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Sinopse

Ela queria um santuário...


Helena Reynolds está disposta a tudo para escapar de sua vida
em Londres, mesmo que isso signifique viajar para uma propriedade
remota na costa do norte de Devon e se casar com um completo
estranho. Mas a Abadia de Greyfriar não é o tipo de refúgio que ela
imaginou.
Ele precisava de redenção ...
Justin passou as últimas duas décadas acumulando fortuna,
resolvendo pendências e sofrendo tortura em uma prisão indiana.
Agora, precisa de alguém para ajudá-lo a abrir caminho entre os
aldeões. Alguém para cuidar da casa e ocasionalmente aquecer sua
cama. Em suma, ele precisa de uma esposa, e um anúncio
matrimonial parece a maneira perfeita para consegui-la.
O casamento deveria ser um acordo de negócios e nada mais.
Uma união desapaixonada, livre das complicações de amor e
afeição. Mas o que acontecerá quando o passado de Helena se
torna uma ameaça? Os sentimentos crescentes de Justin por sua
noiva o obrigarão a vir em seu socorro? Ou os próprios segredos o
forçarão a deixá-la ir embora?
Título Original: The Matrimonial Advertisement
Copyright © 2018 por Mimi Matthews
Copyright da tradução © 2022 por Editora Bookmarks.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode


ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem
autorização por escrito dos editores.

Tradução, edição e diagramação digital: Andreia Barboza


Copidesque: Wélida Muniz
Capa: Gisely Fernandes

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.

Direitos de edição em língua portuguesa, para o Brasil,


adquiridos por
Editora Bookmarks.
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contato@editorabookmarks.com
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Sumário
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Catorze
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e três
Epílogo
Nota da autora
Agradecimentos
Em memória de Orson e Jude
Capítulo Um

North Devon, Inglaterra


Setembro de 1859

Helena Reynolds cruzou o chão da taverna lotada, segurando


a bolsa de viagem com as mãos trêmulas. A King’s Arms era uma
pequena estalagem na estrada costeira de North Devon, mas
parecia-lhe que todos os homens na Cristandade se reuniam ali
para beber. Ao passar em meio a eles, pôde sentir os olhos de todos
sobre ela. Alguns olhares eram apenas curiosos. Outros a
avaliavam descaradamente.
Ela reprimiu um arrepio. Não estava sedutora com o vestido de
viagem listrado de seda cinza, embora certamente tivesse feito um
esforço para parecer apresentável. Afinal, não era todo dia que se
encontrava com o futuro marido.
— Posso ajudá-la, senhora? — o estalajadeiro a chamou de
detrás do bar.
— Sim. Por favor, senhor. — Apertando a bolsa, ela se
aproximou do balcão. Um homem muito alto estava encostado em
uma extremidade, segurando uma bebida. O corpo esguio e
musculoso estava envolto em um sobretudo de lã escura, o rosto
parcialmente oculto pela gola levantada e uma cartola de castor
caída sobre a testa. Ela se espremeu no espaço vazio ao lado dele,
ouvindo as anáguas pesadas e a crinolina farfalharem ruidosamente
ao pressionarem suas pernas.
Ela baixou a voz para se dirigir diretamente ao estalajadeiro.
— Estou aqui para ver...
— Blevins! — um homem gritou do outro lado do salão. —
Outra rodada!
Antes que Helena pudesse protestar, o estalajadeiro saiu
correndo para agradar seus clientes. Ela ficou olhando para ele em
frustração impotente. Era esperada exatamente à uma hora. E
agora – depois da confusão na estação ferroviária e do atraso com a
carruagem de aluguel, ela lançou um olhar ansioso para o pequeno
relógio que usava preso na frente do corpete – já eram duas e
quinze.
— Senhor! — ela chamou o estalajadeiro. Se elevou na ponta
das botas, tentando chamar a atenção dele. — Senhor!
Ele não lhe deu ouvidos. Estava do outro lado do balcão,
trocando palavras com o cocheiro enquanto enchia cinco canecas
de cerveja. Os dois riam juntos com a facilidade de velhos amigos.
Helena soltou um leve bufo de aborrecimento. Estava
acostumada a ser ignorada, mas isso era inaceitável. Toda a sua
vida dependia dos próximos momentos.
Procurou por alguém que pudesse ajudá-la. Olhou de imediato
para o cavalheiro ao seu lado. Ele não parecia ser um tipo de sujeito
particularmente amigável, mas sua altura era muitíssimo imponente
e, com certeza, ele devia ter uma voz que combinava com seu
tamanho.
— Com licença, senhor. — Ela o tocou de leve no braço, com
uma das mãos enluvadas. Os músculos dele ficaram tensos sob
seus dedos. — Perdoe-me por incomodá-lo, mas o senhor se
importaria de chamar...
Ele levantou a cabeça e, muito lentamente, virou-se para olhar
para ela.
As palavras morreram nos lábios de Helena. Ele havia sido
queimado. Gravemente queimado.
— Precisa de algo de mim, senhorita? — ele perguntou em um
tom terrivelmente civilizado.
Ela o olhou, revendo sua primeira impressão da aparência do
homem a cada segundo. As queimaduras, embora graves, eram
limitadas ao lado direito inferior de seu rosto, traçando um caminho
da bochecha até a borda do colarinho e além, tinha certeza. O
restante da face, severa, com a mandíbula muito bem esculpida e
nariz aquilino, estava relativamente sem marcas. Não apenas sem
marcas, mas em conjunto com o cabelo preto e olhos acinzentados,
era devastadoramente bonito.
— Precisa de algo de mim? — ele perguntou mais uma vez, de
forma mais acentuada.
Ela piscou.
— Sim. Perdoe-me. O senhor se importaria em chamar o
estalajadeiro? Eu não consigo...
— Blevins! — o cavalheiro gritou.
O estalajadeiro interrompeu a conversa em voz alta e correu de
volta para a ponta do balcão.
— O que foi, chefe?
— A senhorita deseja falar com você.
— Obrigada, senhor — Helena disse. Mas o cavalheiro já havia
voltado sua atenção para a bebida, dispensando-a sem dizer uma
palavra.
— Sim, senhorita? — o estalajadeiro perguntou.

Abandonando todos os pensamentos do belo, e bastante rude,


estranho ao seu lado, Helena mais uma vez se dirigiu ao
estalajadeiro.
— Eu deveria encontrar alguém aqui à uma hora. Alguém
chamado sr. Boothroyd? — Ela sentiu o cavalheiro ao seu lado ficar
tenso, mas não deu atenção. — Ele ainda está aqui?
— Outra para o Boothroyd, não é? — O estalajadeiro olhou
para ela de cima a baixo. — Não se parece muito com as outras.
A expressão de Helena se desfez.
— Oh? — ela perguntou, desanimada. — Houve outras?
— Sim. Boothroyd está com a última agora.
— A última? — Ela não conseguia acreditar. O sr. Boothroyd
havia lhe dado a impressão de que era a única mulher com quem o
sr. Thornhill se correspondia. E mesmo se não fosse, que tipo de
homem entrevistava esposas em potencial para seu empregador da
mesma maneira que entrevistaria candidatas a um cargo de criada
ou cozinheira? Pareceu-lhe ser de péssimo gosto.
O sr. Thornhill estava ciente do que seu administrador andava
fazendo? Afastou o pensamento. Era tarde demais para dúvidas.
— Seja como for, senhor, percorri um longo caminho e tenho
certeza de que o sr. Boothroyd desejará me ver. — Na verdade, não
tinha. Ela só conhecia o sr. Finchley, o jovem advogado simpático de
Londres. Foi ele quem a encorajou a vir para Devon. Embora a
única interação que tivera com o sr. Boothroyd e o sr. Thornhill até
agora tivesse sido por cartas, as quais ela havia guardado em
segurança juntamente ao conteúdo de sua bolsa de viagem.
— Acredito que ele pode fazer isso — o estalajadeiro
comentou.
— Justamente. Agora, se o senhor puder informar ao sr.
Boothroyd que cheguei, eu ficaria muito grata.
O homem ao seu lado terminou a cerveja em um gole e, em
seguida, bateu a caneca no balcão.
— Vou levá-la ao Boothroyd.
Helena observou com olhos arregalados enquanto ele se
levantava. Quando ele a olhou, ela lhe ofereceu um sorriso
hesitante.
— Devo agradecer novamente. O senhor foi muito gentil.
Ele a olhou com um ar zangado.
— Por aqui. — E então, sem olhar para trás, caminhou em
direção ao corredor.
Segurando a bolsa com força, Helena o seguiu. Seu coração
estava acelerado e sentia a pulsação nos ouvidos. Rezou para não
desmaiar antes mesmo de se submeter à entrevista. O cavalheiro
bateu uma vez na porta do gabinete privado. Foi aberta por um
homenzinho de cabelos grisalhos e óculos. Ele olhou para o
cavalheiro, franziu a testa e, em seguida, com a sobrancelha
arqueada, encarou a própria Helena.
— Sr. Boothroyd? — ela perguntou.
— Sim — disse. — Presumo que seja a srta. Reynolds.
— Sim, senhor. Sei que estou terrivelmente atrasada para o
meu compromisso... — Viu uma mulher se levantar de uma cadeira
dentro da sala. Ela olhava para Helena com o queixo erguido, a
expressão transmitindo o que palavras não conseguiam. — Ah —
Helena sussurrou. E assim parecia que a pequena e bruxuleante
chama de esperança que ela nutriu nos últimos meses se apagou.
— O senhor já encontrou outra pessoa.
— Quanto a isso, srta. Reynolds... — O sr. Boothroyd se
interrompeu com uma expressão de consternação quando o
cavalheiro alto passou por ele para entrar no gabinete privado. Ele
tirou o chapéu e o casaco e foi se sentar perto do fogo forte da
lareira. A mulher o olhou boquiaberta e desgostosa.
— Sr. Boothroyd! — ela sibilou, correndo para o lado do
cavalheiro mais velho. — Achei que este fosse um gabinete privado.
— E é, sra. Standish. — O sr. Boothroyd consultou seu relógio
de bolso. — Ou era, até meia hora atrás. Não importa. Nossa
entrevista está encerrada de qualquer maneira. Agora, se a
senhorita puder...
Helena não ouviu o resto da conversa. Tudo o que podia ouvir
era o som de seu próprio coração batendo. Não sabia por que
permanecia ali. Teria que embarcar na diligência e seguir para a
Cornualha. E depois? Atirar-se do penhasco, supôs. Não havia outro
jeito. Ah, que tola foi ao pensar que isso poderia funcionar! Se ao
menos Jenny nunca tivesse visto aquele anúncio no jornal. Assim,
ela saberia há meses que só havia um meio de escapar desse
emaranhado terrível. Ela nunca teria motivos para ter esperança!
Sua visão turvou com as lágrimas. Saiu da sala, murmurando
um pedido de desculpas ao sr. Boothroyd.
— Srta. Reynolds? — o sr. Boothroyd a chamou. — A senhorita
mudou de ideia?
Ela olhou para trás, confusa, e viu que a outra mulher havia ido
embora e que o sr. Boothroyd estava sozinho. De seu assento perto
do fogo, o cavalheiro alto folheava um jornal, parecendo não se
importar com qualquer um deles.
— Não, senhor — disse.
— Se quiser se sentar. — Ele gesticulou para uma das cadeiras
que rodeavam a pequena mesa de jantar. Havia uma pilha de
papéis e vários instrumentos de escrita sobre o móvel. Helena o
observou vasculhá-los enquanto se sentava. — Acredito que a
jornada tenha sido tolerável.
— Sim, obrigada.
— A senhorita pegou o trem partindo de Londres?
— Sim, senhor, mas apenas até Barnstaple. O sr. Finchley
providenciou uma passagem em uma carruagem de aluguel para
me trazer pelo restante do caminho. É uma das razões para meu
atraso. Uma carruagem se acidentou na estrada. O cocheiro parou
para ajudar.
— Uma das razões, a senhorita diz?
— Sim, eu... perdi o trem anterior na estação — confessou. —
Estava esperando na plataforma errada e... quando percebi o erro,
meu trem já havia partido. Fui obrigada a trocar minha passagem e
pegar o próximo.
— A senhorita não trouxe uma criada? Nem companheira de
viagem?
— Não, senhor. Viajei sozinha. — Não havia muita escolha.
Jenny precisou permanecer em Londres para ocultar sua ausência o
máximo possível. Helena havia considerado contratar alguém para
acompanhá-la, mas não havia tempo e tinha pouco dinheiro
sobrando. Além disso, não sabia em quem podia confiar.
O sr. Boothroyd continuou a vasculhar seus papéis. Helena se
perguntou se ele a ouvia.
— Aqui está — ele disse, por fim. — Sua resposta inicial ao
anúncio. — Ele retirou uma carta escrita com uma caligrafia
pequena e uniforme, que ela reconheceu como sua. — Bem como
uma carta do sr. Finchley, de Londres, com quem a senhorita se
encontrou no dia quinze. — Ele leu uma segunda missiva com o
cenho franzido.
— Há algum problema? — ela perguntou.
— De fato. Diz aqui que a senhorita tem vinte e cinco anos. —
O sr. Boothroyd baixou a carta. — Não parece ter essa idade, srta.
Reynolds.
— Posso lhe garantir que tenho, senhor. — Ela começou a
soltar as fitas de seu chapéu de viagem de seda cinza. Depois de
desatar o nó com dedos trêmulos, ela o ergueu da cabeça, enrolou
as fitas em volta dele e colocou-o em cima da bolsa. Quando olhou
para cima, encontrou o sr. Boothroyd encarando-a. — Sempre
pareço muito mais jovem quando estou de chapéu. Mas como pode
ver agora, sou...
— Jovem e bonita — ele murmurou com desaprovação.
Ela corou, olhando com nervosismo para o cavalheiro perto do
fogo. Ele não parecia estar ouvindo, graças a Deus. Mesmo assim,
ela se inclinou para frente na cadeira, baixando a voz:
— O sr. Thornhill não quer uma esposa bonita?
— Aqui não é Londres, srta. Reynolds. A casa do sr. Thornhill é
isolada. Solitária. Ele procura uma esposa que possa suportar a
solidão. Que possa administrar sua casa e cuidar de seu conforto.
Uma mulher forte e capaz. É exatamente por isso que o anúncio
especifica a preferência por uma viúva ou solteirona mais madura.
— Sim, mas eu...
— O que o sr. Thornhill não quer — continuou — é uma garota
de olhos brilhantes que sonha com bailes, vestidos e pretendentes à
mão. Um casamento com uma criatura tão frívola seria uma receita
para o desastre.
Helena se irritou.
— Isso não é justo, senhor.
— O quê?
— Não sou uma garota de olhos brilhantes. Nunca fui. E com
todo o respeito, sr. Boothroyd, o senhor não tem qualquer
conhecimento quanto aos meus sonhos. Se eu quisesse bailes e
vestidos ou... ou coisas frívolas... nunca teria respondido ao anúncio
do sr. Thornhill.
— O que exatamente a senhorita busca com este acordo?
Ela apertou as mãos com força no colo para deter o tremor.
— Segurança — respondeu com sinceridade. — E talvez... um
pouco de gentileza.
— Não conseguiu encontrar um cavalheiro que atendesse a
esses dois requisitos em Londres?
— Não quero estar em Londres. Na verdade, desejo estar o
mais longe possível de lá.
— Seus amigos e família...?
— Estou sozinha no mundo, senhor.
— Entendo.
Helena duvidava muito disso.
— Sr. Boothroyd, se o senhor já decidiu que outra pessoa é
mais adequada...
— Não há mais ninguém, srta. Reynolds. No momento, a
senhorita é a única dama que o sr. Finchley recomendou.
— Mas a mulher que estava aqui antes...
— A sra. Standish? — O sr. Boothroyd tirou os óculos. — Ela
estava se candidatando ao cargo de governanta da abadia. — Ele
esfregou a ponta do nariz. — Lamentavelmente, temos um problema
contínuo de retenção de pessoal adequado. É algo de que deve
estar ciente se pretende fixar residência.
Ela exalou devagar.
— Uma governanta. É claro. Que bobo da minha parte. Em uma
de suas cartas, o sr. Thornhill mencionou as dificuldades que o
senhor estava tendo com os criados.
— Temo que seja um grande desafio. — O sr. Boothroyd
colocou os óculos de volta no nariz. — Não apenas a casa é
isolada, mas também tem uma certa reputação. Talvez a senhorita
tenha ouvido...?
— Um pouco. Mas o sr. Finchley me disse que não era nada
mais do que superstição ignorante.
— Exatamente. No entanto, nesta parte do mundo, srta.
Reynolds, descobrirá que a ignorância é comum.
Helena não se preocupou.
— Eu gostaria de ver a Abadia pessoalmente.
— Sim, sim. Tudo ao seu tempo.
— E gostaria de conhecer o sr. Thornhill.
— Sem dúvida. — O sr. Boothroyd folheou seus papéis de
novo. Para sua surpresa, uma cor crescente surgiu no rosto do
homem idoso. — Há apenas mais um ou dois pontos em questão,
srta. Reynolds. — Ele pigarreou. — A senhorita está ciente,
presumo... isto é, espero que o sr. Finchley tenha explicado... este
casamento é para ser real em todos os sentidos da palavra.
Ela olhou para ele, com as sobrancelhas franzidas em
confusão.
— Que outro tipo de casamento seria?
— E está de acordo?
— É claro.
Ele não fez nenhuma tentativa de disfarçar seu ceticismo.
— Há muitas mulheres que considerariam tal arranjo
singularmente desprovido de romance.
Helena não tinha dúvidas. Ela mesma teria recusado essa
proposta no passado. Mas muito havia mudado no último ano. E nos
últimos meses, especialmente. Todas as fantasias femininas que
nutria quanto ao amor verdadeiro estavam mortas. Em seu lugar,
havia um pragmatismo implacável.
— Não procuro romance, sr. Boothroyd. Apenas gentileza. E o
sr. Finchley disse que o sr. Thornhill era um homem gentil.
O Sr. Boothroyd pareceu estar surpreso com isso.
— Com certeza é — ele murmurou. — O que mais ele disse à
senhorita, por favor?
Ela hesitou antes de repetir as palavras que o sr. Finchley havia
falado. Palavras que a convenceram de uma vez por todas a viajar
para uma remota cidade costeira em Devon, para conhecer e se
casar com um completo estranho.
— Ele me disse que o sr. Thornhill tinha sido soldado e que
sabia como manter uma mulher a salvo.

◆◆◆

Justin Thornhill lançou outro olhar pensativo para a beleza


pálida de cabelos escuros sentada em frente a Boothroyd. Ela era
magra, mas bem-torneada, o modesto vestido de viagem não fazia
nada para disfarçar a curva de seus seios e as linhas estreitas de
sua cintura fina. Quando a viu pela primeira vez na taverna, pensou
que era uma viajante elegante a caminho de Abbot’s Holcombe, a
cidade turística mais adiante na costa. Não havia razão para pensar
o contrário. A srta. Reynolds que ele esperava, a solteirona simples
e sensata que respondeu ao seu anúncio matrimonial, não havia
chegado.
Essa srta. Reynolds era uma classe totalmente diferente de
mulher.
Ela se sentou em frente a Boothroyd, empertigada, com as
mãos enluvadas perfeitamente apoiadas sobre o colo em uma
atitude agradável. Ela olhou para o administrador grosseiro com
grandes olhos castanhos de corça e quando falou, o fez em um tom
educado e baixo de uma mulher de boa família. Não, Justin
emendou. Não de boa família. Uma lady.
Ela não se parecia em nada com as duas viúvas robustas que
Boothroyd entrevistou antes para o cargo de governanta. Essas
mulheres, ironicamente, estavam mais de acordo com as
especificações originais de Justin. As que ele havia gritado para seu
administrador idoso muitos meses atrás, quando Boothroyd o
abordou pela primeira vez com a ideia de um anúncio para
conseguir uma esposa.
— Não tenho interesse em cortejar — ele tinha dito —, nem em
moças chorosas e depressivas. O que eu preciso é de uma mulher.
Alguém que seja obrigada pela lei e pelo dever a cuidar do
funcionamento deste mausoléu esquecido por Deus. Uma mulher
com quem eu possa ir para a cama de vez em quando. Maldição,
Boothroyd, não sobrevivi seis anos na Índia para viver como um
monge quando voltasse para casa.
Foram palavras ditas com frustração depois que a última de
uma longa fila de governantas saiu sem aviso prévio. Palavras que
se deviam à solidão física e muitas doses de bebidas.
A mente literal de Boothroyd havia tomado aquilo como uma
ordem.
Na manhã seguinte, antes mesmo de Justin acordar de seu
sono induzido pelo álcool, o administrador, sempre eficiente, havia
providenciado para que um anúncio fosse colocado nos jornais de
Londres. Foi breve e direto ao ponto:

MATRIMÔNIO: Oficial aposentado do exército, trinta e dois


anos, com recursos moderados e temperamento tranquilo deseja
casar-se com solteirona ou viúva de mesma faixa etária. Uma dama
adequada que seja sensata, compassiva e capaz de administrar a
casa de uma propriedade rural remota. Fortuna independente não é
importante. Cartas a serem endereçadas por porte pago ao sr. T.
Finchley, Advogado, Fleet Street.

De início, Justin ficou com raiva. Até ameaçou demitir


Boothroyd. No entanto, em poucos dias, começou a se entusiasmar
com a ideia de conseguir uma esposa por meio de um anúncio. Era
moderno e eficiente. Tão simples quanto qualquer outra transação
comercial. As candidatas em potencial simplesmente escreveriam
para Thomas Finchley, advogado de Justin em Londres, e Finchley
negociaria o resto, com a mesma competência com que negociou a
compra da Abadia de Greyfriar ou as ações da North Devon Railway
que Justin adquiriu recentemente.
Ainda assim, não tinha intenção de tornar o processo mais fácil.
Ele informou a Boothroyd e Finchley que não faria esforço por
qualquer motivo. Se uma futura noiva quisesse encontrá-lo, teria
que fazê-lo em um local a uma curta distância de condução da
Abadia.
Pensou que tal condição atuaria como um impedimento. Não
havia lhe ocorrido que era rotina as mulheres viajarem tais
distâncias para conseguir um emprego. E o que era o seu anúncio
matrimonial senão uma oferta para uma posição em sua casa?
No devido tempo, Finchley conseguiu encontrar uma mulher
para quem uma existência isolada em uma região remota da costa
de Devon parecia agradável. Justin até havia trocado algumas
cartas breves com ela. A srta. Reynolds não tinha escrito o
suficiente para que ele formasse uma imagem definitiva de sua
personalidade, nem de sua beleza, ou falta dela. No entanto, passou
a imaginá-la como uma solteirona sensata. O tipo de solteirona que
suportaria suas atenções conjugais com dignidade contida. Uma
solteirona que não choraria ao ver suas queimaduras.
A própria ideia de que alguém como essa adorável jovem
criatura enfeitaria sua mesa e sua cama era francamente risível.
Não, mas ela não estava determinada.
Embora isso pudesse ser remediado com certa facilidade.
Dobrando o jornal, Justin se levantou da cadeira.
— Eu assumo daqui, Boothroyd.
A srta. Reynolds ergueu os olhos para os dele. Justin pôde ver
o momento exato em que ela percebeu quem ele era. Para seu
crédito, a dama não chorou, nem desmaiou, nem mesmo pulou da
cadeira e saiu correndo da sala. Apenas olhou para ele da mesma
maneira estranha que fez na taverna quando viu suas queimaduras
pela primeira vez.
— Srta. Reynolds — o sr. Boothroyd disse —, posso lhe
apresentar o sr. Thornhill?
Ela se levantou, então, e lhe ofereceu a mão. Era pequena e
fina, envolta em uma luva de pelica escura.
— Srta. Reynolds. — Seus dedos envolveram os dela de forma
breve. — Sente-se, por favor. — Ele pegou a cadeira de Boothroyd,
esperando até que seu fiel criado se dirigisse para o outro lado da
sala antes de fixar o olhar em sua futura noiva.
Seu rosto era oval como uma porcelana macia e impecável,
emoldurado por cabelos castanhos escuros penteados para trás em
um grande coque na nuca. Seu nariz era reto, nem muito pequeno,
nem muito longo, e o queixo suavemente arredondado era firme ao
ponto da teimosia. Se não fosse pela suavidade aveludada daqueles
olhos, ela poderia parecer orgulhosa ou até arrogante. E talvez
fosse, se pudesse julgá-la com base nas roupas que usava.
Certo, ele não sabia nada de moda feminina além do fato de
que ganchos, rendas e saias com muitos metros de tecido eram
bastante inconvenientes quando se estava em um estado de espírito
amoroso. Mas não era preciso saber a diferença entre uma anágua
e um paletó para reconhecer que tudo o que a srta. Reynolds usava
era da melhor qualidade. Até os botões minúsculos em seu corpete
e o cinto de fivela da moda que rodeava sua cintura pareciam ter
sido feitos por um mestre.
Ao lado dela, o conjunto de roupas que ele escolheu usar
naquela manhã para encontrar a noiva parecia um tanto surrado e
de terceira categoria. Muito pior, estava começando a se sentir um
pouco maltrapilho.
— Peço que me perdoe a decepção — disse. — Como pode
ver, não sou o tipo de homem que uma mulher gostaria de encontrar
na outra ponta de um anúncio matrimonial.
— Não é? — Ela inclinou a cabeça. O leve movimento colocou
seu cabelo no caminho de um raio de sol que entrava pela janela do
cômodo. Brilhou por um instante em seu penteado da moda,
revelando fios em tons de vermelho e dourado entre os castanhos.
— Por que diz isso? É por causa de suas queimaduras?
Ele foi obrigado a esconder um estremecimento. Maldição, ela
era direta. Não teria esperado uma fala tão franca de uma pequena
fêmea decorativa.
— Não pode dizer que a visão não a ofende. Notei a sua reação
na taverna.
Suas sobrancelhas se uniram em uma linha elegante.
— Eu não tive nenhuma reação, senhor.
— Não?
— Fiquei, talvez, um pouco surpresa. Mas não por causa de
suas queimaduras. — Suas bochechas coraram em um tom
delicado de rosa. — O senhor é muito alto.
Seu peito se apertou. Ele não sabia o que fazer com o rubor
dela, nem com o comentário pessoal. Ela era uma criaturinha muito
bem-feita. Perguntou-se se ela o achava muito grande. Meu Deus,
ele era muito grande. E muito rude, grosseiro, comum e uma série
de outros traços negativos, cuja aversão ele não havia apreciado
por completo até estar na presença dela.
— Estava esperando alguém mais baixo?
— Não, eu... não sabia o que esperar. Como poderia? O senhor
nunca mencionou nada desse tipo em suas cartas. — Justin se
lembrou das cartas educadas e totalmente impessoais que escreveu
para ela nos últimos meses. Descreveu a Abadia de Greyfriar, as
estações, o clima e o som das ondas batendo nas rochas abaixo
dos penhascos. Mencionou os reparos no telhado, as novas
construções externas e a persistente dificuldade em manter criados.
Sua própria aparência não mereceu uma única linha.
— Ainda teria vindo se soubesse? — ele perguntou.
— Das queimaduras, o senhor quer dizer? — Ela não hesitou.
— Acho que sim. Mas não há como provar agora, não é? Terá que
acreditar na minha palavra.
Ele permitiu que o olhar vagasse pelo rosto dela, absorvendo
cada característica, desde as sobrancelhas cor de mogno-escuro
acima de seus olhos grandes, até a curva suave das maçãs do rosto
e a curvatura impossivelmente sensual de seu lábio superior. Não
era o rosto de uma mulher que tinha que responder a um anúncio
para encontrar um marido.
Acreditar na palavra dela?
— Suponho que devo — disse.
— Aconteceu enquanto o senhor estava na Índia?
Ele assentiu uma vez.
— Durante a revolta.
— Eu não gostaria de fazer suposições. — Ela fez uma pausa.
— Conheço alguma coisa sobre soldados, através do meu irmão.
Ele sempre me escreveu sobre as façanhas de seu regimento e as
dificuldades de amigos que foram feridos em batalha. Ele mesmo foi
um soldado, sabe?
— É mesmo? — Justin olhou para ela com uma expressão
pensativa. — Entendi que a senhorita não tinha família.
— Não tenho. Não mais. Perdi meu irmão no ano passado, no
cerco de Jhansi. — Seu busto subiu e desceu em uma respiração
instável. Ele percebeu, pela primeira vez, que ela estava tremendo.
— Foi lá que o senhor foi ferido, sr. Thornhill?
Não era um assunto que ele gostava de discutir, mas não
adiantava fingir. Ela descobriria em breve.
— Não, foi em Cawnpore, em 1857.
Algo cintilou brevemente nas profundidades de veludo de seus
olhos. Todos na Inglaterra sabiam o que havia acontecido em
Cawnpore durante a revolta, mas como irmã de um soldado, ela
teria um entendimento melhor do que a maioria.
— Estava servindo sob o comando do major-general sir Hugh
Wheeler? — ela perguntou muito baixinho. — Ou chegou mais
tarde, com o general de brigada Neill?
— O primeiro. — Sua boca se curvou em um meio sorriso
zombeteiro. — Pode ficar tranquila, srta. Reynolds. Não participei
dos estupros e pilhagens cometidos pelas forças de socorro. Eu
estava em uma prisão inimiga na época, sendo esfolado vivo por
sipaios rebeldes. — Ela empalideceu ao ouvi-lo falar dos soldados
indianos que serviam no exército da Companhia Britânica das Índias
Ocidentais e se rebelaram, mas ele não a poupou. — As
queimaduras e cicatrizes que a senhorita vê aqui não são nada. As
que estão embaixo da minha roupa são muito, muito piores, garanto.
— Sinto muito por isso.
— Sente? — Ele sentiu uma onda de raiva irracional por ela. —
Talvez não sinta tanta caridade cristã pelo meu corpo cheio de
cicatrizes quando ele estiver cobrindo o seu em nosso leito conjugal.
De seu lugar do outro lado da sala, o sr. Boothroyd emitiu um
gemido estrangulado.
Justin o ignorou. Sua atenção estava fixada no rubor intenso
que cobriu da base esguia do pescoço de porcelana da srta.
Reynolds até a linha do cabelo. Sem dúvida, ele chocou sua alma
virginal até o âmago. Não ficaria surpreso se ela se levantasse e lhe
desse um tapa na face. Ele certamente merecia.
Mas ela não o golpeou.
Em vez disso, encontrou seu olhar insolente e o sustentou, sem
vacilar.
— Está sendo ofensivo de propósito, senhor. Acredito que
esteja tentando me assustar. Não consigo imaginar por quê.
Porque se você não for embora por conta própria, muito em
breve não vou deixar que vá de jeito nenhum.
E onde ele estaria então?
Preso na Abadia de Greyfriar, entre as pedras em ruínas e o
gesso rachado, com uma dama muito infeliz. Uma mulher reduzida
ao trabalho penoso em uma ruína fria, úmida e com falta de pessoal.
Uma lady a quem nunca poderia esperar satisfazer, nem se vivesse
até os cem anos.
— Talvez — respondeu, enfim —, porque me parece que a
senhorita não imagina para o que se candidatou.
— Absurdo. Sei exatamente o que vou ganhar com este
arranjo. Eu não estaria aqui de outra forma. Se não deseja se casar
comigo, sr. Thornhill, basta dizer.
— Eu me pergunto se a senhorita deseja se casar comigo. —
Ele cruzou os braços e se recostou na cadeira, examinando a
pequena forma elegante escondida sob o vestido. — Espero que
não esteja com problemas, srta. Reynolds.
Ele a ouviu respirar fundo. O som era inconfundível.
Seu coração afundou. Não havia outra maneira de descrever. A
decepção que sentiu foi extremamente dolorosa.
E então, com a mesma rapidez, seu temperamento explodiu.
— Posso estar arranjando uma esposa de uma forma pouco
convencional, senhorita — ele a informou com o mesmo tom rígido
que costumava empregar com subordinados desrespeitosos na
Índia —, mas não tenho desejo de ganhar o bastardo de outro
homem na barganha.
Ela abriu a boca.
— O quê?
— Acredito que a senhorita me ouviu. — Ele se moveu para se
levantar.
— O senhor acha que estou carregando uma criança?
Algo em sua voz o parou onde estava. Ele procurou seu rosto.
— A senhorita nega?
— Sim! — Ela estava corando de raiva agora. — A sugestão é
evidentemente absurda. Além de ser totalmente impossível.
Absurda e impossível? Sua consciência doeu. Então ela era
inocente. Ou isso ou a melhor atriz que ele já conheceu na vida.
— Ah — disse enquanto voltava a se sentar. — Entendo.
Ela ergueu a mão para afastar do rosto uma mecha de cabelo
solta. Estava tremendo de novo.
— Que tipo de problema é, então? — ele perguntou.
— Perdão?
— Algo claramente a levou a responder ao meu anúncio. Se
não é uma criança indesejada, então o quê?
Ela olhou para baixo. Os cílios longos e grossos eram pretos
como fuligem contra a curva macia de sua bochecha.
— Está enganado, senhor.
— E a senhorita está tremendo.
Ela logo colocou as mãos no colo.
— Sempre fico trêmula quando estou nervosa. Não posso
evitar.
— Isso é tudo o que há de errado, srta. Reynolds? Nervosismo?
Seus cílios levantaram, e ela encontrou seus olhos.
— Isso realmente importa, sr. Thornhill?
Ele considerou:
— Depende. A senhorita infringiu a lei?
— Claro que não. Eu simplesmente desejo me casar. É por isso
que respondi ao seu anúncio. É por isso que viajei até aqui. Se
decidiu que não sou adequada para o senhor...
— A senhorita é adequada para mim. — As palavras saíram
antes que pudesse contê-las.
Por mais que tentasse, não conseguia se arrepender de dizê-
las. Era verdade, por Deus. Ela era uma mulher incomumente
bonita. Sentiu-se atraído desde o momento em que ela parou ao seu
lado na taverna.
Por si só, isso não teria sido suficiente. Ele não era um jovem
imaturo para ter a cabeça virada por um rosto bonito. Mas havia
algo mais nela. Algo perdido, vulnerável e estranhamente corajoso.
Isso despertou mais do que seu ardor. Despertou seus instintos
protetores. Fez com que ele quisesse protegê-la do perigo.
Foi por isso que Finchley a enviou?
A própria ideia deixou Justin profundamente perturbado. Ele
não era um herói. Na verdade, sua própria conduta passada o
desqualificava bastante como um homem capaz de proteger uma
mulher. Finchley sabia disso.
Mas se Justin ainda tinha dúvidas de sua decisão, a reação da
srta. Reynolds ao seu pronunciamento as baniu temporariamente.
O rosto dela refletiu alívio. Os suaves olhos castanhos
brilharam com o que ele temia serem lágrimas de gratidão.
— O senhor também é adequado para mim — ela disse.
— Sem dúvida. Seus requisitos não são muito exigentes. — Ele
puxou o colarinho. Parecia terrivelmente apertado de repente. —
Segurança e um pouco de gentileza, certo?
— Sim, senhor.
— E que eu a mantenha a salvo.
— Sim, senhor — ela repetiu. — Acima de tudo.
Capítulo Dois

— Não consigo imaginar o que Finchley pretendia ao enviá-


la — o sr. Boothroyd comentou. — Se soubesse, teria posto um fim
nisso. — Ele reuniu seus papéis e os guardou na pasta de couro,
resmungando o tempo todo. — Não é somente isso. Uma dama
como essa é uma catástrofe se formando. Marque minhas palavras.
Justin caminhou pelos limites da sala, ouvindo parcialmente os
comentários de seu administrador infeliz.
A srta. Reynolds havia partido. Boothroyd arranjou um quarto
para ela na estalagem. Ele até ordenou que uma refeição fosse
servida. A dama deveria estar se alimentando agora. Ou dormindo.
Ou talvez ela tivesse mudado de ideia. Será que já havia escapado
de volta para Londres ou de onde quer que tenha vindo?
A possibilidade o deixou apreensivo.
E a razão não era nenhum mistério.
Ele a desejava muito. Não era orgulhoso demais para admitir.
Justin a queria como esposa, em sua casa e em sua cama. Estava
há muito tempo sem uma mulher. E Helena Reynolds, com seus
olhos de corça e corpo suavemente curvilíneo, havia desencadeado
uma dor avassaladora dentro Justin. Bom Deus, ele ainda podia
sentir o cheiro fraco de seu perfume no ar. Era delicado, doce e
perturbadoramente exótico. Jasmim. Isso o lembrou das noites
cálidas passadas na Índia.
— Entrarei em contato com o Finchley e veremos sobre as
outras respostas ao anúncio — Boothroyd avisou. — Houve várias,
se bem me lembro. Vou dizer a ele para encaminhá-las para mim. E
desta vez, quando o senhor encontrar uma mulher adequada,
vamos pedir a ela para descrever sua aparência ou...
— Não desejo conhecer outras mulheres — Justin declarou. —
Já me decidi.
Boothroyd franziu a testa.
— Perdoe-me, senhor, mas a srta. Reynolds não é o tipo de
pessoa com quem um homem na sua posição deveria se alinhar.
— Não?
— Para começar, ela é muito jovem.
— Como o senhor não para de dizer. Mas uma mulher de vinte
e cinco anos dificilmente é uma inocente. Na verdade, alguns
podem até considerá-la uma solteirona em estágio avançado.
— Sim, mas...
— E a idade dela não deveria ser surpresa para o senhor. Ela a
informou ao Finchley. E para mim também em sua primeira carta.
Não me lembro de o senhor ter feito objeção na época. — Justin
parou de andar e se virou para seu administrador. Ele semicerrou os
olhos. — O que há nela que realmente o incomoda, Boothroyd? O
fato de ela ser uma dama bonita? Que um homem como eu a
desposará?
Boothroyd empertigou-se.
— O senhor está me interpretando mal — disse, mostrando-se
muito digno. — É meu trabalho informá-lo quanto a investimentos
insensatos e, para um homem em sua posição, o casamento com
uma mulher como a srta. Reynolds seria muito imprudente.
Primeiramente, ela vai desejar uma viagem de lua de mel. Depois,
mais criados, vestidos novos e uma carruagem. Despesas que o
senhor mal pode pagar. E o que vem a seguir com uma esposa
bonita? Flertes? Traição? Escândalo?
— Bom Deus — Justin murmurou.
— Se tirar a noite para pensar a respeito, tenho certeza de que
amanhã, quando considerar o assunto com a cabeça e não com
seu...
— Com meu o quê? — Justin questionou, sem sequer se
esforçar para esconder a irritação. — Não com meu coração,
suponho. Nós dois sabemos que não tenho um.
As orelhas de Boothroyd ficaram vermelhas.
— O senhor entendeu o que quis dizer. — Ele clareou a
garganta. — Tudo isso é perfeitamente compreensível. O senhor é
um homem no auge do vigor e tem suas necessidades, posso
atestar. Mas tal noiva, embora ela possa saciar temporariamente um
impulso básico da natureza, tornará sua vida uma miséria. Já vi
acontecer repetidas vezes com esposas jovens e atraentes.
Enquanto uma mulher madura, alguém que talvez não seja tão
bonita, ficará satisfeita com tudo o que o senhor tem a oferecer...
Justin silenciou os resmungos de Boothroyd com um aceno
impaciente. A insinuação de que ele estava agindo apenas devido a
alguma necessidade primitiva de copular com uma mulher atraente
se encaixava quase à perfeição.
— Não estou com humor para discussões. Estou decidido a me
casar com a srta. Reynolds e ponto final.
— Mas o senhor não sabe nada sobre ela!
— Lembro-me do senhor me dizendo que era para isso que o
Finchley servia. Para investigar as candidatas em potencial. Qual foi
a expressão que o senhor usou? “Eliminar as maçãs podres”.
— Sim, mas eu não esperava...
— Sem dúvida — Justin o interrompeu —, todos nós devemos
nos adaptar, Boothroyd. — Os ombros do homem cederam em
aparente derrota.
Justin não se deixou enganar por um minuto. Boothroyd era
adepto a conseguir o que queria. Essa era uma das razões pelas
quais Justin o contratou.
— Uma bela esposa não precisa ser uma desvantagem.
Lembre-se de como isso serviu bem a Simon Harding.
Harding foi sócio de um dos primeiros e mais bem-sucedidos
empreendimentos de Justin na Índia. Até os dias atuais, Justin
creditava à esposa de Harding, Rebecca, a maior parte de sua boa
sorte. Filha de um capitão do exército indiano, ela conhecia todos os
que valiam a pena conhecer.
— Não teríamos nenhum investidor se a sra. Harding não
tivesse feito amizade com a esposa de cada um deles — continuou.
— E se não fosse pelos jantares que organizou, jamais teria
conhecido Oliver Smithson, muito menos investido meu dinheiro em
suas fábricas de algodão, cujos lucros compraram a Abadia, caso
tenha se esquecido.
— Sim, sim, exatamente como o senhor diz. O tipo certo de
esposa é uma vantagem, tanto nos negócios quanto na
comunidade. E é exatamente por isso que Finchley e eu pedimos
para que se casasse. E se a srta. Reynolds fosse da mesma classe
que a sra. Harding, eu não colocaria dificuldades...
— O senhor não sabe nada a respeito da srta. Reynolds.
— Com todo o respeito — Boothroyd rebateu —, nem o senhor.
Justin deu de ombros.
— Eu confio em Finchley.
— Eu também, mas...
— Ele nos deu garantias sobre o caráter dela. Disse-nos que é
uma dama respeitável, sem dívidas pendentes, nem envolvimentos
problemáticos. Uma dama que está sozinha e é incapaz de se
sustentar.
— Suas maneiras e porte marcam-na como uma dama de certo
requinte.
Justin passou a mão pelo cabelo.
— Não consigo entender como isso é relevante. Ela não tem
família, nem conexões. Independentemente de quem eram seus
amigos, a srta. Reynolds agora não é diferente de qualquer outra
mulher empobrecida tentando encontrar seu caminho no mundo.
— Casando-se com um cavalheiro próspero — Boothroyd
fungou.
— É isso que sou agora? Um cavalheiro próspero? — Justin
curvou a boca em um sorriso sem humor. — O senhor me avalia
muito bem. Se a srta. Reynolds realmente desejasse fazer um bom
casamento, poderia ter escolhido muito melhor.
— Pode ser verdade, senhor, mas o fato é que ela o escolheu.
— Pode creditar esse milagre ao Finchley. Ele encheu a cabeça
dela com algumas bobagens sobre eu ser um homem gentil e
honrado. — O sorriso de Justin desapareceu. — Com alguma sorte,
vamos nos casar antes que ela descubra o contrário.

