Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
* O Autor proferiu seus votos religiosos na Província Brasileira da Congregação da Missão (Vicentinos ou
Lazaristas), em Belo Horizonte, em novembro de 2008. Neste ano cursa o 4º ano de teologia no ISTA (Instituto
São Tomás de Aquino), também em Belo Horizonte.
Vocação universal à santidade 619
1. No dia 25 de janeiro de 1959, festa da Conversão de São Paulo, o Papa João XXIII, com esperança e
otimismo, anunciava oficialmente ao Colégio Cardinalício seu desejo de convocar o Concílio Ecumênico Va-
ticano II. Três anos depois, na abertura do Concílio, declarou o Pontífice: “Foi uma surpresa: uma irradiação de
luz sobrenatural; uma grande suavidade nos olhos e no coração. Mas, ao mesmo tempo, um fervor, um grande
fervor que se despertou, de repente, em todo o mundo, na expectativa da celebração do Concílio” (Discurso
Gaudet Mater Ecclesia, pronunciado no dia 11 de outubro de 1962, na solene abertura do Concílio Vaticano II,
em: Antônio José ALMEIDA, Lumen Gentium: a transição necessária, Paulus, São Paulo 2005, p. 229). Em
2009, comemoramos, portanto, o cinquentário da memorável iniciativa de João XXIII, “por singular dom da
Divina Providência” (cf. Marco RONCALLI, Aquele dia na Basílica de São Paulo, em: L’Osservatore Roma-
no, 31.01.2009, p. 13).
2. Por recepção, entendemos o processo de assimilação criativa das intuições mais profundas do Concílio
Vaticano II nos diferentes contextos sócio-culturais em que a Igreja se situa historicamente. A respeito do assun-
to, ver Giuseppe ALBERIGO, La condición cristiana después del Vaticano II, em: VVAA, La recepción del Va-
ticano II, Cristiandad, Madrid 1987, p. 17-45.
3. O chamado à santidade pode ser definido como “convocação que a Trindade faz a todo batizado ou bati-
zada para assumir sua dignidade de pessoa, de cristão ou cristã, de membro da Igreja, encarnando em sua vida a
Palavra, celebrando os mistérios de Cristo e dando testemunho de sua fé” (José Lisboa Moreira de OLIVEIRA,
Nossa resposta ao amor. Teologia das Vocações Específicas, Loyola/IPV, São Paulo 2001, p. 14).
4. Federico Ruiz SALVADOR, Compêndio de Teologia Espiritual, trad. de Antivan G. Mendes, Loyola,
São Paulo 1996, p. 241.
620 V.A.R. Teixeira
5. Para esta reflexão sobre a santidade na Bíblia, seguimos Joseph AUNEAU, Santidade, em: Jean-Yves
LACOSTE, Dicionário Crítico de Teologia, trad. de Paulo Meneses et al., Loyola/Paulinas, São Paulo 2004, p.
1608-1610.
6. Sobre a relação entre a iniciativa do amor divino e a liberdade humana, damos a palavra ao Cardeal Mar-
tini em sua entrevista aos jovens, há pouco publicada, como síntese do seu legado espiritual: “Se estivéssemos di-
ante da opção: queremos seres humanos que não podem fazer nada de mal e que não são livres – robôs ou escra-
vos – ou queremos homens livres que amam, que podem dizer sim ou não, então minha resposta seria: agradeço a
Deus pela liberdade, com todos os riscos que lhe são inerentes. O amor brota do mistério de que Deus nos toma a
sério como interlocutores. Temos que nos esforçar muito para dar uma resposta ao amor de Deus” (Carlo Maria
MARTINI/Georg SPORSCHILL, Diálogos noturnos em Jerusalém. Sobre o risco da fé, trad. de Martinho Lenz,
Paulus, São Paulo 2008, p. 18).
