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Recensõ es

ALVES, Herculano
A Bíblia em Portugal: Volume IV: A Bíblia de João Ferreira Annes d’Almeida e catálogo das
suas obras bíblicas
Lisboa: Edições Esgotadas, 2019. 880 p. ISBN: 978-989-891-187-2
LUÍS MENEZES FERNANDES
doi: https://doi.org/10.34632/lusitaniasacra.2021.11590 Centro de Literatura Portuguesa, Universidade de Coimbra
https://orcid.org/0000-0001-8764-4818

Todos os atuais estudiosos da história da Bíblia Almeida hão de concordar que o tra‑
balho realizado por Herculano Alves em torno da matéria assume posição de maior destaque.
Aliás, será mesmo impossível, para os que pretendam se aprofundar no assunto, fazê‑lo sem
que antes se detenham, com máxima atenção, no contato com a obra do referido autor. Ainda
assim, como ocorre com todo esforço intelectual, o de Herculano Alves também traz, natu‑
ralmente, não só méritos, mas também imperfeições – as quais, embora não desmereçam o
primor da sua iniciativa, fazem com que sejamos levados a enquadrá‑la, não como ponto final
para as inquietações que o tema ainda suscita, mas como impulso a novas abordagens, sejam
baseadas em outras perspetivas, sejam em novos materiais bibliográficos e documentais que
eventualmente venham à luz.
Antes de se analisar o conteúdo do livro propriamente dito, é importante salientar
que se trata originalmente de uma Tese de Doutoramento em Teologia Bíblica, defendida em
2005 na Universidade Pontifícia de Salamanca. Contudo, tendo sido inicialmente publicada
em formato de obra independente, em duas edições (2006 e 2014), o livro passou a integrar,
em 2019, a coleção A Bíblia em Portugal, composta de seis volumes, todos de autoria do mesmo
Herculano Alves. A partir de então, o estudo específico sobre a tradução de Almeida passou a
se apresentar como componente de uma abordagem histórica bem mais ampla, que vai desde
as origens do texto bíblico, até suas mais recentes traduções. Mesmo assim, não se deve ignorar
que, embora agora enumerado como o quarto volume da série, é a investigação pontual sobre
Almeida que se encontra efetivamente na origem de toda a coleção.
A nova edição do livro traz um prefácio de João Paulo Oliveira e Costa, professor da
Universidade Nova de Lisboa, o qual destaca o valor do estudo realizado, bem como busca
contextualizar a sua temática num quadro histórico de maior duração. No referido prefácio,
o livro é classificado como fruto de “investigação extensa e sistemática”, sendo “assaz elucida‑
tivo da relevância” da tradução bíblica estudada. E de facto, o trabalho se caracteriza como tal:
é extenso, é sistemático, é elucidativo do valor histórico do objeto que aborda. Aliás, o livro
pode mesmo ser considerado um “divisor de águas” no estudo do tema, uma vez que o autor
assume pioneiramente a responsabilidade de reunir e descrever todas as principais referências
anteriores ao assunto, seja nas fontes primárias, seja na bibliografia, e mesmo em catálogos e
enciclopédias. Nesse sentido, é um trabalho acurado, e de grande utilidade para os interessa‑
dos, pois rastreia com competência minúcias sobre o ponto em questão, e torna acessível uma
infinidade de dados antes dispersos.