◆◆◆

Helena espiava pela janela enquanto mordiscava o que restava


de um dos bolos que foi enviado com o chá. De seu quarto, podia
ver o pátio da estalagem. Estava relativamente vazio, exceto pela
carruagem de aluguel em que havia chegado e uma antiquada a
qual um cavalariço estava atrelando quatro cavalos. Observou mais
um pouco, esperando ver uma carruagem régia, laqueada em
vermelho e preto, entrar no pátio.
Não veio.
O que não significava absolutamente nada. Ninguém, exceto
um idiota, conduziria uma carruagem por todo o caminho até aqui
quando poderia pegar um trem. Mas para onde? Para Barnstaple,
supôs, e então percorreria o caminho restante em uma carruagem
de aluguel, o mesmo método usado por ela para chegar a King’s
Abbot. Ela se perguntou quantos dias haviam se passado. Três,
talvez. Possivelmente até quatro, se tivesse sorte.
Com um suspiro, retirou-se de seu posto na janela e começou a
se despir. Tirou o vestido de viagem, as anáguas e a crinolina
pesada, em seguida as meias. Uma criada trouxe um jarro de água
para ela se lavar. Não sabia quando teria outra oportunidade de
banhar-se.
Vestida apenas com a combinação, calção e espartilho, parou
em frente ao lavatório de madeira. Havia um pequeno espelho
pregado na parede. Olhou-se brevemente enquanto molhava a
esponja. Sabia o que veria. Uma mulher exausta em decorrência da
viagem; exausta e amedrontada. Uma mulher com hematomas que
circulavam a garganta e os braços.
O pior deles havia desbotado para um roxo amarelado. Os mais
recentes, no entanto, aqueles que enfeitavam seus braços e pulsos,
ainda floresciam em um preto profundo e tons de azul. Doíam se
tocados. Até mesmo o tecido nas mangas do vestido era suficiente
para fazê-la estremecer. E quando uma mulher na plataforma do
trem em Londres passou por ela e lhe deu uma cotovelada, a dor foi
tão lancinante que Helena quase desmaiou.
Ela precisava de muito gelo. Mas, nesse caso, a água fria teria
que servir.
Apertou a esponja no braço direito e depois no esquerdo,
repetindo o processo até que a água começou a aliviar a dor
profunda em seus membros. Fechou os olhos e, por um momento
de cansaço, abaixou a cabeça e apoiou de leve a testa no espelho.
Respirou fundo, e estremeceu.
Justin Thornhill não era o homem que esperava.
Embora não saberia dizer o que, de fato, esperava. Imaginou
que ele fosse gentil, é claro. Inteligente, honrado e capaz de mantê-
la em segurança, como o sr. Finchley havia prometido. Mas suas
esperanças nunca se fundiram na forma e na figura de um homem.
Não imaginou altura, cor de cabelo nem o formato do queixo ou do
nariz. Decerto nunca ousaria imaginar que o futuro marido seria
bonito.
E o sr. Thornhill era bonito.
Embora não da maneira urbana e sofisticada de seu irmão mais
velho e dos amigos dele, ou de qualquer outro cavalheiro que
Helena conheceu e admirou ao longo de seus vinte e cinco anos.
Com o cabelo preto desgrenhado, pele bronzeada pelo sol e olhar
muitíssimo penetrante, o sr. Thornhill parecia um pirata aventureiro
ou um dos anti-heróis ardilosos dos livros baratos que ela gostava
tanto de ler quando menina.
Seria fácil para uma mulher se apaixonar por um homem assim.
Especialmente porque o sr. Thornhill não era apenas bonito. Ele era
alto e forte. Na verdade, Helena não conseguia se lembrar de ter
encontrado um cavalheiro de proporções tão majestosas. Ele tinha
ombros largos e força masculina bem definida. Ela se sentiu
pequena e frágil perto dele. Se ele tivesse a intenção de machucá-
la, estrangulá-la ou sacudi-la de forma violenta pelos braços,
acreditava que não conseguiria sobreviver. Ele era muito forte.
Poderia quebrar seu pescoço com a mesma facilidade com que
respirava.
Ela engoliu uma onda crescente de pânico. Não seria bom
sucumbir aos seus medos. Não depois de ter chegado tão longe e
arriscado tanto.
No entanto, como conseguiria evitar a inquietação depois das
vulgaridades que ele havia dito?
Helena estava quase mortificada demais para se lembrar delas.
Que tipo de homem falava sobre cobrir uma dama em seu leito
conjugal? Não um cavalheiro, decerto. E depois acusá-la de estar
esperando um bebê! Como se ela fosse alguma devassa mentirosa.
Ela, cujo conhecimento total do ato conjugal consistia em passagens
lidas em manuais de medicina e alguns fragmentos de conversas
masculinas ouvidas ao acaso.
A justa indignação cresceu em seu peito. Era um tônico
maravilhoso para os nervos.
Ergueu a cabeça, tornou a encher a bacia e começou a lavar o
rosto e o corpo com mais vigor.
A jornada, embora não muito longa, foi empoeirada e suja.
Ainda podia sentir a areia no cabelo de quando o vento apertou na
plataforma do trem em Barnstaple. Desejou que houvesse tempo
para lavá-lo. Em vez disso, ela o soltou, escovou e trançou as
madeixas, que prendeu em um coque grande na altura da nuca.
Estava prendendo o último grampo quando alguém bateu de leve à
porta.
— Perdão, senhorita — a voz de uma criada soou. — O
cavalheiro pediu para lhe avisar que eles partirão em meia hora. —
O pulso de Helena acelerou. O sr. Thornhill e sr. Boothroyd a
levariam para ver a abadia. Eles até contrataram uma jovem para
servir de acompanhante durante a viagem. Era tudo muito decente e
insuspeito; fatos que fizeram muito pouco para acalmar seu coração
aflito.
— Descerei imediatamente!
— Muito bem, senhorita. Devo deixar suas botas à porta?
— Sim, obrigada. — Pelo menos teria sapatos limpos, Helena
pensou ao começar a se vestir. Mais cedo, havia feito uma limpeza
rápida em seu vestido de viagem, mas ainda parecia que o estava
usando há dois dias seguidos. A peça precisava ser devidamente
esfregada e passada. Mas não podia se preocupar com nada disso
agora.
Fechou o último botão na gola do vestido e deu uma sacudida
nas saias volumosas para que caíssem com graça sobre a crinolina.
O gorro, as luvas e a maleta estavam na cama. Enquanto se movia
para pegá-los, os olhos pousaram na bandeja de chá. Restavam
três bolos. Recolheu-os rapidamente e, depois de embrulhá-los em
um lenço limpo, colocou-os na maleta com o resto de seus
pertences.
Se as coisas não dessem certo com Justin Thornhill, precisaria
de comida para a etapa final da jornada.
Aonde quer que ela a levasse.
◆◆◆

A carruagem antiquada deu um forte solavanco ao subir a


estrada do penhasco. Bess, a jovem criada no banco em frente a
Helena, soltou um gemido baixo. Preocupada, Helena olhou para
ela. O rosto da moça tinha passado de branco para verde em um
espaço de tempo surpreendentemente curto.
— Estamos em segurança, Bess — repetiu. — De verdade.
Suas palavras foram desmentidas no mesmo instante por um
chacoalhar agourento, que sacudiu a carruagem, fazendo as duas
balançarem no assento. Ela relanceou a janela. As rodas da
carruagem giravam bem na beira do penhasco. Podia ver as pedras
rolando e caindo nas ondas espumantes abaixo. Começando ela
mesma a sentir a boca um pouco seca, recostou-se e abriu um
sorriso encorajador para Bess.
— Se está com medo, imagine como o pobre sr. Boothroyd se
sente sentado com o cocheiro.
— Que o Senhor o abençoe, senhorita. — Bess levou a mão à
boca. Helena não sabia se a moça estava sufocando uma risadinha
ou prestes a vomitar. — Se um dos cavalos perder o equilíbrio, ele
será lançado ao mar.
— Que pena seria — Helena falou, seca. Uma gargalhada
escapou por detrás da mão de Bess.
O sr. Boothroyd não fez nada para tornar-se querido por
nenhuma das duas. Desde o momento em que Helena desceu as
escadas da estalagem, ele se mostrou impaciente, irritado e, ao
compensar Bess por seu tempo, revelou-se surpreendentemente
avarento.
Helena não tinha certeza do que fizera para ofendê-lo. Sabia
não ser o que ele esperava, mas estava começando a pensar que o
sr. Boothroyd se opunha ao seu casamento com o sr. Thornhill. Pior
ainda, suspeitava de que o próprio sr. Thornhill também não era
totalmente agradável.
E, no entanto, apesar de suas palavras vulgares e seus modos
rudes, Justin Thornhill se comportou com o maior decoro desde que
saíram da estalagem. Ele até tomou medidas para salvaguardar sua
reputação durante a visita à abadia. Não apenas providenciou para
que Bess a acompanhasse, mas nem ele nem o sr. Boothroyd
viajaram dentro da carruagem com elas.
— Acho que o sr. Thornhill está mais seguro do que todos nós
naquele cavalo dele — Bess apontou.
— Sem dúvida. — Helena olhou pela janela mais uma vez. Não
havia sinal do sr. Thornhill. Ele devia estar muito à frente agora, era
muito mais adequado trafegar por aquela estrada traiçoeira no
lombo de um cavalo do que dentro de uma carruagem.
A Abadia de Greyfriar ficava a cerca de cinco quilômetros de
King’s Arms e, como o sr. Thornhill explicou ao colocá-la na
carruagem, o único acesso ao local era por meio da estrada do
penhasco. O caminho subia ao longo de uma trilha larga o suficiente
para apenas uma carruagem puxada por quatro cavalos, curvando-
se ao passar por debaixo dos galhos das árvores que pareciam
crescer em todos os ângulos desde a face do penhasco.
Demorou quase meia hora para chegarem a um terreno plano.
Quando o fizeram, os cavalos aceleraram o passo, o péssimo
sistema de amortecimento da carruagem a fez saltar atrás dos
animais. O veículo se enveredou para a esquerda, atravessando
uma floresta esparsa, e enfim diminuiu a velocidade até uma parada
estridente.
Espiando pela janela, Helena viu que haviam parado em um
pequeno platô. O céu acima estava carregado e cinzento, a
paisagem rochosa abaixo era igualmente cinza. À distância, com
apenas uma muralha de pedra em ruínas protegendo-a do
penhasco e de despencar para o mar aberto, ficava a Abadia de
Greyfriar.
O sr. Thornhill a descreveu em uma de suas cartas como sendo
um pesadelo gótico em forma de casa, e ele não havia exagerado.
Fora construída sobre as ruínas de um mosteiro do século XII,
partes delas ainda permaneciam de pé. Havia uma torre e uma
cocheira antiga feita de pedra que, apesar da idade, parecia ter
precisado apenas de pequenos reparos. O resto da estrutura, com
seu telhado inclinado e arcadas altas e pontiagudas, parecia ser de
uma data muito posterior. Helena viu evidências de construções
recentes, bem como pilhas de pedras novas e ferramentas prontas
para serem usadas. Ela se perguntou quanto da restauração da
abadia o sr. Thornhill havia feito ele mesmo.
— Já esteve aqui antes, Bess? — perguntou.
Os olhos de Bess estavam muito arregalados.
— Ah, não, senhorita — a moça respondeu com um sussurro
reverente. — Ninguém vem aqui em cima.
Antes que Helena pudesse fazer mais perguntas a Bess, o sr.
Thornhill abriu a porta da carruagem. O rugido do mar praticamente
vibrava no ar ao redor dele, e ela conseguia ouvir o lamento das
gaivotas voando acima. Ergueu as saias pesadas com uma das
mãos enquanto ele a ajudava a descer os degraus da carruagem. O
vento estava tão forte que quase a derrubou.
Ele apertou a mão dela para firmá-la.
— Obrigada. — Helena pisou no chão. — Estou bem agora. —
Ele assentiu e se virou para ajudar Bess.
Não conhecia muitos cavalheiros que teriam se incomodado em
ajudar uma criada. O fato de o sr. Thornhill oferecer auxílio à
acompanhante lhe pareceu mais uma prova de seu caráter
exemplar. O sr. Finchley disse que ele era um bom homem; um
homem gentil. E, apesar do exterior rude do cavalheiro, ela estava
começando a acreditar.
Afastou-se da carruagem e olhou ao redor. O vento açoitava
seu chapéu e as saias de seu vestido. O ar frio lhe atingiu o rosto.
Estava um pouco ofegante. Ainda mais quando sentiu uma mão
grande e poderosa pousar brevemente em suas costas.
Sobressaltada, olhou para cima, dentro dos olhos cinzentos de
Justin Thornhill.
— A senhorita estava balançando como um junco na
tempestade — ele comentou.
— É mesmo?
— Tome cuidado para que o vento não a carregue para o
penhasco.
Um arrepio gelado de medo desceu por sua espinha. A
perspectiva de se jogar dos penhascos estava em sua mente desde
que embarcou no trem em Londres. Não sabia se algum dia teria
sido corajosa, ou tola, o suficiente para fazer algo tão precipitado,
mas o pensamento a havia confortado em seus momentos mais
sombrios. Agora, tão perto dos penhascos íngremes e do mar
furioso abaixo, não podia deixar de se sentir enjoada com o que
havia considerado fazer.
— Aqui — o sr. Thornhill disse — segure em meu braço. Não a
deixarei cair.
Pegou o braço oferecido e, acompanhados pelo sr. Boothroyd e
por Bess, caminharam em direção à casa. À medida que se
aproximavam, a porta se abriu e dois enormes vira-latas negros
saíram correndo. A forma de um homem grande surgiu da porta em
arco atrás dos animais. Ele gritou, mas suas palavras se perderam
no vento. Para horror de Helena, os cães foram direto para eles,
latindo enquanto corriam. Eram grandes como mastins. O tipo de
cachorro que, entre eles, poderia facilmente rasgar uma pessoa em
pedaços.
— Senta — o sr. Thornhill ordenou bruscamente quando um
deles saltou em sua direção.
Por instinto, Helena pressionou o rosto no braço dele.
— A senhorita tem medo de cachorro? — ele perguntou.
O coração batia forte na garganta. Medo? Estava terrivelmente
aterrorizada. No entanto, forçou-se a afastar a cabeça da manga do
sr. Thornhill e a enfrentar as duas bestas gigantes.
— Não sei. Eu deveria ter?
— Não destes. Aqui. — Ele pegou sua mão enluvada com
muita delicadeza e estendeu-a na direção do primeiro cachorro. A
besta enorme avançou e cheirou seus dedos, hesitante. — O nome
dele é Paul.
— Paul? — ela repetiu, ainda agarrada ao braço do sr.
Thornhill. — E aquele?
O outro cachorro ficou à distância, observando os dois. Ele
estava rosnando.
— Aquele é o Jonesy — ele disse. — Pode conhecê-lo mais
tarde.
Helena lançou um olhar cauteloso para o cão hostil enquanto o
sr. Thornhill a conduzia escada acima e para dentro da casa.
O homem que havia deixado os cães soltos estava parado à
entrada de pedra, torcendo o gorro nas mãos. Ele era um sujeito
robusto de idade indeterminada, com cabelo loiro cortado rente à
cabeça e uma expressão ligeiramente vaga em seus olhos claros.
— Neville — o sr. Thornhill disse —, esta é a srta. Reynolds. Ela
e sua criada ficarão para o chá.
Neville meneou a cabeça para ela.
— Senhorita.
Ela inclinou a cabeça em resposta.
— É um prazer conhecê-lo, Neville.
O rosto do homem ficou vermelho. Ele fez outra reverência
afetada e, então, com um olhar cauteloso para o sr. Boothroyd,
desapareceu para dentro de casa sem dizer uma única palavra. Os
dois cães correram atrás dele.
— Neville cuida dos estábulos e do gado —Boothroyd disse ao
tirar o chapéu e as luvas.
— No momento, ele também cuidará do nosso chá. — O sr.
Thornhill tirou o chapéu e o jogou em uma mesa próxima. O casaco
e luvas foram logo depois.
Não havia lacaio nem mordomo para pegar as suas coisas. Ela
tirou o chapéu e as luvas e os entregou ao sr. Thornhill.
— Neville e o cocheiro são seus únicos criados?
— Há uma mulher que cozinha e limpa. — Ele a conduziu pelo
corredor. — E esperamos conseguir uma nova governanta dentro de
uma semana, mesmo que não saibamos por quanto tempo ela
ficará.
O salão principal da Abadia de Greyfriar era espaçoso, mas
vazio. A luz fraca era filtrada pelas janelas altas de moldura de
pedra e iluminava um aparador, algumas cadeiras de madeira de
respaldar reto e um tapete puído. A característica mais
impressionante era, de longe, uma escadaria construída com o que
parecia ser carvalho recém-cortado. Elevava-se até um patamar de
onde se dividia em dois braços separados que conduziam a alas
opostas dos andares superiores.
Helena não tinha ideia do tamanho do interior da Abadia, nem
de quantos quartos estavam abertos e em uso. O que ela sabia,
mesmo em sua experiência limitada, era que uma casa com metade
desse tamanho nunca poderia ser administrada com sucesso
apenas com uma cozinheira, um cocheiro e um gigante de raciocínio
lento que fazia vezes de criado e lacaio.
— Talvez a Bess possa ajudar Neville com o chá? — ela
sugeriu.
O sr. Thornhill balançou a cabeça.
— Sua criada fica com a senhorita. — Ele a acompanhou até
uma sala com painéis de madeira, muito bem ventilada, que
lembrava uma biblioteca. Estantes meio cheias cobriam as paredes,
e mesas isoladas estavam espalhadas com mapas e livros abertos
sobre elas. Uma fileira de janelas com cortinas pesadas cor de vinho
dava para o mar.
O sr. Thornhill gesticulou para ela se sentar em um dos dois
sofás de chita desbotada que ficavam de frente um para o outro
diante de uma colossal lareira de pedra.
— Devo acender o fogo?
— Não, obrigada. Estou bastante confortável. — Ela se sentou
na ponta da almofada do sofá, ajeitando as saias ao seu redor. Na
verdade, o lugar estava úmido e bastante frio, mas Helena não
queria que o sr. Thornhill pensasse que ela era difícil de agradar.
Nem queria dar ao sr. Boothroyd mais motivos para desaprová-la. O
homem havia se retirado para uma mesa no canto, onde estava
curvado sobre um livro-razão. Ela não tinha dúvidas de que ele
ouvia com avidez, assim como Bess, com muito menos sutileza, de
seu lugar ao lado de Helena no sofá.
Ela e o sr. Thornhill não tinham privacidade verdadeira. Seria
por isso que ele parecia tão pouco à vontade quando se sentou em
frente a ela?
— É tudo exatamente como o senhor descreveu em suas cartas
— ela comentou, por falta de algo melhor a dizer.
— Mesmo assim, a senhorita veio.
— Achou que eu não viria?
Intencionalmente, ele não respondeu à sua pergunta, dizendo
em vez disso:
— A abadia não será parecida com o que a senhorita está
acostumada.
Helena olhou brevemente para as mãos, pálidas e magras,
apoiadas uma sobre a outra em seu colo. Não suportava pensar no
que estava acostumada.
— Por que diz isso?
Mais uma vez, ele não deu uma resposta direta. O homem
parecia estar pensando em algo, pois quando ela olhou para cima,
encontrou-o encarando-a com uma expressão estranhamente
sombria.
— Não são muitos os que podem viver felizes em um lugar tão
remoto — falou. — A solidão pode ser... difícil de suportar.
Ela se perguntou se ele se referia a si mesmo. Talvez ele
achasse a solidão difícil de suportar. Talvez tenha sido por isso que
mandou publicar um anúncio matrimonial.
— Não me importo. Na verdade, acredito que a paz e o
sossego me servirão muito bem.
— Às vezes, é mais do que paz e sossego — alertou. — É um
isolamento total. Podem surgir problemas... — Ele se interrompeu,
passando os dedos pelo cabelo preto já desgrenhado. — Não quero
que pense que eu a enganei.
Uma carranca preocupada franziu o cenho dela.
— Que me enganou? Como?
— Existem riscos atrelados a viver em um lugar como esse. Por
um lado, é uma jornada perigosa da cidade mais próxima. E isso
quando o tempo está bom. Durante os meses de inverno, há dias
em que a estrada fica intransitável. — O sr. Thornhill fez uma pausa,
parecendo pesar suas próximas palavras com cuidado. — Se
alguém precisar urgentemente de um médico, há todas as chances
de a pessoa morrer antes que possam buscá-lo em King’s Abbot.
Helena não compreendeu imediatamente o significado do que
ele disse.
— Isso já aconteceu antes?
— Não. Não que eu saiba. Mas com uma mulher como a
senhorita...
— Tenho uma saúde excelente — assegurou-lhe.
— É um prazer ouvir isso. Mas não foi bem o que eu quis dizer.
— O que o senhor quis dizer?
— Só que o resultado natural... — O sr. Thornhill parou no meio
da frase, focando sua atenção em Bess. Ela estava inclinada para a
frente, com os lábios entreabertos, como se ele fosse revelar um
segredo escandaloso. O homem semicerrou os olhos.
— Entendo — Helena falou rapidamente. — O senhor está
preocupado que eu me machuque de alguma forma e não consiga
chamar um médico a tempo.
Ele parecia mais do que um pouco irritado.
— Algo assim.
— King’s Abbot é o vilarejo mais próximo?
— Se a viagem for por terra, sim.
Helena ficou imóvel.
— Há alguma forma de chegar aqui pela água?
— Qualquer pessoa disposta a enfrentar as correntes pode
navegar direto para a praia de Abbot’s Holcombe. Se o vento estiver
a seu favor, a viagem pode ser feita em uma fração do tempo que
uma carruagem levaria para percorrer a estrada do penhasco.
— Não fazia ideia. — Sua boca ficou seca com as implicações,
a mente já conjurava mil e um cenários: todos completamente
irreais.
Assim esperava.
Helena se forçou a manter a calma.
— Onde fica Abbot’s Holcome?
— A vinte quilômetros na direção oposta. É uma cidade
turística. Muito mais procurada que King’s Abbot.
— Eles têm muitas lojas lá, senhorita — Bess ofereceu. — E
uma costureira que conhece a moda de Paris.
— Se a pessoa puder pagar por isso — o sr. Boothroyd
murmurou de sua mesa.
Helena olhou para o mordomo mal-humorado. Ele ainda
rabiscava no livro-razão, parecendo marcar pontos e casas decimais
com uma força extraordinária.
— Não espero que o senhor gaste muito comigo — disse ao sr.
Thornhill. — Eu preciso de muito pouco.
— E tudo o que precisar, a senhorita terá. — A voz profunda do
sr. Thornhill tinha um tom tão duro e inflexível quanto diamante.
Helena suspeitou de que suas palavras se destinavam mais ao sr.
Boothroyd do que a ela.
Ela umedeceu os lábios.
— O senhor costuma ir a Abbot’s Holcombe?
— Não se eu puder evitar.
— Por causa da distância?
— Por causa das pessoas que vivem lá — respondeu,
acrescentando: — Eu detesto o lugar.
— Oh? — Helena hesitou. Ela estava um pouco curiosa,
naturalmente, mas o sr. Thornhill não parecia aberto a qualquer
pergunta investigativa. Mesmo se estivesse, não ousaria fazer
perguntas, para que ele não ficasse tentado a fazer algumas para
ela. — Então vou detestar também.
O canto da boca de Justin se curvou.
— Isso é lealdade, não é?
— Claro — ela respondeu. — Estamos noivos e vamos nos
casar.
Por um momento, o sr. Thornhill a observou em silêncio, com
uma expressão difícil de decifrar.
— Gostaria de ir até a praia depois do chá? — ele perguntou,
de forma abrupta.
Ela exalou um suspiro que não notou estar prendendo.
— Podemos?
Ele lhe assegurou de que podiam.
— Há uma trilha ao longo da face dos penhascos. É íngreme,
mas se a senhorita pensar que consegue, poderemos caminhar um
pouco e ainda teremos tempo de levá-la de volta à King’s Arms
antes de o sol se pôr.
Capítulo Três

Justin sentiu os apertos convulsivos que a srta. Reynolds dava


em seu braço durante a descida até a praia. Por mais que ela
estivesse muito atraente em seu vestido de seda cinza, as saias
amplas e esvoaçantes da moda não eram nada propícias para
percorrer a trilha estreita do penhasco com vento forte. Era um
exercício de autocontrole não se agarrar a ela toda vez que as
pedras deslizavam sob suas botas. Ele já havia cometido o erro uma
vez, para seu pesar.
No momento em que os dedos seguraram o braço da dama
com firmeza, ela gritou, afastando-se dele com tanta força que
escorregou e quase caiu.
— Sinto muito! — ela disse, quando recuperou o equilíbrio. — O
senhor me assustou.
— A culpa é inteiramente minha — ele murmurou em resposta.
Não era um bom presságio para o futuro deles que ela se
encolhesse com o seu toque. Era um homem tátil e, embora não se
importasse de bancar o cavalheiro ocasionalmente, quando se
casasse, se ele se casasse, pretendia tocar a esposa dentro e fora
do quarto. Estaria condenado se acabasse casado com uma frágil
boneca de porcelana que recuava ao vê-lo. Tal arranjo podia servir
para as classes mais elevadas, mas o sr. Bray, o ferreiro de quem
foi aprendiz quando menino, tinha sido abertamente afetuoso com a
esposa. Justin sempre esperou ter, com sua própria noiva, o mesmo
tipo de relacionamento.
Embora fosse ridículo usar os Bray como exemplo conjugal.
Eles nunca o trataram muito bem. Os longos e solitários anos de
aprendizado foram marcados por roupas esfarrapadas e barriga
sempre vazia. Mesmo assim, o sr. e a sra. Bray cuidavam um do
outro e de seus próprios filhos também. Quando criança, Justin tinha
inveja. Por vezes, ansiou por uma palavra gentil ou um toque
consolador. Mas os Bray tinham pouca bondade para dispensar ao
órfão da abadia que estava sob seus cuidados.
Os pais da srta. Reynolds haviam sido mais gentis? Mais
afetuosos? Justin não tinha a menor ideia. Ela nunca tinha escrito
uma palavra sobre a mãe e o pai, ou qualquer um de seus outros
parentes. Nem sabia que a dama tinha um irmão até que ela o
mencionou durante a conversa na King’s Arms. E havia sido
irritantemente vaga. Porém, não poderia culpá-la. As cartas dele
também revelaram muito pouco.
Soltou a mão dela para poder pular do fim da trilha do penhasco
para a praia. A srta. Reynolds olhou-o de onde estava. O vento
havia soprado um pouco de seu cabelo sob o chapéu. Ela o afastou
do rosto com os dedos.
Ele deu um passo em sua direção com os braços estendidos.
— Se me permite.
Ela acenou dando permissão, e ele a segurou pela cintura,
pousando-a de leve no chão. A moça não pesava mais do que uma
pena, o topo de seu chapéu mal alcançava o ombro dele, mas não
havia como confundi-la com outra coisa senão o que ela era: uma
mulher quente e de curvas suaves.
Uma mulher vestindo roupas demais.
Ainda assim, Justin pensou, poderia ser pior. Muitas das
mulheres que viu recentemente usavam saias com pelo menos três
metros de circunferência. Saias enormes com babados, sustentadas
por aros de arame que tendiam a se virar para cima com o vento
forte. As próprias saias da srta. Reynolds eram formidáveis, mas ele
não conseguiu detectar nenhuma engenhoca semelhante a uma
gaiola debaixo delas. Na verdade, a única peça de armadura que
ela parecia estar usando era um espartilho de osso de baleia bem
apertado, cuja rigidez ele podia sentir sob os dedos.
— A senhorita lamenta não termos trazido Boothroyd e sua
criada? — ele perguntou, ainda segurando-a.
Suas bochechas já coradas adquiriram um tom ainda mais
profundo de rosa.
— Não.
— Nem eu. — Justin flexionou os dedos em sua cintura e, em
seguida, com relutância, soltou-a. Ele cruzou as mãos atrás das
costas para não ficar tentado a voltar estendê-las para ela.
Helena assentiu e, sem dizer mais nada, começaram a
caminhar, lado a lado, pela areia seca.
Caminharam em silêncio por vários minutos. Não se ouvia nada
além do som das gaivotas e das ondas agitadas. O vento estava
forte e o mar mais violento que de costume, chocando-se contra as
rochas com um rugido retumbante. Mais de uma vez, viu a srta.
Reynolds olhar fixamente para lá, com uma expressão estranha no
rosto.
— A senhorita gosta de praia? — ele perguntou.
— Eu nunca havia ido a uma até agora.
Ele lhe lançou um olhar penetrante.
— Nunca viu o mar?
Ela balançou a cabeça.
— Não até a carruagem de aluguel cruzar uma colina alta a
caminho de King’s Abbot. Eu olhei pela janela e... lá estava.
Justin não conseguia imaginar. Nasceu na costa e passou a
maior parte de sua juventude escalando penhascos e nadando em
mar aberto. A praia fora de Abbot’s Holcombe tinha sido seu porto
seguro; o lugar para onde fugia sempre que a vida com os Bray se
tornava insuportável.
— O que achou? — perguntou, genuinamente curioso.
— Vasto — ela respondeu —, sem limites. O que me faz me
sentir muito pequena.
Ela voltou a olhar para a estreita faixa de areia enquanto
caminhavam em silêncio, encarando primeiro os penhascos e
depois a costa longa e desolada. Justin se perguntou o que foi que
cativou a atenção dela a tal ponto. Não havia nada além de rocha
rígida e isolada e trechos vazios de areia. Tentou ver através dos
olhos dela, mas foi um exercício infrutífero. Ele era muito cínico e,
na presença de uma dama tão refinada, estava dolorosamente
consciente das muitas deficiências de sua casa.
Justin se sentiu da mesma forma quando a viu pela primeira
vez dentro da Abadia. Seria o lar dela se eles se casassem, talvez
para o resto da vida. No entanto, a própria rainha Vitória não poderia
ter parecido mais deslocada do que Helena Reynolds sentada de
forma tão recatada no sofá gasto da biblioteca.
— Não é um remendo de Londres, é? — ele perguntou.
— Não é? — Ela continuou a olhar fixamente para os
penhascos.
Ele enfiou as mãos nos bolsos das calças, e ficou a uma curta
distância atrás dela.
— Não há comparação. Londres é vibrante. Cheia de energia e
indústria.
— Acredito que sim.
— E há as diversões. Compras na Bond Street. Passeios no
Hyde Park. Visitas ao Jardim Zoológico. Seja o que for que quiser
fazer está a apenas a um coche de distância.
— Sim, mas... — Ela o olhou. — Para aqueles que não gostam
de tais entretenimentos, Londres é um tanto extravagante, não
acha?
— Estamos falando em hipóteses? — Justin perguntou. — Ou
estamos falando a seu respeito?
Ela não respondeu.
Ele apertou o passo para que estivesse mais uma vez
caminhando ao lado dela.
— Eu me recuso a acreditar que não haja nada em Londres de
que a senhorita se arrependerá por ter desistido. Uma livraria,
talvez, ou uma confeitaria onde compre seus doces favoritos.
— Não ligo para doces.
— Seus livros favoritos, então. Presumo que goste de ler. — Ele
viu o lábio dela se curvar um pouco. — Não há livrarias em King’s
Abbot. Nem bibliotecas. Se alguém quiser ler os romances mais
novos, deve comprá-los em Abbot’s Holcombe. E já que nós dois
concordamos em odiar o lugar...
— O senhor tem livros em sua biblioteca. Posso lê-los.
— Manuais de agricultura? Periódicos de arquitetura?
Ela o olhou de soslaio.
— Esses são o único tipo de livro que o senhor guarda na
abadia? Eu tinha certeza de que havia visto uma cópia de algo do
sr. Dickens na prateleira.
Ele lançou um sorriso feroz a ela. O breve movimento repuxou
as queimaduras do lado direito de seu pescoço e mandíbula. Era um
sério lembrete de que a srta. Reynolds teria muito mais coisas com
que se acostumar como sua noiva além das escassas ofertas de
sua biblioteca.
— Posso ter um ou dois dos romances dele — admitiu.
— Quais?
— Quais são seus favoritos?
Ela cruzou as mãos na altura da cintura, parecendo apoiá-las
na ondulação de suas saias enquanto caminhava.
— É muito difícil escolher. Achei Tempos Difíceis bastante
instrutivo. E gostei muito de ler A Loja de Antiguidades.
Justin ergueu as sobrancelhas.
— A senhorita gostou da morte da pequena Nell?
— Não, não da morte dela, mas... é uma história muito
comovente. — Ela o olhou. O vento soprava as fitas do chapéu dela
como se fossem duas flâmulas de seda. — O senhor não acha, sr.
Thornhill?
O que ele achava era que ela estava incrivelmente bonita no
momento. Seria muito cedo para dizer isso a ela? Se fosse um
namoro e noivado tradicionais, não teria hesitado. Mas quais eram
as regras quando se ficava noivo por meio de um anúncio
matrimonial? Essas regras ainda se aplicavam? Depois da maneira
rude com que ele se dirigiu a ela na King’s Arms, uma palavra suave
ou um elogio provavelmente não significariam nada para a dama.
Ele já havia provado ser um bruto, vulgar e sem maneiras.
— Justin — ele falou com rispidez.
— Perdão?
— Estamos noivos e vamos nos casar, não é? Não vejo razão
para continuar a me chamar de sr. Thornhill. Meu nome é Justin. Eu
lhe dou permissão para usá-lo.
— Oh. — Sua voz soou fraca.
— E a senhorita? — ele pressionou. — Ou devo chamá-la de
srta. Reynolds até que tenhamos feito nossos votos?
— Se é o que prefere.
— Não prefiro. Na verdade, eu detestaria.
Ela respirou fundo.
— Bem, nesse caso, acho melhor que me chame de Helena.
— Helena — ele repetiu, e apertou as mãos às costas. —
Estamos avançando com rapidez.
— De fato. Tudo está acontecendo com uma enorme
velocidade.
— Não é esse o ponto?
Ela puxou os dedos de uma de suas luvas, em movimentos
curtos e agitados que expressavam sua inquietação de forma mais
eloquente do que as palavras jamais poderiam.
— Mas?
— Vai precisar de alguns ajustes, não é? Não importa nossas
intenções. — Os olhos encontraram os dele. — Precisa ser paciente
comigo.
— É claro. Sempre.
As palavras de Justin pareceram tranquilizá-la um pouco, mas
ele teria que ser um tolo para não reconhecer a dúvida persistente
que nublava o olhar da dama. Ela não confiava nele. Ainda não. E
não podia creditar toda a culpa a ela. Até agora, havia feito pouco
para ganhar sua confiança. Muito pelo contrário. Estava sendo
taciturno demais. Volátil em excesso. Estava tudo muito bem
quando ele grunhia ordens para Boothroyd, mas se queria ganhar a
consideração de Helena Reynolds, teria que se esforçar mais.
Empenhou-se em organizar os pensamentos dispersos.
— Estávamos falando sobre o sr. Dickens.
— É verdade.
— A Loja de Antiguidades, creio eu.
— O senhor estava prestes a me dizer que não gostou.
— Não desgostei.
— Mas não o achou tão comovente quanto eu.
— Quanto a isso... — Ele ergueu a mão para esfregar a lateral
da mandíbula. — Foi tocante, decerto. Para quem gosta desse tipo
de coisa.
— O que o senhor não gosta, imagino.
— Não gosto de sofrimento sem propósito. Dor e sacrifício
deveriam resultar em algo no final. Deve ter significado.
Helena assentiu devagar, com a expressão pensativa.
— Sim, deveria. Mas não estou convencida de que seja assim.
Não de verdade.
— Você tem um ponto de vista desalentador.
— Só posso falar por experiência própria.
Justin fitou a noiva, avaliando-lhe o olhar. Não era de sua
natureza ser simpático nem oferecer consolo, mas, ao registrar as
linhas finas de tensão no rosto dela, sentiu o mesmo inexplicável
instinto de proteção que o atormentou mais cedo na estalagem.
— Você tem lido os romances errados.
Ela sorriu.
— O senhor acha?
— Sim. Não é nada bom. Se não tomar cuidado, a leitura a
levará direto a uma profunda melancolia.
— Bom Deus. Espero que não seja um daqueles cavalheiros
que acreditam que as mulheres devem se restringir a livros que as
ajude a aperfeiçoar o caráter.
— Nada disso.
— O que recomenda, então? — ela perguntou. — Manuais de
agricultura? Periódicos de arquitetura?
— Qualquer um seria melhor que contos de sentimentalismo
extremo sobre criaturas inocentes morrendo sem motivo, mas não.
O que você precisa é de consumo constante de histórias de
aventura e tramas de vingança. O sofrimento sempre tem
significado nesses gêneros.
— É isso que lê, senhor?
— Quando o tempo permite. O que não quer dizer que eu não
possua um ou dois romances de Dickens. Tenho uma cópia de
David Copperfield em minha biblioteca e vários outros além deste.
Pode lê-los sempre que desejar; e adicionar outros à coleção
também, se quiser.
O brilho de diversão desapareceu dos olhos dela.
— É muita generosidade de sua parte. Obrigada.
Ele reconheceu o agradecimento com uma inclinar de cabeça.
Ela estava perto o suficiente para que ele pudesse sentir o roçar da
saia na perna de sua calça enquanto caminhavam, podia sentir o
leve aroma do perfume dela misturado à maresia.
Helena estava tão ciente dele quanto ele dela? De alguma
forma, duvidou. Ela tinha voltado a olhar para o topo do penhasco.
Ficou claro que os pensamentos dela estavam em outro lugar.
— Não há outras casas? — ela perguntou depois de um tempo.
— Algumas. Principalmente chalés. Mas não será capaz de vê-
los daqui. A única construção que conseguirá ver, embora não muito
bem, fica lá. — Ele apontou para um contorno fraco ao longe.
Ela protegeu os olhos com a mão.
— O que é aquilo?
— A torre da igreja de Abbot’s Holcombe.
— Mas está tão perto! — ela exclamou. — Achei que você
tivesse dito que ficava a vinte e cinco quilômetros daqui.
— Só pela estrada. Do topo do penhasco e depois de barco,
não é muito longe.
Uma carranca de preocupação apareceu no semblante da
dama enquanto o olhar dela se movia ao longo da face do penhasco
e depois para a água abaixo. Os penhascos em Abbot’s Holcombe
eram alguns dos mais perigosos do distrito, apenas um punhado de
afloramentos rochosos quebrando o que de outra forma teria sido
uma queda vertical no mar.
— Existe um caminho até a praia? — ela perguntou. — Como o
que sai da Abadia?
— Nada tão civilizado quanto esse. Se alguém quiser chegar à
praia pelas falésias de Abbot’s Holcombe, precisa escalar.
— As pedras? Mas ninguém conseguiria realizar tal façanha,
com certeza. É muito íngreme.
Ele deu de ombros.
— Eu as descia.
— O senhor? — Ela se virou para olhá-lo, com os lábios
entreabertos de espanto.
Se estivessem conversando sobre qualquer outro assunto,
Justin poderia ter se divertido com a reação dela. Sobre aquilo, ele
não conseguia nem sorrir.
— Quando eu era menino — relatou. — Não tinha mais do que
nove ou dez anos de idade, eu e meus amigos devíamos fazer a
escalada pelo menos uma vez por semana.
— Para quê, pelo amor de Deus?
Justin olhou para o topo do penhasco, seu rosto era uma
máscara de indiferença cuidadosamente cultivada. Em seu afã par
comprar a Abadia, não havia considerado como seria ver os
penhascos de Abbot’s Holcombe todos os dias pelo resto de sua
vida. Jamais tinha refletido como seria lembrar. Não. Estava
consumido em demasia por sua sede de justiça. Concentrado
demais na vingança.
Ele se voltou para Helena:
— Os meninos costumam fazer tolices. Quando algum deles
precisa de um motivo?
Ela balançou a cabeça.
— Não posso acreditar que seus pais permitiam.
— Não tínhamos pais.
— Não? — Ela franziu a testa. — Quer dizer que... que o
senhor e seus amigos...
— Éramos órfãos da abadia — Justin respondeu com franqueza
brutal.
Não queria contar a ela. Ainda não. Mas não havia como voltar
atrás agora. E também não queria. Era quem ele era. Um órfão. Um
bastardo. Se Helena Reynolds fosse a simples solteirona de classe
trabalhadora que ele esperava, não teria tido escrúpulos em
confessar.
Em vez disso, ela era uma lady. Uma dama adorável e de
modos impecáveis. E apesar das garantias de Finchley de que as
circunstâncias de seu nascimento não importariam para ela, Justin
sabia muito bem que não havia muitas mulheres que se alegrariam
com a oportunidade de se casar com um homem de ascendência
duvidosa. Não, a menos que o homem possuísse uma fortuna
suficientemente grande, o que ele com certeza não tinha.
Ele observou o rosto de Helena, esperando o primeiro lampejo
de repulsa fazer sua inevitável aparição.
— Em Abbott’s Holcombe? — ela perguntou.
Ele assentiu, ainda esperando.
Helena lhe lançou um olhar longo e perscrutador.
— É por isso que nós odiamos o lugar?
Nós.
O peito de Justin se expandiu em uma onda quase dolorosa de
emoção. Não sabia dizer se era alívio ou, pior, gratidão. Tudo o que
ela disse foi nós. Não foi uma declaração de afeição eterna, mas,
para ele, naquele momento, era tudo.
— Sim. Esse é o motivo.
Helena voltou a atenção para a face do penhasco.
— Estou surpresa que ninguém nunca tenha se machucado.
Ele seguiu seu olhar, carrancudo.
— Alguém se machucou. Outro menino, um amigo de infância
meu, escorregou nas rochas e caiu no mar. Ele bateu com a cabeça
na queda.
— Que horrível. — Seus olhos se encheram de simpatia. — Ele
se feriu com gravidade?
— Sim. Muita. Ele não tem sido o mesmo desde então. —
Justin pigarreou. — O que é minha culpa, na verdade. Todo mundo
sempre disse que ele me seguiria onde quer que eu fosse. E fui eu
quem insisti na escalada.
— Ah, meu querido Senhor... — ela murmurou.
Seu coração deu uma guinada desesperada e patética,
acreditando por um único e fugaz instante que ela o tratou por meu
querido. Que o tom suave e carinhoso havia sido para ele. Mas ela
estava apenas lamentando o destino infeliz de um garoto
desconhecido.
Ou talvez nem tanto.
— Foi Neville? — ela perguntou.
Ele assentiu com rigidez.
Helena olhou para longe dele, voltando o rosto para o mar. À
distância, as ondas de cristas brancas se ergueram para quebrar na
água, deixando nada além de espuma para bater na areia. Chegou
a poucos centímetros de molhar suas botas.
Justin alcançou seu braço para guiá-la de volta ao solo seco,
mas não havia necessidade. Ela evitou a água sem sua ajuda. Ele
abaixou a mão, inútil, de volta ao seu lado.
— Você é muito gentil — ela disse.
Ele se assustou. Era a segunda vez que ela se referia a ele
como gentil.
— Por dar um emprego a Neville? Dificilmente. Ele nem mesmo
é um criado. Ele escolhe trabalhar. Insiste nisso, na verdade.
— Ele não deseja ficar ocioso.
— Neville é teimoso. Sempre foi. Mas não vou reclamar. Tenho
sorte de tê-lo. Qualquer um teria. Ele faz o trabalho de cinco
homens, tudo sem reclamar.
— Como eu notei. — Ela o olhou, havia uma sugestão de
sorriso na curva exuberante de sua boca. — Ele costuma servir chá
para seus convidados?
Justin fez uma careta.
— Não, graças a Deus. — O chá deles havia sido o resíduo
aguado e sem sabor de folhas na quarta infusão. Porque Neville não
tinha usado chá fresco da lata, ele não sabia. Tinha suas suspeitas,
é claro. Suspeitas que recaíram diretamente sobre os ombros de
Boothroyd. — Neville prefere estar ao ar livre.
— Ele parecia bastante desconfortável dentro da abadia.
Pensei que fosse por minha causa.
— Ele não está acostumado a ver mulheres por aqui.
— Sua cozinheira é uma mulher.
— A sra. Whitlock é uma harpia de sessenta anos, com cabelos
grisalhos e um fraco por gim barato. Perto de você, ela pode ser
considerada de uma espécie diferente.
— E é feliz por ser assim, não tenho dúvidas — Helena
comentou. — Há vantagens em ser uma mulher de sessenta anos.
— Há, de fato.
— É claro. — Ela começou a enumerá-los com a facilidade de
alguém que havia pensado muito no assunto. — Liberdade.
Independência. A capacidade de ir aonde quiser e fazer o que
quiser. A capacidade de ser tão excêntrica quanto desejar.
Enquanto Justin ouvia, não podia deixar de se perguntar o
quanto Helena valorizava a própria independência. Muito, suspeitou.
Ela mencionou algo nesse sentido na primeira carta que escreveu
para ele. Ainda conseguia se lembrar das suas palavras fluindo pela
página com sua letra pequena e uniforme, tão inconfundivelmente
feminina:
Nunca tive a intenção de me casar, mas uma virada na minha
fortuna tornou impossível para mim permanecer independente.
O casamento, ao que parecia, era o seu último recurso. E que
não era de todo agradável.
— A única mulher com mais independência do que a idosa —
ela continuou —, é a viúva.
— Exatamente — ele concordou. — Embora eu deva
aconselhá-la: se você aspira à viuvez, deveria considerar se casar
com um homem com mais de dois e trinta anos.
Ela o olhou com reprovação.
— Não estou aspirando a nada disso. Estou apenas declarando
um fato. Sobre sua cozinheira, devo acrescentar.
— Sua também, em um futuro muito próximo.
Ela ficou mais corada.
— Sim.
Continuaram a caminhar lado a lado na beira da água. Em
poucos minutos, teriam que voltar para a casa. Justin teria que
colocá-la na carruagem com sua criada temporária e mandá-la de
volta para King’s Arms. E então...
E então, ele teria que esperar.
Mas por quanto tempo? Alguns dias? Algumas semanas
enquanto os proclamas eram lidos? A perspectiva era
desanimadora, mas Helena não poderia ficar na abadia. Não com
metade dos aldeões já acreditando que ele era um monstro cruel e
oportunista. Arranjar uma esposa deveria ajudar sua reputação, não
a afundá-la ainda mais no lodaçal.
— Você ainda não respondeu à minha pergunta — ele pontuou.
Helena olhou para ele, perplexa.
— Que pergunta?
— Sobre as coisas de que sentirá falta em Londres.
— Ah, essa. — Ela ficou quieta por vários segundos, parecendo
refletir sobre o assunto com uma solenidade incomum. — Havia um
lugar de que eu gostava muito. Embora eu dificilmente possa dizer
que sentirei falta de lá. Não existe mais. — Ela afastou uma fita
rebelde de sua boca enquanto explicava: — No verão antes de meu
irmão partir com seu regimento, ele me levou ao Palácio de Cristal.
— O Palácio de Cristal? — A deslumbrante estrutura de ferro
fundido e vidro laminado foi erguida no Hyde Park em 1851 para
abrigar a Grande Exposição. Foi uma chance para a Grã-Bretanha
se mostrar como líder em tecnologia e design industrial, e também
para exibir a arte e as invenções de outras nações. — A Grande
Exposição foi há oito anos.
— Sim, eu sei, mas... é a única lembrança feliz que tenho de
Londres.
Justin considerou a revelação com uma sobrancelha
ligeiramente franzida. Não conseguiu apontar o que havia na
declaração dela que o perturbou tanto. Ela não parecia triste, nem
estar agindo com autocomiseração, apenas sendo objetiva, como se
estivesse falando do tempo.
— Me conte — pediu.
Ela precisou de pouco incentivo.
— Passeamos por horas. Primeiro pela galeria indiana e depois
para ver as exposições da Turquia e da China. Meu irmão insistiu
em visitar tudo. Parecíamos duas crianças. Foi tudo... — Ela buscou
as palavras certas. — Ah, não consigo descrever. Foi tudo tão
maravilhoso. Havia um elefante com grama na tromba. E uma tenda
indiana cheia de tapetes carmesim e ouro. E então entramos em fila
com uma centena de outras pessoas para ver o maior diamante do
mundo.
— O Koh-i-Noor.
Ela olhou para ele.
— Chegou a vê-lo, sr. Thornhill?
— Justin — ele a corrigiu. — E sim. Vi. Também visitei o Palácio
de Cristal naquele verão.
A entrada custou apenas um xelim, o que lhe pareceu um
pequeno preço a pagar para admirar exposições de todo o mundo.
Ele se lembrava de ter passado muito tempo nas galerias de
máquinas olhando o tear mecânico da Harrison Power Loom e as
máquinas de algodão da Hibbert, Platt and Sons. No entanto, visita
nenhuma ao Palácio de Cristal estaria completa sem que visitassem
sua exposição mais famosa.
— Quando o vi — Helena disse —, estava dentro de uma gaiola
dourada iluminada por um anel de pequenos jatos de gás. As
pessoas reclamavam que a pedra não brilhava.
— Foi a mesma relação de quando o vi. — Ele abriu um sorriso
irônico. — Será que estivemos lá ao mesmo tempo?
Ela pareceu muito impressionada com a ideia.
— Talvez, sim. Talvez estivéssemos destinados a nos encontrar
novamente.
— Você acredita em destino?
— Não sei. — Ela olhou para baixo. — Eu gostaria de acreditar.
— Decerto é uma explicação mais romântica para toda essa
história do que você ter respondido ao meu anúncio matrimonial.
Não teve a intenção de constrangê-la, mas a julgar pela cor em
seu rosto, parecia que fez exatamente isso. Justin se amaldiçoou
por ser um bruto insensível. De qualquer forma, era muito cedo para
falar de romance. Não fazia ideia da razão para ter sequer tocado
no assunto. Todo o propósito de um anúncio matrimonial era
encontrar alguém e se casar sem o fardo de galantear e cortejar. O
fato não deveria mudar simplesmente porque a mulher que
respondeu ao seu anúncio era doce, suave e bonita.
— Acredita que o romance é necessário em um arranjo como o
nosso? — ela perguntou.
— Necessário? Não. Eu diria que não. — Ele passou a mão
pela nuca. — Bem, mas não sou especialista.
Helena abaixou a cabeça e a aba do chapéu protegeu o rosto
dela das vistas de Justin.
— E a amizade?
Ele pensou ter detectado uma nota de esperança na voz de
Helena, mas não tinha certeza.
— Ah. Acredito que amizade é uma questão diferente.
— Então acha necessária?
— Necessária, não, mas sem algum grau de amizade, o
casamento não seria muito confortável, seria?
— Não, acredito que não — ela respondeu. — E, no entanto,
muitos cavalheiros acreditam que a esposa não é uma amiga, mas
sua inferior. Tratam a esposa como se ela fosse criança.
— É porque a querem proteger.
Ela envolveu os braços ao redor da cintura.
— Eu gostaria que as mulheres pudessem se proteger.
— Assim como eu. Mas o mundo em que vivemos não funciona
assim. — Justin teria falado mais sobre o assunto, mas conforme
caminhavam mais próximos um do outro ao longo da beira da água,
sua atenção foi atraída por um brilho de vidro cintilante na areia
molhada. Ele se abaixou para pegá-lo.
Helena se aproximou, curiosa.
— O que é?
Poliu rápido o vidro com a manga de sua casaca. Ela tinha um
brilho âmbar cintilante.
— Lágrimas de sereia — respondeu ao se levantar. — Aqui.
Abra a mão. — Quando ela fez o que foi dito, Justin colocou o vidro
no meio da palma da mão dela. — Parece ser de uma garrafa
quebrada. Provavelmente conhaque francês contrabandeado
durante a guerra contra Napoleão.
Ela traçou a borda arredondada do vidro com a ponta do dedo
enluvado.
— É lindo — ela sussurrou. — Como uma joia.
Ele limpou a areia das mãos.
— Não é nenhum diamante Koh-i-Noor, infelizmente.
— Não, não é — ela reconheceu, ainda olhando para a lágrima
de sereia em sua mão. — Mas é a coisa mais adorável que
alguém...— Ela parou de falar, perdendo visivelmente a compostura.
Ele deu um passo instintivo em sua direção.
— Helena — Justin a chamou, com a voz rouca de
preocupação.
Ela ergueu os olhos para encontrar os dele.
— Como sou boba. Perdoe-me.
Justin sentiu uma onda repentina de ternura. Se ela já não o
tivesse rejeitado uma vez, teria ficado muito tentado a tomá-la em
seus braços. Ainda assim, não conseguiu se conter, e estendeu a
mão então, muito suavemente, roçou a bochecha dela com os nós
dos dedos. Ele a ouviu inalar uma respiração instável.
— Não sou um indigente, Helena. Serei capaz de lhe dar mais
do que lágrimas de sereia. Mas não quero que abrigue ilusões. Não
sou um homem rico. Nem fui criado como um cavalheiro. Devo ao
Exército de Sua Majestade a oportunidade de ter visto algo do
mundo e saber como viver em sociedade, não a nenhum acidente
de nascimento.
— Por que está me contando isso?
— Porque eu quero que saiba que tipo de homem eu sou.
— Eu já sei que tipo de homem é. O sr. Finchley me disse. Se
eu tivesse qualquer objeção, nunca teria escrito para o senhor.
Justin franziu a testa. Em um futuro muito próximo, pretendia
trocar algumas palavras com Tom Finchley.
— Ele não deve ter lhe contado tudo. Deve ter deixado o pior
para mim.
Justin viu a pergunta em seus olhos, o lampejo inconfundível de
incerteza, mas ela não pediu esclarecimentos. Não perguntou nada.
A falta de curiosidade da dama o intrigou extremamente.
— Helena — disse —, você precisa entender.
— Não importa.
— Mas é importante. As circunstâncias de meu nascimento... a
forma como comprei a abadia; até minha captura na Índia. Tem
havido falatório, a maioria bastante desagradável. Os mexeriqueiros
daqui até Abbot’s Holcombe farão um grande esforço para informá-
la de todos os detalhes sórdidos.
Ela ficou um pouco mais pálida, mas não se esquivou. Também
não permaneceu em silêncio. Em vez disso, fez uma pergunta a ele.
A mesma que ele havia feito a ela antes, na King’s Arms.
— O senhor infringiu a lei?
— Não. — E era verdade, não importava o que as fofocas da
aldeia dissessem sobre a forma como ele adquiriu a abadia.
Helena engoliu em seco.
— E já... já machucou uma mulher?
Sua expressão endureceu apenas com sugestão, e a resposta
foi rápida e feroz:
— Não — jurou a ela. — Pela minha honra.
— Então eu não me importo com o resto. — Ela começou a se
virar, mas ele segurou o lado de seu rosto com firmeza, mas de
forma gentil, obrigando-a a encontrar seu olhar.
— E depois? — perguntou. — Daqui a uma semana. Daqui a
um mês. O que acontecerá quando perceber que odeia viver aqui?
O que acontecerá quando perceber que me odeia? Assim que nos
casarmos, será tarde demais para você mudar de ideia. Estará
ligada a mim pelo resto da vida.
— Eu sei. E não vou mudar de ideia. Apenas... — Ela agarrou a
conta de lágrima de sereia contra o volume de seus seios. — Por
favor, vamos nos casar rapidamente.
O coração de Justin começou a bater com uma força
vertiginosa.
— Com que rapidez?
— O mais rápido possível — ela respondeu. — Não quero
voltar para Londres. Quero ficar aqui. Na abadia. Quero que nos
casemos e comecemos nossa vida juntos.
Ele a olhou em silêncio por um momento, a mão grande e
enluvada ainda segurando a bochecha com cuidado e delicadeza.
Ela estava tremendo sob seu toque, tendo pequenos arrepios
delicados que ele podia sentir na palma da mão e ouvir em cada
respiração dela.
— Por favor, Justin — ela sussurrou.
Ele entendeu, então, que Boothroyd estava certo por se
preocupar com seu estado de espírito, e com o estado de sua conta
bancária também, pois enquanto olhava para Helena Reynolds,
Justin foi atingido por uma determinação profunda de mover
montanhas por ela. Fazer o possível e o impossível para fazê-la
feliz, desde que ela consentisse em ser dele e só dele.
— Muito bem — Justin disse. — Se é isso que realmente
deseja, quem sou eu para recusar tal pedido?
Capítulo Quatro