7. Cf. também: Ex 32,29; Lv 21,8; Jz 17,5; 2Sm 8,11; Jr 1,5; Lc 2,23; 1Pd 2,9-10.
8. Esta parece ser a perspectiva adotada pelo pastor e teólogo luterano, mártir no Nazismo, Dietrich Bonho-
effer (1906-1945), em sua luminosa reflexão sobre o tema da santificação no horizonte da Teologia da Graça:
“Todas as nossas boas obras, porém, são tão somente as boas obras do próprio Deus, para as quais nos preparou
de antemão. Portanto, boas obras são ordenadas por causa da salvação e boas obras são sempre apenas obras que
o próprio Deus realiza em nós. São dádiva sua” (Discipulado, trad. de Ilson Kayser, Sinodal, São Leopoldo 2004,
p. 196).
Vocação universal à santidade 621
12. Na teologia rabínica, a santidade de Deus está intimamente relacionada à justiça e à misericórdia e o
chamado à santidade dirigido aos filhos de Israel (cf. Lv 19,2) implica necessariamente a conformidade com o
modo de ser e de atuar daquele que é “o Santo”, através da permanente atenção aos seus ensinamentos que devem
se concretizar no cotidiano da vida. Cf. Jacil Rodrigues BRITO, A relação mestre-discípulo nas tradições judaica
e cristã, em: RIBLA 40 (2001) 153-158.
13. Cf. OLIVEIRA, Nossa resposta ao amor, p. 38.
14. SALVADOR, Compêndio de Teologia Espiritual, p. 249.
15. GOFFI/GENTILI, Vocación a la santidad, p. 1154.
Vocação universal à santidade 623
19. Para uma adequada compreensão crítica do fenômeno religioso na pós-modernidade e no atual cenário
geopolítico mundial, ver: João Batista LIBANIO, A religião no início do milênio, Loyola, São Paulo 2002 (com
subtanciosas referências bibliográficas). Cf. também Manoel GODOY, Para uma pastoral do diálogo: nova cul-
tura e nova religião, em: Vida Pastoral 48/255 (2007) 11-21.
20. Na provocadora análise de Lipovetsky, a pós-modernidade se caracteriza por sua ênfase na dimensão
psicológica do indivíduo como valor absoluto, com suas carências e desejos, capaz de gerir comportamentos e re-
modelar os diferentes setores da vida social, incluindo o religioso, de acordo com suas conveniências e necessi-
dades imediatas. Neste “processo de personalização”, a sociedade já não se move sob a égide de um ou mais prin-
cípios unificadores, mas sim, sob uma vastíssima pluralidade de critérios subjetivos e estratégias hedonistas. O
que importa, portanto, é a irrestrita afirmação da identidade pessoal numa sociedade que estimula o indivíduo a
ser ele mesmo, ainda que, para isso, tenha que prescindir de valores morais e parâmetros éticos, desprezando o
passado para viver sofregamente o momento presente e reclamando para si ou para seu circunscrito grupo de
identificação direitos e reconhecimento social (cf. Gilles LIPOVETSKY, L’ère du vide. Essais sur l’indivi-
dualisme contemporain, Gallimard, Paris 1983, p. 9-21).
Vocação universal à santidade 625
24. Cf. JOÃO XXIII. Discurso Gaudet Mater Ecclesia, de 11 de outubro de 1962, na solene abertura do
Concílio Vaticano II, p. 227.
25. Cf. SALVADOR, Compêndio de Teologia Espiritual, p. 242.
26. Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, Paulus, São
Paulo 1997, n. 39-42. A partir daqui, citaremos apenas LG. As grandes linhas que teceram o capítulo V da Lumen
Gentium estão resumidas em: Michel LABOURDETTE, A vocação universal à santidade, em: Guilherme BA-
RAÚNA (org.), A Igreja do Vaticano II, Vozes, Petrópolis 1965, p. 1057-1068.
27. José Lisboa Moreira de OLIVEIRA, Qual o sentido da vocação e da missão?, Paulus, São Paulo 2006,
p. 29.
Vocação universal à santidade 627
rosa da Trindade (cf. LG 39). “Ela não é somente Igreja santa, como um
aspecto entre muitos outros, mas também Igreja da santidade como ca-
racterística decisiva”.28 Não se trata, porém, de uma santidade previa-
mente realizada, mas de uma construção permanente, para a qual con-
correm todas as suas dimensões constitutivas.29 Na comunidade eclesial,
todos são chamados a responder livremente a essa vocação universal re-
cebida de forma totalmente gratuita. É potencialmente santo todo aquele
a quem Deus ama, toca e conduz. Fazer frutificar o dom é a tarefa que se
impõe como desdobramento da vida na Graça.
