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O Arqueiro

GERALDO JORDÃO PEREIRA (1938-2008) começou sua carreira aos 17 anos, quando
foi trabalhar com seu pai, o célebre editor José Olympio, publicando obras marcantes
como O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Minha vida, de Charles Chaplin.

Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma nova geração de
leitores e acabou criando um dos catálogos infantis mais premiados do Brasil. Em 1992,
fugindo de sua linha editorial, lançou Muitas vidas, muitos mestres, de Brian Weiss, livro
que deu origem à Editora Sextante.

Fã de histórias de suspense, Geraldo descobriu O Código Da Vinci antes mesmo de ele


ser lançado nos Estados Unidos. A aposta em ficção, que não era o foco da Sextante, foi
certeira: o título se transformou em um dos maiores fenômenos editoriais de todos os
tempos.

Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o próximo, Geraldo
desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram sua grande paixão.

Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vez mais
acessíveis e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é uma homenagem a esta
figura extraordinária, capaz de enxergar mais além, mirar nas coisas verdadeiramente
importantes e não perder o idealismo e a esperança diante dos desafios e contratempos
da vida.
Título original: Master Class

Copyright © 2020 por Christina Dalcher


Copyright da tradução © 2020 por Editora Arqueiro Ltda.

Direitos de tradução acordados com Taryn Fagerness Agency e Sandra


Bruna Agencia Literaria, SL.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito
dos editores.

tradução: Alves Calado


preparo de originais: Beatriz D’Oliveira
revisão: Flávia Midori e Juliana Souza
projeto gráfico e diagramação: Valéria Teixeira
capa: Renata Vidal
imagem de capa: Oleksandr Briagin / iStock
foto da autora: © B. Dalcher
e-book: Pedro Wainstok e Marcelo Morais

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
D14q
Dalcher, Christina
Questão de classe [recurso eletrônico] /
Christina Dalcher; [tradução Alves Calado]. - 1. ed. -
São Paulo: Arqueiro, 2020.
recurso digital

Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-5565-050-1 (recurso eletrônico)

1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I.


Calado, Alves. II. Título.
20- CDD: 813
66577 CDU: 82-3(73)
Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472

Todos os direitos reservados, no Brasil, por


Editora Arqueiro Ltda.
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Em memória de Carrie Elizabeth Buck (1906-1983)
e aos filhos negados a ela e a tantas outras.
“Comparada com a velha Europa, que perdeu uma
quantidade infinita de seu melhor sangue por meio da
guerra e da emigração, a nação americana surge
como um povo jovem, racialmente seleto.”
ADOLF HITLER – O segundo livro de Hitler

“Três gerações de imbecis já são mais que o


suficiente.”
– OLIVER WENDELL HOLMES JR., juiz da Suprema Corte
dos Estados Unidos

“Eles me fizeram mal. Fizeram mal a todos nós.”


– CARRIE BUCK
SUMÁRIO

Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Catorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e três
Vinte e quatro
Vinte e cinco
Vinte e seis
Vinte e sete
Vinte e oito
Vinte e nove
Trinta
Trinta e um
Trinta e dois
Trinta e três
Trinta e quatro
Trinta e cinco
Trinta e seis
Trinta e sete
Trinta e oito
Trinta e nove
Quarenta
Quarenta e um
Quarenta e dois
Quarenta e três
Quarenta e quatro
Quarenta e cinco
Quarenta e seis
Quarenta e sete
Quarenta e oito
Quarenta e nove
Cinquenta
Cinquenta e um
Cinquenta e dois
Cinquenta e três
Cinquenta e quatro
Cinquenta e cinco
Cinquenta e seis
Cinquenta e sete
Cinquenta e oito
Cinquenta e nove
Sessenta
Sessenta e um
Sessenta e dois
Sessenta e três
Sessenta e quatro
Sessenta e cinco
Sessenta e seis
Sessenta e sete
Sessenta e oito
Sessenta e nove
Setenta
Setenta e um
Setenta e dois
Setenta e três
Setenta e quatro
Setenta e cinco
Setenta e seis
Setenta e sete
Setenta e oito
Nota da autora
Agradecimentos
UM

É impossível saber o que você seria capaz de fazer para sair de


um casamento de merda e dar às suas filhas uma chance de
alcançar o sucesso. Você pagaria? Abandonaria o conforto do seu
lar? Mentiria, trapacearia ou roubaria? Eu me fiz essas perguntas;
acho que muitas mães se fazem. Mas não fiz uma em especial,
principalmente porque não gosto da resposta. Nem um pouco. Meu
instinto de sobrevivência é muito aguçado. Sempre foi.
Na noite anterior, depois que as meninas tinham ido para a
cama, conversei de novo com Malcolm. Tentei falar de um jeito leve
e não deixar a raiva transparecer em minhas palavras.
– Já cansei, Malc. Freddie já cansou.
Ele ergueu os olhos da papelada e ficou me encarando.
– Cansou de quê?
– Dos números. Da pressão. De tudo isso.
– Entendi – disse ele, e voltou-se outra vez para seus relatórios e
memorandos.
Pensei ter ouvido um suspiro de alívio quando me levantei para ir
dormir.
Faz muito tempo que as coisas não andam bem.
Quase não lembro mais como era antes de começarmos a andar
com os números Q, uma impressão digital extra e artificial. Um
distintivo de honra para alguns e uma marca de vergonha para
outros. Depois de mais de uma década, acho que nos acostumamos
com qualquer coisa. Foi assim com os celulares. Lembra quando
você não tinha o universo inteiro dentro do bolso? Lembra como era
estar com sua melhor amiga e conversar sobre nada, esticando um
cacho de cabelo só para vê-lo se enrolar de novo? Você se lembra
de tudo isso? No meu caso, sim e não. Aluguéis de filmes na
Blockbuster e megalivrarias são recordações remotas, impressões
desbotadas da vida antes do streaming e da entrega de produtos no
mesmo dia.
É o que acontece com os números Q, apesar de termos usado
sequências numéricas de uma forma ou de outra durante toda a
vida: o registro da identidade; o número do telefone fixo para ligar
para a mamãe; as notas da escola. Em uma loja de roupas, os
homens se transformavam em 42 ou 44, de acordo com o tamanho
da cintura. As mulheres tornavam-se tamanhos de vestido: 38, 42,
48. Nas lojas mais exclusivas, éramos todas as nossas medidas.
Nos consultórios médicos, éramos altura e peso: enquanto um
número descia, o outro subia.
Sempre fomos nossos números. Data de nascimento. Notas
escolares. Pressão arterial. Índice de massa corporal. Notas de
faculdade, mestrado, doutorado. Carteira de identidade, senha do
banco e datas de validade. Para os mais radicais, toda a sequência
de dezesseis dígitos do cartão de crédito. Nossa idade. Nosso
patrimônio líquido. Nosso QI.
Penso nisso enquanto estou no supermercado, em uma das filas
de prioridade, com quase cem pacotes, latas e caixas no carrinho, o
suficiente para manter minha família durante alguns dias. Ontem, no
mesmo lugar, cinco mulheres ficaram me olhando furiosas, três filas
adiante. Uma delas era do colégio, eu me lembrava dela. Acho que
era líder de torcida no ensino médio. Bonita, magra, não muito
inteligente. Como era mesmo o nome dela? Paulette? Paulina?
Patty? Patty. Isso. Era a quinta da fila no único caixa de não
prioridade aberto, segurando uma caixa de leite desnatado. O único
item de Patty, comparado com os meus quase cem. Eu quis deixá-la
passar na minha frente, mas o caixa deu de ombros e balançou a
cabeça sem esperança.
– O cartão dela não vai funcionar aqui – disse o rapaz. – A
senhora sabe.
Ele passou meu cartão no leitor, meu cartão mágico com o
número mágico codificado. Nove vírgula alguma coisa. O que
importava era o primeiro dígito.
Patty não disse nem uma palavra. Antigamente teria dito. Ela ou
uma das outras mulheres teria empurrado o carrinho até aqui e se
recusado a sair da fila. Certa vez presenciei uma situação tensa em
um posto de gasolina entre um homem baixo de terno e o cara que
trabalhava na loja de ferragens na rua principal. Não houve
competição. O sujeito de terno olhou uma vez para o Sr. Ex-Jogador
de Futebol do Ensino Médio, voltou para o seu Lexus e foi embora.
Quando seu cartão não funcionou, o Sr. Ex-Jogador socou o
mostrador da bomba de gasolina até ficar sangrando e a polícia
aparecer. Não sei qual era o número Q dele, mas com toda certeza
era abaixo de nove.
Agora todos estamos acostumados às filas, ao sistema de
camadas e aos diferentes acessos a diferentes pessoas.
Acho que, com o tempo, somos capazes de nos acostumar com
qualquer coisa.
DOIS

E
xistem nove despertadores na minha casa. Um perto da
minha cama, ajustado para tocar às cinco, um que desperta
uma hora antes da chegada do ônibus escolar de Anne, mais
três para marcar os últimos trinta, quinze e sete minutos. Isso
também vale para o ônibus de Freddie, que chega um pouquinho
mais tarde. Nove pins, pops e triiins, cinco dias por semana. Parece
que estou na porcaria de um game show.
Tudo isso para que minhas filhas não percam a hora da escola.
Quando eu era pequena, minha mãe gritava do pé da escada.
Seu tom de voz ficava na linha tênue entre gentil e firme enquanto
me chamava, me instigando a me levantar, me vestir, me preparar.
Ainda assim, em alguns dias eu só chegava ao ponto de ônibus a
tempo de vê-lo virando a esquina, as luzes da traseira
desaparecendo sob a névoa matinal. Todo mundo perdia um ônibus
de vez em quando. Não era nada de mais.
Não havia incentivos para garantir que pegássemos o ônibus – o
ônibus certo. Não naquela época.
Malcolm já saiu; foi se esconder em um escritório iluminado com
alguma assistente lhe levando café e pãezinhos integrais com
cream cheese sem gordura. Ele nunca vê as filhas, duas
competidoras do programa Quem não vai chegar à escola a tempo?,
que vai ao ar toda manhã. Uma pena. Os prêmios não são grande
coisa, mas as penalidades infligidas aos perdedores servem como
uma tremenda motivação.
– Freddie! – grito da cozinha, parecendo menos a minha mãe e
mais uma leoa desesperada com um bando de hienas rodeando
seus filhotes. – Anne!
O alerta de trinta minutos solta um pim enquanto despejo o
iogurte de uma garrafa e me equilibro em uma perna só para puxar
a correia de tornozelo da minha sandália esquerda. A cabeça de
Anne aparece junto à quina da parede, balançando rapidamente, em
silêncio.
Freddie não está pronta. Nem de longe.
Merda.
No segundo dia de provas do ano letivo, eu estava atrasada,
minha filha não apareceu para o café da manhã e só consigo pensar
no ônibus amarelo vindo pela rua com o Pegador de Crianças
sentado ao volante.
Quando era pequena, eu sonhava com o Pegador de Crianças
daquele antigo musical, o que tem um carro voador e Dick Van Dyke
imitando um péssimo sotaque britânico. Ele espreitava minha casa,
nas sombras antes do alvorecer, o cabelo preto puxado para trás
com brilhantina e o nariz de Pinóquio. Esperando.
O Pegador de Crianças não dava medo logo de cara, não com
sua carroça tilintando com sinos e luzes nem quando ele dançava
com seu casaco colorido ou prometia um monte de coisas boas e
doces às crianças. Afinal, crianças não têm medo de sinos, cores e
doces, certo? E, de início, não sabíamos que a carroça era na
verdade uma cela com barras de ferro ou que o Pegador de
Crianças usava uma roupa preta por baixo do casaco ou que levava
as presas para uma caverna escura.
Mas, na segunda vez em que assistíamos ao musical, já
sabíamos. E na terceira. E em todas as outras vezes depois disso.
Você sabia exatamente o que ele estava esperando.
Aos 40 e poucos anos descobri que o Pegador de Crianças
ainda existia.
Ele é velho e seu cabelo parece uma espuma branca através do
para-brisa do ônibus, com a inscrição ESCOLAS FEDERAIS em letras
pretas na lateral. Em vez do casaco colorido, ele usa um uniforme
cinza simples com a logo do Departamento de Educação bordada
em duas divisas de ombro, um símbolo da paz em três cores: prata,
verde e amarelo. Em volta estão as palavras Intelligentia, Perfectum,
Sapientiae. Inteligência, perfeição, sabedoria. Eu entenderia duas
das três mesmo sem ter estudado latim. A pintura amarela do
ônibus – chamavam a cor de “amarelo cromo” quando ainda
continha chumbo, mas já faz tempo que é “amarelo brilhante de
ônibus escolar nacional” – está descascada em volta dos para-
lamas e da porta sanfonada. Acho que ninguém dá a mínima para a
aparência deles. Não é essencial, considerando o lugar para onde
vão ou o que carregam.
Os verdes e prateados estão sempre em boas condições,
polidos, sem qualquer amassado, arranhão ou marca. As portas se
abrem em silêncio e com suavidade, bem diferentes das portas
rangentes do ônibus amarelo que chacoalha pela nossa rua nesta
manhã. Os motoristas dos verdes e prateados sorriem enquanto as
crianças embarcam, vestidas com uniformes de cores chamadas
“carmim Harvard” e “azul Yale”, mesmo os modelos para 5 anos.
Mais uma coisa sobre os ônibus amarelos: não os vemos todos
os dias, pegando sua carga na névoa do início da manhã e
devolvendo-a depois da escola, na hora da TV e dos lanchinhos, um
limbo em que as crianças não são mais custodiadas pelo Estado e
estão de novo em casa e acomodadas com suas famílias.
Os ônibus amarelos só aparecem uma vez por mês, sempre na
segunda-feira depois do dia das provas. E não retornam à tarde.
Nunca voltam. Pelo menos não com passageiros. Além disso,
não entram em bairros como o nosso.
Se eu guardasse as manchetes de jornais dos últimos dez anos,
elas contariam a história melhor do que eu seria capaz.

AS TAXAS DE IMIGRAÇÃO CRESCEM – AS PROJEÇÕES PARA


2050 SÃO PÉSSIMAS

SUPERPOPULAÇÃO ESCOLAR, ESCASSEZ DE PROFESSORES:


LEGISLADORES NÃO CONSEGUEM SOLUÇÃO

INSTITUTO GENICS FAZ PARCERIA COM O DEPARTAMENTO DE


EDUCAÇÃO PARA OFERECER SOFTWARE Q EXPANDIDO

CAMPANHA FAMÍLIA MAIS APTA LANÇA DIRETRIZES

CUIDAR DE TODAS AS CRIANÇAS SIGNIFICA NÃO CUIDAR BEM


DE NENHUMA!

DIRETRIZES INICIAIS SERÃO DIVULGADAS NOS PRÓXIMOS


MESES

Começou com o medo e terminou com as leis.


Sirvo uma terceira xícara de café e olho o relógio.
– Freddie! Por favor!
Tenho o cuidado de manter a voz baixa e firme, maternal,
fazendo o possível para manter Freddie calma.
O ônibus amarelo está parado do outro lado da rua, a duas
casas da minha, na frente da garagem dos Campbell, o que é
estranho, porque Moira Campbell não tem mais filhos – pelo menos
não em casa – e hoje é dia de provas. Mesmo assim, do outro lado
da rua e mais adiante é melhor do que na frente da minha casa,
quer o ônibus esteja ou não seguindo o cronograma. O pensamento
me provoca um tremor, apesar da onda de calor deste fim de verão
quente. Quando foi que uma coisa banal como um ônibus escolar
amarelo virou uma ameaça tão grande? É como substituir o sorriso
de um emoji por presas. Isso é muito errado.
– Freddie! – chamo de novo. – Pelo amor de Deus!
Eis a questão com crianças de 9 anos: por pior que tenha sido a
dor do parto, por mais que a amamentação noturna tenha sido
caótica e arrepiante, por piores que tenham sido as doenças e os
terríveis 2 anos, por mais que agora você temesse o primeiro
Arranjei um namorado, mãe! por parte de uma criança que parecia
ter usado fraldas até ontem, não há nada pior do que uma pré-
adolescente. Principalmente quando se trata das rotinas matinais no
banheiro. Sei que eu não deveria me irritar, ainda mais com Freddie
e o jeito dela.
Anotação mental: mudar o tom de voz; baixar duas oitavas e um
milhão de decibéis.
– Depressa, querida! Hoje tem prova! – grito, desta vez com a
voz mais doce, me perguntando se vou conseguir chegar ao
trabalho na hora.
Tento usar a irmã mais velha, transformando-a no policial
malvado.
– Anne! Traga sua irmã em dois minutos. Com ou sem
prendedores de cabelo combinando.
Isso parece funcionar. Quando não está com o nariz enfiado na
tela do iPad, avaliando as notas Q dos garotos da cidade em busca
de alguém para ir com ela a um baile de volta às aulas, Anne é a
responsável. Sempre pronta, sempre pontual, sempre voltando para
casa depois do dia de provas com um sorrisinho despreocupado no
rosto e depois um sorrisão ao conferir no aplicativo que ela passou.
É Freddie que fica no banheiro, preocupando-se com a franja e
lavando as mãos cinco vezes mais do que o necessário. Uma vez
eu a encontrei sentada no vaso sanitário com a cabeça entre os
joelhos, tremendo, recusando-se a sair.
– Você tem que ir, querida – argumentei. – Todo mundo precisa
fazer as provas.
– Por quê?
Por quê? Tentei pensar em uma resposta adequada.
– Para eles saberem onde colocar as pessoas. Você sempre se
saiu muito bem.
O que eu poderia ter falado era: “Você passou raspando todas as
vezes. Vai passar de novo.” Mas não adiantaria nada.
Anne aparece no corredor, ainda grudada no iPad, deslizando
telas, clicando e expandindo, recitando números.
– Hum, 9,1. Que burro. Eca, 8,8. Muito burro. Ah, mãe, você
deveria ver esse aqui, é daquela escola em Arlington. Caiu para
8,26 e parece que não consegue passar nem em um exame de
sangue. Que piada.
– Tirar 8,26 costumava ser igual a um B – lembro a ela.
– Não é mais assim, mãe.
Ela é igual ao pai, penso. Para Anne, o mundo gira em torno de
Malcolm. Às vezes isso é uma vantagem.
– Cadê a sua irmã? – pergunto, abotoando a capa de chuva.
Anne diz que ela está vindo.
O ônibus prateado de Anne, que vai para a escola de camada
mais alta com o resto dos nove vírgula e muitos, já virou a esquina e
começa a reduzir a velocidade, exibindo a placa de PARE enquanto
se aproxima do ponto. Há vários carros atrás dele, com estudantes
segurando reluzentes cartões de identificação nos bancos de trás,
esperando para sair. Um SUV Lexus cinza-aço, o primeiro da fila,
para junto ao meio-fio e a porta traseira se abre. Eu já tinha visto
aquela garota em uma das reuniões de pais e mestres que
acontecem todo outono na escola de Anne. Hoje ela tem o cabelo
emoldurando o rosto em cachos grossos, despenteados, mas dá
para notar o medo em seus olhos quando ela vê o ônibus amarelo
mais adiante na rua.
Anne se junta a mim perto da janela, com a mochila pendurada
em um ombro, o passe prateado na mão, esticando o cordão que o
pendura ao pescoço. Parece um nó de forca.
– Aquela garota está nervosa – comento.
– Não deveria – rebate Anne. – O Q de Sabrina é bom. – Depois,
em um sussurro confidencial: – Já a Jules Winston... Ela quase não
passou na prova de cálculo avançado da semana passada. – Anne
dá uma mordida na maçã e desliza o dedo no iPad.
Eu me afasto da janela molhada de chuva.
– Achei que os resultados fossem confidenciais.
Claro, sei como são os adolescentes. Já passei pelo ensino
médio.
Anne dá de ombros.
– E são. Mas a classificação não. Você sabe disso.
É. Eu sei.
– Agora Jules está com o menor Q de todo o primeiro ano,
graças à prova de cálculo – diz Anne. – E faltou três dias por doença
nesse período. E não conseguiu pegar o ônibus na quarta-feira
passada. E a mãe dela foi demitida, então a renda familiar caiu.
Tudo isso junto...
Outra mordida na maçã. Outra passada de dedo no tablet.
– Se ela não marcar um monte de pontos, na semana que vem
vai passar para o ônibus verde. Talvez em dezembro esteja naquele.
– Anne indica com o queixo o ônibus amarelo parado sob a chuva. –
Depois de dois anos em uma escola amarela, Jules vai precisar
trabalhar fritando hambúrguer em algum lugar.
– Anne... Pelo amor de Deus.
Ela dá de ombros de novo. Minha filha mais velha dá de ombros
como ninguém.
– Alguém tem que trabalhar nisso. Pelo menos até
automatizarem aquela merda. Parece que estão pegando gente
hoje. Na nossa rua. Esquisito.
Seu tom é frio, jornalístico. Muito parecido com o de Malcolm
quando entrega seu relatório diário sobre quantas escolas federais
serão inauguradas no mês seguinte ou sobre o Q médio por estado,
cidade e distrito escolar. Ele faz isso toda noite, durante o jantar,
como se todas nós estivéssemos interessadas em ouvir. Geralmente
Anne se senta perto dele, sem desviar o olhar do pai, fascinada
pelos números.
Freddie já é outra história.
TRÊS

A
nne sai de casa com o iPad em uma das mãos e o cartão
prateado pendurado no pescoço. Um metro e sessenta e
quatro de confiança andando pela calçada na direção do
ônibus que a espera. Passa pela outra garota – qual era mesmo o
nome dela? Sabrina? – sem sequer cumprimentá-la e se junta a um
bando de recém-chegados aos 16 anos que, como Anne, veem o
fracasso como algo contagioso.
Sabrina não me parece bem, com classificação Q alta ou não.
Está arrumada, o cabelo brilhando como só cabelos adolescentes
brilham, o uniforme muitíssimo bem passado. Considerando o carro
em que veio, parece que a garota tem tudo. Mas existe todo tipo de
deficiência, e nem mesmo o dinheiro cura a maioria.
Não sei qual é o problema de Sabrina, mas sinto vontade de
correr pela chuva até ela, entrar debaixo de seu guarda-chuva e lhe
dar uma fruta, uma barra de cereal, um chocolate quente, um
abraço. Quero dizer a ela que tirar nota baixa em uma prova não a
transforma em uma perdedora.
Só que, nos tempos atuais, transforma.
Um a um, os jovens se aproximam do ônibus prateado e erguem
os passes para que sejam lidos pela máquina. Um pim
suficientemente agudo e penetrante é ouvido do outro lado da rua,
através da janela da minha sala, sempre que um novo cartão
concede acesso ao ônibus. A porta se abre, o estudante sobe e a
porta se fecha, esperando o próximo da fila. Ninguém acreditaria
que estudantes do ensino médio seriam tão organizados, mas
regras devem ser seguidas. E existem leis que fazem as regras
valerem. Os homens e mulheres que escrevem essas leis são os
verdadeiros Pegadores de Crianças.
Eu sei disso. Meu marido é um deles.
Sabrina é a última, e seus lábios formam um sorriso débil ao
ouvir o pim e obter acesso ao refúgio do ônibus. Antes de embarcar,
ela olha para trás uma vez, observando toda a rua, até a casa dos
Green, e o sorriso some. Hoje ela tem um cartão prateado; semana
que vem, quem sabe?
Não vejo a melhor amiga de Anne, o que é estranho, já que
Judith Green é quase sempre a primeira a entrar no ônibus, com o
cartão prateado pronto para ser lido. É como se ela vivesse e
respirasse a escola, os deveres de casa, os relatórios dos livros.
Alunos da Escola Prata Davenport, esta é a última chamada. O
ônibus da Escola Prata Davenport vai partir. Última chamada para a
Escola Prata Davenport.
“Chamada” não é a palavra certa. A voz robótica feminina, sem
sotaque, trovejando pelo bairro, deveria dizer a verdade. Deveria
dizer “advertência”.
Quando a porta se fecha, Judith Green ainda não apareceu.
À medida que o ônibus prateado se afasta, um verde vem ocupar
seu espaço. Outra fila de carros espera na chuva e alguns alunos do
ensino médio que moram na vizinhança caminham por entre as
poças. Um deles pula em um buraco raso, espirrando água para
todo lado, enlameando as três crianças mais próximas. Elas apenas
riem – são crianças.
– Freddie! – grito. – É a última advertência, juro.
Assim que a palavra sai da minha boca, eu me arrependo.
Finalmente ela aparece na sala, com a mochila pesando no
ombro direito, mais parecendo o Corcunda de Notre-Dame do que
uma menina saudável de 9 anos. Seu rosto é o de uma velha.
Cansado. Ela não está verificando tuítes nem comentários, não está
mordendo uma maçã nem fazendo nada a não ser olhar além de
mim, pela janela, para o ônibus verde que a espera.
– Qual é o problema, querida? – pergunto, puxando-a para mim,
mesmo sabendo muito bem qual é.
– Posso dizer que estou doente hoje? – As palavras saem
sôfregas, temerosas.
Antes que eu possa responder, todo o corpo de Freddie treme
nos meus braços. A mochila desliza para o chão com um baque
surdo.
– Não, meu bem. Hoje não – respondo. – Amanhã talvez.
É mentira, claro. Doença exige verificação e, mesmo se eu
conseguisse mentir e informar febre alta até o prazo de seis da
manhã de amanhã, uma verificação secundária feita pela enfermeira
da escola de Freddie mostraria que não havia nada de anormal.
Então ela perderia mais pontos Q do que pode – o usual pela falta
por doença e algo extra pela incapacidade de confirmação. O
melhor que posso fazer é mentir hoje e voltar atrás amanhã.
Qualquer coisa para garantir que ela entre no ônibus.
– Venha, querida. Está na hora.
Freddie se vira de repente e chuta a mochila, que acerta o lírio-
da-paz que Malcolm vem cultivando desde antes de nos casarmos.
Ela passa de soluçante a histérica em uma fração de segundo.
Malcolm não vai ficar feliz quando chegar em casa.
– Não posso ir! – diz ela. – Não posso ir. Não posso, não posso,
não posso...
Puta que pariu.
De repente estamos as duas no chão, Freddie puxando o próprio
cabelo e eu tentando impedi-la antes que ela cause mais algum
dano. Há fios louros em seus dedos, flutuando para o tapete. Sei
que a coisa está feia quando ela para tão abruptamente quanto
começou e passa a se balançar para trás e para a frente como um
joão-teimoso. Seus olhos parecem fitar o vazio.
Não posso tocá-la quando ela fica assim, não importa quanto eu
queira.
Acho que deve existir uma palavra para definir Freddie, mas não
sei qual. Na minha mente ela é apenas Freddie. Frederica Fairchild,
9 anos, doce como açúcar, sem problemas ou manias a não ser os
problemas e as manias de qualquer menina da sua idade. É ótima
no vôlei, dá trabalho para Malcolm no xadrez, adora tudo menos
couve-de-bruxelas. Mas aqui está ela, aterrorizada porque é dia de
prova.
De novo.
– Freddie – sussurro, olhando para os estudantes perto do
ônibus verde. Restam apenas dois na fila para fazer a leitura dos
cartões e embarcar. – Está na hora.
Alunos da Escola Verde Sanger, esta é a última chamada. O
ônibus da Escola Verde Sanger vai partir. Última chamada para a
Escola Verde Sanger.
Eu seria capaz de matar a dona daquela voz robótica.
Enquanto Freddie se recupera, pego a mochila, tiro um punhado
de lenços de papel da caixa na cozinha e coloco o cartão de
identificação verde na mão dela.
– Você vai tirar nota boa. Eu sei que vai.
Só recebo um aceno silencioso de cabeça. E, mesmo assim, é
um movimento quase imperceptível. Meu Deus, como eu odeio a
primeira sexta-feira do mês.
Ela sai de casa assim que a antepenúltima criança entra no
ônibus. De novo peço que ela não se preocupe, mas não creio que
ela tenha ouvido. Meu café esfriou e o estúpido lírio-da-paz de
Malcolm parece ter sido atingido por um meteoro. Levanto o vaso de
modo que o lado mais quebrado fique virado para a parede e decido
qual mentira vou contar ao meu marido esta noite. Não que isso
importe. A maior parte do que eu falei a Malcolm nos últimos anos
foi mentira, começando com os “eu te amo” cotidianos e terminando
com as palavras sussurradas nas raras ocasiões em que fizemos
sexo, sempre com uma camisinha do estoque que ele mantém na
mesinha de cabeceira, sempre com um bocado de gel espermicida
para garantir que não vamos produzir mais nenhuma criaturinha.
Mas não menti para Freddie. Sei que ela vai tirar nota boa. Afinal
de contas, a capacidade deveria estar nos genes dela. O relatório Q
pré-natal que mostrei a Malcolm confirmou isso nove anos atrás.
Só que esta foi outra mentira.
Não fiz o teste.
QUATRO

E
ntro na cozinha para aquecer o café frio no micro-ondas. Não
consigo mais pensar em genética sem lembrar uma conversa
que tive com minha avó, pouco depois de descobrir que
estava grávida de Freddie.
Não é uma recordação feliz.
– Não gosto desse tal de Q. – Oma se serviu de uma tacinha de
schnapps, examinou o nível e serviu mais um dedo. Peguei uma
garrafa d’água da geladeira antes de me sentar na sala com uma
barriga que parecia carregar um pequeno atum. – Não gosto de
dizer “odeio” porque um pouco de ódio um dia acaba virando um
montão de ódio... mas odeio esse tal de Q.
Um mês antes, qualquer cheiro de bebida alcoólica me mandaria
correndo para o banheiro. Agora parecia tentador.
– Tem certeza de que não quer um gole? – perguntou ela. – Não
vai matar você. Nem o bebê. – Ela estendeu a mão e deu três
tapinhas rápidos no suéter, que já tinha começado a se esticar, um
lembrete constante de que o tempo estava correndo. – Vai dar tudo
certo. Assim como deu com seu pai e com você.
Eu odiava quando ela dava tapinhas na minha barriga daquele
jeito. Além disso, Oma estava abafando a voz de Petra Peller na
televisão.
Qual é o seu Q?, perguntou Petra. Parecia estar olhando direto
para mim.
A garrafa me chamava. Malcolm não ficaria sabendo – eu podia
usar Oma como bode expiatório quando ele perguntasse sobre o
nível do líquido escuro. Mas alguém saberia. Alguém em uma sala
branca e estéril cheia de amostras de urina enviadas pelo
consultório do meu médico. Alguém com uma formação em escola
amarela, pago para examinar tudo que as mulheres grávidas
emanam e fazer marcas de verificação. Alguém que odiava tanto o
trabalho que pensaria em descarregar o ódio em outra pessoa,
especialmente a esposa do homem que tinha inventado o sistema
de camadas e as notas Q e que não perdia a oportunidade de
enfatizar a relevância das duas coisas.
E, o mais importante, qual é o Q do seu bebê?, continuou Petra.
– Que bobeira – reclamou Oma. – Um bebê é um bebê. Quem
se importa com o Q dele?
Senti vontade de dizer que Malcolm se importava. Até demais,
talvez.
– Nós ao menos sabemos o que é esse Q?
Tento responder do melhor modo possível, juntando trechos do
que ouvi de Malcolm e do noticiário. Os algoritmos se tornaram
muitíssimo mais complicados do que as notas médias equivalentes
do início.
– É um quantificador, Oma. Um quociente.
– Explique o que está sendo quantificado.
– Ah... as notas, claro. Registros de comparecimento e
participação. As mesmas coisas que sempre calculamos.
– E é só isso? – Havia desconfiança em sua voz.
Continuo contando nos dedos os componentes que recordo.
– Formação e rendimento dos pais. Desempenho dos irmãos.
Todos os outros Qs no núcleo familiar.
– Você também tem esse tal de Q?
– Todo mundo com idade escolar ou de trabalho tem. E ele é
recalculado todo mês.
Na verdade eu nem acompanho mais. Meus números estão no
nível de nove vírgula e tantos desde que as classificações Q
começaram, há alguns anos. Isso se deve em parte às minhas
notas. “Em parte” porque os professores sempre me davam nota
máxima. Mas é ingenuidade pensar que os números são todos por
mérito meu – sem dúvida a posição de Malcolm acrescenta alguns
décimos, talvez mais. Como subsecretário do Departamento de
Educação, ele está apenas um grau abaixo do presidente, pelo
amor de Deus.
Oma mexeu em seu aparelho auditivo e aumentou o volume da
televisão. As frases saíam da tela como pequenos dardos afiados.
... especialmente para quem tem mais de 35 anos...
... quanto antes, melhor...
... um relatório Q pré-natal dá às mulheres as informações de
que elas precisam para tomar a decisão importantíssima...
... antes que seja tarde demais...
Um número piscou em vermelho na base da tela, junto com o
endereço on-line do Instituto Genics, enquanto Petra aconselhava
todas as futuras mães a se inscreverem para uma consulta grátis
com um dos especialistas da instituição.
– Uma coisa é verdade – disse Oma, virando-se para mim. – De
fato não sabemos o que eles vão ser. Então você faz um teste, que
diz que seu neném vai ser “mediano”. O que isso significa? Só
existe uma medida? – Ela girou a taça com a mão nodosa e
continuou: – Quando eu dava aula de artes... Ah, muitíssimos anos
atrás, tive uma aluna que não conseguia dar o troco de uma nota de
1 dólar. Mas tinha outros talentos. Sabe onde essa garota está hoje?
Eu sabia onde a garota estava. Fabiana Roman estava em todas
as galerias de costa a costa – ou pelo menos suas pinturas
estavam. Uma vez Malcolm analisou as telas com tinta espirrada,
meio Jackson Pollock, meio Edvard Munch, com um toque de
Kandinsky. Disse que eram “degeneradas”.
– Talvez eu devesse fazer o teste. Só para ver o que dá –
comentei, anotando o número e o site em uma das revistas sobre
maternidade na mesinha de centro.
Oma arrancou-a da minha mão.
– O que foi?
– Elena, diga que você não está pensando nisso a sério. A
amniocentese, eu entendo. – Ela pronunciou “amniocentese” com
cuidado, a concatenação pouco familiar de sons tropeçando na
boca. – Mas um teste de inteligência pré-natal? É ideia do Malcolm?
– Não – menti.
Claro que tínhamos conversado sobre o teste – várias vezes.
Cada discussão terminava com Malcolm dizendo que a decisão era
minha, que eu fizesse o que achasse melhor, sem pressão. Só que
não era bem assim. Eu sabia exatamente o que Malcolm achava
melhor. Tentei justificar o negócio do Q.
– Sabe como é, Oma, as escolas não são mais como
antigamente.
Ela se serviu de mais schnapps.
– Nem me fale.
– O que eu quero dizer é: você gostaria que sua filha estudasse
numa escola de terceira camada? – perguntei.
Oma continuou falando sobre as camadas e as classes. Me
desliguei e prestei atenção na entrevista de Petra. Ela estava com
outra mulher que reconheci imediatamente como a chefe de
Malcolm no Departamento de Educação.
É difícil não notar Madeleine Sinclair. Alta e de cabelo louro – tão
louro que é quase branco – puxado para cima em um clássico
coque francês, ela parece usar apenas terninhos azul-elétricos
ajustados às suas curvas, como só acontece com roupas feitas sob
medida. Na lapela direita há o mesmo broche de sempre, o
emblema amarelo da Campanha Família Mais Apta. Naquele dia
não era diferente, mas suas feições estavam mais afiadas, mais do
que nunca parecendo um gavião.
– Isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde – disse Petra ao
repórter. – Chegamos a um ponto em que o Sistema de Educação
Pública não podia mais cuidar da disparidade, não podia fornecer
uma educação geral. Quando o Departamento de Educação
começou com o programa de verificação, acho que enxerguei isso
como uma oportunidade. Quando eles precisaram de ciência para
reforçar o algoritmo Q, eu soube que o Instituto Genics seria o
primeiro a colaborar.
Oma parou de falar e ficou imóvel com a taça de schnapps a
meio caminho dos lábios.
O repórter na tela assentiu e disse à outra mulher:
– Dra. Sinclair, há certa reação negativa à sua política. Pode nos
falar sobre isso?
Madeleine Sinclair virou os olhos azuis para a câmera, como se
estivesse se dirigindo não ao entrevistador, e sim a alguém do outro
lado. Talvez estivesse falando comigo; talvez com a senhora junto
de mim. Quando abriu a boca, sua voz saiu paciente, como uma
professora cheia de experiência se dirigindo a uma criança confusa,
enfatizando as palavras.
– Sempre haverá reação negativa. É natural. A maior parte das
críticas vem de... – ela sorriu, e no sorriso havia uma mistura de
doçura e condescendência – certas facções. Facções que querem
acreditar que somos todos iguais.
Oma inspirou.
– O que foi? – perguntei.
– Nada. Me deixe escutar.
– O negócio – continuou Madeleine –, o ponto crucial, o que as
pessoas precisam entender, é que não somos todos iguais. – Ela fez
uma pausa e, quando o repórter ia interromper, Madeleine ergueu a
mão. – Vou repetir: não somos todos iguais. – De novo ela olhou
além da tela. – Digam, pais, vocês querem seu filho em uma sala de
aula com alunos que se desviam do padrão? Com crianças que não
têm capacidade para entender as lutas e os desafios que seu filho
de 5 anos enfrenta? Com professores cujo tempo é tão disputado
que todo mundo, todo mundo, acaba se prejudicando?
– Acho que ela não está se expressando bem – comentou Oma.
– O que ela está perguntando é se você quer que o seu bebê
Einstein fique em uma sala com vinte crianças normais. Elas podem
retardar o seu pequeno gênio ou interromper o progresso dele. –
Oma golpeou o controle remoto, errando os botões, apenas
aumentando o volume enquanto Petra e Madeleine assentiam e
davam reforços verbais uma à outra. – Essas mulheres são
malignas, Liebchen. Ah, meu táxi chegou. Pelo menos ainda
consigo escutar.
Uma segunda buzinada anunciou a viagem de Oma de volta
para a casa dos meus pais e eu a acompanhei até a porta. Nosso
abraço de despedida pareceu diferente: a mão dela nas minhas
costas, normalmente firme e quente, estava leve e, mesmo no
abraço, havia espaço entre nós. Deixou uma taça pela metade na
mesa de centro, esquecida. Ignorei seu canto da sereia e joguei o
schnapps na pia da cozinha, depois voltei à televisão.
Petra estava afirmando que devia seu sucesso à Campanha
Família Mais Apta.
– O que começou como um movimento popular virou uma bola
de neve – disse ela.
Mais parecia uma avalanche, isso sim. Tudo começou no centro
do país, naquela vastidão de antigas terras áridas e agrícolas em
que ninguém prestava atenção. Começou em algum lugar dos
salões da “esquerda caviar” de Boston e São Francisco. Começou
em algum lugar das salas de estar dos subúrbios, onde mães de
classe média alta se reuniam para compartilhar histórias de mamilos
doloridos e noites insones. E se espalhou. E sofreu mutações, como
um vírus, se entrelaçando e se multiplicando. Algumas poucas
vozes se transformaram em um coro, todas pedindo reformas na
educação. O que precisávamos, diziam, não era de mais programas
especiais nas escolas; precisávamos de mais esforço, mais
reconhecimento de que o problema não se resolveria apenas com
investimento financeiro.
Precisávamos ultrapassar a mentalidade do “tamanho único”.
– Só que o sistema não vai mudar se as pessoas que compõem
esse sistema não mudarem também – disse Petra. – Foi aí que
entrou o Instituto Genics.
Ela estava certa. Quando a Campanha Família Mais Apta
completou uma década, concursos que premiavam o Melhor Bebê já
eram realizados em todos os estados. Os temas eram diferentes,
mas todos se uniam em uma solidariedade nauseante. A região
central dos Estados Unidos estava cansada do que chamavam de
desprivilegiados com filhos demais; os bostonianos ricos queriam
escolas que concentrassem os recursos em suas próprias crianças
prodígio (embora até a “esquerda caviar” verbalizasse suas
preocupações com relação à superpopulação, só o fazia no conforto
de suas coberturas); a brigada dos bebês estava preocupada com
alergias, autismo, uma lista crescente de síndromes. Todo mundo
queria algo novo, alguma solução, algum motivo para se sentir
seguro com relação à sua pequena fatia da torta da raça humana
em um país que testemunharia uma explosão populacional em mais
uma geração.
Não demorou muito para as pessoas “embarcarem no trem do
bom senso”, como meu marido gosta de dizer. Claro, em troca de
grandes mudanças na esfera da educação, o público precisaria
fazer algumas concessões: os administradores, e não os pais, é que
sabiam das coisas. E o Governo Federal tinha a última palavra
quando se tratava de testar os estudantes e colocá-los em uma
escola adequada. Desde que as mamães e os papais tomassem
cuidados pré-natais, tudo correria bem.
Se não tomassem, haveria o sistema escolar em camadas: os
melhores, os bons e os medíocres.
Madeleine voltou à tela, como se eu tivesse acabado de lhe fazer
uma pergunta e ela tivesse decidido me responder:
– ... como eu estava dizendo, as escolas federais existem para
os jovens que precisam e merecem atenção especial. Por favor, não
pensem que queremos tirar seus filhos de vocês. Pensem que
estamos dando a eles a chance de florescer. – Ela assentiu do seu
jeito clássico para a plateia. – Querem flores na primavera? Deem a
elas o melhor solo que o dinheiro pode pagar. É disso que se tratam
as escolas federais.
Desliguei a televisão pensando em Oma, na reação dela, em sua
partida rápida, no abraço vazio. Talvez ela estivesse certa. Talvez
aquelas pessoas fossem malignas.
Malignas ou não, elas venceram. Gritaram, votaram e berraram
pedindo por políticas anti-imigração mais rígidas. Votaram contra o
Toda Criança Importa e contra a Lei dos Indivíduos com
Deficiências. Não que as pessoas não quisessem dar algum apoio
aos desfavorecidos ou deficientes. Queriam. Só não queriam que
eles estudassem com seus filhos.
O que elas não sabiam na época, e agora eu sei, é que você
pode se livrar das maçãs podres no cesto, mas isso só libera
espaço para uma nova camada de podridão esperando para ser
salva e limpa. Quando as Sarah Greens deste mundo descobriram o
que estava acontecendo, o sistema de camadas e as classificações
Q já eram lei.
De volta à janela, observei o ônibus verde de Freddie se afastar
através de um véu de chuva e me perguntei se teria feito algo
diferente dez anos atrás, se soubesse o que sei agora.
CINCO

ANTES

E
u estava entre o quarto e quinto mês de gravidez de Freddie,
começando a sentir aquela pontada desconfortável sempre
que abotoava os jeans, mas felizmente havia superado o
enjoo matinal que me impedia de comer qualquer coisa além de
torrada a seco sem correr para o banheiro. Mesmo assim, a
conversa que vinha pairando entre mim e Malcolm como sobras
indesejadas do jantar estava prestes a acontecer. De novo.
– Você sabe o que discutimos, El – disse Malcolm, depois que
coloquei Anne na cama.
Agora estávamos sozinhos, livres para conversar, como fazem
os casais casados e os parceiros de toda a vida, mesmo que eu já
não me sentisse uma parceira havia algum tempo.
– El?
– Eu escutei.
– E então? Vai fazer a coisa?
A coisa.
O termo abarca todo tipo de pecado, desde amassos no banco
de trás do carro depois do baile até sacrificar o cachorro quando ele
está velho e com demandas demais e até tirar um feto da barriga de
uma mulher. Sexo, eutanásia, aborto. Tudo convenientemente
reunido sob o guarda-chuva da coisa.
Nossa conversa alternava os assuntos repetitivamente. Uma
hora depois, Malcolm não tinha mudado de opinião nem dito nada
além de me lembrar do que havíamos discutido, de como seria
absolutamente egoísta colocar alguém no mundo apenas para vê-lo
lutar e sofrer enquanto tentava abrir caminho até um nível que não
poderia alcançar. Ele me mostrou imagens do futuro que continham
a realidade das notas Q e dos comitês de admissão nas
universidades, ilustrando que ninguém iria querer uma menina com
quociente abaixo da média.
– Ela vai ficar sem nada – argumentou Malcolm. – Ou vai
arranjar alguém como aquele garoto que costumava ficar atrás de
você na escola. Jack não sei das quantas.
– Joe – corrigi. – Ele era um cara legal, sabia?
– “Legal” não serve mais, El. O que importa é o Q. Você sabe
disso.
Eu sabia, mas não queria saber. Não queria pensar em Joe ou
no que tinha acontecido depois. Não queria mais pensar em testes,
em números Q nem na possibilidade de fazer aquilo de novo.
Malcolm se levantou da mesa e recolheu os pratos. Nossa
conversa estava terminada e eu fiquei sozinha, lendo uma longa
lista de serviços de administração de gravidez no verso do folheto
sobre os testes Q, enquanto Malcolm, que deveria ser meu parceiro
em tudo, pré-esterilizava os pratos do jantar, de costas para mim.
E não houve mais conversa. Na manhã seguinte fui à cidade,
para minha consulta em uma das clínicas pré-natais do Instituto
Genics. Isso foi bem antes de eles lançarem o Saúde da Mulher,
antes de Petra Peller levar as coisas a outro nível. Atrás de cerca de
uma dúzia de mulheres, paredes verdes e amarelas, cores
verdejantes e ensolaradas, cartazes de famílias perfeitas: cabelo
perfeitamente penteado, dentes perfeitamente brancos, pele
perfeita. Em nenhum lugar da sala havia fotografias de bebês,
apenas de crianças crescidas, e as pilhas usuais de panfletos
anunciando leite em pó ou oferecendo amostras grátis de fraldas
estavam perceptivelmente ausentes.
Tudo, desde a decoração até o material de leitura, era
direcionado a mulheres que jamais veriam uma sala de parto.
E havia as conversas:
– Se o Q for um centésimo de ponto abaixo de 9,5, eu me livro
dele – disse uma mulher pálida por trás da máscara de cosméticos
meticulosamente aplicados. – Fiz isso da última vez.
– Graças a Deus agora é bem rápido – retrucou a mulher de 20 e
poucos anos ao lado dela. – Não seria ótimo se as manicures
também fossem rápidas assim? – As duas gargalharam.
Enquanto elas trocavam números de telefone e e-mails,
insistindo que seus filhos gênios de 5 anos precisavam se encontrar
para brincar qualquer dia desses, a porta atrás da recepcionista se
abriu. Uma mulher saiu segurando um envelope junto à barriga
grande. Ela tinha fios grisalhos nas têmporas e finos pés de galinha
nos cantos dos lábios. No mínimo 40 anos, pensei. Talvez mais. A
Sra. Maquiagem Perfeita e a Sra. Manicure a analisaram de cima a
baixo, acompanhando com os olhos enquanto a mulher atravessava
a sala de espera e saía rapidamente.
– O que ela tem na cabeça? – perguntou a Sra. Maquiagem. –
Nessa idade...
– Eu nem tentaria depois dos 35 – disse a outra. – De jeito
nenhum.
– Agora andam dizendo que a partir dos 30 já é tarde demais.
Um dia desses eu estava lendo uma matéria e...
– Eu vi. Achei científica demais para mim.
Eu também tinha lido, porque uma noite Malcolm havia deixado a
revista aberta no meu travesseiro. Uma dica sutil em um momento
conveniente, já que havíamos tido mais uma conversa pós-jantar
sobre o declínio galopante da nota Q de um bebê à medida que a
idade da mãe avançava.
As mulheres pararam de conversar por tempo suficiente para me
espiarem do outro lado da sala. Olhares foram trocados, lábios se
franziram. Eu quase conseguia ouvir os pensamentos das duas:
Azar dela. Será que vai manter? Deve estar chegando aos 35. E
pode haver outros problemas. Sem falar naquele que começa com
D.
Não havia muitas coisas piores do que uma nota Q baixa, mas a
trissomia estava no topo da lista de resultados ruins.
Particularmente a síndrome de Down.
Quando a recepcionista me chamou, uma coisa aconteceu: meu
bebê, minha futura pessoinha a quem eu já havia atribuído um nome
e que eu amava, para quem eu já cantava músicas que minha avó
tinha ensinado, se mexeu no fundo da barriga. Pensei: Foda-se a
natureza. A criação importa mais. E eu sabia que tinha muito a
oferecer nesse quesito.
Por isso fui embora, do alto de minhas dezoito semanas de
gravidez, sem envelope com um número mágico dentro, sem
estímulo para uma decisão que acabaria sendo mais de Malcolm do
que minha. Passei duas horas daquela tarde procurando no Google
imagens de relatórios Q pré-natais e falsificando o que mostraria
mais tarde ao meu marido. Decidi que ele estamparia 9,3 em letras
grandes e prateadas. Um bom número. Um ótimo número. E foi a
primeira vez que fiz a escolha certa depois de uma série de
decisões ruins.
SEIS

E
stou entrando com o carro na garagem, mexendo nos
controles do limpador de para-brisa do Acura e xingando o
desembaçador que está pifado há meses, quando o ônibus
amarelo buzina. É um som diferente do pim leve mas penetrante
dos ônibus prateado e verde. É um som que nos abala, como
quando a gente está seguindo tranquila em uma estrada,
cantarolando uma música das paradas de sucesso ou um clássico
do vinil, e do nada o motorista de uma carreta buzina com força em
cima de nós. Na maior parte das vezes acho que eles fazem isso
sem o menor propósito.
Mas o ônibus amarelo parece ter motivo.
Ele avançou e não está mais parado diante da residência dos
Campbell, e sim na frente da casa colonial azul e branca onde
Judith Green mora. Buzina de novo.
Já estou atrasada, por isso ligo para a escola.
– Escola Prata Davenport – cantarola a secretária. – Aqui é Rita.
Em que posso ajudar?
Conto a Rita uma mentira sobre a bateria do meu carro e
pergunto se ela pode mandar uma substituta para minha aula de
biologia da manhã.
– Eles podem fazer o trabalho sobre mutação de cromossomos –
digo, pensando que no meu tempo os alunos do primeiro ano do
ensino médio ainda decoravam as fases do ciclo de Krebs e não
entendiam nada sobre teoria genética avançada. – Vou assim que
conseguir ligar o carro.
– Sem problema, Dra. Fairchild. Neste semestre sua turma do
primeiro ano está com um desempenho muito acima do exigido pela
avaliação de referência. – Ouço teclas sendo digitadas enquanto ela
verifica os números; uma pausa enquanto parece estar pensando no
modo mais gentil de me lembrar do custo do atraso. – E seu Q de
professor suporta a perda de alguns décimos. Que hora ruim para
ter problema no carro!
– É – murmuro.
Desligo e limpo a parte embaçada na janela do lado do motorista
com a manga da blusa enquanto a porta da casa dos Green se abre
alguns centímetros. A mãe de Judith sai primeiro, os braços
envolvendo o próprio corpo com tanta força que as mãos quase se
encontram nas costas. Está com um roupão atoalhado – que nem
de longe a protege contra a chuva – e seu rosto faz pequenos
movimentos de camundongo, como se estivesse batendo os dentes
de frio.
Só que hoje não está frio. Apenas chovendo.
Então Judith sai. Está usando calça jeans e um agasalho leve, e
não o uniforme carmim Harvard de sempre, com a saia muitíssimo
bem pregueada e o colete, a blusa cor de marfim recém-passada.
Sua mãe lhe entrega um cartão amarelo e volta para dentro por
alguns segundos. Quando retorna à varanda está carregando uma
mala, que coloca no chão para poder abraçar Judith. O roupão
atoalhado se abre e escorrega um pouco, mas Sarah Green não
parece notar.
O ônibus buzina de novo.
Sinto vontade de engrenar o Acura e correr na direção dele,
gritar com o motorista. Dê mais cinco minutos a ela, porra! Só cinco
minutos! Não adiantaria nada, assim como não adiantaria correr
atrás do Pegador de Crianças, implorando por mais tempo. Por isso
fico sentada com a manga da capa de chuva molhada depois de
enxugar a condensação na janela. Impotente.
Judith se afasta primeiro, pega a mala e desce pelo caminho de
tijolos, o mesmo por onde desceu desde que ela e Anne começaram
a estudar, o mesmo caminho em cujas laterais Sarah Green planta
begônias no verão e crisântemos no outono. Ela passa o cartão
amarelo na porta do ônibus, que se abre. Algumas formas turvas
através do para-brisa indicam que Judith não é a única a ser
apanhada nesta manhã – não consigo identificar mais nenhum
detalhe através da chuva. Mas imagino que não haja muitos sorrisos
dentro daquele ônibus.
Enquanto o veículo se afasta, engato a marcha a ré, saio à rua e
paro. Mesmo depois da mudança de clima, a escuridão paira sobre
nosso bairro como um cobertor pavoroso, principalmente graças à
chuva. O celular marca quinze para as oito, tempo suficiente para
chegar à escola antes do fim da primeira aula e antes que minha
nota Q caia mais um décimo.
Foda-se, penso, e dirijo na direção oposta, para a casa de Sarah
Green, passando pelo parquinho vazio com sua camada perfeita de
aparas de borracha ainda intacta do esfregar de Keds e Reeboks.
Mesmo sob vento e chuva, os balanços estão imóveis como
pêndulos quebrados, e o escorrega de metal é de um cinza opaco,
jamais tendo sido polido pelo traseiro das crianças. Não me lembro
de já ter visto uma criança dentro daquele cercado. As crianças
aparecem de manhã quando os ônibus chegam e depois no fim da
tarde quando os ônibus retornam. Entram correndo em casa e se
debruçam sobre os livros até o jantar. Se forem parecidas com Anne
e Freddie, comem como soldados famintos em um rancho e
estudam até a hora de dormir. A maioria é pálida, mesmo nos
meses de verão.
Às vezes acho que toda a infância desapareceu.
Paro o carro diante da casa colonial dos Green. Sarah está de
joelhos, o roupão aberto revelando uma camisola fina. Arranca os
crisântemos que plantou apenas algumas semanas antes, as mãos
cavando a terra, jogando lama e raízes para todo lado. Alguns
torrões de terra se grudam em seu cabelo e uma mancha marrom
suja seu rosto quando ela tenta enxugar as lágrimas.
– Sarah? – chamo, saindo do carro. – O que está acontecendo?
Ela não ergue a cabeça e não me responde diretamente, apenas
ceifa o solo, despedaçando os crisântemos até que o caminho de
tijolos fica coberto por uma camada de pétalas amarelas, folhas e
terra.
– Odeio a porra dessa cor. Odeio.
Sempre gostei de amarelo. É uma cor feliz, nem tranquila nem
esmagadora. Não salta aos olhos, como o vermelho, que só me
lembra perigo, dor e má notícia. Penso nas cortinas amarelo-
manteiga que Malcolm e eu penduramos no quarto das crianças
antes de Freddie nascer, no dourado da palha fresca que
costumavam dar aos cavalos antes que as fazendas se
transformassem em condomínios, gemas de ovo ensolaradas
sorrindo na frigideira nas manhãs preguiçosas de domingo.
De repente amarelo é a cor mais feia do mundo.
Finalmente Sarah interrompe a destruição do jardim e me
encara.
– É impossível ela ter caído tanto até 7,9, El. De jeito nenhum.
Ela fez duas matérias este ano com você, não foi? Biologia
avançada e anatomia. Judith é pontual, nunca fica doente e tira nota
máxima em tudo.
Assinto. Judy Green é a primeira da turma desde que a conheço.
– Ela é melhor do que Anne – respondo. – E Anne é boa.
Não estou contando vantagem, só declarando um fato. Se bem
que, se Judy perdeu mais de dois pontos, acho que usei o tempo
verbal errado.
Sarah se levanta, apertando o roupão em volta do corpo,
amarrando o cinto com as mãos sujas de lama. Aparentemente não
se importa com o fato de que parece ter chafurdado em uma
pocilga. Sua voz, normalmente suave, endurece.
– Então como ela perdeu os pontos Q? Me diga, El. Você sabia
de alguma coisa? Você escondeu alguma coisa de mim?
– Não. Claro que não.
Isso é cem por cento verdade. Passo metade do tempo na
escola fazendo os boletins semanais, preparando as provas,
compilando resultados e contatando os pais dos alunos que
chamamos de “limítrofes” – qualquer um que tenha tirado menos de
A nos exercícios da semana anterior ou que esteja em risco de
chegar a um Q abaixo de nove por outros motivos. Já ouvi falar de
professores das escolas verdes, como a que Freddie frequenta, que
perdem o sono por causa dos números. Um décimo de ponto faz
toda a diferença.
Foi como a professora de geometria de Freddie explicou na
nossa última reunião:
– Isso pelo menos dá uma chance a eles – disse ela, esfregando
os olhos. – E se eles não tiverem chance, dá a todo mundo da
família tempo para lidar com a situação. Podem passar os últimos
fins de semana juntos em piqueniques, visitando os avós, andando
de montanha-russa no parque... tudo que não fizeram nos últimos
anos. Assim, quando o Q cai abaixo de oito e o ônibus amarelo
chega, eles tiveram algumas boas experiências. Lembranças.
Nem sempre era assim.
Na primeira onda do sistema de camadas, as escolas amarelas
não eram muito diferentes das verdes e pratas. Ficavam mais longe
da cidade, claro, e não eram equipadas com laboratórios de ponta
nem tinham professores com montes de letras depois do nome,
exibindo seus títulos. E as crianças voltavam para casa toda tarde.
Até o mês passado, quando Madeleine Sinclair tomou a decisão
de mudar as escolas amarelas. De mudar o sistema.
– Vai ser melhor assim – revelou Malcolm depois que as
meninas tinham ido dormir.
Nós nos sentamos um em cada ponta do sofá, a uma tigela de
pipoca de distância. O controle remoto estava equilibrado no meu
colo e Malcolm estendeu a mão para aumentar o volume, a fim de
que ouvíssemos a coletiva de Madeleine.
– Você acha mesmo boa ideia? – perguntei entre os punhados
de pipoca.
Era a versão light, sem manteiga, sem sal, sem gordura, porque
era a que Malcolm preferia. Eu queria a gordura extra e o sal, mas
não valia a pena brigar por aquilo.
– Claro que é, El. Você tem ideia de como essas escolas ficaram
apinhadas? E não há professores suficientes.
– Elas só estão apinhadas porque as notas caíram – argumentei.
Eu não sabia se as provas tinham ficado mais difíceis ou se
havia outro motivo, mas de repente comecei a perder um aluno a
cada poucos meses em uma escola prata, e, pelo que eu ouvia,
aconteceu o mesmo com meus colegas.
Vestida com seu terninho azul de sempre, Madeleine parou
antes de responder a outra pergunta:
– O fato – disse ela, sorrindo para a plateia de jornalistas – é que
estamos enfrentando uma superpopulação nas instituições de
terceira camada.
Instituições, pensei. Que palavra escrota!
Aquela voz suave de educadora continuou, agora mais alta, já
que Malcolm tinha aumentado o volume outra vez.
– Estamos ficando sem terreno nas áreas urbanas. – Madeleine
balançou o coque louro. – Não. Isso não é totalmente verdade. Nós
já estamos sem espaço. – Ela silenciou uma interrupção por parte
dos repórteres, que levantaram a mão. – Nossas cidades estão
superpovoadas. Nossos subúrbios estão superpovoados. Mas... –
um sorriso se abriu em seu rosto – há um lado positivo em tudo.
Uma solução.
Um dos repórteres mais jovens perguntou o que poderia ser.
– Áreas agrícolas – disse Malcolm, assentindo ao meu lado.
– Nossas áreas agrícolas – respondeu Madeleine.
Malcolm jogou mais um punhado de pipoca na boca.
– Na verdade a ideia foi minha.
Olhei para ele.
– O que foi ideia sua?
Ele me silenciou com um aceno.
– Escute. Ela vai explicar.
Um close de Madeleine Sinclair, agora com postura de secretária
de Educação, preencheu a tela.
– Decidimos que o melhor caminho é dar às nossas crianças, a
todas as nossas crianças, o espaço de que precisam para crescer.
Deixei-a tagarelar sobre como as novas escolas amarelas teriam
mais espaço, mais comodidades, mais atividades, mais professores,
mais tudo. Pelo modo como Madeleine dizia, elas pareciam mais
colônias de férias do que escolas propriamente.
O único ponto negativo é que não estariam perto de casa.
– As famílias vão se acostumar – afirmou Madeleine, fugindo de
outra pergunta.
Coloquei a tigela de pipoca na mesa e me levantei, bloqueando a
visão de Malcolm da televisão.
– Vocês vão internar essas crianças? Onde? Em Iowa?
Malcolm me encarou.
– Bom, sim, El. E em outros lugares no país. Onde houver
espaço. Pense nisso como uma espécie de colônia de férias. Tirar
as crianças da cidade apinhada e levar para o ar puro. Elas vão
prosperar.
– Está parecendo mais uma colônia penal – falei, sem conter o
sarcasmo. – De qualquer modo, o que você quer dizer é “qualquer
lugar onde a terra seja barata”, certo? E está dizendo que isso foi
ideia sua?
Naquela noite fui para a cama cedo, esperando dormir antes que
Malcolm entrasse no quarto.
SETE

E
squeço Malcolm, Madeleine e todo o fétido Departamento de
Educação e volto ao que costumava ser o belo e florido
caminho de tijolos de Sarah Green. Parecia que uma mina
terrestre tinha explodido ali.
– Você me falou que ela estava indo bem! – grita Sarah. – Bem!
Todos os boletins que recebemos diziam que o Q dela era quase
perfeito.
– Na verdade era perfeito.
– Bom, não é mais. Por algum motivo. Agora ela está indo para a
porra do Kansas? – Sarah ri, mas não é por diversão. – Kansas.
Para uma escola federal com programação para o ano inteiro.
Cada palavra soa como se tivesse sido escrita em letras
garrafais. Nem tento interromper.
– Ah, claro, eles dizem que podemos visitá-la uma vez a cada
trimestre. Você tem alguma ideia de quantas licenças David e eu
precisaremos tirar para ir ao Kansas quatro vezes por ano? Isso se
conseguirmos folgas extras. Isso se quisermos ver o nosso Q dar
um mergulho de cabeça, e em consequência o Q do Jonathan
também iria sofrer, e ele já está em uma escola verde. Em troca de
um dia, Elena. Um único dia com nossa filha. Antes eles mandavam
as crianças para casa no Natal. Ano sim, ano não, mandavam no
Dia de Ação de Graças. No verão.
– Você fazia parte do conselho quando as novas programações
foram aprovadas – comento.
Sarah gagueja e fica quieta. Depois dá as costas e segue para a
porta de casa. Seu cabelo cai pelas costas, molhado, e o roupão
felpudo está encharcado como um gato afogado. Ela se vira
rapidamente e me encara com intensidade.
– Acho que agora você vai ter mais tempo para seus dois por
cento do topo, El. Boa sorte com eles.
Suas palavras me acertam como um tapa na cara, mas é um
tapa de rebate, um troco para o tapa que acabei de dar nela.
Eu me lembro de quando aconteceram as mudanças na
programação. Outra noite no sofá com Malcolm, outra entrevista
coletiva com Madeleine Sinclair em seu terninho azul, o coque louro
e o sorriso meloso que faz a gente se sentir de novo no jardim de
infância, pedindo que nos expliquem tudo do jeito mais simples
possível. Lembro que a redução do tempo de férias foi outra ideia
brilhante de Malcolm.
Também me lembro de pais como Sarah e David Green
apoiando-a.
Há uns cinco anos, a participação no sistema de camadas não
era exatamente compulsória. Em vez disso, chegava uma diretriz de
Washington. Uma sugestão para os pais prestarem atenção nas
necessidades individuais dos filhos, que era seguida por outra e
depois por mais uma dúzia, todas friamente clínicas e matemáticas:

Pais com filhos cujas notas Q estão abaixo de oito pontos são
encorajados a pensar nas escolas amarelas.
Os sistemas de camada superior podem não ser a melhor
opção para sua prole. Não pressione seus filhos!