Um casamento rápido não era inteiramente possível, como


Justin explicou na manhã seguinte na estalagem.
— Mas você terá que passar mais uma noite aqui, infelizmente
— disse. Helena observou enquanto ele tirava chapéu, luvas e o
sobretudo encharcado pela chuva. O cabelo dele estava molhado, e
uma mecha preta caía sobre a testa. — O escrivão-chefe exige que
esperemos um dia inteiro antes de ele emitir uma licença.
Não foi a melhor das notícias. Ela já tinha sido obrigada a
passar uma noite na The King’s Arms. Passou uma noite longa e
terrível espiando pela janela do quarto, esperando por alguém que
não apareceu. Mal dormiu.
— Embora ele tenha concordado em nos casar amanhã de
manhã, a qualquer hora antes das onze — Justin acrescentou. —
Se isso lhe convier. — Helena enrolou as pesadas dobras de seu
xale indiano com mais firmeza sobre os ombros e começou a andar
pela sala privada. Não, ela queria chorar. Isso não lhe convinha de
jeito nenhum. Mas não adiantava discutir. Justin já tinha deixado
bem claro que ela não poderia ficar na abadia antes de se casarem.
Isso prejudicaria sua reputação, ele disse ontem. As pessoas da
cidade falariam.
— Acho que sim — respondeu —, já que parece que tenho
pouca escolha quanto a isso.
— Verdade — Justin reconheceu após um longo silêncio.
Ela mordeu o lábio, perdida em pensamentos, enquanto
caminhava até o final da sala e voltava. Quando lançou um olhar
para Justin, viu que ele ainda estava parado na frente da lareira
apagada, observando seu ritmo agitado com uma expressão
curiosamente extasiada.
Ele também estava vestido com roupa de montaria, ela
percebeu. Casaco escuro, colete de tecido desbotado e calça de cor
clara agarradas às suas pernas longas e poderosas. Cada peça da
vestimenta apresentava evidências do tempo inclemente, desde
suas botas sujas de lama até o plastrão úmido e ligeiramente
murcho.
Helena sentiu uma pontada de culpa.
— Foi até Abbot’s Holcombe? Com esse tempo?
Ele passou a mão autoconsciente pelo cabelo.
— Não estava chovendo quando eu saí.
— E em seguida cavalgou até aqui?
— Prometi que nos falaríamos esta manhã, não foi?
Helena se perguntou se ele sempre cumpria suas promessas,
por mais incômodas ou inconvenientes que fossem.
— Verdade — ela respondeu, se movendo em direção ao antigo
puxador de sino pendurado ao lado da lareira. Deu um puxão forte.
— E minhas maneiras foram péssimas.
Ele franziu o cenho.
— É mesmo? Não tinha percebido.
— Deixei-o ficar aqui tremendo enquanto eu... — Ela parou ao
som de uma batida suave na porta, que anunciou o aparecimento de
Bess. A moça havia retomado com relutância suas funções na
estalagem naquela manhã, depois de ter passado a noite em uma
cama no quarto de Helena.
— Quer seu chá agora, senhorita? — ela perguntou.
— Por favor, Bess. E mande alguém vir acender o fogo.
— Sim, senhorita. — Bess fez uma reverência e então se
retirou, fechando a porta atrás de si.
Helena voltou a atenção para Justin.
— Não vai se sentar?
— Se você for.
— É claro. — Ela gesticulou em direção a duas poltronas perto
da lareira. Ele assentiu e, depois que ela se sentou, fez o mesmo. —
Ah! — Ela se moveu para ficar de pé mais uma vez. — Eu deveria
ter mandado Bess tirar suas botas. Devo chamá-la de volta?
— Não se preocupe. Elas voltarão a ficar enlameadas na
jornada de volta para a abadia.
Helena queria dizer a ele que não era a lama que a
preocupava, mas a umidade. Teria feito isso se fosse seu irmão que
tivesse acabado de entrar com as botas encharcadas. Mas Justin
Thornhill não era seu irmão. Abordar um assunto tão indelicado
como seus pés, molhados ou não, parecia indecente.
— Eu não gostaria que o senhor se resfriasse — disse, em vez
disso.
Um breve sorriso curvou a boca de Justin. Ela teve a sensação
de que ele sabia exatamente em que ela estava pensando.
— Não sou tão frágil assim — ele respondeu. — Se eu fosse,
não duraria muito aqui.
— Não. Imagino que não — ela respondeu, com um sorriso
fraco, embora sorrir fosse a última coisa que desejava fazer no
momento.
Amanhã, se tudo corresse conforme o planejado, esse homem,
esse estranho, seria seu marido. Para o bem ou para o mal, ele
seria dotado por lei de todos os direitos que um homem tinha sobre
a esposa. E poderia exercê-los como quisesse. Poderia até mesmo
bater nela ou confiná-la, se assim desejasse. Justin poderia fazer
quase qualquer coisa, menos matá-la, e ninguém o impediria.
Isso era casamento, como ela sabia. E era isso com que estaria
consentindo livremente no cartório de registros de Abbot’s Holcome.
Era impossível pensar no acontecimento sem a onda de pânico
que a acompanhava.
Ela engoliu em seco.
— Espero que já tenha parado de chover quando o senhor
voltar para a abadia.
— Eu também.
A conversa foi interrompida por outra batida na porta, que
precedeu a entrada de um criado de cabelos grisalhos. O idoso os
informou de que viera acender o fogo. Enquanto ele se ocupava
com a lareira, acendendo primeiro os gravetos, Bess chegou com
uma bandeja de chá.
— A sra. Blevins disse para lhe avisar que ela fez os bolinhos
esta manhã — a criada falou, ao colocar a bandeja em uma mesa
baixa perto da cadeira de Helena. — Deseja mais alguma coisa,
senhorita?
— Não, obrigada, Bess. Assim está ótimo. Por favor, transmita
nosso agradecimento à sra. Blevins.
— Sim, senhorita. — Bess fez outra reverência afetada antes
de partir com o outro criado não muito atrás dela. A porta da sala
privada se fechou atrás deles com um estalido decisivo.
Helena arrumou as xícaras de chá e começou a servir. Como a
única mulher em uma família de homens, estava acostumada a ser
a responsável por cuidar da bandeja de chá. No entanto, na
presença de Justin, o ritual familiar parecia desajeitado e novo. Ela
podia senti-lo observando cada movimento que fazia.
Se ele notou seu desconforto, não deu sinal. Mas quando ela foi
entregar a ele a xícara de chá, os dedos nus roçaram nos dele. Ele
olhou para ela, então, e uma expressão estranha cruzou o rosto do
noivo.
Ela se recostou na cadeira.
— O que houve?
— Nada.
— Fiz algo de que achou graça.
— Não, apenas me surpreendeu. — Ele apoiou a xícara de chá
no colo. — Suas atenções parecem muito algo que... uma esposa
faria.
As bochechas dela aqueceram.
— Claro que não. Só quero que se sinta confortável. É o
mínimo que posso fazer depois de você cavalgar com esse tempo
por minha causa.
— Não é só por sua causa. Vou me casar amanhã, também, se
bem se lembra.
— Sim. — Ela serviu a própria xícara de chá, adicionando uma
boa quantidade de açúcar. Jenny sempre disse que chá com muito
açúcar ajudava em tempos de crise. Foi tudo o que Helena
conseguiu se lembrar de beber nas semanas seguintes à notícia do
desaparecimento do irmão. — Mas fui eu que insisti em um
casamento apressado. Atrevo-me a dizer que você teria preferido
esperar que os proclamas fossem lidos.
— Três semanas? Está atribuindo a mim muita paciência.
— Não é paciência, mas... não deseja se casar em uma igreja?
Ele se serviu de um bolo que estava na bandeja.
— Pareço um homem particularmente piedoso?
— Não é preciso ser piedoso para se casar em uma igreja.
Basta ser tradicional.
— Também não o sou. É por isso que um cartório me servirá
bem.
Ela sorveu o chá. O líquido escaldante e açucarado desceu por
sua garganta. O que a aqueceu, ajudando a acalmar seus nervos
em frangalhos como sempre fez.
— Mesmo que seja em Abbot's Holcombe?
— Não há muita escolha. Não se quisermos nos casar
rapidamente. — Ele olhou para a xícara de chá por um momento,
uma carranca nublou sua expressão por um breve instante. — E
não é de todo ruim. Há um bom hotel lá e várias lojas muito
decentes. Você pode querer visitar algumas delas enquanto
estivermos na cidade.
— Ah, não. Não será necessário. Fui sincera ontem quando
disse que não lhe custaria muito.
— E eu quando disse que você teria tudo de que precisasse.
Ela tocou a ponta macia do xale indiano. A peça se derramava
ao seu redor, escorria pela cadeira, ainda meio envolta em seus
braços.
— Eu realmente não preciso de nada. Trouxe o suficiente
comigo por ora. Depois que nos casarmos, posso mandar buscar o
resto das minhas coisas.
— O resto das suas coisas? — Justin a olhou por cima da
borda da xícara de chá. — Quanto mais há?
— Muito mais, guardado em Londres. Era demais para trazer
comigo no trem. Quase não havia espaço na bolsa de viagem. E eu
não tenho criada para limpar e passar meus vestidos. Tudo está em
um estado terrível. — Suas palavras saíram em uma corrida
ansiosa. Não conseguia detê-las. — Eu queria estar no meu melhor,
mas viajava sozinha e não queria chamar a atenção...
— Helena — ele a interrompeu. — Helena, está tudo bem.
— Estou tagarelando, não estou? — Ela olhou para ele,
sentindo-se repentinamente desamparada. — Temo estar
sobrecarregada.
— Eu sei. Vou cuidar de tudo.
— Você não pode.
Ele lhe lançou um sorriso rápido e irônico.
— Experimente.
Helena ansiava confiar nele. Contar tudo. Desabafar todos os
seus problemas diretamente sobre aqueles ombros largos. Ele
estava disposto a suportá-los, ela sabia. O homem era rude e
sinistro, mas era carinhoso e gentil também. Via isso agora com
bastante clareza. Sua consciência pesava por enganá-lo, mas,
muitas vezes no passado, havia sido vítima de cavalheiros que se
mostraram simpáticos. Por isso não conseguia confiar nos próprios
instintos agora. Por mais que a preocupação de Justin Thornhill
parecesse genuína, ela sabia, bem lá no fundo, que não poderia
confiar totalmente nele até que se casassem.
O que estava muitíssimo bem, disse a si mesma. Em menos de
um dia, seriam marido e mulher. Haveria muito tempo para confiar
nele então. Uma vida inteira, na verdade. Ora, ela poderia até
mesmo começar a gostar dele.
Embora se ele gostasse ou não dela quando tudo fosse
superado, seria outra questão.
Helena tomou outro gole de chá.
— Não é uma coisa. São sentimentos. Nervosismo.
— Tudo muito natural, acredito.
Ela arqueou as sobrancelhas.
— Você está nervoso?
Justin a olhou em silêncio por um momento. A sensibilidade que
brilhava em seus olhos há um instante foi dando lugar a algo
intenso, quase predatório.
— Estou ansioso. Creio que só ficarei completamente calmo
quando você for minha.
O estômago de Helena deu uma cambalhota desconcertante.
Ela tomou outro gole apressado de seu chá, com os olhos ainda
fixos nos dele.
— Nem eu. Até que você seja meu, quero dizer.
Para seu espanto, um rubor vermelho surgiu no pescoço de
Justin, visível logo acima da linha do plastrão. Ele pigarreou.
— Eu já lhe disse; quer dizer, sei que não, mas eu queria... seu
vestido e seu... — Ele apontou para o xale. — Veio da Índia?
— Sim. Foi um presente do meu irmão.
— Ora, bem, parece muito bonito — ele disse. — Você está
muito bonita.
Ela apoiou a xícara de chá de volta ao pires e os devolveu à
bandeja. O coração batia com uma força incomum.
— Obrigada. Mas não precisa se sentir compelido a dizer essas
coisas.
— Não me sinto.
— Já concordamos que romance não é necessário em um
acordo como o nosso.
— O que romance tem a ver com isso?
Helena não conseguiu pensar em nenhuma resposta plausível,
então, em vez disso, dirigiu-se à bandeja de chá. Voltou a encher
cada uma das xícaras e, em seguida, ofereceu a Justin outro
pedaço de bolo. Escolheu um para si mesma também, e passou
algum tempo cortando-o, desnecessariamente, em partes iguais.
No fundo de sua mente, a voz severa de Jenny a advertiu por
ser tão tímida e estranha. Não bastava simplesmente alimentar um
convidado, disse a voz. Deve-se envolvê-lo em uma conversa
educada também. Helena sabia disso. Passou anos bancando a
anfitriã, primeiro para o pai, depois para o irmão e o tio. Bastava
uma observação inócua sobre o tempo. Qualquer coisa serviria a
essa altura.
— Fez muito frio ontem à noite — ela disse, por fim.
Justin franziu as sobrancelhas escuras com preocupação
imediata.
— Você não estava suficientemente aquecida?
— Não no começo, não. Mais tarde, porém, a sra. Blevins
trouxe um cobertor extra para mim. — Ela fez uma pausa para
colocar mais açúcar no chá. — Ela disse que as noites na Abadia de
Greyfriar serão ainda mais frias.
— Você não vai precisar de cobertores extras para se aquecer
na abadia.
— Oh, não — ela concordou, lembrando-se da preocupação do
sr. Boothroyd com o excesso de despesas. — De jeito nenhum. Sou
perfeitamente capaz de me habituar ao que estiver disponível.
Justin curvou a boca em um meio sorriso confuso. Ela temeu
que o homem dissesse algo mais sobre economia e ficou aliviada
quando ele mudou de assunto.
— Espero que a Bess tenha ficado com você ontem à noite.
— Ficou. — Helena espalhou uma colher de chá de geleia de
morango da sra. Blevins em uma fatia de bolo. — Você vai contratá-
la como minha acompanhante esta noite também?
Ele assentiu.
— Seria um incômodo para você?
— Não particularmente — respondeu, acrescentando: — A
Bess tem me contado a história da abadia.
Justin fez uma careta.
— Que versão da história seria essa? A com o monge
malvado? Ou a do fantasma e o tesouro enterrado?
— A do monge louco e o ouro dos papistas.
— Bom Deus. Ele é louco agora?
— A Bess disse que sim.
— E papista também? Fica mais gótico a cada segundo.
Helena tomou um gole de chá.
— Sabe por que há tantas superstições locais sobre a
abadia?
— Não com certeza. Há rumores sobre monges
fantasmagóricos e tesouros enterrados desde que me lembro. Eu
mesmo acreditei neles quando era menino.
— É por isso que você e seus amigos desciam os penhascos
para ir até lá toda semana?
Ele esmigalhou um pedaço de bolo no prato, parecendo
considerar sua resposta.
— Não de todo. Embora Finchley sempre tenha tido esperanças
de que encontraríamos ouro escondido.
Ela arregalou os olhos.
— O sr. Finchley?
— Ele não lhe contou?
Helena balançou a cabeça. O sr. Finchley era jovem e até
bonito de certa forma, mas seus modos, embora gentis, eram
estritamente profissionais. Ele não disse a ela nada sobre si mesmo,
e as informações que transmitiu quanto a Justin tinham sido mais
uma forma de garantias do que confidências.
Ela se lembrou de como ele se inclinou sobre a mesa para lhe
entregar o lenço, e que seus olhos azul-claros eram infalivelmente
simpáticos.
— Thornhill a protegerá — ele prometera. — Depois que se
tornar esposa dele, ninguém nunca mais tocará na senhorita. Isso
eu posso garantir.
— Nós quatro vivíamos no orfanato juntos — Justin explicou. —
Eu, Neville, Finchley e um outro menino, Alex Archer, éramos como
irmãos.
— E todos permaneceram amigos?
— Não como éramos antes — ele respondeu. — Finchley foi
contratado como advogado em Londres e Neville sofreu o acidente.
Eu me juntei ao exército e Archer... — Seu rosto ficou sombrio. —
Archer rompeu seu contrato de aprendiz e desapareceu. Nenhum de
nós sabe o que aconteceu com ele. Há muito suspeito que ele está
morto.
— Sinto muito — ela falou.
Ele deu de ombros.
— Não importa.
Helena podia ver que não era totalmente verdade. Justin não
parecia indiferente ao destino do amigo. Muito pelo contrário.
— Eles eram como sua família — ela falou baixinho.
— Éramos órfãos, Helena. Eles eram a minha família.
— E eles o acompanhavam todas as semanas em sua viagem
para a abadia. Mas não para procurar tesouros. Por que, então? —
ela se perguntou em voz alta.
— Estávamos sempre nos esgueirando pelos jardins da abadia.
Cavando buracos e rastejando por janelas entreabertas. Estou
bastante surpreso de que nenhum de nós tenha sido levado perante
o magistrado.
— A abadia estava vazia?
Parecia uma pergunta bastante inocente, mas a expressão de
Justin, já tão pensativa e carrancuda, fechou-se. Foi como se ele
tivesse cerrado firmemente uma porta na face dela. Não apenas a
cerrou, mas a aferrolhou e a travou com uma barra. Quando ele
voltou a falar, Helena teve a nítida impressão de que Justin não
estava sendo totalmente aberto.
— Era a propriedade de um baronete — disse. — Sir Oswald
Bannister. Ele sempre estava bêbado todas as vezes em que íamos
visitá-lo.
— Mas então... como veio a morar na abadia? Comprou-a
dele?
Uma linha de tensão apertou a mandíbula de Justin.
— Por assim dizer.
— Sinto muito. Não é da minha conta.
— Em algum momento, você saberá através de algum
intrometido bem-intencionado.
— Talvez, mas...
Justin a interrompeu com a voz dura:
— Sir Oswald tinha propensão para fazer apostas altas. Depois
de perder o resto dos bens, ele tomou um empréstimo usando a
abadia como garantia. Eu estava na Índia na época, mas, quando
soube de sua situação... — Ele lançou a ela um olhar cheio de uma
mistura desconcertante de amargura, dor e algo muito parecido com
um triunfo. — Pedi ao Finchley para comprar suas hipotecas e
então... quando sir Oswald estava em sua pior fase, cobrei todas as
suas dívidas.
Um calafrio desceu pela espinha de Helena. Ela se recostou na
cadeira, afastando-se dele de forma inconsciente.
— Parece bastante cruel.
— Nada menos do que ele merecia.
Ela esperou que Justin explicasse, mas ele não o fez. O silêncio
pairou entre os dois, tenso e desconfortável. Helena não gostou. E
não gostava de ser tão crítica. Ontem mesmo havia dito a ele que o
passado não importava. Ele tentou confessar algo sobre a abadia,
não foi? Em seu desespero, tudo parecia sem importância. Mas
agora... agora que o casamento estava tão próximo e tão certo,
sentiu o medo familiar tomar conta dela.
— Há muito que não sabemos a respeito do outro.
Justin estava olhando para ela.
— Tendo dúvidas?
— Não — respondeu. E era verdade. Não podia render-se ao
capricho de ter dúvidas. — Imagino que todos os casais que se
encontrem por meio de anúncios matrimoniais acabem tendo o
mesmo problema que o nosso. São estranhos, afinal.
— Não estou preocupado. — A voz dele se aprofundou: —
Você pode me conhecer melhor se quiser.
O estômago de Helena deu outro giro desconcertante. Estava
sentindo um frio enorme na barriga, percebeu com certo desgosto.
Uma verdadeira geleira, circulando por ali e originando outras e...
Deus do céu.
Mas ela era uma mulher de vinte e cinco anos, não uma garota
boba e trêmula que se agitava na presença de um rapaz bonito. Ela
ergueu o queixo.
— O senhor também precisará me conhecer melhor. — A boca
de Justin se curvou naquela sombra de sorriso irônico com o qual
ela estava começando a se familiarizar.
— Espero que sim, senhorita.
Ela não sabia se ele estava zombando. Ou flertando com ela.
De todo modo, parecia não haver nada a dizer sobre tal declaração.
Helena decidiu que seria mais seguro não responder. Abaixou o
olhar para a lareira, tentando recuperar um pouco da compostura
perdida.
As chamas crepitaram de forma ameaçadora na lareira quando
uma tora de lenha queimada se partiu ao meio e caiu nas cinzas.
Foi o único som no cômodo. Justin pareceu compreender o
significado daquilo no mesmo instante que ela. Ele se levantou
abruptamente da cadeira e caminhou a curta distância até a janela.
Ela se levantou e o seguiu.
— Parou de chover — ele disse.
Ela olhou pela janela, para o pátio da estalagem. Tudo estava
úmido e enlameado, incluindo a parelha de cavalos que um
cavalariço atrelava a uma carruagem, mas as nuvens de chuva
haviam passado e o sol brilhava forte no céu azul, agora claro. Ela
olhou para Justin.
— Vai ter que cavalgar de volta para a abadia antes que a
chuva recomece?
— Não vai chover de novo. Por enquanto. — Ele inclinou a
cabeça. — Embora a julgar pela direção dessas nuvens, parece que
Abbot’s Holcombe está prestes a sofrer com um aguaceiro.
— Espero que não chova no dia do nosso casamento.
— Não importa se chover. Vamos de carruagem. — Ele se virou
para encará-la, seus olhos se desviando brevemente para suas
saias. — Deixou cair seu xale.
Ela olhou para baixo. O xale ainda estava enfiado em seu braço
direito, mas a extremidade esquerda havia caído no chão em uma
pilha de casimira vermelha e dourada. Ela se moveu para pegá-lo,
mas Justin se antecipou, inclinando-se rapidamente para segurar o
tecido pesado.
— Aqui está — ele disse, ao se endireitar.
Ela assentiu e se levantou, ficando imóvel como uma estátua
grega enquanto ele colocava o xale ao redor de seu ombro e de
volta em seu braço esquerdo. Quando ele terminou, Helena
murmurou um agradecimento, mas Justin não largou o tecido. O
homem meramente a olhou, encarando seu olhar questionador por
um longo e doloroso instante.
— Helena...
— Sim?
— Eu gostaria muito de beijar você — ele disse. — Se me
permitir.
A cor invadiu o rosto da dama. Ele estava terrivelmente perto
dela. Tão perto como quando a tocou, de forma tão terna, ontem na
praia. Seu pulso acelerou com a lembrança.
— Tudo bem.
Ele levou os dedos à curva de sua bochecha. Helena inalou
uma respiração superficial, mantendo-se imóvel conforme ele
traçava um caminho pela sua mandíbula para segurá-la pelo queixo.
Justin lhe ergueu o rosto. E, em seguida, abaixou a cabeça e roçou
os lábios nos seus de forma muito suave e vagarosa.
A boca de Helena tremeu sob a dele, mas ela não retribuiu o
beijou. Nem se moveu para tocá-lo. Permaneceu imóvel, com os
olhos fechados e os braços ao lado do corpo; os dedos estavam
entrelaçados nas dobras do xale.
Ele cheirava a tempestade. Cavalos, couro e alguma fragrância
masculina tênue que deveria vir de seu creme de barbear. O aroma
fez seus joelhos tremerem, e ela se perguntou como um cheiro
poderia afetar os joelhos de uma pessoa. Mas então ele a beijou de
novo, quente e firme, e ela se esqueceu dos joelhos. Ela se
esqueceu de tudo, exceto da pressão estonteante da boca
suavemente insistente.
Durou apenas minutos, segundos talvez, e então um cavalo
relinchou de forma estridente no pátio da estalagem. Um cavalariço
gritou:
— Segure-se nessa baía, Fred! Ele é muito arisco!
Os lábios de Justin pararam nos dela.
— O diabo — ele murmurou com a voz rouca.
Ela abriu os olhos, assustada.
Justin ergueu a cabeça. A mandíbula estava dura como granito,
e ela podia ver um músculo se contraindo em sua bochecha.
— Sinto muito, Helena.
— Pelo quê?
— Por ser tão descuidado. — Com a mão na cintura dela, ele a
afastou da janela.
A janela.
— Ah, não — ela murmurou. — Oh, que terrível.
Quem estava no jardim? Ela tentou desesperadamente se
lembrar. Havia o cavalariço, é claro. E também os criados e quem
havia parado para trocar de cavalo.
E quanto ao sr. e sra. Blevins? Eles estiveram ali também?
— Depois de tudo que fiz para salvaguardar sua reputação —
Justin murmurou.
Helena não dava a mínima para sua reputação. A fofoca, por
outro lado, era um assunto totalmente diferente. A última coisa que
ela queria era tornar-se memorável no vilarejo.
— Acha que alguém nos viu?
Justin olhou para trás, em direção à janela, com uma carranca.
— Não sei.
Ela cruzou os braços para conter um arrepio. O fogo havia
diminuído para uma tímida chama tremulante. Ela se moveu para
ficar na frente dele, virando as costas para Justin. Mal conseguia
olhá-lo. A cada minuto que passava, ficava mais envergonhada com
o beijo. Ainda mais porque o próprio Justin parecia relativamente
não afetado pela intimidade.
— Se sim, temos uma explicação bastante simples. — Ele
parou atrás dela. — Vamos nos casar amanhã.
Helena sentiu o peso de suas mãos quando ele as apoiou em
seus braços. O choque de dor foi instantâneo. Ela ofegou e se
afastou, gritando quando Justin estendeu a mão para ela
novamente, apertando os dedos em torno de seu braço esquerdo.
— Raios, Helena! — Ele a puxou para longe da lareira. — Saia
daí antes que ateie fogo nas suas saias! — Helena olhou para o
rosto furioso dele, mortificada ao sentir as lágrimas começarem a se
formar em seus olhos. Ele a soltou assim que ela estava a uma
distância segura da lareira, mas o latejar de seus hematomas era
incessante. Ela se afastou dele, levantando a mão instintivamente
para cobrir o braço.
— Você não deve nunca me agarrar assim.
— E você não deve ficar perto de uma chama aberta com saias
deste tamanho. Uma brasa perdida e você teria queimado como
uma tocha. Não lê os jornais? Mulheres morreram queimadas.
— Por favor, não grite comigo.
— Não estou gritando, mas... — Justin passou a mão pelo
cabelo. — Se você não quiser que eu te toque...
— Não... — ela protestou.
— Se eu a enojar ou assustar...
— Não — ela repetiu. — Não, Justin. — Mas ele não a estava
ouvindo. O homem estava muito zangado. Não, ele não estava com
raiva. Estava magoado.
— Você quase pisou no fogo para que eu não tocasse seu
braço. Seu braço, Helena. Você é inocente, não tenho dúvidas, mas
certamente está ciente de que, como seu marido, vou precisar tocar
mais do que em seu braço ocasionalmente. Se está tão chocada
com a ideia, é melhor terminarmos agora.
O pânico cresceu no peito de Helena. Tudo estava começando
a se desfazer. Meses de planejamento desintegrando-se diante de
seus olhos.
Ela não sabia como consertar. E se ele se recusasse a se casar
com ela, tudo estaria perdido.
Ela estaria perdida.
— Meu braço está machucado — ela deixou escapar.
Justin fez um som que pareceu um gemido.
— Já?
— Não. Não por sua causa. Estava machucado antes de eu vir
para cá. — Ela o olhou, implorando silenciosamente para que ele
entendesse.
E, por milagre, parecia que sim. Ela viu na maneira como o
olhar dele se aguçou, fixando-se nela como um falcão se
aproximando de sua presa.
— Um acidente bobo. Não é importante.
— Helena...
— Eu teria dito algo no caminho da praia, mas não gosto de
admitir o quanto eu sou desajeitada. Sempre tropeçando e caindo,
sempre me machucando. Não é uma característica muito atraente.
Uma expressão de inquietação enrijeceu as feições dele.
— Foi o que aconteceu com o seu braço? Você tropeçou e
caiu? — Ele a olhou, cético, senão totalmente descrente.
— Foi um acidente — ela repetiu. — Não quero falar disso. E
eu não teria feito falado, mas não posso suportar que pense...
— Que eu lhe causo repugnância? Que você não pode tolerar
meu toque?
Ela respirou fundo para se acalmar. Quando falou, sua voz era
baixa, uniforme e completamente sincera.
— Você não me causa repulsa.
Justin examinou o rosto dela. O que quer que tenha encontrado
ali, pareceu satisfazê-lo um pouco. O homem ainda parecia
preocupado, mas a dor e a raiva foram diminuindo aos poucos.
— Não? Isso já é alguma coisa, pelo menos. — Ele passou a
mão na nuca. O silêncio se estendeu entre eles por vários e
incômodos segundos. — Desculpe-me por levantar a voz — ele
falou, por fim. — E pela minha linguagem também.
— Não há nada pelo que se desculpar.
— Gritei como se você fosse um soldado rebelde em meu
regimento. — Ele deu uma risada curta e sem humor. — Tenho
tendência a perder a compostura quando vejo uma dama
caminhando para uma lareira aberta.
O olhar de Helena caiu brevemente para as queimaduras na
lateral de seu pescoço e mandíbula. Ele disse que tinha sido
esfolado vivo por sipaios rebeldes. Ela não tinha certeza do que isso
significava, mas se era tão horrível quanto parecia, então não era de
se admirar que ele tivesse um respeito saudável pelo poder
destrutivo do fogo.
— Lamento se machuquei seu braço — ele continuou. — Eu
não pretendia...
— Não. Não há necessidade.
— Eu acho que existe.
— Não — ela insistiu. — Na verdade, preferia que
esquecêssemos todo esse episódio. Isso é... a menos que você
tenha mudado de ideia.
— Sobre o quê?
— Casar-se comigo.
Ele bufou. Como se a mera ideia o divertisse de alguma forma.
— Não. — E repetiu, de forma mais enfática. — Não. Mas se
você estiver tendo dúvidas...
— Não estou — Helena respondeu rapidamente. — De
verdade, não estou. — Ela forçou um sorriso trêmulo, esperando
parecer mais corajosa do que se sentia. — Na verdade, no que me
diz respeito, espero que o amanhã chegue o mais rápido possível.
Capítulo Cinco

Quando Justin voltou à abadia, a chuva havia recomeçado. O


vento estava forte e o céu adquiria rapidamente um tom de cinza.
Seu cavalo, um garanhão chamado Hiran, pisoteou com impaciência
enquanto ele apeava e o conduzia até o estábulo de pedra. Estava
quente e seco ali, o cheiro de feno fresco permeava o ar.
Neville estava limpando uma das cocheiras. Ele veio até a porta
quando Justin entrou, segurando um forcado em uma das mãos
fortes.
— Será que ele quer ração?
Justin começou a remover as rédeas e a sela de Hiran.
— Ele mereceu.
Neville largou o forcado e partiu para o celeiro.
— Onde está o Danvers? — Justin chamou por ele.
— Dormindo — Neville gritou de volta.
Justin fez uma careta. Dormindo por causa da bebida, mais
provavelmente.
Entre o cocheiro e a cozinheira, era um milagre sobrar uma
gota de álcool no local. Estava decidido a demiti-los. Mas seria
improvável que encontrasse criados dispostos a substituí-los. Não
nesta parte do mundo, pelo menos. Pior ainda, se os deixasse ir,
havia todas as chances de que acabassem em uma bastilha de
pobres.
Não importava. Ele preferia cuidar pessoalmente de Hiran. O
belo cavalo castanho pertenceu a um de seus captores na Índia. Foi
um presente de despedida. Uma medida de compensação,
dispensada no dia em que os britânicos recapturaram Cawnpore.
Quase um mês depois dos trágicos acontecimentos em Sati
Chaura Ghat. Quando os soldados invadiram o palácio de Nana
Sahib, encontraram Justin lá, acorrentado a uma parede de
masmorra. Ele estava sujo e fraco, e as queimaduras em seu
pescoço e nas laterais do corpo infeccionadas por falta de cuidado.
Depois de libertá-lo, os soldados percorreram o palácio e os
terrenos, apreendendo tudo de valor. Levaram cavalos, camelos e
elefantes. E, quando terminaram, queimaram o palácio até as
cinzas.
Foi Hiran quem carregou Justin de volta para a segurança do
acampamento britânico.
Nos dias que se seguiram, ninguém se apresentou para
reivindicar o garanhão. Na verdade, ninguém havia se apresentado
para dizer muito sobre qualquer coisa. O médico do acampamento
tratou Justin da melhor maneira que pôde, em um silêncio sombrio,
aplicando pomada em suas queimaduras e o fazendo tomar
láudano. O peso do julgamento dele esteve presente em cada
toque.
Justin havia retornado à Inglaterra menos de três meses depois,
com Hiran a reboque.
Era um belo cavalo com um coração valente. Também era um
lembrete constante do que havia acontecido na Índia. Um albatroz
equino, como Finchley o chamava.
“Você se tortura com mais eficácia do que aqueles sipaios
jamais poderiam fazer” ele dizia com frequência.
Finchley era uma fonte infinita de sabedoria. Cheio de
conselhos para todos, enquanto passava a maior parte do tempo
escondido naquele escritório, enterrado sob leis e livros de direito
empoeirados.
Faria bem ao homem se algum amigo bem-intencionado
publicasse um anúncio matrimonial em seu nome.
Justin carregou as rédea e os arreios de Hiran até a estrebaria
e pegou duas escovas rígidas. Quando voltou, começou a escovar o
pelo do animal, removendo a lama e o suor com movimentos
rápidos e alongados. Ao escová-lo, seus pensamentos se desviaram
do hipotético anúncio matrimonial de Finchley para a dura realidade
de seu próprio casamento iminente.
Não que tivesse pensado em outra coisa esses tempos.
Passou a noite se revirando, sabendo que em apenas mais
alguns dias teria Helena Reynolds em sua casa e em sua cama, e
se perguntando por que, em nome de Deus, ela havia escolhido se
casar com ele entre todos os homens.
A pergunta ainda persistia.
Achou que ficaria mais calmo depois de vê-la hoje, mas desde
seu encontro na estalagem, um novo conjunto de dúvidas começou
a se apossar de sua mente.
Ela estava escondendo algo. Isso havia ficado claro desde que
se conheceram. O que era, ele não sabia dizer. Mas algo a compeliu
a responder aquele anúncio. Algo, ou alguém, assustou a dama.
Deixou-a desesperada o suficiente para se casar com um estranho.
E não apenas com um estranho. Um ex-soldado bastardo,
malnascido e com fortuna moderada. Um homem com cicatrizes de
queimaduras e uma reputação marcada por escândalos e
insinuações maldosas.
Queria exigir que ela lhe contasse, mas quem era ele para
esperar que Helena confessasse todos os seus mais recônditos
segredos quando ele mesmo tinha tantos? Seria injusto. Hipócrita. E
o que isso importava, afinal? O casamento deles não era por amor.
E certamente não era um encontro de almas, nem qualquer outra
baboseira. Era um acordo comercial. Um casamento de
conveniência. Ele precisava de uma esposa e ela precisava de
alguém para mantê-la a salvo.
Mas a salvo de quê? Ou de quem?
Ocorreu-lhe, enquanto ela dizia aquela bobagem sobre ser
desajeitada e propensa a acidentes, que ela já poderia ser casada.
Isso explicaria muito. Na verdade, a possibilidade parecia tão
provável que, por um breve momento, a realidade da situação lhe
apertou o peito e os pulmões, fazendo ser bastante difícil respirar.
E então lembrou a si mesmo que confiava implicitamente no
julgamento de Finchley. E que o amigo, apesar de toda a sua
intromissão, nunca teria enviado a ele uma mulher que ainda
estivesse ligada a um marido; não importava o quanto esse marido
pudesse ser brutal ou não. Não. Helena Reynolds não era casada.
Nunca foi. Poderia dizer pelo beijo dela. Apostaria seu último
centavo que havia sido o seu primeiro. Seus lábios tremeram e
suavizaram sob os dele, a respiração ficou irregular e os olhos da
mulher se fecharam com força. Ela era muito inexperiente.
Também era exuberante, doce e cheia de paixão inexplorada.
Ele poderia facilmente ter continuado a beijá-la. E o teria feito,
também, se a atividade no pátio não o tivesse feito recuperar o
juízo. Bom Deus. Se tivessem sido vistos... Bem. Era menos do que
ideal, não há dúvida. Não desejava causar constrangimentos à
dama. E não queria eu as pessoas do vilarejo espalhassem mais
histórias sobre ele ser um monstro sem consciência. Mas Justin não
se arrependia de tê-la beijado. Foi a melhor coisa que experimentou
em muito tempo. Melhor ainda porque havia a promessa de mais
por vir.
Amanhã, Helena seria sua esposa. E independentemente dos
seus segredos, ele não lamentaria que ela tivesse respondido ao
seu anúncio.
Neville voltou um momento depois com um balde de mistura de
farelo quente. A água espirrou sobre a borda quando ele a colocou
no cocho de Hiran.
— Justin?
— Sim?
— Você vai se casar com aquela dama?
Justin lançou ao velho amigo um olhar distraído. Há muito tinha
deixado de se surpreender com a capacidade de Neville de discernir
a substância de seus pensamentos.
— Vou. Amanhã de manhã.
— Na Igreja?
— No cartório de registros em Abbot’s Holcombe. Você é bem-
vindo se quiser ir.
Neville balançou a cabeça com veemência.
Sua recusa não era surpresa. Ele odiava viagens de
carruagem. E não colocava os pés em Abbot’s Holcombe há anos.
— Como quiser — Justin respondeu.
Neville pegou o forcado e voltou a virar a palha.
— Onde ela vai morar?
— Aqui na abadia. — Justin passou a escova pelo flanco de
Hiran.
O som da chuva, caindo forte e rápido sobre as telhas, quase
abafou a resposta baixa de Neville:
— Onde eu vou morar? — Uma pontada de culpa atingiu a
consciência de Justin. Quando se tratava de Neville, era uma
sensação tão familiar quanto respirar.
— Aqui na abadia — repetiu. — Nada vai mudar.
— Mas a srta. Reynolds...
— Sua casa é aqui pelo tempo que quiser ficar. Não faz
diferença se eu me casar. — Ele fez uma pausa, acrescentando: —
Nem com quem eu me caso.
Neville encostou o forcado na lateral da cocheira e saiu para o
corredor.
— Você gosta dela?
Justin foi pego de surpresa com a pergunta.
Gostava? Ele estava atraído pela mulher, certamente. Também
se sentia protetor dela. Qualquer cavalheiro decente o faria. Mas
gostar dela?
Pensou no que conversaram na praia. A discussão sobre
Charles Dickens e a Grande Exposição. Lembrou-se de como ela
sorriu para ele em comiseração pelo chá aguado que Neville serviu.
E a maneira como ela respondeu à revelação de que ele era um
órfão da abadia em Abbot’s Holcombe.
“É por isso que nós odiamos o lugar?” ela perguntara.
Seu peito se infundiu com calor com a lembrança. Era tanto
enervante quanto... maravilhoso.
— Sim — respondeu. — Gosto dela. Muito. — Ele largou as
escovas e foi desamarrar o cabresto de Hiran. — E você, Neville? —
perguntou enquanto levava o animal para a baia. — O que acha da
srta. Reynolds?
Neville o seguiu.
— Ela é mais bonita do que a srta. Bray.
Justin franziu a testa.
— A srta. Bray? — Esse era um nome que ele não ouvia há
muito tempo. Soltou Hiran e se retirou da baia, fechando a porta
atrás de si. Hiran logo enfiou o nariz no balde de farelo. — O que o
fez pensar nela?
Neville deu de ombros.
— Você a admirou no passado, eu acho.
Neville olhou para baixo e deu de ombros novamente.
— Foi há muito tempo — Justin respondeu. Eles eram meninos
órfãos. Pobres e ignorantes. Supunha que todos eles haviam
gostado de Cecilia Bray em um momento ou outro. Ela era da
mesma idade que eles e era considerada uma beleza florescente
naquela época. Também era completamente desagradável, nunca
perdia a chance de dizer o quanto eles eram inferiores e como não
era de se admirar que seus pais os tivessem abandonado.
Justin teve de suportar o maior impacto daquilo. Quando foi
aprendiz do pai da moça, ela teve grande prazer em sujeitá-lo à sua
língua ácida. Depois que partiu para se juntar ao exército, havia há
muito esquecido o que havia nela que ele acreditou ser agradável.
O sr. Bray morrera há dez anos. Justin soube através de uma
carta enviada por Finchley. Quanto a Cecilia, imaginou que ela ainda
morava em algum lugar em Abbot’s Holcombe, junto com a mãe e
as irmãs mais novas. Sem dúvida, já era casada e tinha meia dúzia
de filhos. Ele não sabia, nem se importava. Gostaria de poder dizer
o mesmo por Neville.

