 1
Os analistas econômicos costumam dizer que o capital, hoje, é extremamente
volátil, podendo se deslocar de uma bolsa de valores para outra, em questão
de segundos, independente das distâncias geográficas entre os lugares.
Essa situação que envolve o deslocamento do capital pode ser associada à
desterritorialização em uma perspectiva econômica? Justifique sua resposta.

A desterritorialização sob a perspectiva política adquiriu grande importância na Ciência


Política e na Geografia Política. Dentre as várias acepções, é a mais difundida tendo em vista
que a relação entre espaço e poder é a mais aceita na conceituação de território.

A análise da desterritorialização política está diretamente vinculada a uma concepção de


território, como criação do Estado moderno. Justifica-se esse recorte pelo fato de que o antigo
e restrito conceito de território como jurisdição do Estado ainda persiste, especialmente na
Ciência Política. No cerne da discussão desse processo, está o propalado discurso do fim do
Estado-nação e da emergência do mundo sem fronteiras.

No contexto da globalização, um dos elementos mais destacados para explicar a


desterritorialização política está relacionado à difusão das novas tecnologias de informação
e o chamado ciberespaço, vistos por Newman (1998, p. 6) como o fator principal a produzir
a desterritorialização do Estado e a correspondente remoção das fronteiras. Dessa forma, a
análise compreende tanto as empresas responsáveis pelo controle e/ou difusão da informação
pelo mundo, como o tipo de tecnologia envolvida e a forma com que a informação é difundida,

Aula 9 Organização do Espaço 171


ou seja, a formação do que se convencionou chamar de ciberespaço no novo espaço técnico-
informacional planetário.

Configurando um contra-discurso da desterritorialização no âmbito político, Newman


(2000) ressalta a importância do território e suas delimitações, principalmente através do
fortalecimento das identidades étnicas e nacionais. Conforme sua interpretação, é no próprio
processo de reterritorialização, e não como resultado da desterritorialização, que as novas
configurações geopolíticas estão sendo edificadas. Essas construções são possíveis através
do surgimento de novas fronteiras e fixações territoriais (por exemplo, a criação de novos
Estados-nações) ou através de espaços virtuais de identidade, em novos moldes espaciais
formados pelas narrativas territoriais centradas no simbólico e no mítico.

Verifica-se que muitos processos ditos de desterritorialização representam, antes, a


construção de uma nova des-ordem territorial extremamente complexa, que pela simples perda
ou mudança de poder das fronteiras nacionais resume-se a uma desterritorialização estatal.
Os registros históricos indicam que as fronteiras do Estado-nação acabam se rearticulando
sob essa nova realidade social e outros tipos de fronteiras vão surgindo.

No que se refere ao Estado contemporâneo, é importante enfatizar o papel contraditório


que assume ao liberar as fronteiras no sentido da livre circulação de capitais – e, por vezes,
de mercadorias – ao mesmo tempo em que controla a circulação de pessoas, trabalhadores
ou refugiados políticos, impondo seus muros com vistas a impedir a entrada de migrantes.

Também é fundamental relembrar que a noção de território não se restringe ao território


estatal e, assim, o sentido de fronteira deve ser expandido. Considerando a possibilidade da
fronteira perder relativamente poder em uma escala (por exemplo, a nacional-estatal), poderá
estar ganhando relevância em outras, como a local (guetos e comunidades mais fechadas) ou
supranacional (organizações políticas como a União Européia).

Não se pode perder de vista que a sociedade reinventa o território em nível político, sendo
imprescindível teorizar criticamente as territorialidades polimorfas produzidas na contemporaneidade
e não reduzi-las a dramas singulares de territorialização resistente ou de desterritorialização. Porém,
é necessário acrescentar o que se denomina política de identidade para compreender a significância
dos fluxos, das redes, teias e formações identitárias no contexto atual.

172 Aula 9 Organização do Espaço


Atividade 2
O sentido de desterritorialização política é altamente difundido em função da
relação entre espaço e poder. Sendo assim, questiona-se: estaria o Estado-
nação em processo de desaparecimento? Justifique sua resposta.

A desterritorialização numa perspectiva cultural envolve uma discussão em que o território


é visto sob a ótica da articulação entre as dimensões política e cultural. Nesse sentido, prioriza-
se o enfoque da “cultura política”, ao mesmo tempo material e simbólica. Torna-se oportuno
considerar que, prioritária ou não, antecedente ou não à política, a dimensão cultural sempre
esteve presente nos processos de formação territorial. Hoje, a carga identitária ou simbólica
aparece com uma ênfase raramente vista.

A criação dos Estados-nações modernos e, conseqüentemente, das sociedades nacionais,


do ponto de vista cultural, corresponde ao que se analisou na dimensão política, um movimento
que simultaneamente se mostra desterritorializador (destruidor das fidelidades territoriais) e
reterritorializador (reconstrutor em um outro nível escalar).

Aula 9 Organização do Espaço 173


No cenário atual, a des-ordem territorial denominada de pós-moderna comporta
lado a lado uma globalização que se diz homogeneizadora e niveladora de culturas, e uma
fragmentação que envolve não só territórios estatais nacionais, com um caráter político mais
pronunciado, mas também outros territórios de forte conotação identitária (alguns com forte
conteúdo étnico de territorialidade).

Uma das primeiras abordagens sobre a desterritorialização no sentido político-cultural, foi


proposta por Simone Weil (2001) e estava associada às noções de comunidade e sociedade nacional.
Em sua leitura, o Estado (ou a nação, nos termos da autora) estaria substituindo todas as outras
comunidades territoriais, provocando o desenraizamento geográfico em relação às coletividades
que correspondem ao território. Essa visão demonstra ambigüidade, posto que podemos encontrar
a formação da nação moderna (fundada na identidade nacional) como um processo destruidor de
territorialidades e reconstrutor, em outro nível de escala, ou seja, reterritorializador.

Além dessa perspectiva de desterritorialização como desenraizamento cultural promovido


pelos Estados-nações, há leituras mais recentes, vinculadas aos discursos pós-modernos.
Nesse contexto, são muitos os autores que proclamam a desterritorialização como característica
central dos processos culturais contemporâneos em todas as escalas. Difunde-se a noção de
um mundo culturalmente desterritorializado, enquanto, anteriormente, pouca alusão era feita
a essa dimensão da territorialização na modernidade. Assim como aconteceu no âmbito da
economia e da política, também entre os estudiosos dessa dimensão aparece o sentido de
“descoberta” da importância das mediações espaciais na construção da cultura, não para
evidenciar seu fortalecimento, mas para entender seu quadro de debilidade.

Entre os vocábulos que proliferam na tentativa de traduzir esse processo, estão


desprendimentos culturais em relação a lugares específicos, culturas desterritorializadas,
hibridismo cultural e até mesmo não-lugares (sem identidade e sem história).

O sociólogo mexicano Nestor Canclini é um dos nomes que mais tem abordado a questão
da desterritorialização de um ponto de vista cultural. Segundo ele, as mudanças socioculturais
contemporâneas estão aportadas, principalmente, em dois processos: a reformulação dos
padrões de assentamentos e convivência urbanos, desvinculando local de moradia e de trabalho
e a redefinição do senso de pertencimentos e de identidade, que deixa as lealdades locais e
nacionais pelas comunidades transnacionais ou desterritorializadas de consumidores (por
exemplo, os jovens em torno do rock). O resultado é a desterritorialização cultural.

De acordo com Canclini (1995, p. 28-29), a novidade é que, na segunda metade do século
XX, as modalidades audiovisuais e massivas de organização da cultura foram subordinadas
a critérios empresariais de lucro, assim como a um ordenamento global que desterritorializa
seus conteúdos e suas formas de consumo. Essa desterritorialização vinculada à padronização
mercantil das formas de consumo envolve também a passagem de um mundo de identidades
modernas, territoriais e quase sempre monolíngüísticas, para um mundo de identidades pós-
modernas, transterritoriais e multilingüísticas.

A despeito da pertinência da leitura da sociedade contemporânea pelo enfoque da


desterritorialização cultural, é importante também considerar que estão em curso processos
de reterritorialização, em diferentes escalas, os quais poderíamos chamar de culturalistas,

174 Aula 9 Organização do Espaço


pela ênfase que dão as identidades (étnicas, religiosas, lingüísticas). A escala nacional,
especialmente dentro das lógicas pós-modernas, nem sempre é acompanhada por recortes
territoriais uniformes e contíguos. Um exemplo de processo des-reterritorializador é a proposta
de formação do Estado Palestino. A reterritorialização evidencia-se tanto pela construção de
novos territórios que respaldem antigos grupos étnicos cujas tradições precisam muitas vezes
ser reinventadas, quanto através de territórios que, em sua própria configuração, inventem
identidades e praticamente representem a fundação de novos grupos ou entidades culturais.

Considerando a relevância do debate sobre território e desterritorialização em


uma perspectiva cultural (cultura política), Haesbaert (2004, p. 229) propõe tratar a des-
territorialização a partir dos diferentes níveis de interação cultural que ela envolve. Sob essa ótica,
os territórios seriam definidos como culturalmente mais fechados – cujos grupos poderiam
ser vistos, ao mesmo tempo, como territorializados (internamente) e desterritorializados (na
relação com grupos de outros territórios, deles excluídos) – e culturalmente mais híbridos – no
sentido de permitirem/facilitarem o diálogo intercultural, com possibilidades de emergir novas
formas, múltiplas de identificação cultural.

Reside nessa perspectiva a possibilidade de construção da multiterritorialidade? Este


será o tema da abordagem do nosso próximo tópico de estudo. Antes, porém, uma paradinha
para resolução da atividade proposta.

Atividade 3

a) Analise a proposição de Nestor Canclini sobre desterritorialização cultural.

b) Explique o sentido de desterritorialização – reterritorialização e exemplifique.

Aula 9 Organização do Espaço 175


... À multiterritorialidade?
No contexto atual, da dominância do componente rede na constituição de territórios
e da fluidez crescente dos espaços, decorrente do meio técnico científico informacional,
tem-se uma redefinição de territorialidades. Não se trata mais de pensar exclusivamente as
territorialidades contíguas, vistas quase sempre com referência aos territórios estatais, mas
de considerar o seu convívio com as múltiplas territorialidades ativadas de acordo com os
interesses, o momento e o lugar em que nos encontramos. Estas remetem aos territórios-
rede marcados pela descontinuidade e pela fragmentação que possibilita a passagem de um
território a outro, envolta em um processo que foi denominado por Haesbaert (1997, p. 42),
de multiterritorialidade.

Para o referido autor, na contemporaneidade, a multiterritorialidade é a forma


dominante da reterritorialização, sendo equivocadamente identificada por muitos autores
como desterritorialização. Sua origem situa-se no âmbito do capitalismo pós-fordista ou de
acumulação flexível, de relações sociais construídas através dos territórios-rede, sobrepostos e
descontínuos, e não mais de territórios-zona, que marcaram a modernidade clássica territorial-
estatal. O reconhecimento das territorialidades múltiplas não corresponde à aniquilação das
formas mais antigas de território, que continuam a existir e formam, junto com as novas
modalidades de organização territorial, um amálgama complexo.

A visão de multiterritorialidade baseia-se na concepção de que a territorialização


corresponde às relações de domínio e apropriação do espaço, ou seja, às mediações espaciais
de poder, sendo este considerado em sentido amplo – do mais concreto ao mais simbólico.
Tendo em vista que não há grupo social sem território, ou seja, sem relação ou apropriação
do espaço, cada momento da História e cada contexto geográfico revelam sua própria forma
de desterritorialização, privilegiando determinada dimensão do poder.