Um painel de mais de vinte especialistas concluiu que a


separação por camadas beneficia todo mundo.

Claro, houve uma reação – reuniões de pais e mestres em que


pais furiosos se levantavam e interrompiam o tiroteio de sugestões,
ameaçando ensinar seus filhos em casa em vez de sujeitá-los à
pressão constante dos exames. A cultura de exclusão, de pais
saindo intempestivamente das reuniões e tirando os filhos das
escolas, começou a ganhar um apoio tênue.
Mas apenas em alguns bairros. Não no nosso. Não no de Sarah
Green.
E então as reuniões de pais e mestres foram suplantadas pelas
reuniões dos conselhos. As orientações se transformaram em
diretrizes; as diretrizes incluíam multas para a evasão escolar,
penalidades disfarçadas de taxas, efeitos de redução nas notas Q
dos irmãos. As exigências para o ensino em casa se tornaram mais
restritivas do que as leis sobre armas, e os formulários viviam
mudando. Uma linha deixada em branco ou um código anotado de
modo incorreto significava um carimbo vermelho do superintendente
da escola: Recusado – sem possibilidade de apelação. Às vezes
fico me perguntando onde eles conseguiam tanta tinta vermelha.
Mulheres como Sarah Green tinham seu próprio estilo, fazendo
campanha por uma forma diferente de pressão, com panfletos onde
se liam “Não contrate esse pai ou essa mãe inaptos!” ou “Nenhum
benefício para os antissociais!”. Com um número suficiente de
Sarah Greens do seu lado, quem precisa de leis?
Fico parada debaixo do guarda-chuva e vejo Sarah entrar em
casa com os ombros caídos sob o peso do sofrimento, da confusão
e do ódio. Ela se vira e sibila para mim:
– Aqueles ônibus amarelos não deviam vir aqui, Elena. Aqui,
não.
A porta se fecha com um estrondo e a fechadura estala, como
que dizendo que não preciso me incomodar em dar os poucos
passos até a varanda e tocar a campainha. Por isso volto ao carro,
xingo o desembaçador pela décima vez nesta manhã e amaldiçoo
todo mundo por levar essa bosta de superfilhos longe demais.
Enquanto me afasto, olho mais uma vez para a casa. De algum
modo, creio que não haverá um jardim no quintal dos Green no ano
que vem.
Mas depois penso: Talvez ela mereça esse destino.
OITO

N
inguém pergunta o que acontece com as crianças que
despencam – não há motivo. As que se formam nas escolas
amarelas arrumam emprego em algum supermercado e
trabalham em quiosques de bijuterias nos poucos shoppings de
tijolo e argamassa que restam. Administram lojas de conveniência e
fritam hambúrgueres agora que as cotas de imigração foram
cortadas de novo. Trabalham em subempregos que pessoas
formadas na faculdade preferem evitar, mas que mesmo assim
precisam ser preenchidos.
Vamos encarar os fatos: Sarah Green é uma esnobe. Não é
diferente dos Callahan, dos Delacroix e dos Morris que vivem mais
adiante na rua. São famílias que se isolaram em uma bolha de
privilégios, cujos pronomes prediletos são “nós” e “eles”, cujo bordão
é Vou escolher por você porque eu sei das coisas. Então, se algum
jovem da cidade é mandado para o equivalente a uma escola
profissionalizante, se um garoto do interior de Nebraska não
consegue entrar na universidade, esse é o tipo de coisa que
acontece com Eles, jamais com Nós. Se eu não compartilhasse uma
casa e uma cama com Malcolm, e se não me preocupasse com
Freddie, nem sei se teria conhecimento de que isso acontece. Afinal
de contas, quantas pessoas assistem às coletivas de Madeleine
Sinclair sobre a Educação? O presidente mal consegue atrair quinze
por cento da população para os grandes discursos que faz, então é
bem provável que a Rainha Madeleine não atraia praticamente
nada.
Enquanto entro na via expressa GW e atravesso a ponte para a
cidade, imagino se todos estivemos fazendo o velho jogo do “o que
os olhos não veem o coração não sente”. Fico me perguntando se
vamos continuar no jogo até que as peças comecem a mudar dos
tabuleiros Deles para os Nossos. Como aconteceu hoje de manhã,
quando a adolescente perfeita Sarah Green foi reduzida a um peão.
Já estou atrasada mesmo, então paro em Georgetown, estendo
o telefone para o medidor e pago por quinze minutos em um
estacionamento em um terreno de primeira. Tch-tching! Feito. Em
algum lugar nas ondas de rádio acima da minha cabeça ou nos
cabos de fibra ótica embaixo dos meus pés, 50 centavos são
transferidos de uma conta bancária para outra em outro estado.
Ninguém precisa sequer contar as moedas.
Na Starbucks, meu café com leite está esperando no balcão de
pedidos para viagem. Dois por cento de leite, meio descafeinado,
pouca espuma, um cubo de açúcar. Tamanho Grande, que na
verdade significa médio. Quando pego o café, a barista-robô
cantarola: Tenha um ótimo dia, Elena! Espero que sua bebida esteja
perfeita! Vejo você amanhã! Às vezes é um robô masculino. Eles
gostam de variar.
Há uma garota junto à janela, acomodada em um daqueles sofás
macios com montes de almofadas, as pernas dobradas sob o corpo,
lendo. É quase jovem o bastante para estar no ensino médio, mas
está aqui na Starbucks e não parece alguém que abandonou a
escola ou está matando aula. Uma daquelas “bíblias” de orientação
de carreiras, que deveriam revelar a profissão ideal para você, está
aberta na mesa, as páginas viradas para baixo, perto de uma pilha
de guias de cursos universitários e manuais de preparação para o
vestibular, que parece meio instável perto do café, escondendo
parcialmente o rosto dela. A garota tem um brilho nos olhos, do tipo
que vejo nos meus melhores alunos, mas sei que ela não tem
chance no jogo de admissões.
Está usando um cartão de identificação amarelo como marcador
de livro, e já faz alguns anos que nenhuma faculdade admite um
estudante de terceira camada, segundo o último relatório de
Malcolm na hora do jantar.
– Oi – cumprimenta ela, atraindo meu olhar quando chego à
porta.
– Oi.
– Eu era a melhor aluna da minha turma há dois anos. A número
um. Fui até oradora oficial da turma. Tudo bem que eu não estava
na melhor escola. O pessoal do meu bairro não frequenta as
melhores escolas. Mesmo assim, achei que ser a primeira serviria
para alguma coisa.
Estou muito atrasada. Mas deixo a porta se fechar de novo e
digo:
– Atualmente é difícil.
Ela fecha o livro com sua lista de estatísticas para tudo:
admissões, notas médias para entrar, demografia, bares próximos,
número de campos de atletismo, toda aquela bosta quantificável.
– O que você faz?
– Sou professora.
– Ah, é? Onde?
– Davenport.
A garota me examina, absorvendo tudo. O terninho, os sapatos
altos com correia nos tornozelos, a bolsa de couro de bezerro
pendurada no ombro.
– É, você parece uma delas.
– Não sei o que isso significa.
Ela ri.
– Branca. Rica. Perfeita. Aposto que você tem um Q superalto.
– É razoável.
Na verdade, é 9,73, mas não quero revelar isso.
– Enfim, estou tentando mais uma vez entrar em uma faculdade.
Depois disso não sei o que fazer. Tinha um emprego aqui, mas...
Bem, você sabe. – Ela faz um gesto de apresentadora de TV. –
Perdi há alguns meses. Mas ainda venho passar o tempo. – Ela
aponta para os livros. – Ler não é um passatempo popular no meu
bairro.
Há um intervalo enquanto espero que as palavras certas venham
à minha mente e outro quando percebo que não existem palavras
certas para essa garota ou essa situação.
– O que você quer estudar? – pergunto de um jeito monótono.
– Matemática – responde ela, fechando o livro. – Sou foda em
matemática. Pode me perguntar qualquer coisa.
Meu telefone emite um pim. É Rita, da escola.
– Desculpe... estou superatrasada.
Ela olha o café na minha mão.
– Sei.
– Sinto muito – digo, em todos os sentidos possíveis, sabendo
que ela não acredita, e abro a porta.
Lá fora os varredores de rua automáticos sugam folhas, gravetos
e lixo deixado na calçada da Wisconsin Avenue pelos universitários
na noite de quinta-feira. Os dois carros cujos donos se esqueceram
do dia de limpeza da rua recebem multas. Não são multas de papel,
mas em alguns minutos 100 dólares serão transferidos de contas
bancárias do dono do Jeep verde e mais 100 do dono do Mini
Cooper amarelo. Os drones de verificação de estacionamento e os
robôs de cobrança seguem em frente, subindo pela Wisconsin, em
busca de suas presas.
Toda essa automatização me faz pensar em onde será que eles
vão inserir a garotada das escolas amarelas daqui a alguns anos,
quando as últimas mercearias passarem a usar o autoatendimento e
os pequenos drones de entrega da Amazon chegarem às portas das
casas, largando os pacotes nas varandas. Clic, zuuum, pof. É
considerado progresso, e acho que veremos mais disso. Quem
sabe? Antes de eu me aposentar, eles podem automatizar até o
ensino.
– É uma competição – explica Malcolm em suas atualizações na
hora do jantar, quase sempre para Anne ouvir. – Você trabalha duro,
estuda, tem sucesso, consegue um emprego.
O problema aqui é de uma simplicidade infantil: os empregos
estão desaparecendo, mas as pessoas não. Quando entro na
garagem subterrânea e espero enquanto outra máquina escaneia o
adesivo do meu carro, me recebendo com um ensolarado – ainda
que eletrônico – Bom dia, Dra. Fairchild!, eu me pergunto onde
estarão todos os alunos das escolas amarelas daqui a dez anos.
Fico pensando no que faremos com as pessoas que não forem mais
necessárias.
NOVE

A escola onde eu leciono não é muito diferente da que frequentei


há quase um quarto de século. Existem salas, professores, livros
e alunos. Os alunos é que são parecidos demais, penso enquanto
coloco livros e fichas de presença na mesa da minha sala de aula e
levanto as persianas para vermos algum verde. Parecidos demais
uns com os outros e com o que eram no meu tempo.
Naquela época, o espectro do autismo não era bem um
espectro, e sim uma pergunta do tipo Que porra é essa de autismo?
– um alerta no radar do ensino médio, tão luminoso quanto alergia a
amendoim, doença celíaca, direitos de transexuais aos banheiros e
adolescentes queer eram no fim dos anos 1990. As mudanças
aconteceram aos poucos, uma gota de cada vez. Eu achava que na
época em que minhas filhas fossem adolescentes todo mundo já
teria entrado na dança da diversidade.
Estava errada. A diversidade jamais passou de um arrastar de
pés lento e desajeitado. Enquanto meus alunos entram para um
último período de estudo intensivo para as provas – o que
chamaríamos de revisão final, mas que todo mundo sabe que é uma
sessão de estudo intensivo de última hora –, vejo que são todos
iguais. Héteros, a maioria brancos, atléticos. E nunca vi um banheiro
receptivo a pessoas trans.
Os dias de prova são ao mesmo tempo corridos e lentos. Nesta
manhã, corremos. Faço a revisão com minhas turmas, preparando-
as para os PDAs. A sigla significa Padrões de Aprendizado, mas já
faz um ano que chamo de Porra do Azar.
Nunca em voz alta, claro. E nunca com Malcolm.
É a Porra do Azar porque há dois meses eu estava diante de
trinta rostos. Hoje encaro 27. As três carteiras vazias continuam lá,
espalhadas. Ninguém se preocupa em tirá-las do lugar ou juntá-las
no fundo da sala. Ou talvez o plano seja esse: deixar as carteiras
vazias bem à vista, as que eram ocupadas por Judy Green, Sue
Tyler e um garoto pálido como um fantasma chamado Antonio, que
era ótimo em química, mas não conseguiu se dar bem em teoria dos
números. Talvez as carteiras vazias estejam aqui como uma
cenoura pendurada na frente do cavalo.
Ou como um chicote.
Alguns professores estão piores do que eu. Nancy Rodriguez,
por exemplo, que ensina programação avançada, perdeu dois
alunos depois das provas do mês passado. Ouvi dizer que a aula de
química da Dra. Chen caiu de 24 alunos para apenas quinze. As
conversas sobre eles na sala dos professores acontecem em
sussurros: É melhor os garotos da Nancy passarem no módulo de
laboratório, ou ela vai acabar ensinando em uma escola verde.
Chen está arrancando os cabelos por causa dos fracassos. E assim
por diante. À medida que os alunos avançam, o gargalo se estreita.
Não que as escolas verdes sejam ruins – Freddie diz que seus
professores são ótimos, ainda que Malcolm não seja tão receptivo à
ideia de um corpo docente com mestrado em vez de doutorado. E já
vi os deveres de casa que Freddie traz toda tarde: pilhas de livros
didáticos em capa dura, instruções para projetos em feiras de
ciência trimestrais, anotações bibliográficas que fariam um calouro
da minha época universitária começar a preencher pedidos de
desistência de curso. O corpo docente é suficientemente bom para
que de vez em quando um aluno da escola verde tenha notas
excepcionais, termine com um cartão prata e seja transferido para
uma escola de primeira camada.
Mas na maior parte das vezes crianças em uma escola verde só
têm um caminho: para baixo.
Segundo o pessoal de Madeleine Sinclair, não devemos
enxergar a mudança como “para baixo”. Deveríamos enxergar em
termos de eufemismos: útil, adequado, focado no aluno.
“Poupar dinheiro” jamais é mencionado.
Assim, oriento meus alunos em genética mendeliana; atiro
palavras terminadas em -ose e -ise até que os olhos deles fiquem
vítreos, até que eu tenha certeza de que eles entenderam a matéria
de frente para trás, de trás para a frente e de cabeça para baixo, até
que pelo menos vinte mãos se levantem quando pergunto “Quem
está preparado para a prova?”. Mercedes Lopez, sentada a três
fileiras de distância e olhando nervosa a cada poucos minutos para
a nova carteira vazia, é a primeira. É minha única aluna europeia
que resta. As outras fugiram enquanto podiam.
A carteira de Judy Green permanece vazia na primeira fila, com
lápis, canetas e marcadores tirados do sulco no lado esquerdo, os
livros não mais na prateleira embaixo. No mês passado, quando
perguntei quem estava pronto para a prova, Judy foi a primeira a
erguer a mão.
No entanto, seu Q caiu mais de dois pontos, o suficiente para ser
mandada embora em um ônibus amarelo.
Mas não é isso que me incomoda. O que vem me devorando por
dentro desde hoje de manhã, desde que fiquei parada sob a chuva
ouvindo Sarah gritar acusações e me golpear com palavras
impensadas, é que, mesmo que Judy não tenha sido aprovada –
mesmo que ela tenha tido um branco durante a transcrição dos
códigos genéticos ou errado a diferença entre musculatura
intrínseca e extrínseca –, todos os testes dela teriam que estar
completamente em branco para que sua nota caísse tanto.
Meus alunos saem e um novo grupo entra, o pessoal da turma
de química da Dra. Chen, que estuda em um prédio do outro lado da
rua. Alguns são como Anne – confiantes, até mesmo arrogantes.
Sabem que vão passar. Outros estreitam os olhos, nervosos, como
se quisessem visualizar mentalmente toda a tabela periódica. Uma
garota – acho que o nome dela é Alice – rói as unhas. Quando tira a
mão da boca, vê-se a carne viva, vermelha, onde ela roeu até o
sabugo.
Hoje estou atuando como inspetora, e isso significa que não
posso falar com os alunos, a não ser para recitar as regras, que sei
de cor:
Vocês têm uma hora.
Não podem falar com nenhum outro aluno.
Não podem sair da sala por nenhum motivo.
Quando acabar o tempo, deixem todos os materiais de escrita
sobre a mesa. Se não fizerem isso, dez pontos serão
automaticamente deduzidos de sua nota.
Antigamente eu acrescentava uma frase extra sobre colar. Não é
mais necessária.
Colar era uma forma de arte. Conhecíamos todos os truques: os
chicletes com fórmulas de química escritas, dissolvidas por dentes e
saliva se um professor passasse perto; datas e nomes de
presidentes escritos nas coxas embaixo das saias pregueadas; o
“Método Invisível” de algum estudante gênio, que escrevia as
anotações com tanta força que marcava a folha de baixo e depois
descartava a de cima. Havia papeizinhos enfiados nas meias que
iam até os joelhos, cópias da prova do ano anterior compradas com
o dinheiro do lanche poupado por vários alunos, calculadoras pré-
programadas para resolver a mortífera equação de segundo grau.
Não existia uma forma de colar que ainda não tivesse sido utilizada.
Então talvez a competição não seja uma coisa tão nova, mas
hoje em dia não existe mais cola, desde um incidente alguns anos
atrás.
Não sei direito os detalhes. Houve boatos, naturalmente, sobre
as duas mulheres da Campanha Família Mais Apta, que passaram
uma hora a portas fechadas com o garoto que guardou anotações
microscópicas dentro da haste de uma lapiseira. Nancy Rodriguez
disse que ele mordeu uma delas. A Dra. Chen me contou que ouviu
choros atrás da porta. O que sei, e o que preferiria esquecer, é que,
antes de os pais do garoto chegarem à escola, o Q dele tinha sido
recalculado e uma máquina cuspiu um cartão amarelo.
Não o vimos de novo. E não houve mais nenhum incidente
envolvendo cola.
Um a um os alunos ocupam as carteiras. Entrego folhas de papel
pautado, um lápis e uma caneta a cada um. Depois recito minhas
falas e começo a lenta marcha entre as fileiras, arrastando os pés
pela sala e transferindo o peso do corpo de um pé dolorido para o
outro. Serei a inspetora em mais quatro provas até o fim do dia, e
quando chegar em casa meus tornozelos estarão inchados.
Quando chegar em casa, vou descobrir como foi o dia de
Freddie. Não posso dizer que estou ansiosa por isso.
DEZ

O jantar é um desastre.
Sempre pedimos comida chinesa nos dias de prova porque a
ideia de ficar diante de um fogão mesmo que seja apenas para
ferver a água e preparar um macarrão me provoca arrepios. A mesa
está atulhada de caixinhas brancas. Arroz, berinjela temperada,
arroz, frango do General Tso, arroz, rolinho primavera, uma coisa
chamada Delícia Família Feliz e arroz outra vez. Depois de Malcolm
mencionar pela terceira vez o vaso de lírio-da-paz quebrado, tudo
que Freddie diz é:
– Alguém pode me passar o molho, por favor?
– E então? – pergunta Malcolm. – Como vai a escola?
Ele pega mais um pouco do famoso e onipresente frango do
General Tso e põe em seu prato, dividindo entre ele e Anne no
momento exato em que Freddie estende a mão para a caixa de
papel.
– Ah, desculpe. Você também queria?
Freddie apenas me encara, derrotada. Em noites assim, é como
se Malcolm tivesse apenas uma filha.
Anne para de relembrar cada minuto das cinco provas que fez
nesta tarde e empurra o frango na direção da irmã. É um pequeno
ato de desafio, mas, mesmo assim, meu coração falha uma batida.
– Anda, Freddie. Primeiro você.
– Tenho um trabalho da aula de governo para a semana que
vem, pai – responde Freddie.
Malcolm não comenta nada até que eu o chuto por baixo da
mesa. Então pergunta:
– Precisa de ajuda?
– Talvez. Só para ter umas ideias. A gente precisa projetar algum
tipo de sistema social.
Como se já não tivéssemos feito isso, penso.
– Preciso que seja mais específica – diz Malcolm, de forma seca.
Se Anne tivesse sido tão vaga quanto Freddie, receberia um
sorriso provocador.
Ignoro meu marido e instigo minha filha:
– Continue, querida.
Mas ela se mantém calada. Em vez disso, Anne parte em sua
defesa:
– Eu tenho o mesmo trabalho. É sobre instituições sociais. Sabe,
tentar pensar em locais onde colocar todo mundo baseado nas
notas Q. A Campanha Família Mais Apta está patrocinando e há um
prêmio para o melhor projeto. – Ela sorri. – Na verdade, estamos
concorrendo a dois prêmios este ano. A vencedora ganha um
estágio de verão na sede da CFMA em seu estado natal.
– E se um garoto ganhar? – pergunto, arqueando a sobrancelha.
É como se Anne não tivesse cogitado não tirar o primeiro lugar.
– Então é no estado natal dele. Mas só se ele ganhar. – Ela
pisca para mim.
– Essa é a minha melhor garota – elogia Malcolm.
Freddie afunda mais alguns centímetros na cadeira.
Chuto o pé dele por baixo da mesa, desta vez com mais força, e
Malcolm se vira para me lançar um olhar tipo “por que isso?”. Meu
Deus, ele não tem a mínima noção. Ou talvez tenha. Talvez ele não
se importe que Anne receba noventa por cento de sua atenção
enquanto Freddie olha para o prato, usando o hashi para empurrar
grãos de arroz em padrões abstratos, um de cada vez. Ela faz uma
tentativa débil de interromper, recebe um “Espere um minuto,
querida, estou ouvindo Anne” e desiste.
– Malcolm – digo. – Que tal deixarmos Freddie contar como foi o
dia dela?
Freddie fica pálida, balança a cabeça e volta a enfeitar o prato
com mandalas de arroz. Malcolm parece agradecido.
– Aposto que o dia dela foi ótimo – afirma ele, passando outro
rolinho primavera para Anne. – Se ela for como a irmã, passou sem
problemas. – Ele não está falando com Freddie, e sim sobre ela. Por
isso lhe dou um terceiro chute por baixo da mesa. – Certo,
Frederica?
Malcolm nunca gostou do apelido de nossa filha, algo que ele
deixa claro toda vez que se dirige a ela.
– Claro, pai – retruca Freddie em uma voz mecânica, e então: –
Podem me dar licença?
Ela não espera uma resposta antes de empurrar a cadeira para
trás e andar pelo corredor até seu quarto. Não, “andar” não é a
palavra certa. Ela se esgueira, escapole, se esquiva. Algo que um
animal noturno e primitivo faria.
Anne se levanta e corre atrás dela.
– Já volto, pai.
Quando ela se afasta, balanço a cabeça para ele.
– Parece até que Anne saiu da sua barriga dezesseis anos atrás.
Enfim, o ônibus amarelo veio hoje – conto, prestes a dar uma
mordida em um rolinho primavera.
– Hã.
– Só isso? “Hã”?
Ele dá de ombros.
– Pensei que tivesse contado, El. Houve algumas mudanças na
programação. Saiu um memorando há algumas semanas. – Ele
pega o rolinho da minha mão. – Melhor você não comer outro
desses. São gordura pura.
O que quero dizer é: Tire as patas da porra do meu rolinho. Em
vez disso, volto ao assunto inicial.
– Você ao menos se importa em saber quem foi levada?
– Quem?
– Judith Green, que mora aqui na rua.
Malcolm arregala um pouco os olhos, mas fora isso sua
expressão não muda.
– Você sabe quem é. Judy. A melhor amiga da Anne desde os 5
anos.
– Ah. Certo. Acho que lembro.
Pego o rolinho de volta e cravo os dentes na massa gordurosa,
só para mostrar a ele que não estou nem aí.
– Você acha que se lembra dela. Pelo amor de Deus, Malcolm,
ela dormiu aqui na semana passada. Preparamos panquecas de
chocolate no domingo de manhã e as garotas pediram que você as
ajudasse com o dever de casa. Porra, não venha me dizer que acha
que lembra.
Anne volta.
– Lembra o quê?
– Olhe o linguajar, El. O linguajar. – Malcolm revira os olhos para
mim.
– Não venha me fazer sermão. – Agora estou furiosa como não
ficava há um bom tempo.
Paro, respiro fundo algumas vezes e esfrio a cabeça antes de
voltar a falar:
– Não tem como Judy ter sido reprovada no mês passado. De
jeito nenhum.
– Espere um segundo – diz Anne. – Judy não passou? É
impossível. A Judy é foda. Ah. Desculpe, mãe. É muito boa. – Não
há nenhum sinal de reprovação por parte do pai dela. – Enfim, não
tem como Judy ter levado pau.
Anne sai da cozinha com o iPhone na mão, os dedos dançando
feito loucos no teclado.
Quando estamos sozinhos de novo, olho furiosa para o meu
marido.
– Como eu disse.
E o que Malcolm faz? Dá de ombros. Só isso. Ombros para
cima, ombros para baixo. E pega outro pedaço de berinjela com o
hashi.
Eu amava o homem que está sentado à minha frente. Amava
sua espirituosidade, sua inteligência e sua atitude de sempre vou
cuidar de você. Eu o admirava. Troquei alguém por este homem,
alguém que eu achava que queria, e ainda acho.
Pensando bem, foi uma troca de merda.
ONZE

Antes

E
u estava no meu apartamento em Yale, no último sábado de
setembro, depois de terminadas as aulas e pronta para os
dias livres. A Nova Inglaterra tinha começado a ficar bonita
com seus mosaicos de folhas, e eu havia planejado pegar o carro,
sair da merda de New Haven e passar o fim de semana mais ao
norte. Jamais tivera a intenção de acordar e entrar correndo num
minúsculo banheiro ladrilhado de metrô.
Uma hora mais tarde, depois de uma ida rápida à farmácia da
esquina, eu ainda estava naquele banheiro, sentada na louça fria do
vaso, sacudindo o teste de urina, como se ao sacudi-lo pudesse
arrancar uma daquelas linhas azuis do visor, transformando um
bebê em um nada.
Eu tinha terminado com Malcolm no início do verão, em parte
porque minha mãe me convencera de que um tempo me faria bem,
em parte porque eu não queria que meu primeiro namorado fosse
meu único e eterno namorado. E em parte por causa de Joe.
Nós crescemos juntos, jogávamos bola na rua e fazíamos bolos
de lama em uma vala atrás da casa dos meus pais. Joe era normal,
a não ser pelo fanatismo por qualquer coisa que tivesse um motor
de combustão interna. Quando tiramos a carteira de motorista, ele
consertou um Mustang velho, um destroço que resgatou do ferro-
velho do Sr. Cooper. Aos 17 anos, Joe tinha o carro mais legal da
cidade. Tinha também a menor média de pontos da nossa escola, e
suas notas no vestibular podiam ser superadas por um ouriço.
Ele não fazia exatamente o tipo universitário, mas era um cara
legal, me levava ao cinema jurando que não era um encontro,
comprava baldes de pipoca com manteiga artificial enquanto algum
vilão de filme adolescente, com navalhas no lugar das unhas, surgia
em sombras na telona. Aos 16 anos eu tinha mais interesse em
museus do que em cinema, mas deixava Joe me convencer a ir à
reprise de filmes antigos de sexta-feira à noite, quando ele
novamente jurava que Não. Era. Um. Encontro. Até que ele tentou
transformar em um. Certa vez ele tremeu do meu lado quando
Freddy Krueger entrou de forma ameaçadora nos sonhos de
inocentes adolescentes da Elm Street, e percebi que Joe também
não gostava do filme. Mas eu sabia por que ele o havia escolhido.
Então ficamos sentados lá, afundando nas poltronas, encostados
um no outro, rindo das partes absurdas e ofegando diante do horror
piegas.
No dia seguinte contei a Malcolm sobre o filme, deliberadamente
omitindo o quase romance desajeitado. Ele revirou os olhos e
perguntou por que eu estava perdendo tempo com aquele cara, com
alguém que jamais seria nada além de um mecânico chinfrim, com
alguém que só me faria sofrer. Ele enfatizava esse argumento
parando sempre para abastecer no posto onde Joe trabalhava, e o
assunto nunca mais surgiu. Eu via a graxa preta embaixo das unhas
de Joe, o dragão tatuado serpenteando nos bíceps, o futuro dele
indefinido e não muito desejável.
Joe ainda telefonava, mandava e-mails, aparecia quando eu
vinha nas férias da faculdade. Ele me ajudou a passar por um
período ruim de depressão, passava horas ao telefone comigo
quando a ansiedade das provas não me deixava dormir, contava
piadas idiotas nas noites em que eu achava que nunca mais ia
sorrir.
Naquele verão, tudo mudou.
Eu tinha acabado de retornar de Connecticut, temporariamente
de volta ao meu quarto da infância. Maryland já estava pegajosa de
umidade e a casa dos meus pais parecia abafada se comparada à
primavera da Nova Inglaterra. Winston, nosso cachorro, também
sentia isso, por isso saí para passear com ele, seguindo pela
calçada arborizada na direção oeste.
Ouvi os oito cilindros do Mustang antes de vê-lo. Era um som
legal, um rosnado leonino do qual me lembrava bem.
– Ei! Fischer! – gritou a voz. Eu também me lembrava bem dela.
– Ei, você! – exclamei de volta, acenando.
Joe parou e puxou o freio de mão, silenciando o rosnado,
deixando a fera descansar, e caminhamos com Winston. Então ele
fez uma coisa estranhíssima.
Ele me beijou.
O que eu fiz na hora foi mais estranho ainda: beijei de volta. E
não como beijava Malcolm, os lábios ligeiramente separados, a
língua recolhida, os olhos abertos. Não, mergulhei fundo e faminta,
sentindo o sabor dele. Trocando baba, como as crianças diriam.
Como Malcolm jamais permitiria.
– Por que você fez isso? – perguntei, me afastando, tentando
colocar algum espaço entre nós.
– Só queria saber como era beijar você – respondeu ele.
– Por quê?
– Sei lá. – Joe se inclinou mais para perto. – Talvez eu goste de
você.
– Do que você gosta em mim?
– Bom, você é linda – disse ele, os lábios muito perto dos meus.
– Não é o bastante.
Ele ainda estava inclinado e eu recuei, mantendo distância. A
beleza física não devia incitar decisões. Malcolm enfatizara essa
frase, palavra a palavra, durante o ensino médio.
Joe gargalhou.
– Não é o único motivo, El. E não quero dizer que você é linda
somente por fora.
Uma mulher vinha se aproximando pela calçada, e nós fizemos o
que as pessoas fazem quando são pegas no flagra, separando-nos
instintivamente e adotando uma pose artificial que entregava tudo. A
mulher, que eu já tinha visto antes por ali, passou correndo, mas
não antes de lançar um sorriso na minha direção.
E, como ímãs, Joe e eu nos reaproximamos.
– Você gosta de lá? – perguntou ele. – De Yale?
Meus pais e minha avó tinham feito a mesma pergunta apenas
algumas horas antes. A resposta que dei a Joe foi a mesma:
– Acho ok.
– Então por que ficar?
Estávamos lado a lado, ombros e pernas se tocando, recostados
contra uma cerca, observando Winston cavar o chão. O dedo
mindinho de Joe se enrolou no meu e o apertou. Eu queria
conversar com ele sobre a pressão, sobre as noites que passava
sozinha na biblioteca, desejando ter alguém para me levar ao
cinema. Mas não precisava.
– Não volte, El – pediu ele baixinho.
Eu não soube direito se ele estava falando de Yale ou de
Malcolm.
Joe podia não ter tirado notas boas no ensino médio, e provas
de admissão na universidade lhe eram tão úteis quanto patins são
para um gato, mas ele não era idiota.
– O país inteiro está ficando maluco – disse ele. – E vai ficar pior
se ninguém descobrir uma saída. Venha comigo para as ilhas.
Vamos arranjar um barco. Talvez dois. Talvez umas duas crianças
junto com o barco.
Não tomei nenhuma decisão sobre largar a faculdade e escapar
para St. Thomas, mas deixei Malcolm por um tempo. Quando vi
novamente o Mustang de Joe, curvilíneo, vermelho e liso com o tipo
de polimento e cera para o qual só rapazes têm tempo, eu estava no
banco de trás. E beijar não foi a única coisa que fizemos. Era um
carro pesado, mas não tanto quanto o corpo de Joe em cima do
meu, nem tão pesado quanto minha respiração, nem tão pesado
quanto a chuva na capota de lona ou os trovões que explodiam no
mesmo ritmo que nós. Fomos devagar e rápido, depois mais rápido
e mais devagar. Depois de duas vezes, paramos e eu fiquei deitada
com a cabeça no peito nu de Joe, ouvindo seu coração como se
fosse o único som em um universo imóvel e silencioso.
Então fizemos tudo de novo porque, quando a gente é jovem e
está loucamente apaixonada, o corpo tem a capacidade de se
reajustar quantas vezes quiser ou precisar.
Em setembro voltei para o norte, dirigindo meu pequeno VW
Rabbit, sentindo falta do Mustang e da firmeza do corpo de Joe. E
agora estava ali, em um banheiro ladrilhado de metrô segurando um
teste com a cruz azul acusadora. Se eu o virasse, a cruz se
transformava em um X, e imaginei que toda a minha vida estava
sendo riscada.
Joguei o teste no lixo, vesti o pijama e voltei para a cama,
pensando em ligar para minha mãe. Quando estendi a mão para o
telefone, ele tocou. O identificador de chamadas anunciava
Malcolm. Deixei cair na caixa postal e dormi.
Três horas depois ouvi a mensagem.
Ele estava vindo passar o fim de semana.
Ia me levar a Cape Cod.
Queria fazer uma pergunta.
No primeiro sábado de outubro eu já tinha cuidado de tudo. Foi
mais fácil do que pensei ficar deitada na maca da clínica estudantil,
vendo a anestesista olhar nos meus olhos e dizer algo vagamente
parecido com Ela está quase apagada. Sem me preocupar mais
com que tipo de criança um mecânico e uma garota que abandonou
a faculdade poderiam gerar.
Joe nunca soube de nada disso. Só soube o que eu escrevi na
carta, a carta que ele nunca respondeu.

Decidi me casar com Malcolm. Sinto muito. Eu te amo, Joe.


Sou louca por você. Mas acho que não temos futuro.

Rasguei o papel e reescrevi, tirando tudo que estava depois de


“sinto muito”.
DOZE

–F
reddie me expulsou – reclama Anne quando a encontro
no corredor, no meio do caminho entre o quarto dela e o
da irmã. – O que ela tem?
Eu quero explicar que o problema é o déficit de empatia do pai
dela, mas, em vez disso, peço que Anne ajude Malcolm com a louça
e sigo pelo corredor. O que vejo no quarto da minha filha mais nova
me faz hesitar.
Freddie está arrumando uma mala.
É a velha mala verde, a Samsonite que Malcolm e eu levamos
para a lua de mel nas Bermudas. Não sei onde Freddie a encontrou.
Seu quarto, que costuma estar milimetricamente arrumado, se
transformou em uma área caótica, no nível Nova Orleans pós-
Katrina. Alguns trechos do carpete felpudo espiam pelos poucos
espaços entre roupas de baixo, jeans, laços de cabelo, meias de
inverno e quase todas as outras coisas que viviam em uma gaveta,
um armário ou uma cesta. Estou a ponto de ligar para a Defesa
Civil.
– Freddie? – chamo, com todo o cuidado para manter a voz
estável. – O que você está fazendo?
Como se eu precisasse perguntar.
Ela se senta no chão e começa um processo de desdobrar e
dobrar, colocando os vincos das calças no lugar exato, medindo a
distância entre as mangas das camisetas até ficar satisfeita com a
simetria. O tempo todo está se balançando ao ritmo de um som
inaudível. Na verdade não é inaudível; há música tocando na
cabeça de Freddie, em um canto escuro que não consigo alcançar.
O melhor a fazer, quando ela está assim, é me sentar diante dela.
Então faço isso. Começo a me balançar, acompanhando seu
ritmo, como um metrônomo espelhado de Freddie. Depois de alguns
minutos, ela volta para mim, volta para o agora.
– Eu levei pau – comenta em um tom monótono.
– Você não sabe, querida.
Mas alguém sabe. Enquanto nos entupíamos de comida chinesa
na sala de jantar, uma máquina ou um conjunto de máquinas no
Departamento de Educação registrava milhares de notas. Os Qs
estão sendo verificados neste momento, associados aos números
de identificação dos estudantes. Logo celulares e tablets vão
começar a apitar. Algumas famílias vão comemorar. Outras
comprarão uniformes novos no fim de semana. Outras vão fazer
planos de última hora para visitar parentes, arrumar as roupas
prediletas em malas antigas e passar o último domingo juntos
chorando.
Tudo isso deveria ser bom para as crianças. Bom para as
famílias. Bom para a sociedade.
Eu me inclino e a abraço. Ela está rígida. Sinto como se
estivesse segurando uma boneca.
– Venha – pedi. – Vamos tomar sorvete.
Isso provoca um pequeno sorriso no rosto de Freddie e os olhos
dela brilham. Bom. Em algum lugar embaixo daquela casca rígida
está a minha menininha.
– Chocolate? – pergunta ela.
– Claro. E baunilha, morango e biscoito. O que você quiser,
querida.
A coisa que mais amo no mundo acontece em seguida: o
pequeno sorriso de Freddie se abre.
Então todos os telefones começam a apitar.
TREZE

E
stou bem.
Estou bem estou bem estou bem estou bem.
Se eu disser isso muitas vezes, se tornará verdade, certo?
Malcolm e Anne estão na sala de estar, tomando sorvete. Bom,
na verdade Malcolm está tomando iogurte orgânico sem gordura
adoçado com sucralose enquanto Anne devora colheradas
comemorativas de sorvete de chocolate crocante misturado com
morango. Nenhum dos dois sabe o que eu sei.
O problema, acho, é que tenho um marido tão intensamente
isolado em sua bolha de superinformação que ele não consegue
imaginar qualquer mundo fora desse casulo. A ideia de fracasso na
nossa família não entra nas equações de realidade de Malcolm, e
Anne vive sob o tipo de ilusão em que só os adolescentes
conseguem viver.
Isso vai mudar.
– Malcolm.
Ele ergue os olhos e não preciso dizer mais nada.
Mas quero. Quero dizer um milhão de palavras, todas
começando com M e terminando com ERDA.
– Impossível – retruca ele.
As possibilidades só são mensuráveis antes de um resultado,
penso, mas não digo nada, apenas lhe entrego meu celular com a
mensagem do Departamento de Educação e espero enquanto ele
lê. Não demora muito – o departamento é implacavelmente
parcimonioso em seus avisos. O nome da criança, seu número de
identificação, a camada atual em que se encontra e um único
número que altera toda a vida: 7,9.
– É um erro – refuta ele, levantando-se do sofá. – Vou dar um
jeito.
– Faça isso – peço.
Em cinco segundos ele está ao telefone, e fala por mais meio
minuto. Perto do fim, as únicas palavras que diz são monossílabos
como “Ah”, “Certo”, “Bem”.
Desvio os olhos dele para o corredor que dá no quarto de
Freddie e de volta para Malcolm. É o mesmo de quando o conheci,
mais de 25 anos atrás. O mesmo rosto anguloso e frio; os mesmos
ombros retos, como se uma bola de demolição fosse acertá-lo e ele
planejasse contra-atacar com a mesma força; o mesmo cabelo
louro-escuro ondulado emoldurando o rosto, ainda que haja alguns
fios grisalhos nas têmporas e na nuca. As lentes dos óculos ficaram
um pouco mais grossas neste último quarto de século. Fora esses
detalhes, Malcolm é o mesmo.
Eu é que devo ter mudado, porque quando o vejo agora não
enxergo nada para amar.
– Precisamos dar um jeito nisso – afirmo. – Agora.
Ele desliga o telefone e eu o encurralo na cozinha. Malcolm me
dá as costas e finge estar limpando uma mancha de gordura na
bancada.
– Malcolm? Você me ouviu? Precisamos dar um jeito nisso.
Eu cresci numa família de homens e mulheres quietos, pessoas
que não gritam umas com as outras nos jantares de domingo, não
tentam calar a outra para que seus argumentos sejam ouvidos. Na
maior parte das vezes, situações tensas pedem vozes calmas e
nervos firmes.
O silêncio absoluto de Malcolm, por outro lado, não é nada
calmante. Esse muro de pedra é duro e violento. Há espaço demais
para dúvida e especulação.
Quando ele finalmente responde, é quase inaudível.
– Não vamos dar um jeito em nada, Elena.
O fato de ele usar meu nome inteiro devia ser um sinal de que a
conversa terminou. Não me dou por vencida.
– E se fosse o filho do presidente? Ou de um senador? Eles
ficariam mesmo quietos olhando o filho embarcar em um ônibus
amarelo daqui a dois dias?
Minhas indagações o abalam e seus olhos se estreitam.
– Às vezes as regras são dobradas.
– Quer dizer, quebradas.
– Dobradas, Elena. Todo mundo é tratado igualmente.
Encho uma taça de vinho até a borda e bebo dois dedos. Talvez
esteja criando coragem alcoólica. Talvez queira irritar Malcolm.
– Babaquice. Não me venha com essa bosta de “todo mundo é
igual”.
Anne entra na cozinha com uma tigela de sorvete derretido que
mais parece uma sopa.
– O que está acontecendo? – pergunta ela. – Estão tendo outra
briga de casal?
Ela consegue arrancar um sorriso azedo por parte do pai e um
suspiro exasperado de mim.
– Nós vamos embora – respondo, mudando de assunto. Que
Malcolm corte essa bola que eu levantei. Que ele deduza a quem se
refere o “nós”.
– O quê? – Anne cospe a palavra. – Vamos embora para onde?
– Ela não espera minha resposta. – Eu tenho o baile de volta às
aulas daqui a duas semanas. E o clube de matemática. E as finais
da equipe forense. E...
Eu a interrompo imediatamente.
– E sua irmã não vai para um internato federal. Ponto. Fim.
Anne abre a boca, o maxilar sobe e desce, sobe e desce, mas
nenhum som é emitido.
– Vá para o quarto, Anne – ordena Malcolm, e então se vira para
mim, pondo a mão no meu braço. Não é um toque gentil, e sim um
peso restritivo. – Você tem ideia de quanto meu trabalho seria
prejudicado se fôssemos embora? Eu trabalho na porcaria do
Departamento de Educação.
– Eu estava falando das meninas e eu.
O que sai de sua boca é uma risada que parece um latido, uma
negação explosiva do que eu declarei.
E então, menos explosivo e mais sinistro:
– Você não vai tirar minha filha de mim.
Filha. Singular.
– Você não quer mais Freddie aqui, não é? – indago. – Você não
quer Freddie aqui.
Malcolm não diz nada, o que significa que está dizendo tudo.
Afasto a mão dele do meu braço e engulo todo o vinho da taça.
Malcolm me encara sério e eu sirvo mais um pouco, até a garrafa
ficar quase vazia e a taça quase transbordar de novo.
– Você sabe quanto nossa família vai ser prejudicada se você
não der um jeito nisso, Malcolm?
Mas minhas palavras não têm força, e Malcolm apenas sorri.
CATORZE

D
eixo Malcolm fumegando na cozinha e vou para o quarto de
Freddie com minha taça de vinho e uma montanha de
sorvete de chocolate e baunilha. Se ao menos fosse fácil ir
embora! Sair pela porta com algumas malas, um cartão de crédito e
as chaves do Acura. E com Freddie e Anne a tiracolo.
Hoje em dia nada é fácil. A Campanha Família Mais Apta criou
obstáculos inesperados, o que é prova do meu otimismo. Ou da
minha idiotice. Quem sabe? Talvez o otimismo e a idiotice sejam
irmãos.
Manchetes das últimas décadas lampejam à minha frente na
escuridão do corredor:

O DESEMPENHO DOS ALUNOS MELHORA DESDE A


INTRODUÇÃO DO SISTEMA DE CAMADAS

NÚMERO DE DIVÓRCIOS CAI DRASTICAMENTE GRAÇAS A


AUMENTO DO TEMPO DE ESPERA – AS CRIANÇAS OPINAM!

EDUCADORES ESTÃO MAIS SATISFEITOS NO TRABALHO, DIZ


NOVO ESTUDO
O PAÍS CAMINHA PARA O MAIOR QUOCIENTE DE FELICIDADE
EM MAIS DE UM SÉCULO

Q PRÉ-NATAL + LIBERDADE REPRODUTIVA = ESCOLHAS BEM


EMBASADAS PARA AS MULHERES!

COM LICENÇA, CHINA: ESTADOS UNIDOS ALÇAM VOO COMO


UMA ÁGUIA

E assim por diante, assim por diante, assim por diante.


Ninguém lembra mais como as coisas ficaram ruins, como
mergulhamos de cabeça em uma economia de segunda classe,
como os diplomas universitários se desvalorizaram tanto quanto o
pergaminho falso em que eram impressos, como as escolas
elementares estagnaram devido aos orçamentos anoréxicos, ao
excesso de alunos e às greves de professores. As pessoas
precisam se lembrar de tudo isso.
É aí que as coletivas mensais de Madeleine Sinclair sobre a
Educação se tornam úteis. É onde a propaganda dos testes
genéticos cada vez mais evoluídos de Petra Peller ajuda a afastar
qualquer temor antes que chegue à superfície. Onde os comícios
intermináveis e os anúncios dos serviços públicos da Campanha
Família Mais Apta – Você quer voltar atrás? Quer pais solteiros e
filhos à toa em casa de novo? Quer se preocupar com o futuro dos
seus filhos enquanto pagam pelo futuro dos filhos de outras
pessoas? – servem como estímulos frequentes para qualquer um
que queira um lembrete de como chegamos ao fundo do poço e
quanto avançamos desde então.
Como se isso não bastasse, temos outros incentivos para
participar do jogo. Ninguém sabe disso melhor do que Moira
Campbell, que mora duas casas depois da minha.
Da janela do quarto de Freddie consigo vislumbrar a casa de
Moira. A luz da varanda queimou meses atrás; o brilho azul da
televisão ficou escuro depois que o ônibus pegou seus dois filhos.
Uma vez por semana Moira sai para verificar a correspondência e
nos sábados sai de carro e volta uma hora depois. Acho que é
quando Moira faz compras, mas não tenho certeza. Nunca a vi com
compras.
E não existe um Sr. Campbell. Desde que ele foi embora, no ano
passado.
Os Campbell viviam discutindo. Desistiam de ir às festas da
vizinhança sempre no último minuto. Moira estava com dor de
cabeça; Moira ia chegar tarde do trabalho; Moira está fora da cidade
por conta de um problema familiar. As desculpas eram diferentes,
mas o motivo era sempre o mesmo: Moira e Sean Campbell, como a
maioria das pessoas que vivem um casamento difícil, não
socializavam. Durante um tempo eles representaram: Sean ficava
em casa fingindo que era marido, e o que se dizia na rua era que os
dois estavam juntos por causa dos filhos. Quando ele finalmente foi
embora, Moira continuou pendurando roupa dele no varal, na lateral
da casa. Algumas cuecas, camisetas, qualquer coisa. Só o bastante
para manter a ilusão.
A ilusão não durou muito. E as representantes do Serviço de
Bem-estar Infantil da Família Mais Apta – mulheres de rosto
cinzento vestindo uniformes cinzas, com pranchetas na mão –
começaram a aparecer, percorrendo o bairro, fazendo perguntas.
Um mês depois, chegou um furgão cinza e os meninos de Moira
embarcaram carregando malas, enquanto Moira xingava e
ameaçava de sua varanda.
– Estamos indo bem! – gritou para as mulheres de uniforme
cinza. – Um pai ou uma mãe é tão bom quanto dois!
Só que a Campanha Família Mais Apta discordava disso.
Moira foi à justiça. Não apenas uma, mas três vezes. Acabou se
defendendo sozinha porque nenhum advogado aceitou sua causa,
não como mãe sem marido. Perdeu antes mesmo do início da
audiência.
– Eles disseram que é preciso que o mais apto entre o pai ou a
mãe testemunhe – disse ela, depois do terceiro dia no tribunal. – Dá
para acreditar? O mais apto entre o pai ou a mãe: o que ganha
mais, o que tira menos licenças por ano, o que tem a nota Q mais
alta. Eu nem consigo encontrar meu ex-marido, quanto mais fazer
com que ele se apresente diante de um juiz. Merda de lei.
Na época senti pena de Moira. Agora sinto mais ainda, ao
perceber que Malcolm, ganhando o dobro do meu salário e tendo
metade dos meus atrasos, será sempre o pai mais apto. Como a
maioria dos homens – até mesmo os que não são tão aptos assim.
De modo que agora, sentada no quarto de Freddie com o vinho
que não quero mais beber e o sorvete que ela não vai tomar, a ideia
de ir embora passa pela minha cabeça, serpenteia por alguns
segundos deliciosos e vai embora, substituída por uma pergunta
sem esperança. Por quanto tempo eu conseguiria manter o
subterfúgio? Um mês? Um ano? Provavelmente seria descoberta
antes do fim da semana. Minha nota Q baixaria tanto que eu
perderia o emprego.
E isso também prejudicaria Anne. O negócio do Q é o seguinte:
ele pode ser herdado.
Porém, Malcolm... Malcolm poderia dar um jeito. Ele tem acesso
aos bancos de dados e poderia mexer nos números de Freddie.
Quando o ônibus amarelo chegasse para pegá-la na manhã de
segunda-feira, poderíamos ter um conjunto novo de Qs na faixa de
oito vírgula alguma coisa.
Essa fantasia não se estende além de um minuto.
– Certo, mocinha – digo a Freddie. – Hora de dormir.
– Fica um pouco comigo, mãe?
Respondo com um abraço e ela se anima, mas a luz que brilha
em seus olhos não dura muito.
– Amanhã vamos visitar Oma e Opa, está bem?
Meus pais vão surtar quando eu contar. Eles sempre odiaram
Malcolm, e amanhã à tarde vão odiá-lo mais ainda. Não tanto
quanto eu, mas com alguma intensidade.
A luz fica um pouco mais firme enquanto Freddie se acomoda no
meu braço e sorri para mim.
Ela dorme em um instante, uma presença pesada perto do meu
corpo. Pela porta, a televisão murmura enquanto Malcolm assiste a
mais uma hora do canal C-SPAN. É uma confusão de palavras, mas
os pontuados “Q isso” e “Q aquilo” chegam com nitidez demais.
Terei os mesmos sonhos medonhos, sonhos com Qs dançantes
com tentáculos compridos que descrevem arcos amplos. Em cada
tentáculo vejo uma criança, um adolescente, uma pessoa.
Vejo-as sendo estranguladas. Vejo-as assim no silêncio da noite
e me pergunto se Freddie também vê.
QUINZE

Q
uando acordo, quem está ao meu lado não é Malcolm, e sim
Freddie. Ela é toda feita de membros pré-adolescentes e
seus braços e pernas se enrolam nos meus como tentáculos
de lula, me espremendo. Não estou na minha cama e existem flores
cor-de-rosa na faixa decorativa perto do teto, portanto devo ter caído
no sono no quarto dela.
– Mãe? – chama ela, a voz preguiçosa de sono.
Adoro quando ela está assim, calma e relaxada. A ansiedade
ainda não a esmagou.
– O quê, bonequinha?
– A gente ainda vai visitar Oma e Opa hoje?
Abraço-a com força, enrolo seu cobertor cor-de-rosa em volta de
nós.
– Claro.
– Anne vai? – sussurra ela. A rouquidão já sumiu de sua voz.
Posso ouvir a pontada de medo e preocupação, como agulhas.
– Talvez não. – Definitivamente não, penso. Malcolm vai mantê-
la em casa e dar uma festa de amor para comemorar quanto a Filha
no 1 é maravilhosa. – Vamos nos vestir e cair na estrada, está bem?
Vou tomar um banho.
Ela aperta meu pulso enquanto saio de baixo das cobertas.
– Pode tomar banho no meu banheiro? E cantar alguma coisa?
– Claro, querida. Claro.
Embaixo da água quente, com a escova molhada penteando
meu cabelo comprido a ponto de começar a irritar, canto músicas
dos Beatles. Principalmente as antigas, do tempo em que as drogas
e o misticismo ainda não tinham transformado os Quatro Fabulosos
nos Quatro Esquisitos pra Caralho. Sei todas de cor, as palavras
saem automaticamente, o que é bom, porque, enquanto tranquilizo
Freddie, estou planejando o que dizer aos meus pais quando
chegarmos. E me perguntando se terei coragem de não voltar para
casa.
Depois da ameaça de Malcolm ontem à noite, sei quais são as
consequências de escolher Freddie em vez de Anne, nem que seja
até eu descobrir uma nova opção. É uma decisão horrível, que eu
consideraria impensável, mas não é a pior que já tive que fazer.
Nem de longe.
Quando saio do quarto de Freddie, com litros de condicionador
pesando no cabelo, estou tremendo porque esqueci de pegar as
roupas no meu armário. Visto-me rapidamente e na cozinha Freddie
está segurando a fantasia de Mulher-Maravilha do ano passado.
– Posso vestir isso para ir à casa de Oma? – pergunta ela, os
olhos implorando. Já calçou as botas vermelhas e um daqueles
braceletes brilhantes, que na verdade são de plástico, mas para
Freddie são superpoderosos. Bem que eu gostaria que fossem
mesmo.
Malcolm apenas balança a cabeça diante da cena.
– Ela já não devia ter deixado essas bobagens para trás e
crescido?
– Ela tem 9 anos, Malcolm! – retruco. – Nove. E foi só o
Halloween, pelo amor de Deus. – Então, para Freddie: – Claro que
pode, mas vai ter que vestir um casaco por cima.
Quando ela volta, cinco minutos depois, está com a fantasia
inteira: da capa às botas.
Malcolm balança a cabeça de novo.
Eu o deixo na cozinha sem dizer uma palavra e vou de novo até
o meu armário. Troco a bolsa que vinha usando por uma sacola em
que daria para enfiar a maior parte do Brasil e começo a enchê-la
com as roupas essenciais. Calcinhas e sutiãs vão no fundo, uma
calça jeans extra e um suéter, e as coisas da outra bolsa vão em
cima. Não parece cheia. Não muito.
Na cozinha, Malcolm prepara uma omelete de claras com queijo
de baixo teor de gordura, tofu picado e couve cozida al dente. É sua
versão de um café da manhã campeão. Prometo parar em uma
lanchonete e comprar um sanduíche de linguiça com ovo para mim,
panqueca e bolinho crocante de batata para Freddie. Ou o que ela
quiser.
– Aonde você vai, El? – pergunta ele, enquanto me observa
abotoar o casaco.
– O que você acha? Vou levar Freddie para ver meus pais.
– Por quê?
Aonde. O quê. Por quê. Nosso casamento em poucas perguntas.
– É o que as pessoas fazem no último fim de semana. De
qualquer modo, vamos voltar mais tarde.
Anne entra, pega um punhado de granola em um saco no
armário e começa a mastigar.
– Posso ir?
– Pode se varrer essas migalhas – exijo.
Como sempre, Malcolm socorre a filha.
– Anne vai ficar comigo. Não pegue no pé dela, Elena.
Então ainda estamos usando o nome inteiro.
Forço um sorriso.
– Vejo vocês lá pelas cinco, provavelmente. A não ser que eles
nos convidem para o jantar, o que deve acontecer. A comida
chinesa que sobrou está na geladeira se vocês quiserem. – Volto
para o corredor. – Pronta, Freddie?
– Freddie está pronta! – cantarola ela, correndo para a cozinha.
É uma piada antiga e idiota, mas é isso aí.
Malcolm olha minha bolsa cheia e diz:
– Vai viajar? – Depois balança a cabeça lentamente. Um balanço
para a direita, de volta ao centro, um balanço para a esquerda, de
volta ao centro.
Merda.
Meu marido é inteligente. Mais do que inteligente. Quando
ficamos juntos, no ensino médio, eu só conseguia pensar: Não deixe
esse cara escapar! E não deixei. Meu Deus, como gostaria de ter
deixado. Gostaria de ter tirado o anzol e jogado seu belo eu
presunçoso de volta no lago para outra pescadora fisgar. Gostaria
de ter jogado a linha e puxado alguém normal e legal. Eu conheci
alguém normal e legal. Há muito tempo.
Não, El. Apenas pare.
– Me deixe pegar meu casaco – diz ele, tirando a omelete do
fogo.
Juro que o ouço dando um risinho.
DEZESSEIS

N
ão há como discutir com Malcolm, motivo pelo qual estou
sentada no banco de trás de seu enorme SUV crossover
BMW, sem a prometida passada na lanchonete, com Freddie
ao meu lado matando zumbis a laser em seu telefone. Malcolm
insistiu que Anne se sentasse na frente porque enjoa no carro, mas
sei que não é por isso.
– Vai ser bom ver Sandra e Gerhard depois de todo esse tempo
– comenta ele, fechando a janela. – E sua avó.
É uma mentira deslavada. A animosidade entre Malcolm e minha
família é mútua, ainda que a balança do ódio ativo penda para o
lado de Malcolm.
Decido pagar para ver.
– Não sei por que você está indo com a gente.
Ele encara o retrovisor, e eu vejo seu nariz e aqueles olhos cor
de chocolate. É óbvio que está sorrindo.
– Não quero você e Freddie por aí sozinhas. Não numa manhã
assim.
A viagem até a casa dos meus pais demora uma hora. Freddie
está dormindo quando chegamos a Baltimore, me deixando com um
Malcolm silencioso, uma Anne carrancuda e trinta minutos de
estradas secundárias à frente.
– Elena – diz ele. – Você sabe que eu não sou idiota.
É. Eu sei. Malcolm vem me informando isso há mais de vinte
anos.
– Sua família. Eles são... Qual é mesmo a palavra? – continua
ele. – Imprevisíveis.
Não é isso que ele quer dizer. “Imprevisível” é a palavra que
Malcolm usa para dizer que “não se interessa em jogar seguindo as
regras”.
– Eles só não gostam do sistema – argumento.
Até imagino como minha mãe e meu pai teriam reagido à
Campanha Família Mais Apta, ao novo sistema educacional ou a
qualquer uma das loucuras que aconteceram no país se eu não
fosse casada com Malcolm. Conhecendo meu pai, ele teria
explodido metade de Washington se achasse que isso adiantaria;
creio que não teria se importado caso ele próprio fosse
despedaçado. O único motivo para suportarem Malcolm é porque
são loucos pelas netas.
– É isso que eu quero dizer. – Malcolm baixa a voz. – E no Dia
de Ação de Graças do ano passado ele me chamou de nazista.
– Não chamou.
– Eu estava lá, Elena.
Freddie pergunta:
– O que é um nazista, pai?
Antes que Malcolm comece a dar uma palestra, eu assumo.
Como condensar uma década de história medonha em uma frase
digerível?
– Uma pessoa que se acha melhor do que todo mundo. Uma
pessoa que quer controlar as coisas.
Malcolm aponta o ar com o dedo.
– Está vendo? É disso que estou falando.
As próximas palavras que saem da boca dele são:
– Freddie, desligue esse jogo idiota, tire o som, sei lá. Está me
dando dor de cabeça.
– Está bem, pai – concorda ela, silenciando quaisquer zumbis ou
alienígenas que estivesse matando.
Quando paramos em frente à casa dos meus pais, Freddie e
Anne descem do carro, correm até a varanda e por pouco não
derrubam minha mãe. Papai sai e os quatro se abraçam em grupo,
o que faz a varanda balançar violentamente.
Hoje vai ser difícil, penso. Tanto amor assim só pode trazer uma
quantidade imensa de dor. Independentemente do que possa
acontecer hoje, Freddie vai para casa conosco. Pelas próximas 36
horas.
Ela sabe disso e não sabe. Em algum lugar da minha filha há um
filtro feito de aço. Ou titânio. Ou kriptonita. Freddie oscila entre a
realidade e o sonho, e nesse momento sua única realidade é o
sorriso no rosto de sua Oma, a pressão suave da mão de seu Opa
nas costas e as promessas de biscoitos de gengibre com leite
quente na mesa da cozinha.
– Que surpresa, Liebchen – diz minha mãe, bagunçando o
cabelo de Freddie com uma das mãos, agora revolto por causa da
estática do chapéu de inverno, e ao mesmo tempo acariciando o
rosto de Anne.
Freddie ri para ela e solta um oi agitado. Até Anne se anima ao
ver a avó.
O fato de Malcolm não ser mencionado não me surpreende nem
um pouco. Para minha família, a presença dele é o equivalente à
muleta de um acidentado: um adereço necessário, mas
completamente indesejado. Quando ele se junta a nós na varanda,
a temperatura cai alguns graus, apesar dos sorrisos.
– Malcolm – diz meu pai, sem estender a mão.
– Gerhard.
Sinto o nível do mercúrio baixando ainda mais, enquanto
Malcolm distribui os cumprimentos necessários. De súbito, o ar
parece mais quente quando ele passa pela porta e entra no
corredor.
Mamãe nos guia para dentro, saindo do frio, e dá um tapinha no
traseiro de Freddie.
– Biscoitos na cozinha, meninas. – Então ela e papai se viram
para mim quando Malcolm está longe. – Por que essa cara
desanimada?
Conto tudo em três frases curtas: Freddie não passou. Freddie
vai pegar um ônibus amarelo. Freddie vai embora.
– Scheisse – xinga mamãe. – Scheisse, Scheisse, Scheisse.
Soltar quatro merdas em alemão em um único fôlego é incomum
até para a minha mãe, mas não a silencio. Dadas as circunstâncias,
suas palavras servem perfeitamente.
Tiro o casaco e troco os sapatos por um par de chinelos felpudos
que minha mãe mantém no armário do corredor. Eles fazem eu me
sentir em casa, que é exatamente onde quero estar nesse
momento. Entramos na cozinha, o coração da casa dos meus pais,
e mamãe avisa que minha avó está no andar de cima.
– Ela não está se sentindo bem, então não deve almoçar com a
gente.
– Ela nunca almoça – sussurra Malcolm.
Ele está junto à ilha da cozinha com um copo de cerveja. Minha
mãe, que é capaz de ouvir o peido de um pardal durante uma
tempestade, olha irritada para ele.
– Você não está falando a sério sobre mandar Freddie para uma
daquelas escolas, não é? – comenta meu pai, fatiando frios. Ele
pontua as palavras com os movimentos da faca. – Já é bem ruim
fazer exames mensais na primeira série, mas achei que tínhamos
superado a segregação há tempos.
Malcolm ignora as facadas.
– Tudo isso é para o bem dela, Gerhard.
Papai para de fatiar.
– Dar um... como vocês chamam?... um Q baixo a uma criança
de 9 anos porque ela não passou em uma prova é coisa boa desde
quando? O que eles estão testando, afinal? – Ele acrescenta numa
voz mais doce: – Meninas, que tal vocês irem atrás da Polly e dar
uma coisinha para ela comer?
As meninas desaparecem pela porta dos fundos levando
biscoitos para cachorros; Anne olha nervosa por cima do ombro
antes de fechá-la. Meu pai recomeça:
– Por acaso você sabe, Malcolm, quantas crianças foram
aprisionadas nas chamadas escolas federais deste país no século
XX?
Malcolm pousa seu copo com força exagerada.
– Ninguém coloca crianças na prisão, Gerhard. Não ouse encher
a cabeça das meninas com sua desinformação.
Meu pai se empertiga, esticando todo o seu 1,83 metro. Acho
que nunca o vi tão alto. Ou tão furioso. Suas narinas, no mesmo
nível dos olhos de Malcolm, se inflam. Eu não me surpreenderia se
o que ele dissesse a seguir fosse algo como: “Que tal a gente
resolver isso lá fora?”
Mamãe está colocando uma cobertura de glacê com chocolate
em um bolo, a predileta de Freddie, e a temperatura na cozinha
baixa um pouco.
– Não é desinformação, Malcolm. Onde eu cresci, em
Massachusetts, havia uma escola dessas, não muito longe de
Boston. Chamavam de Escola Fernald para Crianças Idiotas. Sério,
“crianças idiotas”? Realmente parece um paraíso.
– Até agora ninguém reclamou – retruca Malcolm.
Meu pai não fala nada, mas seus punhos se fecham com força e
os músculos do antebraço ficam saltados como cordas.
– As pessoas não reclamam até acontecer com elas – responde
minha mãe, me oferecendo a espátula da cobertura para lamber. –
Você conhece a velha história sobre ferver um sapo? Se você
colocar um sapo numa panela com água fervente, ele pula fora. –
Ela silencia Malcolm com um gesto e sorri. – Por outro lado, se você
colocar o sapo numa panela com água fria e aumentar a
temperatura aos poucos, logo terá um sapo cozido. E ele nem vai
ter se dado conta. – Então, pegando a mão do meu pai, ela diz: –
Nossos pais viram o sapo cozinhar na Alemanha. Um grau de cada
vez.
A porta dos fundos se abre e Polly entra correndo atrás das
meninas, balançando o rabo. A conversa muda para um assunto
mais leve.
Mas o ar na cozinha continua pesado.
DEZESSETE