◆◆◆

Helena puxou os joelhos para o peito e envolveu o xale de


casimira com mais força ao redor dos ombros. A camisola de flanela
tinha mangas compridas e a cobria do queixo aos pés, mas não
fazia absolutamente nada para mantê-la aquecida. A King’s Arms
não era um hotel moderno de Londres. Seu quarto era úmido e tinha
correntes demais, com um fogo que produzia mais fumaça do que
calor.
Ela olhou para Bess. A jovem criada estava encolhida no catre
perto da porta, parecendo congelada e totalmente miserável.
— Gostaria que viesse para cá e compartilhasse a cama
comigo — Helena falou. — Você vai morrer aí no chão.
— Ah, não, senhorita. A sra. Blevins disse que devo ficar aqui.
— Acredito que a estalagem não deva ser tão insegura.
— Certamente, senhorita. Uma vez, um cavalheiro bêbado
tentou abrir as portas dos quartos. Ele assustou uma velha senhora
de modo feroz.
— Hum. — Helena estava cética. Se um bêbado errante
decidisse entrar à força em seu quarto, ela não via como a presença
de Bess em frente à porta o impediria. A jovem criada não podia
pesar muito mais do que sete pedras. — Vamos alimentar o fogo,
então. Não há razão para você congelar até a morte a serviço da
minha segurança.
Ela acendeu a lamparina a óleo ao lado da cama, iluminando o
quarto com um brilho amarelo suave. Quando Bess não fez nenhum
movimento para se levantar, Helena o fez por conta própria. As ripas
de madeira do chão estavam geladas sob seus pés descalços.
Rangeram em protesto quando ela caminhou pelo quarto até a
lareira. Pegou um atiçador e apontou para as chamas.
— Não está com medo, senhorita?
— De quê?
— De morar na abadia. Com todos aqueles monges e tudo
mais.
Helena se sentiu tentada a sorrir. Tinha muito a temer, mas
monges fantasmas não fazia parte desses temores, graças a Deus.
Havia o suficiente para perturbá-la neste mundo sem contemplar os
caprichos do reino espiritual.
— Não acredito em fantasmas.
— Por que não?
— Simplesmente não acredito. — Ela se abaixou para colocar
outra lenha no fogo. — Eles não são reais. Não se pode vê-los, nem
tocá-los.
Bess se virou na cama para ver as chamas ganharem vida.
— Eu nunca vi um — disse. — Mas a minha amiga Martha...
Helena se levantou e voltou para a cama. Subiu e acomodou-se
debaixo dos cobertores.
— O que tem a sua amiga?
— A Martha passeia com o Bill, o filho do peixeiro. E ele disse a
ela... — Bess interrompeu-se. — Mas a sra. Blevins disse que não
devo fofocar.
Helena estendeu a mão para apagar a lamparina.
— O que é uma vergonha. De que outra forma posso aprender
sobre o vilarejo?
— Quer mesmo saber, senhorita?
— É claro.
Suas palavras foram toda a permissão de que Bess precisava
para ignorar o aviso da sra. Blevins.
— Bem, senhorita. — Ela continuou a história em voz baixa. —
Bill estava na enseada da praia em Abbot’s Holcombe e... imagine
só! Ele olhou para cima e viu o fantasma do próprio sir Oswald
caminhando nos penhascos da abadia!
— Oh? Eu não sabia que sir Oswald tinha morrido.
— Há muitos e muitos anos — Bess afirmou. — Mais ou menos
na época em que o sr. Thornhill voltou da Índia.
Um frisson de inquietação fez cócegas na espinha de Helena.
Ela sabia que Justin havia tomado a abadia de sir Oswald de uma
maneira um tanto inescrupulosa, mas ele não mencionou nada
sobre a morte do homem.
— Entendo. — Ela ficou em silêncio por um longo momento. —
Como ele morreu?
— Caiu do penhasco, senhorita. O mesmo onde Bill viu seu
fantasma. Todo mundo diz como... — Bess parou. — Mas o sr.
Hargreaves diz que foi um acidente. E ele conhecia sir Oswald e
tudo mais.
Helena umedeceu os lábios que de repente ficaram secos.
Estava quase com medo de perguntar:
— Quem é o sr. Hargreaves?
— O magistrado, senhorita. Do inquérito.
Inquérito? Helena não conseguia acreditar. Se tivesse ocorrido
tal escândalo, certamente ela já teria ouvido falar antes. Se não do
próprio Justin, pelo menos do sr. Finchley.
Seu estômago, já em nós com o pensamento de suas núpcias
iminentes, começou a se embrulhar ainda mais.
Será que trocou uma situação insustentável, um homem
violento e perigoso, por outra? A vida com Justin Thornhill não seria
mais segura do que a vida que estava deixando para trás?
Helena se recusou a acreditar.
Desde sua chegada a Devon, Justin tinha se mostrado, de
diversas maneiras, um cavalheiro. E não apenas com ela. Ele era
gentil com seus criados e cães. Cuidou de Neville. E embora ele
tivesse sido vulgar em seu primeiro encontro, nenhum homem de
temperamento grosseiro e violento poderia ter tocado seu rosto com
tanta ternura como ele tinha feito na praia ontem. Ou a beijado de
forma tão suave e delicada como fizera hoje cedo, na sala privada.
Mas como uma mulher poderia saber com certeza? Era impossível.
Em algum momento, tinha que colocar sua fé e confiança em um
homem. A perspectiva assustou Helena mais do que qualquer
fantasma poderia.
— A senhorita vai voltar? — Bess perguntou.
— O quê?
— Para Londres, senhorita. Se fizer isso, posso lhe
acompanhar. Vai precisar de uma criada na viagem. E eu sempre
quis ver Londres e trabalhar em uma casa grande.
— Como sabe que tenho uma casa grande?
— Só de olhá-la. — Bess caiu de costas. — Seus vestidos.
Nunca vi um tecido tão fino. E suas mãos. Tão brancas e macias.
Minha tia Agnes treinou para ser criada em Bath. Ela me ensinou
como remover manchas de óleo, mesmo da seda. Se me levar para
Londres, posso cuidar de suas roupas. Aprendo rápido, senhorita.
Helena enterrou o rosto no tecido áspero do travesseiro. As
lágrimas se formaram em seus olhos várias vezes durante a viagem
da Grosvenor Square para Devon, mas esta noite, pela primeira vez,
ela realmente sentiu vontade de derramá-las.
— Obrigada, Bess — respondeu. — Mas não vou voltar para
Londres. Nunca mais.
Capítulo Seis

Eles se casaram na manhã seguinte no cartório distrital, em


Abbot’s Holcombe. Helena usava um vestido diurno de seda cinza
simples com um casaco de tecido escuro e volumoso enfeitado com
uma fita. Era bem diferente dos vestidos de noiva brancos com
babados que ela admirava com frequência nas páginas da
Englishwomen’s Domestic Magazine, mas não deixava de ser
gracioso. Ou foi o que Bess disse quando a viu descendo as
escadas da King’s Arms pela primeira vez naquela manhã.
— Parece uma rainha, senhorita — ela declarou.
Helena não via como. Mal conseguiu pregar o olho na noite
anterior. Estava exausta, emotiva e com muito medo. Temia muito
que algo acontecesse no último momento para impedir seu
casamento com Justin. Na verdade, esperava por isso.
Enquanto estava ao lado dele no cartório, não conseguia parar
de tremer. O próprio Justin estava aparentemente calmo, mesmo
que parecesse mais quieto e sério que de costume. Ele havia se
vestido para a ocasião com um terno preto sóbrio. As queimaduras
em seu pescoço estavam escondidas pelo colarinho alto da camisa
de linho branco e o severo plastrão preto. Ela podia ver o brilho da
corrente do relógio de bolso na frente de seu colete.
A noiva ouviu sua voz profunda enquanto ele negava qualquer
impedimento ao casamento. A pedido do oficiante, ela fez o mesmo.
E então Justin segurou sua mão esquerda. Olhou-o assustada
quando o noivo deslizou uma aliança de ouro simples em seu dedo.
Estava tão nervosa que não percebeu que o oficiante os havia
declarado marido e mulher até Justin levar sua mão aos lábios e dar
um beijo na aliança. Helena sentiu a mesma onda de emoção
mortificante que havia sentido quando ele lhe deu o pedaço de
lágrima de sereia dois dias antes. Não havia razão para ele beijar
sua mão de maneira tão galante. Ainda assim, ele segurou os nós
dos seus dedos contra os lábios por um longo momento, com os
olhos fixos nos seus.
De repente, tudo o que ela queria era dizer a ele como estava
cansada e o quanto estava com medo. Ele era seu marido agora. O
sr. Finchley disse que ele a protegeria. Que nada jamais a
machucaria se Justin Thornhill desse a ela o seu nome.
Mas não era a hora. Não aqui. E certamente não na frente de
Bess e do sr. Boothroyd.
Ela engoliu a sensação de alívio e, quando Justin abaixou sua
mão, ela lhe lançou um sorriso fraco.
— Bem — ela disse.
Justin abriu um sorriso fugaz.
— Está feito.
— Oficialmente.
Ele apertou sua mão.
— Não há como voltar atrás agora, sra. Thornhill.
Sra. Thornhill.
O estômago de Helena se apertou. Jamais desejou isso. Como
todas as outras jovens, ela sonhava encontrar um cavalheiro bonito
que a cortejaria com assiduidade e conquistaria seu afeto.
Acreditava que se casaria por amor, ou não se casaria.
O sr. Boothroyd pigarreou.
— Ainda não é bem oficial, senhor. — Ele lançou um olhar
penetrante para o grande livro encadernado em couro aberto no
balcão alto. — Ainda não assinaram o registro.
O sorriso dela se desvaneceu. Ela desejou que o sr. Boothroyd
não tivesse sido necessário como testemunha. Sua presença severa
só serviu para piorar sua ansiedade durante a breve cerimônia.
Mesmo agora, enquanto eles se moviam até o livro, ela podia senti-
lo atrás dela, avaliando cada passo seu.
O oficiante lhe entregou uma pena de escrever. Ele era um
cavalheiro de cabelos brancos com bigodes realmente
impressionantes.
— Lembre-se de escrever seu nome de casada agora — ele
avisou. — Há muitas mulheres que se esquecem.
— Não vou me esquecer. — Ela mergulhou a pena no tinteiro e
assinou seu novo nome pela primeira vez com uma caligrafia
instável.
Helena Elaine Thornhill.
— Embora ainda não pareça muito real — ela murmurou ao
passar a pena para Justin.
Ele assinou o próprio nome no registro com muito mais
determinação.
— Você logo se acostumará.
— A senhora terá quarenta anos ou mais para isso — o
oficiante falou. — Se Deus quiser.
Quarenta anos ou mais? Helena olhou para Justin, esperando
encontrar alguma expressão de apreensão em seu rosto. Mas ele
não parecia nada alarmado com a perspectiva de passar tanto
tempo com ela.
Ele trocou algumas palavras com o escrivão do oficiante
enquanto o sr. Boothroyd e Bess se adiantaram para assinar no
registro, atestando seu papel como testemunhas. E então todos eles
esperaram, alguns com mais impaciência do que outros, enquanto
um funcionário copiava com muita minúcia o registro de casamento
em uma folha de papel.
Quando ele terminou, o oficiante instruiu que cada um
assinasse e, então, com um ar de solenidade, entregou o papel a
Helena.
— Sua prova de casamento, senhora. Mantenha-a em
segurança.
Helena pegou a certidão, inundada com um profundo senso de
reverência, e alívio. Parecia um documento tão comum. E, no
entanto, sua existência poderia significar a diferença entre a
respeitabilidade e a ruína.
Ou, no caso dela, vida ou morte.
Dobrou-o com cuidado e o guardou na bolsa.
— Manterei.
Justin tocou nas costas dela de leve.
— Pode me dar um momento para falar com Boothroyd?
— É claro. — Ela esperou perto do balcão, observando
enquanto ele cruzava a sala para se dirigir ao administrador. Justin
disse algo ao sr. Boothroyd. Algo que fez o homem mais velho
franzir os lábios de irritação. Momentos depois, o homem saiu do
cartório com Bess a reboque.
— Onde eles estão indo? — ela perguntou quando Justin voltou
para ela.
— Para o estábulo de coches. Para alugar uma carruagem para
levá-los de volta a King’s Abbot.
O pulso dela acelerou. A ideia de ser deixada sozinha com
Justin sem uma acompanhante era muito nova. Parecia ilícito.
Perigoso.
— Não vamos...?
— Vamos jantar no Stanhope Hotel. É uma curta caminhada. E
você vai descobrir que a comida é muito superior a qualquer coisa
que a sra. Blevins tem servido na King’s Arms. — Ele segurou a
mão dela e a colocou em seu braço. — Imagino que esteja com
fome.
— Estou — ela admitiu. — Não comi nada esta manhã.
— Nem eu. — Justin lhe deu outro breve sorriso. — Nervosismo
pelo dia do casamento, acredito.
A rua em frente ao cartório estava quase vazia, exceto por um
senhor dirigindo um cabriolé elegante na direção oposta. A chuva
tinha parado, mas o céu estava cinza, com as nuvens escuras
pesadas prometendo outro dilúvio.
— Aqui nunca foi tão popular quanto Torquay — Justin
comentou. — Mas no verão, essas ruas ficam lotadas.
Helena podia muito bem acreditar. O que tinha visto de Abbot’s
Holcombe até então a fez pensar em cidades de veraneio da moda
como Bournemouth, Brighton e Margate. Nunca visitara esses
lugares, mas costumavam ser retratados em revistas femininas.
Durante os últimos meses, havia lido muito sobre a moda à beira-
mar, o uso de máquinas de banho e a relativa adequação de se
tomar banho de mar em praia pública. Tinha pensado em se
preparar para sua nova vida ao longo da costa.
— Sempre fica vazio nas épocas mais frias? — perguntou.
— Há aqueles que permanecem pela saúde. Mas geralmente
são inválidos e não se aventuram do lado de fora quando a
temperatura cai. — Ele a guiou em torno de uma parte irregular da
calçada. — Os hotéis particulares por aqui atendem constantemente
aos ricos e preguiçosos que se imaginam doentes.
— E foi aqui que você cresceu? Onde passou a infância?
Ele lhe lançou um olhar cauteloso.
— Não nesta parte da cidade. O orfanato fica mais perto da
igreja. Ou melhor, ficava. Não existe mais.
— Fechou?
— Algo assim — ele respondeu, de forma vaga.
Caminharam por algum tempo, desceram uma rua e cruzaram
para outra antes de chegarem ao Hotel Stanhope. Era uma bela
estrutura de pedra branca imaculada com a entrada em mármore
coríntio esculpido. Ao se aproximarem das portas, um lacaio
apareceu para recebê-los, conduzindo-os ao calor do luxuoso
saguão de painéis de madeira.
O funcionário da recepção os cumprimentou com as
sobrancelhas erguidas.
— Como posso ajudá-lo, senhor?
— Tenho uma reserva — Justin respondeu. — Thornhill.
O homem consultou um grande livro sobre o balcão.
— Oh, sim. Um quarto com vista.
O olhar de Helena voou para o rosto de Justin. Um quarto? Mas
eles apenas jantariam juntos, não? Simplesmente compartilhar uma
refeição para comemorar o dia do casamento. A não ser que...
A não ser que o marido quisesse que eles compartilhassem a
cama.
A possibilidade lhe provocou um choque de apreensão.
Ela observou o funcionário entregar a Justin a chave do quarto
e desejar uma estadia agradável. Ela abriu a boca em protesto, mas
voltou a fechá-la quase imediatamente. Não faria um espetáculo de
si mesma questionando o marido na frente de uma plateia. Era
melhor esperar até que estivessem sozinhos.
— A sala de jantar está cheia de mexeriqueiras da região e
fofocas de Londres — Justin explicou. — Mesmo nesta época do
ano. — Ele a conduziu através do piso de mármore do saguão em
direção à escadaria principal, onde havia obras de arte e palmeiras
em vasos. — Teremos mais privacidade se jantarmos em um dos
quartos. Estaremos mais confortáveis também. — Ele fez uma
pausa. — A menos que se oponha.
Helena segurou as saias ao subirem os degraus acarpetados.
Marido ou não, ela não achava que estava pronta para ficar sozinha
com Justin em um quarto de hotel, mas se a alternativa fosse se
expor a fofocas que poderiam chegar a Londres...
— Não me oponho — disse.
Um lacaio os acompanhou até o quarto no terceiro andar. Tinha
uma sala de estar decorada com elegância com um suntuoso tapete
oriental e móveis de mogno. Cortinas verdes claras emolduravam a
janela que dava para o mar. Helena se moveu para ficar na frente
dela, sem saber o que dizer ou fazer em tal situação.
Ouviu Justin agradecer ao homem pela ajuda. E, em seguida,
trancou a porta.
— Nossa refeição será enviada em quinze minutos —
comentou. — Tomei a liberdade de pedi-la ontem, quando fiz a
reserva. Sopa, frango assado e não sei mais o quê. Se preferir
algum outro prato...
— Não. — Ela se virou para encará-lo. Ele havia tirado o
chapéu. Seu cabelo estava despenteado e, por uma fração de
segundo, pareceu-lhe que o homem estava extremamente inseguro.
— Não sou muito exigente com comida.
— Sem favoritos, então?
Helena desamarrou as tiras do chapéu-boneca presas ao
queixo e o tirou da cabeça, em seguido o colocou em uma cadeira
estofada perto da janela.
— Gosto de pão fresco. Mas acredito que tenha mais a ver com
o cheiro do que com o sabor.
— Ah. — Ele parecia tão perdido quanto ela.
Ela puxou a luva direita e depois a esquerda. O tecido prendeu
de forma breve no sulco da aliança de casamento; um lembrete
nítido de seu novo estado civil. Como se ela precisasse de um
lembrete! Deus do céu. Estava sozinha em um quarto de hotel com
um cavalheiro que conheceu há apenas dois dias.
— Existe algum lugar onde eu possa lavar as mãos? — ela
perguntou.
— Naquele lado — Justin apontou.
Helena se retirou para o cômodo ao lado, desviando os olhos
da cama de mogno com dossel enquanto se dirigia ao banheiro
adjacente. Ficou satisfeita ao descobrir que contavam com água
encanada. Havia uma banheira com pés em forma de garra e um
lavatório de mármore com torneiras de latão para controlar a
temperatura mais quente ou mais fria. Ao lado dele havia uma pilha
de toalhas brancas macias, vários sabonetes aromáticos e uma
pequena seleção de frascos de vidro contendo óleo perfumado para
a água do banho.
Lavar o rosto e as mãos, e arrumar o cabelo deveria levar
pouco tempo, mas fez isso com calma. Quando finalmente saiu do
banheiro, com o casaco pendurado no braço, a refeição havia
chegado. Estava arrumada em travessas de prata cobertas sobre a
mesa forrada com toalha no centro do cômodo. Justin estava parado
por perto, com as mãos cruzadas atrás das costas.
Ele lhe lançou um olhar de indagação.
— Vamos comer?
Ela colocou o casaco na cadeira ao lado do chapéu e das luvas
e juntou-se a ele à mesa. Justin puxou a cadeira para ela antes de
ele mesmo se sentar.
— Tem champanhe — disse. — Ou limonada, se preferir.
— Champanhe, por favor.
Justin encheu a taça dela e depois a sua. Por um momento,
pensou que ele poderia propor um brinde ao casamento. Parecia a
coisa tradicional a fazer.
Ele não o fez.
Supôs que esse tipo de enlace não fosse exatamente
inspirador. O pensamento a deprimiu um pouco. Levou a taça aos
lábios e tomou um gole, observando Justin fazer o mesmo.
Nunca tinha tomado champanhe. As bolhas fizeram cócegas
em seu nariz. Por um instante, temeu espirrar. Mas então deu outro
gole e a sensação diminuiu.
Justin começou a remover as tampas dos pratos. O aroma de
frango assado com batatas flutuou no ar, dando-lhe água na boca.
— Ah, olhe — ele falou. — Pão fresco.
Helena se inclinou para frente em antecipação enquanto ele
arrumava um prato para ela.
E, então, pelas próximas duas horas, eles comeram, beberam e
conversaram, discutindo tudo e nada.
Helena não tinha percebido a fome com que estava. Nem o
quanto ansiava por uma conversa. E Justin Thornhill, apesar de
seus modos bruscos, parecia estar inclinado a agradá-la. Ele
encheu a taça dela quando ficou vazia e a encorajou a se servir de
mais comida. E conversou com ela; falaram sobre o tempo, a
história de King’s Abbot e o estado de degradação da Abadia de
Greyfriar.
— Deve ter precisado de muito trabalho — ela disse. Haviam
terminado a refeição e estavam comendo uma torta de morango.
Helena se sentia como se o espartilho fosse explodir.
— Uma forma sutilíssima de falar — ele pontuou.
Ela apoiou o garfo ao lado do prato, dando a Justin plena
atenção.
— Por que a queria, então? Não estava mais procurando pelo
tesouro, estava?
— Deus, não. Para começar, duvido que tenha existido algum
tesouro. — Ele olhou para a taça, franzindo a testa. — Acho que se
pode dizer que comprei a Abadia de Greyfriar por sentimentalismo.
Passei a maior parte da juventude pensando que fosse a casa mais
grandiosa da Inglaterra.
— É muito imponente mesmo.
— No passado, talvez. Agora é apenas dispendiosa.
— Nunca considerou comprar um imóvel em melhores
condições?
— Não. — Ele ergueu o olhar para ela. — Fui obstinado e tolo
em minha busca pela abadia. Depois que descobri que havia uma
maneira de torná-la minha, não parei para considerar as
superstições do vilarejo ou o fato de que havia se degradado tanto.
— Ele fez uma pausa. — Nem pensei se seria adequada para uma
esposa.
Helena se recostou na cadeira. Estava se sentindo
completamente saciada. Empanturrada, na verdade. E, pela
primeira vez em meses, em perfeita harmonia com o mundo ao seu
redor.
— Não posso falar por outras esposas — ela pontuou —, mas
gosto muito do lugar.
— Vai gostar muito mais em breve. Conseguimos contratar uma
governanta. Uma mulher chamada sra. Standish. Deve se lembrar
dela daquela primeira tarde, quando a mulher foi se encontrar com
Boothroyd na King’s Arms.
Helena se lembrava muito bem. Era a mulher azeda de meia-
idade que a olhou com desprezo.
— Pensei que você fosse se casar com ela — Helena falou.
A surpresa de Justin foi tal que ele soltou uma gargalhada
rouca.
— Quando cheguei à sala privada no King’s Arms, ela estava lá
dentro com o sr. Boothroyd. Ela me deu uma olhada.
Ele passou a mão no rosto.
— Meu Deus.
— Fiquei muito desapontada.
— Sem dúvida.
— De verdade. Quase fui embora. E teria ido se o sr. Boothroyd
não tivesse me chamado de volta.
— Ah. — O humor desvaneceu de sua voz. — Eu me perguntei
do que se tratava.
— Você estava me observando?
— Naturalmente.
— Pensei que estivesse lendo o jornal. — Ela lhe lançou um
olhar expressivo. — Você podia ter se apresentado.
— Podia, não?
— E antes, no balcão. Imagino que soubesse que eu estava lá
em resposta ao seu anúncio desde o instante em que entrei na
taverna.
Justin esvaziou o copo com um só gole.
— Na verdade, não. Não até você pedir para ver o Boothroyd.
Helena se lembrou do olhar carrancudo que ele lhe lançou
antes de acompanhá-la, a contragosto, até a sala privada. Ela
estendeu a mão para a taça, levou-a aos lábios e tomou um gole de
champanhe.
— Ficou desapontado?
Mal as palavras saíram de sua boca, desejou poder engoli-las
de volta. Era uma pergunta estúpida e infantil. E inútil também.
Justin era um cavalheiro. Era, também, seu marido agora. Havia
uma única resposta que ele podia lhe dar.
O homem a olhou nos olhos.
— Profundamente desapontado — disse, com gravidade
inesperada. — Veja, eu esperava uma versão um pouco mais jovem
da sra. Standish.
Helena quase se engasgou com o champanhe.
Justin sorriu para ela.
— É o que merece por perguntar.
Ela largou a taça e pegou o guardanapo.
— É uma besta perfeita por zombar de mim por causa disso —
ela disse, ao enxugar a boca. — Qualquer dama na minha situação
se perguntaria. Especialmente quando o homem com quem ela veio
a se casar faz um grande esforço para assustá-la.
— Eu estava tentando ser nobre.
— Estava tentando me mandar correndo de volta para Londres.
— Mais tolo eu fui.
O calor inundou seu rosto com a lembrança de suas palavras
grosseiras. Ela abaixou o guardanapo.
— O que o possuiu para me dizer tudo aquilo?
Justin parecia ligeiramente envergonhado.
— Não planejei ultrajar suas sensibilidades.
— Então por quê?
— Eu não estava à sua altura. Soube imediatamente que você
era boa demais para mim. Para dizer a verdade, eu esperava
mesmo uma versão mais jovem da sra. Standish.
Isso a fez rir novamente. Mas Justin não estava mais sorrindo.
Ela não sabia mais se ele estava brincando ou falando sério.
— Pobre sra. Standish — ela falou. — Não deveríamos zombar
dela. Especialmente se ela vai ser a nossa governanta.
— Uma filosofia louvável. Você pode se sentir menos caridosa
nos dias que virão.
— Quando ela começa a trabalhar?
— Ela estava na abadia quando saí esta manhã.
— Tão logo?
— Boothroyd estava lhe passando um sermão sobre seus
deveres, o primeiro dos quais, ficará satisfeita em saber, é uma
limpeza completa em nosso quarto.
Ela o fitou.
— Nosso quarto?
Ele colocou a taça de lado.
— Deixei você em choque. Me perdoe. É um assunto muito
indelicado?
— Não, não. Não é isso... — Sua cabeça estava girando.
Ocorreu-lhe que ela poderia ter bebido muito. — Perdoe-me, mas
está dizendo que eu e você... que vamos compartilhar um único
quarto?
A compreensão transpareceu no rosto de Justin. Foi seguida de
perto por outra emoção que cintilou por um instante e depois
desapareceu. Helena achou ser decepção.
— Ah. Entendo. — Ele ficou em silêncio pelo que pareceu uma
eternidade. — Opõe-se a que compartilhemos um quarto? —
perguntou, enfim.
Ela encarou as mãos, agora apoiadas com firmeza no colo. As
mangas longas do vestido de seda escondiam os hematomas em
seus braços e as de baixo, de musseline com os punhos à mostra,
cobriam as marcas em seus pulsos, mas nada faziam para
mascarar a dor profunda que sentia por ter suportado ser tratada
com tal violência. Era um lembrete doloroso das circunstâncias que
a trouxeram para North Devon.
— Não — respondeu. — Não me oponho.
— Mas prefere um quarto só seu.
Preferia? Teve um quarto próprio durante toda a sua vida. Era o
que esperava ter na abadia. Um cômodo para o qual ela pudesse ir
quando desejasse ficar sozinha. Uma porta que poderia trancar se
estivesse com medo.
Afinal, até mesmo uma esposa tinha direito à privacidade. Um
marido podia visitá-la à noite, mas ele não deveria impor sua
presença por mais tempo que o necessário. Era como os casais
respeitáveis se comportavam. Ou como ela sempre achou que
fosse.
— Não sei o que prefiro — disse. — Nunca dividi o quarto com
ninguém antes.
— O sr. e a sra. Bray, o casal de quem fui aprendiz quando
menino, dividiram o quarto por toda a vida de casados. Eu presumi...
— Justin esfregou a lateral da mandíbula com a mão. — Mas foi
errado de minha parte, não foi? Não deveria ter presumido. Deveria
ter consultado você. — Sua carranca se aprofundou. — Imagino que
seus pais mantiveram quartos separados?
A pergunta inesperada torceu o coração de Helena com força.
A mãe havia morrido quando ela era apenas uma menina, mas
conseguia se lembrar bem do pequeno quarto gelado, despojado de
tudo, exceto de uma cama de ferro. Era uma imagem que havia
povoado muitos pesadelos de infância.
Ela umedeceu os lábios.
— Eles viviam separados, sim. Mas você e eu... não
precisamos ...
— Será como você quiser — ele a interrompeu. — Não farei
exigências irracionais. Não quero que pense que sou um bruto.
— Eu sei. Você tem sido muito gentil comigo. Estou mais grata
do que posso expressar.
— Grata — ele repetiu.
— Sim. E muito em dívida com você.
— Entendo.
Helena sentiu que havia dito algo errado, mas não tinha a
menor ideia do quê. Gostaria de ter alguém para aconselhá-la. Uma
mulher sensata para orientá-la quanto ao que dizer e o que fazer.
Precisava de Jenny.
Mas Jenny era apenas dois anos mais velha e, apesar de todas
as suas declarações estridentes, sabia tão pouco sobre homens e
casamento quanto Helena.
— Justin, eu... — Ela se esforçou para formular as palavras. —
Não quero desapontá-lo.
A expressão dele se suavizou.
— Não desapontou. Nem vai. — Ele esticou o braço sobre a
mesa, com a palma da mão para cima em um convite.
Sua mão era grande, e os dedos longos e quase elegantes. Era
o tipo de mão que poderia empunhar uma espada ou uma pistola
com a mesma facilidade com que escreveria uma carta ou
acariciaria a bochecha de uma dama. O pulso de Helena acelerou
quando ela estendeu a mão para pegá-la.
Os dedos de Justin se fecharam de forma protetora ao redor
dos seus. O aperto foi reconfortante e quente, sua pele era
bronzeada por causa do ar livre e calejada pelo trabalho duro. A
própria mão parecia pequena e pálida em comparação.
— Não existe um manual para matrimônio por anúncio — ele
falou. — Teremos que encontrar nosso próprio caminho. — Passou
o polegar bem devagar sobre as juntas de seus dedos. — Mas se
formos sinceros um com o outro, correremos muito menos risco de
sermos infelizes.
Ela engoliu em seco. Ele queria sinceridade. Claro que queria.
E contaria tudo a ele. Planejou fazer isso esta noite, quando
estivessem de volta à abadia. Quando estivesse segura em sua
casa e não houvesse chance de que ele a mandasse embora. Mas
agora...
Ela mordeu o lábio.
— Há muito que eu não te contei.
— Eu sei. Também não tenho sido muito aberto.
— Sim, mas pelo menos você tentou me contar sobre seu
passado. Não fiz nenhum esforço para contar o meu. — Ela
observou seu rosto. — Isso não o preocupa?
— Provavelmente não tanto quanto deveria.
— Por que não?
Ele deu de ombros.
— Seus segredos não podem ser piores que os meus. Além
disso, confio em Finchley com minha vida. Ele nunca a teria enviado
se você fosse uma assassina ou uma lunática fugida de Bedlam.
Ela puxou a mão da dele e, de forma abrupta, levantou-se da
cadeira. Por um momento, temeu vomitar. Levou a mão à boca e se
afastou do marido.
Justin chegou ao seu lado em um instante.
— O que foi? O que há de errado?
Ela balançou a cabeça.
O marido pousou a mão nas suas costas, guiando-a até um
sofá estofado perto da lareira.
Lá fora, o céu escureceu, e um trovão rasgou o ar. Foi seguido
pelo som de uma chuva torrencial. Caiu forte e rápido contra as
janelas do quarto.
Helena mal percebeu a piora do tempo ao afundar no sofá de
forro adamascado.
— Temo ter bebido muito champanhe.
Mais mentiras. Não foi a bebida forte que fez seu estômago
embrulhar e a transpiração umedecer sua testa.
— Não estou acostumada — disse. — Nunca bebo vinho,
exceto no Natal.
Justin se sentou ao seu lado.
— Gostaria que tivesse me contado. Eu teria parado de encher
a sua taça.
— Eu não estava pensando.
Ele tocou sua bochecha com as costas da mão. Os olhos
cinzentos estavam escuros de preocupação.
— Você ficou pálida como um fantasma.
Ela abaixou a cabeça.
— Devo chamar um médico?
A sugestão a deixou alarmada.
— Não. Claro que não. — A última coisa que queria era ser
examinada por um médico. Ela os odiava e confiava ainda menos
neles.
— Talvez ele possa prescrever algo para essa moléstia.
Claro que ele prescreveria algo. Uma sangria, sem dúvida. Em
sua amarga experiência, os médicos nunca deixavam passar a
oportunidade de aplicar sanguessugas ou abrir as veias de uma
dama.
— Não — repetiu. — De verdade, Justin. Não preciso de nada.
Só estou um pouco tonta.
— Então, sente-se aqui por um momento. — Ele moveu a mão
com suavidade por suas costas. — Vai passar. Sempre passa.
Helena tentou se concentrar no que ele dizia. Queria conter o
pânico que crescia em seu peito. Tudo ficaria bem. Quando
voltassem para a abadia, explicaria tudo. Ele não era um homem
irracional. Decerto entenderia.
— Parece como se você estivesse falando por experiência
própria — ela apontou.
— Certamente. Quando cheguei à Índia, costumava beber
demais. — Um sorriso irônico apareceu na boca de Justin. — Eu era
um soldado britânico em um clima quente e diabólico. Era
praticamente obrigatório.
Ela olhou para ele.
— Sentia saudades de casa?
— Não havia motivo para sentir saudades.
— Nem mesmo da Inglaterra? — perguntou. — Ou do mar?
Ele pareceu considerar.
— Confesso que senti falta do mar. Atrevo-me a dizer que
deveria ter ingressado na Marinha de Sua Majestade. Mas para um
garoto que passou a vida inteira olhando para a água, navegar não
parecia bem uma aventura. Eu queria o deserto. O som de línguas
estrangeiras e o sabor de alimentos ricos em especiarias.
— E beber — ela completou.
— E beber — ele concordou. — Champanhe não é nada
comparado ao bhang e ao conhaque. Nas poucas ocasiões em que
fui tolo o suficiente para me permitir, meu ordenança foi obrigado a
me dar um medicamento especial. Uma substância nociva.
Altamente eficaz também. Eu tentaria fazer a beberagem, mas
provavelmente acabaria te envenenando.
Ela bufou com diversão relutante.
— Eu não gostaria nada desse desfecho.
— Nem eu. — Ele passou os nós dos dedos ao longo de sua
mandíbula. — Acabei de me unir a você. Não estou pronto para
deixá-la ir.
Uma dor estranha se instalou no coração de Helena.
— Eu não vou a lugar nenhum.
Jason lhe examinou o rosto, e uma sugestão de sorriso ainda
brincava em seus lábios.
— Você está recuperando a cor, pelo menos.
Ela estava corando. E ele sabia disso, o patife. Não estava
acostumada a sentar-se tão perto de um homem. Nem a ser tocada
com tanta ternura. O beijo que eles compartilharam na pousada
ontem foi a experiência mais íntima de toda sua vida.
— Estou me sentindo um pouco melhor.
— Só um pouco?
— Muito.
Ele ergueu o queixo dela com os dedos. Não estava mais
sorrindo. Ele parecia mortalmente sério. Bastante determinado, na
verdade.
— Tem certeza de que está recuperada?
— Sim — ela sussurrou.
— Que bom. — Justin abaixou a cabeça e capturou sua boca
em um beijo lento e devastador.
Helena fechou os olhos e inclinou o corpo para o dele. Ele era
um homem grande, alto, magro e de ombros largos, mas embora ela
fosse muito menor, não havia estranheza entre os dois.
Encaixavam-se com perfeição. Ela não teria pensado que seria
possível.
Na verdade, mal conseguia pensar.
Os lábios dele eram quentes e firmes nos seus, o que fez seu
coração acelerar e saltar umas tantas batidas. Esqueceu-se do que
a havia incomodado. O toque de Justin parecia ter esse efeito nela.
Só de estar perto dele, sentir o calor de seu corpo e inalar o cheiro
de seu creme de barbear, ficava mais tranquila de certa forma. A
proximidade dele a fazia sentir-se segura e protegida e...
Amada.
Não, não amada. Ele não a amava. Como poderia? Mas a
maneira como a tocou, como se inclinou sobre ela, envolvendo-a
com sua força. Era algo muito parecido com amor. Ou, pelo menos,
do jeito que ela imaginou que o amor poderia ser.
— Justin...
Ele recuou para olhar para ela. Seus olhos estavam
entreabertos, o peito subindo e descendo com uma respiração
ofegante.
— Demais?
— Não. Não é isso.
— Muito rápido? — ele perguntou. — Eu me impus a você?
Helena balançou a cabeça. Ela se sentiu tola de repente e
muito mais jovem do que seus vinte e cinco anos.
— E-eu não sei o que fazer.
Seu olhar acinzentado se suavizou em uma carícia. Ele
emoldurou seu rosto com as duas mãos.
— Mais devagar, então — ele murmurou. — Com mais
suavidade. — Seus cílios vibraram enquanto ele dava beijos leves
em sua mandíbula, bochecha e têmpora. Eram beijos tão suaves
quanto um sussurro. Beijos delicados. Mas havia um desespero
subjacente neles, mais evidente quando ele tomou sua boca mais
uma vez.
Helena emitiu um som suave e baixo que veio do fundo de sua
garganta. Ontem ela recebeu seu beijo com passividade. Foi
restringida por seu senso de propriedade; inibida pela falta de
experiência. Mas, hoje, as regras que governaram sua juventude
não se aplicavam mais. Era uma mulher adulta. E casada.
Independentemente do que o futuro reservasse, Justin Thornhill era
seu marido.
Desta vez, quando os lábios dele encontraram os seus,
envolveu os braços ao redor do pescoço dele e retribuiu o beijo.
Capítulo Sete

Quaisquer dúvidas que Justin tivesse de que Helena poderia


ou não suportar seu toque viraram cinzas.
Ela passou as mãos ao redor de seu pescoço, puxando-o para
baixo até o rosto erguido, e retribuiu seus beijos com um ardor
inocente que fez seu sangue pulsar nas veias.
Ela o queria.
Não deveria importar, mas importava. Ela era sua esposa. A
primeira pessoa a realmente pertencer a ele.
Passou o braço pela cintura da esposa e a puxou para mais
perto, esmagando as saias pesadas contra as pernas dele em uma
cascata de seda e crinolina de entretela. Helena era macia e
flexível, tinha gosto de champanhe e cheiro de jasmim indiano,
anáguas engomadas e mulher calorosa e disposta. Era a mistura de
fragrâncias mais atraente que já encontrou. Fazia-a parecer uma
combinação exótica de respeitável dama britânica e misteriosa
sereia do Extremo Oriente.
Passou a mão atrás de seu pescoço conforme a boca se movia
sobre a dela, acariciando-a e persuadindo-a, até que seus lábios se
entreabriram sob os dele. Ele podia ter emitido um som por causa
do gesto. Um murmúrio de aprovação, talvez, ou, que Deus o
ajudasse, um grunhido de prazer. Era totalmente inapropriado e
muito cedo, mas, minha nossa! A mulher era muito suave e doce.
E era sua. Toda sua.
Justin ergueu a cabeça.
— Gostaria de passar a noite aqui?
Helena ainda estava abraçada a ele. De um jeito delicioso.
Podia sentir seus dedos entrelaçados em seu cabelo.
— No hotel?
— Reservei o quarto.
Ela se afastou, tirou as mãos de seu pescoço e as apoiou na
frente de seu colete. Justin notou o movimento da garganta em um
engolir audível.
— Achei que fôssemos para casa.
— Para a abadia? — Justin olhou para a janela. — Se a chuva
continuar, será praticamente impossível trafegar pela estrada ao
anoitecer.
— Isso significa que estamos presos aqui? — Ela não pareceu
satisfeita com a ideia.
— Não. Significa que precisaremos partir em breve se
quisermos voltar com segurança. — Ele odiava ter que perguntar
isso. — Você quer ir?
— Eu esperava que pudéssemos. — Ela deixou as mãos
caíram para o colo. — Não tenho dormido muito bem desde que saí
de Londres.
Justin sentiu uma pontada de decepção. Queria salientar que
havia uma cama muito útil no quarto de hotel, mas sabia bem que
esse não era o ponto crucial de sua objeção. Ela simplesmente não
queria dividir a cama com ele. Ainda não, pelo menos.
Teria que cortejá-la. Uma perspectiva detestável.
O que ele sabia sobre cortejar? Seu passado romântico, o que
havia dele, consistia em breves interlúdios com viúvas dispostas ou
relações impessoais com prostitutas. Nunca cortejou ninguém de
modo apropriado. Nunca teve uma amante. Parecia muito
problemático. Especialmente quando o coração nunca esteve
investido. E depois de Cawnpore...
Não se sentia digno de bondade nem de gentileza. E estava
ainda menos inclinado a oferecê-la. Não para uma viúva ou uma
prostituta disposta. E certamente não para uma esposa.
Meu Deus, mas um anúncio matrimonial deveria aliviar a
necessidade de qualquer uma dessas armadilhas emocionais. Se
quisesse embarcar em um cortejo, teria encontrado uma mulher em
uma festa de algum vilarejo. O tipo de mulher simples e prática. A
filha de um comerciante ou a viúva de um soldado. Nunca teria
escolhido uma dama com tanta beleza e requinte. Ele sabia o que
era. E o que merecia.
Mas quando Helena olhou para ele, com os lábios rosados de
seus beijos e os olhos suaves como veludo, Justin percebeu que,
quer a merecesse ou não, ela era sua. E de jeito nenhum a deixaria
infeliz.
Segurou as mãos dela. Eram pálidas e magras nas dele.
— Não teremos muita privacidade na abadia. Boothroyd
provavelmente me importunará assim que retornarmos. Ele não tem
noção de momento. Nem Neville, para ser sincero.
— A vida na abadia parece ser muito... informal.
Ele curvou a boca em um sorriso.
— Por assim dizer. — Acariciou a pele macia das costas de
suas mãos com os polegares. — Não vai ser igual ao que você está
acostumada.
— Você já disse isso antes. Espero que não esteja tentando me
afastar ainda.
— Daria certo desta vez?
— Somos casados, senhor. Sou sua esposa.
— Ah — ele disse —, pensei ter lhe reconhecido.
Um sorriso brilhou nos olhos dela. Helena puxou as mãos dele
até que Justin abaixou a cabeça de forma obediente. E então ela o
beijou, seus lábios agarrando-se aos dele, doces e cálidos.
O coração dele trovejou em seu peito.
— Tome cuidado — disse, com a voz rouca. — Se me der muito
mais disso, vou começar a pensar que está começando a gostar de
mim.
Ela moveu as mãos nas dele, devolvendo o aperto de seus
dedos.
— Seria ruim?
— Quem pode dizer? É um território desconhecido. Nenhuma
mulher desenvolveu afeto por mim.
— Não acredito nisso.
— Claro que não. Você me acha irresistível.
Um rubor coloriu seu rosto.
— Acho-o irritante. Especialmente quando me provoca.
Ele acariciou sua bochecha.
— E eu a acho linda além das palavras.
Foi a coisa mais chocante que já havia dito a uma mulher. O
tipo de doçura que um jovem apaixonado diria à amada.
Também era a verdade absoluta.
— Como uma criatura tão adorável respondeu ao meu anúncio?
— ele perguntou, roçando a bochecha na dela.
A respiração de Helena era um sussurro delicado em seu
ouvido.
— Foi o destino.
— Humm. Eu me lembro. Algo a ver com o fato de ambos
termos ido ver Koh-i-Noor no verão de 51, não foi?
— Não ria.
— Não estou rindo. — E não estava. O coração estava pleno
demais; o momento, perfeito demais.
Os dedos se entrelaçaram com os dela, e Justin se inclinou
para roçar os lábios na testa de Helena.
Não acreditava em destino. Não confiava nele. O universo
nunca jogou boa sorte em seu colo. A única sorte que teve foi a que
fez para si mesmo. Mesmo assim, o sucesso muitas vezes o
deixava vazio.
Se ela quisesse acreditar que estavam fadados a se encontrar,
não discutiria. Mas não tinha ilusões. Reconhecia a união deles
exatamente pelo que era. Não foi destino, sorte, nem providência.
Foi mero acaso. Tão fugaz e efêmero como vapor de éter.
E pretendia saborear cada precioso segundo.
— Eu sou um canalha — disse, vários beijos depois. Os dois
estavam ofegantes. — Vou mantê-la aqui até que o tempo torne a
volta impossível.
— Você não faria isso.
Ele a beijou mais uma vez.
— Posso ser bem implacável quando se trata de conseguir o
que quero. Não se engane.
— E o que quer é ficar aqui no hotel.
— E você quer voltar para a abadia.
— Quero — ela disse. — Sei que é bobo, mas me sinto segura
lá. Não posso explicar bem.
Justin não exigiu uma explicação. Ele já sabia o quanto ela
valorizava sua segurança. Foi por isso que se casou com ele. Não
porque o estimasse, nem mesmo por achá-lo particularmente
atraente. Era porque precisava de um homem para protegê-la. E
Finchley, por qualquer motivo, havia jurado a ela que Justin era esse
homem.
“Ele me disse que o sr. Thornhill tinha sido soldado e que sabia
como manter uma mulher a salvo”.
A amargura espiralou como ácido em seu estômago. De
repente, Justin sentiu todo o peso de sua responsabilidade por ela;
e toda a extensão da própria indignidade. Se ela confiava nele, era
apenas porque não o conhecia. Manteve o pior de si mesmo
trancado. Seu passado não podia suportar um exame minucioso. E
se alguma vez o compartilhasse com ela...
Bem. Certamente não inspiraria o tipo de abraços carinhosos
de que estavam desfrutando agora.
— Tem certeza de que está pronta para a jornada? — ele
perguntou. — São vinte e um quilômetros de estrada ruim.
— Posso lidar com isso.
— Então é melhor eu chamar o cocheiro antes que o tempo
piore. — Ele se moveu para soltá-la, mas ela apertou suas mãos,
com a expressão incerta.
— Você realmente não se importa, Justin?
Ele se importava para diabo. Só esperava não ter demonstrado.
— Não, não me importo. — Levou uma das mãos dela aos
lábios, e acrescentou: — No momento, tenho uma noção um tanto
quanto idiota de que faria qualquer coisa no mundo para deixá-la
feliz.
E ele o faria.