Abrindo caminho para a superação da ambígua concepção da santida-
de como monopólio e privilégio dos chamados “estados de perfeição”,
amplamente difundida a partir do Concílio de Trento (1545-1563),30 o Va-
ticano II afirma enfaticamente que “todos na Igreja são chamados à san-
tidade” (LG 39), cada um a partir de seu próprio estado de vida, onde se
manifestam os “frutos de graça que o Espírito Santo produz nos fiéis”
(LG 39), sem privilegiar uma categoria em detrimento da outra.31 A mes-
ma vocação à santidade pode ser vivida de maneira bem diferente por
cada um que se dispõe a perscrutar os apelos de Deus em sua própria
consciência, nas pessoas que com ele interagem e nos acontecimentos
da vida. Como ninguém pode se apossar da santidade em sua totalidade,
cada um a alcança num dos seus múltiplos aspectos, conforme a missão
que lhe foi confiada, mantendo, porém, a unidade no essencial, ou seja,
em sua origem e finalidade.32 Isso explica a variedade de vocações na
comunidade eclesial.
O Espírito de Jesus derrama, com total prodigalidade e generosidade, as suas
graças sobre todos aqueles e aquelas que, pelo Batismo, foram enxertados no
mistério de Cristo e passaram a encontrar nele o mais profundo e verdadeiro
38. Com efeito, antes do Concílio Vaticano II, “o conceito corrente de santidade estava muito distante da
realidade do fiel comum. Era considerada um raríssimo privilégio de alguns heróis” (Henrique Cristiano José
MATOS, Introdução à História da Igreja, v. 2, 5ª ed., O Lutador, Belo Horizonte 1997, p. 258-259).
39. Sobre os meios apresentados pela LG como necessários à busca da santidade, ver Ignácio
IPARRAGUIRRE, Natureza da santidade cristã, p. 1077-1081.
40. “A santidade como resposta do homem é a conformidade à imagem de Cristo Filho, assimilando, por
meio dele, a santidade e os desígnios eternos de Deus (Rm 8,29-30)” (SALVADOR, Compêndio de Teologia
Espiritual, p. 246).
630 V.A.R. Teixeira
ria, onde a vida se encontra ameaçada pelo abandono, pela pobreza, pela
violência e pela injustiça. Assim, correspondendo ao dom da santidade,
todo o Povo de Deus, na multiplicidade articulada de vocações e ministé-
rios, busca incessantemente a “plenitude da vida cristã” e a “perfeição na
caridade”, para instaurar no mundo um “modo de vida mais humano”,
“enveredando sem hesitação pelo caminho da fé viva, que excita a espe-
rança e opera a caridade” (LG 40-41). O dom da vocação batismal con-
verte-se em compromisso efetivo com a transformação do mundo para
torná-lo mais habitável, de acordo com os desígnios do Criador e Pai.
Ao tratar do multiforme exercício da única santidade, o Concílio
afirma que os Pobres e todos os que sofrem estão particularmente asso-
ciados ao mistério de Cristo: “Saibam que estão unidos de modo espe-
cial a Cristo, em suas dores pela salvação do mundo, aqueles que vivem
oprimidos na pobreza, na fraqueza, na doença e noutras tribulações, ou
os que sofrem perseguições por amor da justiça” (LG 41). Mas não são
apenas as vicissitudes que unem os Pobres ao Senhor. Na vida cristã, o
modo de ser pessoa do Pobre é o que melhor corresponde ao dom da santi-
dade, por ser o modo pelo qual o Filho de Deus assumiu a nossa condição
humana (cf. 2Cor 8,9). Trata-se, portanto, do estilo de vida requerido pelo
Reino (cf. Mt 5,3; Lc 6,20).46 A solidariedade compassiva e operosa para
com os “menores dos irmãos” de Jesus constitui uma exigência intrínse-
ca a todo e qualquer caminho de santidade (cf. Mt 25,31-46).47 Madre
Teresa de Calcutá (1910-1997) sintetizou essa verdade, dizendo aos seus
colaboradores: “A santidade não é um luxo para poucos, mas um sim-
ples dever para você e para mim. Quanto mais íntimo o seu amor por Je-
sus, mais santo você será. Quanto mais santo você for, mais um instru-
mento de seu amor, de sua presença e de sua compaixão para com os po-
bres você poderá ser”.48 A santidade inclui, portanto, a oferta de si e a
disponibilidade para o serviço.