176 Aula 9 Organização do Espaço


Assim, considerando o território em uma perspectiva mais integradora do espaço
geográfico, Haesbaert (2004, p. 340) enfatiza o aspecto temporal, dinâmico e em rede que o
mesmo assume, destacando sua multidimensionalidade e multiescalaridade (não restringindo
ao poder político e à escala nacional, em sentido mais tradicional).

A multiplicidade e/ou diversidade territorial, em termos de dimensão social, dinâmica


(ritmos) e escalas, resulta na justaposição ou convivência de tipos territoriais distintos, ou seja,
múltiplas territorializações. Dentre essas modalidades, estão as territorializações fechadas (que
não admitem pluralidade de poderes e identidades – territorialismo. Por exemplo, os talibãs
afegãos.); territorializações tradicionais (defendem uma maior homogeneidade interna, como
a lógica do poder e controle territorial dos Estados-nações); territorializações mais flexíveis
(admitem ora a sobreposição territorial, ora a intercalação de territórios. Por exemplo, áreas
centrais das grandes cidades, organizadas em torno de usos temporários, entre o dia e a
noite ou entre os dias da semana); e territorializações efetivamente múltiplas (resultantes da
sobreposição ou combinação particular de controles, funções e simbolizações. Por exemplo,
territórios pessoais de indivíduos ou grupos mais globalizados, que se permitem usufruir da
multiterritorialidade das grandes metrópoles.).

A multiplicidade territorial é variável, comportando desde os territórios como abrigo, entre


populações com parcos recursos de sobrevivência que ainda dependem do meio, até territórios
vinculados ao ciberespaço, em que o controle é feito através dos meios informacionais.

No campo das territorialidades, ressaltam-se aquelas efetivamente múltiplas, resultantes


não apenas da sobreposição entre tipos territoriais (territórios-zona e territórios-rede), mas
também de experimentação/reconstrução de forma singular pelo indivíduo, grupo social ou
instituição. É essa reterritorialização complexa, em rede e com fortes conotações rizomáticas,
que se denomina multiterritorialidade.

De acordo com Haesbaert (2004, p. 343), as condições para sua realização incluíram
a maior diversidade territorial, uma grande disponibilidade de e/ou acessibilidade a redes e
conexões, a natureza rizomática ou menos centralizada dessas redes e, antecedendo a tudo
isso, a situação socioeconômica, a liberdade e, parcialmente, a abertura cultural para usufruir
e/ou construir essa multiterritorialidade.

Portanto, o sentido de multiterritorialidade (ou multiterritorialização, se a enfatizamos


enquanto ação ou processo) implica a possibilidade de acessar ou conectar diversos territórios.
Essa conexão pode se efetivar através de uma mobilidade concreta, que envolve o deslocamento
físico ou virtual no sentido de acionar diferentes territorialidades sem sair do lugar, como
nas novas experiências espaço-temporais proporcionadas pelas vias do ciberespaço. São
essas novas relações em rede que dão origem aos territórios-rede flexíveis nos quais o mais
importante é ter acesso aos pontos de conexão que permitam acionar a multiplicidade de
territórios existentes, criando uma nova territorialidade.

Aula 9 Organização do Espaço 177


Atividade 4
Identifique as características básicas do processo de multiterritorialidade,
conforme Haesbaert.

Estamos concluindo as análises sobre o conceito de território. Considerando a


importância do tema e como ele está presente no nosso cotidiano, sugerimos que faça leituras
complementares e fique atento aos noticiários. Você vai descobrir os múltiplos territórios que
circunscrevem nossa vida e como a questão territorial está no cerne das disputas e guerras
que assolam o mundo atual. Exercite sua capacidade de interpretar o território. Boa leitura!

Resumo
Nesta aula, tratamos a respeito do território sob a ótica da desterritorialização,
reterritorialização e multiterritorialidade. Analisamos as diferentes perspectivas
de desterritorialização (econômica, política e cultural), a relação entre
desterritorialização e reterritorialização e o sentido de multiterritorialidade,
típico da sociedade contemporânea.

178 Aula 9 Organização do Espaço


Autoavaliação
Para evidenciar sua aprendizagem sobre o tema estudado, elabore um texto
sintético em que as abordagens conceituais relativas à desterritorialização,
reterritorialização e multiterritorialidade apareçam de forma articulada.

Referências
CANCLINI, N. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1995.

HAESBAERT, R. Des-territorialização e identidade: a rede gaúcha no nordeste. Niterói:


EDUFF, 1997.

______. Território, cultura e des-teritorialziação. In: ROSENDAHL, Z.; CORREA, R. L.


Religião, identidade e território. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001.

______. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

NEWMAN, D. Geopolitics renaissant: territory, sovereignty and the world political map.
Geopolitics, v. 3, n 1, 1998.

______.Territory, boundaries and postmodernity. In: PRATT, M.; BROWN, J. Borderlands


under stress. Londres: [s.n.], 2000.

ROSENDAHL, Z.; CORREA, R L. Religião, identidade e território. Rio de Janeiro: EDUERJ,


2001.

SANTOS, M. et al. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de


Janeiro: DP&A, 2006.

SANTOS, M. O retorno do território. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A. A. de; SILVEIRA, M. L.


(Org.). Território: globalização e fragmentação. São Paulo: HUCITEC/ANPUR, 1994.

SOUZA, M. J. L. de. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In:


CASTRO, I. E. de; GOMES, P. C. da C.; CORRÊA, R. L. Geografia: conceitos e temas. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 77-14.

WELL, S. O enraizamento. Bauru: EDUSC, 2001.

Aula 9 Organização do Espaço 179


Anotações

180 Aula 9 Organização do Espaço


Anotações

Aula 9 Organização do Espaço 181


Anotações

182 Aula 9 Organização do Espaço


Região e a Geografia tradicional

Aula

10
Apresentação

A
caminhada pelos meandros da Geografia tem nos levado à compreensão dos conceitos
básicos dessa ciência: espaço, território, paisagem e lugar. Agora, nossa atenção
estará voltada para o estudo dos conceitos de região e regionalismo. Tal investida será
desenvolvida em duas aulas, nas quais iremos analisar as diferentes abordagens conceituais
relativas à região, tendo como referências os paradigmas do Determinismo Ambiental, do
Possibilismo, da Nova Geografia e as novas tendências que se configuraram a partir da
década de 1970, vinculadas à Geografia Crítica e à Geografia Humanista e Cultural. Associada
à discussão sobre região, será tratada a noção de regionalismo. Esta primeira aula sobre o
conceito de região no pensamento geográfico está ancorada nas perspectivas do Determinismo
Geográfico e do Possibilismo, ou seja, nos paradigmas que constituíram a chamada Geografia
Clássica ou Tradicional. Para consolidar seus conhecimentos, será interessante revisar as aulas
de Introdução à Ciência Geográfica, nas quais você estudou as bases do pensamento geográfico.

Objetivos
Compreender o contexto político em que emergem os
1 paradigmas determinista e possibilista.

Identificar os conceitos de região derivados das referidas


2 correntes do pensamento geográfico.

Estabelecer os diferenciais entre os pressupostos


3 teóricos dos paradigmas mencionados.

Aula 10 Organização do Espaço 185


Região: referências primeiras

P
ara início de conversa, vamos exercitar seus conhecimentos sobre Geografia? Então,
responda: em qual continente está localizado o Brasil? Nesse continente, qual o
subcontinente (ou região) em que o Brasil se localiza? Qual a região do Brasil em que
se situa o seu estado? Sabendo que os estados brasileiros estão divididos em mesorregiões
e microrregiões, qual a localização do seu município? Se você respondeu a todas as questões
sem consulta, parabéns! Mas, se você não conseguiu, pesquise em livros, Internet ou outras
fontes e adquira essas informações. É importante saber sobre o espaço onde moramos para
compreender o seu universo de relações.

As respostas às questões formuladas revelam que o termo região foi empregado em


diferentes situações e escalas. Afinal, o que define uma região, ou seja, o que caracteriza uma
fração do espaço como região?

De fato, alguns esclarecimentos são necessários para fazermos uma travessia segura e
tranqüila pelo universo conceitual que estamos nos propondo a desbravar.

Região constitui um dos conceitos fundamentais da Geografia, assim como as noções


anteriormente estudadas: espaço, território, lugar e paisagem. O termo região apresenta
diferentes sentidos, sendo amplamente empregado no senso comum, remetendo à idéia de
localização e extensão de um dado fenômeno; como unidade administrativa, definida em uma
escala subnacional sobre a qual o poder e o controle do Estado se exercem, e, em diversas
áreas do conhecimento, apresentando acepções variadas no âmbito da Geografia. Todavia, é

186 Aula 10 Organização do Espaço


importante ressaltar que está associado à noção básica de diferenciação de área, ou seja, ao
reconhecimento de que a Terra é formada por áreas diferentes entre si.

A diferenciação de áreas aparece na própria configuração do espaço natural, isto é, na


integração em área dos elementos da natureza. No entanto, na trajetória de elaboração do
conceito, passou-se a admitir que a conformação regional não se define apenas pelas suas
características naturais, mas também pelo processo histórico de ocupação e construção do
espaço, que estabelece diferenciações de natureza social, econômica, política e cultural entre
as áreas. Nesse sentido, a diferenciação de áreas é resultante das relações entre os homens
e entre estes e a natureza.

A palavra região está presente no conhecimento elaborado desde a Antigüidade.


Aparece com destaque nos estudos sobre as diferenças e os contrastes da
superfície da Terra, que foi denominado, pelos gregos, de estudo corográfico
(descrição do lugar). (LENCIONE, 1999, p. 187).

Etimologicamente, região deriva do latim regere, palavra composta pelo radical reg, que
deu origem a vocábulos como regência, regra, regente etc. No Império Romano, designava-se
de regione as áreas que, apesar de terem uma administração local, estavam subordinadas às
regras gerais e hegemônicas das magistraturas sediadas em Roma. No período de formação
dos Estados-Modernos na Europa, recoloca-se a questão regional, ou seja, rediscute-se a
relação entre a centralização, a uniformização administrativa e a diversidade espacial – física,
econômica, cultural e política – sobre a qual esse poder centralizado deve ser exercido (GOMES,
1995, p. 50/52). Esse também foi o momento em que a Geografia começou a se firmar como
um campo disciplinar específico, conforme você já estudou na disciplina Introdução à Ciência
Geográfica.

Teoricamente, a região tem sido pensada sob diversos aspectos a partir de diferentes
paradigmas geográficos. Essa perspectiva não invalida a abordagem regional, porém, a torna
mais complexa, de forma que os diversos conceitos de região podem ser utilizados como
meios para se conhecer a realidade, ou seja, como chaves de leitura que permitem desvendar
as formações sócio-espaciais.

Aula 10 Organização do Espaço 187


Sinal amarelo! Atenção! Que tal uma breve pausa para organizar as idéias?

Atividade 1
De que se constitui a essência da noção de região?
1
Utilizando o mapa político do seu estado, identifique e relacione a
2 mesorregião onde está situado o seu município e as microrregiões
geográficas que ela abrange, conforme definição do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Sinal verde! Prosseguindo a viagem pelos caminhos da Geografia, vamos


construindo o conhecimento sobre seus conceitos e paradigmas. Mas, antes
de dar partida, precisamos anular uma dúvida: faz sentido falar de região
em tempos de globalização? Sem pressa de avançar, vamos ultrapassar
essas trepidações...