◆◆◆

Quarenta e cinco minutos depois, estavam na carruagem e na


estrada a caminho de King’s Abbot. A chuva estava implacável,
tornando a viagem ao longo da beira do penhasco muito mais
minuciosa do que em um clima menos traiçoeiro. O cocheiro forçou
os cavalos a ir a passo nas curvas e, quando chegaram à abadia, o
sol já estava se pondo.
Foram recebidos pelo sr. Boothroyd e Neville, junto com a
cozinheira idosa, a sra. Whitlock, e a nova governanta, a sra.
Standish. A sra. Standish olhou para Helena com o nariz empinado.
Estava se retirando para dormir, ou assim ela informou, e não queria
ser incomodada.
— Deram-me a noite de folga — disse —, para me dar tempo
de me acomodar em meus aposentos.
A sra. Whitlock foi um pouco mais acolhedora. Também estava
ligeiramente embriagada, o leve cheiro de xerez emanava de seu
corpo magro. Ela prometeu ensopado para o jantar e pão fresco
com manteiga antes de voltar para a cozinha lá embaixo.
Helena observou as duas mulheres partirem com uma
sensação de desgosto. Esperava que uma delas lhe mostrasse seu
quarto. E nutria alguma esperança de pedir um banho.
Se não se sentisse tão terrivelmente vulnerável no hotel,
poderia ter aproveitado o excelente encanamento e tomado banho
lá. Dada a situação, não conseguia parar de pensar em quem
poderia estar nos outros quartos. Inúmeros estranhos, qualquer um
dos quais poderia reconhecê-la. Mas não seria reconhecida agora.
Estava segura na abadia. A chuva a deixava ainda mais segura.
Com alguma sorte, a estrada do penhasco estaria intransitável
quando ela se deitasse. E então, essa noite, pela primeira vez em
muito tempo, seria capaz de adormecer sem medo.
— Não o esperávamos de volta esta noite, senhor — o sr.
Boothroyd disse.
Justin tirou as luvas.
— Uma pequena mudança de planos. — O homem mais velho
franziu os lábios. Ele olhou em sua direção, com a decepção
gravada no rosto. — Sra. Thornhill, imagino que queira se refrescar.
Neville, mostre a sua senhora...
— Eu cuidarei de minha esposa. — Justin lhe ofereceu o braço.
— Permita-me?
Ela apoiou a mão na sobra do cotovelo dele. O marido não
disse uma única palavra enquanto a escoltava escada acima, até o
segundo andar. Ele esteve igualmente quieto no coche. No hotel,
disse que faria qualquer coisa para fazê-la feliz, mas não demorou
muito para que caísse no que só poderia ser descrito como um
silêncio taciturno. Tinha certeza de que estava descontente com ela.
Deus sabia que ele tinha um bom motivo.
Entre sua reação à perspectiva de compartilharem um quarto e
a falta de vontade de passar a noite no hotel, ela, sem dúvida,
parecia ser tão mimada e volúvel quanto a criatura frívola que o sr.
Boothroyd a acusou de ser quando se conheceram.
— Por aqui. — Justin virou à esquerda no topo da escada,
conduzindo-a por um amplo corredor com papel de parede de seda
amarela estampada. O caminho era iluminado por arandelas
uniformemente espaçadas piscando com luz a gás.
— Eu não tinha ideia de que a abadia era equipada com gás —
ela comentou.
— Apenas os corredores e a sala de estar.
Ela lhe lançou um olhar indagador.
— Foi ditado pelo projeto?
— Foi ditado pelas limitações do meu bolso — ele respondeu.
— Para transformar esta antiguidade em uma casa, é preciso uma
quantidade excessiva de tempo e dinheiro. As modernizações
tiveram que ser graduais. Receio que não se estendam por toda a
casa ainda. — Ele parou na frente de uma porta com painéis de
madeira e a abriu. — Seus aposentos, senhora.
Helena entrou na frente dele em um quarto espaçoso. Cheirava
a cera de limão, roupa de cama engomada e bicarbonato de sódio.
No centro havia uma magnífica cama elizabetana esculpida com
meio dossel de damasco vermelho. Olhou de volta para Justin.
Ele pigarreou:
— Do século dezesseis. Mas os tapetes são novos. Assim
como as tapeçarias. E bem aqui... — Ele a conduziu por outra porta
aberta. — Fica o banheiro.
Dada a idade da abadia, não esperava nada melhor em termos
de encanamento do que um sanitário e uma banheira de estanho.
Mas o que estava diante dela era um quarto totalmente moderno,
com piso de mármore preto e branco e painéis de mogno que se
estendiam até a metade das paredes. Havia um armário alto, pia e
espelho chanfrado, além de uma banheira esmaltada com a borda
virada que parecia grande o suficiente para acomodar uma pessoa
com o dobro do seu tamanho.
Justin deu um passo à frente e girou uma torneira de latão. A
água jorrou para a banheira.
— Água corrente — Helena falou baixinho. — Ah, que
maravilhoso.
Ele fechou a torneira.
— Pode tomar um banho se quiser.
— Eu adoraria. Acima de todas as coisas. — Ela vagou de volta
para o quarto. Justin a seguiu. Um tipo estranho de eletricidade
parecia pulsar entre eles. Ela umedeceu os lábios. — Este seria o
nosso quarto?
— É o nosso quarto. Eu simplesmente vou dormir em outro
lugar por enquanto.
— Onde?
— Na câmara adjacente.
A consciência dela doeu.
— Era eu quem deveria dormir em outro lugar. Não você.
— Não acho.
— Seria o justo.
— Que eu force minha esposa a dormir no segundo melhor
quarto? — Ele arqueou as sobrancelhas. — Por que tipo de homem
me toma?
— Um que é muito sobrecarregado.
— Helena, eu era soldado. Devo contar a você alguns dos
lugares em que dormi ao longo da carreira militar? Até um quarto
em mau estado é um paraíso, posso lhe garantir.
— Sim, mas este quarto foi claramente reformado. Você teve
muitos problemas...
Ele segurou sua mão enquanto ela passava por ele.
— Você gostou?
Ela parou e se virou para encará-lo. Estava lá de novo. Aquela
leve sugestão de incerteza quase infantil espreitando por detrás de
seus olhos, o que a comoveu profundamente.
— É mais do que ousei esperar.
Justin sustentou seu olhar por vários segundos.
— Estou feliz que lhe agrada. — Sua voz estava mais grave
que o normal, se fosse possível. Por um momento, parecia que ele
diria algo mais. Ela esperou, mas no instante seguinte ele soltou sua
mão. — Jantamos às sete. Devo vir buscá-la?
— Sim, por favor. Nunca vou encontrar o caminho para a sala
de jantar de outra forma.
Justin inclinou a cabeça para ela e saiu. A porta se fechou atrás
dele.
Helena soltou um suspiro sofrido. Olhou em volta do quarto de
novo, tentando ao máximo não o comparar com seu quarto luxuoso
na Grosvenor Square. Jenny ainda estaria lá? Será que, mesmo
agora, estaria sentada em frente à lareira de mármore e tricotando
um par de luvas para uma de suas instituições de caridade? Ela
prometeu que ficaria. Que esperaria por notícias de Helena.
— Depois de se casar, envie um bilhete ao sr. Finchley. Ele é o
tipo de sujeito que dispões de alguns recursos. O homem se
certificará de que eu o receba. E, então, meu amor, se você precisar
de mim, estarei no próximo trem para Devon.
Mas e se Jenny já tivesse ido? E se, após o desaparecimento
de Helena, eles a jogassem na rua?
Ou pior.
Subjugada pelos pensamentos, Helena voltou ao banheiro.
Meia hora depois, saiu da banheira com um estado de espírito
muito mais otimista. Hoje à noite, depois do jantar, contaria tudo a
Justin. Não deixaria passar outro dia sem que ele soubesse a
verdade. E se ele ficasse com raiva ou desapontado...
Bem, então, ela teria que suportar, não é? Soltou o cabelo,
escovando-o com indiferença ao voltar para o quarto. A chuva
parecia muito mais fraca do que o dilúvio que havia marcado a
viagem de Abbot’s Holcombe. Afastou um lado das pesadas cortinas
de tecido damasco e olhou pela janela. As gotas de chuva batiam no
vidro em rabiscos desordenados. Através do borrão aquoso, ela
podia ver além do caminho e mais adiante do estábulo.
Ainda estava lamacento, cinza e miserável, mas a chuva havia
diminuído, mesmo que apenas um pouco.
Talvez a estrada para a abadia não estivesse intransitável.
Apoiou o quadril no vão da janela e, por pura força do hábito,
olhou para a vista por mais um tempo. Era estúpido continuar
mantendo tal vigília. Ninguém ousaria vir aqui atrás dela. Mesmo se
soubessem de seu paradeiro, não enfrentariam as estradas. Não
neste clima horrível.
Além disso, era uma mulher casada agora. O único homem que
tinha direitos legais sobre ela era Justin Thornhill. Nenhum outro
poderia obrigá-la a fazer nada. Eles simplesmente não tinham esse
poder. Nem para machucá-la, confiná-la, nem para colocar as mãos
nela. E, certamente, não para forçá-la a voltar para Londres.
Moveu-se para se levantar.
E foi quando viu. Luzes piscando sem firmeza na curva da
estrada do penhasco.
Apertou os olhos, tentando decifrá-las. Não era necessário.
Ficaram mais brilhantes diante de seus olhos, chegando cada vez
mais perto. Estavam avançando em direção à abadia em ritmo lento.
Uma gota fria de medo escorreu sua espinha.
Eram luzes de carruagem E estavam presas a uma que estava,
mesmo agora, entrando no caminho.
Observou, paralisada onde estava, quando o veículo parou em
frente à entrada da Abadia. Um lacaio saltou e abriu a porta da
carruagem. Baixou os degraus e recuou quando um homem com um
casaco preto pesado desceu. Outro o seguiu de perto. Uma figura
descomunal e familiar demais. Ele ergueu a cabeça para examinar a
abadia e...
Ah, Deus!
Helena se afastou da janela com o coração na garganta.
E ela não pensou. Não podia. Todo pensamento racional
parecia ter fugido diante de tanto terror. Não restou nada além do
instinto.
Então, fez o que sempre fazia.
Correu.
Capítulo Oito

Justin, com os braços cruzados, recostou-se na cornija da


lareira. As coisas teriam sido muito mais fáceis se Helena tivesse
consentido em permanecer no hotel. Ele havia organizado tudo com
tanto cuidado. O quarto confortável. O champanhe. A total ausência
de interrupções. Agora, em vez de desfrutar de privacidade com a
nova esposa, estava em uma biblioteca ligeiramente úmida,
contemplando dois homens igualmente úmidos.
Um deles era o magistrado local.
— Capitão Thornhill — ele disse.
— Hargreaves — Justin disse em resposta.
George Hargreaves era o magistrado desde que Justin era
menino. Eles não morriam de amores um pelo outro. Na verdade, ao
entrar na biblioteca, o homem nem mesmo fez menção de apertar a
mão de Justin.
Não que ele tivesse sido mais acolhedor. Não disse a nenhum
dos dois homens para se sentar. E certamente não tinha intenção de
lhes oferecer algo quente para beber.
— Que tempo horrível — Hargreaves comentou.
— Não é o melhor momento para se fazer uma visita — Justin
apontou.
— Foi impossível evitar. — Hargreaves tirou o chapéu. O rosto
do homem era rosado e gordo; a cabeça, calva e as suíças brancas
se curvavam até a papada. — Um péssimo negócio, esse.
O homem loiro que estava ao lado de Hargreaves não emitiu
uma única palavra. Ele era um sujeito abrutalhado e musculoso, e
as costuras de seu sobretudo se retesavam ao longo de suas costas
e ombros. Não era tão alto quanto Justin. Nem perto disso. Mas o
pescoço era maciço como um tronco de árvore e as mãos
enluvadas pareciam ter o tamanho aproximado de pratos de jantar.
Ele estava olhando pela biblioteca, examinando o conteúdo da
sala com toda a sutileza de um oficial de justiça.
— O assunto é bastante simples —Hargreaves continuou. —
Se o senhor...
— Onde está lady Helena? — o cavalheiro bruto perguntou.
Justin voltou o olhar para o homem, mesmo quando o coração
esmurrou a caixa torácica. Lady Helena? Foi apenas por pura força
de vontade que ele foi capaz de manter seu semblante impassível.
— E o senhor é?
— Este é o sr. Horace Glyde — Hargreaves o apresentou. —
Ele vem em nome do conde de Castleton. Sua senhoria procura a
sobrinha desaparecida.
— O conde de Castleton! — Boothroyd exclamou de seu lugar
em frente às portas fechadas da biblioteca. — Está dizendo que a
srta. Reynolds...
— Lady Helena é sobrinha de sua senhoria — Glyde disse. — E
estou autorizado por lei a resgatá-la. Mesmo se eu tiver que destruir
este lugar.
Justin ficou de pé em toda a sua estatura. A raiva cresceu com
intensidade dentro dele, enrolando-se em seus músculos e
transmitindo um tom perigoso à sua voz.
— E diga-me, Hargreaves, desde quando a lei britânica permite
que um estranho entre na casa de um homem e ameace colocar as
mãos em sua esposa?
— Ela está aqui, eu sabia. — O sr. Glyde ergueu o rosto para o
teto, como se pudesse ver os andares acima. — Cumpra seu dever,
Hargreaves. Ou devo subir e buscá-la eu mesmo?
— Creio que seja melhor o senhor não fazer isso — Justin
avisou.
Os olhos do sr. Glyde brilharam.
— Oh, crê, não é?
Hargreaves se colocou entre os dois.
— Por favor, senhores. Vamos nos tratar como seres humanos
civilizados. Não tenho dúvidas de que uma vez que Thornhill
entenda o estratagema que foi perpetrado, ele cooperará de boa
vontade.
— Estratagema? Que estratagema? — Boothroyd ficou para
trás, ouvindo, mas com a menção de algum engodo, não perdeu
tempo em entrar na briga. Ele cruzou o salão para se juntar a Justin
perto da lareira.
— Lady Helena desapareceu da casa do tio em Londres há três
dias — Hargreaves explicou. — O sr. Glyde a rastreou até King’s
Abbot. Foi lá que ele soube de seu casamento iminente, Thornhill.
— E fui direto ao magistrado — Glyde disse. — O senhor
descobrirá que a lei está do lado de sua senhoria neste assunto.
Hargreaves suspirou.
— Eu direi isso, senhor. Nós viajamos um pouco demais para o
meu gosto hoje, com a chuva caindo como se o mundo estivesse
prestes a acabar. Primeiro para Abbot’s Holcombe e depois para cá.
Essa estrada do penhasco é uma ameaça, Thornhill.
— É — Justin concordou. — Mesmo assim, o senhor veio.
— Não podia ser evitado. Depois de visitar o cartório e saber de
seu casamento...
— Aqui está — Glyde o interrompeu.
— O que é isso? — Boothroyd balançou a cabeça para o
magistrado. — O casamento não é válido, senhor? E por que não?
A dama não é maior de idade?
— Lady Helena é maior de idade — Hargreaves respondeu. —
Mas o sr. Glyde possui documentos que parecem mostrar que sua
senhoria não tem as faculdades para consentir com o casamento.
— Lorde Castleton estava em processo de interná-la em um
hospício particular — Glyde disse. — Ela estaria presa lá agora se
não tivesse fugido à noite como uma verdadeira criminosa.
O sangue de Justin gelou.
— Não acredito.
Hargreaves se voltou para o sr. Glyde.
— Mostre os documentos a ele, senhor — disse o homem, com
certa impaciência.
O sr. Glyde enfiou a mão no interior do sobretudo e tirou de lá
um envelope, que empurrou para Justin.
— Aí está a sua prova.
Justin o pegou sem dizer uma palavra. O papel de cima era fino
e amarelado pelo tempo. Quando ele o desdobrou, viu o que parecia
ser uma certidão de óbito de mulher, os nomes e datas escritos em
uma escrita rebuscada.
— Honoria Reynolds, a falecida condessa de Castleton. — O sr.
Glyde chegou perto o suficiente para apontar o dedo grosso para o
nome desbotado na certidão de óbito. — Morreu em um hospício,
em 1844. — Justin ergueu o olhar para o rosto do sr. Glyde, fitando
primeiro o homem e depois Hargreaves. — O que isso prova?
O sr. Glyde bufou.
— É a mãe dela, não é? A loucura está no sangue. Os médicos
de sua senhoria atestarão. Aqui, veja. Um relatório escrito pelo dr.
Philemon Collins, o médico pessoal do conde. E outro por sir Luther
Fortescue, da Universidade St. Andrews.
Justin folheou os relatórios dos médicos. Os dois foram escritos
no ano passado. E eram estranhamente parecidos, usando frases
assustadoramente semelhantes para descrever a condição de
Helena. Palavras como histeria e melancolia saltavam das páginas.
Uma nota mencionava delírio prolongado. A outra fazia referência à
hidroterapia e eletroterapia.
O primeiro tratamento foi um sucesso, Collins escreveu.
Paciente bastante subjugada.
Justin cerrou a mandíbula quando, a passos largos, o choque
deu lugar à raiva.
— Um mau negócio, como eu disse. — Hargreaves emitiu um
tom conciliatório. — Mas não precisamos perder mais seu tempo
com isso, Thornhill. Basta buscar lady Helena e iremos embora.
Boothroyd abriu a boca para falar, mas Justin o calou com o
olhar. Poderia lidar sozinho com a questão. E lidaria, pois finalmente
entendeu a precisa razão pela qual Helena se casou com ele.
— Ela é minha esposa — ele falou.
O sr. Glyde pegou seus papéis e os colocou de volta no bolso
interno do casaco.
— Lorde Castleton, é claro, pedirá a anulação do casamento.
Ele até está oferecendo uma modesta compensação. Por seus
problemas, por assim dizer.
— Compensação — Justin repetiu. A palavra ficou presa em
sua garganta.
— Pequena, mas generosa — Glyde disse. — Verá que sua
senhoria não é sovina. Em troca de seu silêncio e cooperação, ele
lhe adiantará a quantia de quinhentas libras, outras quinhentas
serão pagas quando da dissolução do casamento.
— Generosa, de fato — Hargreaves observou. — Mil libras
seriam uma bela contribuição para renovar a abadia, não é,
Thornhill?
O sr. Glyde lançou um sorriso complacente para Justin.
— Sua senhoria tem tanto interesse em manter este escândalo
em segredo quanto o senhor. Ele não deseja ver o nome da família
estampado nos jornais.
— A anulação é possível? — Boothroyd perguntou.
— Não vejo por que não — Hargreaves respondeu. —
Conseguimos intervir antes da noite de núpcias. E com o casamento
não consumado...
Justin pigarreou.
— Quanto a isso...
Três pares de olhos se voltaram para ele, olhando-o com vários
graus de alarme.
— Não haverá anulação — ele declarou.
Hargreaves ficou boquiaberto.
— O senhor quer dizer...?
— Absolutamente — Justin respondeu.
— É mentira! — o sr. Glyde explodiu. — O senhor não teve a
oportunidade...
— Não vou discutir meu casamento com nenhum de vocês —
Justin disse. — Exceto para dizer que, se duvidarem de sua
validade, podem ir ao cartório de Abbot’s Holcombe. — Ele fez uma
pausa para causar efeito. — Se não for suficiente, encaminho-o
para o The Stanhope Hotel, onde eu e minha esposa tivemos o
prazer de dividir um quarto juntos após nossa cerimônia de
casamento.
— Um quarto de hotel? — O sr. Glyde ficou horrorizado. — Em
plena luz do dia?
Hargreaves fez sinal para que ele ficasse em silêncio.
— Veja bem, Thornhill. Isso muda o aspecto das coisas. Se o
casamento já foi consumado, desembaraçá-lo dessa situação não
será tão...
— Não desejo ser desembaraçado. — Justin olhou para o sr.
Glyde. — Pode dizer ao conde de Castleton que lady Helena é
minha agora. E eu fico com o que é meu.
O sr. Glyde enrubesceu de indignação.
— Quem pensa que é, senhor?
— Um bastardo — Justin disse, em tom calmo. — Em todos os
sentidos da palavra. Se precisar de mais esclarecimentos, sem
dúvida Hargreaves pode fornecê-los durante a jornada de volta a
King’s Abbot.
A compreensão foi, aos poucos, sendo registrada nos olhos de
Hargreaves.
— Por Deus, Thornhill, sua ambição não conhece limites?
Primeiro leva um bom homem à morte para adquirir esta
propriedade. E agora se casou com uma senhora débil para... o
quê? Trilhar seu caminho para a aristocracia? — Ele balançou a
cabeça em desgosto. — Não tem vergonha, senhor?
— Absolutamente nenhuma — Justin afirmou. — Isso é tudo,
senhores?
O sr. Glyde estava começando a parecer apoplético. Ele deu
um passo ameaçador em sua direção, com os punhos cerrados ao
lado do corpo.
Justin não demoveu um centímetro. Não desejava recorrer à
violência, mas se era uma luta que o sr. Glyde queria, ficaria
bastante satisfeito em fazer a vontade dele. Na verdade, sentia
vontade socar em alguma coisa. E, no momento, o rosto zombeteiro
do sr. Glyde parecia um alvo particularmente tentador.
— Aham. — Boothroyd se aproximou de Justin. — Se eu puder
intervir, senhores. Observem que as trovoadas que temos ouvido
agora vêm acompanhadas de raios. Se a chuva não diminuir, a
estrada do penhasco logo ficará intransitável.
Hargreaves inclinou a cabeça em direção às janelas, ouvindo a
chuva implacável bater no vidro. Ele soltou outro suspiro.
Sentindo-o capitular, o sr. Glyde inflou ainda mais o peito.
— Não vou embora sem ver lady Helena. Sua senhoria
ordenou...
— Basta, sr. Glyde — Hargreaves o interrompeu. — Não quero
ficar preso nesta abadia esquecida por Deus pelos próximos quatro
dias. — Ele olhou para Justin. — Lorde Castleton é um homem
poderoso, Thornhill. Se a sobrinha dele não tiver faculdades para
consentir, juiz nenhum na Inglaterra considerará este casamento
válido.
— Os tribunais o anularão — Glyde disse. — Não importa se foi
consumado.
— Algum recurso legal será encontrado — Hargreaves
concordou. — Pode ficar ciente disso.
— A estrada do penhasco, sr. Hargreaves — Boothroyd
murmurou. — As condições estão piorando a cada segundo.
Hargreaves colocou o chapéu de volta na cabeça.
— Passar bem, sr. Boothroyd. — Ele tocou o braço de seu
furioso companheiro. — Venha, sr. Glyde. Nada pode ser feito esta
noite. Voltaremos depois que o senhor receber mais instruções de
sua senhoria. E quando este tempo ruim melhorar.
— Diga a lady Helena que voltarei para buscá-la — o sr. Glyde
disse por cima do ombro. Havia uma ameaça indisfarçável em suas
palavras. — Ela pode confiar nisso.
— Sim, sim — Hargreaves murmurou. — Precisamos ir embora,
sr. Glyde. — Boothroyd conduziu os dois biblioteca afora, em
direção ao corredor, onde Neville os esperava para mostrar-lhes a
saída.
Um estrondo retumbante só serviu para apressar a partida da
dupla.
Justin os observou partir, e a realidade da situação o atingiu
com toda força. Sentia-se estranhamente entorpecido. Como se
todo o encontro tivesse se passado com outra pessoa.
Quando Boothroyd voltou, parecia igualmente perturbado. O
rosto do homem estava lívido. Ele fechou as portas da biblioteca
atrás de si e, após um longo momento de silêncio, dirigiu-se a uma
mesa próxima que continha uma garrafa de xerez e dois copos.
Serviu-se de uma dose generosa e bebeu de um só gole.
— O conde de Castleton. Inacreditável.
— Conhece o homem? — Justin perguntou.
— Conheço o título. Um dos mais antigos e distintos. Um dos
mais ricos também. — Boothroyd serviu-se de outra dose. — O que
pretende fazer, senhor?
Justin sabia o que tinha de fazer. Tinha de falar com Helena.
Teria que exigir respostas. Mas além disso...
— O que me aconselha? — ele perguntou.
Boothroyd franziu os lábios.
— Tive minhas dúvidas sobre a adequação da moça. Não fiz
segredo disso. No entanto... não acredito que ela esteja louca.
— Nem eu — Justin afirmou.
— Mas ela mentiu para o senhor.
— Ela nunca mentiu para mim.
— Negar a verdade equivale à desonestidade.
— Ela nunca mentiu para mim — Justin repetiu. — Não mais do
que menti quando me abstive de contar a ela sobre sir Oswald ou
sobre o que aconteceu em Sati Chaura Ghat.
Boothroyd inclinou a cabeça sobre o copo.
— Então não contou a ela.
Justin bufou.
— Achou que eu gritaria aos sete ventos?
— Desculpe-me, senhor, mas o que pensei é que o casamento
tornaria sua vida mais fácil. Eu não esperava... — Ele fez um gesto
vago. — Tudo isso.
— Nada nunca foi fácil, Boothroyd.
— Não, mas...
— Já conseguimos uma vez.
— Sim, mas... sendo sincero, senhor. O tio dela é o conde de
Castleton. Não é nenhum Oswald Bannister.
Os lábios de Justin se torceram em uma breve paródia de
sorriso.
— Sorte a dele.
Boothroyd abriu a boca para responder. Antes que pudesse, as
portas da biblioteca se abriram com um estrondo e Neville entrou na
sala. Ele estava usando uma camiseta de mangas compridas, o
cabelo loiro molhado da chuva e as calças sujas de lama. Ele
encontrou os olhos de Justin do outro lado da sala.
— Justin?
— O que foi agora?
O rosto de Neville se contorceu em angústia.
— Paul e Jonesy fugiram.
— Com esse tempo? — Boothroyd deu um resmungo de
desaprovação. — Malditos cachorros idiotas.
— Eles perseguiram um coelho — Neville disse com a voz
rouca. — Paul correu para o precipício.
Maldição. Como se não tivesse o suficiente para lidar. Justin
avançou para colocar a mão no ombro do amigo.
— Não há coelhos na beira do penhasco, Neville. Se os
cachorros saíram correndo...
— Eles correram para o penhasco, e Paul saltou. Jonesy está
lá, mas não quer voltar.
Justin lançou um olhar frustrado para Boothroyd.
— Preciso falar com a Helena. O senhor poderia...?
— Esses cães não me obedecem — Boothroyd disse. — Onde
está Danvers, Neville? Ele não pode te ajudar?
Neville ignorou Boothroyd. Ou talvez simplesmente não o tenha
ouvido. Ele estava ficando cada vez mais angustiado.
— É o Paul, Justin. Você tem que vir.
Justin hesitou por um momento. E, então, com um suspiro
resignado, ele apertou o ombro de Neville.
— Sim. Claro, estou indo. Deixe-me buscar um lampião.

◆◆◆

O sol se punha cedo nesta época do ano. Não passava muito


das cinco e já estava escuro. Mesmo com lampiões em riste, Justin
mal conseguia ver alguma coisa através da chuva torrencial. Não
ajudou que os dois cães fossem pretos como breu.
— Paul! — Neville gritou. Ele acenou com a lanterna à sua
frente enquanto caminhava. — Paul!
Justin havia insistido para que Neville vestisse chapéu, casaco
e luvas. Não que as peças estivessem ajudando. De que servia um
chapéu quando a chuva caía de lado? Ele ergueu o lampião mais
alto.
— Jonesy! — chamou. — Aqui, Jonesy!
O vento assobiava sobre os penhascos. Eles estavam mais
perto da borda agora.
— Tome cuidado, Neville — Justin pediu.
— Ele estava aqui, Justin. — Neville correu à frente, sem se
importar com o perigo. — Aqui embaixo.
Com uma maldição murmurada, Justin correu atrás dele, quase
escorregando na lama. Maldição, não conseguia ver nada! Malditos
cachorros. Só faltava terem voltado à abadia e estarem enrolados
diante do fogo.
— Paul! — Neville gritou. — Paul! — Ele avançou às cegas.
Justin estendeu a mão na hora certa, agarrou-o pelas costas do
casaco e o puxou para trás, para longe da beira do penhasco. Os
pés de Neville escorregaram debaixo dele. Ele caiu sentado.
— Ele estava lá, Justin! Foi onde o vi!
Justin espreitou a escuridão. No halo de luz lançado pelos
lampiões, ele podia ver a borda irregular dos penhascos. Era um
local particularmente perigoso. Uma pessoa que não estivesse
prestando atenção poderia facilmente perder o equilíbrio. Não teria
pensado que um cachorro estaria em perigo. Mas Paul ainda era
jovem e entusiasmado demais. Ele poderia até mesmo ter
perseguido uma sombra.
— Fique aqui, Neville — ele deu a ordem.
Neville assentiu:
— Eu não vou me mover.
Justin se aventurou à diante, escolhendo o caminho com
cuidado. E, então, ouviu. Um som agudo. Não era bem um latido.
Era mais como um ganido. Um ganido lamentoso e distintamente
canino.
— Jonesy? — Justin gritou ao se aproximar da beira do
penhasco. — Paul? Onde diabos vocês estão? — Ele estendeu o
lampião para o lado e olhou para baixo. — Mas o que...
Os cães estavam lá. Os dois, empoleirados em um afloramento
estreito. Conseguia divisar as silhuetas escuras na chuva: Jonesy
sentado e Paul deitado com o focinho apoiado nas patas. Eles não
deram pela sua presença. A atenção estava voltada para a pequena
figura branca do outro lado da saliência.
O coração de Justin saltou para a garganta. Meu Deus, era
Helena. Ela estava encolhida contra a parede do penhasco com os
joelhos junto ao peito e os braços em torno de si mesma. A testa
pressionava os joelhos com força, o cabelo solto em uma massa
molhada e emaranhada ao seu redor. Ela usava o que parecia ser
nada mais substancial do que uma camisola.
Estava encharcada. Ele podia ver os arrepios percorrendo a
curva delicada de suas costas e ombros.
Proferiu uma imprecação violenta. Ela devia ter caído. Não
havia outra explicação. Ele se ajoelhou na grama molhada,
deixando o lampião ao seu lado.
— Helena? Meu Deus, Helena. Você está machucada?
Ela não respondeu.
— Helena? Você consegue me ouvir? — Ela não deu nenhum
sinal de que conseguia.
Uma sensação nauseante de mau presságio lhe sobreveio.
Pensou em Neville, caindo da face do penhasco e batendo a
cabeça. A cena havia se repetido em sua mente milhares de vezes
ao longo dos anos. Foi o que aconteceu aqui? Helena escorregou
da borda e bateu a cabeça nas pedras?
Ele jogou o chapéu de lado e tirou o casaco e as luvas.
— Vou descer até você. Fique exatamente onde está.
— Não faça isso.
Justin congelou.
As palavras saíram fracas e ligeiramente abafadas.
— Não se aproxime.
— Eu preciso. Se você se machucou, é a única maneira de tirá-
la daí. — Justin se moveu para passar uma perna para o lado. Ele a
ouviu murmurar algo, mas não conseguia decifrar o que foi. — Não
precisa se preocupar comigo — ele garantiu. — Escalo esses
penhascos desde menino.
Ela ergueu a cabeça e o olhou. O rosto lindo, geralmente tão
composto, tão majestoso, estava pálido e assustado à luz do
lampião.
— Se chegar mais perto, vou me jogar para o precipício.
Os pelos da nuca de Justin se arrepiaram. Ele olhou para ela,
registrando a extensão de seu terror pela primeira vez. Ele achou
que o medo dela tinha a ver com sua posição. Pensou que ela
estivesse machucada, com medo de cair ou...
— Estou falando sério — ela afirmou. — Não irei com você.
Prefiro morrer aqui.
Ele engoliu em seco.
— Sim, eu posso ver isso.
Ela pressionou a testa nos joelhos, apertando ainda mais os
braços ao redor deles. Podia ouvir os dentes dela batendo.
— O que propõe que eu faça, então? — Ele ficou surpreso com
a firmeza de sua voz. — Que a deixe aqui para congelar até a
morte?
— Eu não me importo. Não vou deixar que eles me levem de
volta para Londres.
Eles.
Justin se amaldiçoou por ser um idiota. Ela não estava fugindo
dele. E não estava ameaçando suicídio se ele a tocasse. Estava
com medo deles. De seu tio e do homem brutal que ele enviou para
resgatá-la.
— Minha querida menina, acha que eu deixaria alguém colocar
um dedo em você?
Ela o olhou de novo. A desolação em sua expressão lhe partiu
o coração. Ele soube, então, com uma certeza dolorosa, que ela
não acreditava que ele podia protegê-la. Que ela achou que ele a
entregaria àquele homem sem a sua permissão.
— Você é minha esposa, Helena — disse, com rispidez. —
Você se casou comigo para que eu a mantivesse em segurança, e é
exatamente isso que pretendo fazer.
— O sr. Glyde... eu o vi...
— Ele se foi. Eu o mandei embora.
Ela ofegou.
— Ele vai voltar.
— Não, esta noite, ele não vai. E nem amanhã. A estrada
estará intransitável.
— Ele vai voltar — ela repetiu.
— Ele terá que passar por mim primeiro. — Justin passou a
outra perna pela beira do penhasco. — Vou descer agora.
Helena não respondeu.
Justin manteve um olho nela quando começou a tatear o
caminho ao longo dos afloramentos rochosos da face do penhasco.
Não escalava há anos. E não tinha certeza se já havia escalado na
chuva. Não era muito longe, mas era escorregadio demais.
— Justin? — A voz de Neville soou de algum lugar acima.
Justin começou e quase perdeu o equilíbrio e praguejou com
virulência.
— Maldição, Neville! Eu não disse para você ficar onde estava?
— Você encontrou o Paul?
— Sim. — Justin baixou o pé até a saliência. — Ele e Jonesy
estão aqui. — Os dois cães o olharam balançando as caudas em
saudação. Justin tocou a cabeça de Paul com uma mão carinhosa
antes de se mover com cuidado em direção a Helena.
Seu rosto estava colado aos joelhos novamente. Ela não estava
se movendo.
— Não vai facilitar para mim, sim? — Justin se agachou ao lado
dela. O cabelo molhado a cobria como uma mortalha. Ele ergueu a
mão para afastá-lo do rosto. A pele da esposa estava fria como
gelo. — Tudo bem — disse baixinho. — Eu consigo. Se você me
permitir... — Ele passou um braço em volta da cintura dela e o outro
por debaixo dos joelhos, puxando-a para o peito. O corpo dela
estava rígido e inflexível, mas ela não fez menção de que lutaria.
Deus o ajudasse se ela fizesse. A saliência não era grande o
suficiente. Havia todas as chances de os dois despencarem de lá.
— Vou entregá-la a Neville — disse. — Neville? Incline-se aqui,
sim?
O rosto de Neville apareceu na lateral do penhasco.
— Essa é a srta. Reynolds?
— Ela é a sra. Thornhill agora — Justin afirmou enquanto
Neville estendia os braços. — Tenha cuidado com ela.
Capítulo Nove

Por um longo tempo, Helena não estava ciente de nada,


exceto do som dos dentes batendo.
O cabelo e as roupas estavam molhados, e ela tremia da
cabeça aos pés. Não sabia como havia conseguido acabar no
rebordo. Estava fugindo. A grama e a lama estavam escorregadias.
Tentou controlar os passos, mas estava a escuridão caía rápido. A
chuva batia em seu rosto. Não conseguia ver direito. E estava
apavorada demais para parar.
A beira do penhasco apareceu na sua frente. Como se surgisse
do nada. Ela ofegou e...
Caiu.
A próxima coisa que viu foram os cães. Paul e Jonesy. Enormes
figuras pretas na sua frente, ali no rebordo. Podia sentir o cheiro do
pelo molhado deles e ouvi-los ganir para ela.
O vento batia frio em seu rosto, a face do penhasco estava dura
às suas costas. Achou que havia se ralado ou torcido a perna.
Sentiu uma espécie de ferroada e o que parecia ser respingos de
sangue.
O tempo passou. Uma profunda sensação de frivolidade pesou
sobre ela, esmagando suas esperanças como um cobertor pesado e
sufocante.
Não havia escapatória. Nunca houve. Sempre chegaria a esse
ponto. Ficasse ela em Londres ou se fugisse para a Cornualha,
Paris ou Timbuktu.
Agarrou os joelhos com força junto ao peito. Não tinha
coragem, esse era o problema. Era fraca, inútil; uma completa
covarde. Não era de se admirar que estivesse nessa situação.
Quando chegou a hora, não teve nem força de vontade suficiente
para se jogar lá de cima.
Não sabia por que ameaçou fazer exatamente isso.
Mas então Justin apareceu e sua voz profunda soou de algum
lugar lá na borda.
Minha querida menina, acha que eu deixaria alguém colocar um
dedo em você?
Quase chorou. Não porque estava segura, mas porque ele
falava sério. Ele falou de coração. Ele acreditava que poderia evitar
que a machucassem.
Ele inclinou a cabeça sobre a sua ao carregá-la pela chuva,
cruzando o terreno com suas passadas longas.
Justin subiu um curto lance de escadas. Uma porta se abriu
com um rangido.
— Céus! — o sr. Boothroyd exclamou. — O que aconteceu?
— Um acidente.
— Vou buscar a sra. Standish.
— Não — Justin falou. — Não. Não quero que ninguém a veja
assim.
Helena achava que não era possível que ela pudesse magoar-
se ainda mais. Não hoje, pelo menos. Mas as palavras dele
conseguiram se esgueirar por aquela pequeníssima parte frágil dela,
que ainda nutria um minúsculo fragmento de esperança, e espetá-la
com uma precisão implacável.
Não quero que ninguém a veja assim.
Foi a última coisa de que se lembrou antes que a escuridão a
engolfasse.
Quando recuperou os sentidos, estava deitada debaixo de um
edredom na imensa cama elisabetana, com a cabeça apoiada em
uma pilha de travesseiros. O cabelo ainda estava molhado, mas não
pingava mais. O roupão e camisola haviam sumido. Alguém os
removera. Usava, agora, uma espécie de camisola de linho com um
caimento estranho.
Tocou o decote redondo da roupa. Tinha uma pequena fileira de
botões. Também tinha ombros maiores e o que parecia ser uma
costura reforçada debaixo dos braços.
Bom Deus.
Era a camisa de um cavalheiro.
Ergueu a cabeça, alarmada. As lâmpadas à óleo estavam
acesas, assim como a lareira. No brilho bruxuleante, viu Justin. Ele
estava sentado, ao lado da cama, em uma cadeira com espaldar
alto, observando-a.
Seus olhos se encontraram e se fixaram.
Uma onda de cor inundou o rosto da dama. Ah, mas ela estava
muito além do constrangimento.
— Você...?
— Não havia como evitar. — Não havia calor em sua voz.
— Entendo. — Ela se recostou nos travesseiros. As bochechas
queimaram e ela sentiu um frio no estômago. Decidiu, porém, ser
madura e razoável quanto a isso. Ele a viu sem roupa. Não era o fim
do mundo. O homem era seu marido. Não havia razão para
constrangimentos.
Devia estar molhada, imaginou. E, uma vez que não conseguia
se lembrar de quase nada, presumiu que havia desmaiado ou que
estivesse em algum tipo de choque. Alguém teria que tirá-la
daquelas roupas encharcadas. Se Justin desejasse manter seu
estado terrível escondido dos criados, não teria escolha a não ser
fazer ele mesmo a tarefa.
Embora ele não parecesse muito satisfeito com a experiência.
Muito pelo contrário. Ele parecia... zangado.
O homem se levantou e foi até uma mesa com tampo de
mármore perto da cama. Ela ouviu o tilintar de cristal, seguido pelo
som de líquido sendo derramado.
— Aqui. — Ele lhe estendeu um copo. — Beba isso.
Ela o pegou da mão dele. Seus dedos se roçaram. Foi o toque
mais básico, mas mais que suficiente para mais uma vez provocar
aquele frio na barriga.
— Conhaque — ele disse. — Excelente para choque.
Helena inclinou o copo até os lábios e deu um gole, obediente.
Desceu como fogo por sua garganta. Ela sufocou uma tosse.
— Tudo — Justin a encorajou.
Não discutiu. Levou o copo aos lábios mais uma vez. Enquanto
engolia o restante do líquido dourado potente, um calor igualmente
potente invadiu seu estômago, peito e membros.
Ele a avaliou com o olhar.
— Melhor?
— E-eu acho que sim.
O marido assentiu uma vez e retomou o assento. Ainda estava
com raiva. Era evidente na postura de seus ombros e na rigidez de
sua mandíbula.
Seus olhos se encheram de lágrimas. Foi ela quem o levou a
essa situação. Mentiu para ele. Enganou-o para se casar. E agora
que ele sabia, estava claro que a odiava.
— Justin, eu si...
— De onde vieram todos os hematomas? — ele perguntou.
Seu pedido de desculpas inacabado se desintegrou em seus
lábios.
O coração se contraiu dolorosamente.
Então foi isso que ele viu. Não seu corpo. Não se sua nudez era
agradável. Apenas seus hematomas. Apenas o dano feito a ela. Não
deveria estar surpresa. Nem mesmo desapontada. Era o que a
definia agora. Só queria não sentir tanta vergonha.
— Eles estão por toda parte. Nos seus braços. Em volta do
pescoço. — A voz profunda de Justin estava tensa devido à
tentativa de manter o controle. Como se seu temperamento
estivesse sendo contido por nada mais substancial que um fio meio
puído. — Quem colocou as mãos em volta do seu pescoço, Helena?
Foi o sr. Glyde?
— Não. — Ela devolveu o copo de conhaque vazio à mesa de
cabeceira. — Ele não o faria. Não ali.
— Mas em outro lugar?
Não via razão para negar. Teve a sensação de que haviam
chegado ao fim da estrada, os dois. O momento do ajuste de
contas.
— Em meus braços e pulsos.
— E o pescoço?
Ela levou os dedos à garganta. Tinha uma memória visceral de
como se sentiu quando isso aconteceu. Apesar de todas as
indignidades que havia sofrido até agora, todas as ameaças, abusos
e traições, aquele ato a aterrorizou como nada antes.
— Foi o meu tio, Edward.
— O conde de Castleton.
Então ele sabia quem era o seu tio. Claro que sim. Devia ter
sido uma das primeiras coisas que o sr. Glyde disse a ele.
— Desde setembro passado, sim. Foi quando ele herdou o
título. — Ela fez uma pausa, o coração batia forte. — O que mais ele
lhe disse?
Justin balançou a cabeça.
— Quero ouvir de você.
Ele a avaliava com intensidade inabalável. Helena recebeu
esse mesmo olhar dos médicos que o tio havia contratado. O que a
fez querer gritar de frustração. Querer gritar que não era louca.
Mas perder o controle nunca funcionou. Deveria falar com ele
com calma. Explicar as circunstâncias sem esboçar emoção.
Retribuiu o olhar do marido com o que esperava ser igual
solenidade. Ao fazer isso, uma pequena parte de seu cérebro
registrou a ausência de seu casaco e gravata. Ele vestia apenas
camisa de manga e calças pretas. Era escandalosamente íntimo.
— Até dois anos atrás, meu pai era o conde de Castleton —
disse. — Quando ele morreu, meu irmão, Giles, assumiu o título.
— O irmão que morreu no cerco de Jhansi.
— Sim — ela disse. E em seguida: — Não.
Justin arqueou as sobrancelhas ligeiramente, mas não disse
nada.
Ela não estava ajudando a própria causa, sabia. E sua
aparência também não poderia estar ajudando muito. O cabelo
molhado estava emaranhado e selvagem ao seu redor. Devia estar
parecendo uma verdadeira louca, mesmo que não soasse como
uma.
— O exército britânico acredita que ele está morto. Outro oficial
prestou um testemunho ocular. Foi evidência suficiente para o meu
tio conseguir o título. Mas o exército nunca encontrou o corpo de
Giles. Sem isso, sem prova física, eu não poderia aceitar que meu
irmão tinha morrido. E assim... — Ela respirou fundo para firmar a
voz. — Foi como todo esse pesadelo começou. — Helena tentou
explicar a Justin da forma mais clara e sucinta que pôde. Era uma
façanha impossível. Não podia falar dessas coisas de maneira
desapaixonada. Não sobre a perda do irmão. E, certamente, não
sobre o que veio depois.
— Fiquei arrasada com a notícia da morte de Giles —
continuou. — Por semanas, fiquei em meu quarto. Chorei sem
cessar. Quando o advogado veio a Grosvenor Square com o
testamento de meu irmão, mal consegui me obrigar a assistir à
leitura. Meu tio estava lá. Não prestou atenção em mim. Não no
começo. Mas quando os termos do testamento de Giles foram
revelados... Ele reagiu... bastante mal. — Ela fechou os olhos por
um momento. Os eventos daquele dia se materializaram claros
como cristal em sua mente. As cortinas estiveram meio fechadas no
escritório do irmão. Os lacaios organizaram cadeiras em frente ao
que antes havia sido a mesa dele. A própria Helena estava sentada
em uma delas, trajando um chapéu de luto coberto com véu e
segurando um lenço de renda preta. — A propriedade vinculada ao
título é inalienável — disse. — A residência da família em
Hampshire, a cabana de caça em Wiltshire e a casa da cidade em
Londres foram todas para o meu tio, junto com uma dúzia de outras
propriedades. Mas com o dinheiro... a maior parte, de toda maneira,
o meu irmão poderia fazer o que quisesse.
A compreensão brilhou nos olhos cinzentos de Justin.
— Ele deixou para você.
— Tudo. Livre de quaisquer embaraços. Não prestei atenção às
legalidades. Estava muito angustiada. Foi então que meu tio se
voltou para mim. Ele viu que eu estava chorando por detrás do véu
de luto. Chorando mais do que a ocasião merecia, ou assim ele
disse.
— Você era próxima do seu irmão.
— Ele era meu melhor amigo. Eu o amava muito. Talvez eu
tenha lamentado demais. Em outras circunstâncias, não teria
importância. Mas minha mãe se comportou exatamente assim
depois que Giles nasceu. O choro excessivo e o desânimo. Só
piorou depois que eu nasci. Ela caiu em uma melancolia da qual
nunca se recuperou. Meu pai... ele a internou.
— Em um hospício — Justin declarou, sem fazer rodeios.
— Sim. Um hospício particular em Highgate. — Ela olhou para
as mãos. — Era um lugar horrível. Eles a confinaram em um quarto
com nada além de uma cama de ferro. Ela foi submetida a
tratamentos. Não sei a extensão deles. Eu era só uma criança. Mas
meu pai nos fazia visitá-la. E cada vez que a via, ela estava pior.
Eles a deixaram pior. E eu não podia... — Sua voz falhou.
Justin se inclinou em direção à cama.
— Você não precisa dizer mais nada.
— Preciso. Do contrário, você não vai entender a razão...
— Eu entendo.
— Não tudo.
Sua expressão era sombria.
— Creio que posso preencher as lacunas por mim mesmo.
Ela voltou a olhar para ele.
— Acredita que herdei a melancolia de minha mãe. — Havia
uma nota de acusação em sua voz. — É o que ele deve ter lhe
contado.
— Foi o que ele afirmou — Justin reconheceu.
— Não é verdade. Tenho tristeza em mim, mas não sou
melancólica. Não estou sofrendo de histeria. Apenas sinto as coisas
profundamente. Eu as sinto aqui. — Ela pressionou a mão no peito.
— E quando amo alguém, e a pessoa é tirada de mim, não posso
simplesmente esquecer, como se a pessoa nunca tivesse existido.
— Helena...
— Então, sofri por meu irmão. Mas quando não conseguiram
encontrar o corpo dele, comecei a duvidar. E a ter esperança. E
quando meu tio exigiu que eu lhe entregasse a minha herança, eu
me recusei. Nenhuma ameaça ou violência conseguiram me
persuadir. É o dinheiro do Giles, entende? Se houver uma pequena
chance de ele ainda estar vivo... de que possa voltar um dia...
Não podia prosseguir. Se o fizesse, temia começar a soluçar. O
que só a faria parecer mais desequilibrada do que já estava.
— Como o sr. Glyde se encaixa em tudo isso? — Justin
perguntou. Ela cruzou os braços ao redor de si mesma para evitar
um arrepio.
— Ele trabalha para o meu tio. Foi enviado para me encontrar
na primeira vez que fugi.
Justin olhou para ela. Não disse nada por um longo momento.
— A primeira vez — ele repetiu. — Quantas vezes houve?
— Diversas. Perdi a conta.
— Imagino que não estiveram relacionadas a anúncios
matrimoniais.
Helena não sabia dizer se a pergunta era séria. Sua voz
profunda não tinha inflexão alguma.
— Não. Seu anúncio foi o primeiro a que respondi. Jenny o
encontrou no Times.
Seu olhar se aguçou.
— Jenny?
— Minha dama de companhia. Ela veio morar conosco pouco
antes da morte de meu pai. É uma parente distante. Uma prima em
quarto ou quinto grau. Eu a conheço pela maior parte da minha vida.
Dama de companhia era uma expressão inadequada para
descrever Jenny. Ela tinha sido uma amiga. Confidente. A única
pessoa a ajudá-la quando os acontecimentos com o tio se tornaram
tão sombrios e assustadores.
— Foi Jenny quem postou as cartas que lhe escrevi. Ela fez os
preparativos para a viagem com o sr. Finchley. Não fosse por ela, eu
jamais teria saído de Londres.
— E as outras vezes que você fugiu? — ele perguntou.
Helena estremeceu por dentro. Ele a fez soar como uma
espécie de criminosa desesperada. Uma lunática decidida a
escapar. E talvez ela fosse.
— No começo, eu não estava fugindo. Quando saía de casa,
era para visitar cavalheiros que foram amigos de meu pai. Eu
precisava de um advogado. Tinha certeza de que alguém me
ajudaria. Mas meu tio é o conde agora. Ninguém queria lhe fazer
frente. Não em meu nome, pelo menos. A doença da minha mãe é
muito conhecida.
— Seu tio parece ter se aproveitado desse fato.
— Sim. Ele foi implacável. E quando nenhum cavalheiro
conhecido meu se dispôs a vir a meu auxílio, ele se sentiu no direito
de solicitar que eu fosse tratada. Parte do tratamento foi em um
hospício particular chamado Lowbridge House. Os médicos, eles...
— Ela respirou fundo, trêmula. — Bem. Não faz diferença o que eles
fizeram, exceto que, depois disso, eu não tinha muitas opções. Eu
simplesmente fugi.
— Fugiu para onde? — Justin perguntou. — Exatamente para
onde você foi?
— Por aí — disse. — Apenas... por aí.
Ele franziu a testa, parecendo contemplar alguma faceta do
assunto com atenção maior do que de costume.
Helena afundou ainda mais nos travesseiros. O efeito dos
eventos do dia a alcançavam. Os membros estavam pesados e os
olhos ameaçavam se fechar a qualquer momento. Tinha sido
apenas nesta manhã que ela e Justin se casaram? Que ele a beijou
de forma tão apaixonada em seu quarto no Stanhope Hotel? E,
agora, aqui estava ela contando a ele sobre a mãe, o tio e o sr.
Glyde. Tudo depois de ter caído da beira de um penhasco e, muito
possivelmente, desmaiado com o choque.
— Então — Justin disse, por fim. — Casar-se comigo foi um
último recurso.
Ela virou a cabeça para olhar para ele.
— Era minha última esperança, sim.
— E quando chegou à King’s Arms, quando me viu, não
importava que eu estivesse queimado. Nem que era bastardo. Você
precisava de um marido para lhe dar a proteção do nome dele.
Qualquer homem teria servido.
Ele estava inclinado para a frente na cadeira, com os cotovelos
apoiados nos joelhos. O cabelo estava desgrenhado, e a mandíbula,
com a sombra da barba por fazer. Helena nunca o tinha visto tão
soturno. Tão vulnerável.
— Mas não era um homem qualquer que estava na King’s Arms
— ela falou baixinho. — Era você, Justin. Era você.
Capítulo Dez

Justin abaixou a cabeça, contraiu a garganta e engoliu de


forma audível. As palavras de Helena foram tão ternas como uma
carícia. Por um breve momento, elas conseguiram acalmar a raiva
que fervilhava em suas veias desde que viu pela primeira vez os
hematomas que cobriam seu pescoço e braços nus.
Muitas das marcas pretas e arroxeadas tinham a forma dos
dedos de um homem.
Ele teve que fazer um grande esforço para não ir atrás do sr.
Glyde. Para não puxar o homem da carruagem e espancá-lo até ele
virar uma massa disforme.
Você já machucou uma mulher?, ela havia lhe perguntado na
praia.
Fazia pouco mais de três dias. Suspeitou de que alguém a
tratara com severidade, mas nunca poderia ter imaginado a
extensão disso.
Não era de se admirar ela estar desesperada. Uma dama de
sua estirpe teria que concordar em se casar com um homem como
ele.
— Sinto muito, Justin — ela falou. — Sei que deveria ter
contado.
Ele só conseguiu assentir. A boca estava seca e havia um nó
em sua garganta do tamanho aproximado de um pedregulho. Ele
estava sentindo...
Maldição.
Ele estava sentindo. Não sabia o quê. Raiva, mágoa e a
amarga dor do desejo estavam todos emaranhados em seu peito.
Não sabia dizer onde um terminava e o outro começava. Mas,
também, não era um homem dado a examinar as próprias emoções.
E não tinha vontade de começar a fazer isso agora.
Ele se levantou da cadeira.
— Você deveria dormir. Podemos continuar essa discussão
amanhã.
Os olhos de Helena brilharam com algo como alarme.
— Aonde você vai?
— Deixá-la descansar.
Ela se moveu para se apoiar nos travesseiros.
— Justin...
Ele parou onde estava.
— O que foi?
— Por favor, não vá. Não me deixe aqui sozinha.
Ele examinou o rosto dela. A sobrancelha estava franzida; as
bochechas, pálidas como alabastro. Ela estava com medo. Não, ele
percebeu. Ela não estava com medo. Inferno. Ela estava apavorada.
— Helena — disse —, ele não vai voltar.
— Não há como você saber.
— Sei, sim. A estrada do penhasco está alagada. E mesmo que
ele conseguisse passar, Paul e Jonesy o despedaçariam antes que
ele chegasse à entrada da abadia.
Ela ficou em silêncio por um momento.
— Você disse que os cães eram gentis.
— Ora, eu disse, sim. — Ele pigarreou. — E eles podem ser.
Hum... quando a ocasião exigir.
— Hum. — Ela não parecia totalmente convencida.
Justin passou os dedos pelos cabelos, que já estavam um tanto
quanto eriçados. Ele não teve chance de tomar banho depois de
carregar Helena para dentro de casa. Toda sua atenção estava
voltada para ela. Somente quando ela estava quente, seca e enfiada
com segurança na cama, ele tirou um tempo para tirar as próprias
roupas molhadas.
— A questão é — ele continuou —, os cães são mais do que
capazes de...
— Os cães não são você.
Não era o elogio mais lisonjeiro que uma dama já havia feito a
um homem, mas, nesse momento, e com essa dama em particular,
poderia muito bem ter soado como um soneto.
A boca se repuxou por um breve momento.
— Estou cheirando como um. Depois de resgatar você dos
penhascos, fui obrigado a içar Paul e Jonesy.
— Não me importo.
— Não? — Seu sorriso desapareceu mais rápido do que
apareceu.
Ele soube o que fazer apenas uma fração de segundo antes de
se mexer.
— Chegue para lá — disse.
— O quê? — Helena tocou a gola da camisola improvisada. Foi
um gesto modesto, que se tornou um tanto cômico pelo fato de ela
já estar usando a camisa dele.
— Helena, hoje eu viajei de e para Abbot’s Holcombe debaixo
de uma tempestade. Casei-me. Fui visitado pelo magistrado.
Resgatei dois cachorros e minha esposa de um rebordo do
penhasco. Se você desejar que eu fique, vai ter que abrir espaço
para mim.
Ela o olhou por vários segundos.
Vários segundos durante os quais o coração dele balançou à
beira de um abismo.
— Muito bem — ela disse, enfim. Helena se afastou
ligeiramente. — Embora eu não veja por que é necessário que eu
chegue para lá. Tem espaço de sobra para você.
O coração de Justin voltou a bater de forma um tanto errática.
Mais errática ainda enquanto a observava erguer o cobertor para
ele.
— Sim, bem... era a cama do abade.
— Era? Eu não sabia que os abades elisabetanos eram tão
largos.
— Esse era. Isso, ou muito grandioso.
Ele parou um momento para apagar as lâmpadas a óleo. O
fogo ainda crepitava na lareira, fornecendo bastante luz para ele
enxergar o caminho de volta para a cama. Já havia tirado as botas
quando trocou de roupa. Não havia nada a fazer agora a não ser se
acomodar ao lado dela.
O colchão afundou sob seu peso quando ele se deitou.
Estavam tão perto que podia sentir o calor que emanava do corpo
dela.
Diabos. Ela não estava vestindo absolutamente nada por baixo
daquela camisa de linho dele.
Justin estava preocupado com a saúde da esposa ao lhe tirar
as roupas molhadas. E depois a mente se fixou nas contusões,
fervendo de raiva ao pensar em quem será que a machucara. Mas
não era cego, pelo amor de Deus. E embora vivesse em uma
abadia, com certeza não era um monge.
Ela ficou de lado para encará-lo. A leve fragrância de jasmim
fez cócegas em seu nariz.
— Melhor? — Sua voz tinha se aprofundado em um tom rouco.
Ele mal reconheceu o som.
— Sim — ela sussurrou de volta. Os longos cílios já tremulavam
fechados. — Tenho muito mais para lhe contar, Justin.
— Eu sei.
— Muito mais para explicar.
— Descanse agora — ele pediu. — Podemos conversar
amanhã.
Foi um dia angustiante. Ela estava exausta e, muito
provavelmente, ainda em choque. Tinha visto os sintomas antes.
Sendo franco, estava surpreso que ela conseguisse ficar acordada e
coerente por tanto tempo. Ele se deitaria ao lado dela por um breve
tempo e então...
— Você vai ficar comigo? — Helena perguntou.
Seu peito se apertou. Ficar seria péssimo. A situação entre eles
estava longe de ser resolvida. Além disso, não compartilhava a
cama com outra pessoa desde seus dias no orfanato. Não para
dormir, de qualquer maneira. Fazer isso serviria apenas para
confundir ainda mais a questão e...
— Acho que posso suportar a provação — ele disse.
Ela murmurou algo enquanto adormecia. Parecia outro pedido
de desculpas. Ou talvez algumas palavras de agradecimento. Não
sabia o que era pior. Não queria a culpa dela nem precisava de sua
gratidão. O que ele queria... o que precisava... era algo
completamente diferente.