D
eixo minha família na cozinha, quatro pessoas que eu amo e
uma que não amo, e volto para a frente da casa, para a
escada que leva ao meu antigo quarto. Cópias de meus
diplomas estão penduradas nos mesmos lugares de sempre, um
arranjo em escadinha com letras rebuscadas e assinaturas
apressadas de diretores e escrivães. Primeiro Yale, depois Penn,
depois Johns Hopkins – meu pedigree em três molduras.
Subo automaticamente os primeiro cinco degraus, passando
pelo reconhecimento dos meus feitos. Durante alguns segundos,
volto à época da escola, subindo esses degraus de dois em dois,
com meu desenho mais recente em uma das mãos, um sorriso largo
no rosto. Na época eu pensava: Quero ser igualzinha a Oma. Vou
ser igual a ela.
Os barulhos vindos do andar de baixo são familiares: meus pais
alternando entre o inglês e o alemão, comentando como as netas
tinham crescido desde o verão; Freddie rindo dos fonemas guturais
e fricativos pouco familiares, tentando imitá-los; Anne falando com
mais fluência. E Malcolm andando de um lado para outro enquanto
decide se o ato de se sentar vai colocá-lo em alguma desvantagem
no campo de batalha familiar.
– Leni?
A voz ecoa do andar de cima, ao mesmo tempo frágil e intensa.
Viro na direção dela.
Não, não é isso. A voz me puxa, como se me atraísse com linhas
invisíveis.
– Leni? – chama ela de novo.
Nunca gostei do apelido que Oma me deu há quarenta anos. Me
lembra demais a antiga cineasta, a do sobrenome impronunciável, e
o legado de propagandas coreografadas com árias de Wagner.
Minha avó garante que existem mais de duas Lenis no mundo.
Quando chego ao último degrau, Oma estende a mão, com a
palma para cima, os anéis de prata virados em direções erradas e
enfiados nos dedos que ficaram finos demais. Não. É um modo
gentil de dizer. Minha avó de 100 anos parece um pouco com a
morte, apoiada na bengala, a mão livre segurando o corrimão para
segurança extra. Quando estendo a minha, ela tomba contra mim.
Pesa o mesmo que um suspiro.
Digo a primeira coisa que me vem à mente:
– Eles vão levar meu neném.
– Eu ouvi. – Ela bate na orelha esquerda. – Eles me deram
ouvidos novos há umas semanas. Custaram uma fortuna.
Então estou chorando. Nós duas derretemos em uma poça de
braços e pernas no último degrau, essa senhora me segurando
como fazia quando eu ficava doente na infância. Um gosto ruim
sobe à minha boca quando penso no futuro de Freddie, em um
ônibus amarelo vindo para levá-la por um caminho que é qualquer
coisa menos uma estrada de tijolos amarelos, na minha filha a ponto
de ser perdida para um sistema que eu ajudei a criar por meio de
cada comentário esnobe e cartão dourado lustroso de privilégio.
Oma espera até que eu pare de soluçar e pede:
– Fale sobre esses ônibus amarelos. Aonde eles vão?
– Kansas.
A voz que responde não é minha. Malcolm parou de andar
distraído e estacionou no meio da escada.
– Olá, Maria – cumprimenta ele. A frase pareceria gentil nos
lábios de qualquer outra pessoa. – A senhora parece bem.
– Estou parecendo a morte – responde ela. – Não precisa mentir.
Os olhos de Malcolm parecem concordar e ele se retrai. Não
muito, mas o suficiente para eu captar a aversão em seu olhar.
Mesmo assim agradeço porque ele não usou uma de suas palavras
mais pitorescas: velha, frágil, um fardo para os filhos. Meu pé, a
poucos centímetros de sua virilha coberta de gabardine, pode
encontrar um alvo desagradável. A ideia me faz sorrir.
– Bom – diz ele –, vou deixar vocês duas colocando o papo em
dia.
– Faça isso, Malcolm – retruco.
Ele volta para o andar de baixo, para ignorar meus pais e sua
filha mais nova.
– Ainda um casal feliz – observa Oma.
É algo entre uma afirmação e uma pergunta, e não deixo de
perceber o sarcasmo.
– Na verdade, não. O que aconteceu com você? Parece que não
come há um mês.
Seguro uma das mãos dela, examino as unhas quebradiças e
desiguais, a pele rachada e retesada sobre os ossos dos dedos. O
cabelo de Oma também mudou desde que a vi pela última vez e,
quando afasto a mecha de cima de seus olhos sem sombra nem
delineador, alguns fios saem nos meus dedos antes de pousarem na
passadeira da escada.
Ela está perdendo os pelos, penso. Como um cachorro
malnutrido.
– Já vivi tempo demais, Liebchen.
– Bobagem.
– É verdade. Vivi demais e vi demais. Agora me ajude a ficar de
pé, Liebchen. Quero mostrar uma coisa enquanto estamos a sós.
Oma e eu seguimos pelo corredor até o quarto dela, um quarto
que já foi meu, com janelas que dão para o quintal dos fundos e,
mais além, para as intermináveis fileiras de casas novas. Com
minha ajuda, ela se acomoda em uma poltrona forrada de chita e
me pede para pegar a banqueta para descansar as pernas. Seus
tornozelos desapareceram completamente, de tão inchados.
Então isso é a velhice.
– Ah, Oma...
Ela abana uma das mãos, um gesto delicado, mas ainda assim
desdenhoso.
– Chega disso. Vá abrir o baú de cedro no canto e me traga a
caixa azul. Não, essa, não. A maior, mais perto do fundo.
Obedeço, colocando a caixa em seu colo. Está amarrada
frouxamente com um barbante puído, e ela puxa uma das pontas
até que o laço não passe de um bolo de barbante enrolado. Os
círculos de barbante me fazem pensar em Qs gordos cujas caudas
são tentáculos.
– Levante a tampa para mim – ordena ela, as mãos caindo
frouxas nas laterais do corpo como se já tivessem trabalhado o
suficiente por um dia.
Abro a caixa.
Ali dentro estão camadas de tecido bem passadas e dobradas, lã
azul e algodão branco. Uma gravata preta está enrolada em um dos
lados, com as bordas carcomidas. Não imagino por que Oma quer
que eu veja seu antigo uniforme, depois de todos esses anos.
– Esse era seu uniforme de escola? – pergunto, passando o
dedo na lã azul e áspera da saia.
– Era meu uniforme. Mas não da escola. – Oma ainda pronuncia
o sh suave no início da palavra: shcola. – Tire daí se quiser. Os
sapatos estão em uma caixa maior no baú.
Desdobro as peças uma a uma, primeiro a blusa de popeline
branca, que em cima da colcha da cama se revela não branca, e
sim de um amarelo envelhecido. Coloco a saia com a prega central
em cima da bainha da blusa e desenrolo a gravata. Está quebradiça,
e um pó preto e fino chove nas minhas mãos.
– Agora os sapatos, Liebchen. Os Schuhe de marcha.
– Oma? Você está bem?
– Os SCHUHE, garota! Pegue. – Ela bate a bengala no chão
uma vez, com força.
Da segunda caixa, pesada, tiro um par de rígidos sapatos pretos,
de cadarço. Quando os pouso na madeira do piso, o som revela seu
segredo: nos saltos e nos bicos há uma placa de metal em forma de
ferradura, como chapinhas de sapateado.
– Está vendo agora, Leni?
Não vejo nada. A não ser que minha avó esteja tentando me
contar que fez parte de uma estranha trupe de sapateado militar lá
nos idos dos anos 1930. Passo as mãos nos tecidos, sentindo as
várias texturas, as bordas redondas dos botões da blusa. Cada um
deles tem letras em relevo.
– O que é BDM e JM? – pergunto. – O nome do lugar?
Em vez de responder, ela pede que eu me sente.
– Vou lhe contar uma coisa, Leni. Uma coisa que nunca contei a
ninguém. Nem ao seu pai.
– Está bem. – O tom de sua voz me faz pensar se eu quero
saber.
Oma relaxa na poltrona, afrouxa a mão na bengala e começa a
falar:
– Quando eu era pequena, conheci uma garota. Ela não era
pobre, vinha de uma família bastante rica. O pai trabalhava como
médico e a mãe ensinava matemática no Gymnasium da minha
cidade. Miriam e eu éramos muito amigas. – Os olhos de Oma
começam a brilhar. – Muito amigas. Como irmãs. – Seus olhos
brilham mais ainda e não pergunto se ela ainda tem contato com
Miriam ou se sabe onde ela está. – Meu pai e meu tio-avô me
obrigaram a entrar para a Bund Deutscher Mädel quando atingi a
idade mínima. Acho que você sabe o que significa, não sabe?
Pensei nas palavras em alemão.
– Banda de alguma coisa alemã.
– Foi traduzido como Liga das Moças Alemãs. – Ela indica os
tecidos arrumados na cama. – Meu pai comprou o uniforme e os
sapatos. A princípio não gostei, mas no meu aniversário daquele
ano ele me presenteou com as chapinhas de metal e me mandou ao
sapateiro para colocá-las. E sabe de uma coisa?
– Não.
– Eu gostei. Usava o uniforme todo dia nas atividades depois das
aulas e nas reuniões no fim da tarde. Depois de um tempo, comecei
a usá-lo na escola também. Muitas outras garotas usavam. Pode
pegar um pouco de suco para mim, no frigobar?
Encontro uma lata de suco de maçã e sirvo. Oma bebe, sedenta,
e sua voz retoma um pouco da suavidade quando volta a falar:
– A escola ficou muito diferente. Depois dos uniformes. As
meninas que costumavam pular corda e brincar juntas começaram a
se separar. Meu pai me proibiu de conversar com Miriam enquanto
eu estivesse usando a roupa da BDM. – Ela dá uma risada sem
humor. – Não importava. Fazia muito tempo que Miriam tinha parado
de falar comigo.
Há uma pausa longa.
– O que aconteceu com Miriam? – pergunto quando o silêncio
começa a incomodar.
– Não sei. – Oma vira o rosto rapidamente para a janela antes de
olhar para mim de novo. – Não. Não sei. Depois disso entrei para o
grupo Glaube und Schönheit da cidade e comecei a estudar artes. –
Outro riso. – Crença e beleza. É engraçado que nada da minha arte
fosse de fato belo. – Ela fita a parede do outro lado do quarto.
Sigo seu olhar.
A maioria das pinturas de Oma é em tons de cinza e preto,
representações abstratas de muros e cercas, imagens de
separação. Elas me fazem pensar no tipo de arte que eu teria criado
se tivesse ouvido meu coração, e não meu marido.
DEZOITO

ANTES

E
u me sentei na sala dos fundos, onde meu pai tinha quebrado
a parede para abrir uma nova janela quando construiu um
ateliê para mim. O ateliê não era mais meu, pelo menos não
em tempo integral, mas eu costumava usá-lo quando voltava para
casa nas férias de verão ou quando escapava do frio de fevereiro
em Connecticut em troca do clima ligeiramente mais temperado de
Maryland na primavera. O cômodo era quente no inverno, com os
aquecedores zumbindo, fresco no verão, quando o vento soprava
pela tela da janela aberta, e estava praticamente perfeito naquele
dia de novembro.
Eu deveria estar estudando história da arte, destrinchando os
mestres pré-rafaelitas antes do fim do feriado de Ação de Graças,
mas a tela em branco me chamava, quase implorando por alguma
cor.
Malcolm apareceu de manhã, também vindo da faculdade. Me
beijou de leve e segurou minha mão esquerda.
– Vai mesmo usar sua aliança enquanto pinta, El? – Depois,
avaliando meu trabalho inacabado: – Que diabo é isso?
– Primeiro, o anel é lavável. Segundo, isso é arte. Gosta?
Pela reação dele, percebi que não. Nem um pouco.
– Que bom que tirei você do mundo pós-modernista e a trouxe
de volta para a realidade, querida. – Ele inclinou a cabeça, primeiro
para a direita, depois esquerda, então a posicionou no centro de
novo. – O que isso aí deveria ser?
– Sexo.
– Sexo bom ou sexo ruim?
Agora ele estava quase de cabeça para baixo, tentando entender
os redemoinhos em vermelho e laranja.
– Bom – falei. E ruborizei.
Ele se sentou na poltrona que minha avó costumava ocupar.
Malcolm não combinava bem ali, principalmente pelo tamanho e
pelo tecido de chita com estampado floral. Mas nada parecia
combinar com Malcolm Fairchild, pelo menos não de forma natural.
Ele simplesmente adaptava o mundo ao seu estilo, forçando-o a se
encaixar.
– Tenho novidades – disse ele.
– Boas ou ruins?
– Excelentes.
Pousei o pincel e enxuguei a mão em um trapo. Eu também tinha
novidades. Oma tinha trocado e-mails com um ex-colega da Escola
de Arte e Design de Savannah. Iríamos à Geórgia no sábado falar
sobre o curso de graduação. Comecei a contar isso a Malcolm e
acabamos falando ao mesmo tempo. Rimos.
– Primeiro você – concedeu ele.
– Não. Você primeiro.
Entre nós era sempre assim, ainda mais no ano em que
tínhamos ficado noivos.
Ele se levantou e segurou minhas mãos sujas de tinta.
– Decidi fazer mestrado.
– Certo...
– Não vai perguntar onde?
Seu biquinho era quase bonito, por isso mordi a isca.
– Onde?
– Na Penn! – Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele
continuou: – Eles têm uma escola de pedagogia fantástica, El.
Juntando isso com ciência política, eu vou sair na frente. E, se você
ainda estiver considerando minha ideia, há um ótimo programa de
ciências biológicas para você. A gente poderia casar e arranjar um
apartamento no centro da cidade, como discutimos antes.
De fato, tínhamos falado sobre isso. Mas, entre o verão e aquele
momento, outras coisas haviam acontecido. Eu vinha pintando mais,
experimentando formas novas. Tinha sido classificada para uma
exposição em New Haven. Tinha sido convidada para a escola de
Savannah.
– Eu...
Malcolm levantou as mãos.
– Espere. Espere só até ouvir tudo, querida.
Ele pegou uma revista no bolso do casaco e a abriu em uma
matéria.
– Ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Eles estão
investindo muito nisso, El. Garantia de uma grana preta. E, quando
eu chegar aonde quero, haverá mais dinheiro para as escolas de
camada superior na área de exatas. Você só precisa ser
suficientemente boa para ensinar em uma delas. E continuar boa.
Mas você vai conseguir. Sei que vai. – Então ele me abraçou, um
abraço longo. – Minha brilhante futura esposa.
Acho que foi o medo que me balançou, o medo de jamais pintar
alguma coisa digna de uma exposição, de acabar dando aulas como
Oma. Será que eu desejava apenas observar e esperar que um de
meus alunos se destacasse no meio artístico, me ver sendo
mencionada ocasionalmente – se é que seria mencionada – na
biografia de outra pessoa? Visualizei uma versão mais velha de mim
mesma vivendo da generosidade dos meus filhos e não gostei.
Almoçamos com meus pais e minha avó. Oma pareceu surpresa
quando abordei a viagem para o sul no sábado. Inventei uma
mentira sobre um projeto que eu tinha que terminar, dando a
entender que precisava enfiar a cara nos livros durante o fim de
semana, o que significou ficar longe do meu ateliê. A tela inacabada
ainda estava lá no domingo quando papai me levou ao aeroporto, e
o sorriso de Oma ao me dar um beijo de despedida não escondeu o
desapontamento em seu olhar.
Quatro dias depois do feriado de Ação de Graças, troquei meu
curso de graduação de artes para ciências biológicas.
Tinha sido sugestão de Malcolm.
– É só uma sugestão. Você pode ser o que quiser – incentivara
ele.
Mas, quando pensei no dinheiro que poderia ganhar ensinando
em uma das novas escolas prata, me animei. Chega de
dificuldades, chega de economizar moedas para pagar a conta de
luz. Iríamos nos encaixar no mundo e fazer o mundo se encaixar em
nós. Iríamos criar nossa própria turma de destaque.
DEZENOVE

O
ma termina de beber o suco de maçã e se recosta de novo
na poltrona, obviamente cansada.
– Você precisa parar de pensar nesses Qs. Ou talvez
deva aprender a pensar neles de outro modo. Pense neles como
perguntas que você precisa fazer. E pense se você quer mandar sua
filha para uma dessas novas escolas.
– Elas não são iguais a... – Não sei como me referir, por isso não
digo – ... aos lugares que a senhora frequentou.
– Você acha, Liebchen?
– Claro que acho.
Na verdade, isso é risível. Oma tem bom coração, mas sempre
teve uma tendência àquele tipo de hipérbole que acompanha a
idade. Ela balança a mão, descartando o assunto, como se sentisse
que eu estava achando aquilo ridículo e visse a incredulidade nos
meus olhos.
– Vou contar mais quando você estiver pronta para ouvir. Agora
estou pronta para o meu cochilo. Por favor, guarde essas... coisas
de volta para mim.
Da cozinha, mamãe me chama para o almoço, e o aroma de
Rouladen e Blaukraut temperado chega até o quarto.
– Está bem, Oma. Depois do almoço eu subo de novo – aviso,
deixando-a na poltrona e dobrando o uniforme. Minha avó já está
dormindo quando coloco tudo de volta no baú de cedro e fecho a
porta.
Quando chego ao topo da escada vejo Malcolm me olhando de
baixo.
– Pegue seu casaco, Elena. E o de Freddie e o de Anne –
ordena ele, como se estivesse falando com sua secretária ou com o
rapaz que ele contratou como estagiário há alguns meses. Antes
que eu possa dizer qualquer palavra, ele completa: – Agora.
Nunca tive medo de Malcolm. Nunca me senti intimidada por ele,
como acontece com outras pessoas, como Freddie fica quando ele
usa a “voz assustadora do papai” – ela a chama assim quando ele
não está por perto. Mesmo assim, me encolho de encontro à
parede, os membros fracos quase parecendo geleia. Porque a voz
dele é assustadora em seu tom definitivo.
Engraçado como eu nunca tinha percebido isso antes.
– Vamos almoçar, Malcolm. Mamãe cozinhou e nós vamos
comer. – Para enfatizar, acrescento: – Agora.
Quero andar na direção dele enquanto falo, mas minhas pernas
não estão à altura da tarefa. Pelo menos por enquanto. Por isso
empertigo os ombros e levanto o queixo, um pequeno gesto para
demonstrar que não vou recuar nesse impasse.
Não funciona.
Malcolm desaparece no pequeno vestíbulo na frente da casa e
reaparece com três casacos e três pares de sapatos.
– Hoje vamos comer em casa. E amanhã. Só nós quatro.
Ele parece satisfeito com a perspectiva, e imagino se está
pensando que eu engulo seu papo furado como antigamente.
Naquela época, eu engolia. Engolia seu esnobismo com facilidade,
como uma puta fazendo truques em um quarto barato, vendendo-se
por dinheiro, por uma dose, uma aprovação.
Ficamos nos encarando por um longo tempo e sei que ele estava
ouvindo tudo lá de baixo. Agora não há o que fazer a não ser pegar
as coisas e ir embora com ele, com esse marido de quem dizem que
eu preciso. Esse marido que eu odeio.
Ou...
Eu poderia recusar. Poderia bater os pés e ficar aqui com
mamãe, papai e Oma, girar para trás os ponteiros invisíveis de um
relógio invisível e viver a vida antiga, mas de modo diferente,
apenas com Freddie. Mas Anne me pega pensando e me lança um
olhar implorativo. Ela é minha filha, tanto quanto Freddie. Não posso
desconcebê-la nem desistir dela.
– O que é isso? – Mamãe chegou rapidamente à sala, ainda com
o avental, uma nuvem de farinha brilhando ao seu redor no facho de
luz da tarde. Freddie está atrás dela, segurando dois cadarços de
avental e rindo.
Adoro quando Freddie está assim.
– Malcolm quer ir embora – digo a mamãe, e a risada de Freddie
para, como se alguém tivesse desligado um interruptor.
– Antes do almoço? Acabei de fatiar meio salame.
Se há um verdadeiro mal no mundo, segundo o evangelho de
Sandra Fischer, é uma superabundância de frios já cortados. Minha
mãe, filha da filha de uma antiga depressão econômica, odeia o
desperdício.
– Fiquem. Almocem – insiste ela. – E aí vocês vão para casa
depois.
Antes de Malcolm ter a chance de abrir a boca, Freddie cai no
tapete, um tapete antigo, esgarçado e desbotado, remanescente da
primeira casa de minha mãe. Ela recomeçou seu ritual de ficar se
balançando, se fechando para o mundo ao redor, mantendo todo o
sofrimento longe de si.
– Meu Deus! – exclama Malcolm. – De novo?
E então, alto, claro e horrível, ele diz a pior coisa que eu posso
imaginar:
– É por isso que ela precisa ir, Elena. Ela não bate bem da
cabeça.
Todos os membros do meu corpo parecem reagir ao mesmo
tempo. Meus pés me carregam escada abaixo no que parece um
movimento único. Meu braço esquerdo recua – uma parte de mim
controlada e independente. Minha boca forma as sílabas de
“escroto” enquanto um soco que eu não sabia que era capaz de
desferir acerta o maxilar de Malcolm, ricocheteando, doendo.
Malcolm não diz nada, apenas empurra o monte de casacos e
sapatos contra o meu peito. Eles são pesados, mas não tanto
quanto minha fúria.
– Seu filho da puta escroto – sussurro.
Agora sei que, de um modo ou de outro, terminamos.
Demoro trinta minutos para vestir o casaco e calçar os sapatos
de Freddie.
Malcolm espera no vestíbulo com uma carranca, batendo o
sapato italiano Bruno Magli. Meus pais e Anne estão em silêncio em
um canto da sala de estar, evitando encarar Freddie para não deixá-
la ansiosa, mas papai se vira para a porta a cada poucos segundos
e lança um olhar gélido para Malcolm.
– Tudo bem, querida – digo com minha voz suave, uma voz que
faz força para sair enquanto minha voz feia, a que quero usar contra
meu marido, tenta se destacar e luta pelo controle. – Sorvete em
casa. Depois vamos assistir ao filme da princesa, está bem?
Por fim Freddie se acalma.
– Vá beijar sua Oma e seu Opa.
Quero levá-la ao andar de cima para dar um beijo de despedida
na bisavó, mas Malcolm já abriu a porta, deixando uma brisa gelada
entrar. Como se não estivesse suficientemente frio dentro de casa.
Agora é minha vez de fazer as rondas. São menos permanentes,
já que sei que vou ver meus pais e minha avó de novo em breve,
provavelmente no fim de semana que vem. Talvez até mesmo antes
disso, já que a ideia de passar mais um segundo do que o
necessário ao lado de Malcolm tem gosto de bile amarela.
É engraçado ver como estou errada e como nem sei disso. Pelo
menos por enquanto.
Visto o casaco e troco os chinelos macios pelos sapatos de
couro duro, imaginando-os como botas de combate de que vou
precisar para a viagem até em casa. Malcolm comanda nosso
pequeno desfile até o carro, seguido de Freddie e Anne, depois eu.
E então um borrão de tecido atoalhado e cabelo grisalho emerge
da porta. Minha avó.
Ela está quase correndo na minha direção com as pernas fracas
e a bengala, estendendo a outra mão para o casaco nas minhas
costas, agarrando-o com firmeza.
– Não a deixe ir, Leni. Não importa o que precise fazer, não
permita que ela vá para aquele... lugar. – Ela ia pronunciar outra
palavra. Quase uma semana vai se passar até que eu entenda todo
o peso e o significado da palavra que ela conteve.
– O que eu posso fazer? – indago. – É a lei.
Oma grita para Malcolm esperar, com uma força que surpreende
todo mundo. Ela me puxa para perto e pergunta:
– Você quer que Freddie vá para uma prisão?
– O quê?
– Você ouviu.
– Não.
Malcolm, já ao lado do carro, buzina. O som se entranha nos
meus ossos.
– Não – repito.
Oma se empertiga, os ombros ossudos como se estivessem se
preparando para uma batalha, como se vestisse outra vez seu velho
uniforme gritando palavras de ordem para meninas mais novas.
– Então você terá que ir com ela – sussurra, e me dá um beijo
nos lábios, com força, como fazia quando eu era pequena.
A buzina troveja de novo.
VINTE

inha avó tem que estar exagerando, penso enquanto


Malcolm nos leva de volta. Tem que estar.
Sei sobre as escolas federais pelos documentos que
Malcolm tem no escritório de casa e as fotos que surgem
rapidamente na tela durante as coletivas semanais de Madeleine
Sinclair. Não são propriamente um lar, mas parecem limpas, e as
crianças sorriem enquanto pulam corda e praticam esportes. Pais
visitantes abrem mantas de piquenique em um gramado denso e
tiram selfies para mostrar a avós e tias. Os adultos, os professores,
ficam parados junto de cada grupo familiar, conversando e
respondendo às perguntas.
Mesmo assim, minha avó comparou nossas escolas amarelas
com os campos de trabalho forçado.
Não falo nada na volta para casa. Também não espero que
Malcolm rompa o silêncio, mas é exatamente isso que ele faz.
– Você precisa recuperar o bom senso, Elena.
O olhar dele está fixo adiante, naquela linha amarela dupla
(ônibus amarelo, penso), e os nós dos dedos brilham pálidos
apertando o volante. Na bochecha direita está florescendo um
hematoma arroxeado. Mas sem sangue. Eu gostaria que tivesse
saído sangue.
– Acho que não confio mais no bom senso, Malcolm – respondo
com os dentes trincados.
Pelo retrovisor à minha direita, vejo Freddie no banco de trás.
Está contando postes telefônicos. Ou marcos de quilômetros.
Contando alguma coisa. Tudo bem. Anne guardou o celular e está
sentada em silêncio, ouvindo.
Malcolm bate no volante com as pontas dos dedos. Se fosse
outra pessoa, eu consideraria isso um tique nervoso, mas não é
outra pessoa. É Malcolm Fairchild, ph.D., porra, e o Dr. Fairchild não
tem tique nervoso. Só está batucando as palavras que vai dizer
antes que elas escapem da boca.
A cerca de quinze minutos de casa, saímos da estrada principal
e ele para de tamborilar.
– Sua avó é velha e tende a exagerar.
– Talvez. De qualquer forma, não quero que Freddie vá para uma
escola federal.
Ele bate com a palma da mão no volante.
– Você já parou para pensar em como eu seria afetado se
violasse as regras para ela? – Ele aponta a cabeça ligeiramente
para trás, na direção de Freddie. – No que seria da minha carreira?
Eu me endireito no banco.
– Não sei, Malcolm. Você já parou para pensar na sua filha?
– É para o bem dela.
– Para o bem – ecoa Freddie no banco de trás. – Tudo para o
bem. Bem, bem, bem. – Depois fica quieta de novo e volta a contar
postes telefônicos.
– Entende o que eu quero dizer? – pergunta Malcolm.
Quando Freddie tinha 5 anos, eu achava que ela estava no
espectro do autismo, talvez bem na margem, mas dentro do
espectro de qualquer forma. Ela não conseguia prestar atenção, não
se concentrava. Depois de horas de testes e consultas e de
centenas de dólares gastos, nossa pediatra balançou a cabeça.
– Síndrome de Asperger? – perguntei.
– Isso ainda faz parte do espectro, portanto não creio que seja –
afirmou ela. – Eu estaria forçando demais se fizesse esse
diagnóstico.
– Então o que há de errado com ela? – indaguei.
Até hoje tenho vontade de morder a língua quando me lembro de
ter dito isso. Errado. Como se minha filha fosse algum mecanismo
quebrado que precisasse de conserto.
A Dra. Nguyen riu, mas com gentileza, e olhou para a área de
brinquedo das crianças, onde Freddie estava montando uma pilha
de blocos.
– Não há nada errado. Freddie é um pouco ansiosa, só isso. Ela
vai melhorar ao longo do crescimento.
– Eu... nós... deveríamos fazer alguma coisa? Quero dizer, às
vezes ela se encolhe e se desliga do mundo. Além disso, ela repete
coisas. Como um eco.
De novo a médica riu.
– O que você quer fazer? Tratá-la como se fosse feita de vidro?
– Ela tocou meu braço. – Trate-a como a uma garotinha. É o que ela
é. Talvez um pouco nervosa. – A médica escreveu uma receita
ilegível no bloco em cima da mesa. – Vamos experimentar uma
dose baixa de Paxil, por enquanto. É um inibidor de recaptação de
serotonina.
Eu sabia o que era. E não gostei daquilo.
– Você acha que ela está deprimida?
– Não, não acho. Acho que Freddie se preocupa mais do que
algumas crianças da idade dela. E a preocupação enche a cabeça,
e uma cabeça cheia dificulta a concentração. Vamos atacar a
preocupação e não a falta de atenção, está bem?
A Dra. Nguyen olhou seu relógio e eu soube que era hora de ir.
Agora, no carro, eu me viro para Malcolm:
– E se ela só precisar de uma dose maior de remédios?
Podemos tentar isso? Você não consegue algum tipo de... não sei,
período de recuperação ou sei lá como vocês chamam? Ela faria
outra prova no mês que vem.
Mesmo enquanto falo, sei que esse esquema jamais funcionaria.
Não importava se Malcolm concordava ou não. Se Freddie sentisse
a pressão de outro dia de provas dali a quatro semanas, quem sabe
que tipo de colapso ela poderia ter? Além disso, eu odeio o
desespero na minha voz. O tom suplicante.
– Deixa pra lá.
Também quero desviar a conversa das provas, antes que
aconteça outra briga. Freddie sempre teve dificuldade, mas
conseguia sustentar a nota Q por volta de 8,3. Claro, Malcolm não
sabe das horas que eu passo com ela na casa dos meus pais antes
dos exames, não sabe sobre a dose extra de recaptadores de
serotonina não sei das quantas que dou a Freddie. É melhor para
todos nós se a palavra “prova” estiver ausente das conversas.
Volto à sugestão da minha avó.
– E se eu pedisse transferência?
Os dedos de Malcolm relaxam um pouco enquanto ele vira o
carro para entrar na garagem. Meu tom de voz deve ter gerado esse
efeito; ele deve pensar que minha raiva se esvaiu, porque está
dando palmadinhas com a palma da mão chapada no volante. Este
é o Malcolm Relaxado. Não o vejo com muita frequência. Isso me
faz pensar em quanto ele e Freddie têm em comum.
– Transferência para onde? Você não gosta mais da Escola
Davenport? – Ele desliga o motor e sai, sem se incomodar em vir
até a outra porta. – Há outra escola prata, mas fica mais longe. Você
levaria o dobro do tempo para chegar lá.
– Eu estava pensando em uma escola verde. Ou mesmo uma
escola federal. – Solto o casaco de Freddie do cinto de segurança e
a deixo correr sozinha até a porta dos fundos.
Malcolm apenas me encara.
– E então? – pergunto.
– Está fora de questão, Elena.
– Por quê?
– Para começo de conversa, Anne e eu precisamos de você em
casa. É só por isso que estou perdoando a cena que você fez mais
cedo. – Ele leva um dedo ao rosto casualmente, como se eu o
tivesse acertado com uma luva de pelica e não com meu gancho de
esquerda. – E tem a outra questão.
Já sei qual é a outra questão. A Outra Questão é como Malcolm
pronuncia. A Outra Questão é que, se eu sair, estarei na mesma
situação de Moira Cambpell, mais adiante na rua. Malcolm tem
proteção contra as mulheres de cinza com pranchetas, as que
infernizam os bairros buscando famílias “não aptas”. Ele ganha o
suficiente para garantir para si a custódia de Anne e Freddie. Eu
não.
Como sempre, a justiça tem a ver com uma nota Q alta.
Como sempre, o seu Q depende da rapidez com que você
recupera o bom senso.
VINTE E UM

E
m vez de compartilhar a cama de Malcolm esta noite,
compartilho a de Freddie outra vez. É de solteiro, e eu
preciso envolvê-la com os braços e as pernas para cabermos
as duas. O resultado é algo parecido com o útero, eu me enrolando
em volta do corpo magro da minha filha como se pudesse puxá-la
de volta para dentro da barriga e deixar o mundo do lado de fora.
Como se pudesse desenredar a realidade, um fio de cada vez, e
transformá-la em uma tapeçaria mais bonita.
Ela se mexe e se aninha contra mim. Talvez Freddie esteja
tentando se arrastar de volta para dentro também.
Então, de repente, uma pergunta:
– Você ama o papai?
Não posso mentir. E não posso dizer como as coisas de fato
funcionam. Por isso, respondo de forma parcial:
– Já amei.
– Mas não mais.
Da boca das crianças saem verdades brutalmente honestas.
Antes que eu possa rebater, Freddie faz outra pergunta:
– Por que você o amava?
A história da carochinha poderia começar assim: era uma vez
Elena, uma bostinha idiota. Poderia contar que eu e Malcolm
brincávamos juntos quando éramos um pouco mais velhos do que
Freddie, que categorizamos o pessoal da escola com nossa ideia
idiota de cartões coloridos: os melhores, os bons e os medíocres.
A culpa tem um gosto ruim. Um gosto de esgoto, escuro e podre,
sobe do fundo da minha garganta.
A voz de Freddie, mesmo baixinha, me puxa de volta para o
presente:
– Talvez você pare de me amar também.
– Não, querida. Nunca.
Ela cai no sono, aquele glorioso local de fuga onde nada pode
nos machucar. Fico acordada olhando a escuridão, jogando a não
pergunta de Freddie de um lado para outro durante horas. À meia-
noite já estou farta e subo para o meu escritório.
A primeira busca que digito traz páginas e mais páginas sobre a
Bund Deutscher Mädel. Há uma segunda parte no nome, e não
preciso que o Google traduza.
In der Hitlerjugend.
Minha avó fazia parte da Juventude Hitlerista.
Clico em “Imagens” e, em segundos, surgem fotos do uniforme
de Oma no monitor. Dentro do uniforme estão meninas. Louras,
esbeltas e lindas, com sorrisos largos para a câmera. Há garotas
marchando, pulando corda, correndo na areia da praia. Há garotas
enfileiradas como soldados, as cabeças erguidas como se
estivessem diante do próprio futuro.
Há fotos de garotas com os braços erguidos em saudação.
Ah, Oma, penso. Você sabia? Sabia onde tudo aquilo ia parar?
Não quero olhar. Mas, como diante de cenas sangrentas nos
filmes de terror, não consigo deixar de prestar atenção em todas,
percorrendo sequências em sites de arquivos, imaginando se
alguma daquelas louras se chama Maria, se alguma delas teve uma
amiga de infância chamada Miriam. Estou tão perdida em
pensamentos que nem o escuto atrás de mim.
– O que você está fazendo, Elena?
Malcolm está junto à porta, a apenas dois passos de mim. Fecho
rapidamente as janelas do navegador, mas já é tarde demais. Eu
deveria ter ficado virada para a porta, deveria ter posto na tela
relatórios escolares, planilhas de notas ou um jogo de paciência.
Qualquer coisa menos esse notebook em branco revelando que não
tenho resposta para sua pergunta, a não ser a verdade.
Por isso não digo nada.
Espero que ele me dê um sermão, que diga que minha avó está
enchendo minha cabeça com propaganda e sensacionalismo, mas
Malcolm age como se eu não tivesse feito nada errado.
– Venha para a cama. Amanhã vou tomar café da manhã com
Alex e você vai nos acompanhar – avisa ele.
– Prefiro passar o dia com Freddie.
Ele sorri.
– Pode fazer isso. Depois do café da manhã. Vamos voltar antes
das dez.
Odeio Alex, o tenista profissional/médico amigo de Malcolm. Ele
é bajulador e sempre que nos visita me olha como se eu fosse uma
guloseima.
– Não quero – retruco, tentando pensar em uma desculpa.
Uma mão firme segura meu ombro.
– Não me importa. Você vai tomar o café da manhã conosco e
vamos passar o dia juntos. O dia inteiro. – Ele faz uma pausa e seu
sorriso azeda. – Eu posso me divorciar de você fácil assim – diz ele,
estalando os dedos.
O som no escritório pouco mobiliado é agudo e limpo, um som
de rompimento. Ele não precisa pronunciar o resto, não precisa
mencionar as palavras “guarda” ou “rebaixamento”. Com a mão
esquerda ainda no meu ombro, Malcolm estende a outra e fecha
meu computador. Fim da discussão.
São duas da manhã quando passamos pelos quartos de Anne e
Freddie, a caminho do nosso. Atrás de cada porta fechada há
alguém chorando.
VINTE E DOIS

N
ão sei para onde foi o fim de semana.
Dizem que o tempo é constante, firme, que anda sempre
no mesmo ritmo. Isso é uma tremenda mentira. Qualquer
criança sabe que o tempo fica mais lento nos dias que antecedem o
Natal; qualquer noiva sabe que o tempo acelera durante uma festa
de casamento; qualquer mãe sabe que os anos voam depois de dar
à luz. Quatro quilos viram 20 quilos, que viram 100.
A mala de Freddie é leve para mim, mas os músculos dela se
retesam ao tentar pegá-la.
– Puxe, querida – digo, puxando a alça extensível. O som das
rodinhas passando pelo trecho com piso de madeira é como um
trovão.
Anne assume, mostrando à irmã mais nova como arrastar a
mala. Seu iPad está desligado desde sábado e eu não ouvi uma
palavra sobre qual garoto tem qual Q nem sobre o baile de volta às
aulas. Na verdade não ouvi nada. Ela passou o fim de semana
inteiro grudada na irmã, o que, de alguma forma, só piora as coisas.
Malcolm, que foi generosamente paternal ao ir mais tarde para o
trabalho na manhã de segunda-feira, dá um abraço em Freddie e
um tapinha em sua cabeça.
– Seja uma boa menina e estude bastante. Vamos visitar você
no Natal, está bem?
Pelo modo como ele diz, parece até que estamos mandando
nossa filha mais nova para um colégio interno de elite na Suíça.
– Está bem, papai – responde Freddie.
Seus olhos não acompanham o sorriso rígido que estampou no
rosto. Estão arregalados, como os de um cão amedrontado.
O relógio do corredor toca avisando que são seis e meia, ao
mesmo tempo que o iPad de Anne e o despertador na cozinha dão
seus avisos. Relutante, Anne pendura a mochila no ombro e vai até
a porta. Ela sabe que esta tarde ela voltará para uma família de
apenas três pessoas.
– Estou me sentindo enjoada hoje – comenta Anne.
O ônibus prateado para e a voz robótica feminina fala em seu
timbre artificial:
Alunos da Escola Prata Davenport, esta é a última chamada. O
ônibus da Escola Prata Davenport vai partir. Última chamada para a
Escola Prata Davenport.
– Anne – murmura Malcolm, e essa única palavra empurra minha
filha mais velha para fora de casa.
Agora esperamos. O ônibus verde vai até o fim da rua enquanto
Freddie olha pela janela, em silêncio. E esperamos mais um pouco.
– É hora de ir, Freddie – digo, e passamos juntas pela porta.
Freddie está encolhida e concentrada em cada linha de
argamassa entre os tijolos do caminho que dá na nossa casa.
A menina amedrontada, que Anne afirmou que estava ótima há
alguns dias, mas que hoje não parece nem um pouco ótima, está
encostada em um carro, os braços cruzados e a cabeça baixa. Hoje
não usa uma saia carmim pregueada nem carrega uma mochila
estourando de livros. Uma mala verde-oliva, de lateral mole, está ao
seu lado na calçada. Sabrina.
A pessoa que trouxe a menina espera no carro, um SUV Lexus
cinza-aço, modelo novo. Acho que é uma mulher, pelas formas do
corpo, mas é difícil dizer porque ela está encolhida, a cabeça
curvada sobre o volante, os ombros se movendo em um ritmo
entrecortado. Sabrina fita a calçada com um cartão amarelo na mão.
Os cartões amarelos chegam rápido. O de Freddie veio ontem,
por malote, em um envelope pardo endereçado à Família Fairchild.
No canto superior esquerdo estava o emblema ensolarado da
Campanha Família Mais Apta, uma silhueta de três figuras com algo
que parece um halo logo acima da figura menor. Para mim mais
parece uma coroa de espinhos.
Outra coisa que sei sobre Sabrina: ela foi de uma escola prata
para uma escola federal sem passar pela verde. É como ser
chutada do céu e despencar até o inferno, passando direto pela
esperança do purgatório. Como aconteceu com Judy Green, na
semana passada.
Essa mudança nova e súbita no funcionamento do sistema me
deixa mais inquieta. Nós temos regras, sistemas, máquinas bem
lubrificadas que cospem um produto conhecido e calculado, ainda
que odiado por alguns. Os ônibus amarelos fazem a ronda uma vez
por mês, sempre na segunda-feira depois do dia da prova. As
crianças das escolas prata que fracassam caem para as escolas
verdes. É assim que a máquina funciona.
Mas nem sempre a máquina funcionou assim. Todos os ônibus
tinham a mesma cor. Todas as crianças iam às mesmas escolas. As
pessoas iam para a faculdade e estudavam o que quisessem, e não
o que era considerado necessário para o bem maior.
Antes que Malcolm me convencesse a mudar para o campo mais
lucrativo das ciências biológicas, experimentei tudo que a faculdade
oferecia. Filosofia, literatura, clássicos. Na minha turma de latim
havia o cartaz de um elefante que tinha acabado de dar uma
cagada, com Stercus Accidit! escrito embaixo em um amarelo-vivo –
para o professor, essa era a ideia de uma piada em latim. Agora que
penso naquele cartaz percebo que a imagem estava completamente
equivocada. A merda não acontece toda de uma vez; nenhum
elefante descarrega um monte apenas onde você vai pisar. O que
acontece é o seguinte: um coelhinho solta uma bolotinha de cocô,
depois outra e mais outra. Você não se importa muito, porque o
coelho é bonitinho e as bolotinhas são pequenas, podem ser
varridas com facilidade.
Stercus Accidit! Um pouco de cada vez. Geralmente quando não
estamos prestando atenção. Como a história da minha mãe sobre o
sapo na panela de água fervente.
– Oi – diz Freddie enquanto nos aproximamos do tal carro.
– Oi – responde Sabrina.
E então voltamos a esperar.
Atrás de nós, a cortina da Sra. Delacroix se mexe ligeiramente
para a esquerda enquanto ela se prepara para observar os
acontecimentos da manhã. Nas casas que ladeiam a dela, as coisas
são menos sutis. Persianas sobem com um estalo audível. A Sra.
Morris finge estar tirando o pó de um parapeito de janela. A Sra.
Callahan borrifa limpador cinco vezes no mesmo vidro, esfregando-o
até guinchar, usando um novo pedaço de papel-toalha depois de
cada borrifo. Todas participaram da campanha de engenharia social
de Sarah Green há alguns anos.
Aproveitem o espetáculo, senhoras. Imbecis.
Freddie pega o celular e começa a guiar galinhas para
atravessarem ruas congestionadas. É o seu modo de escapar para
outra realidade. Deixo-a jogar: qualquer coisa para impedir um
daqueles colapsos. Sabrina continua olhando para a calçada como
se fosse uma obra de arte. A pessoa no banco do motorista do SUV
sai, acende um cigarro (precisa fazer três tentativas antes de
finalmente conseguir que a chama se acenda) e me olha com
intensidade.
– Você é a esposa daquele escroto do Fairchild, não é?
– Sou. – Por enquanto.
A mãe de Sabrina traga a fumaça com força e a sopra no meu
rosto.
– Isso é para ele, que Deus o abençoe.
Você precisa crescer no Sul, ou pelo menos passar um tempo lá,
para entender que “Deus o abençoe” não é exatamente um modo
educado de desejar o bem. Na verdade, é o contrário. Abano a mão
afastando uma nuvem de fumaça e paro perto de Freddie enquanto
o ônibus amarelo vira a esquina roncando. Formas mais
indistinguíveis, de vários tamanhos, se comprimem contra as
janelas.
– Entre de volta no carro, Sabrina – ordena a mãe da garota. –
Vamos para casa. Não importa o que vai acontecer com as notas Q
de seus irmãos. Vamos nos mudar. Vamos para algum lugar menos
louco. – Ela diz a última frase me encarando.
Sabrina apenas fica parada, olhando para baixo. Balança a
cabeça uma vez, depois duas.
– Eu preciso ir, mãe.
– Não, não precisa.
– Você não entende. Eu preciso, sim.
– Já chega. Venha, garota – fala a mãe, empurrando a filha para
dentro do carro e prendendo-a ao cinto de segurança antes de
passar correndo pela frente e também entrar. O motor ronrona ao
ser ligado.
Há uma lição de física elementar; sei disso depois de ter servido
como inspetora de exames durante anos. A ideia é a seguinte: para
realizar uma mudança você precisa de força. E força é exatamente
o que brota do Lexus quando Sabrina salta do carro gritando para a
mãe ir embora enquanto o ônibus amarelo dá sua primeira buzinada
aguda na rua.
O que acontece em seguida é muito rápido. Sabrina corre para
sua mala, na calçada. A mãe deixa o motor do Lexus morrer
enquanto tenta engatar a marcha a ré. Sabrina corre aos tropeços
em direção à porta do ônibus amarelo que se escancara em um
bocejo. A mãe salta do carro, às cegas na direção da filha, tentando
segurar o casaco de Sabrina e pegando apenas punhados de ar.
É como se a garota quisesse ir.
Por um momento ridículo, penso no antigo filme com o Pegador
de Crianças, imaginando por que alguém ia querer embarcar nessa
carrocinha horrível com suas barras de ferro enquanto mães
desesperadas gritam nas ruas.
A Sra. Delacroix, a Sra. Morris e a Sra. Callahan ainda estão nas
janelas, observando. Grito para elas irem cuidar da própria vida, e
há um estardalhaço de persianas enquanto, uma a uma, as
mulheres as baixam. Há algo no som das persianas sendo fechadas
com um único gesto. Algo que parece um suspiro de apatia coletivo.
De repente estou de volta a outra reunião do conselho escolar
com Malcolm (Anne, aos 6 anos, está em casa com a babá),
ouvindo perguntas e reclamações da plateia de pais preocupados,
professores cansados e colaboradores comunitários frustrados
liderados por Sarah Green, que mora na minha rua.
O professor do meu filho gasta mais tempo com as crianças que
não sabem ler.
Não consigo encarar outra rodada de aulas de recuperação este
ano. Não consigo.
Nós realmente temos espaço no orçamento para mais
intérpretes de linguagem de sinais e especialistas para alunos que
não têm inglês como língua materna?
E finalmente:
Será que não podemos simplesmente colocá-los em outro lugar?
Na segunda vez em que o ônibus buzina, Freddie começa a
balançar a cabeça com tanta violência que fico com medo de seu
pescoço se partir. Será que isso pode acontecer? Será fisicamente
possível alguém quebrar o próprio pescoço?
Não sei. Mas sei de uma coisa: vou levá-la de volta para casa.
VINTE E TRÊS

E então descubro por que meu marido ficou em casa esta manhã.
Antes de atravessarmos a rua, Malcolm já saiu de casa, as
mãos abotoando o colarinho enquanto anda até nós com o tipo de
sorriso que reserva para a filha mais velha.
– O que é isso? – pergunta ele, pegando Freddie no colo. – Que
negócio é esse? – Quando Freddie não responde, ele instiga. Faz
um barulhinho como se tentasse seduzi-la. – Pronto, pronto,
Frederica. Pode falar comigo.
Ela funga uma vez, respira fundo, embargada, cheia de lágrimas,
ranho e catarro. O sorriso de Malcolm some e seus olhos registram
um nojo que eu não pensaria ser possível em um pai.
– Quero ficar aqui com mamãe e Anne – diz ela finalmente.
Por trás dela, meus olhos imploram a Malcolm: Conserte isso.
Sei que você pode. Quando ele fala, quase acredito que me ouviu.
– Ora, Frederica – retoma ele –, você pode ficar conosco se
quiser de verdade. Está nas suas mãos.
Quase pergunto o que colocaram no café dele hoje cedo, depois
penso melhor. Freddie relaxou e ficou mais calma, e um sorriso
largo ilumina seu rosto enquanto Malcolm a carrega até a varanda,
para longe do ônibus amarelo com o motor ligado, senta-a no colo e
começa a falar:
– Você sabe o que significa “progresso”, querida? – indaga em
sua melhor voz de discurso, não muito dura, não muito suave. Uma
voz do tipo Cachinhos Dourados, do tipo que se enterra em ouvidos
insuspeitos e derrota defesas sem quaisquer armas.
Freddie assente, funga de novo.
– O que significa, querida?
– É quando as coisas melhoram.
– Essa é a minha garota. E nós queremos que as coisas
melhorem, não é? Não queremos que as coisas piorem.
Ela assente outra vez.
– Bom. Se você ficar em casa, eles vão tirar pontos da nota Q da
Anne.
Não acredito no que estou ouvindo.
– Malcolm? Que mer...
Ele me encara com raiva.
– Não me obrigue a piorar as coisas, Elena.
Freddie arregala os olhos.
– Um monte de pontos?
– Não sei. Talvez um pouco, talvez um monte. Você não quer
que isso aconteça, não é?
Ah, Malcolm...
Freddie balança a cabeça.
– Claro que não quer. Anne precisa pensar na faculdade. E ainda
faltam muitos anos para você ir para a faculdade. – Ele faz com que
ela se endireite, para poder olhá-lo nos olhos. – Bom, você ama a
sua irmã, não ama?
– Malcolm, pelo amor de Deus – peço. – Pare com isso.
Ele não para. Continua. E piora tudo.
– Você e sua mãe teriam que ir morar com Oma e Opa.
Minha filha não enxerga a maldade, não percebe o que virá em
seguida. O sorriso em seu rosto começa a estremecer enquanto ela
ouve o próprio pai explicar:
– Você não poderia mais ver Anne – comenta ele, me olhando,
me desafiando a interferir, sabendo que vou ficar quieta. Ele venceu
esse round. Com nocaute.
– Nunca mais? – indaga Freddie.
– Nunca mais. Você não quer que isso aconteça, não é?
Ela faz que não rapidamente.
– E todos nós vamos fazer o que é melhor para todo mundo, não
é?
Outra confirmação.
– Boa garota.
Ele se levanta, pega Freddie pela mão e puxa sua mala,
atravessando a rua até o ônibus. A mãe de Sabrina ainda está lá,
olhando com uma expressão vazia para a janela traseira do ônibus
amarelo, mas uma nuvem de condensação no vidro escondeu o
rosto da filha.
Freddie me dá um último abraço e embarca. Pega um lugar no
fundo, perto de Sabrina, passa a palma da mão pelo vidro e acena
para nós. Não lembro a última vez em que ela sorriu para o pai.
– Ah, Malcolm... – digo, abrindo um falso sorriso enquanto aceno
para minha filha. – O que foi que você fez?
– Exatamente o que você queria, Elena.
VINTE E QUATRO

ANTES

N
a segunda-feira, as garotas populares ficavam na fila curta,
as mãos na cintura, falando sem parar, os lábios brilhando
com gloss. Trocavam fofocas sobre as festas e o jogo de
futebol do fim de semana, a cada cinco segundos ajeitavam cabelos
que não precisavam ser ajeitados e lançavam olhares sensuais,
pouco adolescentes, para o garoto que fosse o alvo da vez.
Eu odiava absolutamente todas elas. Ao mesmo tempo, queria
ser como elas. Queria fazer parte da turma do “nós”, e não do grupo
nerd, que “traz o próprio lanche”, “nunca é convidado para nada” e
se sentava junto em uma mesa de canto no refeitório. Jimmy
Fawkes, Cheryl Comstock, Roy Shapiro e sua namorada espinhenta
Candice Bell: jovens de 16 anos que não tinham nada em comum a
não ser notas máximas e o ódio compartilhado pelo pessoal bonito e
popular.
Mas, naquela segunda-feira, com Malcolm à esquerda e Cheryl à
direita, eu estava feliz. Estava esperando a merda bater no
ventilador. Quando isso acontecesse, seria em grande estilo.
Malcolm riu e me cutucou no instante em que a bela Margie
Miller chegou ao balcão das refeições, tamborilando na sua bandeja
plástica com unhas cor-de-rosa brilhantes. Pensei que ela devia
estar com dor de cabeça devido ao esforço de decidir qual sabor de
molho de salada sem gordura ia querer em sua comida de coelho.
Bom, Margie teria uma surpresa.
Os novos cartões de identidade tinham chegado naquela manhã
e sido distribuídos antes das aulas, enquanto todas as sósias de
Margie flertavam com suas conquistas de fim de semana e os
indesejáveis como eu metiam a cara nos livros didáticos, estudando
para a prova de geometria daquele dia. Observei a Sra. Parsons
entregando-os – dourados, verdes e brancos – e vi Margie e sua
turma enfiarem os novos cartões brancos em bolsas e bolsos. Os
folhetos que a Sra. Parsons distribuiu junto com eles foram parar no
chão ou em uma lata de lixo.
– Olhe só isso – disse Malcolm, me cutucando de novo enquanto
Margie fazia o pedido.
Ela estendeu o cartão, pronto para ser escaneado, e a mulher
que servia o almoço balançou a cabeça.
– É na outra fila, querida.
Margie olhou em volta. A outra fila serpenteava até o outro lado
do balcão, continuava junto à parede e chegava até o fundo do
refeitório. Talvez houvesse alguns alunos do lado de fora da porta.
Era difícil dizer.
– De jeito nenhum – reclamou Margie. – Só tenho meia hora
antes do treino de líder de torcida.
Dessa vez eu ri junto com Malcolm. Roy Shapiro estendeu a mão
por cima da mesa e fez um “toca aqui” comigo. Todos sabiam o que
ia acontecer, menos Margie.
– Quem tem cartão branco fica na fila número dois – avisou a
funcionária. – Esta fila é só para os cartões dourados e verdes.
Nova política.
Margie balançou a cabeça.
– Quando isso começou? – Nesse ponto o refeitório tinha ficado
em silêncio; um burburinho percorreu a fila mais comprida, do início
até o fim e de volta.
– Você não recebeu o folheto?
– Que ridículo! – exclamou Margie para as outras garotas na fila
com ela.
Virou-se, girando a saia azul e branca, e marchou para longe,
segurando a bandeja, não mais tamborilando com as unhas.
Passaram-se 25 minutos. Estávamos todos novamente à nossa
mesa de canto, depois de passar rapidamente pela fila expressa,
nossas lancheiras esquecidas, comendo as saladas de fruta, os
cheeseburgers e as barras de cereais que geralmente
desapareciam enquanto éramos empurrados para o fim da fila do
almoço. Além de um cartão de identificação dourado, eu tinha
dinheiro extra do trabalho como babá, e comprei as últimas saladas
para mim e Candice. Eu nem queria, e, a julgar pelas espinhas de
Candice, ela também não curtia comida saudável. Mas comprei
mesmo assim. Só porque podia.
Pela primeira vez, eu estava em primeiro lugar.
Finalmente Margie chegou ao balcão.
– Mix de salada, por favor. Molho ranch sem gordura. – Ela
verificou o relógio fino no pulso magro. – Só tenho cinco minutos. –
Um coro de “eu também” veio das garotas atrás dela. Margie podia
estar no fim da fila, mas garantiu que ainda houvesse gente atrás.
A funcionária trocou um olhar com as outras, que deram de
ombros em um gesto do tipo azar o seu. Ao meu lado, Candice
pegou uma terceira barra de cereal e fez “tsc, tsc”. Margie lançou
um olhar para ela, depois se virou de novo para o balcão e teve um
chilique.
– Você sabe quem é o meu pai? – perguntou. – Sabe? – Depois,
para o resto das garotas com uniformes de líder de torcida: – Isso é
inacreditável.
Não importava quem era o pai de Margie Miller nem qual cargo
ele ocupava no Legislativo. Ele podia fazer barulho em nível
estadual, mas, naquele momento e naquele lugar, estávamos no
nível municipal. A única coisa que importava era que as notas de
Margie tinham lhe rendido um cartão branco, e os cartões brancos
precisavam esperar.
Foi um glorioso foda-se para todos eles. Dado por nós.
VINTE E CINCO

Q
uando os seres humanos se encontram em situações
extremas, em um trauma pessoal, um mecanismo é
acionado. Um interruptor é ligado. Até o mais introvertido se
abre e despe a alma.
Não conheço a mãe de Sabrina; só vi sua silhueta atrás do
volante quando ela deixou a filha. Mas, quando a porta se fecha,
lacrando a boca do ônibus amarelo, essa mulher sem nome e eu
nos abraçamos como se fôssemos os últimos seres humanos da
terra. Desta vez, quando acende outro cigarro e o ônibus se afasta,
ela não sopra uma nuvem de alcatrão queimado no meu rosto.
– Dizem que a gente pode visitar – comenta ela a ninguém em
especial. – Uma vez a cada trimestre. Durante cinco horas.
Realmente diziam isso. No mesmo envelope em que veio o
cartão amarelo de Freddie havia um panfleto com as regras. Eu as
recito mentalmente.

Caros pais,

Por favor, não mandem os estudantes com dispositivos


eletrônicos, inclusive celulares, máquinas fotográficas,
gravadores de voz ou imagem de qualquer tipo, tablets,
notebooks ou pen drives. Tudo isso será confiscado na
entrada e guardado em armários. Achamos que o trabalho em
uma zona livre de equipamentos eletrônicos dá ao estudante a
liberdade para alcançar seu potencial acadêmico. Além disso,
por favor, não mandem o estudante com dinheiro, joias ou
outros objetos de valor.
Pedimos encarecidamente que pais e outros familiares não
telefonem nem mandem e-mails para a escola. Nossa missão
é servir aos seus filhos. Os funcionários não estarão
disponíveis para dedicar recursos à comunicação com os pais,
a não ser em caso de emergência familiar. Não serão
admitidas visitas pessoais fora dos dias programados.
Haverá um dia de visita a cada trimestre. A data e outros
detalhes serão enviados pelo correio nos próximos dois dias
úteis.