O magistério pós-conciliar não deixou de fazer repercutir o chamado
universal à santidade, associando-o à missão da Igreja inserida no mun-
do. O Papa João Paulo II, preparando o Jubileu do ano 2000 e tendo em
46. Uma extraordinária antropologia cristã do pobre pode ser encontrada em: Federico CARRASQUILLA,
Escuchemos a los pobres. Aportes para una antropología del pobre, 2ª ed., Indo-American, Bogotá 2000, p.
127-147.
47. “Sem opção verdadeira e preferencial pelos excluídos e excluídas, não existe caminho para a santidade.
Todo aquele e aquela que realmente deseja viver a experiência da santidade terá necessariamente que ser sensível
aos gritos dos deserdados do mundo” (OLIVEIRA, Qual o sentido da vocação e da missão?, p. 34).
48. MOTHER TERESA, Come be my light, Mother Teresa Center, San Diego 2003, p. 25.
632 V.A.R. Teixeira
49. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Tertio Millennio Adveniente, Paulinas, São Paulo 1996, n. 42.
50. “Todo indivíduo reflete um aspecto específico do rosto de Cristo. Na missão própria de cada cristão,
encontramos um novo título ou manifestação da vocação à santidade” (SALVADOR, Compêndio de Teologia
Espiritual, p. 258).
51. Cf. JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, Paulinas, São Paulo 2001, n. 31-32.
52. Sobre o tema da vocação batismal, ver CNBB, Batismo, fonte de todas as vocações. Texto-base do ano
vocacional, Brasília 2003. Cf. também OLIVEIRA, Qual o sentido da vocação e da missão?, p. 7-24. Um bom
resumo pode ser encontrado em: A vocação batismal: fonte da comum dignidade e da legítima diversidade, em:
Vida Pastoral 228 (2003) 3-8.
Vocação universal à santidade 633
53. A expressão “chamado dentro do chamado” sintetiza uma forte experiência espiritual de Madre Teresa
de Calcutá a respeito da sua própria vocação. Irrevogavelmente convicta do chamado à total consagração de si
mesma a Deus para o serviço dos pobres e já pertencendo a uma congregação religiosa (Irmãs de Loreto), Madre
Teresa sentiu-se irresistivelmente impelida a dotar sua vocação de feições próprias, radicalizando sua consagra-
ção ao Senhor como único absoluto da vida e doando-se sem reservas aos “mais pobres dos pobres”, formando
para isso uma Comunidade que se dispusesse a compartilhar do mesmo ideal. A concretização de tal intuição foi
a fundação das Missionárias da Caridade. O ápice dessa experiência se deu durante uma viagem de trem, no dia
10 de setembro de 1946, como explicaria mais tarde, em carta a seus colaboradores: “Foi nesse dia de 1946, no
trem para Darjeeling, que Deus me fez o ‘chamado dentro do chamado’ para saciar a sede de Jesus, servindo-O
nos mais pobres dos pobres”. A Madre considerava esse dia, depois celebrado como “Dia da Inspiração”, como o
marco do começo de sua Congregação, “nas profundezas do anseio infinito de Deus por amar e ser amado” (cf.
Brian KOLODIEJCHUK, Madre Teresa: venha, seja minha luz, trad. de Maria José Figueiredo, Thomas Nelson,
Rio de Janeiro 2008, p. 54). Valendo-se dessa analogia com a vocação de Madre Teresa, poder-se-ia dizer: assim
como o chamado a ser Missionária da Caridade explicita e desenvolve, de uma maneira singular, o chamado a
consagrar-se a Deus para o serviço dos pobres; assim, toda vocação específica (leiga, religiosa, presbiteral etc.)
explicita e desenvolve, de um modo próprio, a vocação universal à santidade.