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E é este o grande mérito de Herculano Alves com esta obra: reunir num só lugar o
que antes se encontrava espalhado – o que justifica, em parte, a sua extensão. Mas somente
os leitores mais ingênuos crerão que a dimensão de uma obra justifica o seu conteúdo. Aliás, a
extensão do livro acaba por representar tanto o seu grande valor, quanto a sua fragilidade. No
primeiro caso, o livro representa um esforço extraordinário de recolha e descrição das fontes
e bibliografia pertinentes. Nisto, a obra é irrepreensível. Contudo, o tamanho do livro resulta
também de um acúmulo exagerado de divagações, às vezes no corpo do texto, às vezes em lon‑
gas notas de rodapé. Esse aspeto poderá gerar no leitor a sensação de que o livro não lhe apre‑
senta diretamente o resultado de uma investigação, mas como que um “diário de pesquisa”,
repleto de notas pessoais – algumas até confessionais, dada a filiação religiosa do autor. Em
suma, ao mesmo tempo em que se mostra hábil na compilação dos dados, o autor falha por
vezes em sua análise e, por consequência, em oferecer uma síntese.
Isso já se mostra no primeiro capítulo, intitulado Recensão Crítica das Fontes da Bíblia de
João Ferreira d’Almeida, em que o autor apresenta todo o material bibliográfico e documental
por ele reunido. A forma como se organiza o conteúdo pode confundir o leitor não familia‑
rizado com o assunto. Isso porque, em vez de estabelecer uma distinção clara entre o que é
fonte primária, e o que é bibliografia, Herculano Alves opta por classificar os materiais como
“fontes estrangeiras” e “fontes portuguesas”, independentemente de seu efetivo valor docu‑
mental. Além disso, apresenta‑os na ordem cronológica em que foram publicados, e não na
ordem em que foram efetivamente escritos, de modo que não distingue com a clareza necessá‑
ria a natureza dos materiais que descreve. Assim, por exemplo, insere numa mesma categoria
fontes primárias, como os escritos de Filipe Baldaeus, François Valentijn e Pieter van Dam,
contemporâneos de Almeida, com estudos especializados muito posteriores, como os de T.
de Bruijn, Dubbeldam e Swellengrebel. Assim, com critérios de classificação não muito per‑
tinentes, o autor eventualmente dá destaque, ao menos neste capítulo, a materiais periféricos,
que trazem parcas referências ao assunto, ao mesmo tempo em que mal descreve a principal
fonte documental para se conhecer detalhes a respeito, e que será, paradoxalmente, utilizada a
cada instante nos capítulos seguintes: as atas do conselho eclesiástico de Batávia, editadas por
J. Mooij no século XX.
Essa capacidade de reunir e descrever um conjunto expressivo de materiais, associada
a uma certa dificuldade em interpretá‑los, e sobretudo em encadeá‑los hierarquicamente, dei‑
xará marcas em toda a obra. Assim, no segundo capítulo, que traz o título de Notas para a
Biografia de João Ferreira d’Almeida, Herculano Alves busca extrair, de todo o material descrito,
dados biográficos relativos ao tradutor português. Mas ao perseguir esse alvo, o autor mos‑
tra‑se, ao menos a partir de dado momento, bastante servil às atas do conselho eclesiástico,
de modo que se mesclam, no encadeamento dos fatos, acontecimentos da maior relevância
com pequenos detalhes do dia a dia eclesiástico. Além disso, a autor extrai informações dos
materiais recolhidos sem critérios muito bem definidos, e sem estabelecer uma clara hierar‑
quia entre fontes primárias e bibliografia.
Eis uma das razões por que ele às vezes desconfia do relato do próprio Almeida sobre
sua trajetória individual, ao mesmo tempo em que fomenta conjeturas sem suporte nas fon‑
tes. Por exemplo: enquanto o próprio Almeida assegura que deixou o catolicismo em 1642,
estando já no Oriente, Herculano Alves cogita a hipótese de que terá já vindo “convertido” da