Obrigada por nos confiar seus filhos,


Sra. Martha Underwood, Diretora
Escola Federal no 46

As escolas federais não têm nome, apenas números, quase uma


por estado. Eu não fazia ideia de que existiam tantas.
Descubro que a mãe de Sabrina se chama Jolene Fox. Apesar
de seu sobrenome significar raposa, ela mais parece uma corça sob
a luz dos faróis, com os olhos arregalados e as pupilas dilatadas.
– Não entendo – diz Jolene entre tragadas curtas no terceiro
cigarro. – Elas não deveriam ir para as escolas federais por não
terem passado nos exames de nível prata. Quero dizer, já foi ruim
quando recebemos o envelope, achando que haveria um cartão
verde dentro. Mas não esperávamos um amarelo. Amarelo, não. –
Ela faz uma pausa, estreitando os olhos por causa do sol. – É
engraçado... Eu amava amarelo. Agora vou ter que trocar as
cortinas porque não suporto mais essa cor.
– Você está em condições de dirigir? Quer entrar e tomar um
chá? – pergunto, recuando imediatamente porque Malcolm me lança
um olhar furioso.
Ela balança a cabeça, esmaga o cigarro meio fumado com um
escarpin Bally e balança o chaveiro nervosamente em uma das
mãos. SUV Lexus, sapatos suíços, chaveiro Tiffany com
monograma. Mas sem filha. Para ver de que servem os efeitos
protetores do dinheiro.
A única coisa que resta é trocarmos e-mails, por isso passamos
um momento em silêncio digitando letras, números e arrobas antes
de eu voltar para minha casa. Malcolm já entrou, mas não antes de
o ônibus ter partido com sua filha, que consigo visualizar naquele
veículo amarelo, a cabeça encostada no vidro frio da janela,
contando árvores, postes telefônicos e marcos de quilômetros.
Não sei se existe alguma palavra para definir o que eu sou
agora. Muitas me vêm à mente, todas com sentido negativo, mas
nenhuma parece servir; nenhuma descreve o horror-sofrimento-
raiva-perda-tristeza-ódio que eu sinto. Deveria existir uma palavra
nova, uma nova concatenação de sons e sílabas para descrever o
desespero dentro de mim. Poderia ser algo como tchlug. Ou frarque.
Ou um grito.
– Eles cometeram um erro? – pergunto a Malcolm enquanto
esquento o café gelado no micro-ondas e o levo de volta à janela de
onde posso observar Jolene.
Essas foram praticamente todas as palavras que dirigi ao meu
marido desde ontem de manhã, quando ele me chantageou para ir
tomar o café com Alex. Mesmo então, o máximo que consegui foram
algumas respostas monossilábicas para as perguntas de Alex sobre
as meninas.
Ele ergue os olhos do telefone.
– Com relação a quê?
– Àquela garota. Na semana passada ela estava na escola de
Anne. Agora recebeu um cartão amarelo.
Seria demais querer que Malcolm se juntasse a mim perto da
janela, por isso ele responde da cadeira da sala de jantar, onde seu
computador, seu café e seu ego lhe fazem companhia.
– Talvez ela tenha levado pau em tudo na sexta feira – diz.
– Anne contou que ela estava se saindo bem. Na verdade, que
estava ótima.
A única reação de Malcolm é um dar de ombros despreocupado.
Do outro lado da rua, a porta do Lexus se abre. Jolene se senta
no banco com as pernas para fora e acende mais um cigarro. São
sete da manhã. Tenho a sensação de que este será um dia de
muitos maços para ela.
– Vou tirar um dia de licença e ir à casa dos meus pais – digo,
mandando uma mensagem para Rita.
Isso atrai a atenção de Malcolm e ele se vira para mim. O
hematoma no seu rosto desenvolveu uma auréola amarelada.
– Presumo que você vá voltar.
Não é uma pergunta.
– Claro.
Malcolm não se importa se eu vou voltar, se vou ficar na casa
dos meus pais, se vou deixar uma barba crescer e fugir com um
circo itinerante. Isso é óbvio pelo seu tom de voz. Comigo fora do
caminho, ele e Anne podem ter suas festinhas particulares no jantar;
ele pode encher a cabeça dela com ideias sobre seu admirável
mundo novo da educação.
Ele joga um paletó nos ombros e passa por mim em direção à
porta.
– Só não fique tanto tempo com aquela sua avó a ponto de ferrar
suas avaliações amanhã.
É verdade que eu já amei esse homem?
– Não vou ferrar nada.
A porta se fecha com uma pancada, separando mais do que o
lado de fora do de dentro, e eu me sento no quarto de Freddie. O
travesseiro ainda tem o cheiro da minha filha e eu me enterro nele,
respirando o que resta dela. Neste quarto tudo tem um tom de rosa-
bala, verde-musgo ou amarelo-manteiga, cores suaves que
deveriam me reconfortar, mas não é o que acontece. Bonecas me
observam em silêncio, com os olhos pretos cheios de reprovação,
empoleiradas na prateleirinha que eu pintei de branco no ano
passado. Um chiclete – de morango, acho – caiu entre a mesinha de
cabeceira e a beirada da cama. Pego-o, imaginando os dedinhos de
Freddie desenrolando o papel, dobrando-o em quatro partes, como
ela sempre faz.
Eu não deveria ser tão egoísta. Não sou a primeira mulher, nem
a primeira irmã, mãe ou esposa que se senta em um quarto vazio
sem ter nada além de cores e objetos como consolo. Mulheres vêm
perdendo filhos desde que passaram a tê-los. Cólera. Câncer.
Guerra. Nada disso é justo.
Um telefone toca na cozinha, interrompendo meu sofrimento, e
eu penso idiotamente: É isso. É agora que eles me dizem que houve
um erro. Saio relutante do quarto de Freddie e fecho a porta. O
alívio chega e se dissolve em questão de segundos. Não há
salvação ao telefone, nenhuma voz animada me informando que
houve um problema no sistema.
O telefone não é o meu nem o de Freddie, e sim o de Anne, e
não deveria estar aqui. Deveria estar grudado na mão dela, como
sempre. Há uma notificação de mensagem de uma amiga dela, uma
garota que já veio aqui em vários sábados para sessões de estudos.
Ei. Vc tá bem?
É a última mensagem em um longo fio de conversa, e estou
quase largando o celular quando vejo as últimas respostas de Anne:
“Cala a boca!!!” acompanhado de um emoji de choro. Não daqueles
chorando de rir, e sim o outro. Com lágrimas de verdade e rosto
azedo. E depois disso um seco “odeio vc”.
Eu não deveria ler as mensagens, mas leio. Caso contrário,
ficaria preocupada. Caso contrário, imaginaria todo tipo de coisa.
A amiga – que imagino que não seja mais amiga – começou a
conversa na noite de sexta-feira com uma mensagem simples:
Provavelmente isso é o melhor pra Freddie.
De tudo o que “isso” poderia ser para minha filha mais nova, a
palavra “melhor” não passou nem perto. Nenhuma vez. Mas não é o
que faz minha pressão subir.
Ela não é como vc.
Talvez ela seja ignorante.
Tipo nos livros do seu pai.
As mensagens fazem meus olhos arderem. E explicam por que
Anne foi para a escola sem o celular.
Estou no andar de cima, o café esquecido na bancada da
cozinha com o celular cheio de mensagens. O escritório que divido
com Malcolm no quarto dos fundos é mais dele do que meu, com
um espaço quadrado recuado para o meu notebook e algumas
pastas da escola. Normalmente deixo a maior parte do trabalho no
trabalho, só trazendo papelada para casa quando necessário.
Ignoro meu espaço e vou direto para a estante que vai do chão ao
teto, à esquerda da mesa de Malcolm.
Ali, na prateleira de cima, está o cânone de teoria da
aprendizagem e desenvolvimento cognitivo, desde Köhler até Piaget
e Montessori. Li alguns quando Anne era pequena, mas não me
lembro de terem mencionado pessoas ignorantes nas descrições da
psicologia Gestalt ou no método Montessori. Meus dedos percorrem
as lombadas, depois passo para os da prateleira de baixo e
finalmente até a última delas, parcialmente escondida por um móvel
de arquivo e um cesto de lixo. Tiro os três primeiros livros e começo
a folheá-los no chão, entre a mesa e a parede. Nem sei o que estou
procurando.
Talvez ela seja ignorante. Tipo nos livros do seu pai.
Começo com o mais antigo, cuja capa está rasgada e as páginas
tão mofadas que não podem fazer parte das apostilas de Malcolm
da época da faculdade. Até o cheiro é velho, uma velhice úmida e
bolorenta do tipo que a gente encontra em porões esquecidos de
bibliotecas. Abro direto em uma página central.
Um gráfico que me lembro de ter visto em uma aula de
psicologia na faculdade ocupa a página da direita; do lado esquerdo
há uma narrativa densa. Em negrito no topo duas palavras
anunciam o tema do capítulo: Apoio científico. Leio o primeiro
parágrafo.
É difícil ler o termo “ciência” junto com expressões como “Henry
Goddard, Diretor de Pesquisa na Escola de Formação Vineland para
Meninas e Meninos Débeis Mentais” e “a maior ameaça para a
civilização está no fato de os indivíduos débeis mentais transmitirem
seu defeito para as gerações futuras”, mas continuo, comparando
com a curva de Gauss da página ao lado.
É inquestionável que uma criança de 13 anos com idade mental
de 2 esteja fora da curva de qualquer escala de medição de
inteligência, mas é chocante observar que a palavra “idiota” era
usada de forma tão casual no início do século XX. Verifico o gráfico
na página seguinte, uma chave útil para as categorias. Quem tiver
um número abaixo de 70 é classificado na categoria genérica de
“débil mental”, com os idiotas na base, os imbecis logo acima destes
– mas ainda abaixo de 50 – e os ignorantes no purgatório que vai
dos 50 até 69.
Outro trecho elogia Alfred Binet como o gênio por trás do sistema
dos 100 pontos, mas ele só é rapidamente mencionado antes que o
foco passe para Henry Goddard, a ampliação dos testes
padronizados e as vantagens de identificar as crianças mentalmente
deficientes na primeira oportunidade possível. O nome Goddard
chama a atenção e eu fecho os olhos em um esforço para lembrar
onde o tinha visto. Em um carro? Não, não é isso. Mas em alguma
coisa com rodas. Alguma coisa maior do que um carro.
Um ônibus. Um ônibus prateado.
Examino a estante atrás de mim. Três prateleiras acima há um
grande fichário intitulado Registro das Escolas Prateadas do ano
atual. Abas brancas com inscrições em negrito, uma por estado,
separam as páginas. Quero as com M.
Estão ordenadas por condado, e percorro as páginas com os
dedos até encontrar Montgomery. E leio.

Davenport
Fernald
Galton
Goddard
Harriman
Laughlin
Noll
Sanger
Thomson

Quase todos os nomes são pouco familiares ou eram pouco


familiares até alguns minutos atrás. Automaticamente vou para a
primeira prateleira, empurrando o cesto de lixo para fora do caminho
e puxando o arquivo alguns centímetros, o suficiente para ler dois
títulos.

Os débeis mentais entre nós: instituições para os mentalmente retardados no Sul,


1900-1940

A família Kalikal: um estudo sobre a hereditariedade da debilidade mental


Outros livros são na verdade periódicos. Dentro de um volume
de 1912 do Boston Medical and Surgical Journal há um marcador
posicionado no texto de um discurso de Walter Fernald. O título
basta para fazer meu café da manhã subir em um jato azedo: “O
fardo da debilidade mental”.
Que porra é essa?
O computador de Malcolm é zona proibida – algo a ver com
segurança –, por isso pego meu notebook na mesa e me ajoelho no
meio de livros e periódicos espalhados, a audição atenta como a de
um animal selvagem a qualquer ruído vindo do andar de baixo.
Minhas mãos estão tremendo tanto que erro a senha duas vezes e a
caixa de diálogo me lança um professoral Senha incorreta a cada
vez que aperto o Enter. Na terceira tentativa clico no botão para
mostrar o que estou digitando, lendo a sequência letra por letra.
Está certa – sei que está certa –, mas a caixa continua tremendo,
como se balançasse um dedo para mim.
Um dedo pertencente ao meu marido, avisando que não só o
computador dele está proibido.
Ele bloqueou meu próprio notebook.
VINTE E SEIS

E
stou com o celular na mão, para usá-lo como último recurso,
quando em vez disso decido ligar para meus pais. Em quinze
minutos estou no carro, seguindo para noroeste.
A voz melosa de Madeleine Sinclair responde à pergunta do
entrevistador em um programa no rádio do qual eu gostava
antigamente, quando os convidados tinham coisas mais
interessantes a dizer. Eu me lembro da Rainha Noor da Jordânia
comentando sobre a importância do diálogo intercultural, de Ursula
Le Guin confessando os desafios da escrita que chegam junto com
a maternidade, de Ray Charles nostálgico falando de quando tinha
assistido ao concerto de música country Grand Ole Opry na
infância... Isso foi antigamente; isto é agora.
– E temos projetos empolgantes para lançar – acrescenta
Madeleine. – Projetos que levarão a Campanha Família Mais Apta
ao próximo nível.
– Foda-se sua Campanha Família Mais Apta – digo ao rádio
enquanto desvio dos carros da hora do rush, ansiosa para escapar
da fileira de caixões metálicos que seguem pela I-66 e chegar a
estradas secundárias vazias.
Até agora os projetos de Madeleine Sinclair levaram minha
família a dois novos e empolgantes níveis: medo por minha filha
mais nova, neste momento sentada em um ônibus amarelo,
sozinha, contando postes telefônicos a caminho do Kansas; e nojo
renovado do meu marido.
Se isso não é empolgante, não sei o que mais poderia ser.
Desligo o rádio e penso no que vou dizer a Oma ou, mais
importante, no que quero que Oma me diga. Ela tem muito a contar
e estou pronta para ouvir. Ou pelo menos acho que estou.
Quando eu era adolescente, teve uma época em que paramos
de nos falar, mais ou menos quando Malcolm e eu tivemos nosso
primeiro amasso desajeitado no carro dele, depois de termos feito a
passagem de “indesejáveis” para “descolados”. Oma parecia não
gostar muito de mim nesse período.
Tentei contar a ela como as coisas eram horríveis antes, quando
eu ficava vermelha, sem graça, se o professor de educação física
insistisse nos exercícios de ginástica, quando meus pés se
embolavam em uma corda de pular, quando eu me desequilibrava e
caía de bunda antes de completar ao menos uma sequência de
amarelinha. Cite qualquer brincadeira – pega-pega, pique-bandeira,
esconde-esconde, cabo de guerra –, eu era péssima. Não chegava
em casa com joelhos e cotovelos ralados, mas ainda sentia a
ardência na pele e o latejar dos vasos sanguíneos rompidos. Eram
ferimentos invisíveis, mas notáveis para mim.
Minha mãe, sempre clinicamente sensata, aplicava o melhor
unguento que conhecia.
– Você não precisa ser igual a elas, Elena. Você é melhor do seu
jeito. É inteligente.
É, tinha isso.
Eu acreditava nas palavras dela, rindo presunçosa sempre que
terminava uma prova primeiro e levava o papel até a mesa do
professor com trinta minutos de folga, a cada vez que os relatórios
de aptidão nacional chegavam e minhas notas brilhavam com barras
escuras e percentuais de 99 por cento. Eu aprendia sozinha insultos
em latim e grego antigo, usava-os sempre que alguma líder de
torcida com cérebro de minhoca se sentava ao meu lado com sua
minissaia em dia de jogo.
Até que encontrei o equilíbrio, me juntei ao pessoal inteligente,
mas também arrumei tempo para coisas como maquiagem e
sapatos da moda.
E comecei a namorar Malcolm.
Agora que Madeleine Sinclair parou de invadir meu espaço
pessoal, o carro fica silencioso demais. Conecto o meu celular no
carro por meio de Bluetooth e peço à minha amiga Siri para tocar
alguma coisa animada. Siri erra feio e manda “Joy”, de Lucinda
Williams, mas tudo bem. Se não posso ter animação, serve fúria e
raiva.
São duas coisas que sinto de sobra.
Coloco a música na repetição. Na sétima vez em que Lucinda diz
ao mundo que vai até Slidell procurar sua alegria, estou chegando à
casa dos meus pais e parando atrás do Volkswagen deles.
Depois de dois dias com Malcolm por perto sempre que mamãe
ou papai ligava, estou louca para ter uma conversa que não consista
em mensagens codificadas e subtextos.
O dia está frio para um início de novembro, mas não tanto
quanto ontem. Mesmo assim, sinto um cobertor de ar gelado em
mim, penetrando nos poros e abrindo caminho até os ossos
enquanto subo os degraus da varanda.
– Bom, que se fodam todos eles – diz minha mãe quando abre a
porta. Depois, com um pouco menos de azedume na voz: –
Desculpe. Não posso dizer nada de bom sobre essas pessoas. Nem
seu pai. Você devia ter ouvido o tanto que ele xingou no sábado à
tarde. Venha, vamos tomar uma cerveja. Oma não está bem, mas
acho que ela quer falar com você.
Lucinda Williams fracassou comigo. Antes mesmo de chegarmos
à cozinha, eu já tinha virado uma poça de lágrimas, cansada de
tudo. Papai me faz sentar em sua poltrona grande, serve dois dedos
de Kräuterschnapps em um copo pequeno e me entrega. O cheiro
de ervas adoçadas e álcool suplanta tudo por um momento; os
dedos compridos da minha mãe me acariciando como se eu fosse
um cachorrinho amado me fazem relembrar tempos melhores. O
alívio é temporário, mas eu o saboreio.
– Quer ficar com a gente esta noite? – pergunta mamãe.
Assinto e balbucio algumas palavras em consentimento.
– Só que amanhã de manhã tenho avaliação dos professores. Às
nove.
– Tudo isso tem a ver com dinheiro, sabe – comenta ela. – Tudo
isso. Quando eu ainda dava aulas, fiz uma requisição por verbas
extras. Sabe o que o comitê de revisão me respondeu?
– Posso imaginar.
– Falaram dos 375 por cento. Em outras palavras – ela faz um
gesto de adeus com a mão –, não há mais dinheiro. Um aumento de
375 por cento no custo por criança desde 1970. Logo antes de eu
me aposentar, eles começaram a falar em ordens de magnitude no
aumento dos gastos. – Minha mãe acende um cigarro, ignorando o
tsc, tsc de papai. Ela traga e depois solta a fumaça em um suspiro
pesado. – Bom, um dia eu estava numa reunião e aquelas pessoas
de terno começaram a jogar números para todo lado. Tantos por
cento de produto interno bruto, tantos dólares gastos por aluno,
tantos dólares desperdiçados... desperdiçados... em salários de
professores, baixos níveis de desempenho em matemática, leitura e
ciências. Pelo modo como falavam, todo o sistema escolar estava
quebrado e eu era parte do problema.
– Cuidado com a pressão, Sandra – aconselha meu pai, apesar
de seus olhos revelarem que está gostando do discurso de mamãe.
– Malcolm sempre falou que nós estávamos gastando demais –
digo.
Há alguns instantes mamãe não parecia capaz de ficar mais
inflamada, mas agora prova que eu estava enganada.
– Gastando demais? Nós gastamos algum dinheiro e adivinha o
que conseguimos. Notas mais altas em grupos de estudantes que
faziam parte de minorias. Melhor integração de crianças talentosas
que antes estariam murchando em turmas de educação especial
porque não conseguiam acertar uma questão de matemática. Isso
não é gastar demais. É gastar com inteligência. – Ela faz uma
pausa, me olha com intensidade e continua: – Depois temos a
classe alta. Sabe, eu participei de uma reunião de pais e mestres,
com os pais reivindicando o sistema de camadas. Eles adoravam a
ideia. Principalmente porque achavam que só seria aplicada aos
filhos dos vizinhos mexicanos. Ou às crianças da educação
especial. Jamais aos seus preciosos prodígios. – Ela balança a
cabeça. – É como um funil, Elena. Uma porcaria de um funil cada
vez mais largo. Mas pelo menos estamos com o problema
populacional sob controle.
Com relação a isso ela está certa. Há dez anos os especialistas
em geografia previam uma explosão. Miami, Nova York, Chicago e
Los Angeles caminhavam rapidamente para a superpopulação. “Se
continuarmos assim”, diziam eles, “vamos chegar à mesma
proporção de Nova Délhi. Bem aqui, no nosso país”.
– De qualquer modo, agora que temos aquela escrota da Sinclair
como encarregada da Educação, o negócio do dinheiro está
piorando. Por exemplo...
Mas eu já conheço os exemplos. Sei que Madeleine Sinclair tem
mais poder que o presidente. Sei que ela tem um poço sem fundo
de verbas investidas pelos dois por cento mais ricos da população e
o apoio de muitos outros: famílias sem filhos reclamando dos
impostos, supremacistas brancos preocupados com a hipótese de
os imigrantes assumirem o controle, dezenas de milhões de baby
boomers idosos que aplaudiram quando seus impostos prediais
foram reduzidos, pais como Sarah Green que jamais pensaram que
o ônibus amarelo um dia pegaria seus filhos... A Campanha Família
Mais Apta é pura genialidade, acumulando dúvidas e temores de
toda parte, de todas as direções, mas respondendo com uma única
canetada de diretrizes.
Batidas irregulares vindas do cômodo dos fundos anunciam
minha avó, que pelo jeito se mudou para o andar de baixo.
– Leni?
Eu me viro.
– Oi, Oma.
– Quero falar uma coisa sobre suas provas de avaliação dos
professores.
– A senhora ouviu isso?
– Lembra que eu ganhei ouvidos novos? – pergunta ela,
acomodando-se no sofá com a ajuda de meu pai. – Agora, se ao
menos eu pudesse ter ossos novos para acompanhar os ouvidos...
– Ela ri, mas ninguém a acompanha. – Venha aqui, Liebchen. Eles
mandaram sua menina embora, não foi?
– Sim.
Oma me encara e segura minhas mãos, apertando com uma
força que eu não achava possível para alguém tão frágil.
– Você precisa ir ao Kansas trazê-la de volta.
VINTE E SETE

N
ão faz muito tempo saiu uma reportagem sobre um pai
furioso que foi de carro até uma escola federal. Bonita
Hamilton, a jornalista investigativa menos popular dos
Estados Unidos (“Aquela tal de Hamilton. Ela precisa recuperar o
bom senso”, reclamou Malcolm durante o café da manhã no
domingo), foi quem publicou a matéria no Post. O homem saiu da
cidade, passou por pontes e estradas rurais, antes de parar diante
da escola onde sua filha estava. Ele parou, estacionou e entrou. Ou,
eu deveria dizer, tentou entrar, escreveu Bonita. Foi mandado
embora. E aqui vai a pergunta: e se fosse a sua filha?
Eu lembro que houve algumas reações, uma carta para o editor,
uma coluna escrita por um acadêmico aposentado perguntando se
os Estados Unidos haviam chegado a este ponto. Malcolm bufou
quando falei no assunto.
– Imagine que tipo de pai deixa o filho cair tanto. As escolas
existem para assumir quando os pais fracassam, e Deus sabe que
pagamos o suficiente por elas. O que deveríamos fazer, Elena?
Permitir que cada mãe ou pai furioso comandasse o espetáculo?
A esperança de minha avó, de que eu entre na Escola Federal
do Kansas no 46, é apenas isso: uma esperança.
– Não acho que consigo tirar Freddie de lá – concluo.
Oma recusa o chá que minha mãe oferece e exige um schnapps.
Papai diz duas palavras de protesto antes de perceber que perdeu a
briga e volta do bar com um copo baixo com a mesma bebida que
me deu quando cheguei.
– Ah... Amargo e bom – comenta Oma, me ignorando. – E agora
vou lhe contar uma historinha.
Não quero uma história; quero o computador dos meus pais,
quero pesquisar toda essa merda, depois quero ir para a cama e
esquecer tudo que aconteceu desde que acordei hoje cedo. Mas os
olhos de Oma pedem que eu fique quieta e ouça. Que idiotice a
minha achar que ela havia perdido seu jeito autoritário! Quando meu
pai se levanta para sintonizar uma partida de golfe na televisão,
Oma veta movimento com uma batida forte da bengala.
– Isso tem a ver com você também, Gerhard. Portanto, sente-se
– ordena Oma em alemão, talvez para papai entender que ela não
está brincando.
E então volta a falar:
– Estou velha e vou morrer logo. Eu queria que essa história
morresse comigo. Foi isso que eu sempre quis para minha família:
deixar uma coisa feia morrer e enterrá-la. Aber.
Mas.
Ela usa palavras aleatórias em alemão, palavras que evocam
imagens coloridas e sons claros, enquanto ouço histórias sobre
garotas uniformizadas. De cabeça erguida e orgulhosa. Até mesmo
as mais novas da Jungmädelbund, com apenas 10 anos, postam-se
altivas ao serem fotografadas em comícios, manifestações,
passeatas. As blusas engomadas mal ondulam na brisa, as pregas
das saias azul-marinho são nítidas enquanto as garotas desfilam por
ruas e trilhas à beira de rios. Os ecos de cem chapinhas de aço
ressoam no concreto, clic-clic clic-clic clic-clic, e jovens vozes
virginais se alçam em notas de soprano e contralto. Elas são o
futuro, diz um homem. Elas são a Alemanha e são perfeitas. E
marcham como se soubessem disso.
As vozes ficam ásperas, transformando-se em rosnados graves,
ameaçadores, nos pátios das escolas, diante de lojas e sinagogas.
Mãos que passam tardes costurando e tocando pianos pegam em
pedras. Maria Fischer, com apenas 14 anos em 1933, passa pela
casa de sua amiga Miriam sem nem perceber a garota parada junto
à porta. Faz isso todos os dias, até que não existe mais Miriam para
ser ignorada.
– Você entende agora? – pergunta Oma, incentivando meu pai a
encher de novo seu copo.
Ele obedece. Depois de tomar um gole voluptuoso, Oma
continua, e vejo a cena que ela pinta se formar em pinceladas
detalhadas:
Agora estamos em um prédio, um bloco bege de três andares,
com um teto decorativo de mansarda e bandeiras ondulando em
saudação no lado direito e no esquerdo. Dois homens entram,
ambos grisalhos e barbudos, quase sósias. Um fala com sotaque; o
outro fala como eu, de forma chapada e sem entonação. O primeiro,
com sotaque, segura a mão de uma menininha. Sorri para ela,
contando histórias sobre os americanos ricos que ofereceram
dinheiro para ajudar a terminar a construção e sobre as reuniões
que preencherão aquelas salas nos próximos anos.
Oma se deixa afundar nas almofadas do sofá, com os olhos
cinzentos e vítreos.
– Eu me lembro daquele dia – comenta ela. – Fomos a Berlim
visitar um novo instituto chamado Kaiser Wilhelm. Eu devia ter uns 7
anos, talvez 8. Meu pai vivia em reuniões e me deixou aos cuidados
de um tio-avô. Esse tio me levou para passear e me apresentou a
alguns colegas de trabalho. – Ela faz uma pausa. – Era tudo muito
chato para uma menininha, mas à tarde ele me levou para tomar
chá e disse que tinha uma surpresa de aniversário para mim. Todas
as meninas gostam de surpresas, por isso fiquei feliz.
– E qual era a surpresa? – pergunto.
– Uma viagem à Suíça – responde Oma. – Genebra. Eu nunca
tinha ido à Suíça e, quando meu tio pediu permissão ao meu pai,
implorei para que ele deixasse. Duas semanas depois nós
embarcamos num...
Vejo um trem chacoalhando furiosamente de aldeia em aldeia no
verdor do fim de verão, uma menina pequena com avental sobre o
vestido, tomando chá no vagão-restaurante. A atenção dela está
dividida entre a aventura dentro do trem, a fumaça em redemoinhos
do lado de fora da janela e as cidades por onde passam. Mannheim.
Karlsruhe. Baden-Baden. A longa viagem a deixa cansada, mas ela
resiste ao sono, querendo absorver cada momento. Depois vê os
lagos azuis espelhados de Neuchâtel e Léman, enquanto o trem
corre para a cidade de Genebra.
Meu pai interrompe:
– Mutti, o que isso tem a ver com Elena ir ao Kansas? Tenho
certeza de que a viagem para Genebra foi maravilhosa. – Ele me
olha objetivamente. – E Sandra e eu já ouvimos falar dela, mas...
Oma o silencia levantando a mão.
– Me escute, Gerhard. Você vai entender quando eu terminar.
Estou cansada e minha garganta está doendo.
Papai recua, mas balança a cabeça para mim.
– Encontrei muitas pessoas naqueles três dias em Genebra. Meu
tio tinha reuniões todas as manhãs, mas no fim da tarde ele me
pegava no hotel onde eu ficava com uma governanta e dizia:
“Vamos sair agora, Maria.” E nós íamos sempre a um belo salão de
chá com toalhas de linho branco, lustres de cristal e bolos com
creme. Havia professores dos Estados Unidos e médicos da Itália e
da Inglaterra, e todos me achavam encantadora. Mas a pessoa de
quem eu mais gostava era uma mulher americana. Ela ia todas as
tardes e era muito gentil comigo. Eu lembro que a Sra. Sanger
costumava dizer que eu teria filhos lindos, perfeitos.
Desta vez, intervenho:
– Margaret Sanger? O que ela estava fazendo em Genebra?
Até onde sei, Sanger trabalhou para estabelecer o controle de
natalidade nos Estados Unidos.
Oma gargalha.
– Ah, Leni, naquele verão havia centenas de pessoas em
Genebra. Veja bem, era a Conferência Mundial de População. A
Sra. Sanger foi a organizadora e pediu que meu tio-avô palestrasse.
O tio do meu pai era muito importante. Ele administrou o Instituto
Kaiser Wilhelm por quinze anos.
– O que era isso? Um hospital? – pergunto.
Desta vez, quando ri, Oma tem um ataque, o corpo se curvando,
até que meu pai lhe dá uns tapinhas suaves nas costas e minha
mãe substitui o copo de schnapps por outro com água. Não sei o
que me amedronta mais: vê-la sentindo dor ou saber que o riso é do
tipo que damos quando não há nada do que rir. Quando se
recupera, ela explica:
– Havia pessoas doentes naquele lugar. A maioria eram homens
e mulheres que trabalhavam lá. Além de homens e mulheres que os
ajudavam. Magnussen. Mengele. Aquele americano, Charles
Davenport. Sempre me pareceu estranho que um homem chamado
Eugen – ela pronuncia “Oi-guen” – fosse diretor de um instituto
como aquele. Portanto, agora você sabe, Gerhard. – Ela dá de
ombros quando se dirige ao meu pai.
Papai balança a cabeça de novo.
– O que eu sei exatamente?
Oma, que ficou o tempo todo sentada indiferente no sofá, se
empertiga e se inclina para a frente.
– Que seu tio-bisavô foi um dos homens por trás do extermínio
de milhões de seres humanos. O nome dele era Eugen Fischer. É,
agora você está se perguntando por que eu mantive esse
sobrenome, mas essa história fica para outro momento. Agora
preciso ir para a cama.
A temperatura na sala parece cair. Minha mãe e meu pai trocam
olhares confusos enquanto ajudam Oma a se levantar. Eu reviro os
nomes na cabeça – monstros de um passado não tão distante,
ativistas pintados como heróis. Soluções que prometiam famílias
mais aptas e acabaram com o fim de tantas outras.
Antes que Oma feche a porta do quarto, eu digo:
– Isso não aconteceria aqui, Oma. Estamos nos Estados Unidos.
– Ah, minha menina querida... – Ela suspira. – De onde você
acha que meu tio-avô Eugen tirou essa ideia?
Quando estamos sozinhos, minha mãe sussurra:
– Ela está piorando, Gerhard, não está? Primeiro aquelas
histórias sobre a amiga Miriam, depois o uniforme.
– Ela contou a vocês sobre isso? – pergunto. – Ela me disse que
não tinha falado para ninguém.
Mamãe leva o copo vazio de Oma e pega três para nós,
derramando uma dose farta de schnapps em cada um. Não toca no
dela, apenas anda pela sala com as mãos cruzadas às costas.
– Ela contou essa história um milhão de vezes, El. Toda vez a
história muda. O uniforme era de outra garota. Ou ela o encontrou
em um brechó. Ou comprou no eBay. Na última vez era dela. –
Mamãe se vira para meu pai. – Sinto muito, mas acho que está na
hora de termos outra conversa com o médico dela. Já estamos
adiando há muito tempo.
– E o tio-avô? – indago. – É outra invenção?
– Não sei. Provavelmente. – Mamãe para de andar, então
recomeça. – Na última vez em que contou sobre Genebra, ela ficou
tagarelando até mal conseguir falar. O Dr. Mendez diz para sermos
condescendentes, então é o que fazemos. – Ela dá de ombros, sinal
de que não há mais o que dizer. – Enfim, quem vai me ajudar a
descascar as batatas para o jantar?
Eu me ofereço, e pelo resto da tarde conversamos sobre coisas
mais agradáveis do que filhas com problemas e avós senis. Mesmo
assim, a dúvida e a preocupação pairam sobre mim durante horas.
VINTE E OITO

N
ão é que eu não tenha acreditado na história de minha avó,
mas fiquei até tarde lendo um site depois do outro,
procurando os nomes que eu tinha encontrado nos livros
antigos de Malcolm e em artigos de periódicos. À uma da manhã,
quando minha cabeça estava afogada em nomes, lugares e datas,
mamãe desceu e me obrigou a ir para a cama. Meu pai, preocupado
com o próximo estágio da vida de Oma, não abriu muito a boca
durante o jantar nem depois. Apenas telefonou para Malcolm
avisando que eu ia passar a noite ali e de manhã iria direto para a
escola fazer as provas. O telefonema foi curto e não especialmente
gentil.
Agora, dirigindo para o leste com um sol baixo de outono na
linha do horizonte, tomando cuidado com o tapete de folhas
molhadas nas estradas secundárias, minha cabeça está me
castigando por ter ficado acordada até tarde. E pelo
Kräuterschnapps, que posso ter bebido um pouco demais. O cara
do programa de rádio matinal também não ajuda. Cacete, como
alguém pode ser tão alegre às sete horas? Giro o botão de volume e
faço com que ele se cale.
Planejei tudo ontem à noite, depois de algumas bebidas, meio
pote de sorvete e uma entrevista a que assisti no YouTube. Era uma
história sobre a avó de um homem, em Munique, que ficou diante de
uma fileira de soldados em uma plataforma de estação de trem
enquanto sua melhor amiga era colocada em um dos vagões de
carga que esperavam, com a mala na mão direita e uma estrela
colada no peito esquerdo. Eles não deixaram a garota alemã entrar
no trem, apesar de ela ter tentado, disposta a deixar para trás a
própria família por causa de alguém que amava, ainda que isso
significasse comer, dormir e mijar em um vagão sem janelas durante
sabe lá quantos dias e noites. Sabendo tudo que sei de história, não
sei se eu teria insistido tanto. É muito fácil pensarmos em nós
mesmos como a pessoa que toma a iniciativa enquanto o resto do
mundo permanece calado, mas fico me perguntando se eu teria
condições de ser tão altruísta.
Mesmo assim, estou dirigindo para meu futuro ex-local de
trabalho, pronta para errar todas as perguntas da prova, pronta para
manufaturar meu próprio rebaixamento, pronta para ser posta em
um ônibus que me leve ao encontro de minha filha mais nova. É
muito triste, mas inevitável, ter que decidir entre Freddie e Anne.
Anne tem 16 anos e vai ficar bem com Malcolm nos poucos anos
em que ele poderá mantê-la consigo.
O problema desse plano de merda me ocorreu ontem tarde da
noite. Eu poderia ser rebaixada para uma escola verde. Na verdade,
pelo que planejei, é mais provável que o conselho de educação me
interne em um hospício. Não, a preocupação não é essa. O que me
preocupa é que, mesmo se o conselho me mandar fazer as malas,
agora existem quase cinquenta escolas federais espalhadas nas
regiões menos povoadas deste país, o que praticamente me tira a
chance de ser alocada na mesma de Freddie.
Para isso vou precisar da ajuda de Malcolm, mesmo que ele
ainda não saiba que vai me ajudar.
A primeira parada é em casa, mas só depois de mandar uma
mensagem para Malcolm, para ver se ele já foi para o escritório.
Uma mensagem de três palavras, em letras maiúsculas, volta quase
imediatamente: PROVA DOS PROFESSORES. Não é a informação que eu
queria, mas no correr dos anos aprendi que nunca vou receber de
Malcolm o que quero, nem mesmo uma resposta relevante para
uma mensagem.
Nossa garagem está vazia quando entro, e o relógio no meu
painel diz que o ônibus prateado de Anne já passou. Não me
incomodo em trocar os jeans – os dias de provas são casuais, em
termos de vestimenta – e vou direto para a mesa de Malcolm no
escritório que compartilhamos no andar de cima. O cômodo é meio
espaço de trabalho, meio depósito de material de escritório. Duas
impressoras com várias resmas de papel empilhadas ao lado.
Fichários esperando ser preenchidos com os últimos relatórios estão
enfiados em cada prateleira e cada pedacinho de superfície.
Mas sei o que estou procurando e onde encontrar.
O papel timbrado de Malcolm, do Departamento de Educação,
está na segunda gaveta de cima para baixo, aninhado perto de
envelopes com o mesmo logotipo. Pego três de cada e procuro
alguma coisa – qualquer coisa – que tenha a assinatura dele. Então
ligo a copiadora e imprimo as três frases que digitei mais cedo no
notebook de mamãe, usando a melhor voz de você vai fazer o que
eu mandar do meu marido. O memorando, agora no papel timbrado
de Malcolm, parece bom. Enfio esse documento falsificado e um
envelope em uma pasta de papel.
O relógio lá embaixo toca sua musiquinha. Oito e meia. Hora de
ir.
Penso nas últimas palavras que mamãe me disse antes de eu
sair hoje cedo:
– Você quer mesmo fazer isso?
Eu gostaria que houvesse outra resposta em vez da que dei a
ela:
– Eu preciso fazer.
A cinco quarteirões da escola tiro um minuto para olhar para a
carta de Malcolm, assinando seu nome com movimentos nítidos,
firmes, e terminando a assinatura com um ousado sublinhado duplo.
Uma assinatura bonita e agressiva.
O parque onde parei meu carro é conhecido por atrair dois tipos
distintos de visitantes. O primeiro é um grupo cada vez menor de
homens velhos enrolados em cobertores e jornal amassado, peritos
em desaparecimento rápido quando um carro da polícia passa. O
segundo não poderia ser mais diferente do primeiro: rapazes
magros, de 20 e poucos anos, com bicicletas de corrida depenadas
e pastas de mensageiros penduradas às costas. São esses que eu
procuro.
Com uma nota de 20 dólares em uma das mãos e o envelope
endereçado ao diretor da Escola Prata Davenport na outra, vou até
um mensageiro louro de aparência mais amistosa no grupo. Ele só é
amistoso segundo o padrão dos mensageiros de bicicleta: esses
rapazes são duros, rápidos e não pegam leve, atravessando sinais
vermelhos e se desviando de pedestres amedrontados no labirinto
de ruas e avenidas de Washington, D.C. Se a nota de 20 não o
convencer, eu pago 40.
Mas no fim os 20 bastam. Ele ouve minhas instruções, digita a
localização em seu celular e parte com a pasta de mensageiro às
costas. Se tudo acontecer de acordo com o plano, vou vê-lo de novo
nesta tarde, no escritório central da escola.
Não que ele vá dar sinal de que me reconhece.
O Departamento de Ciências Biológicas da Escola Prata
Davenport fica entre duas das dez ruas que formam os raios do
Dupont Circle, abrigado em uma mansão Beaux-Arts que já foi um
clube para as mulheres mais ricas de Washington. Há dez anos elas
doaram o prédio e o terreno à Campanha Família Mais Apta, que o
transformou em uma escola quando não havia mais espaço em
outro lugar. Paro no estacionamento subterrâneo ao lado, assino o
livro de entrada na recepção e subo a ampla escadaria até o salão
de baile transformado em auditório, onde algumas dúzias de meus
colegas estão sentados em um silêncio nervoso.
A Dra. Chen, professora de química do primeiro ano, clica sua
caneta no ritmo de um metrônomo inaudível ajustado em allegro. Os
Drs. Stone e Stone, o casal que cuida do espanhol e do francês
avançados, trocam sorrisos em suas cadeiras perto dos fundos. Os
sorrisos parecem forçados, como se mãos invisíveis puxassem os
cantos de suas bocas. Sei por fonte confiável que a Dra. Stone
quase sofreu um colapso depois da última prova. A Dra. Chen,
apesar da capacidade digna de inveja de lembrar toda a tabela
periódica, enfia um comprimido na boca, acompanhando-o com o
que parece água, mas que acho que pode provocar um pouquinho
mais de entorpecimento.
Todo mundo tem direito de estar nervoso. A parte acadêmica não
é suficiente para pirar vinte e poucas pessoas que possuem
graduações máximas, mas a seção administrativa – cinco páginas
avaliando nossa compreensão e nossa absorção de várias novas
políticas determinadas pelo Departamento de Educação do Governo
Federal – é de enlouquecer. Nossos doutorados não nos
prepararam para os planos em eterno desenvolvimento que
Madeleine Sinclair tem para o futuro da aprendizagem. E o
documento que eu falsifiquei hoje de manhã só aumenta os riscos
para meus colegas. Fico feliz porque eles não sabem o que eu sei,
porque não fazem ideia de que as palavras que escrevi – apenas
umas poucas palavrinhas – têm o poder de condená-los a algo
muito pior do que o rebaixamento a uma escola verde. Tento engolir
a culpa. O gosto é amargo.
Normalmente eu estudaria durante todo o mês e passaria o fim
de semana antes da prova enfiando a cara nos textos. Não teria
posto minha filha em um ônibus para uma escola de terceira
camada 24 horas antes de uma bateria de avaliações exaustivas.
Mesmo se eu não quisesse levar bomba no teste de resistência
mental, sei que estou pouquíssimo preparada para um ataque de
três horas contra meu cérebro sobrecarregado.
Talvez isso facilite as coisas. Ter a decisão tirada das minhas
mãos, especialmente porque não tenho a menor ideia do que os
próximos dias vão trazer.
Enquanto esperamos que o inspetor entre com pilhas de
cadernos azuis e a recitação usual de regras contra colaborações,
conversas e o uso de dispositivos eletrônicos, eu pratico técnicas
para acalmar a respiração e penso na minha avó.
Oma não saiu do quarto para jantar, mas me chamou duas vezes
no início da noite. Em cada vez pareceu a ponto de me contar
alguma coisa. Em cada vez começou um caminho sinuoso de
histórias com um enorme elenco de personagens, até que minha
mãe entrou e insistiu que ela descansasse.
Procurei-as na internet. A maioria das histórias era verificável,
mas não dava para saber se Oma tinha de fato participado delas ou
se minha avó tinha se apropriado das narrativas tornando-as suas.
Mamãe insiste que é a segunda hipótese, que Oma não está mais
com a cabeça no lugar. Há um século existiam neste país
instituições para os supostos débeis mentais? Sem dúvida. Também
havia leis de segregação racial e hospício para os loucos, e imagino
que nenhuma das duas coisas esteja ressurgindo. Tiro da mente os
pensamentos sobre prisões e campos de trabalho, sorrindo um
pouco diante do ridículo disso tudo. Freddie está em um colégio
interno e eu vou tirá-la de lá.
Três dias curtos vão se passar até eu perceber como estou
enganada.
VINTE E NOVE

F
az mais de uma hora que estou olhando para a mesma
página em branco. Minha caneta, agora com mente própria,
escreve uma frase.
Pronto. Isso deve atrair a atenção do comitê de avaliação.
Não que eles se importem. Existe um enorme número de
aspirantes a professor fazendo fila para pegar minha vaga; um
enorme número de pessoas dispostas a mudar de trilhos e vender a
alma para conseguir um cargo em uma escola prata. Se não houver
um número suficiente de almas dispostas, a Campanha Família
Mais Apta oferecerá mais dinheiro de seu balde sem fundo.
Por volta das onze horas, o pessoal na sala onde está
acontecendo a prova começa a mostrar sinais de ansiedade. Saias
e calças farfalham à medida que pernas são cruzadas e
descruzadas. Solados de couro deslizam e das batidinhas embaixo
das mesas. Mãos passam por cabelos como se quisessem estimular
os neurônios ou pegar as respostas presas nas teias de aranha da
memória.
Já estamos aqui há duas horas.
Os inspetores trouxeram garrafinhas de água mineral, lenços de
papel e barras de cereal energéticas. Um a um somos escoltados
para idas ao banheiro. Ninguém ergue os olhos dos cadernos azuis;
ninguém troca um olhar. Simplesmente ficamos sentados, nos
remexendo, como legumes em uma panela de pressão.
Há um momento em que sinto vontade de virar as páginas de
volta, preencher as respostas certas, fazer uma tentativa honesta de
ser aprovada. É quando penso em Freddie.
Ela nunca passou uma noite sozinha, nem mesmo dormiu na
casa de amigos. Eu odiava privá-la dessas experiências da infância,
mas ficava preocupada achando que Freddie poderia ter uma crise.
Achando que ela acordaria de madrugada desorientada, imaginando
por que os livros em outra estante não eram iguais aos seus.
Pensando que ela poderia chorar e no dia seguinte alguma menina
zombaria dela na escola.
Será que eu teria feito outra escolha há dez anos?
Quase fiz. Mas no fim falsifiquei o resultado dos exames de
Freddie, escolhendo um número suficientemente alto para deixar
Malcolm feliz e suficientemente baixo para cobrir minhas apostas.
Talvez até tenha sido um número verdadeiro. Os problemas de
Freddie, se é que ela de fato tem algum, são exatamente o que a
Sra. Nguyen diagnosticou. Nervosismo, estresse, ansiedade. Tudo
administrável. Claro que tomei a decisão certa.
Não sei se continuei agindo corretamente nos anos seguintes,
mimando e protegendo Freddie, preparando-a para cada prova até
achar que ela não ficaria muito abaixo do quociente falso que criei
antes do seu nascimento. Agora me preocupo achando que ferrei
tudo, que estabeleci uma base frágil para uma situação que
ninguém poderia prever. Minha proteção saiu pela culatra, e acabei
deixando minha filha desprotegida.
Escrevo mais absurdos na página em branco de meu caderno
azul, pouso a caneta e ergo o braço.
Estou farta de ser a esposa brilhante de Malcolm Fairchild.
TRINTA

Antes

A
s coisas estavam esquentando com Malcolm, depois de eu já
ter dado a mamadeira de Anne e a colocado no berço em
nosso quarto, só para o caso de ela ter fome no meio da
noite. A mesma velha canção tocava na minha cabeça. Se ele metia
de um jeito, eu cantava no seu ritmo; se ele corria a boca pelo meu
corpo, eu acompanhava a música com as ondas de sua língua. No
geral, eu ficava ali com ele, mas parte de mim costumava deslizar
sob seu corpo, escorregar para o tapete ao lado da cama e fazer
uma dancinha.
Você me ama?, eu cantava mentalmente. Agora que eu aprendi
a dançar e toda aquela merda?
Eu não dançava muito bem, o que não importava nem um pouco,
porque Malcolm só se interessava por uma coisa. Não pelos meus
peitos nem pela minha bunda ou sequer pela qualidade do meu
boquete.
Eu costumava usar baby-dolls fofos, camisolas de cetim e até
meias arrastão que me davam a aparência sádica e sexy da Mulher-
Gato. Malcolm balançava a cabeça diante de todas as peças.
– Tire isso, El – pediu ele quando fui para a cama usando um
body tão transparente que dava para ver meus órgãos. – Você fica
muito vulgar.
O que ele queria dizer era que ele não estava interessado no
meu corpo, e eu achava isso hilário e não hilário ao mesmo tempo.
Portanto, estávamos ali, na época em que o sexo ainda
acontecia, nos remexendo e balançando sob lençóis de algodão
egípcio de dez mil fios que, segundo ele, eram o Absolutamente
Melhor – algo fundamental, porque Malcolm só curtia o
Absolutamente Melhor. Bom, na verdade um de nós estava ali. Eu
estava em um lugar distante, muito distante. Em um lugar melhor,
pensando em um homem que tinha me beijado certa vez e dito que
eu era linda. Estava pensando em sexo molhado, sexo rock ‘n’ roll,
sexo louco, do tipo não me canso de fazer no banco de trás de um
Ford Mustang.
Eu sempre parava nesse ponto porque queria ficar naquele
carro, e não no banheiro cheio de ladrilhos de um metrô em
Connecticut, não na biblioteca onde escrevi a última carta para Joe
e definitivamente não na clínica onde resolvi a questão para poder
seguir bem com minha vida. Se eu não parasse, o lugar melhor para
onde eu viajava se tornava sombrio.
O corpo de Malcolm sobre o meu estremeceu e ficou imóvel,
com o peso me pressionando e me prendendo.
– Meu Deus, eu amo você, El.
Perguntei o que ele amava em mim. Soou como uma piada, uma
pergunta que brotou de repente:
– Você me ama pelo meu corpo ou pela minha mente?
– O que você acha? – perguntou Malcolm, rolando para o lado e
passando uma das mãos pelo meu corpo, sussurrando para não
acordar o bebê.
Eu não soube direito o que responder, se acertava a resposta e
ganhava um sorriso largo de Malcolm como grande prêmio ou se
dizia o que eu queria ouvir. Queria que ele me achasse linda. Não
nos ensinam isso, não ensinam a nós, meninas e mulheres.
Ensinam mesmo a procurar homens que queiram mais do que
apenas um rosto bonito. A garantir que ele se interesse pelo que
está no andar de cima. O corpo vai embora; a mente fica. O amor é
cerebral.
É.
Deveríamos acreditar em tudo isso, querer isso, desejar homens
que amem nossa mente mais do que nossa carne, homens cegos à
nossa beleza exterior e que vejam apenas nossos atributos internos,
cerebrais. Todas as mulheres em quem confiamos dizem que isso é
bom e certo, e acho que, se eu tivesse que escolher, preferiria um
amante com olhos que enxergassem o fundo da minha alma, para
além dos pés de galinha, da bunda mole ou das estrias. Mas a
questão é: por que eu deveria ter que escolher? O que há de tão
errado em querer ser desejada, porra? Em todos os sentidos.
Malcolm se remexeu ao meu lado e passou um braço pela minha
cintura, a voz sonolenta ao dizer quanto adorava sua brilhante
esposa. Já eu não dormi. Estava pensando.
Estava pensando que Malcolm preferiria fazer sexo com meus
ouvidos. Assim estaria mais perto da parte de mim que ele
realmente ama.
TRINTA E UM

M
inha chefe está sentada atrás de sua mesa apertando os
lábios e estreitando os olhos. Antes de falar, ela remexe em
papéis e suprimentos de escritório, ajeita a placa onde está
escrito DRA. MARJORIE S. WILLIAMS, DIRETORA. Depois faz tudo isso de
novo, empurrando, arrumando, evitando me olhar nos olhos.
– O que é isso, Elena? – pergunta ela, batendo no caderno azul
onde escrevi NÃO ME INTERESSA em letras maiúsculas, com
tamanho suficiente para cobrir uma página inteira.
Não tenho nenhuma resposta além da que escrevi.
– Algum problema? Está tudo bem em casa? – Agora a voz da
Dra. Williams está mais suave, apesar de “suave” ser um termo
relativo quando se trata dos diretores de uma escola prata.
– Não e sim – respondo, sem mencionar a súbita transferência
de Freddie para a Escola Federal no 46. – Estamos bem. Só tive um
dia ruim.
Ela faz uma avaliação rápida do meu rosto.
– Para mim parece que você teve um ano ruim. Não é a coisa
mais inteligente a se fazer antes de um dia de exame, Elena. E
agora estou em uma posição de merda.
Gosto da Dra. Williams, mas neste momento quero dizer que ela
precisa repensar sua definição de posição de merda. Em vez disso,
fico sentada, imóvel feito pedra, as mãos no colo. Um olhar de
soslaio para o relógio na parede me informa que está na hora.
Como se tivesse captado a deixa, o rapaz louro do parque entra,
conduzido pela secretária da minha chefe. Ele está suado, apesar
do tempo fresco de outono, o elastano e a lycra grudados ao seu
corpo magro por causa do exercício constante. O rapaz é tão
pontual que acho que a FedEx deveria desistir da frota de aviões e
contratar mensageiros de bicicleta. Ele não presta atenção em mim,
como se nunca tivéssemos nos visto, enquanto a Dra. Williams
assina na prancheta.
E então ele vai embora.
– Espere um segundo. – A Dra. Williams enfia uma espátula sob
a aba do envelope. É um ruído baixo e ao mesmo tempo altíssimo.
Um rasgo de papel que parece as portas do inferno se abrindo.
Prendo o fôlego, esperando que ela leia a diretriz que escrevi
hoje de manhã.
– Ah – reage ela. – Minha nossa.
Enquanto examina o texto uma segunda vez e depois uma
terceira, leio a carta de Malcolm junto com ela.

Uma nova política deve ser implementada imediatamente:


qualquer professor que tire nota baixa no exame mensal deve
ser transferido de pronto para uma escola federal que precise
de funcionários. Com isso, a senhora deve transferir qualquer
professor que tenha tirado nota baixa na Escola Prata
Davenport para a Escola Federal no 46.

Assinado: Malcolm Fairchild, ph.D., Subsecretário, Departamento


de Educação dos Estados Unidos, blá-blá-blá.
Volto a respirar.
– Sinto muito, Elena! – exclama a Dra. Williams, deixando a carta
de Malcolm ao lado e virando-se para o computador em sua mesa.
Ela parece sincera. Enquanto digita letras, números e códigos,
conversa comigo:
– Houve uma mudança. Há alguns minutos eu estava
lamentando tremendamente ter que mandar você para uma escola
verde.
Finjo ignorância completa.
Ela suspira e todo seu corpo, geralmente rígido, ereto e cheio de
presença, parece suspirar junto.
– Agora não posso mais fazer isso.
– Então vou ficar aqui?
– Ahn, não.
Cuidado, El. Não exagere, caso contrário ela vai suspeitar.
– Não entendo. Escola prata, escola verde. Não tem nenhum
outro lugar para ir, não é?
A impressora do meu lado esquerdo cospe duas cópias de um
formulário. A Dra. Williams se levanta, esfrega os olhos que
parecem não querer ler mais nada – diretrizes, formulários,
cadernos de provas de professores que normalmente são de alto
nível – e pega as folhas. Fica com uma e me entrega a outra.
– Não – diz ela, pegando a carta de Malcolm. – Nova política.
Você vai ser transferida para a Escola Federal... – ela olha para o
número na página – ... no 46. Fica no Kansas. Seu novo cartão de
identificação e as instruções devem chegar por malote esta tarde.
Nos anos em que trabalhei com Marjorie Williams nunca a vi
tagarelar. Nunca escutei um tremor em sua voz nem a vi sem
palavras. É uma mulher dura. Justa, mas dura. Acho que isso é pré-
requisito para ser diretor de escola de ensino médio. Assim, quando
ela segura minha mão e diz quanto lamenta, não sei direito como
reagir.
– Vou precisar do seu cartão prata, Elena.
Eu o entrego antes de me virar para ir embora.
Não sei o que vai acontecer nas próximas 48 horas. Não
exatamente. Mas posso prever com a clareza de um médium o que
vai acontecer esta noite quando meu cartão de identificação
amarelo for entregue na nossa casa.
Malcolm vai subir pelas paredes.
E para mim está ótimo. Está tão ótimo que gargalho a caminho
do carro.
De longe deve parecer que estou chorando.
TRINTA E DOIS

U
ma vez um garoto chamado Joe me beijou e disse que eu
era linda.
Não sei. Talvez eu fosse. Seja. Fosse.
Agora há um pequeno volume onde antes existia uma barriga
lisa, um pouco mais de pés de galinha, rugas na testa e estrias,
alguns fios grisalhos como teias de aranha em volta das orelhas.
Malcolm nunca mencionou nada disso.
Esta noite não me sinto linda nem inteligente, só cansada. Pela
primeira vez somos três à mesa, e não quatro. Apenas Anne e eu
parecemos notar a cadeira vazia do meu lado esquerdo. Eu me
pergunto se meu marido notará quando houver outra cadeira vazia
amanhã.
Malcolm fala sobre trabalho, dirigindo-se ao ar entre nós. Sem
emitir som, Anne murmura para mim: “Posso sair?” Assinto e ela vai
para o quarto.
– Aonde você vai, Anne? – pergunta Malcolm. – Mal tocou na
comida.
– Dever de casa, pai. – É a única resposta que ele não pode
questionar.
– Vamos jogar tênis este fim de semana – diz ele.
– Claro – minto. É melhor continuar o jogo até não poder mais.
Nosso relógio toca três vezes. São quinze para as sete. Malcolm
diz que o vinagrete que eu fiz é o melhor de todos os tempos. Fui
teletransportada para um estranho universo alternativo, algum
mundo gêmeo cheio de intimidade doméstica, bem-aventurança
conjugal e planos para jogar tênis no fim de semana, sem ameaças
de divórcio e batalhas por custódia. Vou ver como está Anne, me
questionando se Malcolm ao menos perceberá que eu saí da sala.
– Estou com saudade de Freddie – confessa ela.
Anne sempre foi despreocupada com relação ao sistema e
entendo por quê. Ela é uma dessas jovens de hoje que não
conseguem imaginar um mundo onde todos fumavam, onde
cinzeiros de cristal e isqueiros de prata eram considerados
presentes de casamento adequados. Toda a sua história escolar foi
preenchida com exames, transferências e amizades rompidas.
Caitlin está na aula de matemática na sexta-feira, mas na segunda
não estará mais. Barbara não virá mais jogar videogame e comer
massa de biscoito crua direto da caixa. A vizinha que costumava
trabalhar como babá não está mais disponível.
Crianças são resilientes, acho. E isso é bom em muitíssimos
sentidos – elas caem, sacodem a poeira, levantam-se e recomeçam.
Só que a resiliência traz consigo uma espécie de insensibilidade,
uma aceitação e uma tolerância. Aos olhos de Anne, o que acontece
com as pessoas que fracassam é apenas o modo como as coisas
são. Uma situação para ser aceita. Até agora.
A campainha soa.
– É, eu também – digo, saindo rapidamente do quarto. – Já volto.
Malcolm está na cozinha inspecionando os pratos do jantar antes
de irem para o lava-louças.
– Você atende, El?
A mensageira é a mesma mulher que entregou o cartão amarelo
de Freddie na noite de sábado, e o envelope acolchoado mostra a
mesma logo da Campanha Família Mais Apta, a pequena família
feliz no canto superior esquerdo. Eu gostaria de passar uma caneta
preta por cima. Ou usar um maçarico. Como o envelope é
endereçado a mim, assino no tablet da mensageira.
– Sinto muito, senhora – diz ela antes de se virar para descer até
seu carro. Como se soubesse.
Planejei tudo antes de Malcolm chegar em casa. No meu bolso
direito está um antigo cartão do metrô. Provavelmente restam umas
10 pratas nele, mas, como não vou usar o metrô tão cedo, pintei o
cartão com um pouco de tinta prateada dos nossos enfeites de
Natal. É uma imitação de bosta, mas ninguém vai examiná-la de
perto.
– Quem era? – pergunta Malcolm, enxugando as mãos e
dobrando o pano de prato cuidadosamente em três partes, o que o
deixa mais arrumado, claro, mas não seco. Não reclamo.
– Coisa da escola – digo, balançando o cartão prata falsificado
para ele. Já rasguei o envelope e guardei o cartão amarelo que veio
dentro. – Eles atualizaram um sistema no fim de semana e todos
recebemos cartões novos. Algo a ver com uma falha de segurança.
Para minha surpresa, ele só diz:
– Bom. Hoje em dia todo cuidado com segurança é pouco. Quer
assistir a um filme, Anne?
Então funcionou.
O resto da noite é agradável e horrível. Agradável porque, em
vez de Madeleine Sinclair nos obrigando a engolir mais de sua
merda sobre inteligência, perfeição e sabedoria e falando dos
benefícios da criação de prodígios no século XXI, Malcolm e Anne
estão assistindo a um filme antigo com James Stewart, que todos
concordamos que é um dos melhores dele. É horrível porque estou
na cozinha e imagino Anne voltando da escola amanhã e
descobrindo que meu carro sumiu, meu guarda-roupa está meio
vazio e há um bilhete preso à geladeira, que ela vai encontrar assim
que começar a procurar alguma coisa para beliscar. Desculpe, mas
estou abandonando você. O bilhete não dirá exatamente isso, mas
vai dar no mesmo.
Anne funga uma vez na sala e Malcolm estende o braço para
tocar o ombro dela.
– Vamos ficar bem, querida – garante ele. – Você vai ver.
Stewart diz uma fala cômica, todo alto, magro e meio
desajeitado. Ele me lembra Joe: rosto limpo e honesto, olhos
calorosos – até no preto e branco granuloso – e um toque de timidez
que acho cativante. Ele não é nenhum machão, não concorre ao
título de Homem Mais Sexy da revista People nem é finalista do
Prêmio Nobel, mas Joe também não era. Meu velho amigo que se
tornou meu não namorado era só um cara legal. Bem, certo, Joe era
forte e sensual. Mas também era outras coisas.
Sinto saudade quando penso nele. O que acontece com
frequência.
Deitada na cama ao lado de Malcolm, que comenta que está
morto de cansaço esta noite, fantasio sobre Joe. Talvez nem sobre o
próprio Joe, mas sobre um sujeito legal, um Jimmy Stewart, um
homem que me tocaria, a princípio hesitante, que me beijaria com
suavidade antes de tentar qualquer coisa a mais. E que depois,
assim que as coisas começassem a esquentar, me levaria aos céus.
Penso em quanto gostaria disso e que, aos 40 e poucos anos,
essas coisas não passam de fantasias, experiências que nunca
mais terei.
Assim que a respiração de Malcolm fica mais lenta e profunda,
desço nas pontas dos pés até a cozinha. Ainda há meia garrafa de
vinho na geladeira, sobra do jantar. Não me incomodo em pegar
uma taça; levo-a para a sala de TV e me encolho de lado no sofá. E
choro.
Por todos os motivos.
TRINTA E TRÊS

E
sta manhã de quarta-feira é exatamente igual à manhã de
quarta-feira passada, a não ser pela ausência de Freddie.
Levanto, tomo banho, me visto. Ando pela cozinha. O pão
entra na torradeira; o pão pula da torradeira, transformado. Iogurte,
barra de cereais e suco esperam na bancada. Nós comemos e eu
sorrio.
Só mais um dia na escola, diz o sorriso. Vejo vocês à tarde.
– O que vai ter para o jantar? – pergunta Anne, acostumada a
me ver planejando as refeições em agrupamentos de três dias.
– Macarrão – respondo.
Não é mentira. Vou deixar uma caixa de rigatone perto do fogão
junto com uma lata de molho de tomate, ervas e alho. O único
detalhe que omito é que Malcolm vai cozinhar, não eu.
Ele sai primeiro, com a capa de chuva sobre um braço para o
caso de chover, as chaves do carro na outra mão. Representamos a
mesma cena em todas as manhãs do nosso casamento: um beijinho
no rosto, um “Tenha um bom dia” e uma troca de sorrisos.
Anne sai correndo pela porta pouco depois de o carro de
Malcolm sumir na esquina.
– Até mais tarde, mãe.
– Até mais tarde, querida! – grito, resistindo à ânsia instintiva de
alcançá-la na calçada e abraçá-la.
Mais tarde. Fico imaginando quando isso vai ser.
Com a casa vazia, entro imediatamente em uma espécie de
modo turbinado, o tipo de frenesi organizacional que todo mundo
experimenta quando a sogra liga avisando que vai chegar em dez
minutos. Roupas, sapatos e calcinhas encontram um novo lar em
uma mala com cheiro vagamente rançoso, pois estava fechada
havia cinco anos. Jogo a bolsa de maquiagem, a escova e o pente
em cima da pilha, fecho o zíper e levanto a mala. Não está tão
pesada. Tem espaço para alguns livros que me farão companhia no
ônibus e talvez ganhem alguma utilidade na Escola Federal no 46.
Na geladeira, pego duas garrafas d’água, duas maçãs e um
sanduíche que preparei às três da madrugada. Depois penso em
Freddie e acrescento alguns pacotes de biscoitos de aveia à pilha
de lanches.
A mala, a pasta e o almoço já alcançam o limite.
As instruções que vieram junto com o cartão de identificação são
claras – e não são recomendações:

Três peças de bagagem por pessoa, incluindo: uma mala de


mão, um item pessoal como uma bolsa de mão ou uma pasta,
uma sacola de plástico transparente para bebidas e comidas.
Não é permitido álcool.

Não sei se gosto da ideia de passar de consumidora regular de


vinho para uma completa abstêmia da noite para o dia, mas o tom
da carta, objetivo e preciso como uma freira de escola católica, me
deixa nervosa.
Apresente-se no ponto de encontro designado (ver anexo) às
nove da manhã da data de transferência. Assim que chegar,
vá diretamente à recepção para ser registrada. Mantenha o
cartão de identificação em mãos durante todo o tempo.