188 Aula 10 Organização do Espaço


A justificativa para tais questionamentos pauta-se na perspectiva de que o processo
de globalização, fase atual do capitalismo, atingiu uma escala planetária fazendo ecoar,
dentre outros, o discurso da homogeneização e uniformização dos lugares, o que repercute
sobre a idéia de região no sentido de negar a sua existência. Contudo, os processos sócio-
espaciais que envolvem a sociedade mundial tornam evidente que a globalização produziu
também a fragmentação, nas frestas da qual, manifestações regionalistas e de desigualdades
socioeconômicas reportam-se a diferentes espacializações.

É possível observar que, em alguns locais ou regiões, a modernização provocou alterações


que resultaram em uma certa uniformização de traços da paisagem, enquanto em outros, a
tendência à despersonalização tem enfrentado certa resistência, justamente como forma de
subsistir, defender e/ou reafirmar a identidade/personalidade regional. Nesse sentido, também
se verifica que, em certos casos, a aceleração das mudanças provocadas pela globalização,
longe de produzir a preconizada homogeneização, aumentou as diferenciações regionais. Nesse
ínterim, fortalece-se a tese de que a região não desapareceu, mas teve sua existência recriada
exigindo uma reinterpretação dos processos que definem seus novos formatos e/ou conteúdos.

O termo modernização está sendo empregado no sentido de criação de


um fato moderno, ou seja, “que possui uma ligação intrínseca com a
contemporaneidade, [que] substitui alguma coisa do passado, defasada, ou,
simplesmente, alguma coisa que não encontra mais justificativa no tempo
presente”. (GOMES, 1995, p. 48).

O termo personalidade refere-se a “um conjunto de traços identitários”. O autor


adverte que ao empregar o termo, não o faz no sentido há muito criticado pela
Geografia: o lugar ou a região como sujeito. (YÁZIGI, 2001, p. 17/44).

Aula 10 Organização do Espaço 189


Desse modo, é reconhecível a importância da questão regional, “através da proliferação
de regionalismos, identidades regionais e de novas-velhas desigualdades tanto a nível global
como intranacional” (HAESBAERT, 1999, p. 15). A despeito da tendência homogeneizadora da
globalização, a diversidade territorial criada e recriada no decorrer desse processo requer a
religação das significações aos contextos políticos, econômicos e culturais nos quais a noção
de região serve como elemento-chave de um sistema explicativo (GOMES, 1995, p. 50).

Portanto, revaloriza-se a região no âmbito do próprio processo de globalização por meio


do retorno às singularidades e particularidades, definidoras da personalidade regional. De
acordo com Santos (2002, p. 246),

as regiões são o suporte e a condição de relações globais que de outra forma não se
realizariam. Agora, exatamente, é que não se pode deixar de considerar a região, ainda
que a reconheçamos, como um espaço de conveniência e mesmo que a chamemos por
outro nome.

Sinal amarelo! Atenção! Uma paradinha para reflexão...

Atividade 2
Se a noção de região está vinculada à diferenciação de áreas, qual a pertinência
das abordagens regionais em tempos de globalização?

Esse tópico introdutório da aula sobre região constitui um ponto de partida para as novas
investidas. O que vislumbraremos adiante? O estudo da região tendo como fio condutor a
evolução do pensamento geográfico. Portanto, sinal verde! Avançar...

190 Aula 10 Organização do Espaço


Região – Múltiplas
abordagens conceituais
A temática regional acompanha a trajetória do pensamento geográfico. São múltiplas as
abordagens conceituais sobre região derivadas dos diferentes paradigmas da Geografia. Os
processos de adaptações, reformulações e novos conceitos estão sintonizados com o quadro
de mudanças teórico-metodológicas que a dinâmica espacial exige. Assim, as modificações
conceituais relativas à região estão situadas no quadro histórico das mudanças sucedidas
no mundo que alteram a espacialização da sociedade e, por conseguinte, o conhecimento da
realidade espacial.

Tendo como ponto de partida a emergência da Geografia como ciência, caminhemos para
um encontro com os paradigmas geográficos na perspectiva de identificarmos o contexto em
que emergem os pressupostos teóricos nos quais se fundamentam e os conceitos de região
que formulam.

Região natural e
Determinismo Geográfico
Revisitando os conteúdos estudados na disciplina Introdução à Ciência Geográfica, iremos
encontrar informações sobre a emergência da Geografia como uma disciplina acadêmica, no
final do século XIX. Esse momento é marcado pela ocorrência de dois importantes processos:
a passagem do capitalismo concorrencial para uma fase monopolista e imperialista e a
fragmentação do saber universal em várias disciplinas.

Para saber mais sobre as diferentes fases do capitalismo, leia A Sociedade


Global, de Octávio Ianni ou História Econômica Geral, de Cyro Resende. Para
ampliar seus conhecimentos sobre a fragmentação do saber universal, consulte
A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências
humanas, de Christian Laville e Jean Dionne, que se encontram nas referências
desta aula.

A definição de um objeto de estudo específico tornou-se um imperativo para o


estabelecimento da identidade científica e acadêmica da Geografia, ou seja, para o seu
reconhecimento como ciência. Nesse contexto, o primeiro paradigma da Geografia foi o

Aula 10 Organização do Espaço 191


Determinismo Geográfico, que se fundamentava na teoria da evolução das espécies de Lamarck
(1744-1829) e na teoria da seleção natural das espécies de Darwin (1809-1882). Segundo
Corrêa (1990, p. 9), “estas teorias foram adotadas pelas ciências sociais, que viam nelas a
possibilidade de explicar a sociedade através de mecanismos que ocorrem na natureza”.

Aportados nas idéias naturalistas, os geógrafos deterministas afirmavam que o meio tinha
uma influência determinante na vida do homem. Dessa forma, defendiam o pressuposto de que

as condições naturais, especialmente as climáticas, e dentro delas a variação da


temperatura ao longo das estações do ano, determinam o comportamento do homem,
interferindo na sua capacidade de progredir. Cresceriam aqueles países ou povos que
estivessem localizados em áreas meteorológicas mais propícias (CORRÊA, 1990, p. 9).

Sinal amarelo! Atenção! Você lembra o que já estudou sobre Determinismo?


Articule suas idéias e expresse sua aprendizagem na atividade proposta.

Atividade 3
Analise os fundamentos do paradigma do Determinismo Geográfico.

192 Aula 10 Organização do Espaço


Atividade respondida? Continuemos nossa investida pela evolução do pensamento
geográfico e do conceito de região.

Atrelado às bases do pensamento determinista, surgiu o conceito de região natural,

entendida como uma parte da superfície da Terra, dimensionada segundo escalas


territoriais diversificadas, e caracterizadas pela uniformidade resultante da combinação
ou integração de fenômenos em área dos elementos da natureza: o clima, a vegetação,
o relevo, a geologia e outros adicionais que diferenciam ainda mais cada uma dessas
partes (CORRÊA, 1990, p. 23).

Nessa perspectiva, o conceito de região evidencia que a diferenciação de áreas se


estabelece a partir dos elementos da natureza e que se faz necessário considerá-los sob o
prisma da integração ou combinação.

O Determinismo Geográfico teve em Friedrich Ratzel (1844-1904), geógrafo alemão,


uma das figuras de maior destaque. Seu pensamento estava fundamentado na valorização
da ação do meio natural sobre o homem, na visão de que o homem é um produto do meio.
Transportando as teorias biológicas para o universo geográfico, atribuía grande importância
aos elementos físicos no processo de articulação política, utilizando as noções de seleção
natural, competitividade, áreas de domínio e luta na construção de estratégias de expansão e
domínio do Estado alemão.

As concepções deterministas de Ratzel foram expandidas para o campo da política. Para


ele, os grupos humanos são organismos que crescem e se multiplicam, tendendo a expandir-
se; sendo natural que procurem alargar o seu território, ocupando áreas maiores ou fazendo-o
à custa dos territórios vizinhos. Neste contexto, tem-se a supremacia dos vencedores sobre
os vencidos. Os estados organizam-se de uma forma hierarquizada, justificando a expansão
dos povos superiores à custa dos inferiores. A base de tais concepções estava atrelada ao
ideário determinista de que o homem vivia sujeito às leis da natureza e, assim como na teoria
da Evolução das Espécies, de Darwin, valida as idéias de luta pela vida e de seleção dos mais
fortes. Essas concepções de cunho determinista não tiveram conseqüências políticas imediatas.

Aula 10 Organização do Espaço 193


Todavia, na década de 1930, foram retomadas pelo nazismo e serviram de fundamento ao
expansionismo alemão. A tentativa de colocar em prática essas concepções fez com que a
Alemanha, sob o comando de Hitler, fosse responsabilizada pela deflagração da II Guerra
Mundial, uma das maiores tragédias da humanidade.

Aprofunde seus conhecimentos sobre a II Guerra Mundial. Ao estudar o


assunto, você vai saber mais a respeito da perseguição e do genocídio de
judeus, dos milhares de soldados de diferentes nacionalidades que perderam
suas vidas, do lançamento da primeira bomba atômica nas cidades japonesas
e muitas outras atrocidades que o homem foi capaz de cometer nessa guerra,
motivado pelo poder.

Posteriormente, Ratzel repensou suas idéias e passou a admitir a natureza como


suporte da vida humana e não como determinação. Tal mudança de rota encaminhou-o ao
ambientalismo, que modernamente se desenvolveu apoiado na ecologia.

Sinal amarelo! Atenção! Para não acumular muitas informações, dificultando


sua aprendizagem, enfrente o desafio de sistematizar sua compreensão.
Bom exercício!

Atividade 4
Descreva, a partir de sua interpretação, a concepção de região
1 derivada do paradigma determinista.

Explique a relação entre o Determinismo de Ratzel e a eclosão da II


2 Guerra Mundial.

194 Aula 10 Organização do Espaço


As análises críticas sobre o Determinismo Geográfico o definem como uma ideologia das
classes sociais e dos países dominantes, que procuram justificar o poder, o desenvolvimento e
a expansão a partir das características do meio natural. Dessa forma, encobrem as razões que
conduziram os países a níveis diferenciados de desenvolvimento e domínio, o imperialismo,
transformando em “natural” uma situação que é histórica e socialmente construída.

O enfoque determinista exerceu grande influência sobre os estudiosos da época, que


acreditavam ser este a única vertente explicativa para os fenômenos geográficos.

Embora superado do ponto de vista científico, atualmente, ainda é possível constatar


o eco do Determinismo, basicamente em discursos políticos. De que forma? Um exemplo
pode ser extraído de discursos que identificam a seca como sendo a causa da situação de
pobreza e miséria de grande parte da população do Nordeste brasileiro ou do atraso da região.
Dessa forma, esconde-se a realidade, socialmente construída, sob o envoltório das condições
climáticas. De fato, o quadro socioeconômico do Nordeste não se construiu naturalmente,
mas ao longo de sua história a partir de relações de exploração e de poder, estabelecidas por
uma elite que tinha em suas mãos o comando da região e, assim, definia a trama das relações
intra-regionais e viabilizava os fios da articulação extra-regional. Sendo assim, o discurso
da seca serve, antes de tudo, à elite político-econômica, que se beneficia das políticas e dos
recursos canalizados para a região e desenvolvem estratégias que asseguram sua manutenção/
reprodução no poder. Desse modo, continuar a justificar a condição de subdesenvolvimento da
região Nordeste recorrendo a esse argumento distancia-se, sensivelmente, da compreensão
dos fatos em sua historicidade.

Aula 10 Organização do Espaço 195


Sinal amarelo! Atenção! Pare, pense e procure estabelecer relações entre as
informações sistematizadas no texto e o conhecimento já adquirido a partir
de sua realidade. Como fazer isso? Vejamos algumas questões que podem
nortear suas reflexões com base na realidade do semi-árido nordestino:
você já ouviu algum político ou representante da sociedade atribuir à seca as
responsabilidades pela falta d’água, pela pobreza, pela falta de trabalho, pela
quebra ou perda da produção agrícola, pela mortandade dos rebanhos? Há
referências desse discurso da seca, no seu município? Como e por quem ele é
propagado? E, sobre a “indústria da seca”, o que você sabe? Após essa leitura
crítica que envolve a realidade socioeconômica e ambiental do Nordeste semi-
árido, eis o desafio que espera você...