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Holanda (p. 90). Além disso, o próprio tradutor afirma que começou a verter trechos do Novo
Testamento desde o mesmo instante de sua “conversão”, isto é, em 1642; mas o autor indica
sempre o início desse trabalho em 1644 – nesse caso, não por desconfiar do tradutor, mas
por mera dificuldade interpretativa, indicativa talvez de um certo descuido para com as fontes
mais valiosas. Aparentemente, daí é que brotam também as visões desacertadas do autor sobre
a autoria do tratado Diferença da Cristandade – que Almeida afirma expressamente ter tradu‑
zido de um original castelhano, mas que o autor insiste em duvidar (p. 165) –, e sobre o tratado
Diálogo Rústico e Pastoril, que Herculano Alves atribui ao jesuíta Jean‑Baptiste Maldonado, mas
que uma leitura atenta revela ser de autoria do próprio Almeida (p. 142).
No terceiro capítulo do livro, o autor pretende traçar o Contexto Histórico, Cultural e
Religioso da Bíblia de João Ferreira d’Almeida. Para tanto, apresenta descrições detalhadas sobre
as regiões orientais que dizem respeito, direta ou indiretamente, à história de Almeida, com
base em farta historiografia, concernente à expansão marítima portuguesa e holandesa. Em
seguida, busca elucidar, também com base em variada bibliografia, a relação entre a tradução
de Almeida e o contexto da Contra Reforma, em que a Igreja Católica pretendia limitar a cir‑
culação de versões bíblicas por ela não autorizadas. Aqui também, mais uma vez, a profusão
de dados, associada a uma multiplicidade apontamentos soltos, em extensas notas de rodapé,
revelam aquele aspeto do livro, já salientado, de algo como que um “diário de pesquisa”, de tal
modo que o capítulo poderá servir muito mais como instrumento para consulta de questões
pontuais, do que propriamente como síntese explicativa sobre a Bíblia Almeida, e sobre a sua
relação de sentido com o contexto que lhe deu origem.
O quarto capítulo, intitulado João Ferreira d’Almeida, tradutor da Bíblia, pode ser consi‑
derado a sua parte mais essencial. Aqui, o autor trata primeiro do desenvolvimento manuscrito
da tradução, seguindo os materiais que elencou no primeiro capítulo, mas sobretudo as atas
do conselho eclesiástico. Em seguida, descreve acuradamente cada uma das suas primeiras
edições, busca esclarecer pontos obscuros relativos a cada uma delas, problematiza o papel dos
seus respectivos revisores, e ainda traça um panorama de suas versões editadas até hoje. Nesse
setor, mais uma vez, o mérito da obra está na descrição minuciosa que faz, especialmente das
primeiras edições da tradução bíblica cuja história pretende desvendar. Mas nisso, mais uma
vez, poderá ser que o leitor sinta falta de uma síntese, que efetivamente o conduza a um enten‑
dimento mais sólido do assunto, e não a um emaranhado de descrições cuidadosas, mas care‑
centes de um fio condutor. Pois uma coisa, por exemplo, é saber descrever fisicamente a editio
princeps do Novo Testamento português, que se conserva em Lisboa: outra, bem diferente, é
mensurar o seu valor literário intrínseco.
Finalmente, dando prosseguimento à abordagem, Herculano Alves dedica um capí‑
tulo autônomo para esclarecer o dilema das Fontes do Texto Português da Bíblia de Almeida, em
que traz resultados promissores, embora um tanto incertos, permeados de questionamentos
postos pelo autor. E aqui também transparece, mais uma vez, uma certa dificuldade em dife‑
renciar meras hipóteses de fatos históricos, como quando assegura, sem qualquer base docu‑
mental, que o jovem Almeida começou a aprender vários idiomas na casa de seu “tio clérigo”
(p. 453). Assim, ao lado de conclusões, Herculano Alves traz uma série de especulações, basea‑
das indiscriminadamente em fontes e em bibliografia, sem um claro senso de hierarquia entre
os materiais consultados. Não que isso dê sempre resultados frágeis: há também respostas bem

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fundamentadas. O problema é que, no meio de tudo, brotam certas premissas, especulações e
inferências que, dada a sua inconsistência, “poluem” o que ali existe de valor. Isso ocorre, por
exemplo, quando o autor afirma categoricamente que Almeida seguia em sua tradução o mais
estrito método de equivalência formal – o que uma análise atenta das suas primeiras edições
desmente, ou ao menos relativiza. Mas Herculano Alves deduz daí que Almeida pecou contra
o leitor e contra o texto sagrado (p. 473), o que certamente é uma depreciação inexata e, por‑
tanto, também injusta.
Na Conclusão Geral, o autor apresenta os seus principais resultados em tópicos numera‑
dos. Oferece então uma síntese do livro, mas que não deixa de tornar evidentes as suas incon‑
sistências, e que poderá deixar o leitor com a sensação de que, mesmo depois de tantas páginas,
o assunto permanece caótico. A título de exemplo – há muitos outros, mas o espaço de uma
recensão não permite detalhamentos –, Herculano Alves garante que Almeida terá traduzido a
Bíblia “para o Oriente, com linguagem para aquela época” (p. 530). Contudo, a documentação
primária oferece outra perspetiva, uma vez que o próprio Almeida anuncia que destinaria a sua
tradução “a todos os senhores católicos romanos da nação portuguesa, com todos os demais
que da língua portuguesa usam”. Mas por alguma razão, o autor subestima as fontes primá‑
rias, e insufla ideias que lhes são incongruentes; e isso ainda sem deixar de crer, como alega
na conclusão, que encontrou “a verdade”. Diferentemente disso, julgamos que essa obra traz
uma valiosa contribuição para o estudo do tema – com destaque para o minucioso Catálogo
das Obras Bíblicas que o integra, bem como as valiosíssimas Fontes Holandesas traduzidas em
português –, mas de modo algum “a verdade”. Antes, como o próprio autor também o diz,
que esse seu livro seja um incentivo para que se prossigam as investigações, e se façam novas
descobertas.

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