Apresente-se. Vá. Mantenha. Verbos no imperativo sem ao


menos um “por favor” para suavizar a rigidez.
Automaticamente pego a caneca de café e a levo aos lábios.
Não automaticamente a devolvo à bancada quando minha mão
começa a tremer. Tudo nesta manhã está me dizendo que não é
hora de me entregar à agitação da cafeína.
Malcolm deixou o rádio ligado quando saiu para o trabalho e
agora uma entrevista com Petra Peller invade minha cozinha.
– O Instituto Genics – comenta Petra – tem o orgulho de
anunciar a aquisição de uma nova subsidiária: Saúde da Mulher.
Como vocês sabem, o Saúde da Mulher tem sido defensor do
planejamento familiar bem informado há mais de um quarto de
século. O Saúde da Mulher está aqui para você. Mais importante,
estamos aqui para seus filhos. Para o futuro deles. Mesmo que
essas crianças ainda não tenham nascido.
Penso em algo como: Qual pode ser a porra do futuro de uma
criança que ainda não nasceu? As crianças que não nasceram não
têm futuro.
E esse é exatamente o argumento de Petra:
– Pensem no estresse da educação – continua ela. – A pressão
imposta aos nossos pequeninos, aos nossos pré-adolescentes, aos
alunos do ensino médio. – Ela faz uma pausa de efeito. – Tenho
orgulho em compartilhar nosso plano com vocês, um plano que não
deixará nenhuma criança para trás. Nenhuma.
– Como você planeja fazer esse milagre? – pergunto, virando-me
para o rádio tão rapidamente que quase perco o equilíbrio.
– A partir do próximo mês, o Saúde da Mulher oferecerá serviços
de gestão de gravidez para qualquer mulher encaminhada pelo
Instituto Genics – explica Petra. – Não importa quanto você ganha.
Quando dizemos qualquer mulher, queremos dizer qualquer mulher,
independentemente do estágio em que ela se encontra na gravidez.
Se você não gosta do número Q do seu bebê, estamos aqui para
ajudar. – Sua voz parece sorrir, e a entrevistadora emite sons curtos
de aprovação.
A frase “não deixará nenhuma criança para trás” assume um
novo e terrível significado: é impossível deixar uma criança para trás
se ela não existe.
A voz de Petra – suponho que seja pré-gravada – volta em um
tom de anúncio publicitário: Você é solteira? Está desempregada?
Preocupada com seu futuro financeiro? Não tem diploma
universitário? Sofre por causa de seu número Q? Venha fazer uma
consulta grátis no Saúde da Mulher!
A parte seguinte é voltada para outro público-alvo:
Você tem tudo, menos um filho? Está cansada de sentir que vem
ficando para trás no quesito maternidade? É hora de começar a
formar a família que você merece? O Saúde da Mulher está aqui
para você!
Uma voz no rádio lembra que esse programa é patrocinado pela
CFMA. Como se alguém precisasse ser lembrado. A mesma voz,
desprovida de qualquer sotaque, apresenta as mulheres admiráveis
que deram seus testemunhos: N, de Vermont, conta sua história,
depois A, de Dallas, e uma garota que parece adolescente,
identificada como Z, de St. Louis. Z não deve ser muito mais velha
do que Anne.
Que se dane a agitação que a cafeína causa. Ponho o café frio
no micro-ondas.
– Eu morava na rua – comenta Z. – Tipo, sem saber o que ia
acontecer no dia seguinte. Ouvi dizer que o Saúde da Mulher estava
ajudando pessoas como eu, por isso fui falar com elas. É, acho que
posso dizer que elas me ajudaram a cuidar do meu futuro. Elas
disseram...
Z, de St. Louis, é interrompida. Outra voz substitui a dela:
– Aqui é H, de Washington – diz a voz no rádio –, contando
sobre sua experiência com o Saúde da Mulher.
– Eu engravidei e não era casada. O Saúde da Mulher me
salvou.
Mato a voz de Petra com um dedo e rabisco um bilhete no bloco
normalmente reservado para listas de compras. Não é meu melhor
trabalho, mas a porcaria da musiquinha do relógio avisa que “está
na hora de ir”. E para isso acho que é melhor ser objetiva e gentil.

Queridos Malcolm e Anne,

Sinto muito, mas não posso mais ficar aqui. Por favor, não me
procurem. Espero voltar logo para casa.

Com amor, Elena/Mamãe

Um ímã, que Malcolm trouxe para mim de uma viagem a São


Francisco muito tempo atrás, faz o serviço de segurar minhas
palavras até que alguém volte para casa mais tarde. Depois de uma
última olhada em volta, coloco minhas três peças de bagagem no
carro, verifico o dinheiro na carteira e ligo o Acura, que vou largar no
estacionamento da loja de departamentos mais próxima antes de
percorrer o resto do caminho a pé. Os táxis não servem, pois
mantêm registros. Minha casa, a casa onde Freddie e Anne já
brincaram muito, onde Malcolm e eu ficávamos sentados até tarde
falando de livros, música e coisas eruditas, permanece por um
tempo no retrovisor enquanto me afasto.
E então desaparece, junto com o café esquecido no micro-
ondas.
TRINTA E QUATRO

D
entro de um prédio de tijolos nos limites de um bairro menos
chique de Washington, as duas mulheres na recepção são
um estudo de tons de monotonia. Seus crachás as
identificam como Sra. Parks e Sra. Flowers, mas elas não evocam
parques nem flores. A Sra. Parks se equilibra em um banco de
madeira atrás da mesa. É uma mulher alta, magra como um inseto.
A Sra. Flowers recolhe nossos cartões de identificação, um de cada
vez, passa-os no leitor e verifica os nomes em uma prancheta.
– Sente-se e espere até ser chamada – diz rispidamente a Sra.
Parks à mulher atrás de mim, enquanto imprime um tíquete e me
entrega. – Não perca isso.
Eu me viro, e a mulher na verdade não é uma mulher, e sim uma
garota, a pele rosada cheia de sardas, os cabelos ruivos e densos,
os olhos que provavelmente não viram muita coisa do mundo.
– Desculpe – responde ela, e vai até uma fileira de cadeiras
encostadas na parede enquanto a Sra. Flowers passa meu cartão
no leitor, compara meu rosto com uma foto na tela do seu
computador e faz uma marca em vermelho ao lado do meu nome.
– Você – diz a Sra. Parks, apontando o queixo para a garota.
Dou um passo atrás, porque parece que aquele queixo vai furar meu
olho. Em seguida ela o aponta para mim. – Pode se sentar. – Então
repete: – Você.
Arrasto minha mala até uma cadeira vazia ao mesmo tempo que
a mulher-garota se levanta.
– Ruby Jo Pruitt – informa ela à Sra. Flowers quando chega à
mesa. – Bom dia.
– Identificação.
Ruby Jo pesca seu cartão amarelo em uma velha bolsa de lona,
pendurada no ombro. E o deixa cair no chão.
– Desculpe.
– Pegue logo isso, garota. Não tenho o dia todo.
– A senhora não precisa ser tão grosseira, sabia? – retruca Ruby
Jo, abaixando-se para pegar o cartão. Aqueles olhos que
provavelmente não viram muita coisa do mundo estão brilhando. –
Aqui.
A Sra. Flowers escaneia, olha e faz a marca. A Sra. Parks
imprime outro tíquete, lembrando a Ruby Jo que não o perca.
– Sente-se. Próximo.
Nos últimos cinco minutos mais pessoas entraram na sala,
principalmente mulheres, alguns homens, todo um espectro de
cores, idades e tipos físicos. A única cadeira livre é a de plástico,
relíquia de um refeitório de escola, à minha direita. Ruby senta-se
nela, colocando a bolsa de lona entre os pés. Seu sapato roça no
meu.
– Desculpe – diz ela, ajeitando-se, tentando tornar seu corpo
menor do que já é.
– Não se preocupe. Pelo menos você não esbarrou no sapato de
nenhuma delas – respondo, indicando a Sra. Flowers e a Sra.
Parks.
– É. Prolly ia me esmagar feito um inseto se eu tivesse feito isso.
O que você achou das duas, hein?
Ruby Jo tem um jeito de falar que a maioria das pessoas seria
capaz de situar em um mapa. Tem os tons dos Apalaches,
provavelmente do sudoeste da Virgínia ou da Virgínia Ocidental, o
tipo de dialeto que escancara: pobre, sem formação, sem valor.
Olhando o vestido e os sapatos de Ruby Jo, acho que posso ter
acertado ao pensar na pobreza, mas vou deixar o julgamento de
sem valor para pessoas como meu marido.
O tíquete que a Sra. Parks me deu nada mais é do que uma
passagem de ônibus. À esquerda está minha origem e meu destino,
impressos em preto. À direita há um código de barras. O horário,
embaixo, declara que a partida é às onze horas. Se não houver
paradas, vamos atravessar a fronteira entre Missouri e Kansas em
cerca de dezessete horas.
Dezessete horas em um ônibus. Que merda.
– Para onde a senhora vai? – Os olhos de Ruby Jo, aqueles que
provavelmente não viram muita coisa do mundo, miram o meu
tíquete.
– Kansas – respondo, erguendo o papel. Não tenho nada a
esconder.
– Eu também. Nunca fui ao Kansas. Nunca vi um lugar todo
plano assim. Pensando bem, também nunca vi o mar.
Como eu falei, olhos que provavelmente não viram muita coisa.
Avalio que Ruby Jo tem 20 e poucos anos, é jovem demais para
ter um doutorado. De modo que, diferentemente de mim, devia ser
professora em uma escola verde. Além disso, devia estar louca ou
ter alguma vocação inabalável para a carreira de professora para ter
entrado no jogo educacional nos últimos anos. Olhando para ela,
meu melhor chute é a vocação inabalável, mas há outra
possibilidade.
Ultimamente não existem muitos jovens escolhendo a profissão
de professor, pelo menos não de forma voluntária, não como
acontecia quando Anne começou a estudar. Agora existe pressão
demais. Há cerca de dez anos a coisa chegou a um ponto em que
os departamentos de pedagogia da maior parte das universidades
viram o número de matrículas zerarem e as taxas de desgaste
dispararem. Recomendava-se, assim que o predecessor de
Madeleine Sinclair assumiu o mandato no senado, evitar o ramo do
ensino.
Então o que pode ser feito quando há demanda, mas não há
oferta? Qual é o procedimento para isso? Para o Departamento de
Educação, apoiado pela força e pelo dinheiro da Campanha Família
Mais Apta, havia duas respostas: finanças e força. Uma cenoura e
uma vara, para colocar em termos simples.
Por acaso, a vara funcionou melhor.
Nem mesmo bolsas, comissões e promessas de altos salários,
pensões que fariam um almirante de carreira ficar verde de inveja,
foram suficientes para encher as faculdades com futuros
professores.
Assim, teve início a convocação.
A Sra. Parks e a Sra. Flowers rosnam mais ordens para a sala
agora apinhada, e me pergunto se elas estiveram no comitê que me
identificou como educadora potencial e me enfiou na caixa onde
andei vivendo.
– Imagino que a senhora seja professora de inglês. – O sotaque
de Ruby Jo é novo para os meus ouvidos, mas mesmo assim é
cativante.
– Não. Biologia e anatomia. E você?
– Química.
Está brincando, penso, e assim que as palavras surgem na
minha cabeça eu me arrependo. Parecem críticas demais,
desnecessariamente surpresas, parecidas demais com algo que
Malcolm falaria. Em vez disso pergunto:
– Orgânica ou inorgânica?
– Um pouco das duas. Será que a gente consegue se sentar
junta no ônibus?
Olho em volta. Cada homem e cada mulher parecem sofrer,
como se estivessem prestes a ser colocados em um vagão de gado
e conduzidos a uma penitenciária estadual. Mas Ruby Jo tem um
brilho interior que a faz se destacar dos outros.
– Com uma condição – digo. – Pare de me chamar de “senhora”
e comece a me chamar de Elena. Combinado?
– Sim, senhora – responde ela, e seu rosto se abre em um
sorriso largo que me aquece como um sol de verão.
TRINTA E CINCO

ANTES

–T
alvez você devesse tentar conversar com ela – disse
Oma. Estávamos na cozinha da casa dos meus pais e
eu tinha acabado de chegar da escola.
– Por quê? – perguntei.
O assunto do dia era a garota nova na minha turma do terceiro
ano. Era pequena, negra e tímida, mas o problema não era esse.
Rosaria Delgado não falava mais do que dez palavras em inglês. O
problema aumentou quando a professora nos colocou juntas em um
trabalho de ciências e eu acabei recebendo a menor nota da turma.
– Tirei um C por causa dela.
– E daí? Você vai fazer com que ela se sinta ainda pior tratando-
a como um pedaço de queijo velho? Leni, estou com vergonha de
você.
Fiquei parada, os braços cruzados em uma postura desafiadora
de 9 anos, observando Oma passar manteiga em uma torrada. Ela
me ofereceu uma e eu empinei o nariz, apesar de querer.
As coisas que fazemos por maldade...
Nunca mais falei com Rosaria e me certifiquei de que meus
amigos também não falassem. Foi mais fácil do que eu pensava:
inventei histórias sobre a família dela e o lugar onde eles moravam.
Zombávamos das roupas dela e imitávamos seu sotaque. Quando a
professora nos colocava em um grupo com ela, ignorávamos suas
ideias e fazíamos as coisas do nosso modo.
Fizemos isso de janeiro até junho. Em setembro Rosaria não
voltou.
Tínhamos vencido.
Oma não parecia achar o mesmo.
– Aqui vai uma pergunta, Liebchen: e se ela fosse sua filha?
Eu não tinha uma resposta para isso. Aos 9 anos, não. Por isso
inventei uma, só para ela não pensar que eu estava recuando.
– Todos os meus filhos vão ser perfeitos.
E saí intempestivamente da cozinha, pensando: É isso aí.
TRINTA E SEIS

U
ma coisa que aprendi: jamais confie nos aplicativos de
mapas.
Não que os aplicativos estejam errados, mas eles não
contabilizam o tempo de paradas para reabastecimento, descanso,
desentupimento do banheiro de bordo, comida, troca de motorista
ou paradas para deixar os passageiros cujo destino é o Missouri.
Nem preveem neve inesperada nas montanhas, um pneu estourado
no sudoeste da Pensilvânia ou as obras que reduzem a I-70 a uma
pista única com o tráfego da hora do rush arrastando-se lentamente
nos arredores de Columbus, Indianápolis, St. Louis.
Para dizer de modo gentil, nossa viagem de Silver Springs,
Maryland, até Colúmbia, Missouri, dura vinte horas de inferno
ardente.
E como diz Ruby Jo:
– Ainda falta um montão, meu bem.
Cochilamos. Comemos maçãs e tortas de maçã rançosas
requentadas em micro-ondas de lanchonetes. Revezamo-nos
vigiando as malas uma da outra quando vamos ao banheiro, que,
quando chegamos a Colúmbia, Missouri, começou a feder como os
fundos de uma jaula de macacos. Trocamos histórias e ombros em
que descansar, jogamos o velho jogo das placas de carros e
olhamos pela janela para os postes de luz, de telefone, milharais,
nada. Choramos.
Em vinte horas, Ruby Jo Pruitt e eu ficamos amigas.
– Mas então – diz ela enquanto estamos na fila do que espero
que seja a última lanchonete que verei pela próxima década –, por
que você está aqui?
Conto tudo que há para contar. A transferência de Freddie, meu
fracasso intencional na prova de ensino, a fuga de casa como uma
refugiada em desespero. Em troca, fico sabendo da história de Ruby
Jo.
– Eu levei pau – explica ela. – Levei pau de verdade, no duro.
Eles fizeram uma pergunta tipo se eu podia comentar sobre os
efeitos na comunidade química global de um tal velho filho da puta
que ganhou o Prêmio Nobel em 1925. Eu simplesmente não sabia.
Quero dizer, essa... perdoe o palavreado... essa merda tem alguma
importância?
– Não. Não tem. E deixe que eu pago isso – falo, cobrindo uma
conta de 10 dólares por ovos e queijo em cima de bolachas.
A comida fede a banha velha e suor, mas pelo menos desta vez
não é hambúrguer. De última hora, peço duas saladas e entrego
mais 5 dólares à caixa.
– Sabe – comenta Ruby Jo, mordendo sua bolacha quando
voltamos ao ônibus –, aqui não fazem bolachas como lá na minha
terra.
– Aposto que não.
Já comi as verdadeiras bolachas do Sul, do tipo feito com banha
de porco e farinha branqueada, do tipo que engana a língua,
fazendo a gente pensar que está comendo nuvem. Enquanto isso,
as bolachas daqui poderiam ser usadas como arma.
Ruby Jo fala sobre sua bolsa de estudos, seu namorado do
ensino médio e como quase incendiou o laboratório de química
quando fez plasma com duas metades de uma uva verde e um
micro-ondas.
– Plasma é um negócio fascinante – justifica.
Meu rosto deve ter assumido a forma de um ponto de
interrogação.
– É sério! Você só precisa de uma uva e um micro-ondas barato.
A uva tem íons, né?
Confirmo. Não é minha área, mas acompanho, como qualquer
cidadão bem treinado e instruído. Além disso, sei que Ruby Jo está
se esforçando ao máximo para me distrair, para impedir outro
ataque de choro.
– Olhe, qualquer coisa viva tem íons – continua ela. – Então
você pega uma coisa viva do tamanho certo, mais ou menos um
quarto do comprimento de onda da coisa que seu micro-ondas
produz, tipo uma uva. Depois você a corta e se certifica de que
ainda esteja conectada. – Ela parte um pedaço de tomate de sua
salada, mas mantendo a casca intacta. – Esse trechinho aqui
funciona como uma espécie de antena, certo?
– Certo.
– Agora você tem seus íons, seus elétrons e sua energia, e tudo
fica empolgado e irrompe em chamas! – exclama ela, enquanto eu
me encolho no assento. – Quer ouvir sobre minhas experiências
com dióxido de manganês e ácido clorídrico?
Para ser honesta, não sei bem se quero.
Ruby Jo não espera a resposta e começa a explicar como
produzir gás cloro, como criar explosões com balas de goma ou
como ela escrevia mensagens secretas para as amigas usando
suco de limão.
– Os pais de uma garota da minha escola eram muito rígidos.
Acho que eram meio pirados. Enfim, quando eles a tiraram de lá na
quarta série para estudar só em casa, eu mandava pedaços de
papel em branco e ela lia quando precisava passar roupa. Depois
ela me enviava um bilhete com a mesma técnica.
Creio que eu não seria capaz de causar tantos danos ou ser tão
sorrateira usando biologia e anatomia. O que eu poderia fazer?
Mandar mensagens secretas usando sangue e ossos?
Ruby Jo também é feita de íons, elétrons e substâncias
químicas. Tem mais energia do que – como ela diria – um coelho no
cio. Acho que o ônibus em que estamos poderia ir de Maryland ao
Kansas usando a energia de Ruby Jo Pruitt. Ela continua falando,
passando de um assunto a outro, mantendo o fluxo da conversa e
me mantendo sã. Por fim, ela para e me faz uma pergunta:
– Acha que poderia me ensinar a falar bem, igual a você?
– Qual é o problema com sua forma de falar?
Uma lista de nomes, todos saídos da boca de Malcolm, flutua em
um balão de história em quadrinhos: caipira, jeca, capiau...
Provavelmente Ruby Jo ouviu palavras como essas em algum
momento. Imagino quanto elas devem ter machucado.
– Você sabe. Meu jeito de falar é o que o pessoal da cidade
grande chama de pobretão.
– É, eu sei.
– Nossa, quero dizer, a gente é mesmo pobre. Meus avôs
trabalhavam em minas de carvão, voltavam para casa pretos como
a noite e ganhavam uma miséria. Mas pobre não é a mesma coisa
que burro. – Ruby Jo olha pela janela para outra cidade depressiva
de merda. – Bom, pelo menos não sempre. Mas quando as pessoas
me ouvem falar essa é a primeira coisa em que elas pensam.
Quero dizer a ela que é praticamente impossível neutralizar um
sotaque depois que a criança ultrapassa os 10 anos, mas Ruby Jo é
mais rápida.
– Madonna, por exemplo. Ela é do Michigan, certo? Agora ela
fala que nem inglesa.
– Claro, querida – concordo, pensando que a afetação linguística
de Madonna provavelmente precisou de um pequeno exército de
treinadores vocais. – Podemos trabalhar isso, se for importante para
você.
Outro sorriso, outra sensação de calor de verão, me inunda.
Quando chegamos à fronteira do Kansas, somos apenas três no
ônibus. Ruby Jo, eu e uma mulher mais velha, que fica de cabeça
baixa e boca fechada.
– Faltam umas cinco horas – avisa o motorista.
Cinco horas. Cinco horas para ver Freddie.
TRINTA E SETE

O Kansas é plano feito uma panqueca. Não, é mais do que isso. É


tão plano que pode até ser côncavo. E nunca vi tanto milho
quanto nas últimas horas. Não consigo pensar no que alguém
poderia fazer com tanto milho.
Uns 20 quilômetros a oeste de lugar nenhum, entramos em uma
estrada de cascalho que desemboca em um portão duplo. O sol
baixo atravessa a janela onde a cabeça de Ruby Jo está apoiada.
Quando o ônibus vira à esquerda, a luz se move das barras de ferro
do portão e pousa em uma construção pequena. Uma guarita.
– Parece sinistro – comenta ela.
Sinistro é uma palavra gentil para este buraco de merda.
– Exatamente como minha avó disse que seria. – Ruby Jo
protege os olhos e espia a movimentação lá fora.
– Hein? – pergunto, mas ela me silencia.
Um homem se levanta da cadeira atrás da janela da guarita,
abre a porta e sai com passo arrogante, a barriga de cerveja
oscilando em um plop plop ritmado acima do cinto do uniforme. Está
vestido de verde e os dois distintivos no ombro esquerdo são
familiares. Um é o emblema feliz e ensolarado da Campanha
Família Mais Apta; o outro é o símbolo da paz tricolor do
Departamento de Educação com as palavras Intelligentia,
Perfectum, Sapientiae. Do meu ponto de vista, o guarda não parece
inteligente, perfeito nem sábio.
– Certo, pessoal. Preciso ver os tíquetes e os cartões de
identificação – avisa o guarda, como se estivesse falando com uma
turba de fãs de música clássica no Madison Square Garden, e não
com três professoras do ensino médio na entrada de um complexo
de prédios do século XIX um pouco deteriorados em Winfield,
Kansas.
Ele sobe a bordo, verifica o manifesto do motorista e olha para
nós, uma por uma.
– Hmm. Primeiro você.
A mulher de cabeça baixa se levanta e pega sua bolsa. Suas
pernas não estão muito firmes, mas nem o motorista nem o guarda
parecem se importar. Levanto-me, jogando a amarrotada bolsa de
lanches no banco vazio perto de Ruby Jo, e vou para a frente do
ônibus.
– Ainda não chamei você, madame – diz o guarda. – Sente-se.
Odeio ser chamada de “madame”. Uma madame, tudo bem.
Aquela madame de casaco verde, tudo bem. Posso falar com a
madame, tudo bem. Mas esse pateta gordo não vai me chamar de
nada além de Dra. Fairchild.
– Que tal você se sentar? – sugiro. – Parece que é isso que você
faz o dia inteiro. Vou ajudar esta mulher a sair do ônibus. Está bem?
Eu sei lidar com valentões. Qualquer professor sabe. Quanto
mais eles se empinam, mais você precisa se empinar. E, mesmo
sem salto, já sou uns bons 10 centímetros mais alta do que o Sr.
Barriga de Cerveja. O sujeito recua, como se nunca o tivessem
enfrentado, como se ninguém jamais tivesse marcado presença.
Bom.
Mas me pergunto por que isso seria tão surpreendente para ele.
A mulher de cabeça baixa diz que se chama Sra. Munson. Que
nome! Mas se as pernas dela não estão funcionando muito bem, a
boca compensa.
– Falou e disse, querida.
Assim que a Sra. Munson salta do ônibus, eu subo de novo e
pego minha mala e a bolsa de comida. Tudo que resta são os
pacotes de biscoito que peguei no armário da cozinha em cima da
geladeira e trouxe para Freddie.
Vinte e oito horas atrás.
É sempre interessante pensar na gente como um fantasma, uma
mosca invisível na parede, um observador invisível.
Então faço isso e me visualizo na minha própria cozinha às
quatro da tarde de ontem. Anne voltou da escola com a mochila
estufada de livros, a barriga roncando com a fome do fim de tarde.
Adolescentes são como hobbits: café da manhã, segundo café da
manhã, um lanchinho pré-almoço, almoço e assim por diante. Todos
têm um pequeno motor de combustão interna.
Ela está junto à porta, depois de entrar com a chave que
Malcolm e eu lhe demos no ano passado. Com os ombros
encurvados com o peso dos livros – além do peso de outras coisas
menos tangíveis –, Anne descarrega a mochila no sofá da sala e
lava as mãos na pia da cozinha, como o pai a orienta desde que ela
tinha 6 anos. Neste momento tudo está normal. Nada mudou.
Sua mãe vai chegar em casa no máximo em meia hora. Haverá
piadinhas, implicâncias e lembranças de que essa casa está vazia.
Ou não.
Anne chuta os sapatos longe, tira o casaco carmim Harvard da
escola, vai até a geladeira. Faz isso automaticamente, como em
todas as tardes. A princípio sua mente está tão concentrada na
comida que ela não vê o bilhete. Por que veria, quando o iogurte, a
salada de frutas ou uma fatia de queijo suíço a atrai do jeito que
uma sacola plástica jogada pelo vento atrai um cachorro? Só
quando vai buscar mais alguma coisa e guardar o queijo de volta,
ela fecha a porta da geladeira pela segunda vez e vê meu bilhete.
Nos cinco minutos seguintes, ela já leu e releu meu pedido de
desculpas, a notícia da minha partida, do mesmo modo que um
soldado que levou um pé na bunda relê a carta da namorada que
mora em outro estado. A confusão se mistura com a incredulidade e
a negação. Não pode ser. Ela não foi embora de verdade. Isso é um
sonho, um pesadelo, uma mentira.
Mães não vão embora assim.
Da minha posição como mosca na parede, posso vê-la digitando
números no celular, errando a sequência, tentando de novo, quando
o primeiro telefonema é atendido em um salão de cabeleireiro. E
depois:
– Papai? Mamãe foi embora.
E o ciclo de confusão e negação recomeça.
Esposas e mães não partem assim.
Quero me materializar na cozinha, confortar Anne e explicar que
não fui embora. Não de verdade. Então Ruby Jo puxa a manga do
meu casaco porque está na hora de pegarmos a bagagem no porta-
malas do ônibus e começar a longa caminhada desde o portão até o
prédio baixo, de tijolos vermelhos, em cuja fachada está escrito
ADMINISTRAÇÃO.
– Não estou com um bom pressentimento sobre esse lugar –
comenta Ruby Jo.
E seguimos em frente.
TRINTA E OITO

O caminho que conduz ao prédio da administração parece ter uns


70 anos, e um mato mais velho que isso brota em fendas e
rachaduras. A Sra. Munson quase tropeça em um emaranhado de
vegetação murcha e eu pego sua mala. É do tipo sem rodinhas, a
Samsonite dura que saiu de moda na década de 1970. E deve ter
tijolos dentro.
– São só uns livros, querida – explica a Sra. Munson.
Claro, o guarda gordo voltou para sua guarita, provavelmente
assistindo a alguma porcaria na TV e enchendo a boca com
salgadinhos baratos. Cada passo que dou com a Samsonite pesada
faz o trajeto parecer mais longo.
Passamos por um pequeno estacionamento à esquerda,
parcialmente escondido por uma cerca viva que precisa ser podada.
À direita há uma densa fileira de coníferas escondendo o que
antigamente era um parquinho, mas, quando presto mais atenção,
vejo que está com mato crescido e é uma selva de balanços de
pneu frouxos e trepa-trepas enferrujados. Nenhuma criança brinca
ali, ainda que o frio dia escolar deva ter acabado há pelo menos
duas horas. Acho isso fantasmagórico.
– Talvez haja um novo nos fundos – murmuro, sem acreditar de
verdade.
– Você acha? – pergunta Ruby Jo. – Dê uma olhada nesse lugar.
– E depois, baixinho: – Exatamente como minha vó contou.
– Você não para de falar isso. Por quê?
– Mais tarde eu explico. – Ela aponta o queixo sardento, agora
franzido de preocupação, para um ponto à frente.
Não sei quem eu estava esperando. Talvez outro guarda gordo;
talvez a Sra. Martha Underwood, a diretora; talvez até Malcolm. Ele
poderia ter pegado um voo de última hora do Aeroporto Reagan, em
Washington, para Kansas City e esperado por mim.
Todas as possibilidades surgem na minha mente. Malcolm
ligando para minha escola – minha ex-escola. Malcolm xeretando no
banco de dados de professores em busca de pistas. Malcolm puto
da vida em um avião apinhado. Malcolm vindo de carro me pegar e
me levar de volta para casa antes que eu consiga ver Freddie. Ele
diria:
– Regras são regras, Elena.
Mas a figura que vem em nossa direção não é gorda, não é
mulher e não é meu marido. Seus passos longos e tranquilos, sem
pressa, mas também sem lentidão, pertencem a outra pessoa que
eu conheço.
Ao meu lado, a Sra. Munson respira fundo.
– Uau – diz ela quando se recupera.
Ruby Jo parece não notar o homem que estende a mão para a
Samsonite, os dedos roçando nos meus quando pega a mala.
– Obrigada – falo, agora um pouco desanimada por dentro.
Não sou uma mulher fraca. Eu malho, corro na esteira e levanto
pesos algumas vezes por semana. Não preciso que um homem
carregue minha bagagem, me coloque em um pedestal ou se
preocupe com a possibilidade de eu quebrar a unha. Mas, cara,
aquela porra de mala estava pesada. Acho ótimo me livrar dela. Não
acho nada ótimo ver o rosto da pessoa que a pega das minhas
mãos.
– Sem problema – responde ele.
Carregada por um braço bronzeado e com músculos de tenista,
a Samsonite parece levar penas dentro.
– É sua?
– Não. É da Sra. Munson – digo, apontando para a mulher mais
velha, que não fechou a boca desde que o homem surgiu. – Eu não
esperava ver um rosto conhecido aqui.
Alexander Cartmill é um desses homens que são bonitos e
sabem disso. No domingo, passei o café da manhã inteiro
observando-o arrumar os cabelos entre goles de cappuccino
descafeinado enquanto Malcolm alardeava os resultados das
partidas de tênis da semana anterior.
– Vim prestar os serviços médicos semanais – justifica ele,
estendendo a mão livre para a Sra. Munson.
Nós três o acompanhamos através das sombras cada vez mais
longas lançadas pelo prédio da administração. Ele deve ter uns 40
anos, penso. Ou 50 ou 30 e tantos. É sempre mais difícil adivinhar a
idade dos homens. Eles não mudam como nós, não passam pelos
mesmos altos e baixos hormonais, não ganham pelos em lugares
inusitados nem perdem a cintura. Ele oferece ajuda para levar o
resto das malas escada acima, mas eu seguro a minha, assim como
Ruby Jo.
Ela fica alguns passos atrás e sussurra para mim:
– Acho que não gosto dele, Elena.
– Nem eu.
E não gosto da falta de surpresa no rosto dele ao me
reconhecer.
TRINTA E NOVE

A
lex nos deixa no corredor com um breve sorriso do tipo sei
que sou gostoso e na mesma velocidade com que apareceu
no caminho cheio de mato lá fora. A sala em que nós três
entramos é quente e ampla, mas está decorada de modo a parecer
menor e fazer com que os visitantes se sintam à vontade. Poltronas
estofadas com tecido de chita e mesas de madeira lustrosa
diminuem a distância entre as paredes. E as lâmpadas nas
arandelas são incandescentes, amareladas, e não o frio branco-
azulado da moderna iluminação a LED que faz as pessoas
parecerem cadáveres. Portas de carvalho restauradas ladeiam o
corredor, presumivelmente levando aos escritórios. Toda a sala
cheira a óleo de limão e pot-pourri.
Se eu não estivesse mortalmente cansada e usando roupas
amarrotadas depois de 28 horas viajando em um ônibus, acharia
que estava no elegante clube feminino transformado em escola do
ensino médio perto do Dupont Circle. Mesmo assim, a sala não
combina com as cercas vivas sem poda nem com o caminho
abandonado por onde viemos, a partir do portão.
– Chique – comenta a Sra. Munson, absorvendo tudo.
Ruby Jo emite um murmúrio cético, igual ao que fez diante de
Alex. É difícil dizer qual das duas tem 65 anos e qual é a garota que
terminou o mestrado um ano atrás.
A porta mais próxima se abre e uma mulher baixinha aparece.
Seu vestido é a primeira pista de que alguma coisa está errada; a
segunda é a outra mulher do tamanho de uma montanha, sentada
atrás de uma mesa dentro da sala.
Ambas usam os conjuntinhos cinza das representantes do
serviço social infantil da Campanha Família Mais Apta e da Sra.
Flowers e da Sra. Parks na manhã de ontem. Nenhum dos
uniformes é ajustado ao corpo. O da baixinha que nos recebe pende
como um saco, fazendo sua pele morena parecer macilenta; o da
mulher na mesa está esticado sobre os seios grandes, e seu rosto
pálido me faz ter a impressão de que ela necessita de remédios
para rosácea. São roupas infelizes para mulheres de aparência
infeliz.
– Sou a Srta. Gray – diz a baixinha, sem nos cumprimentar.
Com essas roupas, só podia ter um sobrenome que quer dizer
cinza mesmo, penso.
– Deixem as malas aqui enquanto vocês são processadas –
continua ela.
Processadas. Como atum em uma fábrica de conservas.
Somos chamadas uma a uma. A Sra. Munson entra na sala
primeiro e, depois de dez minutos, sai com um monte de tecido
cinza em um braço e uma máscara de incredulidade no rosto. A
Srta. Gray ordena que ela espere enquanto Ruby Jo entra.
– O que é isso? – pergunto, indicando o tecido cor de água suja.
– Você não acreditaria se eu dissesse – responde ela baixinho, e
seus olhos se viram na direção da diminuta Srta. Gray, que está
montando guarda junto à porta de carvalho.
Assim passamos os dez minutos seguintes em silêncio até que
Ruby Jo sai com outra braçada de tecido e uma expressão de quem
já viu tudo isso antes. Então a Srta. Gray lê meu nome na
prancheta.
É a minha vez.
A reunião demora mais do que dez minutos, talvez por causa da
aliança no meu dedo, talvez porque a Sra. Underwood não entenda
como serei útil aqui, talvez porque eu tenha lhe perguntado sobre
minha filha.
– Você é casada – afirma ela.
Não é uma pergunta, mas suspeito que sua voz seja tão
monótona quanto as planícies do Kansas mesmo quando está
empolgada. E duvido muito que Martha Underwood, mestra em
Educação, já tenha estabelecido algum recorde de empolgação em
sua carreira.
Ela se recosta na cadeira, o que mal ajuda a estreitar o espaço
entre seu peito e a borda da mesa. As mãos, flácidas e imóveis,
permanecem entrelaçadas sobre a barriga. São mãos de homem –
grandes, sem anéis e sem manicure. Se ela não tivesse falado, eu
acharia que era um manequim, uma estátua.
– Sou – respondo. Ou era, há 24 horas. Quem sabe o que
Malcolm fez depois de descobrir que eu dei no pé?
– Hmmm... – Somente seus olhos se viram para a tela do
computador, de costas para mim. – E você ensina ciências?
– Isso mesmo.
A Sra. Underwood volta-se para mim, estreitando os olhos.
– Que campo?
– Biologia, anatomia, genética. Também posso dar aulas de arte.
Ela arregala os olhos.
– Está brincando, não é?
– Não. Era o que eu fazia antes. Como muitas pessoas.
Pela expressão dela, dá para ver que a Sra. Underwood está
pensando o que Malcolm pensava enquanto eu estudava grossos
volumes com ilustrações coloridas na faculdade. Que uma
estudante de história da arte tem tanta chance de ganhar a vida no
século XXI quanto um fabricante de chicotes teria. Menos, talvez.
A Sra. Underwood começa a digitar.
– Horticultura básica e artes da linguagem – diz, digitando. –
Veja se consegue ao menos ensiná-los a plantar verduras e
escrever parágrafos inteiros.
– Quando posso ver minha filha?
– Perdão?
– Eu perguntei quando posso ver minha filha. Frederica Fairchild.
Ela para de digitar e se enrijece.
– Sra. Fairchild...
– Dra. Fairchild – interrompo, encarando-a por cima das lentes
grossas que escorregam pelo seu nariz desde que entrei.
– Certo. – Ela não se incomoda em se corrigir. – Vamos
esclarecer algumas coisas. Aqui você é uma funcionária. Eu sou a
diretora. Tenho dezenas de alunos, vinte professores que odeiam o
fato de que este é o único trabalho que eles conseguem ter e cinco
ex-diretores de escolas na fila para assumir meu cargo se eu não
administrar este local como Washington manda. Não sei como uma
mãe e uma filha vieram parar na mesma escola, mas não posso
abrir exceções. Portanto, faça o seu trabalho e me deixe fazer o
meu. – Ela se levanta, indicando o fim da conversa.
Ao chegar à porta, eu me viro de volta.
– A senhora gosta do seu trabalho?
– Não vejo motivo para essa pergunta.
Sei como é a personagem de diretora de escola do ensino
médio. Ou de escola federal. Quando você está lidando diariamente
com centenas de adolescentes cheios de hormônios, precisa usar a
máscara de durona e informar ao mundo que não vai aceitar
nenhuma merda. Sempre suspeitei que existe um curso nos
programas de pedagogia que o resto de nós não conhece. Uma
matéria chamada Como Ser Uma Escrota e Ainda Manter o
Emprego.
Martha Underwood parece ter feito e refeito esse curso ad
infinitum.
Sem mais nada a dizer depois de uma segunda tentativa de
perguntar sobre Freddie, saio da sala com minha própria trouxa de
tecido cinza e áspero e instruções explícitas de que os uniformes
serão lavados às segundas, quartas e sextas.
– Não temos desfiles de moda aqui. É uma fazenda de trabalho
– esclarece a Sra. Underwood enquanto fecho a porta de sua sala.
Não brinca!, penso, encarando-a pela última vez. Não sei bem o
que sinto por essa mulher. Talvez ódio, talvez pena. Talvez um
pouco de cada.
QUARENTA

N
o corredor do lado de fora, Ruby Jo e a Sra. Munson
balançam a cabeça para mim.
É, ela é uma escrota, confirmo em silêncio às duas. Só
não entendi o que elas estavam tentando transmitir.
– Você tem celular? – pergunta a Srta. Gray. – Ou um notebook?
Idiotamente pego o celular, esperando o login e a senha de wi-fi.
Demoro cinco segundos inteiros para lamentar o que fiz.
– Aqui não tem sinal – informa a Srta. Gray, pegando o aparelho
da minha mão.
Minha conexão com o mundo exterior ocupa seu lugar atrás de
outra porta fechada que dá no corredor, presumivelmente ao lado do
celular de Ruby Jo. Não sei se a Sra. Munson está conectada ao
mundo dos dispositivos eletrônicos portáteis. Ela não parece fazer o
tipo.
– Ela pegou o meu também – sussurra a Sra. Munson enquanto
acompanhamos Gray pelo corredor até a porta dos fundos do prédio
da administração. – Um iPhone novinho em folha com 1 terabyte de
memória. Toda a minha coleção de Johnny Cash, inclusive os shows
ao vivo. E todos os meus filmes. Meu nome é Melissa, mas todos
me chamam de Lissa – apresenta-se ela, estendendo a mão e
apertando a minha com firmeza. – O que você esperava? Conceição
ou Gertrudes? – acrescenta, observando meu olhar.
Alex está esperando do lado de fora para pegar a mala de Lissa.
De novo ele estende a mão para a minha.
– Não precisa – afirmo.
E começamos a andar enquanto a Srta. Gray nos conduz, como
diz ela, aos “nossos aposentos”.
Apesar de termos permanecido no prédio por cerca de apenas
meia hora, o espaço aberto atrás da porta dos fundos está tomado
pela escuridão. Olhando à frente, não consigo enxergar as árvores.
Apenas silhuetas sob a penumbra sugerem a existência de algum
tipo de vegetação entre os prédios da escola federal. Se eu estiver
enxergando direito, há o reflexo das arestas de uma estrutura de
proporções monstruosas, um Golias de pedra e argamassa, se o
resto for igual aos blocos de granito da base. À luz de um poste,
vejo que na pedra angular está gravado 1895.
– Este é o principal prédio de Educação – indica a Srta. Gray.
A informação, além do tom entediado, me faz lembrar a primeira
vez em que visitamos uma universidade, onde minha irmã estava
considerando estudar. Fiquei pasma com os prédios, um para cada
assunto que eu sabia existir, e muitos mais ainda. Toda uma cidade
dedicada ao ensino e à aprendizagem, com janelas iluminadas
mesmo tarde da noite e cabeças curvadas sobre livros, como vimos
enquanto passeávamos pelo campus.
Universidades são como colmeias, pensei à época.
Passamos por duas construções menores, dois blocos de tijolos
em que a luz trespassava as janelas. Ali dentro, a maioria das
paredes é de um branco nu, sem pôsteres, sem enfeites, sem nada
que diga: Ei, garoto, esse é seu quarto. Todo seu.
E a iluminação torna mais óbvias as barras verticais do lado de
fora de cada janela.
– Meu Deus – murmura Ruby Jo. – Vovó estava certa.
– São dormitórios. – A Srta. Gray gesticula na direção de um
prédio e depois do outro. Na minha cabeça, ouço um apresentador
de TV gritando: Leve bomba na prova e você pode ganhar um
desses! – Meninos à direita; meninas à esquerda – informa ela
enquanto passamos entre os dois.
– Para mim, mais parecem celas – sussurra Lissa.
Eu me viro e estreito os olhos para os prédios.
Não podem ser barras, não é possível. Ou talvez sejam porque
os prédios foram construídos em 1895. O ferro já deve estar
totalmente enferrujado, poroso e facilmente quebrável, nada mais do
que um artefato arquitetônico, um remanescente histórico que os
preservacionistas decidiram manter.
As coisas em que nos obrigamos a acreditar.
Nosso pequeno desfile de cinco pessoas avança por mais uns
100 metros. Prédios menores, no mesmo estilo dos dormitórios,
esperam à frente. A Srta. Gray, ainda no modo guia turístico, aponta
para o refeitório à esquerda e para a acomodação dos professores à
direita.
Percebo que acabei de trocar minha casa de 300 metros
quadrados por um pequeno apartamento.
Nossa guia para quando chegamos à porta da residência dos
professores.
– Jantamos às seis horas. Portanto só há tempo para vocês
fazerem o check-in e pegar as chaves do quarto. Vocês três vão
ficar juntas – informa ela, confirmando minha suspeita. – Térreo, à
esquerda, depois da porta dupla. Espere um minuto, garota –
ordena Gray a Ruby Jo. – Bagagens na mesa.
Antes que eu tenha chance de averiguar o saguão, dois homens
aparecem, saídos de trás de uma divisória de vidro. Eles não têm
crachás e não se apresentam antes de jogar nossas malas em uma
mesa de aço. E de abri-las.
– Ei! – exclama Ruby Jo. – O que vocês acham que estão
fazendo com as minhas coisas?
E com as minhas coisas. E com as coisas de Lissa Munson.
Uma a uma, nossas malas são abertas e revistadas. Minha roupa de
baixo vê mais ação do que em anos de casamento. O pacote de
absorvente de Ruby Jo é examinado como se fosse um estojo de
charutos cubanos. Lissa se retrai quando um dos homens
inspeciona três fotos emolduradas, deslizando o suporte de trás de
cada uma, verificando entre camadas de papelão e vidro.
– O que é isso? – pergunta o primeiro, segurando uma caixa de
plástico transparente cheio de frascos e tubos.
– Meu kit de maquiagem – responde Ruby Jo. – Você sabe,
rímel, base e coisas para tingir o cabelo. Quer experimentar?
A única reação dele é largar a caixa em cima do caos na bolsa
de lona de Ruby Jo e fechar o zíper outra vez. Comparado com
esses dois, um segurança de aeroporto deveria ganhar uma
medalha de simpatia.
A Srta. Gray indica nosso quarto e Alex carrega a mala até lá.
– Vejo vocês no jantar. – Ele se vira e segue até a outra
extremidade do corredor, desaparecendo atrás de outra porta.
Ruby Jo revira os olhos.
Sou eu que estou com a mão livre e a chave, por isso sou a
primeira a ver nosso apartamento. Não é tão ruim quanto eu
esperava. Porque, afinal de contas, eu estava esperando uma cela
de Alcatraz, de 1,5 metro por 3 metros, do tipo em que você
consegue encostar as mãos em duas paredes opostas ao mesmo
tempo. Esta acomodação mais parece a versão reduzida de uma
suíte de hotel barato: uma sala de estar aberta, com quitinete em
um canto, uma mesa redonda com quatro cadeiras e um conjunto
apertado de sofá e namoradeira junto à parede dos fundos. Há uma
janela, mas não existe televisão.
Arrasto minha bagagem até um canto, verificando o quarto que
vamos compartilhar. É tão pouco decorado quanto a sala. Três
camas – um beliche e uma cama de solteiro – preenchem o
cômodo. Tudo em um tom de bege institucional.
– Já vi trailers mais bem decorados – reclama Ruby Jo.
É Lissa que vai primeiro até a janela, puxando as persianas
marrons e tossindo quando uma nuvem de poeira sobe delas. Não
diz nenhuma palavra; não precisa.
Há barras nas janelas.
Pela minha experiência, sei que as barras servem a dois
propósitos: mantêm as pessoas do lado de fora ou do lado de
dentro. Com um mau pressentimento na boca do estômago, fico
imaginando a que propósito estas aqui servem.
QUARENTA E UM

N
ós nos revezamos para usar o banheiro, um cubo frio e
estéril do outro lado da quitinete. Se a Escola Federal no 46
tinha um orçamento para decoração, não sobrou nada para a
residência dos professores.
Enquanto espero Lissa e Ruby Jo terminarem, analiso a
brochura de informações que está sobre a mesa redonda.
Não me surpreende que seja mais uma lista de regras do que de
informações.
– Há um toque de recolher às nove horas da noite – leio em voz
alta, para que minhas colegas de quarto, que logo serão amigas
extremamente íntimas, possam ouvir. – Porta principal trancada. Um
alarme será acionado se as saídas de emergência forem usadas, e
isso está sublinhado. Que porra é essa?
Se meu palavrão incomoda Lissa, ela não deixa transparecer.
– Que porra mesmo! – grita Lissa do banheiro.
– Esperem até ouvir a próxima parte – digo. – Os professores
devem permanecer nos andares separados por gênero. Sem
exceção. Os quartos são equipados com detectores de fumaça.
– Então onde podemos fumar? – pergunta Lissa.
– Pelo jeito não podemos – respondo, folheando as cinco
páginas da brochura. – Não há nada aqui sobre uma área de
fumantes. Ah, por sinal, álcool também é proibido. Talvez fosse isso
que os Irmãos Metralha estavam procurando na nossa bagagem.
Ruby Jo dá um risinho.
– O que foi?
– Depois eu conto. – Há malícia nos olhos dela. – Mais alguma
coisa? Eles vão fazer a gente cortar o cabelo em estilo militar
também?
– Só um horário de aulas – continuo. – E precisamos usar os
uniformes o tempo todo quando não estivermos em nossos
aposentos. “Aposentos”. Meu Deus.
Continuo lendo todas as páginas de verbos no imperativo, cheias
de diretrizes e avisos. Em nenhum lugar da brochura aparece a
expressão “por favor”.
Vinte e quatro horas atrás eu estava no ônibus falando bobagem
com Ruby Jo e avançando um banco de cada vez até que o cheiro
de urina e desinfetante ficasse mais afastado, o mais longe que as
dimensões do veículo permitiam. E 24 horas antes disso eu estava
comendo frango assado e tomando vinho espanhol enquanto meu
marido fingia que sua família brilhante ainda estava intacta.
Estou me sentindo um pouco menos brilhante agora, ao trocar a
suavidade do vestido de jérsei azul por um conjunto de saia e
casaco que pesa no corpo, irritando a pele.
– Uma moeda pelos seus pensamentos – diz Ruby Jo.
Não tenho pensamentos que valham uma moeda. Meus
pensamentos valem 100 dólares, começando com quanto Anne
deve me odiar a essa altura e terminando com que tipo de
insanidade temporária me levou a arrumar as malas, entrar em um
ônibus e atravessar o país sem a menor ideia do que estaria por vir.
Talvez todas as mães sejam meio loucas. Talvez isso seja parte
do trato que fazemos quando permitimos que nosso corpo se torne
hospedeiro, quando nos deitamos de pernas abertas, as entranhas
se contorcendo de dor, e fazemos força, força e força até não
aguentarmos mais, quando ficamos de vigília durante noites e mais
noites em cadeiras de balanço e poltronas reclináveis, preocupadas
com as menores mudanças no apetite, na temperatura ou no peso
de uma criatura minúscula.
Agi como louca ao vir para cá. Seria igualmente louca se tivesse
ficado em casa.
De qualquer modo, não importa qual tenha sido a decisão, penso
enquanto vestimos os casacos e voltamos pelo corredor vazio,
passando pelos dois Metralhas, e saímos da residência dos
professores. Não importa quais foram as decisões depois que já
foram tomadas.
Somos as últimas a entrar no refeitório e recebemos olhares
carrancudos da Sra. Underwood. Consulto o relógio e vejo que
chegamos cinco minutos atrasadas. Cerca de uma dúzia de homens
e mulheres de uniforme já está acomodada em grupos de quatro;
duas enfermeiras de meia-idade puxam cadeiras na primeira mesa,
de onde Underwood e Gray parecem vigiar todo o salão; e mais de
cem crianças estão espremidas em bancos compridos, sem
encosto, com pratos diante de si.
Em minha mente, há milhares de flashes em refeitórios
estudantis. Eles se chocam e se fundem como uma montagem de
trechos de filmes: crianças do terceiro ano tirando fatias de
mortadela dos pães, dobrando-as de um modo específico e
mordendo um buraco no meio; jogadores de basquete universitário
treinando dribles com uma das mãos enquanto dão mordidas
monstruosas em maçãs; CDFs sozinhos, estudando equações de
álgebra. E, claro, as obrigatórias guerras de comida.
Conheço todos os sons, imagens e cheiros dos refeitórios
escolares, e basta um olhar no refeitório da Escola Federal no 46
para saber que este está completamente errado.
Um homem magro e meio encolhido sobre seu prato olha para a
esquerda, para a direita e de volta, como se estivesse assistindo a
uma partida de tênis acelerada. Quando levanta o garfo, conto três
dedos na mão esquerda. A mulher ao lado dele tem mechas
grisalhas no cabelo preto, além de uma cicatriz no lábio, resquício
de uma cirurgia de fenda palatina. Tirando isso, é linda.
Há homens gordos e mulheres meio carecas, perfis de narizes
aduncos e queixos recuados. No canto mais distante, quatro rostos
com cicatrizes de acne sussurram inclinados e então recuam
quando o olhar da Sra. Underwood varre o salão. Enfiadas sob uma
mesa perto de mim estão as rodas de uma cadeira motorizada.
É tão diversificado quanto os outros refeitórios que já vi, a não
ser por uma coisa. Tudo na diversidade deste salão pende para a
imperfeição. Lissa também parece notar.
Há crianças desde as pequeninas da primeira série, de olhos
arregalados, até adolescentes magros a caminho de se tornarem
homens. No meio de uma fileira de meninas está Freddie.
O tempo parece parar quando a vejo, e tudo que acontece em
seguida se desenvolve em câmera lenta, um rolo de filme saltando
de um quadro a outro devido ao movimento controlado do braço de
um projecionista invisível.
Minhas pernas se movem primeiro; a direita, a esquerda, depois
a direita outra vez. Primeiro passo, segundo passo, terceiro passo.
Um sorriso se abre até as orelhas. Talvez eu tenha emitido algum
som, talvez não – a trilha sonora deste filme é uma série de ruídos
subaquáticos confusos. Enfio a mão no bolso do casaco para pegar
o pacote de biscoitos que eu trouxe. É o predileto de Freddie,
penso.
Passo, passo, passo. Quadro congelado.
Primeiro vejo os sapatos dela, depois os pelos finos, felpudos,
em suas canelas, em seguida os joelhos com as pequenas
cicatrizes desbotadas de escorregões infantis. Abraço-a e inspiro
profundamente seu perfume, o cheiro de sabonete barato e de
criança me preenche. Quando ela pronuncia aquela única palavra –
mamãe –, mal consigo me conter para não cair no choro.
Quando ela diz que me ama, eu me parto em milhões de
pedaços. Quero dizer todo tipo de coisa, mesmo se for mentira. Vou
levar você para casa. Não vai acontecer mais nada de ruim. Vamos
morar com Oma e Opa. Tudo vai ser maravilhoso.
Freddie absorve essas palavras como se eu as tivesse dito. Pela
primeira vez, ela é mais do que uma parede, mais do que uma
menina recortada em papelão, e me aperta de volta com seus
braços pequenos.
Se ao menos pudéssemos continuar assim!
Mas...
Sinto a pressão de uma mão segurando meu pulso, ouço o ruído
de uma embalagem plástica sendo esmagada quando alguma coisa
é arrancada da minha mão.
A cena se acelera ao meu redor, na minha frente e dentro de
mim. A Sra. Underwood está de pé, firme, bloqueando o acesso à
minha própria filha, que, se estou enxergando direito, treme dentro
de um vestido avental que é dois números maior do que deveria.
– Uma coisa que você vai entender enquanto estiver trabalhando
para mim... – começa a Sra. Underwood, me afastando de Freddie,
em direção ao balcão de serviço. Suas palavras são lentas,
deliberadas e horríveis, enquanto ela desliza uma bandeja da pilha e
a coloca com firmeza exagerada na superfície de metal. – E você
vai entender, Dra. Fairchild. Nenhuma criança é especial aqui.
Nenhuma. – Em sua mão está o pacote de biscoitos que seria para
Freddie.
Mas ela tirou de mim muito mais do que isso.
QUARENTA E DOIS

ANTES

E
u tinha 14 anos quando conheci Malcolm. Estava almoçando
sozinha, na segunda semana do ensino médio, com um livro
em uma das mãos e um sanduíche de queijo na outra. A
cada cinco minutos precisava pousar um dos dois e empurrar os
óculos da ponta do nariz. Parecia que eu estava lendo e comendo,
mas na verdade estava contando quantas pessoas me observavam
e queria ser capaz de sumir, me fundir ao piso de linóleo e às
cadeiras de plástico.
Malcolm, dentuço e magricelo, um pomo de adão enorme se
projetando do pescoço, veio com seu almoço para junto de mim.
Houve sussurros suficientemente altos para serem percebidos e
suficientemente nítidos para magoar, circulando entre as outras
mesas.
– Não sei você – disse Malcolm, pondo sua bandeja à minha
frente –, mas eu lido com eles fazendo um jogo.
– Bom para você – respondi. – Eu lido com eles sentindo
vontade de sumir.
– Seu jogo não é muito bom. Eu tenho um melhor. – Ele apontou
para uma mesa com líderes de torcida, as saias absurdamente
curtas se movendo sobre coxas absurdamente bronzeadas. – Idiota.
Idiota. Idiota. – A cada palavra seu queixo se movia, como se ele as
estivesse contando. – Se esse prédio pegasse fogo, acho que
poderíamos deixar aquelas três queimarem. O que acha?
– É.
O olhar dele percorreu o salão até os atletas.
– Total desperdício de espaço – comentou, assentindo para um
dos astros do basquete. – Queimar ou salvar?
– Queimar.
– Certo. Então você aprendeu as regras. Agora escolha um.
Examinei o refeitório, pousando os olhos em uma garota dois
anos mais velha do que eu, que riu de um vestido que eu tinha
usado duas vezes na mesma semana.
– Ela. A dos brincos grandes. A Srta. Riquinha.
– Boa escolha.
Assim continuamos até queimarmos todo mundo do refeitório, a
não ser nós mesmos e um garoto do clube de matemática que
Malcolm não considerava completamente inútil. Em quinze minutos,
nos livramos dos escrotos, dos idiotas, dos feiosos (como Malcolm
os chamava) e de todos aqueles que exibiam motivos para serem
odiados. Acabamos até com as funcionárias da escola, só porque
eram gordas.
– Está se sentindo melhor? – perguntou ele quando éramos,
hipoteticamente, os últimos vivos.
– Estou. Mas não podemos queimar todo mundo.
– Tem alguma ideia melhor? – Seus olhos brilharam de malícia.
– Bom – falei, pensando que gostaria de mergulhar naqueles
olhos e nadar. – E se a gente mudasse a situação? Quero dizer, e
se a gente desse um jeito de o pessoal popular idiota precisar... não
sei... esperar na fila do almoço? Ou pagar a mais pelas coisas?
Com o tempo, deixamos de ser tão esquisitos e passamos a nos
encaixar melhor. No primeiro ano, nossa ideia dos cartões de
identificação coloridos tinha virado moda. Na primavera seguinte,
todas as escolas em Maryland haviam adotado o esquema. Junto
com nossos cartões dourados havia vantagens: ingressos grátis
para bailes, filas de prioridade no refeitório, uma sala de descanso
exclusiva. Malcolm costumava brincar dizendo que era como
separar os passageiros por classes nas viagens aéreas.
– Se a imbecil da Margie Miller quiser um almoço melhor, terá
que estudar mais – disse ele certa vez, quando Margie era a última
de uma fila comprida. – O mesmo vale para aqueles atletas idiotas.
Talvez as antigas cicatrizes é que tenham me feito seguir em
frente, as provocações e zombarias sobre meus vestidos velhos ou
a comida diferente que minha mãe preparava; talvez tenha sido
Malcolm abrindo as feridas e esfregando um pouco de sal,
mantendo-as vermelhas e frescas, lembrando como eles nos
tratavam antes de nos transformarmos neles. Talvez eu fosse
apenas uma escrota maldosa, porque eu ri quando ele falou isso.
Não que eu soubesse para onde as coisas estavam se
encaminhando. Ninguém teria como saber.
QUARENTA E TRÊS

–T
alvez ela tenha uma tabela de deméritos no escritório –
comenta Ruby Jo, enfileirando mais duas bandejas no
balcão de aço. – Se receber três marcas, você leva uma
pancada com a colher de pau da cozinheira.
Ouço as palavras e registro como algo que é para ser
engraçado, mas não rio.
Lissa passa o braço pelos meus ombros.
– Ah, querida... – suspira ela, puxando minha bandeja por mim.
O jantar é bolo de carne, uma substância lodosa que as
cozinheiras chamam de purê de batata e uma montanha de milho
para acompanhar. Quando estamos procurando três assentos, a
Sra. Underwood faz outra carranca e bate no relógio.
Sorrio na direção dela, imaginando o relógio sendo enfiado na
sua garganta. Com uma pequena ajuda minha.
Ruby Jo explicou tudo a Lissa, de modo que estou cercada de
simpatia quando levamos as bandejas pelo refeitório até os únicos
lugares vazios.
São na mesa de Alex. Algumas conversas irrompem no salão
quando nos sentamos e então morrem tão rapidamente quanto
começaram.
Fico extremamente incomodada com a presença de Alex, mas
um aliado é um aliado, mesmo que seu olhar alterne entre a
papelada que estava examinando e as minhas pernas. Tento dar um
sorriso amistoso. Ele o devolve e volta à multitarefa, deixando Lissa,
Ruby Jo e eu falando entre nós.
De soslaio, olho várias vezes para a mesa onde Freddie está
sentada, espremida entre duas garotas mais velhas, fitando um
prato intocado com carne e creme de milho. Ela quase desaparece
dentro do vestido grande demais e agora me preocupo pensando se
ela não comeu nada nos últimos dois dias.
Às quinze para as seis uma campainha toca, alta e estridente,
sinalizando o fim do jantar. Como se tivessem ensaiado, as crianças
empurram as cadeiras ao mesmo tempo, levantam-se e se viram
para a porta principal, que leva para fora do prédio. Não há
conversas, nem paixonites sussurradas pelas meninas ou piadas
dos meninos, apenas silêncio enquanto as crianças se organizam
em filas separadas por gênero. Por um momento, imagino o que a
Sra. Underwood deve fazer com as crianças trans, com as
intersexuais, as que não se encaixam nos convenientes moldes de
“ele” ou “ela”.
Provavelmente nada.
Freddie sai com o resto do grupo e eu noto a braçadeira roxa na
manga direita do vestido, no alto do braço. Não é algo que eu me
lembre de ter posto na mala na manhã de segunda-feira e, de
qualquer modo, não me lembro de Freddie já ter sido fanática por
roxo. É a cor de Anne; Freddie prefere verde e azul.
Há também braçadeiras amarelas, vermelhas e azuis. Todo um
arco-íris decora os uniformes de meninos e meninas que saem pela
porta seguindo um par de matronas. As duas meninas que estavam
sentadas ao lado de Freddie usam azul. Um menino pequeno, que
parece não ser muito mais alto do que Freddie embora esteja
sentado em uma cadeira de rodas, vem na minha direção. Suas
cores são roxo e azul-escuro. A última menina da fila, alta e magra
mas com uma perceptível barriga de grávida, parece ter uns 17
anos. É a única de braçadeira vermelha.
– O que você está olhando? – pergunta Alex ao me ver
encarando-a.
Ruby Jo chuta meu tornozelo embaixo da mesa. Com força.
– Nada. Só as crianças – respondo, empurrando a bandeja para
o centro da mesa o máximo que a física permite.
O creme de milho até estava comível, mas ainda resta um monte
no meu prato. Baseada no que vi pela janela do ônibus, prevejo um
aumento de ingestão de milho no futuro próximo.
Estou prestes a dizer alguma coisa a Ruby Jo quando noto um
clima estranho no refeitório.
É um desequilíbrio que eu deveria ter percebido antes, quando
entrei. Todo mundo está tentando não olhar na nossa direção. Eles
se esforçam tanto, com tanta força de vontade, que acabam fazendo
exatamente isso.
E todos estão olhando para mim.
QUARENTA E QUATRO

