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Lígia

Passada a tensão da chegada, Lígia começou a sentir, na espera, uma

estranha serenidade. Tinha a impressão de ter conseguido cumprir alguma

ordem entre o preparativo da ida ao médico e o resultado do advento. Um

suspiro profundo deixou emergir uma ansiedade doída que, descontroladamente,

percorreu seu corpo deixando-o atordoado, fazendo com que Lígia se lembrasse

das outras vezes, das tentativas inúteis, dos sofrimentos perdidos que

precederam, tantas vezes, à sua chegada àquela sala de espera... e, no entanto,

dentro de meia hora, o Dr. Diogo me mostrará a soma, diante de mim... o

cômputo realizado.

A recepcionista Laura, discreta e ausente, trouxe café e, num gesto

rotineiro, ajeitou as revistas e livros expostos na mesinha de centro. Ela não

sabe nada de mim... pensou Lígia, desviando seu olhar rapidamente para a sala,

para a sua harmônica composição exata, para o silêncio organizado que o espaço

instalava. O ambiente rigoroso, com poltronas de couro marrom, o mapa de

Paris e seus traços amarelos, azuis e vermelhos entrecruzando-se aludiam a

outro espaço que Lígia não conseguia identificar.

Ignorando o incômodo, Lígia ajeitou os cabelos, cruzou as pernas devagar

e dedicou-se a esperar, encarando um quadro e acariciando, absorta, o couro da

poltrona. Quem a olhasse, cuidadosamente, veria uma mulher inspecionando a

sala, o tapete simétrico, a televisão ligada baixinho, as janelas amplas


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devassadas pelo sol do fim da tarde. Mas a ansiedade, cada vez mais potente,

preenchia o vazio pelo tempo da espera. Se eu fechar os olhos... de novo, aquilo,

a estonteamento... e se eu desmaiar... sem prumo, zonza...a sensação de avaria

emocional ardia e, em pouco tempo, inundava o corpo de Lígia, as têmporas

frias. Prevendo, Lígia abaixou os olhos para o assoalho, com pavor e teria fugido

não fosse o desejo do resultado final. Levantou os olhos devagar e localizou o

espelho, os quadros, os vasos de flores e as revistas e fixou-os no mapa de Paris.

Lembrou-se. Tinha encontrado uma gravura semelhante no hospital, mais

antiga, já amassada, mas era a mesma... Impulsivamente, pegou uma revista, das

muitas exibidas à sua frente e segurou-a firme em suas mãos, forçando interesse

e concentração, mas as lembranças acobertavam, pouco a pouco, a estudada

serenidade e avançavam como espectros medonhos encobrindo a leitura. O

silêncio e o suave ruído da TV e, agora, um sino de relógio que repicava sem

cessar... Endireitou-se na cadeira e no semblante escondendo um desejo imenso

de sair, de andar, de correr, agitando as pernas, os pés já posicionados..., no

entanto, via avançar a noite do outro lado dos vidros das janelas, e, embora os

dedos tremessem e, mesmo com o balancear do corpo, abriu a porta do

consultório caminhando vigorosamente, em linha reta pela calçada pela grama

pelo asfalto... sem olhar para nada, tropeçando em latas de lixo e canteiros e nas

pedras grandes sujando as mãos sobressaltadas da grama úmida do jardim. No

chão, não teve medo. Levantou-se e começou a caminhar cada vez mais rápido,

alcançando uma parte de uma praça repleta de árvores. Ficou ali, quietinha,
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oculta pelas copas dos imensos Flamboyants. Na penumbra, ouviu um salpico de

chuva a cair mansamente enlodando tudo.

De olhos fechados, o mundo girava suavemente e Lígia suspirava e cedia

o rosto e o corpo ao vento que se enredava por entre as árvores. Respirar e ouvir

o ritmo eterno da natureza, o vento nas folhas e mil pequenos ruídos ouvidos

atentamente. Nada além da necessidade instintiva de não sufocar pelo horror

profundo por tudo, devolvendo aos céus a sua existência pesada que ressecava

seu corpo, cortando sonhos e afogando a presença dela.

De repente, esconderijo escancarado: o medo reapareceu e ela não

conseguia respirar mais. Seu rosto molhado no frio, a paralisia, a dor, o terror de

estar viva.

A nebulada sensação de uma mão forte, segurando-a pelo pulso, obrigou-a

a levantar-se, governando-a. Como vai, Lígia? Boa tarde, Lígia, tudo bem?

Lígia?

Lígia olhou, passivamente, para o Dr. Diego que a cumprimentava e

sentiu imensa pena de si mesma. Quase conseguira. À porta. Agora era tarde

demais. Ela sabia que, mesmo por alguns instantes, se a mão a largasse, seu

corpo tornaria a tremer. Sabia que retornaria ao hospital onde, abrindo-se as

janelas, ela podia ver o céu e a torre imensa e firme da igreja, os telhados, os

campos que se perdiam. Pôde lembrar-se dos passos lentos, arrastando os pés,

do enfermeiro Germano, que poria o leite em sua xícara e, assim, do alto, a


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olharia complacente, com seu avental branco, retirando-se logo, com uma leve

reverência.

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