◆◆◆
Justin acordou bem antes da aurora. O fogo havia se apagado
e o quarto estava frio. Helena se aconchegou nele para se aquecer.
A bochecha estava sobre seu peito; o braço, envolto na barriga de
Justin. O braço dele, de alguma forma, conseguiu se insinuar ao
redor dela. A mão estava apoiada, de forma bastante possessiva, na
curva de seu quadril.
Deveria ter parecido uma impertinência. Ela era uma dama.
Sobrinha de um conde. Filha e irmã de condes também. Quando
limpou o arranhão em seu joelho na noite passada, ficou muito
surpreso pelo sangue não ser azul.
Quando menino, a coisa mais próxima de um título com que
havia se deparado tinha sido na pessoa de sir Oswald. Um mero
baronete. A primeira vez que o viu cavalgando pelos portões do
orfanato em um magnífico Caçador negro, Justin ficou admirado. Foi
uma emoção bem passageira.
— Saiam do caminho, seus órfãos pedintes! — sir Oswald
gritou.
Justin estava na entrada com Finchley, Archer e Neville. Sir
Oswald brandiu o chicote para dispersá-los. A borla de couro havia
estalado na bochecha de Archer. Justin teve que agarrar o amigo
pelo braço e puxá-lo para fora do caminho do cavalo.
Finchley, entretanto, não se moveu um único centímetro. Ele
era o menor e mais magro deles, mas era, como agora, possuidor
de uma firmeza anormal dos nervos. Através dos óculos de segunda
mão que usava empoleirados no nariz, o menino semicerrou os
olhos para a figura longínqua de sir Oswald.
— Quem é esse?
— O rei — Neville respondeu.
— Não é o rei — Archer retrucou. — O rei é um homem velho.
Justin havia observado o cavalheiro alto e vestido de forma
impecável apear na entrada do prédio de pedra de três andares
onde os órfãos de Abbot’s Holcombe ficavam alojados.
— Talvez seja o pai de alguém — ele havia comentado. — Que
veio para levá-lo para casa.
Parecia ter sido há uma vida. Foi aquele breve encontro matinal
que pôs em movimento os eventos das duas décadas seguintes.
Tudo porque eles ficaram fascinados com a aparência de um
cavalheiro elegante. Porque ficaram deslumbrados com a riqueza e
a posição social.
Mas se Justin estava deslumbrado com Helena, não tinha nada
a ver com sua riqueza e linhagem aristocrática. Como poderia? Ele
não sabia sobre nada disso até o aparecimento de Hargreaves e
Glyde. Até então, sabia apenas que ela era uma dama. Uma mulher
de fina categoria.
Ela era boa demais para ele em qualquer circunstância. Estava
visível para quem quisesse ver. Mas tocá-la não parecia uma
impertinência. Parecia natural e certo. Como se ela tivesse sido feita
especialmente para se deitar em seus braços.
Inclinou a cabeça para o cabelo dela e respirou fundo.
Ela não se mexeu. Nem mesmo quando ele a soltou e se retirou
da cama bem devagar. Helena havia dito que não dormia bem
desde que partiu de Londres. E, considerando o que ela passou, ele
não tinha dúvidas. Depois dos eventos de ontem, ele também
estava se sentindo um pouco cansado.
Mas não havia tempo a perder.
Avivou o fogo da lareira para ela e, depois de recolher algumas
peças de roupa no quarto de vestir, seguiu para o banho. Em quinze
minutos, estava limpo, barbeado e vestido. Jogou uma muda de
roupa em uma velha mala de couro e desceu as escadas.
Boothroyd estava na cozinha, como sempre a essa hora da
manhã. Ele se sentou à mesa de madeira, com o guardanapo
enfiado na camisa enquanto espalhava geleia em um pedaço de
torrada. Neville estava sentado em frente a ele, terminando um prato
de ovos e bacon. Paul e Jonesy se moviam a seus pés.
Ao ver Justin, Boothroyd parou. Seus olhos focaram na mala.
— Você vai, então.
— Creio que devo — Justin respondeu.
Boothroyd voltou a colocar a torrada no prato. Ele puxou o
guardanapo da gola e o jogou sobre a mesa.
— Por quanto tempo?
— Não devo demorar mais de dois dias.
Neville afastou os olhos do desjejum.
— Ainda está chovendo, Justin.
— Está, sim. — Justin atravessou o piso de pedras para se
juntar a eles na mesa. Serviu-se de uma xícara de chá e bebeu em
pé. — Não se preocupe. Não vou derreter.
— Acredita ser sábio empreender essa viagem, senhor? —
Boothroyd perguntou.
— Mais sábio agora do que quando a estrada secar. — Justin
respondeu. — Vou alugar uma carruagem para me levar a
Barnstaple. Posso pegar um trem rápido de lá para Londres.
— E como planeja chegar a King’s Abbot?
Justin deu de ombros.
— Da mesma forma que sempre faço quando a estrada do
penhasco fica intransitável.
Boothroyd franziu os lábios.
— Perdoe-me por dizer isso, senhor, mas um dia quebrará o
pescoço.
— Justin não vai cair — Neville afirmou. Em seguida, franziu o
cenho. — Vai, Justin?
— Decerto que não. — Justin lançou um olhar de advertência
para Boothroyd. Não havia razão para alarmar Neville. A verdade
era que, embora a estrada do penhasco ficasse intransitável para
cavalos ou carruagem, alguém que conhecia o terreno, alguém que
estivesse em forma e fosse extremamente cuidadoso, poderia
seguir a pé. Era um pouco arriscado. Mas eram menos de cinco
quilômetros. E não era como se estivesse escalando a face do
penhasco.
— Estará coberto de lama quando chegar a King’s Abbot —
Boothroyd afirmou.
Justin terminou o chá.
— Muito provavelmente. — Ele se virou para Neville e colocou
a mão no ombro do amigo. — Tenho uma tarefa especial para você,
Neville.
Neville se empertigou na cadeira.
— O que é?
— Enquanto eu estiver fora, você deverá cuidar da sra.
Thornhill.
Boothroyd ergueu as sobrancelhas.
Justin o ignorou.
— Quero que você cuide dela. Você, Paul e Jonesy. — Ele
encarou Neville. — Entendeu?
Neville deu um aceno solene.
— Sim, Justin.
— Bom homem. — Ele olhou para Boothroyd. — Ninguém virá.
Não há ninguém em King’s Abbot que ouse se arriscar na estrada
do penhasco. No entanto... esteja vigilante.
— Como sempre, senhor. — Boothroyd se levantou. Quando
Justin saiu da cozinha, ele o seguiu. — O que devo dizer à sra.
Thornhill?
Justin franziu a testa. Ocorreu-lhe que deveria ter deixado um
bilhete para ela. Um descuido de sua parte, mas que seria
facilmente contornado.
Subiu as escadas até a biblioteca, de dois em dois degraus.
Havia dinheiro na mesa de Boothroyd de que ele precisaria para sua
jornada. Também havia papel e caneta. Enquanto o homem mais
velho contava as moedas, Justin mergulhou uma pena afiada no
tinteiro e rabiscou uma mensagem curta para Helena.

Fui ver o Finchley. Voltarei em dois dias.


Seu servo sempre fiel,
Thornhill

Ele fez uma pausa, com a pena equilibrada em sua mão. Após
um momento de reflexão, adicionou um pós-escrito.

P.S. Confie em mim.


Capítulo Onze

Londres, Inglaterra,
Setembro de 1859

Finchley dividia suas instalações na Fleet Street com outro


advogado, um homem chamado sr. Keane. Ao chegar, Justin foi
conduzido ao escritório de Keane por seu secretário, um sujeito
apressado, de bigode torto, que estava fazendo malabarismos com
uma pilha de livros jurídicos.
— Devo trazer chá e biscoitos, senhor? — o funcionário
perguntou.
O sr. Keane se levantou de detrás da mesa muito bagunçada,
fazendo várias folhas caírem de suas respectivas pilhas direto para
o chão. Depois de lançar um olhar questionador para Justin, ele
acenou para o funcionário sair.
— Sr. Thornhill, peço desculpas pela confusão. Estivemos muito
atarefados esta semana. — Ele apontou para uma cadeira. —
Deseja se sentar?
Justin permaneceu de pé. As roupas estavam sujas da viagem.
Tinha ido direto da estação.
— Onde está o Finchley?
— Ah. — O rosto do sr. Keane se desfez, e ele voltou a se
sentar na cadeira. — Muito angustiante, senhor. E muito diferente do
comportamento habitual dele. Fui obrigado a... — Ele parou. — Mas
não vou reclamar. Houve muitas ocasiões em que ele tomou para si
a responsabilidade de gerenciar meus casos quando fui requisitado.
Só no último Natal, quando minha mãe estava doente...
— Requisitado? — Justin o interrompeu. — Para onde?
— É a irmã dele, acredito. Alguma dificuldade em casa.
Chamaram-no com bastante urgência.
Justin semicerrou os olhos. Finchley não tinha irmã. Não tinha
família nenhuma. Nenhum deles tinha.
— Ela chegou aqui na terça de manhã em um estado terrível —
Keane continuou. — Ele a levou embora de imediato. E então, um
acontecimento bastante extraordinário, devo dizer, uma mensagem
chegou, informando-me de que ele não voltaria até que o assunto
em casa fosse resolvido. Naturalmente, eu esperava que ele
voltasse rápido. O homem nunca se ausenta por mais do que uma
tarde. Só posso imaginar que a crise seja de natureza grave e séria.
Uma doença ou, possivelmente, morte.
Justin ouviu Keane tagarelar, enquanto uma sensação de
espanto o deixou temporariamente aturdido. Meu Deus, era possível
que o amigo obcecado pelo trabalho tivesse, enfim, arranjado uma
amante?
— Ele disse para onde ia? — perguntou.
— Casa, imagino. Para estar com a família. — Keane abriu uma
gaveta de sua mesa e remexeu no conteúdo. — Ele me deu o
endereço da irmã. Disse que era confidencial. Que eu não deveria
compartilhar com ninguém. Exceto o senhor, é claro. Ou o sr.
Boothroyd, se ele... Ah. Aqui está.
Ele retirou um pedaço de papel dobrado da gaveta e o
estendeu para Justin. Havia um endereço rabiscado em tinta preta.
Justin partiu da Fleet Street momentos depois em um cabriolé
com destino ao que acabou sendo uma casa pequena, mas
bastante elegante, na Half Moon Street. Quando chegou, saltou os
degraus e bateu a aldrava com muita força. Longos segundos se
passaram antes que a porta fosse aberta, não por um criado, mas
pelo próprio Finchley.
— Thornhill! — Seus olhos brilharam de alívio por detrás dos
óculos de armação prateada. — Sabia que você viria.
Ele vestia uma sobrecasaca e calça combinando, o plastrão
amarrado com cuidado e o cabelo castanho-escuro, geralmente
desgrenhado, forçado a obedecer por uma dose generosa de óleo
de Macassar. O homem parecia limpo e imaculado, o que não era
comum para ele.
— O que está acontecendo? — Justin perguntou.
Finchley esperou que ele entrasse e trancou a porta.
— Venha para a sala de estar. Podemos conversar lá.
Justin largou a mala no corredor e seguiu Finchley escada
acima. Havia uma sala aconchegante ali, mobiliada com um sofá
macio e cadeiras de chita, um escabelo adornado com borlas e uma
série mesas de madeira de lei nas quais várias coleções de flores
secas e pássaros empalhados estavam expostas sob cúpulas de
vidro.
Carvão ardia na lareira. Em uma prateleira esculpida acima
dela, um relógio com detalhes dourados batia suavemente a hora.
O olhar de Justin vagou pela sala.
— Muito acolhedor — disse, em tom seco.
— Também achei. — Finchley se sentou em uma cadeira. —
Acabei de assinar um contrato de aluguel de três meses.
Justin se sentou em frente a ele.
— Para sua irmã, presumo. — Um rubor coloriu o pescoço de
Finchley. Ele pigarreou. — Há tempo suficiente para entrarmos
nesse assunto. Mas, primeiro, me diga... você se casou com ela?
— Com a srta. Reynolds? Também conhecida como lady
Helena? — Justin esfregou a lateral do rosto. — Caramba, Tom. O
que você estava pensando para perpetrar tal ardil?
— Não era um ardil. Foi uma missão de misericórdia.
— À minha custa.
— Não vejo como consegue ver o caso nesses termos. Lady
Helena é extraordinariamente bela, de índole agradável e sua
inteligência parece estar bem acima da média. Acrescente a isso
sua riqueza e educação, e terá o que equivale a uma candidata
ideal para esposa. Qualquer homem se consideraria sortudo por tê-
la.
Uma súbita explosão de irritação deixou a voz de Justin fria.
— Com tantas qualidades superiores, estou surpreso por você
não ter se casado com ela.
Finchley tirou os óculos para massagear a ponte do nariz. Havia
um leve inchaço no dorso, evidência de quando foi quebrado
quando ainda estavam no orfanato.
— Sim, bem, dadas as circunstâncias, não tenho certeza de
que eu teria sido adequado para a dama.
— Porque ela é considerada louca.
— Não. — Finchley voltou a colocar os óculos. — Porque lady
Helena não queria um advogado. O que ela precisava era de um
herói.
Justin recuou com um estremecimento.
— Absurdo. Estou longe de ser um herói e você sabe disso.
— É o que você diz. Mas em tempos de dificuldade, quando
você já foi nada menos do que heroico? E não se atreva a dizer
Índia. Você está sempre se arrastando em brasas pelo que
aconteceu em Cawnpore. Para ser sincero, a coisa toda se tornou
um pouco autocomplacente.
Justin enrijeceu.
— É mesmo?
— É, sim. Mas não me importo com isso agora. Tudo o que me
importa, tudo que realmente quero saber, é se você se casou com
ela ou não.
— Claro que sim.
Finchley exalou.
— Graças a Deus. Onde foi feito e como?
— Ontem de manhã, no cartório de registro em Abbot’s
Holcombe. Voltamos para a abadia no início da noite. Hargreaves
chegou uma hora depois.
— Sozinho?
— Não. Estava acompanhado de um homem grande que
ameaçou destruir minha casa e levar minha noiva à força.
— Esse deve ser o sr. Glyde. — Finchley franziu a testa. —
Suponho que não permitiu que ele a levasse.
Justin lançou um olhar enviesado ao amigo.
Finchley curvou os lábios.
— Certo. Por curiosidade, como conseguiu afastá-lo?
— Estava no meio de uma tempestade. A estrada do penhasco
estava prestes a ficar intransitável. Além disso... — Justin puxou a
gravata. — Posso ter insinuado que já havíamos consumado o
casamento.
Finchley ergueu as sobrancelhas.
— E consumou?
— É o que afirmarei.
— A resposta é não, então.
— Faz alguma diferença? Glyde e Hargreaves mencionaram
algo sobre Helena não estar em condições de consentir. — Justin
fez uma pausa. — Meu Deus, Tom. — Ele passou a mão pelo
cabelo em uma explosão de frustração. — Esse casamento é legal?
O rosto de Finchley ficou sério.
— É, mesmo sem consumação. Mas não há nada que os
impeça de argumentar que não é. E de vencerem essa discussão
também.
— Ela está morrendo de medo.
— E deveria estar mesmo. Aquele tio dela... ele não terá
escrúpulos para tentar recuperá-la.
— Tudo por causa do dinheiro que o irmão deixou para ela.
— Esse é o ponto crucial da questão — Finchley apontou. —
Não é uma soma pequena, Justin.
— Por que é que ele precisa dela? Ele não herdou toda a
propriedade? Helena mencionou propriedades, cabanas de caça e
coisas do tipo.
— A renda da propriedade não é suficiente. Não para um
homem como Castleton. Está endividado, ao que parece. Ele pode
conseguir viver com o que tem se for morar no campo, mas é um
homem que gosta de se destacar na cidade. Bailes luxuosos, bom
estoque de vinho, um iate no Tâmisa. Seu estilo de vida é luxuoso
sob todos os aspectos. E as despesas... bem. Basta dizer que o
conde tem todos os motivos para querer a sobrinha, e o dinheiro
dela, de volta em suas garras. E dada sua posição na sociedade, há
pouco que alguém possa fazer para impedi-lo.
Justin fitou a lareira por um longo momento. Estava perto o
suficiente para sentir um pouco do calor das brasas. Mas não sentiu.
A perspectiva de perder Helena lhe gelou o coração.
— É um mistério para mim porque você se envolveu neste
caso.
— Eu não diria que me envolvi. Não procurei lady Helena. Ela
simplesmente respondeu ao seu anúncio. — Finchley hesitou. — Ou
melhor, foi a dama de companhia dela que respondeu.
— Mas você a conheceu, não é? Deve ter conhecido. Ela fala
muito bem de você.
— Eu a conheci, naturalmente. Não pense que eu mandaria
uma dama até Devon para se casar com você sem que eu a visse.
Justin permaneceu em silêncio.
— Bem, eu não o faria — Finchley afirmou. — Lady Helena veio
ao meu escritório alguns dias depois. Ela não era bem o que você
tinha em mente em termos de esposa, mas era excepcionalmente
boa. E filha de um conde, ainda por cima. Você não pode conseguir
muito melhor do que isso. Exceto pela filha de um duque ou de um
marquês, suponho. Mas não há muitas delas que consentiriam
casar-se com um homem como você, infelizmente.
— Helena estava desesperada.
— Verdade. Ela também é gentil, inteligente e...
— Sim, sim, já ouvi seus elogios — Justin falou, com uma
carranca.
— O que quero dizer é que você nunca teria se contentado com
uma mulher mediana. Alguma parte sua sempre acreditou que tinha
direito a algo mais. É o que o motivou por toda a nossa vida. — Ele
parou por um longo momento. — Além disso, acho que lhe faria um
bem enorme resgatar, com sucesso, uma mulher em perigo.
Justin olhou para ele. Não sabia se devia ficar indignado ou
achar graça.
— Se reabilitar minha autoimagem era seu objetivo, você
poderia ter escolhido uma mulher que eu realmente seja capaz de
salvar.
Finchley deu de ombros.
— Há alguns pequenos percalços, é claro, mas nada que não
possa ser resolvido se empregarmos um pouco de engenhosidade.
— Pequenos percalços? É assim que se refere à questão?
— Sim, bem... — Uma expressão fugaz de constrangimento
atravessou o rosto de Finchley. — O fato é que... não compreendi
totalmente a extensão do predicado até depois que lady Helena
partiu para Devon.
— O quê?
— Eu estava trabalhando em um caso. Bastante fascinante.
Uma disputa sobre um direito de passagem se transformou em uma
nova teoria do direito. Quando Lady Helena chegou para se
encontrar comigo, eu estava terminando meu relatório. Posso ter
estado um pouco... distraído.
— Muito distraído para perguntar por que a filha de um conde
estava respondendo a um anúncio matrimonial?
— Dê-me algum crédito — Finchley resmungou. — Eu
perguntei. E as respostas de lady Helena, e de sua dama de
companhia, pareceram mais do que suficientes.
— O que elas lhe disseram?
— Que o tio de lady Helena era violento. Que ele tinha sido
bruto com ela. Tentou forçá-la a assinar algum documento. Entendi
que havia uma quantia substancial de dinheiro envolvida.
Justin tensionou a mandíbula.
— O tio dela e aquele cão de ataque dele foram mais do que
brutos com ela, Tom. Eles a aterrorizaram.
— Sim. Eu sei disso agora. — De repente, Finchley demonstrou
cansaço. — Mas, infelizmente, esses detalhes específicos não me
foram esclarecidos até... bem ... dois dias atrás.
Justin olhou para o amigo, mas era Helena que ocupava seus
pensamentos. A mente foi inundada com imagens de seus braços e
pescoço machucados. Do rosto dela, pálido de medo, enquanto o
olhava do rebordo do penhasco durante a tempestade.
Prefiro morrer aqui, ela dissera.
Um peso de chumbo se instalou na boca do seu estômago. Ele
sabia o que era sentir medo. Quando foi pendurado na masmorra de
Nana Sahib. Quando o peito, pescoço e mandíbula foram
queimados por um atiçador em brasas. Ele sentiu medo. Sentiu-se
impotente. No final, até orou pela morte. Mas era um homem. E,
para o inferno com a autoindulgência, ele merecia. Mas Helena...
Ela não merecia. Não havia feito mal a ninguém. Não cometeu
nenhum crime.
— Existe alguma chance de o irmão dela estar vivo? — ele
perguntou.
— Você saberia melhor do que eu —Finchley respondeu. — O
quanto as coisas foram caóticas durante a rebelião? Um homem
ainda vivo poderia ser dado como morto?
— Provavelmente, mas é menos provável que tenha acontecido
com um oficial. Ainda menos para um ostentando um título. A
pessoa que relatou a morte do irmão dela precisaria tê-lo
reconhecido.
— E o corpo dele?
Justin balançou a cabeça. Ele realmente não sabia. Naquela
época, naquele lugar, tudo era possível.
— Pode ter sido queimado em uma pira com os outros
mortos. Pode ter sido desmembrado ou deixado ao sol para
apodrecer. Provavelmente, não sobrou o bastante dele para
devolver à Inglaterra.
— Então devemos prosseguir com a suposição de que Giles
Reynolds, o sexto conde de Castleton, não vai voltar para salvar o
dia. O que significa...
— O que significa — Justin falou com severidade —, que devo
me preparar para travar uma batalha legal invencível com um
membro da nobreza.
— Não necessariamente. — Finchley parecia pensativo. — Há
uma chance, bastante fugaz, de que essa batalha não precise ser
travada nos tribunais.
Justin fitou Finchley. Trocaram um olhar significativo. Um
reconhecimento tácito de todas as situações insustentáveis no
passado deles que foram resolvidas por meio do intelecto de
Finchley e da ousadia de Justin.
— O que você aconselha? — ele perguntou.
Passaram os próximos trinta minutos conversando. Ou melhor,
Finchley falou. Explicando os porquês e as legalidades, como
Helena os teria chamado. Estava tão concentrado nas
complexidades do plano que não percebeu o passar do tempo até
que o pequeno relógio sobre a lareira bateu a hora com bastante
delicadeza. Ao som disso, o advogado olhou para cima com um
sobressalto.
— Maldição, que horas são?
— Tem outro lugar para estar?
— Não, mas eu deveria ter mandado chamá-la logo depois de
você chegar. — Finchley fez uma careta. — Já passou uma hora
inteira. Ela vai pensar que me esqueci. Ou pior, que decidi deixá-la
de fora.
— De quem é que você está falando?
— Da srta. Holloway. Não a mencionei? — Finchley se
levantou. — Maldição. Você sabe como fico esquecido quando
começo a discutir a lei.
Naquele exato instante, a porta da sala se abriu. Uma mulher
entrou. Ela era alta e magra, usava um vestido preto elegante com
gola de renda. O cabelo estava preso em tranças intrincadas na
parte de trás da cabeça.
A basta cabeleira castanho-avermelhada.
Justin lançou a Finchley um olhar penetrante conforme os dois
se levantavam. O amigo sempre teve uma queda por mulheres de
cabelos vermelho. Até agora, ele nunca se deixou levar por tal
prazer. Pelo que Justin sabia, a única amante que Finchley já teve
foi seu trabalho.
— Perdoe-me — ela disse a Finchley. — Mas faz já algum
tempo que estou esperando.
Justin olhou para a mulher com leve aborrecimento. Tinha
assuntos urgentes para discutir com Finchley, e nenhuma intenção
de discuti-los em grupo. Muito menos na presença da amante do
homem.
Mas essa mulher não parecia amante de ninguém. Muito pelo
contrário. Suas palavras eram rápidas e profissionais, sua voz tão
ácida quanto uma maçã fresca.
Finchley cruzou a sala para encontrá-la.
— Minhas desculpas, senhorita. Perdi a noção do tempo. — Ele
a conduziu até a sala de estar. — Permita-me apresentar meu
amigo, o sr. Justin Thornhill.
A mulher fixou em Justin um olhar avaliador. Ela pareceu
observar seu rosto, seu corpo e suas queimaduras com uma única
olhada abrangente e bastante fria.
A compreensão foi se assentando bem devagar no cérebro de
Justin.
— Ah — ele disse. — A senhorita deve ser a Jenny.
Capítulo Doze

North Devon, Inglaterra


Setembro de 1859

Helena passou os próximos dois dias dentro da abadia com o


sr. Boothroyd, Neville, a governanta e a cozinheira. Tinha pouco com
o que se ocupar.
Todas as manhãs, a sra. Standish levava o desjejum em uma
bandeja até o seu quarto. Ela acendia o fogo e abria as cortinas.
— Este é o trabalho de uma criada — resmungava.
Passava as manhãs andando de um lado a outro da casa. Ia de
janela em janela, olhando para a estrada, os estábulos e o mar.
Passou tanto tempo caminhando pelos andares de cima que sentiu
como se tivesse sido transformada em um dos fantasmas da abadia.
Um espectro incolor, vagando em silêncio pelos corredores.
Não estava sozinha em suas andanças. Na verdade, desde a
partida de Justin, mal passou cinco minutos sozinha quando estava
fora de seu quarto. Neville e os cães seguiam-na aonde quer que
ela fosse.
No segundo dia, sua impaciência com a situação enfim levou a
melhor. Ela parou na longa galeria e se virou para Neville.
— Não precisa ficar comigo — disse. — Estou mais do que
contente em ficar sozinha.
Neville enrubesceu de vergonha.
— Prometi ao Justin.
— Que ficaria de olho em mim?
Ele assentiu.
— Eu, Paul e Jonesy.
Helena lançou um olhar duvidoso para os cachorros pretos
gigantescos. Ambos caminhavam devagar atrás de Neville, com a
língua pendurada para fora da boca. Não se deixou enganar pela
apatia da dupla. Tinha visto a explosão de energia deles em sua
primeira visita à abadia. E sabia, em primeira mão, como podiam ser
destemidos. O mais jovem, Paul, não hesitou em pular atrás dela
quando ela caiu da encosta do penhasco. O mais velho o seguiu, os
dois guardando-a com a mesma atenção que dariam a um osso.
— Se é esse o caso — disse —, é melhor o senhor andar ao
meu lado.
Neville pareceu vagamente surpreso com a sugestão.
— Senhora?
— Não há necessidade de o senhor e os cães se arrastarem
atrás de mim como um séquito real. Prefiro ver e falar com você.
Venha. Conte-me sobre os animais da abadia.
— Os cachorros?
— E os cavalos. O senhor cuida deles, não é?
A pergunta destinada a soltar a língua de Neville teve um
sucesso admirável. De forma gradual, ele começou a baixar a
guarda e, incitado por uma ou outra pergunta, contou a ela sobre
quando Jonesy apareceu na abadia, ainda um vira-lata faminto, e a
chegada de Paul um ano depois, um filhotinho exuberante que
Justin encontrou vagando pelos becos dos fundos da King’s Abbot.
Contou a ela sobre o cavalo de Justin, Hiran. Sobre o sr.
Boothroyd, a sra. Whitlock e, com certa relutância, sobre si mesmo e
como veio morar na abadia quando Justin a adquiriu quase três
anos antes.
A conversa foi lenta e hesitante. Era necessário. Qualquer dano
que Neville tenha sofrido durante a queda dos penhascos em
Abbot’s Holcombe na infância fez a formulação de frases complexas
ser uma provação. Era como se suas palavras estivessem
submersas em uma névoa profunda. Era visível a luta que ele
travava para encontrar cada uma e pronunciá-la. Um processo
meticuloso que parecia envergonhá-lo e frustrá-lo.
Mas Helena nunca duvidou de sua inteligência. Na verdade,
quanto mais falavam, mais começava a se arrepender da primeira
impressão que teve dele. Ele era lento e talvez um pouco infantil em
alguns aspectos, mas não era idiota. O rapaz compreendia tudo o
que ela dizia.
Também seguiu, com muita seriedade, a diretriz de Justin de
cuidar dela.
Embora não soubesse o motivo para Justin ter dado tal ordem.
Ele estava preocupado que ela escapasse de novo? Que se atirasse
dos penhascos ou desaparecesse sem deixar vestígios? Ou estava
com medo de que alguém viesse atrás dela?
Mas como poderiam? Ele disse que quando a estrada do
penhasco ficava alagada, não havia como carruagem, cavalo, nem
cavaleiro passarem. E ainda assim...
E ainda assim, Justin conseguiu encontrar seu caminho sem
dificuldade.
Mas comparar as habilidades de outros homens com as de
Justin Thornhill parecia injusto, na melhor das hipóteses. Bastava
ela se lembrar de como ele a resgatou, e aos cães, da borda do
penhasco durante a tempestade. Depois disso, uma caminhada da
abadia até a aldeia era, decerto, brincadeira de criança.
— Acha que ele volta hoje? — ela perguntou.
Mas Neville não sabia de nada mais do que ela. Ele apenas
reiterou que Justin tinha ido ver o sr. Finchley e que voltaria em dois
dias.
Naquela tarde, ela se sentou à janela da biblioteca, com o xale
de casimira muito bem enrolado ao redor dos ombros. As gotas de
chuva escorriam pelo vidro, uma após a outra, em rápida sucessão.
A visão só serviu para deprimir ainda mais o seu ânimo. O céu
cinza, bem como o frio e a umidade, faziam Helena se sentir
sozinha e isolada. Deveria estar feliz por isso. O mau tempo
garantia que a estrada do penhasco não secaria tão cedo. O que
significava que ninguém viria à abadia.
Também significava que ninguém poderia sair.
Estava dividida quanto a esse fato. Parte dela queria fugir.
Pegar o próximo coche saindo de King’s Abbot e fugir para a
Cornualha, Taunton ou Exeter. Qualquer lugar, na verdade, contanto
que a cidade fosse grande o suficiente para ela desaparecer.
A outra parte desejava, com fervor, esperar por Justin.
Confie em mim, ele disse em seu bilhete rabiscado às pressas.
Não havia razão para que confiasse. Depois de descobrir a
verdade a seu respeito, o homem foi embora. Foi ver o sr. Finchley,
em Londres. Ele desejava anular o casamento? Ou estava
procurando aconselhamento jurídico quanto à questão de sua
sanidade?
Ele não tinha notado, só de falar com ela, que era perfeitamente
sã? Ela podia ter estado molhada e entorpecida com o choque, mas
achou que tinha explicado as coisas de maneira calma e razoável.
Talvez ele simplesmente não acreditasse nela.
A perspectiva não fez nada para melhorar o seu humor.
Odiava se sentir desamparada. No passado, lutou contra a
sensação ao elaborar um plano. Para garantir o resultado, perto do
fim, ela e Jenny haviam feito planos intermináveis. Nenhum jamais
se concretizou, é claro. Nenhum, exceto o último e, considerando a
ausência de Justin, até isso era discutível. Mesmo assim, esses
planos sempre lhe deram esperança.
Ela não tinha um plano agora. Estava completamente perdida.
Não havia nada a fazer senão esperar.
Talvez a espera tivesse sido mais fácil se pudesse ficar sozinha
com suas preocupações. No entanto, mesmo quando Neville era
obrigado a cuidar de seus deveres fora da casa, ela não tinha
permissão para ficar sozinha. Em vez disso, era relegada aos
cuidados do sr. Boothroyd. O homem estava na biblioteca com ela
agora, embora a uma sala inteira de distância, com a cabeça
grisalha inclinada sobre a mesa. Helena podia ouvir o arranhar da
pena enquanto ele fazia anotações em seu livro-razão.
Ela se afastou da janela com um suspiro.
— Devo pedir um chá?
— Disse algo, milady? — o sr. Boothroyd perguntou.
Sua consciência vacilou. Assim como seu temperamento. Ele
se dirigiu a ela como milady em todas as oportunidades. Como se
ela precisasse ser lembrada de sua desonestidade.
— Perguntei se o senhor gostaria de um chá.
O sr. Boothroyd olhou para cima, com a pena na mão.
— Já é meio-dia? — Ele olhou para o relógio. — Sim, sim, um
pouco de chá seria bom.
Helena tocou a campainha para chamar a sra. Standish. A
governanta podia não gostar de servir bandejas de desjejum e de
chá, mas não havia ninguém para fazer o trabalho no momento.
Ela chegou pouco tempo depois, com um avental sujo sobre o
vestido e uma touca cheia de teias de aranha. Estava limpando um
gabinete no corredor, uma sala que parecia ter estado fechada
desde o início dos tempos.
— Vai querer seu chá, imagino — disse, irritada.
— Sim, obrigada, sra. Standish.
A sra. Standish saiu da biblioteca tão rápido quanto entrou.
Helena se sentou em um dos sofás perto da lareira.
— Não quer se juntar a mim? — perguntou ao sr. Boothroyd.
Ele olhou para o fogo por um momento. E então se levantou da
mesa e foi se sentar no sofá desbotado em frente a ela.
— Não deve ser confortável ficar sentado naquela mesa dia e
noite — ela disse.
— Estou acostumado.
— Depois que a sra. Standish fizer uma limpeza adequada no
gabinete, talvez o senhor possa trabalhar de lá. É menor que a
biblioteca e tem lareira própria. Eu diria que ficaria mais aquecido lá.
O sr. Boothroyd alisou a frente do colete amarrotado.
— Possivelmente.
Ele não ficou mais efusivo depois que o chá chegou.
Helena serviu uma xícara para ele.
— Sr. Boothroyd — disse, fazendo mais uma tentativa de
conversa civilizada. — Entendo que o senhor trabalha para o sr.
Thornhill desde que ele comprou a abadia.
— É verdade. — O sr. Boothroyd tomou um gole de seu chá. —
Já faz três anos.
Ela serviu uma xícara para si mesma, adicionando uma boa
dose de açúcar.
— E antes disso?
— Antes de o sr. Thornhill comprar a Abadia de Greyfriar? — O
sr. Boothroyd franziu o cenho. — Ora, eu estava aqui, milady.
— Aqui? — Helena olhou para ele, confusa.
O sr. Boothroyd baixou a xícara de volta ao pires com um tilintar
audível.
— Fui contratado pelo proprietário anterior.
Ela o encarou, atordoada.
— Quer dizer que trabalhou para sir Oswald Bannister?
— Eu era o secretário particular dele. — O rosto do sr.
Boothroyd traiu um lampejo de desgosto. — Cargo que me permitiu
residir aqui na abadia por quase uma década. O gabinete, como a
senhora o chama, tem a dúbia distinção de ter sido meu escritório.
Ela esperou que ele dissesse mais, mas o homem não parecia
inclinado a entrar em detalhes.
— É mesmo, sr. Boothroyd — ela falou, exasperada. — Devo
arrancar os detalhes do senhor?
— A história não é minha para contar, senhora. Se o sr.
Thornhill desejar relatá-la à senhora em algum momento no futuro,
atrevo-me a dizer que ele o fará. Até então, devo respeitar seus
desejos.
— Ele pediu para o senhor não me contar?
O sr. Boothroyd se remexeu na cadeira.
— Não com tantas palavras. Mas o sr. Thornhill é um homem
discreto. Já o expus o suficiente ao publicar aquele infeliz anúncio
matrimonial. Não agravarei meu pecado espalhando fofocas sobre
ele.
Helena tinha certeza de que não o havia ouvido corretamente.
— Perdoe-me. Está me dizendo que foi o senhor quem colocou
o anúncio?
— Foi, milady. — Ele levou a xícara aos lábios, e tomou um
gole de seu chá. — O sr. Thornhill não ficou nada satisfeito.
Seus olhos encontraram os dele. Ele a olhou fixamente. Não
estavam mais simplesmente tomando chá, ela percebeu. Eram dois
adversários, engajados em uma polida batalha de vontades.
— Ele não queria se casar? — Helena perguntou.
— De fato, não. No entanto, logo concordou que havia
benefícios em ter uma esposa. A dama certa tornaria sua vida mais
fácil, tanto na abadia como na comunidade. Ela ajudaria a aliviar o
peso de seus fardos.
Ela devolveu a xícara e o pires à bandeja de chá.
— Se eu permanecer aqui...
— Se a senhora permanecer?
— Eu devo, é claro, dedicar-me a aliviar alguns desses fardos.
— A senhora é um deles, milady — Boothroyd apontou.
Helena ficou paralisada, a respiração ficou presa no peito.
Então não era uma mera insinuação. Ele desejava enfrentar o
assunto de frente.
Há uma hora, ela poderia ter gostado de uma conversa franca.
Agora, no entanto, descobriu que não tinha estômago para uma.
— Sim. Sim, eu sei. — Ela apertou os dedos nas dobras macias
de casimira de seu xale. — Nunca foi a minha intenção...
Mentir? Conspirar? Tirar proveito da bondade de Justin?
Não, ela não quis nada disso. Só pensou em si mesma. Em
escapar do tio. De encontrar um cavalheiro decente e honesto que
lhe daria a proteção de seu nome.
Ao fazer isso, foi mais do que egoísta; foi cruel. Se tinha alguma
dúvida, tudo o que precisava fazer era se lembrar da expressão no
rosto de Justin sentado ao lado da cama, com os cotovelos
apoiados nos joelhos e a cabeça curvada sob o peso de sua traição.
Mas não daria desculpas. Não para o mordomo de Justin, de
todas as pessoas. Afinal, ela ainda tinha algum orgulho.
— Milady?
Ela se levantou de seu lugar no sofá. O sr. Boothroyd também
se levantou.
— Vou dar um passeio lá fora.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Com esse tempo?
— Só está garoando.
— Seria melhor que a senhora permanecesse em casa.
— Sem dúvida. — Ela alisou as saias do vestido de seda cinza
e enrolou o xale com mais firmeza ao redor dos ombros. — Irei até
os estábulos para ver Neville. Decerto isso está dentro dos limites
do meu confinamento.
O sr. Boothroyd apertou os lábios em uma linha fina.
— Não acho sensato a senhora vaguear fora de casa. Se tiver
outra queda...
Resolveria muitos problemas. Possivelmente até para si
própria. Mas não diria essas coisas ao sr. Boothroyd. Qual seria o
ponto? Ele estava decidido a pensar mal dela. Helena não o
culpava.
— O senhor pode vir se quiser — disse. Mas não esperou para
ver se ele a seguia.