U
m milhão de perguntas estão na ponta da minha língua, mas
só abro a boca quando estamos voltando ao nosso prédio.
Só agora percebi que Ruby Jo, cuja nécessaire de
cosméticos é do tamanho de uma mala pequena, não está usando
nenhuma maquiagem.
– Você não é muito do tipo que usa maquiagem, é? – pergunto.
– Ah, isso. Vou mostrar quando a gente chegar. Se você quiser.
Sem dúvida quero. Mas vou ter que esperar um pouco mais
porque Alex vem bancando a minha sombra desde o jantar, me
encarando daquele jeito. O fato de eu estar vestindo sacos de pano
cinza não parece importar; ele já me viu com vestidos curtos e saias
de tênis no clube, e tenho certeza de que sua memória é boa. Será
que vai comentar com Malcolm sobre o novo acréscimo ao corpo
docente daqui? Ou pior, será que não vai falar nada, pensando que
pode tirar alguma vantagem disso? Não sei o que me perturba mais.
Finalmente ele nos deixa na sala comunitária do edifício e
desaparece na outra ponta do corredor. Outros homens e mulheres
vestidos de cinza entram, ocupando assentos na mobília cheia de
calombos, só erguendo a voz acima de um murmúrio quando têm
certeza de que Alex não pode mais escutar.
Escolho uma mulher mais ou menos da minha idade e pergunto
a ela quanto tempo Alex Cartmill planeja ficar.
– Não sei. – Ela dá de ombros. – Ele chegou ontem. Alguma
coisa a ver com montar uma clínica. A questão é: o que você está
fazendo aqui? Você é esposa daquele sujeito que trabalha para a
Sinclair, não é?
– A própria. Culpada por associação – brinco, mas sai um pouco
alto demais.
A mulher não ri.
– Bom, querida, preciso dar um conselho, da parte de todos nós.
– Algumas cabeças se viram na minha direção enquanto ela levanta
a voz: – Não queremos nada com você aqui.
A mulher sai da sala, me deixando sozinha com Ruby Jo, Lissa e
a televisão. Ouço a palavra “escrota” vindo do corredor, além de
outros nomes.
Ruby Jo ocupa uma das poltronas com calombos e liga o
aparelho.
– Parece que você é popular – comenta ela, quando passa um
comercial de sabão em pó. A dona de casa é jovem, bonita e
saudável, sorrindo em meio a jeans sujos de terra e manchas de
colarinho enquanto alardeia a magia de frascos coloridos.
– Ser casada com um monstro tem esse efeito.
– Eu daria um pé na bunda do desgraçado – diz ela.
– É. Não é tão fácil. – Conto a ela sobre Anne e as ameaças de
Malcolm.
– A rainha Madeleine vai falar esta noite – avisa Lissa, caindo no
sofá ao meu lado. – Nossa ilustre secretária da Educação e
companheira de cama da Campanha Família Mais Apta.
Ruby Jo resmunga quando o terninho azul-elétrico de Madeleine
Sinclair enche a tela na parede à nossa frente. Eu me acomodo nas
almofadas do sofá, ao mesmo tempo duras e macias, e me pergunto
se Madeleine acredita mesmo em tudo aquilo ou se a Campanha
Família Mais Apta está lhe dando tanto dinheiro que ela esqueceu
no que acredita e por quê. Não consigo imaginar que alguém, além
de Malcolm, consiga engolir o que ela oferece. Quero desligar a TV
ou assistir a qualquer outra coisa, algo que entorpecesse a mente.
Um game show ou reprises de Lost seriam perfeitos.
Minha mãe nos aconselharia a assistir. Oma também. E
absolutamente todos os meus ancestrais europeus que passaram
por décadas de inferno.
– E assim, para avançarmos – continua Madeleine –, demos
alguns passos ousados. Mas a ousadia é necessária. É do que
precisamos agora. Todos nós. – A ênfase cai em “avançarmos”,
“necessária”, “agora” e “nós”. Preciso admitir, Madeleine Sinclair
sabe tirar vantagem da retórica. Ela domina completamente a
oratória de um pastor evangélico.
A ovação da plateia não é pré-gravada; não pode ser. Milhares
de pessoas lotam o salão de concertos do Kennedy Center para o
discurso desta noite. Enquanto as câmeras percorrem as fileiras
para cima e para baixo e fazem panorâmicas de um lado a outro,
rostos explodem em sorrisos. Um casal jovem com dentes perfeitos
aplaude com força, rápido e por um longo tempo. Uma família de
cinco membros se dá as mãos. Na última fileira, alguns rapazes
novos enfiam os dedos na boca para soltar assobios agudos.
– Aqui vai uma pergunta: quando finalmente dizemos “chega”? –
Madeleine está em plena forma, ordenhando tudo que a plateia é
capaz de dar. – Quando nos levantamos e lutamos por um país
melhor? Por uma família melhor? Por um ser humano melhor? – De
novo, “país”, “família” e “humano” são enfatizadas em negrito
palpável, audível.
Mais aplausos. Mais assobios.
Até agora a mulher não falou nada de substancial.
– Eles a adoram – avalia Lissa. – Eles a adoram como pagãos
têm adoração a uma deusa.
– Por quê?
– Olhe. – Ela não afastou o olhar da tela.
Por isso eu olho.
– O quê? Só vejo pessoas comuns. – As palavras mal saem da
minha boca quando percebo todo o significado disso. Comuns.
Enquanto Madeleine evoca famílias e seres humanos melhores,
as câmeras examinam a plateia. Há algo irregular na semelhança, e
só agora consigo enxergar o problema. Cada pessoa que aplaude é
igual à que está ao lado – de boa aparência, com roupas estilo
urbano casual recém-passadas, a maioria branca, magra e atraente
–, a absoluta antítese do que povoava o refeitório apenas uma hora
atrás. A ideia de Madeleine Sinclair para a nova classe superior.
E a ideia de Malcolm. E até mesmo minha, a princípio.
Na televisão, Madeleine Sinclair me acusa com os olhos. Parece
estar dizendo: Você não é tão diferente de mim, é, Elena?
– Assim, tenho o orgulho de compartilhar com vocês alguns
pontos fundamentais do PAF – anuncia ela. – Trabalhando com os
especialistas do Instituto Genics e do Saúde da Mulher, nós...
Olho de esguelha para Lissa.
– PAF?
– Programa de Aprimoramento da Família – sussurra ela. – Você
não estava ouvindo?
– Ah, sim. Me distraí por um segundo.
Madeleine continua com o carisma de um pastor no púlpito:
– Número um. Inglês primeiro.
A multidão no Kennedy Center ruge.
– Simples, sucinto e oportuno – diz ela, assentindo diante da
reação da plateia. – Número dois. Nossos amigos do Instituto
Genics vêm trabalhando duro, e tenho o prazer de anunciar que
uma nova bateria de exames Q pré-natais está pronta para ser
lançada. Este é um grande passo para a identificação de problemas
congênitos antes que eles possam arruinar vidas.
Mais aplausos enquanto Madeleine examina suas anotações.
– Por falar em exames Q, passemos para o número três. Vamos
implementar os testes genéticos com mais frequência, começando
com a abordagem de populações especiais. De novo, nosso objetivo
é construir um país melhor, e isso significa famílias melhores. Seres
humanos melhores.
Várias pessoas levantam as mãos nas primeiras fileiras, onde os
jornalistas estão sentados. Quando a câmera os focaliza, reconheço
a terceira mulher a partir da esquerda: Bonita Hamilton, a jornalista
magérrima que Malcolm já rotulou como “alguém que precisa
esquecer a merda de seu governo laissez-faire e recuperar o bom
senso”.
O sorriso de Madeleine desaparece.
– Vou responder às perguntas quando terminar o discurso.
Obrigada.
Estou imaginando coisas ou seu verniz acabou de perder o
brilho?
– Número quatro – continua Madeleine. Pausa de efeito. – Acho
que vocês, senhoras, vão gostar deste. – Sorriso. – Aprovamos um
grande orçamento federal dedicado ao Saúde da Mulher. – Outra
pausa. – Todos os serviços de gestão de gravidez fornecidos por
nosso novo parceiro estão cobertos por seu programa de seguro,
tendo sido ou não encaminhados pelo Instituto Genics. A partir de
amanhã. Cobertura de cem por cento, sem deduções, sem
coparticipação. Nem um centavo sairá de seu bolso. Agora vou
responder a algumas perguntas.
A mão de Bonita é a primeira a subir. Madeleine a ignora uma,
duas, três vezes, enquanto se livra de perguntas com a agilidade de
um acrobata de circo, dançando ao redor dos temas, jamais dando
uma resposta clara. Toda e qualquer palavra que sai de sua boca
rima com “melhor”, “mais apta”, “grandeza” e “avanço”.
O que define Bonita Hamilton é que ela não segue as regras.
Assim, quando ergue a mão pela sétima vez e Madeleine aponta
para uma mulher bem arrumada mais adiante na fileira, a jornalista
fica de pé. Todo o seu 1,82 metro.
– Acho que eu amo essa mulher – declara Ruby Jo.
– Dra. Sinclair – começa Bonita, sem esperar receber permissão.
– Poderia falar mais sobre essas populações especiais?
– Acho que já abordei esse tema o suficiente, Srta. Hamilton.
Mas a Srta. Hamilton parece discordar:
– Só alguns exemplos.
Os lábios de Madeleine forçam um sorriso.
– Como eu disse...
– Prisões? Orfanatos? Comunidades de imigrantes? – Bonita faz
uma pausa e sorri para a câmera com uma falsa ingenuidade. – Ou
talvez escolas federais?
– Estamos no processo de definir as populações a serem
testadas. Obrigada. – Atrás da tribuna, Madeleine Sinclair se
empertiga um pouco tarde demais. Sua voz já rachou.
– Obrigada, senhora secretária – diz Bonita, e senta-se de novo.
– Ah, mais uma coisa... Na verdade, é uma pergunta para a Srta.
Peller. – Ela se vira para onde Petra Peller está sentada no palco. –
Qual é a origem do nome de sua empresa, o Instituto Genics?
Sempre tive curiosidade com relação a isso.
Eu não sinto curiosidade, não depois de Oma ter contado sobre
o tio Eugen, depois de eu ter pesquisado sobre o instituto que ele
dirigia e descoberto seu nome verdadeiro: Instituto Kaiser Wilhelm
de Antropologia, Hereditariedade Humana e Eugenia.
Eugenia. Bem nascido.
Toda a conversa de Madeleine Sinclair sobre um país melhor,
famílias melhores e seres humanos melhores se entrelaçam em um
conceito horrível, nauseante.
– Minha avó esteve em uma daquelas escolas federais da
década de 1950 – conta Ruby Jo quando Lissa desliga a televisão. –
Parece que nós também estamos.
QUARENTA E CINCO

Q
uando penso no passado, depois de penar durante quatro
anos estudando história americana, me lembro de datas,
nomes de presidentes, mais datas, qual arquiduque
assassinado deu início a qual guerra mundial, páginas e páginas de
fatos, linhas do tempo e territórios anexados. E mais datas.
O que Ruby Jo nos conta agora definitivamente não está no
currículo escolar, mas combina com tudo que li nos livros de
Malcolm e na internet, na casa dos meus pais. A diferença é que ela
dá um nome real ao pesadelo.
– Vovó me contou que os furgões de exames apareciam
algumas vezes por ano. Na maioria das vezes, umas mulheres más
faziam as crianças responderem a um punhado de perguntas de
merda. – Ela olha para Lissa. – Desculpe. Minha mãe sempre falava
que eu tinha boca suja.
Lissa solta uma gargalhada.
– Essa porra não me incomoda nem um pouco.
– Foi um juiz da Suprema Corte que afirmou que três gerações
de imbecis já eram mais do que o suficiente – continua Ruby Jo. – O
Sr. Oliver Wendell Holmes. Foi Holmes, e não Hitler. Dá para
acreditar? – Ruby Jo para, toma um bom gole de água e recomeça:
– Minha avó foi parar em um desses ônibus para lugar nenhum mais
rápido do que um estalar de dedos. Veja bem, eles tinham uma lista
de indesejáveis baseada nos testes e coisa e tal. E ela não era
nenhuma burra. Nem imbecil. Só tinha alterações de humor, sabe?
Do tipo que hoje em dia tratam com comprimidos, que faz os
médicos receitarem um Prozac, por exemplo. Na época não existia
nada disso. Mas instituições, sim. Centenas.
Penso na minha mãe contando sobre a escola em
Massachusetts, em Malcolm desdenhando com um entediado “até
agora ninguém reclamou”.
– Eles visitavam bastante nossa cidade – prossegue Ruby Jo. –
Com os exames, as pranchetas e os modos metidos a besta. Bom,
a princípio eles não eram metidos a besta, pelo que minha avó
falou. As mulheres eram todas cheias de sorrisos e bom humor. Até
davam pirulitos para as crianças depois dos exames. Mas,
engraçado, não tinha pirulito na escola federal para onde ela foi
mandada. E definitivamente nenhum sorriso.
Na meia hora seguinte, ficamos sabendo que a avó materna de
Ruby Jo passou dois anos em uma escola federal, tudo por causa
de alguns não cientistas doidos por exames que achavam que o
mundo ficaria melhor sem ela. Tudo que Ruby Jo conta parece
saído de um filme de ficção científica ruim, mas é pura realidade.
– Mas ela escapou e tudo isso acabou – concluo.
– Bom, eu estou aqui, não estou? Ruby Jo Pruitt, filha de Lester
Pruitt, filho mais velho de Betty Anne Pruitt. Mas acho que quase
não existi. Portanto, sim, vovó escapou a tempo.
Lissa e eu a questionamos com o olhar, e Ruby Jo estreita os
olhos, como se a gente já devesse saber a resposta.
– Gente... – diz ela. – Falando numa boa, de verdade, eu fico
besta vendo que vocês não têm a mínima ideia de como é o lugar
de onde eu vim. Se me dão licença, estou querendo encher a cara
um pouco.
Ela sai da sala comunitária, deixando-nos a sós com a televisão
desligada e o ruído de um inseto andando no canto mais distante do
cômodo, procurando um esconderijo no escuro, longe de tudo isso.
O inseto me faz pensar em Darwin, em todas aquelas bolhas de
vida se arrastando para fora da lama, mudando e se adaptando ao
mundo ao redor. Acima de tudo, ele me leva a avaliar se nascemos
com a intolerância no sangue ou se o ódio contra o que é diferente
precisa ser ensinado. Penso em Malcolm e em seu ar superior.
Penso em mim mesma quando era criança.
– É assim que nós somos? Os seres humanos? – pergunto a
Lissa. – Porque, se for, acho que quero ser outra coisa.
Qualquer coisa que não um ser humano supereducado e
supercondicionado. Absolutamente qualquer coisa.
Lissa não responde, pelo menos não imediatamente. Em vez
disso, abre um bloco de anotações, do tipo antigo usado para
taquigrafia, com o arame espiral na parte de cima, e começa a
escrever. Quando termina, inclina-se um pouco para a frente,
apoiando os cotovelos nos joelhos.
– Sabe o que eu acho? Que vou aceitar que sou humana.
– Eu não tenho tanta certeza.
Lissa levanta uma das mãos para me interromper. Não é um
gesto rude nem dominador, por isso deixo que ela continue.
– Está vendo aquele inseto? Ali no canto?
Não tem como não ver.
– É uma traça.
– É. É uma criatura. Condicionada a fazer o que precisa para
sobreviver. – Ela se levanta e vai até a parede, onde a carapaça
minúscula da traça balança de um lado para outro, procurando
apoio na parede enquanto sobe. – Está vendo como ela foge do
meu sapato? Ela foge de outros predadores. Centopeias, aranhas,
qualquer coisa. Mas não de outro inseto da sua espécie. – Lissa dá
um sorriso torto, um lado da boca para cima e o outro para baixo. –
Quero dizer, a não ser que esteja fugindo de uma fêmea durante um
ritual de acasalamento, mas aí é diferente.
O inseto é hipnotizante. Depois de Lissa se sentar ao meu lado
no sofá novamente, ficamos um longo minuto na penumbra,
observando a forma se mover rapidamente, em busca de comida,
segurança ou um companheiro. Sei que se eu me levantasse e
fosse até ele, o inseto teria medo de mim. Eu não precisaria
ameaçar nem fazer nada de mau. O inseto correria na direção
oposta, procurando outros de sua espécie.
Nunca fui inseto, mas já fui criança. Acho que, assim como os
insetos têm reações predeterminadas, as crianças também as têm.
Ele tem olhos azuis; ela tem olhos castanhos. Fique com quem é
mais parecido com você. Ela é gorda; ele é magro. Fique com quem
se parece mais com a imagem do espelho. Ele é irlandês; ela é
inglesa. Identifique-se com o que é conhecido. Os seres humanos
vêm agindo assim há milhares de anos: romanos e gregos,
muçulmanos e cristãos, arianos e semitas, brâmanes e intocáveis.
Minha dúvida permanece. Nós nascemos assim? Ou somos
ensinados? Qualquer uma das duas respostas é horrível a seu
modo.
– Quer saber minha teoria? – retruca ela.
Seu tom é conspiratório, como se fôssemos duas espiãs da
Guerra Fria trocando segredos de Estado e dinheiro na sala dos
fundos de um bar na Berlim Oriental.
– Claro.
– Acho que todos temos um pouco da criatura em nós. Algum
instinto programado que nos leva a ter cautela diante de qualquer
coisa que nos pareça estranha demais ou que seja diferente demais
de nós. Isso é parte do que nos tornou aptos a sobreviver. Mas... –
ela ergue um dedo antes que eu possa concordar ou discordar – ...
sei que podemos desligar o interruptor da xenofobia se quisermos. É
um dos aspectos da humanidade. Isso responde à sua pergunta?
Responde a uma, mas tenho outras. Quero saber o que Lissa
está escrevendo, por que clica continuamente a caneta daquele jeito
obsessivo-compulsivo, por que ela veio para cá e por que não se
retraiu diante da cena dos desajustados no refeitório durante o
jantar. Quero saber o que significam as braçadeiras coloridas e por
que Alex Cartmill está aqui. Mas já está tarde e Lissa lembra que
precisamos estar no refeitório às sete e meia para o café da manhã,
de modo que, por enquanto, chega de perguntas.
Fico mais um pouco na sala comunitária, tendo apenas a luz de
LED vermelha da televisão como companhia, e penso em rituais de
acasalamento, em criaturas que fogem do que é estranho e no meu
sonho dos Qs dançarinos cujos tentáculos se enrolavam nas
crianças, carregando-as para longe.
Penso em Freddie e me pergunto se ela está chorando na cama
esta noite.
Como eu sei que vou chorar.
Os Irmãos Metralha não estão de guarda quando saio da sala
comunitária. Verifico a porta dupla que leva ao vestíbulo do prédio
dos professores, que mais parece uma sala de inspeção de posto
militar do que um saguão. Aberta.
Mas a porta principal não está. Uma placa alerta que um alarme
soará se alguém tentar abri-la entre as nove da noite e as sete da
manhã.
Meu relógio mostra que são quinze para meia-noite quando entro
no apartamento. Na mesa da cozinha há um copo com um quarto de
líquido transparente. Pego-o, cheiro e me retraio. Tem cheiro de
fogo. Fogo com sabor de milho.
Que se dane, penso, e engulo a bebida antes de me desfazer da
casca cinza e pesada e vestir um pijama. O algodão nunca pareceu
tão delicioso.
Ruby Jo está atravessada na cama de baixo do beliche, uma
perna pendendo do colchão, os cachos ruivos espalhados no
travesseiro. Se os cobertores em cima dela não estivessem subindo
e descendo, no ritmo de sua respiração, eu acharia que está morta.
Lissa, por outro lado, já ronca baixinho na cama de solteiro, do outro
lado. Parece um gatinho contente.
E eu? Nunca estive tão desperta.
Subo a escada de madeira perto dos pés de Ruby Jo, bato a
cabeça no teto e caio em um colchão que é algo entre pedra e ferro
no espectro do desconforto. Acima de mim, o reboco está
suficientemente perto para parecer a tampa de um caixão.
Fantástico.
Totalmente desperta e enterrada viva. Não consigo pensar em
destino pior.
E continuo acordada.
O sono acaba chegando, e a última coisa de que me lembro é o
teto logo acima da minha cabeça, branco como a ignorância e sólido
como o aço.
Preciso atravessar essa porcaria.
E preciso ver minha filha. Preciso dizer a ela que vai ficar tudo
bem.
O problema é que não sei se acredito nisso.
QUARENTA E SEIS

U
m despertador toca em um quarto que não reconheço e bato
com a cabeça no teto. De novo. Não é um bom começo de
dia.
Lissa já está de pé e vestida; Ruby Jo está na cozinha lavando o
copo de uísque barato enquanto eu desperto de uma noite de sono
ruim e visto o uniforme cinza.
Na ida para o refeitório especulamos sobre o significado das
braçadeiras coloridas.
– A da sua filha era de que cor? – pergunta Lissa.
– Roxa. E Freddie odeia roxo.
Ontem à noite o refeitório estava cheio de braçadeiras roxas,
algumas novas como a de Freddie, outras desbotadas e esgarçadas
nas bordas. Faço uma anotação mental de prestar mais atenção
durante o café da manhã.
Que estranho o roxo ter sido a cor da realeza! Agora, se estou
certa, é também a cor do fracasso. Leve pau na prova e ganhe uma
braçadeira roxa.
– Só um garoto estava com uma azul-escura – comento,
repassando na cabeça a cena do êxodo pós-jantar. – O garoto da
cadeira de rodas.
– Então talvez signifique deficiente físico – conclui Ruby Jo. – E
a garota grávida usava vermelho.
Engravide e ganhe uma braçadeira vermelha, penso, A letra
escarlate do século XXI.
– E o laranja? Algumas pessoas estavam usando laranja –
indago, pensando nas duas garotas de costas para mim.
Lissa verifica seu bloco de anotações.
– Essa eu ainda não deduzi.
Percorremos o resto do caminho em silêncio, a testa franzida em
pensamentos. Na verdade não há muito em que pensar. As cores
têm significados. Significados terríveis, como a marca de Caim. Ou
a letra escarlate.
Minha avó detestava coisas assim, qualquer tipo de distintivo ou
botão que definisse uma pessoa. Só achei ruim quando ela arrancou
o trevo verde com o qual cheguei em casa uma vez no Dia de São
Patrício e quando ela jogou fora a bandeirinha do México que o
professor de espanhol deu no Cinco de Mayo.
– Não use essas coisas, Leni – avisou ela. – Nunca.
Em casa, nunca tivemos símbolos. Nem cruzes nem crucifixos,
nem bandeiras, nada do tipo. Algumas garotas da escola usavam
pingentes – uma cruz de prata, uma estrela de ouro, um crescente
brilhante. Pareciam descolados, mas, quando apontei para um em
uma vitrine, Oma me puxou para longe.
– Não é para você, Elena. Para você, nunca.
Aos 8 anos eu não entendia. Era comum prender trevos verdes e
bandeiras mexicanas na roupa durante os feriados. Era comum
ganhar joias brilhantes ao comemorar a primeira comunhão, o bar
mitzvah ou o fim do tal do Ramadã. Nos três anos seguintes, usei o
que queria durante as aulas, me certificando de esconder os objetos
proibidos na mochila antes de saltar do ônibus na frente de casa.
No quarto ano, parei de usar. Foi quando Oma me contou sobre
os emblemas coloridos.
Emblemas amarelos. Emblemas em forma de estrela. Emblemas
cor-de-rosa, roxos, marrons e pretos em forma de triângulos
invertidos. Barras para os criminosos reincidentes.
Lissa me faz voltar ao presente, ao refeitório agora cheio de
crianças.
– Lembra alguma coisa a você? – pergunta ela, retomando o
assunto.
As palavras de Oma ressoam em meus ouvidos. De onde você
acha que meu tio-avô Eugen tirou essa ideia?
Não importa mais se as histórias de Oma são dela ou de outra
pessoa. O relevante aqui é que as ideias permanecem, avançam
através das culturas e do tempo, repetindo-se com a ajuda de
pessoas como Madeleine Sinclair. Como Malcolm. E Sarah Green e
todas as outras, inclusive eu. Sinto nojo quando penso em seres
humanos se virando uns contra os outros, com indiferença e frases
como “Meu filho é melhor do que o seu”.
O café da manhã afasta o meu nojo ou pelo menos o transfere.
Espero na fila para pegar os ovos molengas (devem ser em pó), a
bebida laranja (também deve ser em pó) e uma torrada tão seca que
se esfarela quando tento passar manteiga. A refeição está muito
distante da que era servida na escola prata, onde professores e
alunos comiam felizes verduras orgânicas e frango criado solto.
Ocupamos uma mesa livre e ninguém se junta a nós. Tento
ignorar os olhares frios dos outros professores e os sussurros
audíveis destinados aos meus ouvidos. É ela, sem dúvida. A esposa
do Sr. Reforma Educacional. Bem feito, ser rebaixada para este
lugar. Procuro Freddie o tempo todo na mesa comprida das
meninas. Lá está ela, e sorrio porque é a única coisa que uma mãe
pode fazer. Como na última vez, Freddie tem um instante de
animação, mas a luz logo desaparece de seu rosto quando ela se
vira para a frente, de cabeça baixa, os olhos voltados para o prato.
Não quero vê-la assim. Não posso.
Quero vê-la na cadeira alta que peguei no sótão. Quero vê-la
sorrindo toda suja de papinha de pêssego, estendendo a mãozinha
para uma colher do Pedro Coelho que comprei antes de ela nascer.
Quero vê-la feliz e inocente, um bebê que ainda não foi esmagado
com o peso do nosso mundo.
– Tem a ver com dinheiro – comenta Lissa, me arrancando da
lembrança. – Só pode ser. – Ela pega uma caneta no bolso do peito,
clica duas vezes e pronuncia algumas palavras junto dela. –
Contabilidade. E cores de documentos.
– O quê? – pergunto.
– Deixa pra lá. – Lissa guarda a caneta e remexe o ovo
reidratado no prato, como Freddie costuma fazer, até que pedaços
de carne e legumes assumam formas e símbolos.
Quando Anne era menor, ensinou o alfabeto a Freddie durante o
jantar. Cenouras fatiadas à julienne viravam As e Ls; fios de
macarrão se enrolavam em Cs, Qs e Ss. Malcolm, claro, odiava ver
as meninas brincando com comida.
– Cada um aprende de um jeito – argumentei enquanto Freddie
treinava.
– Ela pode aprender com lápis e papel. – Malcolm pegou o prato
e o substituiu por um caderno. Freddie pediu licença para sair da
mesa.
São esses detalhes que fazem eu me perguntar o que vi nele e
por que permiti que ele me roubasse de Joe, que teria deixado
Freddie treinar suas letras em um móvel raro se isso fizesse bem a
ela.
– Pode me emprestar sua caneta? – peço a Lissa.
Ela faz uma coisa engraçada. Em vez de me entregar a caneta
que está segurando, Lissa pega outra na bolsa.
Ruby Jo observa enquanto escrevo duas frases simples em um
guardanapo.
– O que você está fazendo?
– Escrevendo um bilhete para Freddie.
Mal termino de falar e a mão de Lissa aperta meu pulso,
borrando a tinta do bilhete. Seu aperto é forte e dói onde a pulseira
do relógio afunda na carne. Ela alivia a pressão quando me retraio
com a dor, mas não solta.
– Não faça isso.
– Por quê?
Lissa olha para a esquerda e para a direita, aparentemente
satisfeita porque a Sra. Underwood está ocupada vigiando seu
rebanho e sussurra:
– Porque acho que nossa diretora tem um lado sádico.
– Eu posso lidar com isso – afirmo.
Lissa balança a cabeça.
– Não, você não entende. Ela pode não punir você, mas
acontece que isso também tem a ver com outra pessoa. Olhe.
Acompanho seu olhar até uma fila de meninas levando as
bandejas do balcão de serviço para uma mesa perto de onde
estamos sentadas. Ruby Jo faz o mesmo.
– Está vendo? O pulso direito de Freddie? – indaga Lissa
enquanto as meninas se afastam de nós.
Estou vendo. Mas não o pulso delicado da minha filha. Vejo o
hematoma roxo e feio em volta dele.
Meu estômago dá uma cambalhota.
Por um longo momento, minha visão fica vermelha. O vermelho
furioso, incandescente, de uma raiva que nunca experimentei e que
não sei como enfrentar. Um talho de raiva; um ferimento aberto de
fúria absoluta. Freddie é minha filha. Minha filha. Minha. Não
consigo processar a ideia de alguém colocando as mãos em seu
corpinho perfeito.
– Ela é tão rosinha! – disse Anne no quarto do hospital, instantes
depois de uma enfermeira trazer a bebê Freddie de volta para mim.
Elas fazem isso: levam nosso bebê para longe e, não sei,
limpam, medem ou injetam soro de gênio. Fiquei com saudade dela
naqueles poucos minutos e, quando a enfermeira a encostou na
minha pele, me senti completa outra vez.
Anne passou um dedo pelo braço da irmã.
– Tão rosinha, pequenininha e perfeita. É doido pensar nisso.
– Ela vai ganhar cicatrizes, como todo mundo. Meia hora na
primeira bicicleta e adeus à cor rosinha e perfeita – falei, ainda
drogada. – A gente não tem como proteger os filhos o tempo todo.
Não para sempre.
Anne tinha entrado da noite para o dia no papel de irmã mais
velha.
– Eu posso protegê-la, mamãe.
Eu sorri. Não seria ótimo? Nem eu sou capaz disso.
Antes que eu perceba, estou correndo para fora do refeitório,
subindo um lance de escada e andando 50 metros por um corredor
até o banheiro mais próximo. O padrão de ladrilhos brancos gira ao
meu redor e eu caio de joelhos. Não vejo mais a pele cor-de-rosa e
perfeita do meu bebê, só as marcas violentas da mão de outra
pessoa no pulso da minha filha.
Minha filha. Minha.
QUARENTA E SETE

E
nquanto dou aulas de leitura e aritmética para minha turma
da manhã, só consigo pensar no que vou dizer a Malcolm
quando ligar para ele hoje à tarde. E vou ligar, nem que isso
signifique puxar o saco de Alex Cartmill para ter acesso a um
telefone.
Vi o braço da minha filha. Vi os hematomas. Malcolm pode
merecer o título de Pai Mais Merda do Ano, mas ainda é pai de
Freddie. Ele deve ter algo a dizer com relação ao tratamento
violento.
É uma distração temporária ouvir essas crianças se revezando
para dissecar o conto que acabamos de ler, uma lembrança do que
amo no magistério. Ou do que eu amaria, se passasse mais tempo
ensinando do que me preparando para as provas mensais. Hoje de
manhã meu grupo é de uma dúzia de alunos do sétimo ano, apenas
alguns anos mais velhos do que Freddie, e eles são questionadores.
– É como se o cachorro fosse mais inteligente do que o cara –
explica um garoto. – Quero dizer, pelo menos ele foi embora de lá
para procurar algo melhor. E quem é idiota a ponto de andar sob 40
graus abaixo de zero? Meu Deus.
A conversa sobre o homem e o cachorro de Jack London me
lembra a traça na sala comunitária ontem à noite. Os seres
humanos fazem escolhas; os animais agem por instinto. Eu me
pergunto qual espécie sobreviverá.
Para além disso tudo, imagino o que essas crianças estão
fazendo aqui. São inteligentes demais, têm ideias demais, para não
terem a oportunidade de vencer na vida. Uma imagem da garota da
Starbucks me vem à mente.
– Professora? – chama o menino. – O que a senhora acha?
Acho que você não deveria estar aqui.
– Bom, acho complicado, mas até que você pode ter razão.
Na verdade, o que quero dizer é: Quem é idiota a ponto de
abandonar uma filha para encontrar outra? Meu Deus.
Ninguém bate à porta da sala, não há nenhum aviso, só o
guincho de dobradiças e a voz da Sra. Underwood dispensando
meus alunos e pedindo que eu a acompanhe.
Imediatamente.
Pego o casaco.
Sigo a mulher, tentando manter a maior distância possível
enquanto ela caminha pelo terreno, afastando-se do prédio de
ensino e indo para o de administração. Está murmurando que
ninguém cumpre o trabalho e que, se não é uma coisa, é outra.
Quando chegamos à sala dela, dois homens estão esperando no
corredor. Underwood assente para eles, com um minúsculo franzir
de testa.
– Falarei com os senhores em um minuto, doutores – avisa ela.
Então ela abre a porta e, volumosa, desaba na cadeira atrás da
mesa. Manda que eu me sente, e eu obedeço.
– Vamos ter um problema? – pergunta ela, suspirando. – Eu já
falei que não posso abrir exceções.
Provavelmente. Certamente. Definitivamente. Não respondo
nada disso. Depois do alerta de Lissa para permanecer nas graças
de Underwood – ou pelo menos não ficar entre os desafetos –,
apenas sorrio e balanço a cabeça.
Diretores de escola – e Martha Underwood é apenas isso, quer
ela prefira Chefona, Abelha-Rainha ou Aquela que Deve Ser
Obedecida – se encaixam muitíssimo bem na categoria dos durões,
que não livram a barra de ninguém. Já testemunhei isso. Nenhuma
criança quer ser levada à pavorosa sala do diretor, e a maioria dos
pais suspira diante dos chamados para “conversar sobre seu filho”.
Independentemente da idade do interlocutor, em geral o diretor de
escola não pode ser considerado um amigo.
Mas de uma coisa eu sei: você não assume o cargo de diretor
porque odeia crianças. Pelo menos não é o comum.
Enquanto Underwood discorre sobre regras e cumprimento de
regras em seu cantinho do mundo, eu observo sua sala. É um lugar
frio, todo de madeira envernizada e arquivos de aço, duas cadeiras
de encosto duro virados para a mesa que a separa dos visitantes.
Eu me estico na cadeira e dou uma olhada discreta na área atrás da
mesa, para ver se há uma plataforma ou outro modo de deixá-la
mais alta. As duas obras de arte nas paredes não são os
disseminados cartazes de motivação que vemos nos escritórios das
escolas: Aguente firme! ou Quem acredita sempre alcança!, e sim
pinturas a óleo escuras de uma caça a raposas. Em uma delas a
raposa infeliz já foi encurralada, com cães latindo em volta como
espectadores em uma luta de gladiadores.
Reconfortante.
O único toque pessoal na sala é uma pequena foto emoldurada
de Martha Underwood mais jovem, sentada sobre uma toalha de
praia com um garoto de cerca de 10 anos. Está quase
irreconhecível: mais magra, bronzeada, com um sorriso no rosto.
Nem um pouco parecida com a matrona de expressão azeda
sentada à minha frente.
– É a senhora? – pergunto, indicando a foto.
– Sim. – Underwood cruza as mãos sobre a mesa.
– Seu filho?
Ela assente, apertando as mãos até que os nós dos dedos
fiquem brancos.
– Onde ele está agora?
– Em outro lugar.
Uma parte da raiva que senti por ela se transforma em empatia;
a outra continua intacta. Não a pressiono com perguntas, mas
invento uma história na cabeça, que pode ser verdadeira ou não.
Mãe solteira não apta, criança levada, rebaixamento e amargura.
Faz muito sentido acreditar nisso.
Não sei se ela sente minha inquietude, mas responde:
– É um trabalho, Dra. Fairchild. Sou paga para fazer o que
mandam. Exatamente como seu marido é pago para fazer o
trabalho dele. Existem regras e eu as sigo.
Regras. Ordens. Qual é a diferença?, penso.
Ela descruza as mãos e se obriga a voltar ao padrão
administradora. Fria, profissional.
– Enfim, eu recebi um telefonema do seu marido hoje cedo. Ele
pegou o voo da manhã do Aeroporto Reagan. – Ela verifica o
relógio. – Deve chegar em uma hora, portanto talvez a senhora
queira se preparar.
Eu esperava que Malcolm viesse me obrigar a voltar para casa.
Só não esperava que fosse hoje. Agora. Dentro de uma hora. O que
é, mais ou menos, meu futuro imediato.
– Obrigada – digo, e me levanto.
Antes que eu saia da sala, ela diz:
– Todos fazemos o que precisamos, Dra. Fairchild. O melhor
conselho que eu tenho para lhe dar é que tente entrar no jogo.
Quero responder que, caso entrar no jogo signifique voltar a
Maryland para viver com Malcolm, prefiro não fazer isso, mas
apenas assinto antes de fechar a porta e voltar correndo à
residência dos professores, serpenteando entre construções de
tijolos e me desviando das raízes que transformaram os caminhos
em pistas de obstáculos. Os únicos seres humanos à vista são
figuras pequenas e distantes nos milharais. Trabalhadores de
fazenda, suponho.
Preciso conversar sobre isso antes de Malcolm chegar, para
saber como agir.
Ruby Jo e Lissa não estão no apartamento. O bilhete preso à
geladeira informa: Fomos dar uma volta antes que eles nos
tranquem de novo, com uma carinha sorridente no lugar da
assinatura.
Em um mundo normal, eu telefonaria para minha mãe. Uma
vizinha. A Dra. Chen, professora de química na minha antiga escola
prata. Qualquer pessoa com um ouvido e uma boca. Teria um
telefone, um notebook e wi-fi na Starbucks mais próxima. Usaria o
Twitter, o Instagram e o FaceTime até que alguém, em algum lugar,
respondesse. Caramba, eu pegaria o mensageiro de bicicleta mais
próximo e o obrigaria a ouvir minha história.
O problema da minha localização atual é que vi exatamente um
telefone desde que cheguei, e ele está aninhado entre um
apontador de lápis e um grampeador na mesa de Martha
Underwood.
Além disso, não estou com a melhor das aparências.
O conjunto de saia e blusa cinza tem mais rugas do que um
shar-pei, e na gola há uma mancha amarelada desconhecida. Do
meu café da manhã, provavelmente. Depois de colocar meu vestido
azul e jogar o resto das roupas na mala, prendo o cabelo em um
rabo de cavalo, jogo uma água gelada no rosto e saio do
apartamento com minha bagagem, pegando o caminho externo em
volta do prédio da administração para dar ao meu coração a chance
de baixar a um ritmo que pareça normal.
Assim que vejo o táxi parado com motor ligado perto da entrada,
colo um sorriso no rosto, me empertigo e ensaio a cena do Ora, ora,
Elena, o que é que eu vou fazer com você?. Já decidi fazer o melhor
possível, entrar no jogo, como aconselhou a Sra. Underwood, até
conseguir convencer meu marido a levar Freddie para casa.
Malcolm ainda está no banco de trás do carro, sem dar sinal de
que vai sair ou abrir a porta para mim, por isso caminho entre o
mato alto e as poças até o veículo, estendendo a mão livre para
pegar na maçaneta. A porta se abre alguns centímetros, então
Malcolm a fecha de novo.
Meu sorriso treme, diminui e se reverte em uma expressão
confusa enquanto ele balança a cabeça. Direita, esquerda, direita,
meio.
Então ele retira da pasta um envelope tamanho ofício e me
entrega pela janela.
– Você não vai sair? – pergunto, mesmo já sabendo a resposta.
– Meu voo parte de Kansas City em três horas. – Meu voo. Não
nosso voo. – Vim lhe dar isso – avisa ele, indicando o envelope.
– Uma viagem longa só para entregar uma carta – comento.
Começa a chover. Gotas grandes caem na etiqueta, manchando
meu nome, me borrando. Enfio o envelope dentro do casaco antes
que a inscrição desapareça completamente.
– É mais rápido assim, Elena.
– Como está Anne?
– Preciso ir.
– Como está minha filha? – repito.
Presunçoso é a melhor palavra em que consigo pensar para
descrevê-lo agora. Presunçoso, com ar superior, severo e mais um
monte de coisas insuportáveis. Desta vez, quando Malcolm balança
a cabeça, não há sorriso nem impaciência fingida de pai. Nada.
– Elena, você não é apta para ser mãe de Anne. Não é apta para
ser mãe de ninguém.
O táxi parte, jogando cascalho e torrões de lama em meus
sapatos. Não o vejo fazer a curva na direção do portão e não sei se
foi a chuva que me cegou ou se não consigo enxergar através das
lágrimas.
QUARENTA E OITO

ANTES

Q
uando estava grávida de Anne, eu bamboleava pelos
corredores do supermercado enchendo o carrinho com todo
tipo de comida proibida. Nem me incomodava em olhar a
quantidade de calorias; aos sete meses, a única coisa que
importava era a bebê faminta na barriga, o que ela desejava.
A loja não ficava tão cheia nas manhãs de sábado, se eu fosse
suficientemente cedo, e naquele dia estavam ali as pessoas de
sempre: mães trabalhadoras, solteiros trabalhadores, atletas
matinais que tinham ido comprar barras de proteína antes de
correrem para casa. Eu estava no corredor das azeitonas, porque
Anne tinha decidido que estava no clima de azeitonas.
– Mamãe – disse uma vozinha atrás de mim.
– Agora não, querida. Mamãe está ao telefone – respondeu uma
voz mais autoritária, também atrás de mim.
– Mamãe...
– Mandei ficar quieta, Cheryl.
– MAMÃE, MAMÃE, MAMÃE, MAMÃE, MAMÃE!
Acho que ouvi o tapa antes de ver. Quando me virei, a criancinha
gorducha presa no carrinho de compras, as perninhas chutando o
ar, olhava para as costas da mão dela. Vi que a menininha usava
calça justa suja e uma blusa mais suja ainda, além de botas
manchadas de papinha seca. Ervilhas de um lado, cenouras ou
abóbora do outro, as manchas ligadas por uma nódoa enorme de
algo que podia ser mingau de aveia. Não quis pensar no que mais
poderia ser.
– Talvez você devesse vesti-la com roupas limpas, em vez de lhe
dar um tapa – intervim. – Que tipo de mãe você é?
Foi uma coisa ousada, até mesmo para mim, e culpei meu
cérebro de fim de gravidez pela explosão. Ou tentei me convencer
disso. A mulher parecia mais uma garota do que uma mulher, uma
mãe-menina, e não usava aliança na mão esquerda. Virou-se para
mim no meio das azeitonas, dos picles e dos condimentos.
– E quem você pensa que é? A polícia das crianças?
Não consegui pensar em nenhuma resposta, por isso falei a
primeira coisa que me veio à cabeça:
– Espero que você seja obrigada a conseguir uma licença antes
de ter outro filho. – E me afastei da mãe-menina e de seu neném
chorando, esquecendo de pegar as azeitonas.
QUARENTA E NOVE

S
e há uma lista de estados chuvosos, o Kansas não está nele.
Talvez ele tenha poupado toda a chuva para hoje, quando eu
menos precisava. Talvez o céu tenha sentido minha
perturbação e esteja chorando comigo, compartilhando minha dor.
Os Irmãos Metralha me acompanham com o olhar enquanto
passo pela porta principal do prédio dos professores e atravesso o
pequeno saguão até a porta dupla. Eles percebem a violação do
código dos uniformes, começam a reclamar e perdem o interesse
quando veem a mala. É uma caminhada curta, uma caminhada que
só deveria levar alguns instantes, mas o tempo adora fazer
brincadeiras, transformando percursos curtos em longos. Todas já
passamos por isso: a noiva nervosa atravessando a igreja em
direção ao altar, com centenas de rostos voltados para ela; a
universitária pegando um caminho de volta ao dormitório, com os
saltos altos e a vergonha da noite anterior fazendo seus pés e seu
coração doerem; uma menininha cambaleando para a escola em um
dia de neve, com a mochila pesada nos ombros, sabendo que vai
escorregar e cair e que os alunos mais velhos vão rir dela. São as
caminhadas empolgadas, constrangidas e amedrontadas de nossa
vida, e nós as percorremos sozinhas.
Não sei se fico aliviada quando encontro o apartamento vazio,
tiro os grampos de metal do envelope de Malcolm e jogo seu
conteúdo na mesa da cozinha. Talvez seja melhor fazer
determinadas tarefas, as mais terríveis, a sós, sem testemunhas.
Três envelopes menores me encaram. Abro o mais grosso
primeiro, porque o nome de uma firma de advocacia impresso no
canto superior esquerdo parece prosaico, clínico. E também por já
saber o que há dentro. Não é preciso ser ph.D. para saber que seu
marido mandou os documentos do divórcio.
Não me incomodo em ler as páginas de queixas, depoimentos
juramentados e avisos jurídicos. Minha assinatura só é necessária
em alguns deles, e minhas ações futuras estão limitadas ao
comparecimento ao tribunal daqui a três semanas, uma ação que
posso evitar porque Malcolm generosamente permitiu que a
audiência acontecesse à revelia. À minha revelia.
Que gentileza a dele!
Os outros dois envelopes, muito mais finos, me incomodam. Um
diz Para minha mãe, com a letra de Anne. O outro Elena, na
caligrafia pontuda de Malcolm. Abro primeiro o de Malcolm.
Ali estão dois formulários impressos, quase idênticos.
Retângulos de tamanhos variados contêm meu nome, número do
seguro social, informações de contato e dados médicos. Exames de
gravidez, ultrassonografias, idade materna – infelizmente
considerada “avançada” –, tudo relativo à minha situação no dia em
que fui fazer o exame Q pré-natal, que também é o dia em que saí
da sala de espera deixando duas mulheres que pensavam em seus
bebês em termos de níveis de quociente de inteligência.
Mas há algo de errado com a segunda cópia.
A primeira página, a que eu criei para ter algo a mostrar para
Malcolm, tem um 9,3 em negrito no campo dos resultados e um
gráfico de percentual logo abaixo do número. Claro que tem, porque
foi o que eu fiz. Na segunda página, abaixo de todos os meus dados
de identificação, estão três palavras ainda mais destacadas, no
lugar do número:

TESTE NÃO REALIZADO

Não havia nenhum gráfico, apenas um recado de Malcolm,


perguntando: Você achou que eu não ia descobrir? Achou que eu
era idiota? O “idiota” tem um duplo sublinhado.
Estou bem. A cozinha e tudo dentro dela são um borrão, mas
estou bem. Sei disso porque minha boca forma cada palavra
repetidamente.
Estoubemestoubemestoubem.
Eu não devia ter mentido para Malcolm, mas ele não me deu
alternativa. Se o número Q pré-natal de Freddie fosse um
milionésimo de ponto abaixo de 9, sei o que Malcolm decidiria. Sei o
que ele me obrigaria a decidir.
No jogo perverso em que me encontro, o terceiro envelope me
encara da pequena mesa de fórmica. A caligrafia de Anne, uma letra
perfeita, treinada, está centralizada na frente. Abro o envelope com
a unha, tiro o papel creme e leio. Não há muito que ler, mas ainda
assim machuca.
A carta de Anne não tem saudação nem encerramento e finaliza
com uma frase que jamais vou conseguir esquecer.

Acho que você fez sua escolha. Nunca mais quero ver você.

O “nunca” tem duplo sublinhado.


CINQUENTA

M
inutos se passaram, talvez horas. Observei a chuva
escorrer pela janela, parar e recomeçar. Ouvi o barulho
repetitivo de uma máquina distante, talvez um gerador, e
pancadas surdas, fortes, no ouvido interno. Acho que fiquei imóvel
na cadeira, porque meus pés começaram a formigar.
É um prazer me concentrar nos meus pés agora. A dor bloqueia
todo o resto: a papelada na mesa, o bilhete de Anne.
Através da porta aberta do apartamento, os dois Metralha junto à
mesa concluem que merecem uma folga hoje. Um deles – não sei
qual – diz que vai de carro pegar a comida. O outro reage:
– Não vai nada. Da última vez você comeu metade da minha
batata frita. Vamos os dois. A gente não precisa se preocupar com
ninguém aqui, a não ser as novatas do fim do corredor. O doutor vai
vigiá-las. Se elas aprontarem alguma gracinha, ele chama.
Há um sussurro e uma gargalhada, uma piada particular
compartilhada por dois homens que não têm nada melhor a fazer do
que trocar idiotices. Um zumbido mecânico soa quando fecham o
portão metálico que separa o domínio deles do resto, então passos
pesados, depois nada. Silêncio.
Silêncio, a não ser pelo grito que ecoa dentro de mim.
O doutor vai vigiá-las.
Claro. Freddie precisa se consultar com um médico.
Em silêncio, fecho a porta do apartamento e vou para o
banheiro. Penteio o ninho de rato na minha cabeça, visto jeans e
uma blusa, deixando os botões de cima abertos apenas o suficiente
para parecer casual sem sugerir um convite. É então que percebo
que estou fazendo barulho – os ruídos que saem de mim são todos
os que um ser humano é capaz de fazer. Choro. Soluço. Algum
ruído gutural e animalesco que não parece pertencer a mim. Sibilo,
assobio, chiado. Nenhuma palavra, apenas uma forma de
comunicação primitiva, um modo antigo de ordenar os pensamentos
em sons.
Esse método antigo funciona. Me acalma.
Escrevo um bilhete para Lissa e Ruby Jo, avisando que volto
antes do almoço, e sigo pelo corredor na direção que Alex tomou na
noite passada.
Ele está no sofá escrevendo, quando bato à porta entreaberta.
Sua mão fica imóvel, segurando a caneta-tinteiro Montblanc de
garoto rico no ar, e ele ergue os olhos, me lançando aquele sorriso
charmoso familiar, mesmo quando Malcolm estava por perto.
– Posso falar com você? – pergunto.
– Entre.
O apartamento tem pelo menos o dobro do tamanho daquele
que divido com Ruby Jo e Lissa, e não há cinza em lugar nenhum.
São aposentos para funcionários que podem circular à vontade – o
único adereço nas janelas de Alex são cortinas.
– Algum problema, Elena?
Por onde começo?
Poderia dizer que estou em uma de quase cinquenta instituições
federais, que tenho barras de ferro nas janelas em vez de cortinas
de brocado, que não troquei mais do que cinco palavras com minha
filha desde a manhã de segunda-feira, que Malcolm pediu o divórcio
e Anne não quer mais me ver. Mas acho que Alex Cartmill já sabe
de quase tudo isso.
– Você comentou que presta serviços médicos aqui. Fiquei
pensando se você poderia dar uma olhada em Freddie. – Lembro
um antigo curso de patologia sanguínea que fiz na graduação e
invento uma história. – Parece que ela está desenvolvendo
hematomas súbitos, e estou preocupada porque pode ser algum
problema no sangue.
Alex pousa a caneta-tinteiro e indica uma das cadeiras para eu
me sentar, virada para ele.
– Posso lhe servir alguma bebida? Tenho água, chá e uísque.
Você escolhe.
– Água. Água seria ótimo.
Uísque seria melhor ainda.
Ele está usando calça de seda e uma camisa de algodão branca,
e se move do sofá onde estava sentado até a quitinete como as
pessoas fazem quando estão acostumadas a ser observadas.
– Sei sobre você e Malcolm. Sinto muito – diz ele, servindo dois
copos d’água. – Limão? Tenho lima também se preferir.
Também sei de certas coisas. Sei que, quando olho para a
mesinha de centro e leio o papel timbrado de cabeça para baixo em
sua prancheta, está escrito Instituto Genics. Logo abaixo, Alexander
Cartmill, M.D.
– Ah, lima. Se não for dar trabalho.
– Trabalho nenhum. Só vou demorar um segundo.
– Tudo bem.
Mas não está nada bem. O calor sobe pelo meu corpo em ondas
pesadas, do tipo que pode me afundar, me sacolejar como uma
boneca de pano, me deixando desorientada e ofegante, antes de
perceber que não há ar para respirar. Tento conversar amenidades –
sobre tênis, imagina só – enquanto me esforço para ler o documento
na prancheta de Alex. Só dá tempo de decifrar algumas palavras
antes de ele me entregar um copo d’água, sentar-se e pousar os
pés casualmente na mesinha de centro, escondendo os papéis.
Nos dez minutos seguintes bebo a água e finjo ouvir enquanto
ele enumera sintomas de doenças do sangue. A sala começa a
encolher, todas as paredes ao mesmo tempo. De repente o perfume
dele é esmagador, nauseante. Ele chegou mais perto e está
inclinado na minha direção, o rosto perto do meu. Sua mão
esquerda aperta meu joelho com tanta força que sinto cada um de
seus dedos, pontos de pressão independentes se cravando na
minha pele. Há uma aliança que nunca tinha notado em sua mão, e
estou pensando que “bajulador” talvez não seja a palavra certa para
ele.
– Bom. Deveríamos conversar mais sobre Freddie – comenta
ele. – Que tal você voltar hoje à tarde? Digamos, às quatro.
Podemos discutir tudo tomando uma bebida.
Sinto que estou sorrindo, assentindo e aceitando tudo,
concordando em me prostituir com esse cientista maluco pelo bem
da minha filha.
– Fantástico. Está combinado – diz ele. – Agora tenho um
trabalho a fazer. Preciso entregá-lo em algumas horas. – Ele faz
uma pausa e evita meu olhar. – Vamos aplicar vacina contra a gripe
antes que a estação mude. – Alex solta meu joelho e pega minha
mão, me puxando para ficar de pé. – Sei que as coisas não andam
bem entre você e Malcolm, Elena. Talvez possamos dar um jeito de
consertar isso também.
De repente a sala se enche de música, uma sequência familiar
de trompetes e outros metais que reconheço da trilha sonora de
Apocalypse Now. É o celular de Alex.
Claro. O toque do celular dele tinha que ser algo de Wagner.
– Preciso atender – avisa ele, e vejo rapidamente a foto na tela
antes que ele me leve até a porta.
Olho uma última vez para a mesa de centro. Os papéis sumiram.
CINQUENTA E UM

Q
uando saio do apartamento de Alex, é quase meio-dia.
Estou com a adrenalina em alta e o moral em baixa
enquanto sigo rapidamente pelo corredor bege até meu
apartamento, com as três frases do discurso feito ontem por
Madeleine Sinclair ecoando na cabeça.
País melhor.
Famílias melhores.
Seres humanos melhores.
Penso no Instituto Genics, que na verdade é o Instituto Eugenia,
e começo a correr, esperando que Lissa ou Ruby Jo estejam em
casa. Tenho muito que contar.
Deveria estar chocada, mas não estou. Pasma talvez, e todas as
outras palavras em que consigo pensar nesse sentido, mas não
chocada. Sempre fizemos isso, nós, seres humanos, em nossas
pequenas sociedades. Categorizamos, comparamos e inventamos
formas de nos segregar em times, como na aula de educação física
da escola. Escolho você, dizemos. Mas não ele.
Alguém sempre fica por último; alguém sempre está no fundo do
barril, o último a ser escolhido.
Seria de pensar que superaríamos esse absurdo.
Ruby Jo escuta enquanto conto uma versão resumida da visita
de Malcolm, da conversa dos guardas e dos papéis no apartamento
de Alex. Lissa, enrolada no sofá e alerta, faz anotações em um
bloco, parando para murmurar alguma coisa sobre um estado
segregador no século XXI, só que a linha divisória não é a cor da
pele, e sim as notas Q.
– Progressistas de merda – xinga Lissa.
Não sei a quem ela está se referindo.
– É um negócio progressista. Quero dizer, Progressista com P
maiúsculo. Eles eram grandes no início do século XX, com seus
programas do tipo “Livrem-se dos Idiotas”.
Ruby Jo se remexe em sua poltrona.
– Odeio essa palavra.
– Progressista? Ou idiota? – pergunta Lissa.
Ninguém ri.
– Hoje havia dois doutores esperando perto da sala de
Underwood – comento.
Lissa levanta a cabeça bruscamente.
– Médicos ou pessoas com doutorado?
– Não sei.
Os homens do lado de fora da sala de Underwood não usavam
jalecos brancos nem estetoscópios, mas não faziam o tipo de paletó
de tweed dos acadêmicos de carreira.
– Talvez fossem médicos.
Claro que eles teriam mais médicos aqui. Com mais de cem
crianças apinhadas em dormitórios, as gripes e os resfriados se
espalhariam... bom... como um vírus. E o ar frio de hoje é uma
lembrança dura de que vamos começar outra temporada de gripe,
como Alex falou. Toda a escola vai precisar de vacinas,
especialmente as crianças menores.
– Você está bem, Elena? – indaga Ruby Jo.
Não. Sim. Não faço ideia.
– Sim, sim. Estou.
Clic. Clic. Clic.
– Lissa, que negócio é esse com sua caneta? – pergunto
finalmente.
Ela sorri, e o sorriso a rejuvenesce 25 anos.
– É uma máquina fotográfica, querida. Eu era professora até me
aposentar. História. Agora trabalho como repórter. Freelance, mas
me mantém ocupada. A única questão é como vou obter
informações com credibilidade suficiente para expor esses escrotos.
Bom, na verdade são duas questões. Não sei como vou mandar
essas informações para fora daqui sem um telefone. É complicado.
O que mais você viu no apartamento dele? – Seu tom é incisivo, e
ela o suaviza: – Desculpe, eu acabo soando grosseira quando estou
no modo repórter.
Dou de ombros e penso no que vi e no que senti.
– Café. Bom uísque. Um cachimbo em uma prateleira, enfiado
atrás de outra coisa.
– Só isso?
– Ah... quando eu estava saindo, o celular dele tocou. A tela
mostrou uma foto dele com uma mulher e dois meninos. A mulher
me pareceu familiar. Não sei... talvez a postura ou algo assim. –
Faço um esforço para lembrar detalhes da imagem, mas não
consigo; aconteceu depressa demais. – Ela estava usando chapéu.
Foi só isso que vi antes de sair de lá. Ele é casado, mas deu em
cima de mim descaradamente.
As sobrancelhas de Lissa sobem, descem e sobem outra vez, e
permanecem no alto da testa.
– Eu sabia que ele não era boa coisa – diz Ruby Jo.
O que importa, segundo Lissa, não é o fato de gostarmos ou não
de Alex. É o fato de que ele parece gostar de mim.
Dois pares de olhos se voltam para mim, me lembrando um
antigo jogo de pique. Nos olhares de Ruby Jo e Lissa vejo três
palavras:
Está com você.
CINQUENTA E DOIS

S
aímos para almoçar, passando pelas filas de crianças
entrando no refeitório. Fico suficientemente perto delas para
roçar a mão em Freddie e sussurrar:
– Vai ficar tudo bem, querida. Confie em mim.
Freddie arregala os olhos amedrontados, e me pergunto se ela
detecta a incerteza na minha voz.
A penúltima garota da fila se vira rapidamente, me encarando
com olhos acusadores. Reconheço-a. É Sabrina Fox, cuja mãe
praticamente tentou arrastá-la para dentro do carro, insistindo que
fossem para casa, ao mesmo tempo que a garota insistia no oposto.
Ela cutuca a menina ao lado. As duas estão próximas o suficiente
para que eu ouça as palavras de Judy Green, que falou tão baixinho
que mais pareceu que estava suspirando:
– A culpa é dela. Ela é um monstro. Era para eu ter me dado
bem naquela prova da semana passada.
Judy e Sabrina continuam a sussurrar. Capto cada sílaba
venenosa que elas dizem.
Há apenas uma semana vi Sarah, a mãe de Judy, arrancar flores
amarelas dos canteiros do jardim. Não quero relembrar, mas não
querer não é o bastante para me impedir de ouvir Sarah gritando
enquanto um ônibus amarelo se afastava com sua filha.
Todos os boletins que recebemos diziam que o Q dela era quase
perfeito.
Como ela perdeu os pontos Q? Me diga, El.
Você sabia de alguma coisa? Você escondeu alguma coisa de
mim?
Acho que agora você vai ter mais tempo para seus dois por
cento do topo, El. Boa sorte com eles.
Alguns dias depois, Jolene Fox soprava fumaça na minha cara e
chamava Malcolm de escroto, se perguntando por que sua menina
tinha caído de uma escola prata para uma federal em um piscar de
olhos.
Agora estou de volta ao refeitório ouvindo as meninas,
desejando ser capaz de impedir minha audição. Se eu sabia de
alguma coisa? Não, não sabia.
Quando passo perto de Judy, ela me encara com intensidade.
– Você deveria ter estudado história, sua escrota. Não sabe que
ela se repete?
– O que você disse?
– Você escutou.
Sabrina murmura alguma coisa sobre Judy não estar bem.
– Ela não quis dizer nada, de verdade.
Judy não parece concordar, mas deixa Sabrina pegá-la pelo
braço com gentileza e levá-la até uma das mesas compridas, e
agora não consigo mais escutá-las.
A mesma mulher que praticamente me xingou na sala
comunitária ontem à noite está aqui. Ela grita para Judy:
– É isso aí, querida!
Quando se vira para mim, abre um sorriso inocente.
– Nem pense em denunciar isso. Todos vamos jurar que não
ouvimos nada. Bom apetite.
Durante o almoço, preocupada com Freddie e imaginando se
absolutamente todo mundo me considera uma escrota, Ruby Jo fala
sobre a Campanha Família Mais Apta.
– Eles não gostam muito da gente, do pessoal das montanhas. –
Ela dá de ombros. – É engraçado porque, antes de eu nascer, a
FMA, como a gente chamava, era bastante presente na nossa
região. Quero dizer, na época eles não faziam exames Q. Era mais
garantir que as cidades não fossem dominadas por italianos. Ou por
gays. Ou por qualquer um que não fosse um caipira puro-sangue,
homofóbico. – Ela mexe a comida no prato enquanto fala. – Ainda é
assim, eu acho. Alguns deles estão cagando e andando se a gente
é inteligente ou não.
– Deles quem? – pergunto.
– Do pessoal da FMA. Você sabe.
– Não, não sei.
Desde o começo, a merda da Família Mais Apta teve a ver com
inteligência. Inteligência mensurável em forma de notas Q. Mas,
quando penso na turma desta manhã, eu me pergunto se é só isso.
Ruby Jo me encara e decide que eu preciso de mais
informações.
– Olha, eu acho que vários deles são assim, todos querendo ser
mais inteligentes do que os outros, garantir que vão ter namorados
Einstein, esposas Einstein e bebezinhos Einstein. Essa é boa.
Bebês Einstein. – Ela ri. – Mas não é só isso, Elena. Você acha que
eu saí daquele lugar de merda porque queria viver na cidade
grande? De jeito nenhum. Odeio a cidade. Por mim, eu ficaria na
minha cidadezinha de merda, andando de bicicleta, colhendo
maçãs, coisas do tipo.
– E mesmo assim foi embora? – pergunto.
– Bom, pessoas como eu não se encaixa muito bem no lugar de
onde eu venho. Quero dizer, não se encaixam muito bem.
Não é a primeira vez que Ruby se corrige. Quero pedir que ela
não se preocupe tanto com isso, mas não falo nada. Neste
momento, estou tentando imaginar por que alguém inteligente como
Ruby Jo Pruitt não se encaixaria.
Ela se inclina mais para perto, como uma estudante pronta para
confessar uma paixonite secreta pelo capitão do time de futebol.
– A questão é que não gosto muito de garotos.
– E daí? Você gosta de garotas. Não há nada de novo nisso.
Ruby Jo dá um sorriso torto e balança a cabeça.
– Talvez não em Washington, mas você não conhece muito bem
a roça. – Ela balança os cachos ruivos na direção de Judy Green e
Sabrina Fox. – Está vendo aquelas duas lá? As altas, que estão
sempre juntas e sussurrando?
– Claro. Eu as conheço. A de cabelo mais escuro morava na
minha rua.
Morava na minha rua. Agora Judy Green mora no dormitório
feminino da Escola Federal no 46.
– Está vendo como elas se olham? Como as mãos se tocam
quando acham que ninguém está vendo? – Ruby Jo não espera
resposta. – As duas estão apaixonadas, Elena. Completamente.
De novo, ouço a voz de Sarah Green gritando comigo na rua.
Como ela perdeu os pontos Q? Me diga, El.
A única resposta que tenho é a seguinte: Judy Green não tirou
nota baixa em nada. De jeito nenhum, porra. E, sendo assim, talvez
Freddie também não tenha se dado mal na prova.
Quando o almoço termina, passo perto de Freddie outra vez.
Agora há menos medo e mais ansiedade em seus olhos.
– Quero ir para casa, mamãe. Pode me levar para casa?
Morro um pouco por dentro.
CINQUENTA E TRÊS