54. OLIVEIRA, Nossa resposta ao amor, p. 13.
634 V.A.R. Teixeira
55. CELAM, Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-
americano e do Caribe, CNBB/Paulinas/Paulus, Brasília/São Paulo 2007, n. 129-153. Doravante, citaremos ape-
nas DA. Para uma adequada compreensão dos temas mais recorrentes no Documento, sugerimos Paulo SUESS,
Dicionário de Aparecida. 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida, Paulus,
São Paulo 2007.
56. OLIVEIRA, Nossa resposta ao amor, p. 313.
Vocação universal à santidade 635
57. Este é, por exemplo, o modo como São Vicente de Paulo vê o Cristo: “les deux grandes vertus de Jé-
sus-Christ, c’est à savoir la religion vers son Père et la charité vers les hommes (SV IV, 393). Quando fala de “re-
ligion”, São Vicente, sob certos aspectos, reproduz a concepção de Bérulle, Olier e outros luminares da Escola de
Espiritualidade Francesa, que compreendem “religião” como a resposta fundamental da pessoa a Deus, ou seja,
uma atitude de adoração e de consagração da totalidade do ser. A caridade, por sua vez, corresponde à concretiza-
ção histórica do amor que de Deus procede, através do serviço aos outros (cf. Raymond DEVILLE, L’École fran-
çaise de spiritualité, DDB, Paris 1987, p. 103-104).
58. OLIVEIRA, Qual o sentido da vocação e da missão?, p. 48.
59. Com sua inquestionável lucidez teológica, afirma Karl Rahner: “O que é a santidade fica claro na vida
de Jesus. O que aparece nele não é inteiramente traduzível em uma teoria geral, mas é algo que se deve experi-
mentar no encontro constantemente renovado com o fato histórico” (em: SALVADOR, Compêndio de Teologia
Espiritual, p. 275).
636 V.A.R. Teixeira
ciá-lo como Boa Notícia aos demais. Na tradição judaica, da qual Jesus é
legítimo herdeiro,60 a relação entre mestre e discípulo ultrapassa os limi-
tes da transmissão do conhecimento e se consolida na comunhão entre
ambos. O discípulo não apenas senta-se aos pés do mestre para deixá-lo
falar, mas faz uma adesão consciente e livre ao conteúdo da sua mensa-
gem e ao seu estilo de vida, acompanhando-o por onde quer que vá. Mas
isso não significa que o discípulo tenha que reproduzir mimeticamente
gestos e palavras do seu mestre dentro de coordenadas históricas distin-
tas. O desafio que se impõe ao discípulo consiste, sobretudo, em pers-
crutar as intuições mais profundas daquele que lhe comunicou sua pró-
pria experiência para atualizá-las em seu cotidiano, ao enfrentar situa-
ções e conflitos semelhantes ou imprevistos, sempre à luz daqueles va-
lores básicos que lhe foram transmitidos na convivência com o mestre.61
“Aquele que crê em mim fará as obras que eu faço e fará ainda maiores”
(Jo 14,12).
A experiência dos primeiros seguidores de Jesus atesta que é do
discípulo que nasce o missionário: “Discipulado e missão são como as
duas faces da mesma moeda: quando o discípulo está apaixonado por
Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só ele nos salva (cf.
At 4,12)”.62 Os apóstolos não tardaram em assimilar as exigências do
mandato missionário (cf. Mc 16,15). Por isso, embora enfrentando per-
seguições, “não cessavam de ensinar e de anunciar a Boa Nova do Cristo
Jesus” (At 5,42), indo “de lugar em lugar” (At 8,4). Em seu itinerário
apostólico, Paulo vincula o chamado à santidade (cf. 1Cor 1,2) ao impe-
rativo da evangelização: “Anunciar o Evangelho não é título de glória
para mim; é, antes, uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu
não anunciar o Evangelho!” (1Cor 9,16). À vocação à santidade corres-
ponde, portanto, a missão de evangelizar, tarefa fundamental da Igreja,
destinada a abrir-se a toda a humanidade e a não se encerrar em suas pró-
60. Sobre a relação de Jesus com o universo cultural e religioso do judaísmo, afirma Dom Valfredo Tepe:
“O Verbo se fez carne – em forma inculturada. O Filho de Deus se fez homem, não em esplêndido isolamento in-
dividual, mas em dependência comunitária. A sabedoria eterna habitou em Israel, fez sua casa em Jacó, cresceu
num determinado povo e assimilou sua cultura. Essa cultura estava profundamente sustentada e permeada pela fé
comum em Javé. Jesus era judeu, cultural e religiosamente” (Valfredo TEPE, Antropologia Cristã. Diálogo in-
ter-disciplinar, Vozes, Petrópolis 2004, p. 225-226).