◆◆◆

Helena desceu o caminho. As botas esmagavam o cascalho


molhado e o vento fazia as saias balançarem com violência ao seu
redor. A chuva havia diminuído, ficou grata em ver. Principalmente
porque não usava o chapéu, nem luvas. Deixou a abadia com
pressa, muito angustiada por sua conversa com o sr. Boothroyd
para parar e encontrar a capa e outros acessórios que costumava
usar ao ar livre.
Encontraria uma maneira de sair dessa situação. Tinha que
haver uma maneira.
Embora não pudesse pensar em qual maneira seria essa.
Ela e Jenny quebraram a cabeça por meses. Só quando Jenny
encontrou o anúncio de Justin que pareceu haver uma luz no fim do
túnel.
— Está vendo aqui? — Jenny havia falado, apontando para o
jornal. — Ele é soldado, como o seu irmão. E tranquilo também, com
uma propriedade em uma região remota do país. Melhor ainda,
Helena, olhe isso. Ele não está preocupado com a fortuna da dama.
E não diz nada sobre a aparência dela. Muito promissor, não acha?
Na ocasião, Helena estivera deitada apática em sua cama,
após uma visita do dr. Collins. Virada de lado, encarava o papel de
seda que cobria as paredes de seu quarto.
— Você não vai olhar? — Jenny havia perguntado. — Sempre
dissemos que seu tio não poderia fazer nada se você estivesse
casada. Um estranho não é o ideal, eu sei. Mas estamos ficando
sem tempo. E a Fleet Street não é tão longe. Posso dar uma
passada no escritório desse advogado, o sr.T. Finchley, e descobrir
todos os detalhes. Pode ser um engodo, mas vale a pena investigar.
Helena não respondeu. Sentia-se completamente derrotada.
Mal tinha vontade de se mover.
Jenny se sentou ao lado dela na cama, afastando seu cabelo
da testa.
— Não desista — pedira baixinho. — Por favor, não desista.
Helena não desistiu. A esperança tremeluziu em seu peito com
a ideia da fuga, uma pequena chama alimentada por seu próprio
encontro com o sr. Finchley e, mais tarde, pelas cartas de Justin.
Cara srta. Reynolds, ele havia começado cada uma. Exceto
pela última. A que confirmava sua viagem a Devon para encontrá-lo.
A que tinha sido endereçada a Minha querida srta. Reynolds.
Minha querida.
Uma intimidade extraordinária de seu futuro marido.
Ou assim pareceu na época.
Ah, se soubesse o quanto Justin era bonito. O quanto era alto,
poderoso e carismático. Quem dera soubesse do jeito apaixonado
com que ele a beijaria no Stanhope Hotel, com as mãos grandes
segurando seu rosto com uma gentileza que a fez sofrer ao se
lembrar.
Eu poderia me apaixonar por ele.
A compreensão se estabeleceu em seu peito, cálida e
resplandecente. Não foi tão alarmante quanto teria imaginado que
seria. Muito pelo contrário. Pois Justin Thornhill não era apenas um
homem bom, capaz de dar beijos que a faziam derreter. Ele era um
bom homem. Inexprimivelmente gentil e constante; feroz protetor de
todos os que estavam sob seus cuidados.
Descobriu esse aspecto dele durante o tempo que ficaram
separados. Uma compreensão tácita que esteve presente em todas
as conversas que teve com Neville, o sr. Boothroyd e a sra.
Whitlock. Justin cuidava das pessoas. Ele as protegia.
Apesar de seus grunhidos e resmungos, e do semblante muitas
vezes soturno, apesar da desonra de seu nascimento, Justin
Thornhill era um verdadeiro cavalheiro como qualquer outro que ela
já conheceu. Bom demais para ela.
Apaixonar-se por ele? Não conseguia pensar em nada mais
imprudente. Não quando mentiu para ele de modo tão estupendo.
Não quando usou de engodo para comprometê-lo a um casamento
que ele não queria.
Não. Era muito melhor se endurecer contra ele. Dessa forma,
quando ele a rejeitasse, quando a mandasse embora, seu coração
não se partiria em pedaços.
Continuou indo em direção aos estábulos, com a cabeça
inclinada contra o vento crescente. A estrada fazia uma curva em
uma inclinação gradualmente sinuosa, levando para baixo,
passando dos penhascos. O ar frio atingiu seu rosto enquanto ela
seguia pela borda. Inalou um fôlego revigorante, sentindo o cheiro
selvagem e salgado do mar. Faltavam apenas mais alguns passos
para o estábulo. Seria mais quente lá e...
— O que é que você está fazendo aqui fora?
Ela olhou para cima, sobressaltada.
Justin estava parado a vários metros de distância, usando um
sobretudo sujo de lama e com uma maleta pendurada no ombro. O
cabelo preto estava molhado, e ele segurava o chapéu de forma
descuidada em uma das mãos enluvadas.
Qualquer pensamento de endurecer o coração se dissolveu no
ar.
— Justin. — Ela correu para encontrá-lo em uma enxurrada de
saias de seda. Alcançou-o com uns poucos passos apressados e
jogou os braços ao redor de seu pescoço. Não foi uma tarefa fácil.
Ele era muito mais alto do que ela. O marido devia ter se inclinado
ou abaixado a cabeça. Estava emocionada demais para saber
exatamente o que foi. — Você voltou.
— Claro que sim. — A voz de Justin estava rouca, e ele passou
um braço em volta da cintura dela para estabilizá-la. — Helena,
estou todo sujo de lama.
— Não me importo.
Ele a abraçou por um bom tempo. Ela sentiu a chuva caindo em
suas costas e ombros, encharcando os cachos enrolados e
trançados de seu cabelo. As mangas largas deslizaram até os
cotovelos, fazendo a musseline leve das mangas de baixo ficarem
úmidas na gola do casaco dele. A frente de seu corpete também
estava umedecendo.
Por fim se afastou, voltou a apoiar os pés no chão, e o soltou do
aperto mortal em seu pescoço. Enxugou as gotas de chuva do rosto
com as mãos, e rogou para que ele não pensasse que estava
chorando.
— O que está fazendo aqui fora? — ele perguntou novamente.
— Onde está o Neville?
— No estábulo. Estou indo, estava indo, sentar-me lá por perto
enquanto ele trabalha.
Justin olhou para ela, sua expressão era difícil de ler.
— E seu chapéu e luvas?
— Na abadia.
Ele tirou a maleta do ombro e despiu o sobretudo. Ela se
manteve imóvel enquanto ele colocava a peça sobre seus ombros.
Era forrado de lã, ainda quente com o calor de seu corpo, e tão
grande que a engoliu por completo.
— Puxe-o sobre a sua cabeça — ele disse. — Venha. Tenho
sonhado com um fogo quente e uma xícara de chá nos últimos três
quilômetros.
Eles voltaram para a abadia, caminhando lado a lado pela
estrada. A cada passo, Helena se sentia um pouco mais ridícula
com a saudação exuberante que havia lhe dado. Por tudo o que
sabia, ele já havia decidido anular o casamento.
Ou isso ou mandar interná-la.
A perspectiva lhe causou calafrios. Ela lançou um olhar de
soslaio para o rosto de Justin. Ele parecia pensativo. Sério. Como
um homem que tinha muito em que pensar.
Ela se lembrou das palavras que ele proferiu quando a resgatou
do rebordo do penhasco.
Você se casou comigo para que eu a mantivesse em
segurança, e é exatamente isso que pretendo fazer.
Naquela noite, ele disse de coração.
Será que ainda pensava assim?
Pediu a ela para confiar nele. E, exceto por deixá-la sem dizer
uma palavra, Helena não tinha nenhum motivo real para se negar.
Não a menos que o culpasse pelos pecados de outros homens
contra ele. Mas não seria justo, seria? Justin não era o tio dela, nem
o sr. Glyde, nem nenhum da meia dúzia de cavalheiros em Londres
que se recusaram a ajudá-la. Seria injusto medi-lo com a mesma
régua.
Eles subiram os degraus da abadia em silêncio. O marido abriu
a porta, permitindo que ela o precedesse no corredor. Helena tirou o
sobretudo dos ombros e o devolveu.
— Você vai querer se lavar e se trocar. Servirei uma bandeja de
chá na biblioteca em meia hora. A menos que você queira de mais
tempo.
— Creio que vamos precisar. — Seu olhar caiu para a frente do
vestido dela. — Não sou o único que precisa se lavar e se trocar.
Ela olhou para o corpete.
— Ah, céus. — Era pior do que umidade. A lama manchava a
gola e o peito. Ela fez uma careta de pesar. — Mereci isso por
abraçar você. — Ela tentou injetar humor nas palavras, mas a voz
só conseguiu soar vazia. — Não sei em que eu estava pensando.
— Helena...
— Sr. Thornhill? — O sr. Boothroyd saiu da biblioteca. — Não
sabia que tinha voltado. E vejo que encontrou sua senhoria.
Esplêndido. — Ele cruzou o corredor para falar com Justin, cheio de
perguntas sobre sua visita ao sr. Finchley.
Helena ficou ouvindo por um momento, mas se sentiu excluída.
Como se sua presença fosse supérflua para a conversa. Pediu
licença para subir e se trocar. Nenhum dos dois fez qualquer
objeção. Ela se perguntou se eles notaram quando ela escapuliu.
Uma vez em seu quarto, tirou as mangas molhadas, o corpete e
as saias enlameadas. Colocou tudo no banheiro e, depois de se
lavar e arrumar o cabelo, voltou para o quarto e pegou um vestido
limpo. Era o último dos três que trouxe de Londres, e o único que
não era cinza.
A sombra das rosas. Era como a modista havia chamado o tom
de rosa-acinzentado.
Era de seda, como os outros, com mangas compridas e soltas
que se ajustavam nos pulsos. O corpete era simples, preso na
cintura por um cinto de veludo cor de ameixa. O mesmo veludo
debruava o único babado largo na barra de suas saias. Era um
vestido lindo. O corte realçava sua figura e a cor fazia seu cabelo
brilhar e a pele parecer resplandecente. Mas não foi por isso que ela
o trouxe. A verdade era que era um dos únicos vestidos que possuía
que podia tirar e colocar sem a ajuda de uma criada.
Se ficasse, talvez pudesse oferecer a posição de criada pessoal
a Bess. A jovem não disse que sabia algo sobre como remover
manchas de seda? Era uma habilidade que seria particularmente útil
agora, dado o estado atual de seus vestidos.
Mas não sabia se ficaria.
Para descobrir, teria que descer e enfrentar a situação. Parte
dela, uma parte bastante grande, é certo, teria preferido rastejar
para debaixo de um cobertor e se esconder. As notícias da cidade
não podiam ser boas.
Eu não quero saber.
Um pensamento estúpido e infantil. Estava se tornando uma
covarde. Aquilo não lhe serviria de nada. Endireitou a coluna e foi
até a porta. Estava no meio do caminho quando alguém bateu. O
som ecoou pelo quarto, forte e firme.
Não deveria estar surpresa. Ao contrário dela, Justin não era
covarde. Se houvesse más notícias a serem transmitidas, ele não
teria escrúpulos em dá-las ele mesmo.
— Entre — ela falou.
Justin entrou. Ela observou, com o coração acelerado,
enquanto ele fechava a porta atrás de si.
— Você saiu bem rápido — ele disse. — Imagino que não
houve nada...
E então ele parou e a olhou. Simplesmente olhou. O tipo de
olhar abrasador que tomava cada detalhe de sua aparência, do topo
de sua cabeça até o babado na bainha de suas saias.
Seu pulso batia forte na garganta.
— Você trocou de vestido — ele disse.
Ela foi assaltada por uma vaga sensação de autoconsciência.
Justin achava que ela estava tentando seduzi-lo? Usar seus
artifícios femininos para influenciar sua decisão sobre o casamento?
— Não tive muita escolha. — Ela alisou as saias. — Espero não
ter feito você esperar.
Ele lançou um breve olhar para as pernas enlameadas da
calça.
— Ainda não tive a chance de me trocar. Estava conversando
com Boothroyd.
— É mesmo?
Ele deu a ela outro olhar longo e avaliador.
— Também gostaria de falar com você.
— Certamente.
— Por que não pede o chá enquanto eu me lavo? Podemos
tomar aqui. No nosso quarto.
Nosso quarto.
Ela engoliu em seco.
— Muito bem.
Os olhos de Helena observaram Justin se encaminhar para o
quarto de vestir. A maioria das roupas dele estava lá. Ela as
examinou em sua ausência. Casacos, coletes, calças, calças de
montar e uma coleção de camisas brancas imaculadas. Estava tudo
organizado de forma impecável. Especialmente considerando que
ele não tinha um criado pessoal.
— E quanto ao sr. Boothroyd? — ela perguntou.
— O que tem ele?
— Vai se juntar a nós?
Justin parou na porta do quarto de vestir e franziu o cenho.
— Não. Por que ele deveria?
— Supus... — Sua voz foi diminuindo. Ele veio na sua direção e
cruzou o quarto com uns poucos passos largos. Ele enfiou a mão
dentro do casaco.
— Tenho uma coisa para você — ele disse. — Quase me
esqueci. — E retirou de lá um pequeno envelope selado com cera
vermelha. — Você pode ler enquanto eu me troco para o chá.
Ela o pegou da mão dele.
— O que é isso?
— Você vai ver — ele disse. — E Helena?
— Sim?
O lábio dele estremeceu.
— Não faça suposições.
Ela enrubesceu. Mas ele não ficou para ver. Justin saiu pela
porta do quarto de vestir em um instante, deixando-a sozinha com a
carta misteriosa.
Helena a levou até a janela. Um raio de sol se infiltrou pelo
vidro. Ainda de pé, rompeu o selo, abriu a folha e começou a ler.
Minha querida Helena,
Esta noite conheci o seu sr. Thornhill. Não nos demos bem. No
entanto, ele prometeu que a verei novamente quando as chuvas
cessarem. Nunca para de chover em Devon? Talvez seja tudo um
estratagema para silenciar minha língua ferina. Não importa. O sr.
Finchley diz que se Thornhill se mostrar desagradável, ele mesmo
me levará até você.
Tenho muito a lhe contar, mas não há tempo para escrever
tudo. Seu marido não vai esperar por uma carta mais longa. Ele está
impaciente para vê-la novamente. Isso significa o que acho que
significa? Se for assim, perdoe-me por me gabar, mas eu não disse
que tudo daria certo?
Com afeto sem limites,
Jenny
Capítulo Treze

Depois de tomar banho e vestir roupas limpas, Justin voltou


para o quarto de Helena. O quarto deles. A esposa estava sentada
no sofá perto da lareira, e as saias caíam ao seu redor como uma
nuvem rosa-acinzentado. Ela ainda olhava a carta da srta. Holloway.
Ele se demorou à porta do quarto de vestir e a observou.
Não sabia o que a srta. Holloway havia escrito. Esperava que
fosse algo que levantasse o ânimo de Helena. Quando a viu
descendo a estrada do penhasco, ela tinha o rosto pálido e os olhos
estavam desesperados. E quando ela jogou os braços ao seu redor
em saudação, sentiu uma pequena parte do que a esposa devia ter
sentido em sua ausência. Ela estava sozinha. Com medo. Incerta
sobre ele.
Justin cerrou a mão em reflexo. Havia lidado mal com o
assunto. E, muito provavelmente, magoou-a no processo.
— Eu deveria ter lhe acordado antes de sair.
Helena olhou para cima, assustada.
— Perdão?
Ele cruzou a sala para se juntar a ela no sofá. A bandeja de chá
estava em uma mesa baixa perto da lareira. Um redemoinho de
vapor flutuava do bico do bule.
— Um bilhete foi inadequado — disse. — Agora eu percebo.
Helena dobrou a carta da srta. Holloway e a colocou de lado.
Seus olhos encontraram os dele.
— Por que não disse nada?
Ele se sentou ao lado dela, meio esmagando a saia volumosa
com a perna. Não adiantava fingir.
— Porque eu sabia que se te acordasse, se visse o quanto
você estava assustada, não seria capaz de deixá-la.
— Oh — ela murmurou.
— Deixar você aqui foi a coisa mais segura a fazer. Com a
tempestade e a estrada... Era a única forma de eu ver o Finchley.
— E a Jenny?
— Ela também estava lá.
— Com o sr. Finchley?
— Sim. Bem... é uma longa história.
Helena serviu-lhe uma xícara de chá. Quando a entregou, os
dedos roçaram nos dele.
— Estou ouvindo.
Ele esperou até que ela servisse uma xícara para si mesma e
só então começou a falar.
— Quando seu tio descobriu sua ausência, foi confrontar a srta.
Holloway. Ela não quis revelar onde você estava, ele ficou furioso e
vasculhou o quarto dela em busca de algum sinal de para onde você
tinha ido.
O rosto de Helena ficou descorado.
— Ele a machucou?
— Não. Mas quando encontrou a evidência que estava
procurando...
— Que evidência? Não havia nenhuma, tenho certeza disso.
Fomos extremamente cuidadosas.
— Havia uma carta — Justin afirmou. — A srta. Holloway a
mantinha em uma gaveta trancada de sua penteadeira.
Helena balançou a cabeça, incapaz de acreditar.
— Deve haver algum engano. Eu trouxe todas as suas cartas
comigo.
— Trouxe? — Ele arquivou isso para examinar mais tarde. —
Mas não era uma carta que escrevi para você. Era a carta que
Finchley escreveu em resposta ao contato inicial da srta. Holloway
sobre o anúncio. Ele mencionou meu nome. Falava também sobre
North Devon e King’s Arms.
— Por que, por tudo que é mais sagrado, Jenny manteria essa
carta?
— Não perguntei — Justin respondeu.
Não que ele não tivesse suas suspeitas.
— Então —Helena disse, mexendo uma porção generosa de
açúcar em seu chá —, depois de ler a carta, meu tio teve acesso a
todas as informações.
— Exato.
— Ele teria enviado o sr. Glyde atrás de mim imediatamente. —
Sua expressão ficou meditativa. — E quanto a Jenny? Você disse
que ele não a machucou...
— Ele não machucou. Não fisicamente. Ele a demitiu sem
referências. Deu a ela meia hora para recolher suas coisas e depois
pediu a um lacaio que a acompanhasse para fora da propriedade.
Ela não tinha dinheiro e ninguém com quem pudesse se abrigar.
— É por isso que ela foi ver o sr. Finchley — Helena concluiu.
Os lábios de Justin se curvaram em um sorriso irônico.
— Você a conhece bem.
Ela deu de ombros.
— É o que eu teria feito.
Uma pontada aguda de emoção o pegou de surpresa.
Reconheceu, de imediato, o que era. Experimentou a mesma
sensação quando Finchley tagarelou sobre a beleza de Helena.
Ciúme.
Era muito desconcertante. Não tinha razão para ter ciúmes de
Finchley, nem de qualquer outro homem. No entanto...
— Você o tem em alta conta — ele apontou.
— O sr. Finchley? Sim, suponho que sim.
— Por quê? Se mal o conhece.
— Não, mas ele foi gentil comigo quando mais precisei. Nunca
me esquecerei disso.
Justin apertou a alça da xícara. Ele se forçou a afrouxar as
dedos, obrigando-se a relaxar enquanto levava a delicada peça de
porcelana aos lábios e tomava um grande gole. A bebida estava
forte, ao contrário do chá que compartilharam na primeira visita dela
à abadia.
— Ah, sim, gentileza. — Ele devolveu xícara e pires à bandeja
de chá. — Um de seus principais requisitos em um marido, se bem
me lembro.
Um rubor cobriu as bochechas de Helena.
— Onde a Jenny está agora? O que o sr. Finchley fez com ela?
— Ele providenciou uma casinha para ela perto da Piccadilly.
Helena o olhou de boca aberta.
— Ele fez o quê?
— É tudo perfeitamente respeitável — Justin garantiu. Ou foi
levado a acreditar.
Mas Finchley estava na casa quando Justin apareceu na rua
Half Moon. E admitiu passar tempo sozinho com a srta. Holloway
sem o benefício de uma acompanhante.
— Ela precisava de um lugar seguro para ficar — explicou,
tanto para sua própria paz de espírito quanto para a de Helena. —
Um lugar onde seu tio e seus capangas não pensariam em procurá-
la. E o Finchley dificilmente poderia oferecer a ela hospedagem e
alimentação na própria casa, não é?
Helena ficou devidamente chocada.
— Espero que não!
— Ele tem tido o cuidado para que ela não acabe em uma
posição comprometedora.
— Tenho certeza de que sim, mas... — Ela pressionou as
pontas dos dedos na testa, como se para evitar uma dor de cabeça
iminente. — Ah, mas é tudo minha culpa. Se não fosse por mim,
Jenny nunca acabaria em tal situação.
— Não é tão ruim quanto parece.
— Não é?
— Não — ele falou. — Nem tanto.
Ela ergueu os olhos para ele, com um vislumbre de esperança
brilhando nas profundezas castanho-esverdeadas.
O coração disparou e o sangue respondeu ao calor do olhar
dela com igual ardor. Ele pigarreou.
— Por um lado, assumi o contrato de aluguel Finchley. E antes
que se oponha, gostaria de lembrar que a srta. Holloway é, até certo
ponto, sua prima, o que a torna minha parente por casamento. É
perfeitamente apropriado que um cavalheiro cuide de uma parenta
em situação de pobreza, não?
— Sim mas...
— Também deixei dinheiro para comprar uma passagem de
trem. Se o pior acontecer, ela terá recursos para pegar o trem para
Devon a qualquer momento.
A tensão no rosto de Helena suavizou, e ela trouxe a mão de
volta ao colo.
— Oh, Justin.
— Eu esperava que isso a acalmasse.
— Sim. Muito. Mas tudo lhe causou um grande inconveniente.
Como eu posso...
— Não precisa.
— Mas depois de tudo, eu...
— O que está feito, está feito. — Ele se esforçou para falar em
um tom estimulante. Não achava que poderia suportar se ela se
oferecesse para retribuir. E com certeza não queria ouvi-la
expressar sua gratidão. — Só podemos seguir em frente.
Ela sustentou seu olhar.
— Podemos?
— Nós podemos tentar — ele disse, com a voz rouca. — E é
exatamente por isso que fui ver o Finchley. Não podemos ficar à
deriva sem um bom plano. Não quando se trata de questões legais.
— É uma questão de lei? — ela perguntou. — Mesmo sendo
casados?
— Pode ser. Depende... — Ele passou a mão pelo cabelo.
Ainda estava úmido da chuva. — Há o problema com o
consentimento.
Ela empalideceu.
— Você entende o conceito, acredito.
— Sim, entendo. É que... — Ela voltou a colocar a xícara na
bandeja. Suas mãos tremiam. — Na noite em que eles chegaram,
ouvi o sr. Glyde enquanto eu passava pelo corredor. Ele disse que
eu não era capaz de consentir o casamento. — Sua voz ficou mais
fina. — O que significa que você e eu não somos casados.
Justin segurou sua mão.
— Ouça. Vou explicar tudo o que Finchley e eu discutimos e
tudo o que nos propomos a fazer. Mas primeiro, quero que me ouça.
Que me ouça de verdade.
Ela assentiu.
Ele entrelaçou os dedos nos dela. Suas palavras foram ferozes
e baixas.
— Ninguém nunca a levará embora. Entendeu? Nem seu tio,
nem o sr. Glyde. Nem mesmo os tribunais. Sempre há uma maneira,
Helena. E não há nada que eu não arriscaria, nada que eu não
ousasse fazer, pelas pessoas de quem gosto.
Os dedos de Helena flexionaram nos dele.
— Como você pode gostar de mim?
— Você é minha esposa. Como eu poderia não gostar?
— Só sou sua esposa porque usei de falsidade. Porque tirei
vantagem da sua gentileza e da sua generosidade.
Ele bufou.
— Bom Deus, Helena. Você acha que sou tão inocente quanto
um bebê? Eu sabia que você estava escondendo algo desde o dia
em que te conheci. Você se esqueceu de como eu falei com você na
King’s Arms? Se eu tivesse escrúpulos quanto a me casar com uma
mulher que tem segredos, teria dado meia-volta e fugido.
— Não consigo entender por que não fez isso.
Justin não parou para pensar nesse pormenor. Ele mal se
entendia.
Tudo o que sabia é que sempre teve um fraco por coisas boas.
Um desejo incessante por algo mais. Algo melhor.
Isso nunca o levou a nada além de infelicidade. Teve ampla
prova disso ao longo dos anos. Tudo o que ele adquiriu, até a
própria Abadia de Greyfriar, terminou como nada além de um fardo
imenso em seus ombros.
Exatamente por isso que Boothroyd o advertiu contra se casar
com ela. Ele conhecia a fraqueza de Justin. Sempre conheceu.
E desta vez era pior. Seu desejo de possuir a criatura bela e
refinada que havia respondido ao seu anúncio estava totalmente
misturado ao seu instinto de protegê-la, de mantê-la segura.
Finchley não disse que faria bem a ele resgatar com sucesso
uma mulher do perigo?
Amaldiçoado seja aquele homem e suas opiniões.
Depois do que aconteceu em Cawnpore, Justin duvidava que
tivesse a capacidade de manter alguém em segurança, muito
menos uma mulher vulnerável.
Mas tentaria, disso não havia dúvida.
— Talvez fosse porque eu queria te ajudar. Ou isso ou porque
me encantei por você com loucura. — Sua boca se curvou. —
Provavelmente um pouco dos dois, para ser sincero.
O rubor de Helena se aprofundou, o que fez suas bochechas
assumirem um tom brilhante de rosa.
— As notícias de Londres devem ser bem desanimadoras, de
fato.
— O que lhe dá essa ideia?
— Bom senso. Ficou óbvio que está tentando suavizar um
golpe iminente. Eu gostaria que simplesmente me contasse, Justin.
É pior não saber.
O sorriso dele se desvaneceu. Foi sincero ao dizer o que disse.
Cada maldita palavra. Mas...
— Você tem razão. Devemos falar francamente, você e eu. De
agora em diante, para que dê certo, não haverá mais segredos entre
nós.
A expressão de Helena ficou cautelosa.
— Para que o que dê certo?
— O plano do Finchley. Ele crê que existe uma maneira de
derrotar seu tio sem recorrer a um processo prolongado. Não será
agradável. Para nenhum de nós. Vai requerer que sejamos vistos.
Passeios no parque, noites no teatro e até um ou dois bailes, se
conseguirmos convite. E isso não é tudo, temo.
Helena o olhava como se ele tivesse acabado de se expressar
em grego antigo.
— Bailes e teatro — repetiu em voz baixa. — Em Abbot’s
Holcombe, você quer dizer?
— Não em Abbot’s Holcombe — ele falou. — Quando o tempo
melhorar, eu e você partiremos para Londres.

◆◆◆

Helena se afastou dele em choque.


— Não vamos.
— Helena...
— Não. — A voz soou aguda e instável a seus próprios
ouvidos.
Ela se levantou do sofá e se afastou. Não sabia para onde
estava indo. Tudo o que sabia era que precisava colocar distância
entre eles. A mera menção de Londres foi o suficiente para que ela
quisesse fugir. Não se importava para onde.
— Helena, espere. — Justin se levantou para segui-la. —
Deixe-me explicar.
Ela parou na frente da janela do quarto. As cortinas pesadas
foram puxadas para revelar o vidro marcado pela chuva. Olhou
fixamente para fora, sem ver nada.
— Não posso voltar lá. Eu não vou.
Justin parou ao lado dela. Ele estava fora de sua linha de visão,
mas podia senti-lo ali, grande, quente e masculino.
— Do que você tem medo? — ele perguntou.
Ela cruzou os braços.
— Você não entenderia.
— É o que veremos.
Ela balançou a cabeça, recusando-se a explicar. Mas não havia
como guardar as palavras para si. Elas escaparam apesar de sua
determinação.
— Tudo de ruim que já me aconteceu foi em Londres. Minha
mãe... e Giles... e meu tio e o sr. Glyde... — Ela lançou um olhar
angustiado para Justin por cima do ombro. Ele estava parado ali,
sério e calado. — Não vê? Nunca estive mais sozinha na minha vida
do que quando estava naquela cidade miserável. E se eu voltar
agora... sei que meu tio me levará. Serei nada mais que um animal
seguindo direto para uma armadilha. Eles vão me trancar no
Lowbridge House e desta vez não haverá escapatória. Não poderei
fazer nada para me salvar. — Justin se moveu na frente dela,
preenchendo sua visão. O corpo grande bloqueou a luz quando ele
se inclinou para trás, meio sentado na moldura da janela.
— Você não está mais sozinha. — A garganta de Helena se
contraiu de emoção. Ela mordeu o lábio. Não choraria. Não
derramou uma única lágrima desde aquelas semanas após a morte
de Giles. E certamente não derramaria agora.
Justin estendeu a mão para ela.
— Venha aqui.
Pegou a mão oferecida, permitindo que ele a puxasse para um
abraço. As saias dela pressionaram a calça dele, a bainha com
babado se acumulou sobre as pontas das botas de couro polido. Ela
apoiou a bochecha na lã macia do colete do marido, sentindo os
braços se fecharem ao redor dela, segurando-a contra a vasta
extensão de seu peito.
Ele não disse nada por muito tempo. Apenas a abraçou,
movendo uma grande mão pelas suas costas até que ela começou
a relaxar contra ele, sua respiração ficando calma e uniforme.
— Há um cavalheiro em Londres chamado Charles Pelham —
ele falou, por fim. Sua voz era um estrondo profundo. Conseguia
ouvi-la e senti-la emanando de seu peito enquanto a segurava perto.
— Finchley o conhece de passagem.
Um leve zumbido de tensão percorreu seu corpo.
— Ele é médico?
— Deus, não. — Ele abaixou a cabeça para ela. A bochecha
roçou seu cabelo. — Ele é jornalista. Editor do London Courant, e
muito respeitado, aliás. No ano passado, ele investigou abusos na
gestão de hospícios privados.
Ela ficou rígida.
— Calma — ele murmurou. Subiu a mão pela curva de suas
costas. — Apenas me escute.
Ele a estava submetendo com gentileza, como um cavalo bravo
sendo preparado para o arreio. Não tinha certeza se gostava.
— Pelham tem documentado casos de confinamento injusto.
Casos em que membros da família pagaram para que um parente
fosse internado a fim de obterem controle de seu dinheiro ou
propriedade. Finchley acredita que, quando o editorial de Pelham for
publicado, haverá indignação em massa. Ele espera que isso
instigue algum tipo de reforma.
Helena sentiu o estômago se apertar.
— O que isso tem a ver comigo?
— Se você falasse com Pelham, se concordasse em dar uma
entrevista, ele apresentaria sua história junto com as demais. Assim
que os detalhes do que seu tio fez forem a público...
Desta vez, ela recuou, mas apenas longe o suficiente para olhar
nos olhos de Justin.
— Você não pode pensar que isso funcionará!
— Creio que funcionará sim.
— Meu tio jamais permitiria que tal história fosse publicada. Ele
entraria com uma ação contra o jornal, fecharia as gráficas ou pior.
Você não sabe do que ele é capaz.
— O que eu sei — Justin afirmou — é que o seu tio demonstrou
grande interesse em esconder os próprios crimes. Ele quer manter o
que fez com você em segredo, a ponto de me oferecer um suborno
para permanecer calado sobre nosso casamento.
— O quê?
— A questão é que ele não deseja que seu nome seja
arrastado pela lama. Ele não quer correr o risco de que a maré da
opinião pública se volte contra ele. É exatamente por isso que você
precisa contar sua história para a imprensa. Quando somados a
todos os outros casos que Pelham desenterrou, as pessoas terão
que acreditar. E quando o fizerem, quando seu tio for exposto, ele
não se atreverá a tentar se intrometer com você nem com seu
dinheiro novamente.
Ela bufou.
— Você faz parecer tão simples.
— Não será. Você terá que compartilhar alguns dos detalhes
mais desagradáveis de sua provação com Pelham. Ele vai querer
saber tudo sobre você.
— Para que ele possa publicar para toda Londres ver?
— Essa é a ideia.
Seu estômago embrulhou ao considerar aquilo. Imaginou seus
antigos conhecidos lendo a história sórdida à mesa do café da
manhã ou nas salas enfumaçadas dos clubes que frequentavam.
Em grupos de senhoras, vestidas de acordo com a última moda,
rindo de tudo aquilo ao tomarem chá com biscoitos. Com pena dela.
Rindo dela.
Sua boca ficou seca.
— Temos que ir lá? O sr. Pelham não poderia vir aqui?
— Lamentavelmente, não. As pessoas precisarão ver você fora
de casa. É aí que entram os bailes e o teatro. Darão a elas a
oportunidade de averiguar que não há nada errado em seu
comportamento. Então, quando o editorial for publicado, estarão
mais inclinados a acreditar na sua versão.
Ela respirou fundo. Não fez absolutamente nada para conter o
pânico crescente.
— Não posso fazer isso, Justin.
— Por que não?
— Uma dama se expor de tal forma... fazer um espetáculo de si
mesma para a diversão do público... — Tudo dentro dela recuou
com o pensamento. — Não é decente.
Ele a fitou sem acreditar.
— Está preocupada com a sua reputação?
— Sim — respondeu. E então: — Não. — E se concentrou no
botão superior do colete dele, observando-o embaçar diante de seus
olhos enquanto as lágrimas não derramadas lhe turvavam a visão.
— É tudo tão vergonhoso. Não suporto que mais ninguém saiba.
A mão dele apertou a curva de sua cintura. Ela podia sentir o
peso e o calor através das camadas de seda e espartilho, firmando-
se como uma marca em sua pele.
— Não é para envergonhar você, Helena. É para libertá-la.
— Roubando o que resta da minha dignidade.
Ele ficou em silêncio por vários segundos.
— Estarei com você — ele falou, por fim. — Se servir de
consolo.
Ela ergueu os olhos para os dele.
— Não é possível que queira ir a Londres. Não para isso.
— Não, particularmente, não. Mas não é para sempre. Um
inconveniente de algumas semanas, apenas. Vai acabar antes que
você perceba.
— Algumas semanas? Isso é tudo? — Até um dia era demais.
Mesmo uma hora. — E o que impede o meu tio de...
— Eu estarei com você — Justina afirmou mais uma vez. Seu
olhar sustentou o dela. — O tempo todo.
Helena não sabia por que continuava a resistir a ele. O marido
parecia ter um plano digno de crédito. E quem era ela para negar
quando seu próprio plano havia falhado de modo tão magistral?
— Não era para ser assim — ela deixou escapar.
— Não? O que esperava que fosse acontecer?
— Eu esperava me casar com você. Ter uma vida aqui. Segura.
Longe de Londres. Esperava nunca mais ver meu tio, nem o sr.
Glyde.
Por um breve instante, o rosto de Justin traiu um lampejo de
surpresa.
— Você realmente pretendia permanecer aqui comigo, como
minha esposa?
— Claro. Achou que fosse tudo um ardil? Que eu desapareceria
depois que nos casássemos? — Ela estava muito tentada a rir. —
Não tenho para onde ir, Justin. Ninguém quer me dar proteção. Eu
precisava de um marido. Era a única maneira de manter minha
fortuna e meu nome.
— Ah, sim. Sua fortuna.
— A fortuna do meu irmão.
— E como sabe que não vou desperdiçá-la agora que assumi o
controle?
— Você não vai — ela afirmou. — Você não o faria.
— Garantias do Finchley de novo, suponho.
— Ele estava errado?
— Não — ele admitiu. — Ele não estava. Mesmo assim... foi um
grande risco se atar a um estranho.
— O que mais eu deveria fazer? A única outra opção seria fugir
sem nada. Pelo menos, ao me casar com você, havia uma chance
de que tudo desse certo. E agora...
A perspectiva de uma viagem a Londres surgiu em sua mente.
O pensamento sugou toda a luz de dentro dela, deixando para trás
nada além de frio, escuridão e medo turbulento.
Ela estremeceu nos braços de Justin.
— Devo voltar lá? Não há outra maneira?
Ele não respondeu de imediato. Pareceu considerar o assunto,
para examinar as alternativas.
— Existem outras maneiras. Mas, neste caso, provavelmente
não serão bem-sucedidas.
— Este plano também pode não dar certo.
— Verdade. Não há garantias, mas concordo com o Finchley.
Temos melhores chances de derrotar seu tio no tribunal da opinião
pública do que de derrotá-lo em um tribunal de justiça. Tudo o que é
necessário é um pouco de coragem.
— Pena que não me sobrou nenhuma.
Justin abaixou a cabeça. Sua voz era um murmúrio rouco no
ouvido dela.
— Use a minha.
Helena fechou os olhos. Queria dizer sim. Gostaria de dizer a
ele que o acompanharia até Londres. Que desnudaria sua alma
para qualquer jornalista que ele desejasse. Devia muito a ele. Devia
a vida a ele.
Mas não era fácil.
Justin pareceu entender. Passou a mão de sua cintura para as
costas, provendo um peso firme e reconfortante.
— Pense nisso. Ainda há mais alguns dias de chuva.
— Só alguns?
— Isso nos dará tempo para conversar.
Conversar? Ela não sabia por que a perspectiva deveria afetar
o ritmo de seu coração, mas afetou. De forma incontestável. Ela
umedeceu os lábios.
— Para falar de forma franca, não foi isso que você disse?
— Exato.
— Sem mais segredos entre nós.
Justin olhou para ela, com os olhos cinzentos tão solenes como
uma sepultura.
— Sem mais segredos.
Capítulo Catorze

A chuva parou em algum momento durante a noite. Pela


manhã, as nuvens escuras haviam se afastado e o sol brilhava no
céu azul-claro. Helena acordou cedo, sozinha na grande cama
elisabetana. Estava com frio e com fome, e muito pouco disposta a
esperar o serviço relutante da sra. Standish.
Depois de se lavar e se vestir, desceu até a cozinha para
procurar o que comer. A sra. Whitlock estava lá, agitando-se ao
redor do fogão com um avental manchado de gordura. A sra.
Standish estava perto da pia, enchendo uma chaleira com água da
torneira. O cheiro de bacon frito flutuava pelo lugar.
— Milady! — A sra. Standish se desfez rapidamente da
chaleira. — O que a senhora está fazendo aqui? E a esta hora?
A sra. Whitlock enxugou as mãos no avental.
— Ela deve estar querendo o seu desjejum.
— E eu vou levar uma bandeja para ela às nove horas, não
vou? — a sra. Standish respondeu. — Embora seja o trabalho de
uma criada, se assim posso dizer.
— Está com fome, senhora? — a sra. Whitlock perguntou. —
Devo lhe preparar um prato de ovos e bacon?
— Sua senhoria prefere mingau — a sra. Standish afirmou, e a
cozinheira voltou-se para o fogão.
— Também temos isso, e muito. — Ela mexeu o conteúdo de
uma panela fumegante com uma colher de pau. — Não vai demorar
mais que um minuto, milady.
Helena se sentou à longa mesa de madeira.
— Os cavalheiros já comeram?
— Ainda não, senhora — a sra. Whitlock respondeu. —
Boothroyd e Neville devem descer a qualquer momento.
— E o sr. Thornhill?
— Acordou de madrugada e estava vestido para cavalgar.
A sra. Standish tirou a lata de chá do armário.
— Enquanto isso, aquele miserável do sr. Danvers ainda está
na cama e ainda pior por beber. Ele nunca vai melhorar, já que não
come nada. Foi o que eu disse a ele, aquela criatura vil.
— Ele precisa de uma esposa que cuide dele — a sra. Whitlock
comentou.
— Uma esposa? — a governanta zombou: — Quem se casaria
com ele?
A sra. Whitlock olhou para Helena, por cima do ombro.
— Ele já foi um bom homem. Conduzia a carruagem do correio.
Não havia homem tão hábil com uma parelha de cavalos. — Ela
colocou uma concha de mingau em uma tigela e a entregou à sra.
Standish. — Ele perdeu a esposa e os dois filhos pequenos devido à
febre em 1855. Perdeu o emprego logo depois. Não foi o mesmo
desde então. — A sra. Standish colocou a tigela de mingau na frente
de Helena junto com um guardanapo dobrado, uma colher, manteiga
fresca e açúcar. Seguiu-se um bule de chá quente, acompanhado
por uma xícara de chá de porcelana lascada e pires.
— Todos nós sofremos dificuldades. Não é desculpa para se
entregar ao vício.
Helena ouviu as duas mulheres brigarem enquanto tomava o
mingau e o chá. Os criados da Abadia de Greyfriar eram tão
diferentes dos da casa de seu tio na Grosvenor Square que eram
quase uma outra espécie. Eles falavam, discutiam e fofocavam
impunemente e pareciam não ter medo de serem demitidos sem
referência. Não era de se admirar que a casa estivesse em tal
estado.
Em outras circunstâncias, uma nova esposa se empenharia
para restaurar alguma aparência de ordem. Helena certamente
estava à altura da tarefa. Esteve encarregada da casa de seu pai
desde os quinze anos e, quando Giles ascendeu ao título, ele
felizmente a deixou continuar no papel. Se o irmão ainda estivesse
vivo, ela provavelmente estaria na Grosvenor Square agora,
conduzindo reuniões semanais com a governanta e a cozinheira e
trabalhando nas contas domésticas.
Se Giles ainda estivesse vivo.
A mão segurando a colher parou a meio caminho da boca.
Santo Deus, ela realmente pensou uma coisa dessas? Claro
que o irmão estava vivo!
Baixou a colher devagar e se levantou da mesa, deixando o
mingau pela metade.
— Sem apetite, milady? — a sra. Whitlock perguntou.
— Não tanto quanto pensei que estava — Helena respondeu.
Na verdade, algo pesado como chumbo parecia ter se acomodado
na boca do estômago. Sentiu-se um pouco mal.
— Levantou-se muito cedo, esse é o problema — a sra.
Standish resmungou. — Damas não devem se levantar antes das
dez.
— E a quantas damas atendeu? — a sra. Whitlock questionou
de forma rude. — Não muitas, aposto.
Helena recuou da cozinha ao som de sua discussão contínua.
Ela foi buscar o chapéu-boneca, o xale e as luvas no quarto e
desceu as escadas. O saguão de entrada estava vazio, o sol
brilhava através das janelas de moldura de pedra, lançando
partículas de poeira em feixes de luz dançantes.
Se Justin estava vestido para cavalgar, devia ter ido para o
estábulo. Com alguma sorte, ainda estaria lá.
Com isso em mente, saiu e desceu os degraus da entrada,
amarrando o chapéu enquanto caminhava. O ar estava fresco e frio
em seu rosto. Não havia nenhum indício de umidade. Será que a
chuva havia realmente parado?
Um tremor de ansiedade a percorreu. Imaginou o sr. Glyde
esperando o momento em que pudesse atacar e levá-la embora. Ele
traria o magistrado novamente, e desta vez não haveria como
impedi-lo.
Justin lhe contara que, depois de visitar a abadia naquela noite
fatídica e tempestuosa, o sr. Glyde havia retornado a Londres em
um trem noturno. Ele provavelmente foi direto ver seu tio. Fazer seu
relatório. Supôs que ele poderia ter voltado. Talvez ainda estivesse
no vilarejo? Bebendo na King’s Arms. Esperando até que as
estradas secassem.
Ou talvez ainda estivesse em Londres, antecipando seu
retorno? Havia incontáveis lugares para ele se esconder na cidade.
Se ela voltasse, teria que permanecer em guarda o tempo todo. Ao
menor sinal de fraqueza ou desatenção, o sr. Glyde a capturaria e a
levaria para a Lowbridge House. Ela seria trancada lá, sem
nenhuma esperança de recuperar a liberdade.
Mas não conseguia pensar nisso agora. Por um lado, ela nem
mesmo concordou com o plano de Justin. Poderia haver outra
maneira.
Apertou o xale ao redor dos ombros enquanto seguia a trilha.
Havia atividade no estábulo. Podia ver os cães deitados no pátio,
observando o sr. Danvers polir a carruagem. Ao contrário do relato
depreciativo da sra. Standish, ele parecia desperto e nada mal por
ter bebido.
Ele inclinou o chapéu quando ela entrou no estábulo.
O cavalo de Justin, Hiran, estava amarrado no corredor, a
pelagem castanha brilhando como uma moeda recém-cunhada.
Justin estava ao seu lado, colocando uma sela em seu lombo. Ele
usava calça de montaria, botas pretas de cano alto e camisa de
linho branca. A gola estava aberta, dando um vislumbre sombreado
das queimaduras em seu pescoço.
Ele captou o olhar de Helena por cima da cernelha de Hiran.
— Bom dia — ela disse com animação.
— Você acordou cedo.
— Não muito.
— Não? — Ele colocou a sela no lugar e estendeu a mão sob a
barriga de Hiran para pegar a fivela. — Todas as damas elegantes
se levantam às sete e meia?
— Esta, sim. — Ela caminhou para o outro lado do corredor,
observando enquanto Justin apertava a fivela. — Às vezes, até mais
cedo.
— Surpreendente.
Ela deu de ombros.
— Nunca gostei de ficar deitada na cama pela manhã. Há muito
o que fazer.
— Achei que era para isso que serviam os criados.
— Os criados não podem fazer seu trabalho sem receber
orientação.
Justin coçou o ombro de Hiran, com a expressão pensativa.
— Aonde você vai? — ela perguntou. — Quando você o
exercita, quero dizer.
— Depende. Normalmente eu o levo a King’s Abbot.
— E hoje?
— Hoje pensei em passear na praia. — Ele se moveu para um
gancho próximo para pegar as rédeas de Hiran. — Você cavalga?
— Não desde... — Ela vacilou. — Já faz muito tempo.
— Mas você sabe?
— Claro. Eu costumava cavalgar com o Giles antes de ele partir
para a Índia. Saíamos de manhã cedo para um galope no Hyde
Park. Depois que ele foi embora, às vezes eu ia até lá com um
cavalariço.
Justin estava pondo o bridão em Hiran. Ele tinha a mão
experiente, embalando o rosto do grande cavalo enquanto
encaixava o freio em sua boca e deslizava as rédeas por suas
orelhas.
— Gostaria de cavalgar comigo? — ele perguntou.
— Agora?
— Por que não?
— Não tenho nada para vestir — respondeu. — Não trouxe
meu traje de montaria.
Justin lhe lançou uma olhadela.
— O que há de errado com o que você está vestindo?
— Esse? — Ela pressionou as mãos nas saias volumosas. O
vestido de seda cinza que ela vestiu esta manhã serviria para uma
caminhada, mas nunca para cavalgar. — Estou atolada em anáguas
e crinolina.
— Eu sei. É muito adorável.
Suas bochechas aqueceram com o elogio.
— Sim, é muito bonito. E totalmente impraticável também. Eu
nunca seria capaz de me sentar em uma sela de amazona com
essas saias.
Justin desamarrou Hiran e o virou no corredor. O cavalo gigante
balançou a cauda com impaciência.
— Uma sela de amazona. Eu não tinha pensado nisso.
— Não a tem?
— Nós não temos. Faz três décadas, ou mais, que não há uma
dama residindo na Abadia de Greyfriar.
Ela seguiu Justin enquanto ele conduzia Hiran até o pátio.
Danvers havia partido, mas a carruagem ainda estava lá, com os
cães descansando lânguidos debaixo dela.
— Sir Oswald não era casado?
Justin parou. Ele olhou para os penhascos por um momento,
com os olhos semicerrados por causa do sol.
— Não, ele não era. — Ele fez uma pausa. — Ele era um
solteiro bastante famoso por essas bandas.
— Oh. — Ela não sabia mais o que dizer. — Posso ver você
exercitar Hiran?
— Se quiser. Não é nada muito emocionante. Seria melhor você
voltar para a casa, onde está quente.
— Prefiro ficar com você. — Uma admissão embaraçosa, mas
sincera. Abrigada na abadia, ela se sentia segura. Na presença de
Justin, se sentia duas vezes mais. Ele era seu marido. Seu protetor.
Agora que ele havia voltado de Londres, não queria deixá-lo fora de
sua vista. — Se você não se importar — acrescentou.
— Por que eu me importaria?
Helena poderia pensar em vários motivos. Depois da discussão
de ontem, raramente se ausentava de sua companhia. Até se
sentou na biblioteca, aninhada na janela com um livro, enquanto ele
discutia assuntos de negócios com o sr. Boothroyd. Ele poderia
simplesmente querer sua privacidade. Alguns minutos sozinho, livre
dela e de todos os problemas que ela trouxe para a sua vida.
— Aqui — ele disse. — Vou descer com você.
— Não precisa.
Ele a olhou, achando graça.
— Depois de quase uma semana de chuva? — Ele lhe ofereceu
a mão.
Ela aceitou com gratidão.
O caminho para a praia estava mais lamacento do que no dia
de sua chegada a Devon. Ela poderia ter escorregado e caído se
não estivesse se apoiando no braço de Justin. Hiran teve melhor
sorte. Ele percorreu a trilha com facilidade e segurança. Quando
chegaram ao fim, o animal saltou da beirada para a praia. Justin o
seguiu.
Ela esperou que ele a ajudasse a descer, como da última vez.
Em vez disso, para seu desânimo, ele segurou Hiran pelas rédeas e
saltou para a sela. Girou o cavalo para encará-la.
— Se você conseguir tirar uma anágua ou duas, vou levá-la
comigo — disse.
Ela piscou.
— O quê?
— Ouso dizer que lhe agradaria mais do que ficar sentada aí na
beira me vendo cavalgar.
— Atrevo-me a dizer que está certo. Mas não tenho certeza...
— Está com medo? — Justin perguntou. Hiran empinou
debaixo dele, mordendo o freio. — Não deveria. Ele é perfeitamente
seguro.
Helena não tinha tanta certeza disso. Hiran era um cavalo
bruto, gigante, nada adequado para uma dama de seu tamanho.
— Não seria decente. Eu cavalgando na garupa com um
vestido diurno.
— Você não vai montar na garupa. Tenho a intenção de colocá-
la na minha frente.
Ela deu uma risada breve.
— Ah, bem, imagino que isso faça diferença.
Ele abriu um sorriso.
— Quanto ao seu vestido...
Seu estômago se agitou. Ela realmente faria isso?
E por que não?
— Posso ter um momento de privacidade? — ela perguntou.
Justin obedeceu de pronto, virou o cavalo, e a si mesmo, para
longe dela.
Ela ergueu as saias e desatou rapidamente as fitas de uma de
suas anáguas. A peça deslizou por seus quadris, caindo sobre seus
pés calçados com botas. Desatou uma segunda anágua também. E
então, só por segurança, removeu a crinolina.
Sem as camadas de suporte, as saias de seda caíram em
dobras desestruturadas e se arrastaram pelo chão. Recolheu-as,
tirando-as do caminho enquanto pegava as anáguas e crinolina.
Sacudiu a areia de cada uma delas antes de dobrá-las com cuidado
em uma pequena pilha.
— Pode se virar agora — ela disse ao colocar o chapéu-boneca
sobre a pilha de roupas íntimas descartadas.
Justin moveu Hiran em um semicírculo e cavalgou até a beira
do caminho. O olhar vagou sobre ela com aprovação.
— Há muito menos de você, milady.
— Acredito que sim. Acabei de remover metade dos meus
alicerces. — Ela se obrigou a não corar. — Minhas saias vão se
transformar em um emaranhado terrível.
— Vou cuidar para que não aconteça. — Ele se abaixou para
ela, estendendo a mão grande e enluvada. Ele estava todo sério
agora. — Segure minha mão. E coloque o pé na minha bota.
Ela apertou a mão dele, sentindo-a se fechar com força ao
redor da sua. Ainda estava na trilha, a uma altura para alcançar a
bota sem muita dificuldade. Assim que colocou o pé em cima do
dele, ele a ergueu na frente do corpo com uma graça sem esforço,
sentando-a de lado na frente da sela.
Passou um dos braços ao redor de sua cintura, segurando-a
com um aperto de ferro. A outra mão agarrou as rédeas com a
habilidade fácil de alguém que fez carreira na cavalaria britânica.
O coração de Helena bateu forte com uma mistura de medo e
animação.
— Já fez isso antes?
— Não com uma dama.
Ela ofegou quando Hiran avançou.
Justin a segurou rápido contra a parede dura de seu peito.
— Você está segura.
— Sei que estou. — O que não fez nada para evitar que os
dedos dela apertassem seu braço.
Ele guiou Hiran ao longo da beira da água.
— Precisei carregar soldados feridos de vez em quando.
Embora eles geralmente não estivessem sentados. A maioria estava
inconsciente por causa dos ferimentos. Os pobres rapazes tiveram
que ser colocados na frente da sela como sacos de grãos.
— Que terrível. — Ela virou a cabeça para olhar para o rosto de
Justin, que encontrou seus olhos brevemente. — Foi durante a
revolta?
— Foi. — Ele voltou a olhar para frente. — Gostaria de ir mais
rápido?
Ela segurou seu braço com mais força.
— Você não vai me deixar cair?
— Nunca.
— Então, sim — respondeu.
Justin não deu nenhuma pista perceptível para Hiran. Ele era
um cavaleiro muito talentoso. Uma mudança sutil na sela, uma leve
pressão nas pernas, e Hiran saltou de uma caminhada para um
trote.
O pulso de Helena disparou. Ela se agarrou ao braço de Justin,
mas fiel à sua palavra, ele não a deixou cair. Na verdade, ela mal se
mexeu de sua posição na frente da sela.
Os passos de Hiran eram suaves como vidro, uma raridade em
um cavalo tão grande. A areia fofa se agitava sob seus cascos
enquanto ele corria, o mar se movendo e batendo ao lado deles. O
vento soprava as saias e os cabelos muito bem trançados de
Helena. Não sabia quando começou a sorrir, nem a rir. No momento
em que Justin fez Hiran reduzir para uma caminhada, ela estava
fazendo as duas coisas.
— Estou eufórica — disse, recuperando o fôlego.
O sorriso de Justin era amplo, e um pouco presunçoso.
— Você gostou.
— Gostei, sim.
— Eu sabia que você iria.
— Você teve melhor noção que eu. — Ela afrouxou o aperto em
seu braço. — Perdoe-me por agarrá-lo. Não consegui evitar.
— É para isso que estou aqui.
Ela riu.
— Talvez você mude de ideia amanhã, quando vir os
hematomas deixados pelos meus dedos.
Ele olhou para ela, com os olhos cinzentos repentinamente
solenes.
— E como estão os seus hematomas? Melhor, espero.
Seu sorriso esmaeceu. Foi um lembrete doloroso da noite em
que ele a resgatou do rebordo do penhasco. Era uma memória
vergonhosa, que ela desejou que os dois pudessem esquecer.
— Estão desaparecendo. — Helena manteve a voz leve. —
Todos os dias doem um pouco menos.
— Fico feliz. Não quero que você sinta dor.
— Nem eu quero que você sinta. — Ela deixou o olhar vagar
para o colarinho aberto da camisa. As queimaduras na base do
pescoço eram as mesmas que em sua mandíbula. Estavam
enrugadas e vermelhas, dispostas em linhas grossas e bem-
marcadas, uma se sobrepondo à outra. — Elas doem?
— Raramente.
— Como...?
— Um atiçador quente — disse, de forma brusca. — Eles o
esquentaram no fogo e, em seguida, me marcaram com ele.
Ela abaixou a cabeça.
— Ah, Justin. — Helena quis chorar pelo marido. — Como pôde
suportar?
— Eu tinha pouca escolha, minha querida.
— Sei disso, mas...
Ele apertou sua cintura.
— Agora, acabou. É parte do passado. Não penso muito sobre
o acontecido. Você também não deveria.
Hiran relinchou e sacudiu a cabeça.
— Ele acha que estamos perdendo tempo — Justin explicou.
Helena engoliu suas emoções. Se Justin não queria ficar
pensando em seu tempo na Índia, não tinha nada que forçá-lo a
isso. Ela se abaixou para dar uma coçada no pescoço de Hiran.
— Ele gosta de correr, não é?
— Não há nada de que ele goste mais.
— Todos os seus passos são tão suaves quanto o trote?
— O galope dele não é ruim.
O coração dela disparou.
— Podemos...?
Mas ela não precisava perguntar. Justin já estava incentivando
Hiran a avançar, primeiro a um trote e depois a um galope.
O ritmo lhe roubou o fôlego. Ela nunca tinha andado tão rápido
em um cavalo. Era como voar. Como se os cascos nunca tocassem
o chão. A areia e o mar passaram por eles em um borrão de cores.
Ela se perguntou se era assim que os jóqueis se sentiam quando
corriam em Newmarket e em Epsom.
Depois de um tempo, Justin reduziu a velocidade de Hiran de
volta para um trote. Eles galoparam por toda a extensão da praia.
Os penhascos traiçoeiros de Abbot’s Holcombe surgiam à frente, as
ondas espumando com violência na base deles em meio a uma
sem-fim de pedras.
Enquanto Hiran diminuía o passo, Helena olhou para os
penhascos.
Podia sentir Justin olhar para eles também.
— Em que altura Neville estava quando caiu? — ela perguntou.
— Estava quase na base. A rocha desmoronou embaixo dele.
Ele bateu a cabeça em uma das pedras e afundou direto no mar. Foi
o espaço de um instante. Em um momento ele estava lá e no
próximo... tinha sido levado pelas ondas.
— Foi você quem foi atrás dele?
Justin assentiu com rigidez.
— Achei que poderia puxá-lo para a praia, mas o mar estava
muito agitado. Não consegui encontrá-lo na água. Foi o Archer
quem finalmente o resgatou. Ele salvou a vida dele.
O coração de Helena doeu por Neville. Por todos eles.
— Você não é responsável pelo que aconteceu. Sabe disso,
não sabe?
— Você acha que não?
— Nenhum de vocês foi responsável. Vocês eram apenas
meninos. Nunca deveriam ter permissão para escalar os penhascos.
Qualquer tolo poderia ver o quanto era perigoso. Um adulto deveria
ter impedido vocês. Alguém do orfanato. O acidente de Neville é
culpa dos outros, não sua.
— Ninguém poderia ter nos impedido. Nem mesmo se tivessem
tentado. Éramos muito determinados.
— Mas por quê? — ela perguntou. — Ainda não entendo.
— Queríamos chegar à abadia. Era o caminho mais rápido.
Ela virou a cabeça e olhou nos olhos dele.
— Tinha algo a ver com sir Oswald? Ele parece estar ligado a
tudo de alguma forma.
— Ele era o dono da abadia. Eu não lhe falei?
— É mais do que isso. O sr. Boothroyd disse que foi secretário
de sir Oswald. Ele não explicou como começou a trabalhar para
você. Disse que a história não era dele para contar. Como se tudo
fosse algum tipo de segredo.
Justin ficou em silêncio.
— Prometemos um ao outro que não haveria mais segredos —
ela lhe lembrou.
Seus músculos se retesaram. Hiran reagiu ao dar um passo
enviesado em algo parecido com um trote ligeiramente instável.
Distraído, Justin o trouxe de volta para uma caminhada.
— O que você gostaria de saber?
— Uma série de coisas — ela respondeu. — Para começar, por
que você e seus amigos estavam tão motivados a visitar a abadia?
Você disse que não tinha nada a ver com as histórias de tesouros
enterrados. Creio que teve a ver com sir Oswald. Sei que você não
gostava do homem.
— Você acha que eu não gostava dele? — Justin deu uma
risada incrédula. — Helena, eu não desgostava de Oswald
Bannister. Eu o odiava. Todos nós o odiávamos. Eu, Finchley,
Neville e Archer. Nós o odiávamos tanto que o levamos à morte.