Atividade 5
Analise a relação entre o Determinismo Geográfico e o discurso sobre o
subdesenvolvimento da região Nordeste do Brasil, justificando a quem serve
tal discurso.

196 Aula 10 Organização do Espaço


Região humana ou geográfica
e Possibilismo Geográfico
Como reação às explicações e análises geográficas baseadas no Determinismo, ainda no
final do século XIX, surgiu o Possibilismo Geográfico, na França. Como você deve ter estudado
anteriormente, essa reação ao determinismo ambiental foi mais forte na França, por existir uma
situação de confronto entre ela e a Alemanha, associada à política imperialista e aos interesses
expansionistas dessas nações.

O Determinismo e o Possibilismo geográficos constituem os paradigmas da Geografia


Tradicional e tinham como foco de análises as relações Homem x Natureza. Então, em que
reside a diferença entre eles? A distinção situa-se no direcionamento do foco de estudo.
Enquanto o Determinismo considerava que a natureza determinava a vida do homem, ou seja,

Aula 10 Organização do Espaço 197


que este era um ser passivo que buscava se adaptar às condições geográficas do meio, o
Possibilismo concebia que a natureza era fornecedora de possibilidades para que o homem a
modificasse. Assim, o homem era visto como um agente ativo que, ao tomar conhecimento do
ambiente físico que o cerca, é capaz de modificá-lo (possibilidades ambientais) com base em
suas aptidões culturais. Dessa forma, tem-se a passagem da concepção de adaptação humana
à ação modeladora, “pela qual o homem com sua cultura cria uma paisagem e um gênero de
vida, ambos próprios e peculiares a cada porção da superfície da Terra” (CORRÊA, 1990, p.
28). Isso significa que na relação Homem x Natureza, esta pode influenciar e moldar certos
gêneros de vida, mas é sempre a sociedade, seu nível de cultura, de educação, de civilização,
que tem a responsabilidade da escolha, segundo a fórmula: o meio ambiente propõe e o homem
dispõe (GOMES, 1995, p. 56).

Deriva desses pressupostos o conceito de região humana ou geográfica, entendida como


um espaço em que as características naturais (físicas) e culturais (humanas) se interpenetram
como resultado de uma evolução histórica; em que conferem a um determinado espaço
características de homogeneidade que o diferenciam de qualquer outro espaço contíguo. A
região passou a ser vista como uma síntese entre o homem e o meio. Dessa forma, a ênfase
das análises geográficas recaiu sobre essa síntese, resultante das relações humanas sobre o
meio natural, e a região foi considerada o próprio objeto de estudo da Geografia.

Sinal amarelo! Atenção! Hora de reduzir a marcha para caminhar com


tranqüilidade pelas estradas do conhecimento. Pronto para a investida?

198 Aula 10 Organização do Espaço


Atividade 6

Analise os aportes teóricos do paradigma do Possibilismo Geográfico.


1
Considerando os pressupostos possibilistas, explicite o seu
entendimento a respeito da concepção de região deles derivada.
2

A Escola Francesa de Geografia teve como principal expoente Paul Vidal de La Blache
(1845-1918), cujas teorias motivaram um retorno às análises físico-humanas, conduziram ao
estudo das relações e enfatizaram a importância da história para as abordagens geográficas.
Nesse sentido, sua contribuição foi decisiva para a formulação do conceito de região na
Geografia Possibilista.

As repercussões desse paradigma não se restringiram à França ou à Europa, difundindo-


se por outras paragens na primeira metade do século XX. As idéias possibilistas atravessaram
o Oceano Atlântico e aportaram no Brasil, influenciando professores, geógrafos e técnicos,
principalmente nas décadas de 1930/1940. Os responsáveis por essa travessia foram os
pesquisadores e professores franceses que chegaram ao país, nesse período, para ajudar
a estruturar a base universitária da Geografia brasileira (BEZZI, 2004, p. 79). Tendo as
proposições vidalinas como norteadoras, em 1941, o Conselho Nacional de Geografia definiu
uma regionalização, que representou o primeiro esforço organizado de sistematização de uma
divisão regional do Brasil. Tal divisão tinha por objetivos uniformizar e tornar comparáveis entre
si os estudos e levantamentos estatísticos realizados pelos órgãos federais, fornecendo-lhes uma
base territorial comum, e servir de suporte para o ensino de Geografia nas escolas brasileiras.

Aula 10 Organização do Espaço 199


A divisão regional do Brasil tomou como referência inicial a escala macro, ou seja, de
divisão do todo (território brasileiro), que foi sendo subdividido em unidades menores que
iram desde as Grandes Regiões (unidades maiores), passando pelas Regiões e Sub-regiões
(unidades intermediárias) até as zonas fisiográficas (unidades menores).

Tendo por base o conceito de região natural, introduzido no Brasil, via influência francesa,
por Delgado de Carvalho em 1913, o território brasileiro foi dividido em cinco grandes regiões
naturais: Norte, Nordeste, Leste, Sul e Centro-Oeste. Denotando a influência da Geografia
regional francesa, as grandes regiões definidas pelos caracteres naturais foram subdivididas
em zonas fisiográficas que, a despeito do nome, eram caracterizadas por elementos de ordem
humana, ou seja, socioeconômicos. Essa divisão regional foi a única oficialmente adotada pelo
governo brasileiro para ser usada pelos diferentes setores da gestão pública. Decorre desse
reconhecimento oficial o fato de que as zonas fisiográficas serviram de matriz territorial para
a sistematização e divulgação dos resultados dos censos de 1950 e 1960. Tal regionalização
perdurou até 1968, quando foi substituída por uma nova divisão regional.

TERRITÓRIO DO RIO BRANCO


TERRITÓRIO DO AMAPÁ
TERRITÓRIO DE
FERNANDO DE
NORONHA
AM PA MA RN
CE
PB
TERRITÓRIO ACRE PI
PE
AL
BA
TERRITÓRIO DO GUAPORÉ GO
MT

LEGENDA MG
ES
NORTE SP
NORDESTE RJ
PR
LESTE SC
CENTRO - OESTE RS

SUL

Fonte: ich.unito.com.br/.../images/chc/old/chc125b6.jpg. Adaptado.

200 Aula 10 Organização do Espaço


Sinal amarelo! Nova parada se faz necessária. Você percebeu como esse
universo da Ciência não é algo estranho e distante da realidade histórica e social
que nos envolve?

Atividade 7
O pensamento lablacheano foi importante para a produção geográfica.
1 Em que se baseavam as suas teorias?

A Geografia brasileira foi bastante influenciada pelo paradigma


2 possibilista. Quais as repercussões dessa situação?

Aula 10 Organização do Espaço 201


Resumo
A abordagem regional acompanha a trajetória histórica da Geografia e
está atrelada, em princípio, à noção de diferenciação de áreas. Nesta aula,
você estudou o conceito de região à luz do Determinismo Geográfico e do
Possibilismo, o contexto político em que tais paradigmas emergiram e os
principais diferenciais que os envolvem. Foi possível, ainda, evidenciar de que
forma os conceitos de região natural e região geográfica repercutiram no Brasil,
fundamentando as primeiras regionalizações do território nacional.

Autoavaliação
Considerando os paradigmas do Determinismo Geográfico e do Possibilismo,
1 analise o diferencial existente entre os seus pressupostos teóricos.

Explique a relação entre as teses deterministas e a política, tendo como base o


2 pensamento ratzeliano.

As zonas fisiográficas constituem a primeira divisão regional oficial do Brasil,

3 tendo como referência microrregiões (pequena escala). Identifique a zona


fisiográfica em que se localizava o município em que você mora e compare
com a divisão microrregional atual. Houve mudança no recorte regional e em
sua identificação?

202 Aula 10 Organização do Espaço


Referências
BEZZI. M. L. Região: uma (re)visão historiográfica, da gênese aos novos paradigmas. Santa
Maria, RS: UFSM, 2004.

CORRÊA, Roberto Lobato. Região e organização espacial. São Paulo: Ática, 1990.

FERREIRA, Conceição Coelho. A evolução do pensamento geográfico. Lisboa, Portugal:


Gradiva, 1986.

GOMES, Paulo César da Costa. A região e sua discussão. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES,
Paulo César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.). Geografia: conceitos e temas. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

HAESBAERT, Rogério. Região, diversidade territorial e globalização. Geographia, Rio de


Janeiro, ano 1, n. 1, 1999.

IANNI, Octávio. A sociedade global. São Paulo: Civilização Brasileira, 1996.

LAVILLE, C; DIONNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em


ciências humanas. Porto Alegre: ARTMED; Editora/UFMG, 1999.

LENCIONE, Sandra. Região e geografia. São Paulo: EDUSP, 1999.

RESENDE, Cyro. História econômica geral. São Paulo: Contexto, 1999.

SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-


informacional. São Paulo: HUCITEC, 1994.

______. A natureza do espaço: técnica e tempo, espaço e razão. São Paulo: EDUSP, 2002.

YÁZIGI, Eduardo. A alma do lugar: turismo, planejamento e cotidiano. São Paulo:


Contexto, 2002.

Aula 10 Organização do Espaço 203


Anotações

204 Aula 10 Organização do Espaço


Região no contexto
da renovação da Geografia

Aula

11
Apresentação

N
esta segunda aula sobre o tema região, o foco das análises continuará a ser
as formulações conceituais e o regionalismo. Estudaremos os conceitos de
região oriundos do paradigma da Nova Geografia e das novas tendências, que
se configuraram a partir da década de 1970, vinculadas à Geografia Crítica e à Geografia
Humanística e Cultural. Na seqüência, será abordada a noção de regionalismo.

Objetivos
Identificar os marcos históricos do contexto de
1 emergência do processo de renovação da Geografia.

Compreender as abordagens regionais derivadas da


2 Geografia Crítica e da Geografia Humanística e Cultural.

Apreender o sentido de regionalismo e sua relação


3 com a região.

Aula 11 Organização do Espaço 207


Região –
Múltiplas abordagens conceituais

A
história do pensamento geográfico revela que a região sempre foi uma discussão
pertinente ao campo da Ciência Geográfica. Na aula anterior, estudamos os conceitos
de região elaborados no âmbito dos paradigmas do Determinismo Geográfico e do
Possibilismo, respectivamente, região natural e região geográfica. Nesta aula, a travessia
pelas correntes do pensamento formuladas no século XX ratifica a premissa de que “um
conhecimento científico é o resultado, em um determinado momento do tempo, da relação
entre o estágio de desenvolvimento teórico sobre o objeto e o grau de conhecimento sobre
esse objeto” (BEZZI, 2004, p. 104). Assim, as mudanças paradigmáticas são acompanhadas
de reformulações e novas formulações conceituais que contribuem para o entendimento das
características espaciais de uma dada sociedade. É nesse cenário que emergem as noções
de região vinculadas à Nova Geografia e às correntes que se firmaram a partir de 1970.