61. Sobre a relação mestre-discípulo na tradição judaica, ver Ivete HOLTHMAM, Catequese, caminho
para o discipulado, em: Vida Pastoral 50/264 (2009) 26-28. Para aprofundamento do tema, BRITO, A relação
mestre-discípulo nas tradições judaica e cristã, p. 148-160.
62. BENTO XVI, Discurso Inaugural da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Cari-
be, n. 3 (DA 146).
Vocação universal à santidade 637
63. Tal parece ser o sonho expresso pelo Cardeal Martini: “Sim, quero uma Igreja aberta, uma Igreja cujas
portas estejam abertas para os jovens, uma Igreja cujo olhar se volte para longe. A Igreja não se torna atrativa por
adaptação e por ofertas mornas. Confio na palavra radical de Jesus, que devemos traduzir para o nosso mundo,
como ajuda para viver, como Boa Notícia que Jesus nos quer trazer. Traduzir não significa tornar inofensiva.
Através da nossa vida, com coragem para escutar a Palavra e dar dela testemunho, a Palavra de Jesus vai mostrar
sua pertinência na atualidade” (MARTINI/SPORSCHILL, Diálogos noturnos em Jerusalém, p. 137).
64. De fato, “sendo Jesus aquele que revela cada pessoa a si mesma, ajudando-a a descobrir a própria voca-
ção (cf. GS 22), então é claro que a resposta ao chamado divino só se torna autêntica quando se faz seguimento de
Cristo” (OLIVEIRA, Qual o sentido da vocação e da missão?, p. 43).
65. Sobre a santidade como testemunho de vida, ver OLIVEIRA, Nossa resposta ao amor, p. 39-43.
638 V.A.R. Teixeira
67. Toda experiência autêntica do Espírito evidencia e desenvolve a relação existente entre santidade e
missão: “O Espírito transforma e santifica uma pessoa, uma comunidade, para fazer delas instrumentos adequa-
dos que levem a cabo sua obra de salvação no mundo” (SALVADOR, Compêndio de Teologia Espiritual, p.
246).
68. Cf. TEPE, Antropologia cristã, p. 297.
69. Carlos MESTERS, Voltar às origens: voltar ao essencial da Boa Nova que Jesus nos trouxe, em: Con-
vergência 41/389 (2006) 14.
640 V.A.R. Teixeira
mo, “para que todos tenham vida plenamente” (Jo 10,10). Seu modo de
ser e de atuar, sua fascinante liberdade diante das leis, instituições, ideo-
logias e estruturas do seu tempo, seus sentimentos mais profundos, sua
compaixão para com os enfraquecidos e desprezados definem os traços
da conduta de todos os que querem segui-lo, acolhendo o chamado à
santidade. Nossa conformidade com Cristo, portanto, está associada à
vivência de uma liberdade orientada pelos valores do Reino e em ordem
à sua realização histórica, a partir do cotidiano. Da sintonia com o espíri-
to de Cristo (cf. Rm 13,14), pressuposto da santidade cristã, resulta o
empenho em assumir o Evangelho como norma suprema do agir e cen-
tro dinamizador dos nossos projetos pessoais e comunitários, abraçando
o mundo inteiro num gesto profético de compromisso com a transforma-
ção de suas estruturas, conforme a inequívoca intuição do Documento
de Aparecida:
Ao participar desta missão, o discípulo caminha para a santidade. Vivê-la na
missão o conduz ao coração do mundo. Por isso, a santidade não é fuga para
o intimismo ou para o individualismo religioso, tampouco abandono da rea-
lidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da Amé-
rica Latina e do mundo, e muito menos fuga da realidade para um mundo ex-
clusivamente espiritual (DAp 148).
Consideração final