ANTES

E
u estava sentindo o tipo de dor que sabia, por experiência,
que logo iria esquecer, mas naquele momento a dor me
dominava, um leviatã de agonia que espremia e envolvia
cada parte do meu corpo. Malcolm, com roupas e luvas hospitalares
verdes, me mandou fazer força. De novo. Parecia que ele estava me
mandando fazer força havia horas, enquanto a enfermeira me dava
pedaços de gelo e enxugava o suor da minha testa.
– Está quase, querida – avisou a enfermeira. – Só mais um
empurrãozinho e vai acabar.
Ela tinha dito isso na última vez. E na anterior. Dentro de mim,
Freddie estava se retorcendo, girando e se contorcendo para se
posicionar.
Era o inferno.
E então acabou, a tortura feroz ficou para trás, esquecida. Eu
estava no agora, em um lugar onde a única coisa que importava era
a pele de Freddie na minha. Pensei no tamanho dela, em como 3,5
quilos de ser humano podiam ter crescido na minha barriga, em
como havia espaço para todo aquele complicado material biológico
prosperar e viver, em como alguma parte de mim podia ter aberto
uma porta suficientemente grande para deixá-la sair para o mundo.
Ao mesmo tempo, ela era minúscula, pequeníssima. Examinei
cada dedinho, ainda sem gordura de bebê, incapaz de avaliar como
algo podia ser tão pequeno e desamparado. Tão absolutamente
dependente de mim para sobreviver.
Uma mão invisível se estendeu e me tocou em uma brincadeira
de pique enquanto eu estava na sala de parto. Está com você, El. E
estava mesmo. Eu era a portadora da vida e protetora dessa vida, a
única coisa com que um recém-nascido de 3,5 quilos podia contar, a
única que tinha o poder de pegar meu bebê ou deixá-lo cair. Eu era
tudo, onipotente e onisciente. Se meu bebê chorasse, eu iria
acalmá-lo. Se ficasse doente, eu ficaria acordada a noite inteira e
daria remédio para tosse. Se ela ralasse um joelho, eu iria beijá-lo
para sarar. Eu tinha feito tudo isso com Anne e faria de novo,
ajudando-a a superar cólicas e paixonites, me certificando de que
ninguém lhe fizesse mal.
Para Malcolm, eu ainda era eu, ainda era Elena Fischer
Fairchild. Não havia como explicar que eu não era desde o dia do
nascimento de Anne. Ao saírem de mim, meus bebês levaram
alguma coisa, pequenas fatias de mim mesma, e deixaram espaços
vazios. Espaços mortos. Acho que morri um pouco quando Anne
nasceu e depois mais um pouco com Freddie.
Enquanto ela dormia no meu seio nu, sussurrei:
– Vou fazer qualquer coisa por você, menininha. Prometo.
Quando ela se mexeu e me espiou com aqueles olhos que
continuariam enormes aos 3, aos 16 e aos 80 anos, olhos que
veriam toda a vida através das mesmas lentes físicas, eu chorei.
Dizem que é depressão pós-parto, hormônios ou sabe-se lá o
quê. Mas então eu soube qual era o trato: uma simples questão de
me trocar pelo meu bebê, se um dia fosse necessário.
CINQUENTA E QUATRO

Q
uando Martha Underwood vem marchando na minha
direção, sei que estou encrencada. Isso significa que
Freddie também está, portanto vou morrer mais um pouco.
Porém, desta vez a voz de Underwood me surpreende:
– Dra. Fairchild, telefone para você. Pedi que ligassem de novo
para você poder atender na minha sala. – Ela suspira. – E pode
levar sua filha.
A primeira coisa que penso é que Malcolm mudou de ideia, que
no fim das contas pensou em alguma coisa para manter a família
unida; a segunda é que Alex sentiu alguma pena de mim e ligou
para Maryland. Mas então aquelas duas palavras na carta da escola
federal que recebi no fim de semana passado me vêm à mente:
Emergência familiar.
Oma.
Acompanhamos Underwood até fora do refeitório e seguimos
pelo caminho cheio de mato até o prédio da administração, a
mãozinha de Freddie agarrada na minha.
– Estamos indo para casa? – Seus olhos estão tão arregalados
quanto ficam antes de um surto.
Acho que não, mas respondo apenas:
– Quietinha. Fique firme. – E aperto sua mão em um ritmo
constante para acalmá-la.
A chuva deixou um mosaico de poças e trechos lamacentos dos
quais nos desviamos enquanto atravessamos o terreno. Freddie
tropeça em uma raiz torta, quase caindo de cara. Uma mão que não
é minha se estende e a segura pelo braço. O anel que vi antes
cintila para mim hoje.
– Opa! – faz Alex, e apressadamente diz para Underwood: – Isso
é para o FedEx pegar. Liguei para eles agora mesmo e devem
chegar em menos de uma hora. Para entrega na manhã de
segunda, está bem?
Ele dá a ela um envelope grande antes de anunciar, um pouco
alto demais, que vai ficar a tarde toda no apartamento. Um recado
para mim, acho.
Quando ele se afasta, Freddie sussurra:
– Não gosto do amigo do papai.
Nem eu, mas talvez precise fingir que gosto, pelo menos durante
algumas horas.
Esperamos na sala de Underwood até as duas horas, quando
meus pais ficaram de ligar de volta. Ela arrumou a sala para nós,
acendendo as luzes e até pegando uma cadeira extra com algumas
almofadas para Freddie se sentar. Toda essa gentileza súbita
deveria me tranquilizar, mas surte o efeito oposto.
– Vou deixar vocês a sós – diz Underwood quando o relógio dá a
hora.
Freddie e eu esperamos, mas não por muito tempo.
Atendo o telefone ao primeiro toque, morrendo de medo do que
vou ouvir, odiando meu marido e cada pessoa que me negou uma
última despedida, odiando pensar que Freddie não verá a bisavó
outra vez.
A voz de mamãe ecoa, e sei que alguma coisa está errada.
CINQUENTA E CINCO

F
az muito tempo que sei que minha avó vai morrer. Imaginei
um telefonema choroso de um dos meus pais, as notícias
repassadas de um oncologista, o corpo de Oma definhando
ao longo de meses, semanas e dias até desistir. Mas também
imaginei que haveria tempo para me acostumar, para me despedir.
Minha mãe parece não dormir há uma semana.
– Elena? Você está aí?
– Estou, mamãe. Oma...
Ela muda para um tom menos cansado e mais desesperado.
– Não sei. Ela está bem, mas não está. Seu pai ligou para o Dr.
Mendez, e não há nada errado. – Ela solta um riso seco. – Nada
errado. Ele precisou dar um sedativo a ela para fazê-la parar de
tagarelar, e mesmo assim ela não parou. Continuou gritando que eu
precisava ligar para você. Eu argumentei que não era possível, e ela
gritou mais ainda. Ah, Elena, ela está o dia inteiro no quarto batendo
a bengala no estrado da cama. Os médicos não querem receitar
nada mais forte por causa do coração, mas acho que ela vai acabar
se matando se continuar assim. – Minha mãe faz uma pausa, diz
algo ao meu pai e volta ao telefone. – Estou ficando maluca. Cem
por cento maluca. Ah, Gerhard, por favor, faça ela parar com isso.
Freddie fica tensa ao meu lado ouvindo o barulho, e eu murmuro
um “Está tudo bem” para ela.
– Calma, mãe. Sinto muito por não estar aí.
– Eu não sinto. Você não ia querer estar aqui. Ela fica falando,
falando e falando sobre a irmã de Miriam. Desde ontem à noite, El.
Isso está enlouquecendo seu pai. Ah, inferno. Aí vem ele. Espere
um pouco, ok? – Só então ela pergunta: – Como você está? E
Freddie?
Quero contar tudo, mas me contenho.
– Estou bem, mãe.
– Seu pai está dizendo que ela quer falar com você. Tenha
paciência.
Acompanho o som dos passos da minha mãe enquanto ela sai
de onde está e anda para o quarto dos fundos. A voz de Oma está
fina, mas penetrante, e fica mais alta a cada passo. Quando Freddie
escuta, estende a mão para o telefone na minha mão direita.
– Em um minuto – digo, mas não sei bem se quero que Freddie
fale com a bisavó nessas condições. – Você está bem, Oma? –
indago.
– Não gosto de ser velha. Ninguém escuta as velhas.
Começo a fazer o máximo para agradá-la.
– Estou escutando, Oma.
– Sua mãe precisou ligar para Malcolm e mentir para ele sobre
meu coração, até ele dar um número de telefone para falar com
você. Está vendo? Eu disse a eles que era possível, mas ninguém
me ouviu.
– Ouviram, sim. E eu estou aqui. Freddie quer dizer olá.
– Agora não, Leni. Depois. Agora eu quero que você me escute.
Lembra que eu contei sobre minha amiga Miriam? – Há uma
pequena pausa antes da palavra “amiga”. Quase imperceptível, mas
presente. Sem esperar resposta, Oma continua: – Andei pensando.
No meu tio-avô. – Outra pausa. – E no que aconteceu com a irmã
de Miriam.
Não estou prestando tanta atenção. Uma parte de mim tenta
injetar alguma paciência em Freddie e observa a sala de Martha
Underwood, mais iluminada do que na última vez em que estive
aqui. É por causa da luminária de mesa, que joga um caleidoscópio
de cores na parede.
– Olhe aquilo, Freddie – sussurro. – Olhe para aquelas cores.
Você vai poder falar com Oma em um minuto, está bem?
Oma diz algo em alemão ao meu pai, depois volta para mim:
– A irmã de Miriam tinha epilepsia. Você sabe, aqueles ataques.
– Sei o que é epilepsia, Oma.
– É. Claro que sabe. Um ano depois de eu entrar para a Liga das
Moças, Miriam foi à minha casa. Era setembro, acho. Talvez início
de outubro. Não fazia frio demais e acho que estava chovendo.
Meu pai tosse ao fundo.
– Conte logo a ela, Mutti. Elena não precisa saber das condições
meteorológicas.
– Ainda acho que estava chovendo – continua Oma. – Nessa
época, Miriam e eu não nos falávamos. Mesmo assim ela foi,
sozinha, e perguntou ao meu pai se podia me ver. Sim, Gerhard,
estava chovendo. Lembro porque Miriam estava com a capa
brilhante e não entrou totalmente em casa porque suas botas
estavam enlameadas.
Ela fala sem parar, e agora eu também estou absorvida pelas
luzes coloridas, o vidro na luminária barata, a base de latão e a
madeira polida por baixo. A mesa de Martha Underwood está
arrumada demais, sem nenhum papel fora do lugar. Os lápis estão
enfileirados como soldadinhos de madeira, blocos pautados em
pilhas, tudo alinhado. E é por isso que meu olhar é automaticamente
atraído para o envelope largado casualmente perto do telefone. É a
única coisa diferente no cenário.
É o pacote que Underwood deixou quando foi pegar uma cadeira
extra para Freddie.
O envelope está fechado apenas com um prendedor de metal, e
a cola embaixo da aba está totalmente seca, esquecida na pressa
de Alex. Sei disso porque, enquanto Oma fala sobre a irmã
epiléptica de Miriam, o porão inundado por causa da chuva e sobre
o fato de ela própria ter precisado limpar a sujeira do saguão depois
de Miriam sair, eu estendi a mão e o peguei, virei e sopesei. Li o
endereço duas vezes e o carimbo de CONFIDENCIAL na frente e atrás.
E, antes de registrar o que estou fazendo, prendi o telefone entre
a orelha e o ombro, abri as abas metálicas do prendedor e tirei o
conteúdo do envelope. Logo de cara leio a primeira página:

Petra,
Quanto ao que discutimos, aqui vai o plano. Você vai entender
por que eu não quis mandar uma cópia eletrônica. Há olhos
demais sobre nós.

Com amor,
Alex

Oma diz algo sobre um médico e a irmã de Miriam, depois outra


coisa sobre como as cenouras e as batatas no depósito do porão
apodreceram por causa da umidade. Não sei. Estou na segunda de
várias páginas.

GERAÇÃO: zero (entre 13 e 55 anos); alunas e professoras de escolas federais


selecionadas

POPULAÇÃO-ALVO: Q abaixo do padrão, grupos étnicos (a serem determinados),


anomalias congênitas ou sociais, prole anômala reafirmada por testes
MÉTODO: Quinacrina? (ver relatórios prévios sobre complicações na terapia com
hormônios)

RISCO PARA OS INDIVÍDUOS: de leves a sérios; potencial para fatalidades

RESULTADO PROVÁVEL: considerado positivo, não testável

RELAÇÃO CUSTO-BENEFÍCIO: de bom a excelente

– ... e Miriam ficou ali parada, me acusando, como se eu é que


tivesse feito aquilo. – Outra pausa. – Ouviu, Liebchen?
– Ouvi, Oma – respondo automaticamente. – Estou ouvindo.
Passo à página três.

GERAÇÃO: um (até 12 anos); alunos dos dois sexos

POPULAÇÃO-ALVO: VER ACIMA (com exceção da prole)

MÉTODO: mutação hereditária através de impulso genético visado; método de


inserção a ser determinado

RISCO PARA O INDIVÍDUO: negligenciável

RESULTADO PROVÁVEL: de 80% a 90% na primeira geração com progressão


geométrica nas gerações subsequentes

RELAÇÃO CUSTO-BENEFÍCIO: depende do método de inserção; perspectiva inicial


positiva

O relógio bate os quinze minutos disponíveis. Underwood enfia a


cabeça pela fresta da porta.
– Tudo bem? Precisa de mais tempo?
Eu me ouço dizendo:
– Cinco minutos, por favor. É grave.
E então Oma. Em alemão. Gritando para eu escutar.
– Eu falei que eles a esterilizaram, Leni. Eles a levaram embora,
cortaram alguma coisa nela e depois a trouxeram de volta. Escutou?
Eles fizeram tudo isso com a irmã da Miriam e depois a trouxeram
de volta!
Oma está gritando comigo em duas línguas, citando números e
anos, falando de cotas, médicos competindo entre si para cumpri-
las. Os únicos números que lembro são cinquenta mil e um.
Foram cinquenta mil operações em apenas um ano.
De algum modo, nem sei como, recoloco os papéis no envelope.
Largo-o na mesa, no poço de luz colorida, como se pudesse me
queimar se eu continuasse a segurá-lo por mais um segundo. Já
estou queimando de vergonha por duvidar de minha própria avó.
– Eu escutei, Oma. Estou escutando a senhora.
– Você precisa vir para casa, Liebchen. Você e Freddie. Vocês
duas precisam vir para casa antes que uma coisa terrível aconteça.
– Claro, Oma, eu sei. – Só vou bater os calcanhares dos meus
sapatos mágicos três vezes, penso, sentindo que a sala começa a
girar.
Entrego o telefone a Freddie.
– Ande – falo em uma voz seca. – Diga olá à sua Oma.
Enquanto elas conversam, mal consigo ficar sentada dentro
deste escritório iluminado e formal onde algumas folhas de papel
esperam para ser mandadas pelo correio.
Minha mão esquerda avança. Eu poderia pegá-lo, acho. Eu
poderia pegar o envelope com sua mensagem maligna, capaz de
coagular o sangue. Poderia escondê-lo e esperar que ninguém
descobrisse que fui eu, e então destruir essa coisa odiosa. Só que
outro envelope tomaria o lugar dele, chegaria ao destino, seria
aberto por certas mãos e lido por certos olhos. Mas eu ainda poderia
pegar uma página. Uma bastaria, se eu conseguisse entregá-la às
pessoas certas.
Freddie me vê abrir o envelope uma segunda vez e retirar a
página mais prejudicial, dobrando-a em três, depois em três de
novo, antes de enfiá-la na manga da blusa.
– Não comente nada sobre isso – peço a ela. – A ninguém.
Ela assente.
A porta se entreabre.
Vou ser pega no flagra.
Freddie começa a chorar, abrindo o maior berreiro. Consigo ouvir
Oma ao telefone, dizendo a ela que vai ficar tudo bem.
– Desculpe – diz Underwood, e sai de novo.
É esperta, a minha filha.
Segundos antes de Martha Underwood voltar à sala pela última
vez, lambo a cola do envelope, fecho-o e o deixo meio torto na
mesa. Freddie dá um adeus choroso à avó.
– Sinto muito – comenta Underwood, parada ao meu lado. – É
sempre difícil receber notícias ruins.
É. É, sim.
Na volta ao apartamento, depois de abraçar Freddie e fazer uma
série de promessas tranquilizadoras que talvez eu não seja capaz
de cumprir, examino as janelas gradeadas do prédio do dormitório.
Se o que li está certo, logo não haverá necessidade de barras de
ferro. Nem de escolas federais nem de ônibus amarelos nem de
notas Q. Em poucas gerações, todo mundo será perfeito.
A pergunta que me faço quando entro no prédio dos professores
é se eu acreditaria em Oma se não tivesse visto o conteúdo daquele
envelope.
CINQUENTA E SEIS

T
udo com relação ao quebra-cabeça que vem se montando
pouco a pouco está errado: a forma das peças, a figura
medonha que começa a se formar, o som sinistro das
palavras individuais, os números Q, as notas das provas, as
braçadeiras coloridas nas crianças.
O apartamento está vazio quando retorno. Há apenas um bilhete
de Lissa e um livro pesado com encadernação marrom genérica de
biblioteca sobre a mesa da cozinha. Leia a p. 460, diz o bilhete.
Volto logo.
Abro o livro na página que Lissa marcou e começo a ler. O
cabeçalho é longo e prolixo, mas a mensagem é simples.

Relatório preliminar do Comitê da Seção de Eugenia da Associação Americana de


Reprodução para estudar e informar sobre as melhores práticas destinadas a eliminar
o plasma germinativo defeituoso da população humana

Ouço um ofegar e percebo que o ruído saiu de mim. Releio a


segunda parte do título: eliminar o plasma germinativo defeituoso da
população humana.
Defeituoso.
Germinativo.
População humana.
Eliminar.
Espero ver uma lista de nomes que incluam “Grande Dragão” ou
“Goblin Imperial” ao lado, aquelas categorias ridículas da principal
organização racista dos Estados Unidos, a Ku Klux Klan. Isso talvez
eu conseguisse engolir. Teria gosto de merda, mas eu poderia
enfrentar. Não estou esperando que três dos cinco membros do
Comitê da Seção de Eugenia da Associação Americana de
Reprodução sejam médicos.
– Meu Deus – sussurro para as paredes, e deixo meus olhos
percorrerem a página, lendo em voz alta. – Doutor. Professor. Juiz.
Johns Hopkins, Harvard, Cornell, Princeton, Columbia.
Todos são homens, claro, a não ser a única mulher listada ao
lado de Ponto de vista das mulheres. Era uma Sra. Fulana de Tal,
de Hoboken.
Folheio as primeiras páginas do livro. O exemplar de Lissa é
velho, amarelado pelo tempo, e está com as margens das páginas
esgarçadas. A matéria na página 460 é relativamente curta, apenas
um dos cerca de trinta trabalhos apresentados no Primeiro
Congresso Internacional de Eugenia realizado em novembro de
1912. Não nos arredores de alguma cidade pouco povoada no meio
do nada. Em Londres. Examino o sumário, chocada ao ler os temas:
educação antes de procriação, nova consciência social, famílias
sadias, a influência da raça na história. Parece algo saído do
Terceiro Reich, mas não é. Os autores são franceses, ingleses,
italianos, belgas.
Oito são americanos.
Meus dedos voam pelas páginas quebradiças, correndo de volta
ao capítulo por onde comecei. Há outra lista, dez linhas de tinta
preta, borrada, encimadas por uma única palavra:
Soluções

A número oito, a azarada, infeliz e fétida número oito se destaca.


Não sou socióloga. Não sei merda nenhuma sobre economia,
força de trabalho ou como administrar a dinâmica populacional. Mas
sei sobre abrigos para animais. Qualquer mãe com duas meninas
loucas para ter um cachorrinho sabe.

Eutanásia.

– Como um cachorro indesejado. – Acho que digo isso em voz


alta, não sei.
A palavra começa a girar lentamente, ganhando ímpeto. É como
estar bêbada, drogada e doente ao mesmo tempo. Tombo para trás,
mas não afundo na cadeira. Caio direto no ladrilho duro do piso da
cozinha, finalizando a queda com a cabeça no chão.
CINQUENTA E SETE

ANTES

M
alcolm nunca permitiria. Juntando a ameaça das pulgas
com a inconveniência de dois passeios por dia, ele sentia
entusiasmo zero pela ideia de arranjarmos um cachorro.
Mesmo assim, levei Anne e Freddie ao abrigo local, sem que o pai
soubesse.
Foi um erro gigantesco.
Dentro da construção do tamanho de um celeiro havia fileiras e
fileiras de grandes gaiolas, todos lares temporários – e, em alguns
casos, extremamente temporários – de animais que ninguém queria.
Enquanto Anne e Freddie corriam de um lado para outro procurando
bichinhos fofos com olhos enormes e patas desproporcionalmente
grandes, contei os pit bulls, os magros cães de caça que tinham
sido entregues (ou, em sua maioria, encontrados passando fome na
floresta) depois de perder o faro ou a visão, os vira-latas com as
costelas marcadas por fora da pele. Havia velhos labradores cheios
de feridas, pastores-alemães que já haviam sido bonitos, cujos
olhos diziam “Por favor, não me chute” quando os saltos dos meus
sapatos faziam barulho no piso de concreto. Havia latidos, ganidos e
gemidos. Uma placa dizia: Rainha. Doze anos. Sem mais
informações disponíveis.
Rainha. Alguém batizara a cachorra de Rainha.
Rainha tinha sido deposta.
– Não tem nenhum filhotinho, mamãe – comentou Anne. – Por
que não tem nenhum filhotinho?
Ela passara de entusiasmada a entediada em alguns minutos e
finalmente saiu pisando duro até a recepção, onde se sentou com
os braços cruzados e uma carranca parecida com uma tarde de
sábado chuvosa.
– Não tem nenhum cachorro bom.
Ela estava certa. Não havia nenhum cachorro bom, não do tipo
que as pessoas queriam. Peguei a mão de Freddie e a levei para
longe do pastor-alemão cansado do mundo – e aparentemente
cansado de chutes.
Devia ter saído antes.
Uma jovem apareceu por uma porta no final do corredor, uma
porta onde estava escrito SOMENTE FUNCIONÁRIOS. Ela abriu o trinco
da gaiola de Rainha e prendeu uma guia na coleira da cachorra.
– Pronta para um passeio, garota?
Apesar das pernas cansadas, Rainha parecia pronta. Dava para
ver em seus olhos.
– Às vezes odeio meu trabalho – desabafou a mulher.
Então arranje outro, pensei. Mas o que falei foi:
– Não gosta de cachorros?
– Está brincando? Eu adoro cachorros. Não gosto é de ter
recebido mais dez hoje de manhã quando não temos espaço nem
dinheiro. Nunca temos dinheiro suficiente. E Rainha é a que está
aqui há mais tempo.
Quando elas saíram, vi toda a vida de Rainha em um instante.
Um filhotinho recém-nascido, mamando na teta da mãe, aninhada
com irmãos e irmãs. Rolando na grama da altura de suas patinhas,
pegando um sol. Brincando com uma bola, um brinquedinho que
guinchava, uma daquelas coisas de borracha dura em que a gente
enfia creme de amendoim. A cabeça do lado de fora da janela do
carro, sentindo o ar na cara. Enrolada em um canto, de cabeça
baixa, sabendo que não devia ter mijado no tapete do dono,
sabendo que não conseguiu evitar. Sendo levada ao abrigo estéril,
com cheiro de água sanitária, sentada obediente enquanto
formulários eram preenchidos e assinados. Olhando pela janela
enquanto o jovem que lhe deu o nome de Rainha ia embora de
carro.
Não pude chorar na volta para casa. E fui dura com Anne,
mandando que ela calasse a boca depois de reclamar de todos os
cachorros feios que eu a tinha levado para ver. Ruas e árvores se
turvavam enquanto eu guiava no tráfego do fim de tarde. Na
verdade, eu só queria uivar e gritar com os humanos ao meu redor.
Mas não fiz isso, não com as meninas no banco de trás. Esperei até
chegarmos à garagem e inventei uma desculpa antes de correr para
o banheiro, abrir a torneira e chorar até não restarem mais lágrimas.
CINQUENTA E OITO

–F
oi uma pequena concussão, mas acho que você vai ficar
bem – relata uma voz.
Não sei de onde ela vem, só que é suave e
arredonda as arestas da dor no lado esquerdo da minha cabeça.
Durante um tempo que não consigo determinar, apenas tenho
consciência da voz.
Novas sensações chegam devagar, uma depois da outra. Algo
parecido com gelo perto de minha têmpora. A pressão de dedos
abrindo meus olhos. Outro olho, a apenas 2 centímetros do meu.
Sons femininos, densos com o sotaque dos Apalaches,
preocupados, ordenando que eu fique parada e quieta.
Com ou sem concussão, preciso me mexer e contar o que
descobri. A mão direita de Ruby Jo discorda, me mantendo deitada
no sofá enquanto Lissa fala, dizendo em que acredita:
– É, já estamos acompanhando os escrotos da Família Mais
Apta há um tempo. Tentando descobrir de onde vem o dinheiro,
quem eles apoiam para o Legislativo, quais são os planos deles.
Bonita Hamilton está em cima deles como mosca no cocô, e só
conseguimos um punhado de coisa nenhuma. Mas ela tem uma
teoria.
– Eugenia – concluo.
– Bingo.
– A maioria das pessoas não sabe disso – comenta Lissa. – Eu
ensino história há quase trinta anos e nunca vi um livro didático
mencionando a Fundação de Melhoria Humana ou a Associação de
Pesquisa Eugênica. Absolutamente nenhum. Como se fosse um
segredinho sujo, um constrangimento que achamos que podemos
esquecer se não mencionarmos o assunto e varrer para debaixo do
tapete.
Ela ferve água no fogãozinho e põe duas doses de pó de café no
funil com filtro enquanto eu ouço os fatos, os números, o movimento
de montes de dinheiro de progressistas como Rockefeller, Carnegie
e Harriman, os cientistas de elite que manipulavam dados.
– Foi um negócio gigantesco – relata Lissa. – E eles realmente
entraram em ação em 1912 com aquele documento. – Ela assente
na direção da mesa da cozinha.
– Ele fala... – começo com a voz trêmula. – Ele fala em
eutanásia.
– Não achamos que a FMA vá chegar à solução letal – comenta
Lissa. – Eles nunca tentaram isso, um século atrás. Pelo menos não
aqui.
– Isso é tranquilizador – digo.
Ruby Jo franze a testa.
– Eles fizeram isso, sim. Minha avó contou que eles fizeram todo
tipo de coisa. A maior parte foi de forma indireta. Sabe, deixavam de
alimentar um bebê, se esqueciam de dar os antibióticos a um velho
se ele estivesse com uma infecção. Como trabalhou no hospital da
cidade, ela sabia de um milhão de histórias. Mas Lissa está certa.
Eles tinham outros meios. Acho que, se a instituição em que minha
avó foi internada não tivesse sido fechada, eu provavelmente não
estaria aqui.
Eu e Lissa a encaramos. Ainda que doesse mover a cabeça.
– Como assim?
Ruby Jo faz uma cara azeda.
– Vocês não entenderam? Eu quase não existi. Tipo, quase não
existi mesmo.
Entendi, mesmo sem querer. Não quero entender, assim como
não quero ter lepra, sífilis ou câncer.
Ruby Jo olha para nós e balança os cabelos ruivos.
– Lembram quando contei sobre Oliver Wendell Holmes? Tem
outra coisa que ele disse. Se tínhamos leis para a vacinação
obrigatória, poderíamos ter leis para ligar as trompas. E foi isso que
quase fizeram com minha avó, em 1957. Alguém deduziu que eles
não precisavam matar ninguém, apenas impedir que se
reproduzissem.
Lissa concorda:
– Isso continuou durante décadas, até 1979.
Eu me levanto com dificuldade, tirando o papel dobrado de
dentro da manga.
– Não. Você está errada. Ainda acontece.
Se há um pequeno fio de luz neste cômodo onde Ruby Jo está
perdida em pensamentos e Lissa pressiona um pano frio na minha
cabeça, são os documentos que encontrei mais cedo. Nenhum
deles indica uma solução tão definitiva quanto a proposta de
eliminação feita pelo comitê de eugenia. Eu passo pelas duas e
volto à mesa da cozinha; folheio o apêndice do livro de Lissa. Meus
olhos me guiam até o número nove da lista e eu os obrigo a
focalizar, com ou sem concussão.
O que li na sala de Martha Underwood se encaixa perfeitamente
na nona solução proposta pelo Comitê da Seção de Eugenia da
Associação Americana de Reprodução:

Doutrina neomalthusiana, interferência artificial para impedir a concepção.


Ruby Jo está quieta, olhando pela janela gradeada em direção
ao prédio maior do outro lado, e desta vez sou eu que pergunto se
ela está bem.
– Sim, sim. Só acho que não há espaço suficiente para todos
eles – diz Ruby Jo sem se virar para mim. – Os dormitórios têm
tamanho suficiente para algumas centenas de meninos e meninas,
mas não muito mais que isso. E não vi nenhum sinal de construção
no terreno da Escola Federal no 46. Bom, este país é grande. Eles
podem construir escolas novas. Ou...
– Ou não. Eles podem conter o crescimento populacional –
argumento, alisando a página que roubei, fechando os olhos e
tentando visualizar as outras folhas, lembrando os termos que se
destacam. – Tudo que vi cheira a esterilização: um método
permanente de contracepção.
Lissa assente, sem expressão, esperando que eu continue. A
dureza em seus olhos me diz que ela aguenta mais informações.
Espero que eu também. Respiro fundo, puxo uma folha de papel
sobre a mesa e desenho uma linha vertical de uma extremidade a
outra. Na primeira coluna escrevo Estágio fértil; na segunda, Estágio
pré-fértil.
– As meninas em estágio pré-menstrual estão na segunda
categoria – explico. – Todas as outras mulheres estão na primeira.
De novo, Lissa assente. Ela entende.
A segunda parte é mais difícil de explicar, por isso simplifico:
– Se você quer impedir a concepção em mulheres férteis, tem
duas opções: cirúrgica ou química. A cirúrgica é mais arriscada. Não
que eles liguem para isso, mas podem se importar com o custo e a
logística de abrir milhões de abdomens só para amarrar duas
trompas. A esterilização química é mais fácil. Menos risco, menos
tempo, menor custo. E igualmente eficaz.
Lissa quer saber como funciona. Não sei se quero contar. A ideia
de alguém enfiar um bocado de cloridrato de quinacrina no meu colo
do útero com a intenção de queimar minhas entranhas é medonha
demais para ser articulada. Mas conto mesmo assim:
– A ideia é iniciar a esclerose do útero. – Faço um rápido
desenho de um triângulo isósceles com o ângulo agudo apontando
para baixo, e circulo os dois ângulos superiores. – Aqui e aqui –
digo, batendo com o lápis no lado direito e no lado esquerdo. –
Então você acaba formando tecido cicatricial...
– No ponto em que as trompas de Falópio entram – interrompe
Ruby Jo, perto da janela. – É basicamente um método de barreira.
Mas permanente.
Lissa permanece objetiva.
– Efeitos colaterais?
Expiro com força.
– Câncer. Gravidez ectópica. Dano uterino. Danos no sistema
nervoso central. Queimadura na vagina. A experiência foi proibida
depois que algumas mulheres sofreram perfuração no útero e
tiveram septicemia. – A ideia me faz estremecer. – Não é um bom
modo de morrer.
– É reversível? – pergunta Lissa, agora um pouco mais pálida.
– Não sem cirurgia invasiva. – Bato de novo com o lápis nos
ângulos direito e esquerdo. – Além disso, você teria que desfazer a
cicatriz dos dois lados, porque não dá para prever qual ovário vai
produzir o óvulo a ser fertilizado. Mas sim, é tecnicamente
reversível. Assim como mexer com impulsos genéticos, acho, mas
essa pesquisa é mais recente.
Explico, do modo mais simples que consigo, o processo para
alterar a transmissão de uma característica do pai ou da mãe para o
filho por meio de engenharia genética. Não acrescento que há
margem suficiente para dar merda, em especial quando lembro que
o documento de Alex colocava o método de inserção como “a ser
determinado”. É o mesmo que dizer: “Ainda não faço a mínima
ideia.”
Quando termino de explicar sobre propagação genética seletiva
e alterações no DNA, manipulação de padrões genéticos que
podem ser passados de uma geração à outra, são quatro da tarde.
Hora de ir ver Alex. Hora de descobrir o que tenho para trocar
por uma passagem para fora da Escola Federal no 46.
– Você precisa descobrir um jeito, Elena – avisa Lissa. – Eu
mesma tentaria... – ela olha para a frente chapada de seu uniforme
– ... mas algo me diz que você tem mais chances. Vou ficar aqui e
escrever alguma coisa para você levar.
Quando saio, ela está à mesa rascunhando anotações, os lábios
se movendo e vocalizando enquanto trabalha a partir do que
conversamos.
CINQUENTA E NOVE

C
hego ao apartamento de Alex me sentindo mais como Mata
Hari do que uma professora de biologia rebaixada de 40 e
poucos anos. Ruby Jo arrumou meu cabelo, soltando-o do
rabo de cavalo e arrumando-o em ondas louras sobre os ombros e o
colo. Bastou me olhar no espelho e tudo que pude ver foram os
horríveis tentáculos dos Q querendo prender algum fracassado
insuspeito e levá-lo para o inferno de uma escola federal.
Espero que os cachos, os seios e a maquiagem bastem.
A primeira pessoa que me falou sobre sexo foi uma garota da
minha turma do quinto ano. Sua irmã mais velha a havia colocado a
par de tudo.
– O garoto fica duro e enfia a coisa em você – disse ela,
enquanto nos aninhávamos em sacos de dormir na sala dos pais
dela. Fiquei de olhos arregalados com essa revelação. – E então ele
espirra um negócio para fora e acaba. Não é grande coisa. Só que
você pode ficar grávida.
Para mim, parecia uma coisa enorme. Nojenta e aterrorizante ao
mesmo tempo.
– Sua irmã fez isso? – perguntei, mesmo sem querer saber, pois
parecia a coisa mais adulta a se perguntar, algo do qual ela gostaria
de ser perguntada.
– Ainda não. Mas duas amigas dela quase fizeram. Elas têm 15
anos.
Naquela noite fiquei deitada no saco de dormir, incapaz de parar
de pensar naquele território novo e inexplorado chamado sexo.
Minha amiga contou onde eles colocavam a coisa e eu deixei que
minhas mãos encontrassem aquele lugar, com cuidado para não
agitar os cobertores e ela não acordar e me flagrar. Certas coisas,
como descobrir sua sexualidade, são melhores se feitas sem
interrupção.
Nada que descobri naquela noite pareceu interessante, quanto
mais possível. Anos mais tarde, quando Joe e eu mandamos ver no
banco de trás do Mustang dele, percebi que era possível e mais do
que interessante se fosse com o homem certo. Só que a ideia das
mãos e da boca de Alex em mim, a ideia dele penetrando no meu
corpo, me leva de volta àquela idade de latência sexual e me enche
de pavor.
Ele me oferece uma bebida quando entro, um pequeno copo de
cristal com uísque puro. Penso que talvez eu precise de algumas
doses.
– E então – começa ele. – Sobre o que vamos conversar?
Alex ocupa o sofá depois de indicar uma das poltronas diante
dele para eu me sentar.
Tomo um gole da bebida e deixo que ela me encha de calor.
Talvez o melhor agora seja o caminho direto.
– Quero que você me ajude a ir para casa. Com minha filha –
digo, cruzando as pernas e permitindo que um pouco de pele
apareça.
Os lábios dele se curvam em um sorriso que não chega a outras
partes do rosto. Ele nem sequer lança um olhar para minhas pernas.
Os 40 anos são uma idade estranha. Um marco. Hora de sentar
e pensar na vida. Envelhecer nunca me incomodou, e sempre achei
que os poucos fios grisalhos nas têmporas me davam uma espécie
de ar erudito. Eu os tingia, claro, por sugestão de Malcolm. “Você
fica uns bons anos mais jovem”, disse ele. Umas mil vezes.
Ainda malho e levanto peso na academia, ainda não adquiri a
temível faixa de gordura na cintura, e todos os cuidados com a pele
que não segui nas últimas décadas parecem não ter feito muita
diferença. Porém, os 40 me acertaram com força. Não com tanta
força quanto a percepção de que Alex parece não se importar com a
única coisa que tenho a oferecer.
– Há um modo de sair daqui, Elena. Se você quiser.
– Como?
Ele se recosta, deixando o sofá abraçá-lo, cruzando as mãos na
nuca como se estivéssemos apenas batendo papo e bebendo. De
forma casual e despreocupada.
– Preciso de voluntárias para alguns testes que pretendo fazer.
Diga, e diga a verdade, porque eu posso descobrir. Você ainda
menstrua?
Estou me sentindo nua, exposta, como na primeira vez em que
fui fazer um papanicolau, os pés nos estribos, minha totalidade
aberta para um médico sondar. Minha voz é um sussurro áspero
quando respondo que sim.
– Regularmente?
– Sim.
É verdade, mas sei que um dia não será mais. Não vou mais
sangrar no ritmo de um relógio. Quando nossas meninas começam
a menstruar, dizemos que elas viraram mulheres. Dizemos coisas
como Agora você é uma mocinha. O contrário também vale?
Quando a natureza nos interrompe, será que nos tornamos não
mulheres? Será que secamos quando não somos mais capazes de
procriar? Sempre evitei essa questão, e agora não posso mais evitá-
la. Sei o que Alex está pedindo e o que ele vai propor.
– Bom. – Ele estende a mão para um caderninho e o folheia. –
Posso marcar isso para mais tarde. Às sete horas, esta noite.
Não é uma pergunta, é uma ordem.
– Você é um deles, não é?
– Sou.
O ar no apartamento se torna rançoso e frio.
– Estamos realizando um bom trabalho no instituto. Um trabalho
ótimo. Mais vinte anos e não precisaremos mais de escolas
federais. Pense nisso, Elena. Pense em um mundo em que todo
mundo está no topo. Sem doenças, sem desigualdade social, sem
competição. Vamos nos livrar das maçãs podres.
Besteira, penso.
– Voltamos à questão do cesto de maçãs. Tire as maçãs podres,
mas o problema continua. A uniformidade é uma ilusão, Alex.
Ele abana uma das mãos, em desdém.
– Malcolm estava certo sobre você.
– Você conversa com meu marido sobre mim?
– Converso com seu marido sobre várias coisas. Sim, já falamos
sobre você. – Ele se levanta, alisa a calça e se serve de mais uma
bebida. Não oferece uma segunda dose para mim. – Eu adoraria
ficar aqui sentado discutindo seus problemas conjugais, Elena, mas
preciso ligar para minha esposa. – Ele abre a porta, esperando que
eu passe. – Às sete, esta noite. Em ponto. Me encontre no saguão.
Vou dar um jeito de mandar você para casa, de avião,
imediatamente depois.
Ele não mencionou Freddie. Nenhuma vez.
– E minha filha? Não vou sair daqui sem ela.
– Você será a primeira pessoa a ser testada. Depois de uma
semana saberemos mais. Aí então poderemos fazer os arranjos
para sua filha.
Fazer os arranjos para sua filha.
Hesito junto à porta.
– Mais alguma coisa?
– Você é um monstro.
Com isso vou embora.
Quando saio, me pergunto como consegui ir ao apartamento de
Alex esperando que ele colocasse alguma coisa dentro de mim. Não
esperava é que ele tirasse.
SESSENTA

M
eu voo será daqui a algumas horas, direto de Kansas City
ao Aeroporto Reagan em Washington. Haverá dois
passageiros: Alex Cartmill e eu. O preço da passagem?
Zero.
Bom, não é verdade. Esse voo vai me custar caro.
Alex até preparou uma surpresa. Pude jantar mais cedo com
Freddie. Só nós duas, mais ninguém, a não ser o próprio Alex, que
se certificou de que conversássemos apenas banalidades. O jantar
foi fácil. A despedida não.
– A gente se vê logo, meu bem – falei, acariciando as costas
dela, acalentando-a até que ficasse tranquila. – Logo, logo.
Eu não sabia se era verdade, mas fiz com que parecesse,
repetindo várias vezes até que Freddie finalmente relaxou e nós nos
separamos.
O monstro nos observava com uma indiferença gélida.
Às seis e meia, Lissa me orienta sobre o funcionamento da
caneta.
– A câmera fica na parte mais grossa. Clique uma vez para tirar
foto, clique duas para gravar áudio. Capturei uma imagem da página
sobre a qual discutimos hoje à tarde. Não adianta tentar levar uma
cópia física com você. E gravei minha matéria. Está tudo no drive.
Micro-USB.
Não estou prestando total atenção.
– Elena. – A voz dela sai dura. – Você precisa entregar isso aos
meus contatos no Washington Post. Bonita Hamilton, se puder.
Senão, pergunte por Jay Jackson. É isso, entendeu? Esses dois,
mais ninguém. Um ou outro está sempre lá. E, pelo amor de Deus,
não perca isso. Tudo está aí dentro. – Ela me dá um abraço breve e
me vira para Ruby Jo.
– Tem certeza de que quer fazer isso?
– Não – respondo, o rosto contra o de Ruby Jo –, mas preciso.
Ela não pergunta de novo.
SESSENTA E UM

Q
uando chega a hora, eu passo pela porta de uma construção
nos fundos do terreno da escola, acompanhada por Alex.
Ele cheira a antisséptico e não a uísque e perfume caro, e
evita me olhar nos olhos.
Dentro de uma sala que mais parece um consultório ginecológico
desconfortável, há outro homem, um sujeito diminuto com jaleco
branco, que me instrui a me despir da cintura para baixo e a me
deitar na mesa de exames.
– Há um lençol de papel para a senhora – informa ele,
apontando para a mesa. – Avise quando estiver pronta.
Estou perplexa quando eles me deixam. Meus membros não
querem funcionar, recusam-se a realizar até a simples tarefa de tirar
os sapatos e a roupa de baixo. Por instantes fico imóvel no meio
dessa sala fria e clara demais, querendo correr de volta para a noite
lá fora. Não sei para onde eu iria nem se chegaria longe, mas meus
pés estão pedindo para correr.
Uma batida à porta me assusta.
– Tudo bem aí, Dra. Fairchild?
Não, não está tudo bem. Não estou nada bem. Demoro um
momento para recuperar a voz.
– Só um minuto.
As palavras saem em um sussurro áspero e eu procuro outra
porta, uma janela, uma abertura de ar condicionado. Qualquer saída
que me tire daqui, me leve de volta ao apartamento com Lissa e
Ruby Jo.
É estranho como o inferno pode se transformar em uma espécie
de paraíso.
Outra batida, mas desta vez a voz não é do homenzinho
agradável de jaleco branco. É Alex informando que tenho
exatamente um minuto. Um minuto para decidir se vou deixar esse
monstro fazer o que quiser comigo.
Minhas mãos se movem por vontade própria, tirando uma perna
de cada vez de dentro dos jeans e de uma calcinha de seda que
comprei para provocar Malcolm certa vez, na época em que eu
ainda desejava provocá-lo. Subo na mesa de exames e desdobro o
lençol que esconde a parte inferior do meu corpo, ao mesmo tempo
me protegendo de ser vista e me protegendo de ver. Cada
movimento é automático, ditado por uma parte do meu cérebro que
só pensa em imagens futuras: Freddie em uma mesa, Anne em uma
mesa. A mulher que eu sou me aconselha a fugir, mas a mãe dentro
de mim toma outra decisão. Na verdade, é a única decisão possível.
Talvez eu tenha dito “Estou pronta”, talvez não. Mesmo assim a
porta se abre e Alex entra, seguido pelo homem muito mais baixo e
muito menos bonito. Eles formam um contraste impressionante: um
é o perfeito cartaz de alguma escola prata, o outro não.
– Talvez a senhora sinta uma leve pressão – avisa o homem
baixo enquanto suas mãos cobertas de látex desaparecem sob o
lençol e começam a me sondar. – Aqui está o fundo do útero,
antevertido em setenta a oitenta por cento. Os ovários parecem
normais.
Enquanto ele cutuca minha carne por dentro e por fora, capto o
nome bordado em seu jaleco. Em letra azul-clara está escrito seu
sobrenome, Mender, que significa “reparador”. Enfermeiro Mender...
A vida às vezes é irônica pra cacete.
Há uma bandeja de aço na mesa ao lado do meu cotovelo. Em
cima há um pacote, um daqueles envelopes estéreis e descartáveis
que já vi em consultas médicas, do tipo usado para espéculo e
cotonetes, material de uso único. Alex calça um par de luvas de
látex, rasga o pacote com um gesto treinado que já deve ter repetido
milhares de vezes e tira um pacotinho de laminado com veneno.
No rótulo está escrito cloridrato de mepacrina. Sei que é o nome
genérico internacional para a mesma droga que encontrei na
papelada de Alex. O que não sei é como vou tirar uma foto disso
com a caneta de Lissa sem ser vista.
Tusso.
– Posso tomar um copo d’água antes de começarmos? Por
favor?
O enfermeiro Mender sorri para mim.
– Claro, minha cara.
Ele sai da sala enquanto Alex se vira para o celular e eu tiro a
mão direita de baixo do lençol de papel, prendendo o fôlego.
Clic.
Alex ergue a cabeça de repente e o sorriso some de seus lábios.
– Algum problema?
– Não. Só senti meu braço meio dormente – respondo.
Então a mão está em mim, embaixo do lençol, subindo pela
parte interna da minha coxa.
Arregalo os olhos.
– Pare com isso.
Ele para, mas apenas para trancar a porta. Quando volta, inclina-
se mais para perto e eu sinto o cheiro da loção pós-barba e do fumo
de cachimbo por baixo de uma pesada camada de sabonete
enquanto ele tira as luvas.
– Será que Malcolm está certo e você é mesmo fria como um
peixe? – Agora uma das mãos está de novo na minha coxa, pele
com pele, a outra me empurrando contra a mesa de exames. –
Aposto que não.
O lençol de papel fica amassado quando me viro bruscamente
para um lado e tento golpeá-lo com a mão esquerda. Alex a segura
no ar, como se meu punho fosse uma bola de espuma, e não de
carne, ossos e nervos. Dói. Dói muito.
– Me solte, me deixe ir! – De novo minha voz sai fraca, fina.
Tento de novo e Alex ri.
– Vou deixar você ir. Até Washington. – Ele solta minha mão e
destranca a porta, depois anda até a pia para lavar as mãos. A água
corre, corre e corre, e parece que ele está tentando lavar qualquer
coisa que tenha contraído de mim. Então, com as mãos secas, calça
um novo par de luvas de látex. – Eu poderia machucar você, sabe?
– sussurra ele ao pé do meu ouvido ao mesmo tempo que rasga a
embalagem de um espéculo de plástico. – Poderia furar você ou
queimar suas entranhas. Poderia fazer todo tipo de coisa, e você
nem perceberia, até que fosse tarde demais. Poderia fazer você
desaparecer.
Desaparecer.
É a palavra certa. A palavra para o que eu gostaria de fazer
agora, se pudesse. Só consigo pensar em Rosaria Delgado, no filho
de Joe e em todos os outros que eu fiz desaparecer. E em mais
alguém. Uma lembrança que suprimi muito tempo atrás.
O enfermeiro Mender volta e leva um copo com água aos meus
lábios.
– Pronto, minha cara – diz ele. – Bem devagar. Goles pequenos.
Sua mão na minha testa é fria, tranquilizadora. Ele a afasta
quando eu termino de beber e me deita novamente na mesa de
exames, depois pede que eu desça o quadril um pouco mais. Meus
pés se apoiam nos estribos automaticamente.
– Não vai demorar nem um minuto – informa Alex, enfiando o
espéculo, me abrindo artificialmente.
Fico imóvel e, pela primeira vez na vida, permito que meu corpo
seja violado. De certo modo, eu mereço.
SESSENTA E DOIS

ANTES

C
omecei a odiar Mary Ripley no último ano da escola, alguns
meses depois de ela ter sido transferida para a nova escola
particular onde eu agora fazia parte da turma de garotas que
usavam batom e spray de cabelo, como sempre pensei querer. Todo
dia eu tinha que me sentar atrás dela na aula de inglês avançado da
Sra. Hill; todo dia eu precisava ver os flocos de caspa caírem de seu
couro cabeludo no pulôver preto que ela sempre usava.
Era uma garota magra e ruiva, que morava do outro lado da
cidade. Não era burra, mas também não era como o resto de nós.
Apenas um dos poucos alunos que a Rockville Academy aceitava
por caridade todo ano. Mary levava seu lanche em um saco de
papel amarrotado, gasto e mole depois de tanto ser dobrado,
desdobrado e dobrado de novo. Seus sapatos eram arranhados e
pequenos, de modo que às vezes Mary tirava os calcanhares de
dentro deles durante a aula, revelando meias puídas, quase
translúcidas. Mas eu não a odiava por ser pobre nem por ter nove
irmãos.
Eu odiava Mary Ripley porque ela ia me arrastar de volta para o
cesto de maçãs podres de onde eu tinha me esforçado tanto para
sair.
As garotas com quem eu andava a chamavam de Mary
Medonha. Mantinham distância dela nos corredores, com medo de
contrair alguma doença, amontoando-se nas mesas do refeitório
com sacos de batata chips e sanduíches que compravam com suas
mesadas. Quando achavam que ela não podia ouvir, sussurravam
desaforos contra os pais dela, irlandeses que se reproduziam
demais.
– Ela não é tão ruim – falei em uma terça-feira de início de
novembro, na hora do almoço.
Três pares de olhos com rímel se voltaram para mim.
– Se gosta tanto dela, talvez você devesse convidá-la para o
baile de volta às aulas, em vez do Malcolm – brincou Susan,
escorregando na cadeira. – Ah, meu Deus. Aí vem ela.
Mary vinha em nossa direção.
– Oi, El – disse ela, ignorando as outras garotas, que reviravam
os olhos. – Quer fazer alguma coisa no sábado se não tiver nenhum
compromisso? – Mary tinha uma voz suave, do tipo que eu
associava a cachorros maltratados.
– Desculpe – respondi. – É o dia do baile de volta às aulas.
Susan fez “tsc, tsc”, cutucando primeiro Becky, à direita, depois
Nicole, à esquerda. Quando Mary se afastou, ela falou:
– Você precisa se livrar dela, El. Olha, as pessoas estão nos
encarando.
Na quarta-feira, Mary trombou em mim depois da aula de
educação física.
Em um momento eu estava de pé, tentando pentear meu cabelo
ainda molhado, gritando para... não sei, Becky, Susan ou Nicole do
outro lado do vestiário. O baile era no sábado e estávamos no auge
do O que você vai vestir?, preocupadas com sapatos (aberto ou
fechado), batom (matte ou gloss) e unhas (francesinha ou vermelho
clássico).
– Dessa vez vou de batom Malva Meia-noite – informou Susan,
sob uma toalha.
Nicole estendeu a mão e estalou o elástico da calcinha dela.
– Que surpresa. Podiam chamar de Rapidinha à Meia-noite. Ou
Boquete em Billy Baxter à Meia-noite, já que é onde tudo vai parar.
Susan reagiu com algo igualmente maldoso, Nicole gargalhou
alto e eu estava atravessando o vestiário para mostrar a elas minha
última aquisição de maquiagem. Foi então que Mary Medonha, de
cabeça baixa em uma postura de evasão, súplica ou autodesprezo,
trombou em mim.
Corta essa, Elena. Você que trombou nela. Você não a viu
porque ela é invisível, mas você que foi direto para cima dela.
E caímos em uma confusão de toalhas e shorts de ginástica.
Nicole gargalhou de novo.
– Cuidado, El, ou você vai acabar pegando piolhos católicos.
Poderia ter dito alguma coisa diferente das últimas palavras que
falei para Mary Medonha, palavras que não ousei me permitir
lembrar. Poderia ter dito qualquer outra coisa.
Porque, afinal de contas, Mary não era tão importante quanto a
possibilidade de voltar para junto das maçãs podres.
Acho que todos temos um mecanismo de defesa inato, um
escudo protetor que é acionado quando cometemos erros idiotas. O
meu foi acionado naquela manhã, como algum campo de força
saído de um filme ruim de ficção científica, um puxão gravitacional
que me sugou e não me largou mais. Fiquei de pé, deixando Mary
perplexa e provavelmente despedaçada para sempre no chão de
ladrilhos, como se fosse um delicado ornamento de cristal na
beirada do console da lareira enquanto crianças mimadas
brincavam ao redor, jamais se preocupando com a destruição que
um gesto distraído ou um movimento rápido de cabeça poderia
provocar. Eu me levantei, me afastei e falei para mim mesma que
preferiria morrer a ser como ela.
Tudo isso é verdade. Mas eu falei uma coisa muito pior. E não foi
só para mim mesma.
Depois daquilo, Mary se transformou em um fantasma, de modo
que nenhuma de nós ficou surpresa quando essa transformação
virou realidade.
Não quero dizer um fantasma de verdade – não acredito nessa
merda. Mas no início de dezembro Mary parou de ir à escola. Na
semana seguinte, descobrimos o motivo.
Alguém comentou que tinha sido pneumonia. Outra pessoa
contou que foi câncer. Alguém do time de futebol, com a grosseria
costumeira, espalhou a história de que Mary se olhou no espelho de
manhã e morreu de medo. Como era o ensino médio, todas essas
pessoas foram ao enterro: o diretor deu passe livre.
Eis o que me lembro daquele dia:
Fiquei sentada no banco dos fundos, bem à esquerda, sem
querer ver os pais de Mary, definitivamente sem querer chegar perto
do caixão de madeira simples, envernizado para parecer mais caro.
Examinei minhas mãos, o hinário no pequeno suporte, o
genuflexório que rangeu quando meu pé o balançou distraidamente
para cima e para baixo, para cima e para baixo. Fiz o possível para
não pensar no corpo de Mary naquele caixão enquanto cinco de
seus irmãos o carregavam, chorando feito crianças.
Os boatos circularam pela cidade, especulações sobre como ela
havia feito aquilo, se tinha acontecido depressa ou devagar, quem
encontrou o corpo e onde. Na banheira? Na garagem? No porão?
No semestre seguinte, quando as cartas de aceitação das
universidades começaram a chegar e os primeiros narcisos
substituíram a lama e a neve, todo mundo já tinha esquecido a
garota que usava sempre o mesmo pulôver puído e os sapatos de
segunda mão com solas finas como o gelo no início do inverno.
Quase todo mundo tinha esquecido.
SESSENTA E TRÊS

Q
uando termina, Alex retira o espéculo com um puxão rápido,
me machucando de propósito e me deixando aberta e
escorregadia com lubrificante. Não tenho palavras para
definir como me sinto.
– Limpe-a e tire-a daqui – ordena ele ao enfermeiro.
E então sai, sem olhar para trás, sem olhar para a mulher violada
sobre a mesa. Ele entrou e saiu, e a pior parte é que toda essa
negligência faz parte de seu trabalho.
O enfermeiro Mender volta a atenção para mim.
– Pronto, minha cara – diz ele, me limpando com gentileza.
Neste momento ele é o policial bonzinho, arrumando a bagunça
feita por seu colega, o policial mau.
Enquanto estou aqui deitada, com substâncias químicas dentro
de mim já trabalhando para reformarem minhas entranhas, o
enfermeiro Mender diz o que devo esperar das próximas horas e
dos próximos dias e semanas. Minha mão direita clica a caneta
duas vezes.
– Talvez a senhora sinta cólicas. Com sorte, não serão muito
piores do que as cólicas menstruais. Se ficar muito ruim, tome um
comprimido desses. Motrin. – Ele pega no bolso duas receitas já
prontas e coloca a primeira na mesa ao meu lado enquanto continua
a narrar a lista de efeitos colaterais.
– É normal perder o apetite.
– Vou sobreviver.
– Isso é importante. – Seus olhos estão calmos e sérios. – Se
tiver febre ou taquicardia, mesmo que pareçam normais, procure
cuidados médicos imediatamente. Entendido? O risco é baixo, mas
quanto antes procurar uma emergência, melhor.
Uma palavra brinca nos meus lábios e eu me pego
pronunciando-a em voz alta:
– Septicemia.
Mender suspira.
– Como eu disse, o risco é infinitesimal, mas não inexistente. –
Eu gostaria de lhe contar o que Alex me disse, assim Mender
poderia refazer os cálculos de risco. – Isto aqui é para isso. – Ele dá
uma batidinha com o dedo no outro papel, já escrito e assinado. –
Você pode comprar hoje mesmo e começar o tratamento esta noite.
– O que é?
– Só Augmentin. Dose alta, é um antibiótico forte. Deve matar
qualquer coisa.
Médicos e enfermeiros não são políticos. Não têm tempo para
prestar atenção nas palavras. Mender continua falando enquanto
limpa os restos do meu tratamento, jogando o espéculo e o
instrumento de inserção em uma embalagem forrada com a
inscrição RISCO BIOLÓGICO. Acho que pensa que está me
tranquilizando.
– Você não será a única, minha cara – revela ele, dando um
tapinha na minha mão. – Em pouco tempo muitas mulheres tomarão
a mesma decisão.
– Como assim?
Ele dá de ombros.
– As mulheres vão começar a se consultar no Saúde da Mulher.
Se os testes derem certo e a avaliação de risco for baixa como
pensamos... Minha esposa vai fazer 35 anos em dezembro, sabe?
Na verdade, ela faz aniversário no Natal. Ela vai à clínica da cidade
e dará um jeito nas coisas. Tudo pelo bem maior, se quer saber
minha opinião. Quero dizer, é melhor prevenir do que remediar, não
é?
– Então é uma atitude voluntária?
Mender continua. Espero muito que a caneta de Lissa tenha uma
capacidade de armazenamento maior do que parece.
– Ah, acho que sim. Na maioria dos casos. Todo mundo quer
deixar a reprodução para os jovens e aptos. Dizem que com 35
anos a mulher já é velha demais. Muitas coisas podem dar errado.
Na maioria dos casos.
– E nos outros casos?
Ele tira o resto do material usado da bancada de aço inoxidável e
lava a superfície.
– Não se preocupe com isso, minha cara. Haverá muitos
incentivos.
Realmente espero que a caneta de Lissa esteja gravando tudo
isso.
Porque, assim que eu voltar a Washington, vou garantir que seja
transmitido tão alto nas ondas de rádio que o som chegará na porra
da lua.
SESSENTA E QUATRO

D
urmo durante a maior parte do voo de três horas de Kansas
City até Washington. Quando não estou dormindo,
permaneço de olhos fechados, para não ter que olhar para
Alex. Desembarcamos perto do prédio da aviação geral, em uma
área de asfalto e concreto. Aperto o casaco em volta do corpo, por
causa do vento frio, enquanto Malcolm emerge de uma das portas e
começa a andar lentamente na nossa direção. Não me lembro de
Washington ser tão fria no início de novembro.
Dentro do prédio, Malcolm e Alex me deixam sozinha por um
momento. Não posso ouvi-los, mas vejo meu celular trocar de mãos.
Eu já tinha me esquecido dele, guardado naquele pequeno depósito
perto da sala de Martha Underwood, fazendo companhia a outros.
Há alguns tapinhas nas costas e risos antes de se separarem.
O humor de Malcolm se parece com o clima frio quando ele me
pega pelo braço e me leva para o estacionamento. Sem me
cumprimentar, ele abre a porta do carona e me observa entrar antes
de passar pela frente do BMW e ocupar seu lugar ao volante.
Quando liga o motor, quero gritar tanta coisa que nem sei por onde
começar.
Ele parece ler minha mente.
– Não diga nada, Elena. Não diga merda nenhuma.
Aumento a intensidade do aquecedor do meu lado e fico quieta,
contando os carros pelos quais passamos enquanto ele nos leva
para fora do aeroporto e pega a via expressa, pensando no que vou
dizer a Anne quando chegarmos em casa. Na verdade, estou
pensando no que ela vai me dizer, se é que vai dizer alguma coisa.
Malcolm abre um pouco a janela do motorista; eu aumento o
aquecedor para 27 graus. Ele baixa a janela mais 5 centímetros.
Giro o botão de novo até o painel digital reluzir com o número trinta.
Continuamos a disputa desse modo durante o percurso de meia
hora até em casa, uma batalha silenciosa de vontades. Quando o ar
frio corre a parte de trás do carro e bate no meu lado direito,
percebo que estou perdendo.
– Pode fechar a janela, por favor? – peço.
Ele responde apertando um botão do lado esquerdo, e a janela
se abre completamente.
Nossa casa – suponho que agora seja a casa de Malcolm ou que
logo será – está fria e escura como a noite. Nem mesmo a luz da
varanda dos fundos está acesa. Depois da meia-noite, em uma
sexta-feira, Anne ainda pode estar acordada. Se não estiver
estudando, estará assistindo a um filme. Só que, se Malcolm lhe
contou que eu estava a caminho, talvez ela tenha decidido ficar no
quarto. Mesmo assim, a casa parece estranha.
Solto o cinto de segurança e penso em sair correndo. Seguir
pela rua até a casa de Sarah Green. Na direção oposta, até a dos
Delacroix, dos Morris ou dos Callahan. Passar pelo parquinho vazio,
me esconder no meu Acura estacionado no lugar de sempre, na
garagem. Em qualquer lugar, na verdade. Em qualquer lugar que
não seja essa casa escura tendo apenas meu marido como
companhia.
Malcolm desliga o motor e vem até o meu lado, abrindo a porta
para mim e pegando meu braço com força. Ele me segura assim até
chegarmos à porta dos fundos. A chave entra na fechadura, a porta
se abre e eu sou empurrada para dentro.
– Vá para a cama, Elena – ordena ele.
– Preciso comprar uns remédios. – Pego os papéis no bolso,
sentindo a caneta de Lissa aninhada nas dobras do tecido, e
Malcolm os toma de mim.
– Eu mandei ir para a cama. – Depois, apenas ligeiramente mais
educado: – Eu cuido disso de manhã.
– Preciso deles hoje. Tem uma farmácia 24 horas na...
– Elena, eu mandei você ir para a cama!
Espero que Anne apareça no corredor ao escutar a voz dele,
mas nenhuma porta se abre, nenhum passo ecoa. Estamos
sozinhos nesta casa escura, com as cortinas fechadas e as luzes
ajustadas no nível mais fraco.
– Cadê a Anne? – pergunto.
– Com uns amigos.
– Que amigos? Quando ela vem para casa? – Não sei por que
pergunto isso; a resposta parece bem clara.
– Logo.
O que acontece em seguida são cinco minutos de impasse até
que eu finalmente desisto e sigo pelo corredor até o quarto. Parte de
mim espera que ele me impeça, que diga que não sou mais bem-
vinda na sua cama, que devo dormir na de Freddie. Mas Malcolm
não fala nada.
Encontro o interruptor na parede e o aperto. Este quarto é meu e
não é. A cômoda foi esvaziada, a madeira nua onde antigamente
havia fotos emolduradas da minha família, onde uma bandeja
redonda de prata reunia meus perfumes. Abro a gaveta de baixo,
onde guardava os pijamas e as camisolas. Está vazia. Todas as
gavetas estão. Apenas os forros de papel com estampa floral
cobrem o fundo. Minha mão sobe automaticamente à boca e sufoca
um grito.
Respire, El. Só respire. Mas não consigo.
No reflexo do espelho, meu closet me chama para verificar o que
há ali dentro, ver que todas as minhas coisas estão penduradas em
araras ou dobradas em prateleiras de aramado e que os sapatos
estão enfileirados como sempre. Atendo ao chamado da porta,
atravessando o quarto, uma das mãos ainda cobrindo a boca, a
outra se estendendo para a maçaneta. Um medonho roteiro de
programa de auditório passa pela minha mente: O que há atrás da
porta número um, Elena? Quer adivinhar e ganhar o grande prêmio?
Não. Não, não quero.
Quero.
Os aramados brancos estão lá, no mesmo lugar desde que
paguei a um consultor para projetá-los e instalá-los. Eles cobrem a
parede lateral e os fundos do closet, um território virgem esperando
para receber pilhas de lã, brim e algodão. O carpete foi aspirado
recentemente, com listras de pelos bege reluzindo sob a luz.
É como se eu tivesse desaparecido.
Eu me afasto do closet. Após três passos, chego à janela do lado
da cama normalmente ocupado por Malcolm. Empurro as cortinas e
levanto a persiana romana, ouvindo-a estalar e girar. A cordinha da
persiana bate em um ritmo monótono contra o vidro, depois perde o
ímpeto e fica em silêncio. Não me incomodo em puxar os trincos e
levantar a janela antes de deixar as cortinas caírem de volta. A
tranca no caixilho e o buraco da fechadura me informam que eu não
devo me incomodar.
Sou prisioneira na minha própria casa.
É impossível saber há quanto tempo estou parada aqui,
tampando a boca, há quanto tempo estou olhando a estampa
geométrica no edredom e o azul do meu pijama muito bem dobrado
sobre o travesseiro. Minutos? Horas? Algum período intermediário?
E não sei há quanto tempo Malcolm está parado junto à porta,
encostado casualmente no batente, testemunhando meu desespero.
– As portas e as janelas estão com alarmes, Elena. E os vidros.
Você deveria ir para a cama.
– Seu monstro do caralho – xingo.
– Bom, você é que sabe. A gente se vê pela manhã. – Ele se vira
e fecha a porta, a chave estala na fechadura.
SESSENTA E CINCO