208 Aula 11 Organização do Espaço


Região na Nova Geografia
ou Geografia Quantitativa
Em meados da década de 1950, no período pós-guerra, ocorreram profundas
transformações na sociedade mundial (expansão capitalista, guerra fria e bipolarização)
e no universo da ciência. No âmbito do conhecimento geográfico, emergiu uma série
de questionamentos aos aspectos teórico-metodológicos da Geografia Tradicional e,
particularmente, do conceito de região. Vivia-se uma fase de transição em que se colocava
a insuficiência teórico-conceitual dos paradigmas então vigentes de explicar as realidades
sócio-espaciais descortinadas naquele contexto histórico e desencadeou-se uma revisão
analítica do que existia. Paralelamente às críticas formuladas à Geografia Tradicional,
imprimiam-se mudanças na base filosófica e metodológica, redefiniam-se os métodos de
investigação e os objetivos dos estudos geográficos.

A tessitura de revisão crítica na ciência não significa a destruição do que existe, mas
acena para a produção e incorporação de novas idéias, referendando a tese de que a elaboração
do conhecimento é um processo histórico de interpretação da realidade. Nesse sentido, as
transformações ocorridas no espaço, via expansão do capitalismo, passaram a exigir da Geografia
um maior dinamismo, que sintonizasse a velocidade em que ocorriam as transformações
espaciais com a produção de um sistema explicativo. No caso da abordagem regional, não se
trata de anular, negar ou julgar irrelevante os conceitos de região natural e de região humana ou
geográfica, mas de considerá-los superados mediante as mudanças espaciais.

A expansão do capitalismo, no período pós-guerra mundial, provocou enormes


conseqüências sobre a organização espacial, envolvendo a introdução e difusão
de novas técnicas e culturas, via propagação do modelo de sociedade industrial/
urbana. Nesse contexto, ocorreu a destruição, construção e reconstrução de
formas espaciais criadas e recriadas para atender à lógica imperativa do capital,
que passou a presidir o ordenamento do território.

Dessa conjuntura histórica, emergiu o paradigma da Nova Geografia, simultaneamente,


na Suécia, na Inglaterra e nos Estados Unidos da América (EUA). Mas, por que “Nova”
Geografia”? Porque esse paradigma, ao contrário dos anteriores que primavam pela
descrição, apresentava uma postura pragmática ou operativa articulada à propagação do
sistema de planejamento do Estado capitalista, que passava a adotar procedimentos técnicos
objetivando o desenvolvimento da planificação nos seus respectivos territórios. Além desse
caráter pragmático, ao aporta-se no positivismo lógico como método de apreensão do real,
introduziu a Matemática e a Estatística nos estudos geográficos.

Aula 11 Organização do Espaço 209


Em termos de estudos regionais, os pressupostos da Nova Geografia promoveram
uma significativa redefinição, posto que para o estabelecimento de regiões passou a
ser fundamental a aplicação de técnicas estatísticas que mensurassem as diferenças e
similaridades entre os lugares. Nessa perspectiva, a região “é definida como um conjunto de
lugares onde as diferenças internas entre esses lugares são menores que as existentes entre
eles e qualquer elemento de outro conjunto de lugares” (CORRÊA, 1990, p. 32).

Conforme a Nova Geografia, as regiões são definidas estatisticamente e de acordo com


os propósitos de cada pesquisador, a quem cabe selecionar os critérios para uma divisão
regional. Por exemplo, se se deseja definir regiões agrícolas, recorre-se a informações
pertinentes. Dessa maneira, pode-se considerar que é quase infinita a variabilidade das
divisões regionais possíveis, visto que são infinitas as possibilidades que o pesquisador
tem para definir os critérios que deseja levar em conta. Nessa abordagem, “a região é uma
classe de área, fruto de uma classificação geral que divide o espaço segundo critérios ou
variáveis arbitrários que possuem justificativa no julgamento de sua relevância para uma
certa explicação” (GOMES, 1995, p. 63).

Você compreendeu o cenário de mudanças que envolveu o despontar da Nova


Geografia? Antes de prosseguirmos, que tal uma paradinha para organizar as idéias sobre
o assunto?

210 Aula 11 Organização do Espaço


Atividade 1
Pesquise sobre o tema Guerra Fria e Bipolarização e elabore
1 uma síntese.

Analise a relação entre o momento histórico em que ocorreu a Guerra


2 Fria e a Bipolarização e as mudanças na Ciência Geográfica.

Evidencie as repercussões dessas mudanças na concepção de região.


3

Aula 11 Organização do Espaço 211


No âmbito da Nova Geografia, a região passou a ter duas abordagens fundamentais:
região homogênea, formal ou uniforme e região funcional, polarizada ou nodal.

A região homogênea é “aquela cuja identidade sempre se relacionará com características


físicas, econômicas, sociais, políticas, culturais, entre outras, em uma determinada área”
(BEZZI, 2004, p. 136). Essa definição pressupõe que a estruturação do espaço é vista pelo
caráter da uniformidade. Um exemplo desse tipo de região consiste na divisão regional do
Brasil em microrregiões homogêneas, formulada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), que perdurou até 1989.

A região funcional define-se pela existência de um pólo (nó) que preside a teia de
relações que dá substância à região. Nesse caso, o caráter da funcionalidade é estabelecido
a partir de múltiplas relações que criam fluxos de naturezas diversas (mercadorias,
informações, pessoas, decisões, idéias etc.), articulando um espaço que é internamente
diferenciado. Nesse tipo de abordagem, a cidade assume um importante papel como centro
(nó) da organização espacial, pólo irradiador da dinâmica regional. Como exemplo da
aplicabilidade de tal noção, destaca-se a divisão do Brasil em Regiões Funcionais Urbanas,
elaborada pelo IBGE em 1972.

Você tem o costume de consultar ou estudar recorrendo a mapas? Saiba que ele é uma
excelente e imprescindível companhia para o geógrafo. Vamos atestar isso?

212 Aula 11 Organização do Espaço


Atividade 2
Primeiro, analise bem os conceitos de região homogênea e funcional
1 e procure sistematizá-los conforme seu entendimento.

Segundo, pesquise em atlas antigos ou na Internet os mapas que


2 representam:

a) as microrregiões homogêneas do estado em que você mora e identifique


aquela onde se localizava o seu município. Mudou a identificação e o
recorte territorial em relação às microrregiões geográficas atuais?

b) as regiões funcionais urbanas do Brasil e identifique a cidade pólo da


região onde, hoje, você reside. Essa cidade continua a ser o centro ou
pólo regional? Justifique.

Aula 11 Organização do Espaço 213


O conceito de região
no âmbito da renovação
do pensamento geográfico
A década de 1970 constituiu-se um momento importante de (re)visão da ciência
e, por conseguinte, esse processo afetou a Geografia. Essa revisão esteve associada às
transformações sociais e econômicas que ocorreram em nível mundial e repercutiram sobre
a produção do conhecimento nas ciências sociais. Dentre os acontecimentos que marcaram
as décadas de 1950 a 1970 e foram decisivos para essas transformações estão a deflagração
da política de coexistência pacífica, que atenuou as tensões ideológicas internacionais no
EUA x URSS confronto Leste-Oeste (EUA x URSS), permitindo a emergência da reflexão marxista no
Estados Unidos Ocidente e, posteriormente, contribuindo para o fim da Guerra Fria (1989); as mudanças
da América versus nos países do Terceiro Mundo, via independência política de várias nações (descolonização),
União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas.
democratização e divulgação dos problemas socioambientais em conferências internacionais;
e a crise do sistema de dominação ocidental que originou grandes transformações na
organização do espaço internacional (triunfo da revolução comunista na China, regimes
socialistas em alguns países africanos e revolução cubana).

O quadro das relações internacionais, na década de 1970, evidenciou o agravamento


das tensões sociais e da problemática ambiental, em uma tessitura em que o aumento dos
níveis de desemprego se somou à precariedade e escassez de moradia, saúde e educação.
O cenário de pobreza, mesclado por questões raciais, assumiu maior nitidez, ao mesmo
tempo em que se fortaleceu a tese de que o subdesenvolvimento é uma conseqüência da
dominação capitalista. Assim, procedeu-se ao reconhecimento das relações existentes
entre o atraso econômico, a dependência e o intercâmbio internacional. Teve-se revelada
a enorme distância entre os países desenvolvidos, ou seja, de capitalismo avançado, e os
países subdesenvolvidos que viviam (e vivem) a dramática realidade da pobreza, da miséria,
da degradação ambiental, da violência e do caos urbano.

Nesse contexto, a estratégia metodológica da Nova Geografia, com seus modelos


normativos e teorias de desenvolvimento, pautados no crescimento econômico, não
satisfazem em termos de sistema explicativo, sendo reduzidos a meros discursos ideológicos.
Acusada de acrítica, ideológica e conservadora, a Geografia, sob o paradigma quantitativista,
não conseguia dar conta de interpretar e explicar as transformações sócio-espaciais gestadas
na esfera das sociedades capitalistas.

Dessa forma, o reconhecimento da dramática realidade dos países e populações pobres,


a partir de crescentes níveis de desigualdades socioeconômicas, e a insatisfação com os
pressupostos teórico-metodológicos da Nova Geografia foram fundamentais para que
prosperasse um processo de críticas radicais que levaram à emergência de outras correntes

214 Aula 11 Organização do Espaço


do pensamento geográfico, as quais, de diferentes maneiras, acentuaram a preocupação
com o caráter social da Geografia. Segundo Bezzi (2004, p. 179), “as razões da ruptura
com a Nova Geografia devem-se à concepção de que a Geografia deveria ser uma ciência
preocupada com os problemas sociais e, por isso, deveria aprofundar as relações sociedade
x natureza, tendo como objeto a realidade social”.

Nesse terreno fértil de transformações e tensões, surgiram os paradigmas da Geografia


Crítica, firmada no materialismo histórico e dialético; da Geografia Humanística e da Geografia
Cultural, baseadas na fenomenologia e na percepção. Essas novas correntes do pensamento
geográfico conduziram à construção de novos parâmetros para o estudo regional, ampliando
o pluralismo conceitual.

Veja como a história é fundamental para os estudos geográficos! Pesquisar ainda mais
sobre esse momento histórico é importante, não só para conhecer o referido período, mas
também porque esses acontecimentos históricos são imprescindíveis à compreensão da
realidade atual. Por isso, busque o conhecimento e procure responder às questões propostas.

Atividade 3
Por que a década de 1970 é considerada um divisor de águas na
1 história da humanidade e da produção científica?

Quais as repercussões desse cenário na Ciência Geográfica?


2

Aula 11 Organização do Espaço 215


Região na Geografia Crítica
A Geografia Crítica procedeu a uma revisão interna do pensamento geográfico,
deparando-se com o problema teórico-metodológico de “região” não se constituir em uma
categoria de análise marxista. Semelhante a outros paradigmas, a perspectiva geográfica
influenciada pelo marxismo também concebeu a região como parte de uma totalidade.
Nesse caso, uma totalidade histórica e não uma totalidade harmônica (Possibilismo) ou
uma totalidade orgânica (Nova Geografia). Isso porque, de acordo com essa abordagem, a
reconstituição histórica é importante para a compreensão da região como produto de uma
divisão territorial do trabalho, implantada no interior do sistema capitalista. Essa perspectiva
de pensar conduziu a análises em que a região aparecia como derivação de processos gerais
e, em muitos casos, as características internas e particulares à região foram colocadas em
segundo plano (LENCIONE, 1999, p. 196).

A partir do materialismo histórico e da dialética marxista, surgiram várias formulações


conceituais referentes à região, que, de forma geral, enfatizam as dimensões econômica e
política. Na compreensão de Gilbert (apud BEZZI, 2004, p. 183, essa pluralidade conceitual
converge para a leitura da região como uma resposta local aos processos capitalistas, estando
o foco das análises centrado na produção de desigualdades sócio-espaciais intrínsecas
à dinâmica de acumulação e reprodução do capital. Dessa forma, os estudos regionais
têm no desigual desenvolvimento geográfico uma categoria fundamental para exame.
“As interpretações acerca desse desenvolvimento desigual, suas causas e conseqüências
compõem um vasto quadro de tonalidades diversas, que se integram a visões diferentes
dos fatos constituintes da região, seu papel e sua importância” (BEZZI, 2004, p. 184). Além
do desenvolvimento desigual, foram abordados outros temas como: segregação urbana,
favela, renda da terra, subnutrição, violência etc., até então abordados por outras ciências.
Ao serem examinados pelo prisma da espacialização, esses temas enriqueceram o debate e
a produção geográfica.

Figura 1 - Geografia: sociedade e espaço

216 Aula 11 Organização do Espaço


A despeito das contribuições decorrentes da Geografia Crítica, Lencione (1999, p.
168) chama a atenção para o fato de que “um dos aspectos mais positivos da incorporação
do marxismo em relação à temática regional foi a crítica à fetichização do espaço e aos
estudos baseados na descrição e análise das funções regionais”. Além de apontar o quanto a
reconstituição histórica pode ser reveladora para a compreensão da região em estudo. Mas,
é preciso ressaltar que a região não se constitui uma categoria de análise marxista. Uma das
conseqüências desse fato revela-se através das análises que passaram a considerar a região
como produto da divisão territorial do trabalho, tendo como referência o processo geral de
produção capitalista. Nesse caso, as características internas e particulares da região foram
deslocadas para segundo plano.

No âmbito da Geografia sob inspiração marxista, um outro aspecto destacado por


Lencione (1999, p. 169) diz respeito ao equívoco em estabelecer a analogia entre região
e classe social. Isso porque tal procedimento transfere “a idéia de exploração capitalista
de uma dada classe social pela outra para a formulação de que haveria exploração de uma
região por outra”. Qual a implicação dessa leitura? A transposição da noção de exploração
para a análise espacial, equivocadamente, considera a região como um sujeito social.

Dentre os vários autores que discutem a região na perspectiva marxista, destaca-se


Milton Santos pela sua contribuição à compreensão dessa categoria de análise no âmbito da
globalização. Para esse autor (1988, p. 45-49), um dos parâmetros para melhor compreender
a região é por meio do modo de produção porque possibilita apreender como uma mesma
forma de produzir ocorre em diferentes partes do globo, reproduzindo-se de acordo com
suas especificidades regionais. Em sua concepção, o mundo tornou-se uno para atender
às necessidades da nova maneira de produzir, que ultrapassa regiões, países, culturas.
No entanto, enquanto os processos modernos de produção se espalham pelo planeta, a
produção se especializa regionalmente. Assim, “as regiões aparecem como as distintas
versões da mundialização [...] esta não garante a homogeneidade, mas, ao contrário, instiga
diferenças, reforça-as e até mesmo depende delas” (SANTOS, 1988, p. 46).

A partir das diferentes interpretações do fenômeno regional – como modo de produção,


conexão entre classes sociais e acumulação capitalista, relações entre o Estado e a sociedade
local – à luz da Geografia Crítica, tem-se a ratificação da premissa de que a região é “um
objeto individualizador” (BEZZI, 2004, p. 205), cuja compreensão abrange a dinâmica social,
econômica e política que lhe é inerente.

Neste momento, para entender melhor a proposição de região na Geografia Crítica,


faz-se necessário pesquisar em fontes diversas sobre marxismo, materialismo histórico e
dialética. Pesquisa já realizada? Então, boa atividade!

Aula 11 Organização do Espaço 217


Atividade 4
Identifique os aspectos favoráveis e desfavoráveis ao entendimento
1 da região sob a perspectiva da Geografia Crítica.

Sistematize uma breve análise sobre a leitura de Milton Santos a


2 respeito da concepção de região. Será de grande valia a consulta às
obras do autor que constam nas referências desta aula.

218 Aula 11 Organização do Espaço


Região na abordagem
humanístico-cultural
A abordagem humanístico-cultural nos estudos sobre região está vinculada à Geografia
Humanística e à Geografia Cultural, que compartilham entre si elementos comuns de análise.
Inclui-se, nessa perspectiva, a concepção da região como foco de identificação, ou seja,
pautada na apropriação simbólica do lugar por determinado grupo.

A tendência humanístico-cultural na Geografia está ancorada na fenomenologia, que


prioriza a percepção e entende que qualquer idéia prévia que se tenha da natureza dos
objetos deve ser abolida, posto que é por intermédio do vivido que o indivíduo se põe
em contato com o mundo dos objetos exteriores e não do concebido, isto é, de idéias
prévias, preconcebidas ou de conceitos elaborados. Considerando a incorporação do vivido
como sumamente importante para a compreensão do espaço, a Geografia de inspiração
fenomenológica defende que a percepção advinda das experiências vividas é uma etapa
metodológica relevante para o conhecimento.

No âmbito dessa abordagem, a análise está centrada na noção de espaço vivido enquanto
uma construção que se delineia a partir da percepção das pessoas, sendo revelador de
práticas sociais. Recupera-se o humanismo, valoriza-se a história e ressaltam-se os valores
socioculturais, ao mesmo tempo em que se afirma a importância da estética e do imaginário
na análise geográfica. Assim, o espaço passa a ter a conotação de uma categoria cultural,
ou uma representação coletiva, e a região assume uma nova interpretação, sendo vista
como um conjunto de percepções vividas e estabelecidas a partir de apreensões, valorações,
decisões e comportamentos coletivos (BEZZI, 2004, p. 207). Nesse contexto, “a discussão
de como o espaço é percebido e quais são os significados e valores modelados pela cultura e
pela estrutura social que são atribuídos ao espaço passaram a ser analisados com o objetivo
de compreender o sentimento que os homens têm de pertencer a uma região” (LENCIONE,
1999, p. 194). Afetividade e pertencimento, sentimentos que alicerçam uma construção
identitária assumiram relevância no âmbito da compreensão da identidade regional, elevando
esse tema à condição de problema central da Geografia regional de base fenomenológica.

Considerando que o estudo da região pela vertente cultural pressupõe a manipulação


de um código de representações e significações de um determinado grupo social, são os
signos projetados no espaço que traçam os limites e as distâncias entre esse grupo e os
outros, delimitando os espaços de referências identitárias.

Nessa perspectiva, a região é definida como “um conjunto específico de relacionamentos


culturais entre um grupo e determinados lugares”. Ou seja, “é uma apropriação simbólica
de uma porção do espaço por um determinado grupo, e é um elemento constitutivo de
sua identidade” (GILBERT, 1988, p. 210 apud BEZZI, 2004, p. 183). Através da identidade

Aula 11 Organização do Espaço 219


cultural, um grupo social identifica-se e é reconhecido pelos demais. Desse modo, o
fenômeno cultural vivenciado pelo grupo se expressa no território e serve como parâmetro
das formas de organização social.

37°30' 37°00' 36°30' 36°00'

6°00'

6°00'
6°30'

6°30'
LEGENDA
Sede do Município
ESCALA Divisão Municipal
10 0 10 20 km Divisão Estadual
7°00'

7°00'
FONTE: Elaboração da Autora - 2002 sobre Malha Municipal Digital do Brasil - 1997 - IBGE/DGC/DECAR
37°30' 37°00' 36°30' 36°00'

Figura 2 – Seridó Norte-rio-grandense: Municípios – 2008

Fonte: Morais (2005, p. 272).

Achou interessante a formulação conceitual da abordagem humanístico-cultural? A


leitura suscita alguma reflexão? Ao longo das duas aulas sobre região, você foi convidado
a exercitar seu conhecimento acerca da região onde reside. Você trabalhou com mapas,
ou seja, com representações cartográficas. Agora, o exercício é de outra natureza! Você
está sendo convidado a pensar sobre a sua relação com a região onde vive. Qual a sua
identidade regional?

220 Aula 11 Organização do Espaço


Atividade 5
Analise os pressupostos da abordagem humanístico-cultural da
1 Geografia.

Exponha sua compreensão a respeito de região, conforme a tendência


2 humanístico-cultural.

Considerando a sua experiência de vida, há alguma região com a qual


3 você se identifica? Em que reside a base dessa identificação?

Aula 11 Organização do Espaço 221


Região e regionalismo
As discussões a respeito do tema região propiciam investidas por diferentes trilhas
que envolvem as dimensões econômicas, políticas, culturais e territoriais que conformam a
sociedade. Nesse cenário, o reconhecimento da diversidade regional põe em evidência formas
de manifestação social particulares, traços da personalidade regional. A face empírica desse
processo requisita uma breve reflexão sobre a noção de regionalismo como abordagem que
deriva da perspectiva dos estudos regionais.

Conforme a leitura de Ricq (1983 apud BEZZI, 2004, p. 216), o regionalismo parte da
base, emerge da consciência das desigualdades regionais e é a contestação ao centralismo,
é a luta pela autonomia. A partir dessa definição, infere-se o conteúdo político impresso ao
sentido de regionalismo.

Tomando como referência a realidade brasileira, Castro (1994), ao tratar da visibilidade


da região e do regionalismo, confirma essa assertiva. A autora define regionalismo como:

expressão política de grupos numa região, que se mobilizam em defesa de interesses


específicos frente a outras regiões ou o próprio Estado. Esse é um movimento político,
porém vinculado à identidade territorial. Se eliminarmos do conceito a idéia purista
de defesa de interesses ‘da região’, perceberemos que se trata na realidade, de uma
mobilização política em torno de questões e interesses de base regional, embora sua
idéia-força possa ser, e quase sempre é, explicitada como defesa da sociedade regional.
(CASTRO, 1994, p. 164-165).

Nessa perspectiva, a trama do regionalismo é tecida pelos fios da identificação e da


coesão internas e pela adoção de uma postura de competição externa visando à defesa de
padrões e à preservação ou obtenção de condições mais vantajosas.

Definindo-se a região a partir da relação do homem com o meio e com seus símbolos,
esta se constitui na base territorial para a expressão do regionalismo. Apropriando-se desse
conteúdo simbólico, a elite reelabora-o ideologicamente na identidade regional, conferindo
visibilidade e valoração aos traços singulares da sociedade (sotaque, terminologia, hábitos
etc.). “É na utilização desses aspectos simbólicos como recurso político que se estrutura o
discurso regionalista do poder local”. Dessa maneira, o território assume o papel de sujeito
do processo histórico, obscurecendo a visibilidade das relações sociais, que se diluem nos
problemas territoriais (CASTRO, 1994, p. 165).

Na interpretação do que significa o regionalismo, é possível destacar dois pontos


importantes: o primeiro diz respeito a sua compreensão enquanto processo de identidade e
de diferenciação sócio-espacial; e o segundo remete ao entendimento de sua construção a
partir da atividade política, em suas diferentes nuances.

222 Aula 11 Organização do Espaço


Na avaliação de Castro (1994, p. 164-169), o regionalismo nordestino é exemplar da
síntese conceitual apresentada, tendo em vista que a sua visibilidade se dá no aparato político
de representação nacional, em que os discursos dos políticos se pautam, principalmente, em
um conteúdo queixoso e reivindicatório e se identificam, substancialmente, com o perfil dos
representantes, distanciando-se dos, supostamente, representados. Dessa maneira, conclui
que “a crescente expressividade da região como recurso da oratória dos parlamentares
nordestinos enseja a reflexão sobre a relação entre a sociedade e a política”. Considerando
que o espaço denota a organização da sociedade que o constrói, o território regional espelha
as forças dominantes nesse processo. Forças tais que emanam da elite político-econômica
da região, a qual tem se reproduzido e mantido no poder, cujas ações definem os traços
estruturais mais marcantes do edifício regional e, conseqüentemente, respondem pela
preservação da sua estrutura sócio-espacial.