E
u estava pegando fogo quando acordei, há alguns instantes.
Agora um frio invernal percorre meus ossos e eu rolo de lado,
enterrando a cabeça embaixo do edredom para bloquear o
sol. Alguém abriu as cortinas. Malcolm, imagino.
Malcolm.
Minha mão se estende até o lado dele na cama. Está frio e seco,
e qualquer fantasia de que os últimos dias não passaram de um
pesadelo se esvai. Acho que sim. Não tenho certeza. As mesmas
mãos invisíveis que puxaram as cortinas e levantaram as persianas
podem ter turvado minha mente enquanto eu dormia. Cada parte do
meu corpo pede que eu fique aqui, embaixo das cobertas. Menos
uma: a parte que precisa de um banheiro imediatamente.
Depois, desmorono no chão tendo apenas o tapete do banheiro
como barreira entre minha pele e o ladrilho frio. O cômodo gira ao
meu redor, bege, azul e branco formando padrões em redemoinho,
como a ilustração de Escher de uma escada impossível. Não
consigo mais saber o que é em cima ou embaixo, frio ou quente.
Durmo.
Quando acordo, meu pijama está ensopado, translúcido nos
pontos onde suei mais, e cachos úmidos grudam em meu rosto. Eu
me levanto com dificuldade e apoio os cotovelos na borda da pia
depois de captar meu reflexo. A mulher no espelho não se parece
comigo.
Uma a uma, abro gavetas no armário. Em algum lugar há
comprimidos. Aspirina, Tylenol, sobras de gargantas inflamadas e
dores musculares. Ou havia. Agora as gavetas estão vazias, os
armários de medicamentos limpos. Só existe uma escova de dentes
e um tubo de pasta na prateleira ao lado da pia. Até a maquiagem
sumiu. Toda.
– Malcolm! – grito com a voz fraca. – Malcolm! – E depois: –
Anne!
A única resposta é o silêncio absoluto.
Eu não deveria pensar no pior, mas é só o que consigo fazer.
Naquela palavra, na maldição dos seres humanos durante milhares
de anos. Uma palavra desimportante no século XXI.
Infecção.
Então todas as palavras que a acompanham: Não tratada.
Bacteriana. Tóxica.
Grito o nome de Malcolm mais uma vez com toda a força que me
resta e cambaleio de volta para a cama, doente e derrotada. Então é
essa a sensação de perder as esperanças.
Não há nenhuma batida à porta, apenas o estalo claro de uma
chave na fechadura.
– Você não parece bem, Elena.
Sério?
Ele arruma o quarto, ajeita a roupa de cama e afofa os
travesseiros, tornando confortável essa prisão com seus lençóis de
mil fios e tapetes persas.
– Aqui tem alguma coisa para comer – diz ele.
Na bandeja há duas torradas, ovos mexidos e um copo de suco,
mas não quero nada disso. Neste momento meu corpo clama por
antibióticos. Todos os antibióticos que existem no mundo.
– E meus remédios? – pergunto. – Não me importo com o
Motrin, mas preciso das outras coisas.
– Ah, claro. Vou comprar quando sair.
Mentiroso. Malcolm não tem intenção de me conseguir os
remédios.
Ele levanta seu celular.
– Tem um aplicativo aqui, Elena, que está conectado ao sistema
de segurança da casa. Provavelmente estarei por aqui na maior
parte do tempo, mas posso precisar sair. – Ele dá de ombros. – Não
sei. Para fazer compras. Sei lá. Talvez eu saia por uma hora, talvez
por dez minutos. Talvez eu dê um pulo no escritório para pegar
alguma papelada. Vou ficar por perto. Só para o caso de você
precisar de mim.
Em outras palavras, eu não devo tentar nada. Como as janelas.
– Malcolm, por favor... – imploro.
– Não implore, Elena. Não combina com você.
Quando ele sai, a fechadura estala de novo, me trancando no
quarto. Mas meus travesseiros estão afofados, então já é alguma
coisa.
Lá fora, Malcolm liga o carro e o barulho do motor vai diminuindo
enquanto ele dá marcha a ré para sair da garagem.
Junto com meu café da manhã há um livro de Styron. É um dos
meus prediletos, com a lombada amassada por causa das muitas
leituras, amarrado com um elástico grosso. Neste momento não
tenho vontade nenhuma de ler histórias de amor trágicas; o título me
lembra o bilhete de Anne – Acho que você fez sua escolha – e não
consigo deixar de pensar que Malcolm está tentando me mandar
uma mensagem. Embaixo do livro, há um jogo de palavras cruzadas
rasgado do jornal de hoje, como se eu precisasse de mais algum
enigma. Além disso, um guardanapo e uma garrafa de água com
gás. Nada de celular. Malcolm ainda não devolveu o meu.
E sei que ele não vai devolver.
SESSENTA E SEIS

D
evo ter dormido durante toda a manhã e o início da tarde.
Quando acordo, meu café da manhã intocado foi substituído
por uma fatia de quiche e uma salada, outra garrafa d’água e
um suco de cranberry. Bebo este último, sedenta, me levanto e vou
ao banheiro fazer minhas necessidades.
Nada acontece, apesar de eu ter bebido um litro de água antes
de apagar. Volto à cama, pegajosa de suor e tremendo. Há um
bilhete de Malcolm na bandeja, lembrando que ele não está muito
longe da casa. As palavras disfarçadas de tranquilização são, na
verdade, ameaçadoras. Fico numa posição meio sentada, meio
deitada enquanto encaro o almoço.
Não há comprimidos. Nem anti-inflamatório, nem antibiótico.
Entendo que ele queira o divórcio – afinal, eu nunca recuperei o
bom senso. Ou, se recuperei, o perdi de novo há muito tempo,
talvez antes de Freddie nascer, talvez anos antes disso. O que não
entendo é por que meu marido quer me deixar morrer em meu
próprio quarto.
É então que começo a me sentir a pior mãe do mundo. Eu
deveria estar pensando em Freddie ou imaginando se Anne está
mesmo na casa de uma amiga ou em outro lugar. Eu deveria estar
chorando de preocupação pelas duas. Em vez disso, só consigo
chorar por mim.
Sei mais sobre septicemia do que gostaria. Sem tratamento, ela
pode matar em menos de uma semana, envenenando o sangue,
interrompendo o funcionamento dos órgãos, retorcendo entranhas a
ponto de fazer as vítimas não quererem nada além de uma morte
silenciosa. Sei que a única coisa que pode me ajudar é uma dose
enorme, gigantesca, de antibiótico. Agora. Por isso me perdoo pela
autopiedade. Se 24 horas me deixaram neste estado, não sei se
quero que o amanhã chegue.
Em breve vou testar a fechadura da porta. Muito em breve.
Depois de descansar um pouco.
Levanta, porra.
Vou me levantar. Daqui a alguns minutos. Primeiro vou fechar os
olhos e esperar a náusea passar.
Levanta. Agora.
Dois lados de mim estão brigando, a mulher e a mãe; a parte de
mim que sou eu e a parte que doei quando pari minhas filhas. Penso
que a mulher pode estar vencendo, mas a mãe está lutando com
força. Ela não quer ceder.
Está bem. Vou tentar.
Boa garota.
Malcolm esvaziou o banheiro, recolheu tudo. No entanto, sei de
coisas que a maioria dos homens não sabe. Sei que você sempre
pode encontrar grampos de cabelo nos cantos das gavetas,
escondidos em fendas, invisíveis nas sombras. Eu costumava
contá-los quando os encontrava. Um grampo, dois grampos.
Grampo vermelho, grampo azul.
Os meus não são vermelhos nem azuis, e sim dourados,
combinando perfeitamente com a madeira clara do gabinete. De
joelhos, passo as mãos nos fundos lisos das gavetas, buscando
qualquer irregularidade. Não preciso contar os grampos que
encontrar. Só preciso de um.
Continue procurando.
Continuo procurando, mas só depois de vomitar a mistura de
água e suco que tinha conseguido manter no estômago até agora. E
procuro de novo, até encontrar. O grampo solitário está ali, na
segunda gaveta, enfiado no encaixe da marcenaria. Arranco-o e o
seguro como se fosse a porcaria da tocha olímpica.
Dez minutos depois, sou um trapo suarento deitado na madeira
de lei perto da porta do quarto, tendo como companhia meu coração
disparado. Não consigo respirar.
Respire. Pense em Freddie e Anne. Respire.
Não consigo. O oxigênio entra em levas rasas, como se fosse
para abastecer um passarinho, quando ouço o ronronar de um
motor, longe, depois mais perto, informando que Malcolm voltou. De
certa forma, agradeço o pretexto de me arrastar de volta à cama e
me esconder no meio dos lençóis.
SESSENTA E SETE

E
sta noite tenho sonhos.
Estou em um quarto pequeno cheirando a café queimado
e remédios enquanto homens de jaleco branco puxam meus
membros, me esticando e me contorcendo até que meus músculos
gritam notas agudas. À direita e à esquerda, garotas com saias
azuis pregueadas dançam juntas, de braços dados. Uma delas é
Oma. As outras são Anne, Freddie, Judy Green, Rosaria Delgado,
Mary Ripley. Todo mundo tem rosto humano e corpo de raposa. Ou
talvez seja o contrário.
Há uma porta na outra extremidade do quarto, meio aberta e
meio fechada. O copo está meio vazio ou meio cheio? é a velha
pergunta. Uma parte de mim pensa “cheio” e outra diz “vazio”. Uma
pensa “fechado” e outra, o lado mãe, diz “aberto”. Freddie começa a
chorar, e Judy Green aperta alguma coisa contra a minha garganta,
um objeto brilhante e afiado.
Lissa e Ruby Jo entram no quarto, uma de cada lado. Revezam-
se sobre mim, sussurrando:
Nem tudo foi coerção.
Também houve consentimento.
A maioria das pessoas não sabe.
E as que sabem não se importam.
Então Judy deixa o bando de garotas e dá um passo à frente,
com olhos acusadores. Você sabia que as provas estavam sendo
trocadas, não sabia?
Não. Não, não sabia. Meus lábios e minha língua formam as
palavras, mas não consigo emitir nenhum som. Alguém tirou de mim
o aparelho que emite os sons.
Eles machucam a gente lá. Eles me machucaram e logo vão
machucar sua filha.
Imagens feias se formam na mente. Vejo o guarda gordo na
escola federal. Vejo uma chave na fechadura e linguetas saindo das
fendas. Vejo botas pesadas e pretas movendo-se em um piso de
madeira. Vejo mãos sujas mexendo em zíperes, botões.
Além disso, escuto sons guturais, grunhidos animalescos, o
ganido de um não silenciado por uma mão em concha, lençóis
farfalhando e o estalo agudo de um tapa que imobiliza tudo.
Ouço não, Não e NÃO!, depois nada. Apenas choros sufocados
por travesseiros e a tal palavra que todo mundo diz quando as
coisas ficam sombrias demais para suportar. Mãe. Nem Deus, nem
Jesus, nem qualquer outro espírito superior, e sim mãe. Então
minha própria voz, agora mais forte, dizendo: Não ouse tocar na
minha menininha.
Tudo dói quando acordo, estreitando os olhos por causa do sol
forte de novembro. A bandeja ainda está na mesinha de cabeceira,
junto com o livro de Styron, as palavras cruzadas e uma nova
garrafa d’água. Em vez de quiche, há um queijo-quente que já
esfriou. Em algum lugar lá fora sinos de igreja badalam. A manhã de
domingo chegou.
Estive dormindo – ou inconsciente – por dezesseis horas.
Acho que poderia fazer as palavras cruzadas. Não. É muito
esforço mental. Pego o livro na bandeja e decido ler algumas
páginas. Pelo menos o início não é deprimente e pode afastar meu
pensamento do fato de que estou trancada neste quarto enquanto o
resto do mundo se veste para os cultos de domingo e vai para
brunches com open bar de champanhe.
Styron fica no meu colo alguns minutos enquanto deixo meu
corpo descansar e se recuperar. Quem sabia que seria necessário
um esforço tão grande para uma tarefa trivial como pegar um livro?
Estender o braço, pegar um objeto, recolher o braço. Cada ação
esvai minhas forças. E me resta muito pouca.
Acho que estou morrendo. Não. Morrer é uma experiência
passiva. Alguém está me matando.
O elástico, seco e quebradiço, se parte quando tento tirá-lo. Não
é de espantar, uma vez que ele já vem prendendo essas páginas há
muitos anos. Eu devia tê-lo substituído e dado um exemplar novo a
Anne, quando ela me falou que queria lê-lo. Eu deveria voltar a
dormir.
Ah, não deveria, não. É a Voz de Mãe de novo. Comecei a odiá-
la.
Meu livro não é mais um livro. Quando a lombada se parte no
ponto mais fraco, dividindo-o em dois volumes separados, as
entranhas estão faltando, arrancadas para formar uma cavidade no
meio, como se alguém tivesse escavado o coração da história e o
substituído por outro.
A Voz de Mãe fala comigo, instigando.
Fique acordada, El.
Leio o bilhete de Anne cinco vezes, e a cada vez ele traz novas
lágrimas.

Mãe,

Papai me obrigou a escrever aquelas coisas. Desculpe. Eu vi


uma coisa no computador dele. Espero que você encontre isso
e traga Freddie de volta. Eu te amo.

Anne

“Escroto” não é uma palavra forte o suficiente para descrever


meu marido.
Por baixo do bilhete há um pedaço de papel com uma sequência
de letras e números. É uma senha. Meu problema agora é que
também preciso de uma chave de metal que destranque a porta e
me tire daqui. Além disso, preciso de um corpo novo, um corpo que
não doa, não vomite nem sue, mas estou presa com a senha do
notebook de Malcolm e a porra de um grampo de cabelo. Por isso
começo a trabalhar, esperando que o carro de Malcolm não entre
ronronando na garagem.
Desta vez aguento mais de cinco minutos com o grampo, os
ouvidos se esforçando para captar qualquer ruído diferente,
qualquer coisa que não o latido distante de um cachorro ou o toque
dos sinos dominicais. Quando estou cansada, a outra voz, a Voz de
Mãe, me incentiva a levantar e a começar de novo. Ela é como um
grupo doentio de torcedores. Mais uma tentativa, mais uma mexida
no grampo desentortado e um giro desesperado da fechadura. Se
não abrir, vou descansar. A Voz de Mãe que vá para o inferno.
Mas a maçaneta gira em um movimento glorioso, digno de
aleluia. Esperando certa resistência, eu a giro, batendo o ombro na
parede quando a porta se abre.
Estou fora do quarto.
Minha casa não tem mais nada que seja meu. Nem fotos de
casamento, nem fotos minhas com as meninas, nem
correspondências, cadernos ou listas de compras, nada que lembre
Elena Fischer Fairchild. É estranho perceber que eu não existo.
Quando consigo subir a escada e chegar ao escritório, tudo que é
meu sumiu. Sem problema. Não quero nada meu; quero uma coisa
de Malcolm.
Tiro o notebook da tomada e desço a escada, passando pelos
quartos de Anne e Freddie na lentidão que meus membros
permitem, cambaleando de volta até o meu para pegar o livro e a
caneta de Lissa, que enfiei nas entranhas do travesseiro na noite de
sexta-feira. Gostaria que a próxima parada pudesse ser esta cama,
este travesseiro macio, mas ignoro a tentação e volto correndo para
a cozinha, para a gaveta de entulho no canto, onde guardamos as
chaves reserva.
Por favor, que a chave do Acura esteja aqui. Eu a troco pela
minha alma se ela estiver aqui. Tento não pensar que posso já ter
trocado a alma e que não me reste nada para negociar.
A chave está ali.
Levo uns trinta segundos a mais que o usual para sair da casa
pela porta dos fundos, o frio de novembro me atacando como um
tapa nas bochechas, nos braços nus e nos pés descalços. Jogo
tudo no banco da frente do carro antes de cair dentro dele e fazer
outra negociação com o destino em troca de o Acura dar a partida.
Quando ele finalmente ronca, saio de marcha a ré exatamente
quando os alarmes começam a gritar.
SESSENTA E OITO

S
e eu virar à direita, posso chegar à casa de Sarah Green em
segundos. Se virar à esquerda, chego à Chain Bridge Road.
Direita, hospital. Esquerda, cidade. Casa, hospital, cidade.
Meu cérebro avalia as probabilidades.
Sarah Green pode estar em casa ou não. Não vou conseguir
descobrir isso só passando de carro ali em frente; ela nunca deixa
seu carro estacionado na rua. Se ela estiver, sem problema. Se não
estiver, vou perder um tempo que não tenho.
Porque não sei onde Malcolm está.
Talvez eu saia por uma hora, talvez por dez minutos. Talvez eu
dê um pulo no escritório para pegar alguma papelada. Vou ficar por
perto. Só para o caso de você precisar de mim.
Então viro à esquerda em direção à Chain Bridge Road e
recomeço o processo. Se virar à direita, hospital. Medicamentos,
cama, sono. Se for para a esquerda, cidade. Jornal, escândalo, filha.
Na minha mente há uma única pergunta à espreita: o que eu
mais quero?
Uma máquina calcularia as informações de entrada, de saída e
as consequências. Faria isso friamente, assim como um banco de
dados de computadores mede cada nota das provas das minhas
filhas, o peso ao nascer e os rendimentos dos pais. Um computador
trabalharia em uma série de zeros e uns e cuspiria um novo número,
um número diferente, um quociente. Seu produto seria invariável.
Também estou calculando. Estou contando a quantidade de
telefonemas para hospitais próximos e quantas transferências
seriam necessárias antes que a enfermeira certa atendesse com um
alegre “Ah, sim. Ela está aqui. O senhor é da família?”. Estou
imaginando de quantas formas Malcolm vai conseguir corromper
minha história e as mentiras que contará aos médicos antes de
garantir a eles que manterá meus pertences em segurança. Tenho
certeza de que ele usará tudo que puder para me desacreditar.
Então viro à esquerda. Para a cidade. Para Bonita Hamilton, Jay
Jackson e um fim para tudo isso.
Trinta minutos depois estou no cruzamento da Thirteenth Street
com a K Street, a tempo de ver um grupo de pessoas saindo da
igreja metodista a meio quarteirão de onde parei. Estão saindo
porque não estão trabalhando. Hoje é domingo, dia de descanso em
Washington. Tempo de rezar e comer tortas.
O distrito de Colúmbia não tem a extensão territorial nem a
população de Nova York, então conto com o anonimato enquanto
espero e também com a possibilidade de Malcolm estar entrando
em contato com nossos vizinhos e hospitais em vez de redações de
jornais. Mantendo o Acura ligado e o calor no máximo, fico
esperando, buscando sinais de vida na entrada do número 1.301 da
K Street.
Não há nenhum. Não na primeira meia hora nem na segunda.
Nem na terceira.
Mas me mantive ocupada. Fiquei brincando com o computador
de Malcolm.
SESSENTA E NOVE

À
s onze horas desliguei o motor do Acura, e um velho cobertor
que peguei no porta-malas é a única coisa entre mim e o ar
frio que penetrou no carro. Mas não é isso que gela meu
sangue. Acabo de ler a primeira linha do e-mail de Malcolm enviado
no fim de setembro.

Maddie,

Que bom saber que o projeto foi aprovado. Estou esperando a compilação de uma
lista completa de indesejáveis. Vou mandar quando estiver pronta. Só para você
saber, tenho cinco equipes trabalhando nos exames escolares que vão servir de
chamariz: história, matemática, física, química e biologia. Devemos estar prontos
para começar na data da prova do fim de outubro.

Malc

Monstro.
Seu sistema de arquivos tem mais camadas do que a porcaria
do Pentágono, e a primeira dezena de documentos de Word que
abro não passa de burocracia, memorandos e relatórios. Até que
chego à pasta Exames. Esses são novos. Abro três e reconheço
suas capas porque faz anos que eu os venho distribuindo
mensalmente, logo antes de ler as regras de aplicação para os
alunos.
Vocês têm uma hora.
Não podem falar com nenhum outro aluno.
Não podem sair da sala por nenhum motivo.
Quando acabar o tempo, deixem todos os materiais de escrita
sobre a mesa. Se não fizerem isso, dez pontos serão
automaticamente deduzidos de sua nota.
Mais adiante, quando chego ao cerne dos exames mensais, tudo
está diferente. As perguntas de matemática exigem o conhecimento
de pelo menos cinco exemplos de provas falsas do último teorema
de Fermat; os exames de química querem informações profundas
sobre as pesquisas vencedoras do Prêmio Nobel de um século
atrás. Eu não conseguiria acertar o de anatomia e o de biologia nem
se tivesse um ano para estudar. É matéria de doutorado, e foi dado
para crianças.
Ninguém conseguiria ser aprovado, penso. Ninguém.
Mantenho os documentos de Word abertos e começo a examinar
as planilhas. Meus dedos estão gelados, por isso às vezes não
causam reação no touchpad. Em uma pasta dentro de uma pasta
dentro de uma pasta, encontro uma planilha de Excel chamada
PopEspec, uma abreviatura que não faz muito o estilo de Malcolm,
mas então me lembro de uma expressão que Bonita Hamilton usou:
Populações Especiais.
Uma lista de nomes, endereços e notas Q preenchem a pequena
tela. Esses números são altíssimos, são Qs que qualquer pessoa
adoraria ter.
Cada um deles tem um código de cor, inclusive o de Freddie.
Segundo as planilhas, as preferências de Malcolm são claras.
Ele odeia imigrantes e minorias; católicos, muçulmanos e judeus;
qualquer pessoa com rendimentos de classe média ou abaixo; todo
o pessoal LGBTQIA+; e umas 37 variações de seres humanos com
capacidades diferentes.
Mas não parece ter nenhum sentimento negativo com relação a
Madeleine Sinclair.
Examino mais um grupo de e-mails. Madeleine se tornou Maddie
em algum momento do ano passado. E no último verão Maddie
virou “Querida”.
Filho da puta.
Não é difícil entender o motivo. Madeleine mede mais de 1,80
metro com salto alto, é loura e linda. E, segundo a biografia na
Wikipédia que li há algumas semanas, ela tem 36 anos. Não é o que
eu chamaria de mocinha, mas tem oito a menos do que eu – oito
anos de pele e ovários melhores. Um calor febril me atravessa, um
lembrete de que, desde ontem, Madeleine Sinclair tem mais do que
entranhas melhores. Ela ainda funciona. Ainda está nos trinques.
Uma fornalha se acende dentro de mim e volto aos e-mails de
Malcolm, procurando provas do que sei que ele fez.
Paro quando vejo o e-mail de acartmill@genics.com.
Provavelmente não é nada. Só alguma besteira burocrática do
combo Família Mais Apta – Instituto Genics – Departamento de
Educação. Passo as costas da mão na testa enxugando uma gota
de suor e abro o e-mail.
Quase nada é burocracia.

Malc,

Ela está no Kansas. Apareceu ontem. Verei o que posso fazer, e você não deve ter
nenhum problema com o divórcio.

Abraços,
A

Escroto. Não sei de qual dos dois estou falando e não faz
diferença. Mas entendo. Compreendo um homem que não me quer
como esposa. Compreendo Malcolm me trocando por Madeleine
Sinclair. Mas os números... os números que leio na tabela PopEspec
e em todos os outros arquivos são obras de uma mente doentia, de
um monstro.
Você deveria saber, Elena.
SETENTA

ANTES

D
uas semanas depois do início do novo sistema de cartões de
identificação, eu estava sentada no refeitório com o grupo de
sempre: Malcolm, Roy, Candice e os outros. Ainda éramos
párias, mas párias com prioridade no almoço, descontos na livraria e
ingressos grátis para jogos de futebol. Não dávamos a mínima para
futebol, mas ainda assim a gente se apinhava em qualquer carro
que conseguíssemos pegar emprestado com os pais e mostrava os
cartões dourados no portão nas tardes de sexta-feira. Valia o tédio,
só para ver a cara do pessoal que precisava ficar na fila dos cartões
brancos e gastar o dinheiro da mesada.
Eu tinha parado de comprar as últimas saladas disponíveis. De
qualquer modo, Margie Miller nunca conseguia pegar o lanche que
queria, e para mim isso já era suficiente.
– Lá vem ela – comentou Malcolm. – A pequena Srta.
Desmiolada.
Ele disse isso em um sussurro teatral, suficientemente alto para
que a maioria das pessoas nas mesas perto da nossa pudesse
ouvir. Margie ficou vermelha, se recuperou e empurrou a cadeira.
Estava vindo na nossa direção.
Nesse momento senti pena dela, não sei por quê. Talvez por ter
sido a garota excluída durante a maior parte de minha carreira
estudantil; talvez por achar que Malcolm não precisava ser tão
obviamente sacana. Tirando o fato de agir como se eu não existisse,
Margie Miller não tinha sido realmente má comigo.
– Vi seu nome no jornal, Elena – falou ela.
Gelei. A matéria de jornal tinha sido ideia de Malcolm. Ele
dissera algo sobre dar o devido crédito, e eu deixei a repórter me
entrevistar, respondendo às perguntas com monossílabos, sem
querer que todos soubessem que fora minha a ideia dos cartões
baseados em mérito, de filas separadas para o almoço e de
ingressos grátis para os jogos de sexta-feira. Quase pedi desculpas
a Margie na frente de uma centena de pares de olhos e ouvidos.
Ela foi mais rápida do que eu.
– Olha o que eu acho da sua ideia idiota.
Foi quando de fato gelei, apesar de meu rosto estar vermelho de
tão sem graça. Margie estivera tomando goles delicados de suco em
uma garrafa. Agora tinha parado de beber; estava derramando o
líquido em mim. Meu cabelo absorveu a maior parte, mas não
impediu que o líquido pegajoso escorresse pela blusa branca, me
manchando da cabeça aos pés.
– Pronto. Agora você parece um picolé de creme, seu chucrute
fedorento. – Ela saiu pisando duro até sua mesa e o refeitório
explodiu em gargalhadas ao meu redor.
Já tinham me xingado antes. No ensino fundamental, eu era
Quatro-Olhos. Mais tarde, virei a Srta. Sabe-Tudo. Na aula de
educação física, era Fischer Perna de Pau. Todos os apelidos eram
baseados em pelo menos uma característica. Mas Chucrute? Eu
nunca tinha ouvido esse, e magoou, principalmente porque não era
verdade. Meus pais eram americanos como eu, não alemães.
No banheiro do corredor, troquei a blusa manchada de amarelo
por uma camiseta de ginástica e pensei em como odiava Margie
Miller e todos os seus amigos idiotas e metidos a besta. Decidi que
não queria ser como eles. Nunca seria como eles.
Margie Miller acabou recebendo três dias de suspensão, que
passou em um compartimento da biblioteca pintando as unhas. Eu
acabei com um apelido novo do qual não me livrei até o último ano,
quando meus pais me transferiram para uma escola particular que
ficava a uma hora de carro. A situação chegou a um ponto em que
parei de comprar qualquer coisa no refeitório, mesmo que fosse
para evitar a notoriedade da fila de cartões dourados e verdes.
Inventava desculpas para não ir aos jogos de futebol e aos bailes
nem a qualquer lugar em que eu ficasse em destaque.
Nada disso adiantou. Margie parecia estar sempre nos vestiários
e nos corredores. Se eu tomasse banho depois da aula de
educação física, fechando os olhos com força por causa da espuma,
alguém desligava a água quente, rindo quando eu tentava
atabalhoadamente encontrar o registro ou sair correndo do cubículo
coberta de espuma. As rãs, as minhocas e os caranguejos do
laboratório de biologia misteriosamente apareciam no meu saco de
lanche. Em uma manhã de segunda-feira, abri meu armário e
encontrei uma suástica pintada com spray na parte interna da porta.
– São pegadinhas idiotas – dizia Malcolm depois de cada
ocorrido. – Ignore.
Eu tentava, mas não conseguia.
– São pessoas idiotas – eu respondia.
Margie balançava as unhas pintadas na minha direção lá de sua
mesa com seus amigos bonitos, ricos e atléticos.
Então falei uma coisa sem pensar, uma coisa da qual acabaria
me arrependendo:
– Não seria ótimo se todas as pessoas que odiamos tivessem
que carregar suas notas ruins pelo resto da vida?
Malcolm concordou. E sorriu.
SETENTA E UM

N
o início da tarde, depois de outro grupo sair da igreja
metodista para a Pâtisserie Paul, percebo que não comi
nada desde sexta-feira. Estou vivendo à base de água com
gás desde que Malcolm me trouxe para casa. O fato é que até
mesmo a ideia de beber água me provoca uma nova onda de
náusea, mas deve ter wi-fi na pâtisserie. E felizes frequentadores de
igreja mastigando tortas enquanto olham os celulares, o tipo de
pessoa que lê histórias sobre bons samaritanos.
Se eu estivesse vestindo algo além de um pijama manchado de
suor, poderia me aventurar. Mas não estou. Olho no retrovisor e
percebo quanto estou horrível. Além disso, não tenho sapatos nem
dinheiro. Não tenho nada de que preciso, e existem muito poucos
bons samaritanos por aí. A mulher correndo à minha direita, com o
rabo de cavalo balançando como um pêndulo, está ouvindo música,
bufando enquanto percorre mais um quilômetro. Um casal que
passa por mim hesita antes de empurrar as crianças rapidamente
para longe, a esposa me olhando duas vezes por cima do ombro.
Famílias passam de bicicleta, preguiçosas, puxando bebês em
carrinhos adaptados, e as pessoas passeando com cachorros no
parque se congregam em um canto, observando as brincadeiras de
seus bichos e pegando os resíduos deixados por eles, e apertam o
passo depois de dar uma boa olhada em mim.
Não estão acostumados a ver o imperfeito, pelo menos não aqui,
não mais.
Aprendi a odiar números, mas o que mais quero agora é um
número de telefone. O wi-fi público no lugar onde estou parada deve
ser fraco, não tem nem uma barrinha, por isso dirijo o Acura por
alguns quarteirões, paro por tempo suficiente para encontrar a
página de informações confidenciais do Post, baixar o aplicativo
Signal e mandar uma mensagem sem esperanças perguntando por
Bonita Hamilton ou Jay Jackson. Depois desligo o wi-fi do
computador de Malcolm antes que ele possa me rastrear e volto à K
Street.
E espero, enrolada no banco de trás, com o cobertor que
protegeu o porta-malas contra plantas, terra e adubo me envolvendo
como uma mortalha.
Sonho com todo tipo de coisas. Freddie bebê, menina e mulher.
Garotas com saias azuis e blusas brancas, sem saber o que odeiam
ou por quê. Letras Q com tentáculos compridos e enrolados se
estendendo para capturar mais uma vítima. Sonho com o presente,
o futuro e o passado, imagens emboladas de amor, ódio, paz e
guerra. Sonho com meu corpo quieto, descansado. Sou um objeto
em descanso.
Não sei quanto tempo esperei. Não sei se dormi mesmo ou se
sonhei que dormi e, quando um punho raivoso na janela acima de
minha cabeça bate outra vez, eu me encolho, tentando ficar menor,
tentando ficar invisível.
Uma voz, filtrada e abafada, chama meu nome uma vez, depois
fala devagar:
– Sou Bonita Hamilton. Você me chamou.
Vá embora.
A Voz de Mãe me suplanta. Até ela parece derrotada, mas
responde. Seus dedos encontram a borda da mortalha e ela me
desvela. Quando abro os olhos, um rosto emoldurado por duas
mãos protegendo-o do sol está encostado na janela.
SETENTA E DOIS

ospital.
Ouço a palavra “hospital”. Parece um lugar para onde
eu gostaria de ir.
Mas primeiro tenho um trabalho a fazer.
Bonita está com o celular em uma das mãos e meu pulso na
outra, a pressão forte de dois dedos nas minhas veias. Ouço
palavras, perguntas, uma voz feminina contando. Depois outra voz,
talvez a minha, dizendo notebook, senha, caneta, chamando
Freddie. Alguém me pergunta quem é o presidente. Acho que digo
Malcolm. Neste momento não consigo pensar em ninguém que
tenha tanto poder.
Estou em uma cama ou em um sofá, uma maciez em que quero
afundar e que gostaria de deixar me absorver. Meus membros estão
muito pesados, muito cansados e doloridos. Cada movimento, até
mesmo a menor torção do pescoço ou a flexão dos dedos quando
aponto para o notebook roubado, exige uma força sobre-humana.
Fecho os olhos por causa da luz. Fechar os olhos não deveria doer.
Alguém diz:
– Quatrocentas fotos. Meu Deus.
Alguém diz:
– Não posso acreditar nessa merda.
Alguém diz:
– Ligue para o escritório de Kansas City.
Uma mão pousa no meu rosto, fria e seca, até absorver um
pouco do calor que eu pareço estar expelindo.
– Querida? Ainda está ouvindo? Elena? Se pode me ouvir, sou
Bonita Hamilton e aquele ali na mesa é Jay Jackson. Pedi ajuda e
você vai ficar bem. Vai ficar tudo bem.
– Obrigada – digo em tom arrastado.
– Não, querida. Eu é que agradeço.
E então todos os alguéns, em coro, dizem:
– Cadê a porcaria da ambulância?
A Voz de Mãe diz que agora posso dormir.
SETENTA E TRÊS

M
inha mãe está aqui. E outras figuras. Uma luz forte,
ofuscante em sua brancura, aponta para meu olho direito e
depois para o esquerdo. Sinto, sem sentir, essa brancura.
Não é mais sólida do que a agulha sob a pele da minha mão direita
ou o saco de líquido transparente pendurado na lateral da cama.
Luz, aço e líquido se fundiram em uma série de texturas, todos
tentando me manter viva.
– Feliz aniversário, querida.
É minha mãe. Só pode ser ela, disso eu sei. Parece que as mães
estão sempre presentes. As primeiras e as últimas pessoas que a
gente chama, do início até o fim. Ela baixa a voz, pensando que eu
não vou perceber:
– Quanto tempo nós temos?
Outra voz:
– Quanto vocês quiserem.
E então uma porta se fecha.
Feliz aniversário. Já passei por 44, mas esses são os que
recordo:
Oma, ativa em seus 60 anos, me segurando no colo, me
ajudando a soprar as quatro velas em um bolo de chocolate.
Meu pai me levantando bem alto e me colocando em um cavalo
com o dobro da minha altura, aos 8 anos.
Joe me mandando um buquê de cravos no meu primeiro ano na
faculdade. O bilhete dizia: Desculpe, não tinha dinheiro para rosas.
E, mais recentemente, Anne, Freddie e Malcolm entrando
subitamente em meu quarto na manhã dos meus 40 anos com uma
bandeja de café, frutas cortadas em pedaços, parecendo peças de
um jogo de Tetris, e uma única rosa do jardim em um vaso pequeno.
Três vozes, duas agudas e uma grave, me acordaram cantando. Um
bom jeito de começar o dia. Mas bons começos precedem uma
queda.
Mais tarde naquele dia, na sala de aula, vi algumas meninas
rindo e olhando fotos nos celulares. Não fazia tantos anos eu era
uma delas, roubando o batom da minha mãe quando achava que
ela não ia notar, passando bilhetinhos sobre o novo garoto da
escola: Você gosta dele? Você acha que ele gosta de mim? A
tecnologia mudou, mas meninas são meninas, jovens mulheres,
com a vida toda diante de si, futuros não planejados e incertos. O
que matou meu barato de aniversário foi aquele velho filho da puta
chamado tempo.
Sei que o meu está acabando.
A Voz de Mãe sussurra uma palavra:
Espere.
SETENTA E QUATRO

The Washington Post, segunda-feira, 11 de


novembro

PROFESSORA DE ESCOLA PRATA DENUNCIA PROGRAMA


SECRETO DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
por Bonita Hamilton

No que logo pode se revelar como o escândalo da


década, a Dra. Elena Fischer Fairchild, ex-professora de
biologia da Escola Prata Davenport, forneceu provas até
então impossíveis de serem obtidas sobre as atuais
práticas do Departamento de Educação. Fotografias,
gravações de áudio e outros documentos apontam para
uma [...]
A Dra. Fairchild, esposa do subsecretário Malcolm
Fairchild, foi levada ao Hospital Sibley na tarde de ontem e
permanece em estado crítico. Nenhum comentário foi feito
por sua família ou pelos médicos que a atenderam, mas
[...]
CNN, segunda-feira, 11 de novembro, 13h04

NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA: SECRETÁRIA DE


EDUCAÇÃO MADELEINE SINCLAIR REAGE AO ULTRAJE

“Eu não fazia ideia”, disse a secretária Sinclair na saída de


seu escritório hoje cedo. “Esta é uma facção que
lamentavelmente passou despercebida e, em nome deste
departamento, quero estender minha gratidão à Dra.
Fairchild por trazer isto à luz.” Sinclair, com seu terninho
azul característico, negou qualquer conhecimento do [...]

Twitter, segunda-feira, 11 de novembro,


14h53

@Sec_Ed_Sinclair Você roubou meus filhos e espero que vá para o inferno.


#TrazElesDeVolta #ChegaDeAmarelo

The New York Times, terça-feira, 12 de


novembro

ÚLTIMA DAS 46 ESCOLAS FEDERAIS INVADIDA

Enquanto a hashtag #TrazElesDeVolta, iniciada por uma


atriz e ativista, continua a crescer na esfera das redes
sociais, uma equipe de emergência de autoridades
federais anunciou a remoção de mais de cem menores de
um internato estadual em Winfield, Kansas. O prédio do
fim do século XIX e seu terreno já tinham sido usados
como sede do Hospício Estadual do Kansas para
Educação de Jovens Idiotas e Imbecis antes de mudar o
nome para Escola de Treinamento Estadual, em 1930. A
partir de 1998, o local passou a ser usado como instituição
correcional até ser condenado. Roy Tolliver, que
comandou a operação em Winfield, fez uma declaração
atestando as condições abaixo do padrão. Judith Green e
sua colega do ensino médio, Sabrina Fox, deram
entrevistas. “Não era uma escola”, diz Judith. “Talvez
tivéssemos uma ou duas horas de aula de manhã. O resto
do tempo ficávamos nas plantações de milho.” Sabrina,
que vinha cuidando de Frederica Fairchild, filha do
subsecretário de Educação Malcolm Fairchild, desde sua
chegada na semana passada, acrescenta: “Essa
menininha estava colhendo milho. Dá para acreditar?
Colhendo milho. Como se não tivéssemos máquinas que
fizessem isso.” Sabrina mostra o pulso da menina. “Se
você não colhe suficientemente rápido, eles te castigam.
Eles têm guardas.” [...]

Forbes on-line, terça-feira, 12 de


novembro, 10h

Porta-vozes do Instituto Genics e de sua subsidiária


Saúde da Mulher, grandes empresas com contratos
federais, confirmam que as duas companhias buscarão
refúgio no Capítulo 11 do Código de Falências. No início
deste ano, o Genics adquiriu a empresa de serviços pré-
natais no que agora parece um esforço calculado para
consolidar a testagem genética e os serviços de aborto
segundo a Campanha Família Mais Apta, um movimento
popular que muitos especialistas comparam agora com a
moda da eugenia do início do século XX. Petra Peller,
diretora e CEO do Instituto Genics, não foi encontrada
para prestar esclarecimentos, mas uma fonte próxima a
ela diz [...]

Página de Sarah Green no Facebook,


terça-feira, 12 de novembro, 17h16

Estou recebendo ameaças de morte e


mensagens de ódio. Não tenho mais nenhuma
ligação com a Campanha Família Mais Apta. Este
será meu último post. Obrigada por trazerem minha
filha para casa.

The Washington Post, quarta-feira, 13 de


novembro

FAMÍLIAS REUNIDAS – MAS A QUE CUSTO?


por Bonita Hamilton

Anne Fairchild, de 16 anos, deveria estar


fazendo planos para o baile de volta às aulas neste
sábado. Em vez disso, está de vigília em um quarto
de hospital enquanto sua mãe se encontra em
estado crítico. “Eu sabia que alguma coisa estava
errada”, diz Anne, enxugando uma lágrima. “Por isso
instalei um rastreador de senha no notebook do meu
pai. Quando ele descobriu, me mandou para a casa
de Petra Peller. Eu só queria trazer minha mãe e
minha irmã de volta.” No quarto também está a
bisavó de Anne, Maria Fischer. “Espero que nada
desse tipo aconteça de novo”, declara Fischer. “Mas,
claro, foi isso que dissemos da última vez.” Durante
essa reunião familiar agridoce, Maria Fischer, que
emigrou da Alemanha com cerca de 20 anos e ainda
trabalha como artista plástica, explica [...]

CNN, quarta-feira, 13 de novembro, 8h22

NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA: SECRETÁRIA DE


EDUCAÇÃO PEDE DEMISSÃO

Twitter, quarta-feira, 13 de novembro, 8h23

Ding, dong, a escrota se demitiu! #TrazElesDeVolta


#ChegaDeAmarelo #NuncaMais
SETENTA E CINCO

T
ive meus quinze minutos de fama e dormi durante todos eles.
Papai lê para mim as manchetes dos últimos três dias,
enfatizando os pontos mais importantes, enquanto mamãe
tenta enfiar minúsculos goles d’água no meu corpo. Não sei se isso
é definhar, mas é como me sinto: seca, enfraquecida, rachada.
Oma está balançando Freddie no colo, no sofá pequeno perto da
janela, cantando em alemão. Freddie tentou se soltar uma dúzia de
vezes, mas Oma continua a retê-la. Está assim desde que meus
pais chegaram com as duas meninas hoje de manhã.
– Pode deixá-la me abraçar.
Freddie quase mergulha em mim, como fazia quando era
pequena. Anne tenta mantê-la longe da cama e não consegue. Eu
costumava afastá-las quando elas ficavam grudentas demais,
carentes demais, quando eu tinha que trabalhar e minha paciência
havia se esgotado depois de um dia inteiro sendo mãe. Não que eu
não as amasse, mas só conseguia amar até certo ponto e durante
certo tempo. Agora queria ser capaz de amar para sempre.
Não afasto Freddie. Fico ali segurando e balançando minha filha,
alisando seu cabelo com mãos trêmulas.
– Desculpe, querida – digo, mas isso não parece suficiente para
compensar a semana anterior ou os últimos anos.
– Você está gripada, mãe?
– Talvez só com um pouquinho de febre – minto.
Meu corpo é uma fornalha. Quando ele se cansa de ser fornalha,
vira uma geladeira.
Eu gostaria de ter mais tempo. Gostaria de um corpo que
pudesse abraçar de volta e sair deste quarto. Gostaria de ter fugido
de Malcolm Fairchild aos gritos vinte anos atrás e me casado com
um cara comum chamado Joe. Gostaria de todas essas coisas, mas
minha cota com o gênio da lâmpada tinha se esgotado.
Além disso, sem Malcolm não existiriam Anne e Freddie, e não
quero isso.
Freddie acaricia meu cabelo com sua mãozinha.
– Você vai melhorar logo, não vai?
– Claro, meu bem. Claro que vou.
– Quando eu crescer, vou ser médica – sussurra ela em meu
ouvido. – E vou fazer todo mundo ser perfeito.
Sorrio, mas é um sorriso apertado, forçado e seco.
– Você pode ser tudo que quiser.
– Promete? – pergunta Freddie, ainda perto.
– Eu juro.
– De verdade?
– Juro, Frederica.
Minha mãe olha para mim e depois para a enfermeira que
acabou de entrar. Pede que a moça enxugue meu rosto e passe
uma substância oleosa nos meus lábios, para impedi-los de rachar.
Ela faz uma pergunta silenciosa para a mulher, que murmura algo
de volta. Parece ser “Logo”.
– Quero ir para casa – digo.
A enfermeira assente, entendendo.
– Verei o que posso fazer. – Depois, para Freddie: – Que tal a
gente ir tomar um chocolate quente? E digo dos bons, com um
monte de marshmallows.
Freddie a acompanha para fora do quarto, a mãozinha
segurando a da enfermeira. Essa mulher de branco deve ser uma
espécie de gênio.
Nunca pensei muito no que minhas meninas fariam sem mim,
onde morariam, quem pegaria o bastão materno se eu tivesse que
passá-lo adiante. Meu testamento e o de Malcolm citam meus pais
como guardiões, mas só no caso remoto de nós dois morrermos ao
mesmo tempo. Malcolm, pelo que sei, não vai morrer, mas imagino
que não poderá levar crianças para onde ele vai. Portanto, meus
pais. Está com você, mãe.
Mesmo assim, é uma nova realidade. Os olhos da minha mãe
transmitem isso.
Papai assina os papéis enquanto dois auxiliares de enfermagem
colocam meu corpo em uma maca, minha cama temporária até eu
ocupar a que está na casa dos meus pais e, mais tarde, uma cama
permanente. Meu corpo parece leve nos braços deles. A camisola
escorrega, revelando a pele esticada sobre os ossos. Acho que
ouço minha mãe ofegar, horrorizada.
Enquanto continuo nesse estado lúcido, várias pessoas me
visitam. Meu médico. Uma assistente social. O representante da
administração hospitalar. Papéis são assinados e instruções são
recitadas enquanto outra enfermeira me desconecta dos monitores.
Estou me sentindo nua sem todo aquele plástico. Não há discussão
sobre quem vai em qual carro; papai anuncia que vai levar Oma e
Freddie para casa enquanto minha mãe e Anne seguem comigo na
ambulância. Desta vez sem sirenes – não são necessárias. Sirenes
são para situações que ainda têm solução.
Um último documento precisa da minha assinatura e eu a
rabisco como se estivesse assinando um cheque ou o recibo de
uma entrega de compras.
Esse negócio de morrer é mesmo sem graça e monótono.
SETENTA E SEIS

DEPOIS

F
oram-se as luzes fortes de hospital e os bipes constantes das
máquinas que me mantinham viva. No lugar deles, um teto
branco e o farfalhar de folhas do lado de fora da minha janela
me fazem companhia enquanto eu sonho.
Não dá para saber o que vai acontecer nos próximos dias,
semanas e meses, mas posso especular. Minha mente ainda está
trabalhando muito, ainda que meu corpo tenha começado a se
desligar.
Madeleine Sinclair, condenada por apropriação indébita de
verbas, perjúrio, fraude e todos os outros tipos de sentença de
morte política, trocará seu terninho azul sob medida por um novo
visual: cinza institucional, que combina perfeitamente com o que
Malcolm estará usando quando meu pai levar as meninas para vê-lo
nos dias de visita. Os acionistas do Instituto Genics terão em mãos
papéis sem valor. E, segundo boatos, Petra Peller tentará sair do
país com o que sobrar dos cofres. Acho que será presa na fronteira.
O belo Alex Cartmill, condenado pelo tipo de crime para o qual
não existe desculpa, buscará a saída mais sensata: um suicídio
digno de um criminoso de guerra – provavelmente com um cano de
aço na boca. Ninguém vai se importar quando o bilhete que ele
deixar disser que só estava cumprindo ordens. Ele chega a telefonar
para meus pais dizendo que sente muito antes de engolir a arma.
Ouço papai xingando-o em alemão.
Martha Underwood, como outros iguais a ela, voltará a ver seu
filho, perdoada ao dizer que só estava fazendo o que lhe mandavam
fazer. O perdão será apenas oficial. Martha descobrirá isso nas idas
ao supermercado, quando sentirá os olhares de pais e ouvirá os
sussurros das mães. Em pouco tempo vai se mudar para outro
estado.
Acho que vai ser um bom Dia de Ação de Graças, e as semanas
que antecedem o Natal prometem ser ainda melhores. Meus pais
terão a casa cheia de novo, tanto com idosos quanto com jovens
precisando de cuidados. Quando o feriado chegar, eles terão uma
tonelada de coisas pelas quais agradecer. No seu décimo
aniversário, que por acaso cai no dia da demolição dos cinco
prédios anteriormente conhecidos como Escola Federal no 46 do
Kansas, Freddie vai comemorar usando sua fantasia de Mulher-
Maravilha durante uma semana inteira. Vai parar de tomar seus
remédios para ansiedade nessa mesma época e nada de horrível
vai acontecer. Anne vai conhecer um garoto, um bom garoto, que a
levará ao baile de inverno. Ela não perguntará qual é o número Q
dele, mas provavelmente concederá um beijo de língua. Os jornais
vão anunciar um aumento dos pedidos de divórcio, e com muita
felicidade eu teria feito parte dessa estatística. Tudo será diferente,
e adoro que seja assim.
Adoro que Lissa e Ruby Jo voltarão a dar aulas em um tipo
diferente de escola, que insistirei para que não batizem de
Academia Fairchild, e sim de Escola Nova. É melhor optar por algo
simples, direi a elas, mesmo se tiver que condicionar as verbas a
isso e deixar claro em termos jurídicos.
As hashtags #NuncaMais e #ChegaDeAmarelo farão o que todas
as hashtags fazem: ficarão na moda durante um tempo, depois
sairão da moda e serão substituídas por outras hashtags mais
oportunas. Anne, no entanto, as manterá em suas redes sociais. Ela
está decidida a cursar jornalismo no ano que vem, e Bonita Hamilton
deve lhe oferecer um estágio. Talvez Anne consiga ingressar na
Universidade Columbia. A não ser que escolha o trabalho de hacker
e a criptografia. Quem sabe?
E Oma, minha adorável Oma, vai continuar pintando. Pode
mudar de cercas para portas, mas ainda serão coisas estranhas,
abstratas, que perguntam mais do que respondem.
SETENTA E SETE

M
eus pais mantêm uma rotina constante subindo e descendo
a escada, verificando minha saúde com aparelhos de
pressão e termômetros, me trazendo cobertores ou água
gelada, dependendo do meu estado. Certa tarde, Oma entra.
– Você não tem dormido. – Ela arruma as cobertas que joguei
longe, puxando-as até meu queixo e as prendendo entre o colchão e
o estrado de molas. – Sentiu frio de novo, Leni?
Confirmo. Papai trouxe aquecedores portáteis a óleo e instalou
um de cada lado da cama. Ele está em forma para um homem de 65
anos, mas seus ombros não ficam eretos por conta própria. Quando
se distrai, eles se curvam para baixo em dois arcos tristes. Ele não
percebe que eu noto, mas noto.
Oma se senta ao meu lado na cama e lê os cartões que
chegaram hoje pelo correio.
– Eu não sabia que existiam tantas pessoas no mundo, Leni.
Quando ela chega a um cartão de Ruby Jo, peço para ela ler de
novo. Diz alguma coisa sobre a mulher mais incrível de todos os
tempos. Engraçado, neste momento não me sinto tão incrível.
Então Oma chega ao ponto:
– Você lembra quando bati em você? Quando você estava no
ensino médio?
– Muito pouco – minto.
– Nunca me perdoei por causa daquilo. – Sua voz embarga. –
Foi cruel.
Pego sua mão livre e ela aperta a minha gentilmente. E continua:
– Eu fui cruel, mas o ponto não é esse. Eu bati em você porque
naquele dia, quando você chegou em casa e contou sobre sua
amiga da escola, a garota irlandesa de família pobre, não vi você.
Eu me vi.
– Realmente não lembro, Oma.
Lembro, sim.
Ela dá um tapinha na minha mão e segura o copo d’água junto
dos meus lábios. Depois de dois goles, eu me deito de volta,
exausta com o esforço. Acho que ela fica comigo enquanto durmo;
não tenho certeza, mas me ouço dizendo que a perdoo. A
reprimenda de Oma pode ter sido cruel, mas o que eu fiz e disse
naquele dia foi pior.
Enquanto estou apagada, tenho 17 anos de novo. Tomei banho
para tirar o suor de três partidas de vôlei, penteei o cabelo e ocupei
meu lugar de sempre nos bancos do vestiário. Estou pensando em
Malcolm e no baile de volta às aulas, na cor de esmalte que vou
escolher, se vou usar sandálias prateadas de tirinhas ou sapatos
pretos fechados na próxima noite de sábado. Becky e Nicole estão
implicando com Susan, querem saber se ela pretende transar, se
Billy Baxter ou qualquer outro cara vai finalmente chegar lá.
Outra tarde de quarta-feira, outro papo furado depois da aula de
educação física antes de irmos para as aulas de biologia, inglês e
trigonometria.
É a quarta-feira em que Mary Ripley tromba em mim.
Não quero estar aqui, mas estou. Preciso estar.
Implicamos com Mary de um jeito diferente de como
implicávamos com Susan. Susan era amiga; nossas palavras a
faziam rir e nós ríamos com ela. Porém, Mary... Esfolávamos Mary,
escavando em busca do osso, do tendão e do nervo, encontrando
os pontos sensíveis que gritariam de dor quando os tocássemos
com nossas línguas idiotas de adolescentes. Fazíamos isso porque
podíamos, porque era extremamente engraçado, porque Mary não
merecia que pensássemos melhor. Ou sequer que pensássemos.
Nada acontece quando Mary tromba em mim (Você que trombou
nela, El), nada mais catastrófico do que algumas páginas
amassadas das anotações de geometria que caem em um dos
bancos, um batom rolando pelo chão até que a inércia o obriga a
parar em algum lugar no meio do vestiário. É uma trombada. Um
acidente. Não é a Coreia do Norte decidindo lançar um ataque
nuclear contra a vizinha do Sul.
Mesmo assim eu abro a boca.
A linguagem faz pegadinhas com a gente. As palavras não
significam o que achamos que elas significam. Um “adoro você” é a
resposta genérica para a amiga que lhe empresta suas sandálias
vermelhas; um “odeio você” funciona igualmente bem quando ela
tira dez na prova final de física sem ter estudado. Recorremos a
extremos para dizer algo simples.
Estou no chão do vestiário, pegando o conteúdo que caiu da
bolsa e esfregando o cotovelo que bateu na beirada do banco. Olho
para Mary Ripley, que balbucia um pedido de desculpas débil e me
oferece a mão para me ajudar. Dou um tapa na mão dela e falo:
– Você é idiota demais para viver.
Pronto. Lembrei.
SETENTA E OITO

T
alvez seja noite. Talvez seja dia. Posso estar acordada ou
dormindo. Abrir os olhos é o movimento mais difícil que já fiz;
eles querem continuar fechados. Exigem escuridão.
Freddie está aqui. Posso sentir o cheiro de seu sabonete, de seu
creme dental sabor chiclete de hortelã e do xampu Chega de
Lágrimas com que lavo seu cabelo – se bem que não faço isso há
algum tempo. Então talvez seja de manhã. Quero pedir que ela faça
um desenho para mim, que ocupe meu antigo ateliê, mas minha
boca parece estar costurada. Sinto a língua se mexer, mas os sons
das palavras encontram uma barreira e permanecem trancados.
Presos.
Uma voz calma, familiar, toma o lugar da dela, uma voz que não
escuto há vinte anos:
– Li os jornais e peguei um avião ontem à noite – comenta a voz
familiar.
A princípio suas palavras estão distantes, depois mais próximas
quando uma cadeira é arrastada e a mão dele envolve a minha.
– Agora tenho um avião e um brevê, El. Que tal se a gente for
dar uma volta?
Claro, penso. Para o alto e avante. Então Joe trocou os carros
pelos aviões. Ele sempre foi bom com máquinas, mas creio que não
poderá consertar a que está deitada na cama. Esta teve o que
chamamos de perda total.
Depois vem mamãe, seguida por papai e Oma. Anne, que esteve
comigo a noite toda, se espreme para abrir espaço, e minha mãe se
senta na beirada da cama estreita. Ela segura minha outra mão e dá
as costas para mim, como se isso bastasse para me enganar, me
fazer pensar que ela não está chorando.
– Elena – diz ela.
A mão que segura a minha está fria, mas o contraste não dura
mais do que um instante. Logo meu calor se transfere para ela. Há
uma lei sobre isso, sobre a energia não se dissipar, sendo apenas
transferida de um corpo para outro. Na escuridão desse suor
infernal, imagino alguma parte minha indo embora, movendo-se,
mudando de forma.
Vozes falam ao redor e acima de mim:
Ela está...?
Será que eles podem...?
O médico fez...?
Quanto tempo vai...?
Fecho os olhos.
Uma porta se abre. Na verdade, duas portas. Uma está no meu
quarto. A outra, a que vejo mas não escuto, leva a outro lugar. Para
além dela há pinturas.
Nos meus sonhos, do outro lado da porta aberta estou
ensinando artes no ensino médio, e não biologia. Sou casada com
um homem que adora quando uso renda vermelha na cama, tanto
quanto ama todo o resto de mim. Estou empurrando balanços em
parquinhos e permitindo que as crianças faltem à escola em dias
ensolarados – danem-se as regras. Alguém como Ruby Jo diria que
estou mais feliz do que pinto no lixo.
A enfermeira coloca alguma coisa no meu braço, um balão que
infla. Penso no Pegador de Crianças daquele filme antigo, o que tem
balões bonitos e o sorriso doce demais.
Minha enfermeira diz coisas que parecem “choque” e
“imensurável”. E há outro som, um coro de choros.
Mas eu não choro. Quando meus olhos se abrem de novo, há
aquela porta, escancarando-se em boas-vindas. Em cinco passos
estou lá. Minha pulsação para de correr feito louca e o calor passa;
estou em um lugar fresco e calmo. Olho para trás uma vez antes
que a porta se feche e vejo o rosto de todos eles. Vejo meus pais
levando as meninas para me visitar nos domingos, Oma ensinando
Freddie a misturar cores e Joe falando baixinho com minhas filhas,
prometendo um passeio de avião assim que puder – se Freddie
concordar. Ela diz que não tem medo. Freddie e os filhos gêmeos de
Joe parecem irmãos, mesmo não sendo. Anne mudou de ideia,
resolveu fazer carreira no magistério em vez de no jornalismo, mas
vai mudar de ideia de novo pelo menos cinco vezes.
Também existem outros rostos, nítidos a princípio, que depois se
dissolvem rapidamente e somem. Um a um, os fantasmas de Mary
Ripley, Rosaria Delgado e daquele velho trapaceiro, o Pegador de
Crianças, vão se afastando até desaparecer.
Meu último pensamento é a letra Q. Não significa quociente nem
questão.
Significa quietude, e isso me faz abrir um sorriso.
NOTA DA AUTORA

E
ste livro é uma obra de ficção. Os personagens são
totalmente produto da minha imaginação. Já os
acontecimentos históricos mencionados são muito
verdadeiros.
Faz décadas que não assisto a uma aula de história, mas me
lembro do conteúdo. Sei dizer quem inventou o arame farpado e o
descaroçador de algodão, sei falar sobre o assassinato que foi o
estopim da Primeira Guerra Mundial e os detalhes do primeiro
debate presidencial televisionado nos Estados Unidos. Nenhum dos
meus livros didáticos incluiu uma palavra sobre o movimento
eugênico americano, a prática de esterilizar homens e mulheres à
força ou a dura realidade de instituições criadas pelo Estado para os
supostos débeis mentais (muitos dos quais eram crianças).
Se este romance perturbou você, eu alcancei meu objetivo.
Porque esses acontecimentos são perturbadores. Para uma
compreensão mais profunda de como os Estados Unidos chegaram
a rotular e maltratar dezenas de milhares de indivíduos, encorajo
você a pesquisar os arquivos sobre eugenia disponíveis na internet.
Para esclarecimentos sobre o sistema de escolas financiadas pelo
Estado, as escolas federais, recomendo enfaticamente o excelente
The State Boys Rebellion, de Michael D’Antonio, em inglês.
Ser patriota não significa fechar os olhos para os capítulos mais
sombrios da história do país; na verdade, é justamente o contrário.

CHRISTINA DALCHER
Outubro de 2019
AGRADECIMENTOS

D
e todas as páginas deste livro, esta é a mais importante.
Também é a mais difícil de escrever, porque não é fácil
encontrar as palavras certas para agradecer à legião de
pessoas que assumiram este projeto desde o conceito até sua
colocação nas prateleiras. É bem complicado para um escritor, por
isso convido você a inserir o máximo de superlativos e adjetivos que
puder junto de minhas expressões de gratidão.
Obrigada:
À extraordinária agente literária Laura Bedford, pelo apoio
constante, pela mão estendida e pelas palavras de encorajamento.
Laura, você é incrível.
À minha editora nos Estados Unidos, Cindy Hwang, que
gentilmente me disse que o livro podia ser melhor – e me ajudou a
melhorá-lo.
A Charlotte Mursell, minha editora do outro lado do oceano, por
seu entusiasmo ilimitado.
Às primeiras leitoras, parceiras de crítica e irmãs no choro,
Stephanie Hutton, Sophie van Llewyn e Kayla Pongrac. É um
privilégio chamar essas mulheres de amigas. Além disso, elas
arrasam no mundo da escrita.
Ao #TeamDarkness no Twitter (inclusive certo rato sacana
comedor de rosquinhas chamado Aeryn Rudel), por ter altas
expectativas e depois elevá-las ainda mais.
Aos divulgadores, designers gráficos, copidesques e todo mundo
que trabalha duro para fazer um livro acontecer.
A Michael D’Antonio, pela troca de mensagens tremendamente
útil e pelo compartilhamento de dados. Este livro não existiria se eu
não tivesse encontrado o excelente The State Boys Rebellion, de
autoria dele. Agradeça a ele adquirindo um exemplar.
E ao meu marido, Bruce Dalcher, que lê tudo com um olhar
afiado e responde honestamente. Todo mundo merece um
companheiro como ele. Eu espero merecer.
Sobre a autora

CHRISTINA DALCHER é linguista e professora universitária com


doutorado pela Universidade de Georgetown. Seus contos figuram
em mais de 100 publicações ao redor do mundo. Ganhadora de
diversos prêmios, já foi finalista do Bath Flash Award e indicada ao
Pushcart Prize. Ela mora em Norfolk, Virgínia, com o marido. Pela
Arqueiro, publicou também Vox.
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