Atividade 6

Analise a relação entre região e regionalismo.


1
Na região onde você reside é possível detectar um nível frágil, razoável
2 ou forte de regionalismo?

Aula 11 Organização do Espaço 223


Resumo
Nesta aula, aprendemos os conceitos de região derivados da Nova Geografia,
Geografia Crítica e abordagens humanística e cultural, perspectivas do
pensamento geográfico que se constituíram no pós-guerra. É um cenário de
múltiplas formulações que ampliaram e enriqueceram a noção de região e a
Ciência Geográfica. Considerando a importância da região como base territorial
para o regionalismo, este foi analisado na perspectiva da sua significação e de
suas formas de manifestação.

Autoavaliação
Partindo da premissa de que nenhum conceito é a-histórico, relacione:
1
a) os aspectos marcantes do contexto de emergência da Geografia Crítica e sua vinculação
à noção de região.

b) os elementos básicos do conceito de região, segundo a abordagem humanístico cultural.

Justifique a afirmativa: Definindo-se a região a partir da relação do homem com o


2 meio e com seus símbolos, esta se constitui na base territorial para a expressão
do regionalismo.

Referências
BEZZI, M. L. Região: uma (re)visão historiográfica, da gênese aos novos paradigmas. Santa
Maria, RS: UFSM, 2004.

CASTRO, I. E. de. Visibilidade da região e do regionalismo: a escala brasileira em questão.


In: LAVINAS, L.; CARLEIAL, L. M. da F. Integração, região e regionalismo. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994.

224 Aula 11 Organização do Espaço


CORRÊA, Roberto Lobato. Região e organização espacial. São Paulo: Ática, 1990.

FERREIRA, Conceição Coelho. A evolução do pensamento geográfico. Lisboa, Portugal:


Gradiva, 1986,

GOMES, Paulo César da Costa. A região e sua discussão. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES,
Paulo César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.). Geografia: conceitos e temas. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

HAESBAERT, Rogério. Região, diversidade territorial e globalização. Geographia, Rio de


Janeiro, ano 1, n. 1, 1999.

LAVILLE, C; DIONNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em


ciências humanas. Porto Alegre: ARTMED; Editora/UFMG, 1999.

LENCIONE, Sandra. Região e geografia. São Paulo: EDUSP, 1999.

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz. Seridó norte-rio-grandense: uma geografia da


resistência, 2005.

SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-


informacional. São Paulo: HUCITEC, 1994.

______. A natureza do espaço: técnica e tempo, espaço e razão. São Paulo: EDUSP, 2002.

YÁZIGI, Eduardo. A alma do lugar: turismo, planejamento e cotidiano. São Paulo:


Contexto, 2002.

Anotações

Aula 11 Organização do Espaço 225


Anotações

226 Aula 11 Organização do Espaço


Organização do espaço:
do universo conceitual
ao ensino da Geografia

Aula

12
Apresentação

E
sta aula aborda a relação entre a base conceitual da Geografia e o ensino, a partir de
questões que estão presentes na organização espacial. Trata-se de vincular as noções
abordadas em aulas passadas, como espaço, paisagem, lugar, território e região ao
campo experimental da prática docente. Dessa perspectiva, apresentam-se alguns temas/
conteúdos que são explorados à luz de procedimentos metodológicos, visando à reflexão
sobre a construção do conhecimento e regendo a relação teoria e prática do exercício
docente. Nesta aula, vamos inserir um conjunto de desafios para você pensar sobre o
espaço geográfico.

Objetivos
Entender a relação entre a base conceitual da Geografia
1 e o ensino.

Compreender os limites e possibilidades de leitura do


2 espaço geográfico, tendo como parâmetro o universo
abstrato dos conceitos e a realidade empírica.

Analisar relação teoria-prática a partir da proposição


3 de problemas.

Aula 12 Organização do Espaço 229


Geografia e ensino:
diálogos e desafios

E
stamos chegando ao final desta disciplina. Esta é a nossa última aula. Foi um caminho
longo e prazeroso em que conectamos idéias a partir de discussões, reflexões, análises
e sistematizações a respeito dos fundamentos teóricos e metodológicos que regem a
Ciência Geográfica. Para isso, definimos o seu objeto de estudo, os conceitos e categorias
que a estruturam.

Nessa trajetória, você estudou que o espaço geográfico emerge da relação homem/
natureza mediado pelo trabalho, em sua interface com o tempo e outras disciplinas,
compreendendo a perspectiva inter e transdisciplinar.

O estudo sobre os múltiplos contextos que interferem na produção do espaço foi


abordado a partir das noções de natureza, tempo, sociedade, economia, política, cultura e
globalização. Tais referências foram o suporte para a abordagem da paisagem, do lugar, da
região e do território, levando você a entender a dinâmica conceitual tramada na dialética do
particular e do geral, perpassando essa ciência.

Nesta aula, não abordaremos mais conceitos ou definições novas. A trajetória é outra:
articular a concepção conceitual ao ensino de Geografia. Essa pretensão é vista como uma
estratégia para aprofundar as noções tratadas, vinculando-as ao campo experimental que é a
prática docente. Dessa perspectiva, selecionamos alguns temas/conteúdos e vamos explorá-
los a luz dos conceitos já trabalhados nesta disciplina.

230 Aula 12 Organização do Espaço


Muitas vezes, pensamos que nas séries do ensino fundamental e médio ensinar é um
exercício destituído de fundamentação teórica, pois o principal instrumento metodológico
desse processo é o livro didático, e neste, os conteúdos já vêm organizados, selecionados e
distribuídos em uma seqüência lógica que o professor só precisa assumi-los como caminho.

Outro pensamento recorrente, que está associado ao primeiro, é que o ensino na


universidade está desvinculado do que é necessário para ser professor de Geografia,
pois há muita teoria e pouca prática. Os alunos reclamam da abordagem conceitual, não
reconhecendo nela uma dimensão importante no processo formativo. Acreditam que é
no fazer que a aprendizagem ocorre, esquecendo que ligar a ação à reflexão é o caminho
para uma compreensão significativa dos fenômenos e/ou problemas. Outro ponto de
estrangulamento é o esquecimento de que ele está sendo formado para ser professor, e que,
nesse processo, saber discernir nos conteúdos a carga conceitual, procedimental e atitudinal
é um exercício a ser feito no cotidiano da sala de aula. Assim, o professor em formação deve
adquirir conceitos fundamentais à construção de habilidades e competências necessárias à
prática profissional. Pois bem, o nosso desafio nesta aula é encontrar alguns pontos que
ligam o conhecimento científico à prática docente, levando-o a refletir sobre a recursividade
que alimenta a ação e a reflexão no ofício de ser professor.

Desafio 1
A relação espaço - tempo - natureza: como isso pode ser abordado no
ensino fundamental e médio?

Você pode iniciar a exploração desses conceitos a partir de espaços


concretos como a casa, a rua, o bairro, a cidade ou o campo. Observe
que uma das condições básicas da nossa existência está atrelada ao
uso do espaço geográfico. Esse uso é variável e heterogêneo, estando
vinculado ao desenvolvimento da ação humana, que por sua vez está
mediada pela capacidade de inventar e se apropriar de tecnologias e
informações, transformando a natureza primeira em uma segunda
natureza. A partir dessas condições, a ação humana reinventa-se no
tempo, marcando o espaço com feições distintas, porém articuladas.
Na organização espacial, o ritmo da natureza é marcado por tempos
distintos, o do homem e o da geomorfologia, criando um amálgama
em que quase não enxergamos mais a dinâmica do segundo, e só
vemos as formas criadas pelo homem.

Aula 12 Organização do Espaço 231


Assim, vamos tomar a cidade como exemplo a ser problematizado. Esta
revela, de forma contundente, o homem como último agente geomorfológico.
Por meio dela, também, podemos interpretar a noção de espaço, abordada
por Milton Santos (1996), como sendo um sistema indissociável, solidário e
também contraditório de sistemas de objetos e sistemas de ações, que resulta
em um quadro único na qual a história acontece.

Essas noções não estão presas aos livros, mas o que está neles baseia-se
em uma teorização que se apoiou em uma empiricização do real. Ou melhor, as
definições têm um pé na realidade, servem, portanto, para auxiliar na explicação
da realidade, na mesma medida que têm uma autonomia para, libertadas dos
fenômenos, poder se reciclar e se renovar, colocar outras questões que não
podem ser vista a partir de uma perspectiva objetiva e prática.

Assim, vamos tomar o conceito de espaço geográfico para interpretar a


organização da cidade.

232 Aula 12 Organização do Espaço


Atividade 1
Observe as figuras a seguir:

Fonte: Atlas... (1995, p. 21).

Agora responda:

a) O que há de semelhante e diferente entre as figuras?

b) Comparando as duas figuras, em sua opinião, o que foi responsável pelas alterações?

Aula 12 Organização do Espaço 233


A resposta para as questões está no nível da comparação para identificação de
elementos, agentes ou formas existentes na imagem. A resposta ainda não está no âmbito
da explicação ou análise. Nesse sentido, o professor deve partir do nível da identificação,
mas precisa adentrar por caminhos mais tortuosos que se desenham quando se pergunta
Por que isso ocorre?

Para construir uma explicação é necessário procurar saber o porquê das coisas;
procurar rastrear os processos que se fizeram presentes, os agentes envolvidos, os
interesses implicados, o padrão técnico utilizado... O conjunto de informações coletadas
precisam ser conectadas em uma rede de nós que interligam aspectos distintos da realidade,
possibilitando a compreensão analítica do espaço como uma das dimensões que estrutura
a sociedade. Tomada sob essa perspectiva, a análise espacial é uma construção conceitual
que precisa ser assumida pelo professor para que o ensino de Geografia seja significativo e
pertinente. Sem abordagem conceitual, mesmo você conseguindo levantar todos os dados a
respeito do fenômeno, não conseguirá explicá-lo, pois lhe faltou a compreensão mais geral
de como o espaço se organiza. Assim, para saber analisar por que uma imagem é diferente
ou semelhante a outra, você tem que fazer uso dos conceitos de tempo, natureza e espaço.

A partir das imagens, o que seria o sistema de objetos e o sistema de ações que Milton
Santos trata? Como o tempo pode ser visto a partir do ritmo da natureza e do homem? Como
se apresenta o meio técnico-científico-informacional no contexto das duas imagens? Essas
são algumas questões que podem ser feitas e que auxiliam no encontro do conceito com a
realidade ou da realidade com o conceito.

Na organização do espaço, é necessário perceber e explicar a relação homem/natureza


como uma construção dialógica e dialética. Leia o texto de Jucicléa Medeiros de Azevedo,
professora graduada em Geografia, a respeito da natureza na cidade.

Cidade e beija-flor: ¿artificial e/ou natural?


Morar na cidade significa dividir espaço, multiplicar formas e funções, somar
diferenças e diminuir igualdades. Em meio às quatros operações, os sujeitos
habitam esse espaço e tecem suas relações econômicas, sociais, políticas e
culturais, impulsionando, assim, uma dinâmica que faz movimentar o lugar.

Viver no espaço citadino significa se distanciar do natural e conviver com o


artificial, ou seja, com uma segunda natureza, aquela transformada pelo
homem. Afinal, o que seria um espaço natural? O solo, as rochas, o rio, as
plantas, os animais, o ar... Mas, a cidade não contém todos esses elementos?
Então, o espaço urbano seria um espaço natural ou artificial?

234 Aula 12 Organização do Espaço


Habitar é muito mais simples e natural do que entender a complexidade que
envolve a urbe. Pensá-la a fim de compreendê-la é um exercício e artificial,
de forma que requer métodos e conceitos para ultrapassar a mediocridade
da realidade posta como verdadeira. Já os acontecimentos provocados
pelo período técnico-científico-informacional são velozes e cada vez mais
suas relações e dos lugares são intensificadas devido ao grande fluxo de
informações, mercadorias, pessoas e capital circulando em uma rede. Segundo
Milton Santos, quanto mais intensa for essas relações, mais os lugares tendem
a se artificializar.

Diante deste contexto, as relações cotidianas também passam a ser vividas


de acordo com essa dinâmica e os sujeitos passam a enredar sua história
aportados nessa dinâmica. Conseqüência: o artificial transforma-se em natural
e esses dois elementos caminham entrelaçados em um só meio. O ninho de um
simples beija-flor construído sobre a rede elétrica evidencia isso.

Mas, o que estaria fazendo um pássaro em um local artificializado pelo homem?


Não seria ele, um elemento do natural?

Observar o movimento desse pássaro, cuidando do seu ninho e voando sob os


fios, provoca questionamentos em relação a essa dicotomia, natural e artificial.
O beija-flor, mesmo do seu jeito, também tece relações, alimentando-se,
procriando, comunicando-se com outros e construindo um lugar para proteger
seus descendentes. Essas ações são equiparadas às realizações dos seres
humanos para sobreviver e transformar o espaço habitado.

O ninho do beija-flor é uma construção considerada natural e uma casa


também não seria? Diante de tal problemática, surge outra: estaria o beija-flor
artificializando o natural ou naturalizando o artificial?

“Não se admire se um dia


Um beija flor invadir
A porta da sua casa
Te der um beijo e partir...”
(Vital Farias)

Aula 12 Organização do Espaço 235


Dialogando com texto
De maneira livre, a autora brinca com os conceitos de natureza natural e artificial. Viaja
no pouso do pássaro procuVrando encontrar a tênue linha que separa a natureza do homem.
Parece não encontrar, pois no ambiente urbano as diferenças entre o natural e o artificial
se desfazem colocando a cena como uma totalidade para ser analisada. Nesta você deve
encontrar a imbricação de tempos e ações produzindo a natureza urbana. Podemos imaginar
que a autora foi a campo munida das noções de natureza natural e de natureza artificial. No
seu trajeto, encontrou diversas cenas, das quais destacou o pouso do beija-flor. A partir daí,
ela interpretou, problematizou os conceitos, colocando, a partir de seu texto, a necessidade
de discutir o que está na fronteira do conceito e da realidade.

A partir do texto, podemos pensar sobre o ensino. Refletir sobre como ensinamos
os conceitos para os nossos alunos: estamos levando-os a pensar a realidade a partir dos
conceitos, ressignificando a realidade e o conceito? Ou tomamos a realidade como distinta
do conceito, de maneira que o aluno descreve a realidade e repete a definição sem estabelecer
conexões entre ambos? Ensinar articulando conceito e realidade, eis um desafio no processo
de formação de professores.

236 Aula 12 Organização do Espaço


Desafio 2
Agora partimos para um outro desafio. Vamos estudar um
fenômeno que está presente na realidade de parte do Nordeste
brasileiro. Estamos falando da desertificação.

Você já ouviu falar desse fenômeno? O que você sabe a respeito dele? O que
é? Qual é a sua área de abrangência? Ele ocorre em outras partes do mundo?
Será que ele pode ser analisado de acordo com o conceito de paisagem? Dê
sua opinião a esse respeito.

A Desertificação ocorre revelando contextos socioeconômicos e ambientais


que tecem as relações entre os homens e entre estes e a natureza. Tais relações
têm sido presididas por uma racionalidade economicista que se manifesta na
exploração social (dos homens entre si) e ambiental (homem x meio ambiente).
Em conseqüência, expande-se a degradação social-ambiental que atinge a vida
das pessoas e altera a dinâmica do meio físico, que pode ser visto no desgaste
dos solos, dos recursos hídricos, da vegetação, da biodiversidade, da qualidade
de vida das pessoas. Manifesta-se, sobretudo, nas regiões áridas e semi-áridas
da Terra. Sobrepondo-se os indicadores sociais a esses recortes, constata-se
que neles há uma expressiva concentração de pobreza e miséria.
Nos últimos decênios, a expansão e os impactos da desertificação
despertaram a comunidade científica para a necessidade de se aprofundar os
estudos sobre o tema e de formular políticas que tenham como objetivo atuar
sobre os agentes desencadeadores e/ou minimizar seus efeitos.
A Desertificação pode ser definida como a degradação do solo em
áreas áridas, semi-áridas e sub-úmidas secas, resultante de diversos fatores,
inclusive de variações climáticas e de atividades humanas, conforme definição
da Agenda 21 (1997).

Aula 12 Organização do Espaço 237


Tecida no âmbito da combinação de fatores naturais e ações antrópicas,
a desertificação pode ser vista, explicada, analisada e ensinada a partir do
conceito de paisagem.
Considerando a definição de desertificação, anteriormente exposta, e a
noção de paisagem, abordada na aula 5 – Paisagem como categoria da análise
geográfica –, este fenômeno pode constituir uma emergência didática que
mobiliza o professor e o aluno para compreender e intervir na realidade estudada.
Assim, para compreender e discutir sobre esse fenômeno, é necessário
aproximá-lo de um conceito. No nosso caso, selecionamos paisagem. Mas,
vimos que a paisagem assume feições diferentes a partir da maneira como
o sujeito a percebe. Assim, é necessário problematizar a idéia vinculando-a à
particularidade do tema estudado. Na discussão teórica, é fundamental associá-
la a procedimentos mais práticos de modo que possa ser estabelecida a relação
teoria e realidade.

Assim, é necessário ampliar os passos da compreensão e:

 pesquisar a área de ocorrência da desertificação no Brasil;

 de acordo com a área identificada, elaborar uma caracterização física em


termos de clima, solo e vegetação;

 estabelecer um roteiro com questões relativas às condições físicas e


humanas presentes na desertificação;

 procurar responder as questões a partir de pesquisa bibliográfica e


empírica, se for possível;

 construir um texto analítico sobre a desertificação como um fenômeno


relacionado à paisagem.

O cumprimento desses passos exige de você colocar em prática a sua


aprendizagem sobre um conceito.

Agora, você pode refletir em que medida ocorre a correspondência entre


a realidade empírica e a realidade conceitual. Deverá perceber os limites e
desafios que se apresentam entre a Geografia que se aprende e aquela que
deve ser ensinada.

238 Aula 12 Organização do Espaço


Desafio 3
Apresentamos duas formas em que utilizamos o conceito como
suporte para explicar a realidade.

Agora, vamos proceder de forma diferente. Neste desafio, você é o regente do


processo. Daremos duas indicações para que você possa estruturar um modelo
de análise o qual articule conceito e realidade.

Indicação 1 – Imagens

(a) Rio de Janeiro (b) Planta de uma casa

(c) Acampamento do MST (d) Bandeira do Brasil

(e) Sua casa (f) Música

SUA CASA
SUA CASA
SUA CASA
SUA CASA
SUA CASA
SUA CASA
Aula 12 Organização do Espaço 239
(g) Nova ordem multipolar (h) Música

(i) Vale do Silício (j) Planeta Terra

(l) Rio de Janeiro

Fonte: (f) Autoria própria


(a) <http://www.masterfile.com>. (g) Sene e Moreira (2007).
(b) <http://egeo.ineti.pt/divulgacao/ciencia_viva/geologia_verao/projectos/ (h) <http://www.pitoresco.com.br/espelho/2005_01/vinicius/vilaro.htm>.
cartografia>. (i) Sene e Moreira (2007).
(c) <http://galizacig.org/imxact/2005/01/mst_minas_gerais_acampamento>. (j) e (l) <http://www.masterfile.com>.
(d) <http://www.masterfile.com>.
(e) Autoria própria

Indicação 2 - Questões a serem levadas em consideração na construção de um modelo


analítico

Você tem como ponto de partida um conjunto de imagens. Observe-as e faça um


agrupamento que possa ser explorado tematicamente; identifique o tema que motivou
a aproximação das imagens; a partir do tema e das imagens, utilize um dos conceitos –
lugar, território ou região – como ferramenta de análise. Para construir a análise, observe a
estrutura dos desafios anteriores e proceda construindo um modelo próprio.

240 Aula 12 Organização do Espaço


Atividade 2

Descreva o modelo estruturado.


1
Aplique o modelo, fazendo uma análise a respeito do tema escolhido
2 por você.

Reflita mais um pouco: será que o mesmo agrupamento de imagens/


3 textos feito por você pode ser interpretado a partir de outro conceito?
Comente.

Aula 12 Organização do Espaço 241


Com essa atividade, finalizamos as nossas aulas. Esperamos que você possa utilizar o
que aprendeu na sua vivência cotidiana de ser um aluno-professor, engajado e comprometido
com a qualidade do ensino de Geografia, o qual passa, necessariamente, pela transposição
do universo conceitual à prática de ensino dessa ciência.

Resumo
Nesta aula, você fez um percurso pela base conceitual da Geografia e o ensino, a
partir de questões presentes na organização espacial. Procurou-se estabelecer
elos entre as noções abordadas em aulas passadas (espaço, paisagem,
lugar, território e região) e o campo experimental da prática docente. Dessa
perspectiva, você foi convidado a participar de desafios que possibilitaram
um conjunto de reflexões, sistematizações, indicações e caminhos que
fizeram você trilhar as veias do processo ensino-aprendizagem, pautado nas
estratégias de compreensão, análise e explicação de fenômenos no âmbito do
ensino de Geografia. Priorizou-se uma perspectiva metodológica e prática de
maneira a estimular a reflexão-ação-reflexão-ação como um contínuo que rege
a construção do conhecimento e sua transposição para o cenário regido pela
dialógica que alimenta a teoria e a prática docentes.

Autoavaliação
De acordo com o que foi trabalhado nesta aula, como você vê a relação entre o
1 mundo dos conceitos e a prática docente? Descreva a sua percepção.

O ensino de Geografia se pauta por explicar os fenômenos espaciais que ocorrem


2 e se distribuem na superfície da Terra. Este é o ponto a partir do qual o professor
deve atuar em sala aula. A partir dele, descortina-se a realidade empírica a ser
explicada. Como você vê, a relação entre realidade empírica e realidade conceitual
no âmbito do processo de ensino-aprendizagem?

Reflita sobre limites e possibilidades existentes entre a o conceito, a realidade e a


3 prática docente. Descreva as suas reflexões.

242 Aula 12 Organização do Espaço


Referências
AGENDA 21. Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento.
Brasília: Senado Federal, 1997.

ATLAS escolar Santillana. Madrid: Santillana, 1995.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
HUCITEC, 1996.

SENE, Eustáquio; MOREIRA, João Carlos. Geografia para o ensino médio. São Paulo:
Scipione, 2007.

Anotações

Aula 12 Organização do Espaço 243


Anotações

244 Aula 12 Organização do Espaço


Esta edição foi produzida em mês de 2012 no Rio Grande do Norte, pela Secretaria de
Educação a Distância da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (SEDIS/UFRN).
Utilizando-se Helvetica Lt Std Condensed para corpo do texto e Helvetica Lt Std Condensed
Black títulos e subtítulos sobre papel offset 90 g/m2.

Impresso na nome da gráfica

Foram impressos 1.000 exemplares desta edição.

SEDIS Secretaria de Educação a Distância – UFRN | Campus Universitário


Praça Cívica | Natal/RN | CEP 59.078-970 | sedis@sedis.ufrn.br | www.sedis.ufrn.br

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