◆◆◆

Justin estava feliz por não poder ver o rosto de Helena. Já era
ruim o suficiente sentir o choque percorrer seu corpo. Ele não
precisava vê-lo sendo registrado em seus olhos.
Guiou Hiran pela praia em um passo calmo. Helena estava
meio virada na frente dele, como se estivesse realmente montada
em uma sela lateral. Suas costas se ajustavam de modo confortável
em seu peito, o cabelo trançado era como um tormento sedoso sob
seu queixo. Só precisaria inclinar a cabeça para poder acariciar a
curva suave de sua bochecha. Poderia capturar sua boca com a
dele.
Deus sabia que ele queria. Memórias dos beijos que eles
trocaram no Stanhope Hotel haviam se intrometido em seus
pensamentos com muita frequência ultimamente. A sensação dela
em seus braços. O gosto dela em seus lábios. A maneira como ela
olhava para ele enquanto seus dedos se entrelaçavam.
Se pudesse recriar aqueles momentos... reacender a ternura
entre os dois... talvez ela se esquecesse de seu passado. Cessaria
suas perguntas sobre Oswald Bannister e eles poderiam contemplar
algum tipo de futuro juntos.
E talvez Hiran pudesse criar asas e voar.
— O que você quer dizer com o levou à morte? — ela
perguntou. — Vocês não...
— Não. Nós não o matamos. Embora você deva saber que há
quem pense que sim. Ou, mais precisamente, que eu o matei.
— A Bess me disse que ele caiu do penhasco. E que houve um
inquérito.
— Ela disse? — Justin não ficou totalmente surpreso. Não
havia muitos na aldeia que perderiam a chance de informar sua
futura esposa sobre sua reputação de covarde cruel. — Sir Oswald
sempre foi um sujeito desagradável. Não muito depois de eu voltar
da Índia, ele bebeu até o entorpecimento e cambaleou pelos
penhascos fora da abadia. As pessoas ainda gostam de especular
sobre isso.
Helena virou a cabeça. Seus olhos castanho-esverdeados
estavam brandos de preocupação.
— Por que você o odiava, Justin? Ele o machucou de alguma
forma?
Uma risada amarga borbulhou no peito de Justin. Machucá-lo?
Bom Deus.
Ele freou Hiran e parou perto da água. Colocou Helena no chão
e apeou. Ela esperou, com as saias caídas penduradas em um
braço, enquanto ele pegava as rédeas.
— Oswald Bannister era um bruto, um valentão — ele disse. —
Não tinha um único resquício de honra.
— Muitos cavalheiros não têm. Sei muito bem disso. Não se
pode odiar a todos.
— Sim, bem... é bastante diferente quando o cavalheiro em
questão é o pai de alguém.
Helena arqueou as sobrancelhas.
— Sir Oswald Bannister era seu pai?
— Creio que sim. — Justin passou a mão pela nuca. — Meu e,
possivelmente, de Alex Archer. Provavelmente de nós dois. Não sei.
Ela se afastou dele.
— Quem era a sua mãe? Ela era... — Sua voz se transformou
em um sussurro escandalizado. — Era a amante dele?
— Nada tão refinado. — Justin não conseguia conter a pontada
de raiva em suas palavras. A última coisa que queria era confessar
suas origens vergonhosas para a filha de um conde. Não quando
aquela dama era sua esposa. Não quando ele estava começando a
gostar dela muito, muito mesmo.
Sabia que ela nunca voltaria a olhar para ele da mesma
maneira.
— Minha mãe era a copeira de quinze anos que trabalhava
para ele — explicou. — Sir Oswald abusava regularmente de suas
criadas. Tanto é verdade que o orfanato em Abbot’s Holcombe
estava sob seu patrocínio. Era um lugar conveniente para descartar
seus bastardos.
O semblante de Helena ficou pálido como um pergaminho. Sem
dúvida, foi a coisa mais vil e desprezível que ela ouviu em toda a
sua vida.
— Perdoe-me — ele falou com rispidez. — Não é o tipo de
coisa que se fala na frente de uma dama, é? Mais um falha que
você pode atribuir à minha falta de educação.
Ela não pareceu registrar seu pedido de desculpas.
— O que foi feito de sua mãe?
Ele encolheu os ombros.
— Era só uma criança e ficou feliz por se livrar de um fardo
desagradável. É provável que ela tenha procurado emprego em um
lugar de maior respeito. Ou isso ou foi enviada para uma bastilha de
pobres. Nunca descobri o que aconteceu foi feito dela. Não
consegui nem descobrir seu nome completo. O orfanato não
mantinha registros muito bons, sabe? O proprietário era um dos
comparsas de sir Oswald. Ele nos considerava pouco melhor que
vermes.
Helena não disse nada. Apenas olhou para ele, com as
sobrancelhas cor de mogno unidas em uma linha elegante. Ele não
tinha a menor ideia do que ela estava pensando ou sentindo.
Ele acariciou o pescoço de Hiran. Cada instinto lhe dizia para
parar de falar. Para guardar o resto da história sórdida para si
mesmo. Nada de bom poderia advir de compartilhá-la. Mas algo
bem lá no fundo o incentivou a continuar. Ele queria, precisava, que
ela o conhecesse por quem ele realmente era.
— A primeira vez que nos encontramos com sir Oswald, ele
estava cavalgando através dos portões do orfanato, montado no
cavalo mais bonito que já tínhamos visto. Suas roupas eram muito
elegantes. Ainda me lembro do brilho de suas botas. Engraxada
com algo feito com champanhe, imaginamos. Algo especial
preparado por seu valete. — Justin abriu um sorriso irônico. — Ele
passou por nós como se fosse da realeza. Pode imaginar o efeito
que uma figura tão arrojada teria na imaginação de quatro garotos.
Neville achou que ele fosse o rei. Mas eu, idiota patético que era,
esperava que ele pudesse ser meu pai.
— Porque você se parecia com ele?
— Sim, de forma geral. Ele tinha cabelos pretos e olhos azul-
acinzentados. E era alto, embora eu suponha que todo homem
pareça alto para um menino. Mas eu estaria mentindo se dissesse
que esse é o motivo. A verdade é que sempre sonhei que estava
destinado a coisas melhores. Que era um herdeiro perdido ou algo
assim. Nunca consegui aceitar as minhas circunstâncias. Devia ser
um engano, eu pensava. Uma confusão de uma parteira local ou
alguma trama de vingança cruel que resultou em meu roubo de
meus pais abastados e no meu esconderijo em um orfanato. — Ele
deu uma risada sem humor. — Eu li muitas histórias
sensacionalistas quando menino.
Helena não pareceu achar graça nenhuma.
— Como você descobriu quem ele era?
— Nós o seguimos. Escutamos sua conversa com o sr.
Cheevers, o sujeito que dirigia o orfanato. Mais tarde, Finchley
examinou os arquivos no escritório do orfanato. Não havia muito a
ser encontrado lá, mas havia o suficiente para confirmar nossas
suspeitas. Na semana seguinte, descemos os penhascos de Abbot’s
Holcombe. Um pescador mantinha um velho barco amarrado em
uma enseada próxima. Nós o usamos para remar até a abadia.
Hiran escolheu aquele momento para cutucá-lo no ombro com o
focinho.
— Ele está ficando impaciente para comer a sua aveia — Justin
avisou. — É melhor começarmos a voltar.
Ele lhe ofereceu o braço, e ela o aceitou. Hiran caminhava ao
lado deles com rédea solta.
— Por que vocês foram à abadia? — Helena perguntou. —
Porque queriam vê-lo?
— Eu queria conhecê-lo. Explicar a ele quem eu era. Pensei
que se ele me conhecesse adequadamente, se pudesse ver o
quanto eu era inteligente e capaz, perceberia que eu não pertencia
ao orfanato.
A mão dela apertou o seu braço.
— O que aconteceu?
— Basta dizer que não foi a volta ao lar que eu havia
imaginado. Sir Oswald estava no jardim, cuidando de suas roseiras.
Ele não admitiu ter me gerado, nem a qualquer um de nós. Nem
mesmo nos permitiu entrar na casa. Quando o pressionamos para
saber de nossas mães, ele recorreu a vulgaridades e ofensas.
Acabou amaldiçoando a todos nós e nos expulsou da propriedade.
— A resposta mordaz de sir Oswald à mera sugestão de que Justin,
ou qualquer um dos órfãos, pudesse vir e ficar na abadia ecoou na
mente de Justin.
Está louco? Acha que eu deixaria o fedelho bastardo de alguma
copeira meretriz morar nesta casa? Você não é adequado para
meus estábulos, rapaz.
— Mas você continuou voltando — Helena concluiu.
— Sim.
— Com que propósito?
— No início? Achamos que poderíamos persuadi-lo a se
acostumar conosco. Não funcionou bem assim.
Justin se absteve de entrar em detalhes. Não havia sentido em
contar a Helena que sir Oswald havia espancado Archer na visita
seguinte. Nem que, na terceira, ele apontou uma pistola para Justin
em uma fúria bêbada.
— Depois disso, começamos a aparecer puramente por
despeito. Só de nos ver, sir Oswald se irritava como nada mais.
Brincávamos em sua praia e fuçávamos nos prédios externos.
Cavávamos buracos em seus jardins ou nos esgueirávamos por
uma janela entreaberta e substituíamos o licor por água do mar.
Travessuras infantis estúpidas. — Justin olhou para a Abadia de
Greyfriar assomando à distância. — Tudo se intensificou a partir de
então.
— Meu Deus — Helena murmurou. — Ele poderia mandar
prendê-los. Ou pior. Não consigo imaginar por que ele não fez isso.
— Boothroyd o convenceu a desistir.
Ela franziu a testa.
— Não pensei que o sr. Boothroyd serviu como secretário de sir
Oswald por tanto tempo.
— Ele veio trabalhar na Abadia de Greyfriar um ou dois anos
antes.
— E agora ele trabalha para você — ela concluiu. — Acho isso
muito estranho.
Justin podia imaginar que fosse o caso. Para qualquer um que
conhecesse a essência do caráter de Boothroyd, no entanto, fazia
todo o sentido.
— Ele se correspondeu comigo e com Finchley ao longo dos
anos. Ele nos aconselhou sobre investimentos e coisas do gênero.
Boothroyd tinha consciência, entende? Ele era um homem decente;
um criado leal à procura de um senhor digno. Não demorou muito
para ele perceber o tipo de homem que sir Oswald era.
— Mesmo assim, permaneceu a serviço dele.
— Um fato que ele lamenta até hoje. Pode se dizer que
trabalhar para mim é sua penitência. Deus sabe que é um trabalho
bastante ingrato.
— Ele é fiel a você —Helena concedeu. — Mas isso dificilmente
o desculpa por não ter feito nada quando você era criança.
— Não o julgue com muita severidade. Depois do acidente de
Neville, foi Boothroyd quem fez arranjos para que eu, Finchley e
Archer virássemos aprendizes. Ele sabia que era a única maneira
de se livrar de nós. — Justin fez uma pausa, acrescentando: —
Resolver problemas é a habilidade particular de Boothroyd.
— Ele parece ter falhado neste caso. Você está aqui agora, não
é? Você é o dono da abadia.
— Verdade, mas nos manteve longe de problemas por um
tempo. Com Finchley indo para Londres e Neville ferido, éramos
apenas Archer e eu. E então, um dia, Archer se foi. Ele rompeu seu
contrato de aprendiz. Desapareceu sem dizer uma única palavra.
Não consegui encontrar nenhum vestígio dele em qualquer lugar.
— Foi quando você se juntou ao exército? — Helena perguntou.
Ele assentiu.
— Você deve ter se saído muito bem lá.
— Bem o bastante. — Ele sempre esteve disposto a se colocar
em perigo. A assumir riscos extraordinários. Alguns o chamavam de
heroico. A verdade era que, no início, ele simplesmente não se
importava se viveria ou morreria. Como resultado, ganhou o respeito
de seus superiores, e subiu rapidamente na hierarquia dos homens
alistados.
— Como você ganhou sua capitania?
— Uma promoção de campo durante os primeiros dias da
rebelião.
— E sir Oswald?
Justin hesitou. Não era uma história agradável.
— Fui vê-lo uma última vez antes de partir para a Índia. Foi a
única ocasião em que o confrontei sozinho. Ficamos parados, um
encarando o outro no topo da estrada. Ele esteve bebendo.
— Que memória boa a sua.
— Dificilmente eu poderia esquecer. Foi o dia em que ele
admitiu que eu era seu filho. Ele disse algumas coisas
desagradáveis sobre minha mãe e depois riu. Falou que ninguém
me queria. Que eu não era nada, nem para ele nem para ninguém.
Que eu nunca seria. Foi quando prometi a ele... — Justin se
interrompeu.
A lembrança deixou um gosto amargo como veneno em sua
boca. Nunca antes, nem mesmo em seus dias mais sombrios no
orfanato, ele se lembrou de ter se sentido tão sozinho. Tão
indesejado. Tão zangado.
— O que você prometeu? — Helena perguntou baixinho.
Justin olhou para ela.
— Que eu voltaria a Devon um dia. E que, quando voltasse,
não me limitaria a tirar a Abadia de Greyfriar dele. Eu tiraria tudo.
Capítulo Quinze

A cabeça de Helena dava voltas. Ela passou o resto da manhã


sozinha. Precisava de tempo para pensar. Para dar sentido a tudo.
Precisava tomar uma decisão quanto a seu futuro.
Algo sério assim precisaria de reflexão, e não era pouca. O
assunto a deixava inquieta. Precisava se movimentar. Foi para o
quarto e arrumou suas roupas. A roupa íntima precisava ser lavada.
Quanto aos vestidos...
Ergueu o outro vestido de seda cinza contra a luz, examinou os
amarrotados do tecido e as manchas no corpete e na saia. Apenas
poeira. Um resquício de ontem, de sua caminhada na chuva e de
seu encontro imprudente com as roupas enlameadas de Justin.
— Gin — a sra. Standish disse quando chegou para levar a
roupa para lavar. — Se sobrar algum depois que a sra. Whitlock
tomar a sua cota.
Helena lançou um olhar questionador à governanta.
— Gin?
A sra. Standish colocou as anáguas sujas de Helena sobre o
braço.
— Uma mistura fervente de gim, sabonete amaciante e mel.
Vou passar sobre as manchas. Depois de um pouco umedecida, vou
dar uma boa esfregada na seda. — Ela semicerrou os olhos para o
vestido de seda cinza que Helena estava usando. — Essas
manchas serão mais difíceis.
Helena olhou para suas saias. Entre amarrotados e crinolina,
viu o que pareciam ser manchas de óleo.
— A senhora consegue tirá-las?
— Elas vão precisar de argila branca, milady. Ou giz francês. —
A sra. Standish esperou Helena despir o corpete e a saia. — Não
sou uma criada pessoal, senhora.
— De fato, não é. — Helena entregou o vestido à governanta.
— Obrigada, sra. Standish.
Não havia muito sentido em explicar por que, no momento, ela
não tinha uma criada pessoal, e tal explicação não seria necessária.
A sra. Standish era o tipo de criada que pensaria menos dela por
dar desculpas. Ela só melhorou o comportamento com Helena
quando ouviu Boothroyd se referir a ela como “milady”. A mulher
esperava uma certa dose de desdém aristocrático.
Helena não era assim. Nunca foi altiva com os criados. Eles
podiam não ser seus amigos, nem sua família, mas, na ausência de
sua mãe, os funcionários da casa da família em Hampshire
cuidaram dela. A cozinheira a estragou com chocolate e biscoitos na
cozinha. E a governanta havia cuidado dela como uma galinha com
seus pintinhos.
Nunca desprezaria Justin por causa de sua ascendência. O fato
de a mãe dele ter sido copeira na casa de sir Oswald a incomodava,
era verdade, mas não por se preocupar com questões de riqueza,
posição e educação. A questão a incomodava porque incomodava a
Justin. Ficara claro que as circunstâncias do nascimento eram uma
fonte de dor para ele.
Pareceu desaconselhável oferecer-lhe palavras de conforto.
Justin não era o tipo de cavalheiro que apreciaria a piedade de uma
dama. Mas quando ele lhe contou sobre a mãe, suas esperanças e
sonhos de infância, foi o que sentiu.
A criação deles não poderia ter sido mais diferente. Ela não era
órfã e certamente não era pobre, mas conseguia entender a solidão;
já havia tido a sua cota dela. E depois que Giles partiu para a Índia...
Ela passou muito tempo com o humor apático e taciturno. Não
era de se admirar as pessoas terem estado tão dispostas a acreditar
que havia herdado a melancolia da mãe.
Estariam igualmente dispostas a acreditar que ela estava bem?
Se a vissem em Londres, indo ao teatro ou dançando em um baile,
seria o suficiente para convencê-las?
A mente conjurou a imagem dela valsando com Justin em um
salão de baile iluminado a gás. Ela, com um vestido sem mangas,
com o decote baixo debruado com renda Honiton, e ele, com um
fraque preto e elegante, girando pela pista de dança ao som de uma
orquestra composta por vinte músicos.
Um devaneio romântico, nada mais. Mas tocou seu coração.
Sempre foi um pouco reservada com as pessoas. Não era da
sua natureza rir e flertar. No entanto já sentira muito prazer com os
entretenimentos da temporada. Ela ia ao teatro, tocava o pianoforte
em recitais e dançava em salões de baile lotados. Era o que
esperavam dela. E nunca se importou. Sempre teve certeza de si
mesma e de seu lugar no mundo.
Se ao menos pudesse voltar a Londres com Justin e ser como
era antes. Confiante e despreocupada. Havia tantas coisas que
gostaria de mostrar a ele. Tanto que desejava vivenciar com ele ao
seu lado.
Por que deveria ser um sonho? Por que esses prazeres não
poderiam ser reais?
Bastaria a ela um pouco de coragem, Justin havia dito.
Coragem suficiente para enfrentar seu tio e o sr. Glyde. Coragem
suficiente para falar com o homem do jornal. Para arriscar sua
reputação.
Uma chance de felicidade, de liberdade, valia um risco tão
ultrajante?
Ela colocou o único vestido que lhe restava e, depois de ajeitar
as saias sobre a crinolina e ajustar a fita de veludo cor de ameixa na
cintura, desceu as escadas. Encontrou Justin na biblioteca ditando
uma carta para o sr. Boothroyd.
Ele havia trocado suas roupas de montaria por calça de lã
preta, uma camisa limpa de linho branco e colete preto. A
sobrecasaca estava jogada nas costas de uma cadeira ali perto.
Como se tivesse removido a peça enquanto trabalhava.
Justin não a ouviu entrar, mas quando ela seguiu até a janela,
ele virou a cabeça e a olhou.
— Por favor, não se incomode comigo. — Ela pegou o exemplar
de David Copperfield que estava lendo no dia anterior e se
acomodou no vão da janela, com as pernas dobradas debaixo das
saias.
Depois de um tempo considerável, Justin voltou a ditar a carta.
Sua voz tinha um tom barítono profundo e rico. As linhas do livro
borraram diante dela enquanto o ouvia. O teor de suas palavras não
era importante. Algo envolvendo um conselho administrativo e uma
porcentagem de ações da ferrovia. Mas não importava o que ele
dizia nem para quem. Era o seu tom que a acalmava. O mesmo tom
com que recitou os votos de casamento para ela.
— O sr. Fothergill vai exigir uma cópia disso — ele avisou ao
secretário. — E providencie para que o advogado do sr. St. John
receba uma também.
Ela olhou pela janela. A chuva tinha parado de vez, ou assim
parecia. Quantos dias seriam necessários para a estrada do
penhasco ficar transitável?
E quantos dias antes de o sr. Glyde voltar a aparecer?
Foi atingida por um medo que já lhe era familiar. Tentou reprimi-
lo. Rechaçá-lo com a fria racionalidade. Estava casada agora. Justin
nunca deixaria ninguém a levar dali. Ele lhe prometera.
Mesmo assim, não conseguia deixar de se preocupar.
Não havia garantia de que o plano do sr. Finchley teria êxito. No
final, o custo para sua reputação, e para sua paz de espírito, poderia
ser em vão. Havia o risco de ela ser condenada ao ostracismo. Ou
pior. O tio poderia assumir o controle sobre ela novamente e
trancafiá-la em algum lugar.
Mas qual era a alternativa? Passar a vida com medo do tio e do
sr. Glyde? Espreitando janelas? Nunca sabendo se perderia a
segurança de um dia para o outro?
Valia a pena levar a vida assim?
Retomou a leitura do livro. Os nervos estavam à flor da pele,
mas havia se determinado a esquecer os problemas, mesmo que
apenas por um tempo.
Vários capítulos depois, ouviu as portas da biblioteca se
fechando atrás do sr. Boothroyd. Marcou a página em que havia
parado e deixou o livro de lado quando Justin parou na sua frente.
A expressão do marido era cautelosa.
— Está gostando do seu romance?
— Muito — respondeu. — Confesso que já o li antes.
— Claro que sim. — Ele encostou o ombro na moldura da
janela. — Você parece muito confortável aqui.
— Espero não estar atrapalhando seu trabalho.
— Nem um pouco. Embora eu ache que deva ser tedioso para
você. Presa aqui nesta casa, sem nada para fazer a não ser ler
livros que você já leu.
— Não estou entediada.
— Nem mesmo depois da minha ladainha sobre a North Devon
Railway?
Ela sorriu.
— Gosto de ouvir a sua voz.
Quando ela fez a admissão, um leve rubor apareceu no
pescoço de Justin. Ela podia ver a cor ir subindo pelo colarinho da
camisa e o plastrão preto bem amarrado. Ele pigarreou.
— Eu não tinha percebido que era algo marcante. — O
constrangimento de Justin só serviu para alimentar o dela. Helena
sentiu as bochechas esquentarem.
— Vai me provocar sem piedade agora, não é?
— Ficarei extremamente tentado. — Ele se sentou ao lado da
esposa. A bainha da saia roçou a coxa dele. Ele deu um puxão
suave no tecido cor de rosa. — Este vestido de novo.
— É o único que está limpo. A sra. Standish está lavando os
outros dois que eu trouxe comigo. Ela vai tratar as manchas comuns
com gim.
— Temos algum?
— Ela não tem certeza. Disse que a sra. Whitlock pode ter
bebido tudo.
— É verdade. — Os olhos encontraram os dela. Não havia
humor neles. — Helena... sobre aquelas coisas que eu te disse na
praia ...
— Sim?
— Imploro seu perdão por falar de forma tão franca. Não foi
uma boa atitude.
— Que disparate. Eu perguntei sobre o seu passado. Quero
saber. Naturalmente, não me importei por você me contar.
— Você desapareceu depois.
— Porque eu precisava de tempo para pensar — disse ela. —
O que eu fiz.
— E?
— Não foi fácil para você compartilhar tudo comigo, foi? A
verdade sobre sir Oswald, sua mãe e seus amigos do orfanato.
— Certamente há temas mais agradáveis.
Ela desenrolou as pernas e sacudiu as saias.
— Sim, bem... isso me fez pensar sobre a nossa situação.
Sobre a minha situação. O que é egoísmo, na verdade. Mas
acontece que nossas vidas estão inextricavelmente entrelaçadas
agora. — Ela respirou fundo. — O que estou tentando dizer é que
decidi que, sim, irei para Londres com você. Vou falar com o
cavalheiro do jornal.
Justin ficou em silêncio por um momento. Sua expressão era
solene, os olhos cinzentos encaravam os dela com maior
intensidade que o normal.
— O que a fez mudar de ideia?
— Quando fiquei sabendo da sua perseverança, do quanto
você tem sido corajoso, isso me fez me sentir corajosa também.
Mas não sou corajosa, sou? Estou morrendo de medo de voltar.
Mas vou. Só que... talvez eu agarre seu braço com ainda mais força
do que quando estávamos montando Hiran.
Ele segurou a mão dela, envolvendo-a no aperto forte de seus
dedos. Sentiu uma agitação no ventre quando ele a levou aos lábios
e beijou os seus dedos.
— Por que fez isso? — ela perguntou.
— Por confiar em mim. Apesar de tudo.
Ela apertou a mão dele.
— Eu confio em você, Justin. Com todo o meu coração.

◆◆◆

Nos dois dias seguintes, à medida que as estradas secavam, os


preparativos para a viagem a Londres começaram. Arranjos
financeiros foram feitos, roupas foram lavadas e empacotadas, e
Boothroyd e Neville receberam instruções sobre como administrar
as coisas na ausência de Justin.
Na manhã da partida, Danvers conduziu a carruagem para a
entrada da abadia.
— Iremos para a estação ferroviária de Abbot’s Holcombe —
Justin explicou ao colocar Helena no coche. Ele subiu atrás dela,
acomodando-se no assento oposto. — É mais perto do que irmos de
carruagem até Barnstaple.
Helena olhou pela janela. Não parecia estar totalmente atenta
ao que ele estava dizendo. Seu rosto estava pálido e as mãos
enluvadas, entrelaçadas no colo.
Danvers deu aos cavalos a ordem para andarem. A carruagem
antiquada avançou com um solavanco.
— Podemos telegrafar a Finchley para avisá-lo de que estamos
a caminho — Justin continuou. — Sem dúvida, ele já encontrou uma
casa para ficarmos durante a nossa estadia.
— Ele estava certo assim de que eu aceitaria ir?
— Finchley sempre faz planos para cada possibilidade. Ele é
muito parecido com Boothroyd nesse aspecto.
Helena ficou quieta por um momento. Sua expressão estava
sombria.
— Uma casa em uma rua da moda custa caro. E ainda não
sabemos se o banco vai liberar parte dos meus fundos.
— Deixe que eu me preocupe com as despesas.
Ela lhe lançou um olhar sofrido.
— Haverá muitas.
Justin sabia muito bem disso. Boothroyd tinha sido sutil ao lhe
lembrar desse fato nos últimos dias.
— Não tem problema. Eu e o Finchley temos tudo sob controle.
Ou assim Justin esperava.
Ele sabia muito pouco sobre a sociedade elegante. Sabia ainda
menos sobre a lei. Na verdade, meio que esperava que uma dúzia
de advogados do conde os saudassem em sua chegada a Londres
e apresentassem os documentos legais que não só dissolveriam
seu casamento com Helena, mas daria a eles autoridade para levá-
la embora. Era fácil para ele imaginar como seria ficar parado
olhando, sem poder fazer nada para ajudá-la.
Já havia estado nessa posição antes.
Mas ali não era Cawnpore. Era a Inglaterra. E Finchley
conhecia a lei. O homem estava confiante no plano que havia
proposto. Boothroyd também o aprovou. Tudo o que Justin
precisava fazer era executá-lo. O que poderia dar errado?
Tudo, pensou, desalentado.
Mas não seria bom ficar repassando os piores cenários. Não
quando os nervos de Helena já estavam tensos como uma corda de
arco.
Fez um esforço para direcionar a conversa para assuntos mais
triviais, mantendo um palavrório constante, e deveras incomum, até
chegarem à estação Abbot’s Holcombe. Depois de desembarcarem
da carruagem, pararam no escritório de reservas para comprar duas
passagens de primeira classe. Fiel à sua palavra, Helena agarrou-se
com força ao braço dele. Ela estava assustada e se empenhando
para não demonstrar.
— Temos meia hora até o trem chegar — Justin avisou. —
Gostaria de parar na banca de livros? Eles vendem folhetins. Você
poderia comprar um para a viagem.
Ela balançou a cabeça.
— Não conseguiria ler uma palavra. Estou muito nervosa.
Ele cobriu a mão enluvada dela com a sua, dando-lhe um
aperto reconfortante.
O trem chegou às onze e dez em uma cacofonia de metal
estridente, fumaça e vapor. Uma multidão de passageiros
desembarcou, senhoras e senhores de todos os tipos corriam de um
lado para o outro. Não estava nem perto de estar lotado como a
King’s Cross ou a Waterloo Station, em Londres, mas era muito
mais movimentado do que Justin havia previsto. Pela primeira vez,
estava grato por sua altura imponente. Foi fácil chamar a atenção de
um dos carregadores e requisitou que ele carregasse a bagagem
para o trem.
— Aquele é o nosso vagão, bem ali — ele murmurou para
Helena. — Podemos embarcar em um instante. Você se sentirá
mais à vontade quando nos acomodarmos em nossos assentos.
Eles desceram a plataforma em direção ao vagão de primeira
classe. Um grupo de senhoras estava amontoado ali perto, falando
alto entre si. Quando Justin e Helena passaram, viu uma delas se
destacar do grupo.
— Será? — ela exclamou. — Meu Deus. Olhe, mamãe. É
Thornhill. E aquela deve ser sua noiva!
Por um instante, o tempo parou. Justin voltou a ser um menino
órfão, um jovem aprendiz, ouvindo as vozes estridentes da sra. Bray
e da sua filha enquanto o insultavam.
Mas as duas senhoras que se aproximaram não se pareciam
em nada com as de sua memória.
O cabelo da sra. Bray ficara grisalho e sua figura robusta
ganhou mais uns quilos. Ela estava vestida de preto, com um
broche de azeviche preso ao seu pescoço flácido. Cecilia Bray
também estava vestida de preto, com as saias de tafetá esticadas
sobre uma enorme crinolina de arame. Ela ainda tinha os cachos
dourados e os lábios carnudos que a haviam marcado como a
beldade da aldeia em sua juventude; entretanto, ao lado de Helena,
tais encantos pareciam decididamente de segunda categoria.
Não havia como evitar as apresentações.
— Helena — ele falou —, posso lhe apresentar à sra. Bray e
sua filha? Fui aprendiz do marido da sra. Bray por um tempo,
quando menino. Senhora? Permita-me apresentar...
— Sua esposa — a sra. Bray o interrompeu. — Nós sabemos
tudo sobre o seu casamento, senhor. — Seus olhos penetrantes se
fixaram em Helena, examinando-a com uma curiosidade
indisfarçável. — A senhora é filha de um conde, não é? Não sei
como conheceu Thornhill.
A srta. Bray deu uma risadinha.
— Ora, mamãe. Onde estão suas maneiras? — Ela se virou
para Helena e, para espanto de Justin, fez uma reverência profunda.
— Estou honrada, sua senhoria.
Helena respondeu ao gesto ridículo com uma sutil inclinação de
sua cabeça.
— Srta. Bray.
— Oh, não. — Ela riu novamente. — Não sou srta. Bray há
anos. Sou a sra. Pettypiece agora. Meu marido é dono da loja de
tecidos na Abercrombie Street. — Ela lançou um olhar frio para
Justin, acrescentando: — Ele é muito rico.
Justin não conhecia nenhum comerciante com o nome
Pettypiece. Mesmo assim, sentiu um lampejo de pena do homem.
— Se ainda não foi às lojas aqui em Abbot’s Holcombe, Cecilia
terá prazer em acompanhá-la — a sra. Bray ofereceu. — A senhora
vai lamentar a falta da sociedade, morando na abadia. Está
morando na abadia, não está? Um lugar frio e úmido, passado há
muito de seus dias de glória. Não é uma residência adequada para
uma dama, como minha filha pode lhe dizer.
A sra. Pettypiece assentiu com vigor.
— As melhores pessoas nessas paragens vivem em Abbot’s
Holcombe — ela informou Helena. — Pode acreditar na minha
palavra. Já fui amiga da filha de um visconde. A srta. Elizabeth
Parker. A senhora a conhece, milady? Ela se movia nos melhores
círculos.
— Não tive o prazer — Helena respondeu.
— Humm. — A sra. Pettypiece tocou o queixo com o dedo. —
Deixe-me ver... Quem mais eu conheço da nobreza?
Justin semicerrou os olhos. Bom Deus. As mulheres Bray
sempre foram aduladoras assim?
— Se nos perdoarem, senhoras, temos um trem para pegar.
— Estão viajando na primeira classe? — a sra. Pettypiece
perguntou a Helena. — Esse é o vagão da primeira classe, não é?
— Primeira classe. — a sra. Bray estalou a língua. — Thornhill
sempre foi emproado. Quando vi o anúncio de seu casamento...
A atenção de Justin voltou-se para a sra. Bray.
— Que anúncio?
— Está no jornal desta manhã. — A sra. Pettypiece deu uma
risadinha, seus olhos se desviaram do rosto dele. — O senhor não
sabia?
Justin trocou um olhar com Helena.
— Finchley — ele falou baixinho.
Helena assentiu.
— Talvez devamos comprar um jornal? — Ela não precisou
pedir duas vezes. Depois de dar um breve adeus à sra. Bray e sua
filha, ele e Helena voltaram à banca de livros. Ele comprou uma
cópia do North Devon Post.
Helena se inclinou sobre o braço de Justin enquanto ele
folheava as páginas.
Os anúncios de nascimentos e casamentos, e o obituário
ficavam localizados na parte de trás.
— Aqui está. — Ele endireitou a página, segurando-a para que
os dois pudessem ler ao mesmo tempo.

No dia 27 de setembro, no Cartório de Registro Distrital em


Abbot’s Holcombe, na Burlington Street, Capitão Justin Thornhill, de
King’s Abbot, com Lady Helena Elaine Reynolds, filha do falecido
conde de Castleton, de Hampshire.

Helena recuou com uma risada breve e ansiosa.


— Você estava certo. O sr. Finchley é minucioso.
— Ele está se certificando de que tudo esteja correto. — Ele
franziu o cenho ao ler mais uma vez o anúncio de casamento. —
Está vendo aqui? Esta é uma reimpressão. O anúncio original
apareceu no Times há três dias.
Helena apertou seu antebraço.
— Meu tio lê o Times.
— Não será novidade para ele. Ele já soube de nosso
casamento pelo sr. Glyde.
Helena parecia preocupada, mas não havia tempo para discutir
o assunto. O chefe de estação já gritava o primeiro aviso para o
trem para Londres. Ao som de seu grito, eles começaram a se dirigir
ao vagão de primeira classe.
A sra. Bray e a filha ainda estavam de pé na plataforma. Justin
tirou o chapéu para elas ao passarem.
Sempre supôs que se as encontrasse novamente, sentiria a
mesma tempestade de emoção que sentia quando criança. A
mesma sensação de raiva impotente com a injustiça de sua
situação. Agora, na presença delas, era obrigado a reconhecer uma
dura verdade.
A velha mágoa com a forma como o trataram se foi. Até mesmo
o desejo que ele tinha quando menino, o profundo desejo de ser
incluído na família delas, havia se reduzido a nada. Eram apenas
duas mulheres tolas. Desconhecidas, na verdade. E ainda assim...
A raiva permanecia.
Estava relutante em deixar de lado. Cultivou os velhos
ressentimentos por muito tempo. Isso tinha sido seu farol desde a
infância. Seu ímpeto para se aprimorar, para acumular sua modesta
fortuna. Sem isso, tinha a sensação de que ficaria sem amarras.
Perdido em um grande poço de nada.
— Que par de mulheres peculiares — Helena comentou assim
que se acomodaram no trem.
O compartimento em que estavam era revestido de madeira
rica e escura. O chão era acarpetado e havia bagageiros instalados
acima dos assentos estofados. Era um luxo reservado para vagões
de primeira classe, e apenas em trens mais novos.
— Por peculiar, suponho que você queira dizer odiosas — ele
respondeu.
— Ora, eu jamais diria isso. — Uma risada reprimida vibrou em
sua voz. O som fez Justin sorrir.
Gostou de saber que conseguia fazê-la rir. Não se importou
muito com como conseguiu a façanha.
— Não é necessário. Eu mesmo falo.
Helena desamarrou as tiras do chapéu-boneca.
— Elas sempre foram desagradáveis assim?
— Confesso que pareciam mais na minha juventude. — Justin
colocou a cartola de castor na almofada do assento ao seu lado. —
Elas não olharam para mim, percebeu? Não se pudessem evitar.
— Pareciam bastante fascinadas com meu título honorífico.
— Estavam. Mas não foi só isso. — Justin passou a mão pelo
cabelo despenteado. À sua direita, cortinas de tecido elegantes com
puxadores de borla foram abertas para revelar as janelas recém-
lavadas. Podia ver seu reflexo no vidro. A visão lhe causou uma
careta. — São as cicatrizes de queimaduras.
— Disparates — Helena falou. — Quase não se notam. — Ela
tirou o chapéu. Seu cabelo estava repartido ao meio, a maior parte
presa em um coque enorme em sua nuca. Algumas mechas
enroladas se soltaram em suas têmporas e bochecha. Ela os alisou
de volta em seu penteado com uma mão experiente.
Justin apertou a própria mão ao lado do corpo. Ela era
dolorosamente encantadora; impregnando até as tarefas mais
comuns com uma elegância e feminilidade que faziam seu coração
bater mais rápido.
— Você as notou — ele disse. — No dia em que nos
conhecemos na King’s Abbot.
Ela fez um som desdenhoso.
— Por exatamente cinco segundos. Tais coisas desaparecem
quando se conhece a pessoa.
— É?
— Em minha experiência. — Ela endireitou as saias. — As
cicatrizes lhe incomodam muito?
— Às vezes, quando repuxam ou doem. Mas a aparência...
não. Nunca me importei muito com a aparência delas, até o dia em
que você chegou.
Helena ergueu as sobrancelhas.
— O que eu tenho a ver com isso?
— Eu temia que fossem desencorajá-la.
Ela lhe lançou um gentil olhar de reprovação.
— Estava com medo de me repelir. Foi o que você disse na
pousada.
Bom Deus, ele estava?
— Parece que foi há muito tempo.
Ela pousou as mãos no colo. Ainda estava de luvas. Eram feitas
de pelica fina, presas aos seus pulsos com botões delicados do
tamanho de uma pérola.
— Eu quase lhe contei a verdade naquele dia, sabia? Sobre o
meu tio e o sr. Glyde.
— Eu gostaria que você tivesse contado.
— E se eu tivesse... ainda teria se casado comigo?
Justin ficou imóvel. A pergunta pairou no ar entre eles por
vários e incômodos segundos. Não conseguiu mentir para ela.
— Não sei — admitiu.
Helena virou a cabeça para olhar pela janela. Ele não
conseguia mais ver os olhos dela. Não sabia se suas palavras a
magoaram.
— Quando tudo isso acabar — ela disse —, vou concordar com
a anulação, se for o que você deseja.
O coração dele parou. Mas que diabos? Ele se endireitou na
cadeira; o corpo ficou tenso, como se antecipasse um golpe.
— É o que você deseja?
— Não pensei muito à frente. Não consigo. Não com tudo o que
está adiante. Já estou sobrecarregada. — Sua garganta se contraiu
em um engolir visível. — Mas não precisa se preocupar, não vou
exigir que cumpra seus votos. Não quando foram dados sob falsos
pretextos. Se quiser dissolver nosso casamento, concordarei sem
fazer alardes. Devo muito a você.
A mandíbula dele endureceu. Raios. Era nisso em que ela
acreditava? Que estava em dívida com ele de alguma forma? Era
esse o motivo de sua bondade? De seus beijos?
— Você não me deve nada.
— Não? Você salvou minha vida em mais de uma ocasião.
Primeiro, ao se casar comigo e, depois, ao me resgatar dos
penhascos. — Ela olhou para ele brevemente. — Devo tudo a você,
Justin.
Ele franziu a testa.
— Não — disse, balançando a cabeça. — Não. Não é assim
que nada disso funciona. Não é uma tabulação de dívidas e
reembolsos. Publiquei um anúncio em busca de uma esposa, e você
respondeu. Não importa o que a levou a isso. Deixou de ter
importância no momento em que trocamos os votos em Abbot’s
Holcombe. Estamos casados agora, por lei, mesmo que não de fato.
Eu andaria sobre o fogo por você, e você não me deve nada.
Ela finalmente se afastou da janela.
— Porque sou sua esposa.
— Sim. E porque você é você. Uma dama que me faz sorrir.
Que é gentil, atenciosa e leal demais. Uma dama cuja mão se
encaixa perfeitamente na minha. E que retribui meus beijos com
plena doçura. Por todas essas razões, sim. Eu iria até os confins da
terra por você, Helena. Você deve saber disso.
Um rubor lhe cobriu desde o pescoço até a raiz dos cabelos.
Ela abaixou a cabeça.
— E-eu não sabia.
Justin puxou o nó do plastrão, reprimindo uma violenta onda de
constrangimento. Não estava acostumado a fazer discursos bonitos.
— Bem, agora sabe — falou, com seriedade. — Chega de
segredos, lembra-se?
— Eu me lembro. — Ela mexeu no dedo de uma de suas luvas.
— E gosto muito de você também, Justin. Exatamente pelos
mesmos motivos. Espero que possamos ser amigos.
— Nós somos amigos.
O rubor se aprofundou.
— Então espero que possamos ser mais.
Os olhares se encontraram, e Justin sentiu seu coração voltar à
vida. Ele batia muito rápido. De forma dolorosa.
— Nós somos — ele repetiu.
O trem escolheu aquele instante para entrar em movimento. Um
apito estridente cortou o ar e o bilheteiro gritou, suas palavras
ininteligíveis por causa do rugido do motor. O vagão sacudiu quando
o trem começou a se mover lentamente nos trilhos.
Os dedos de Helena se apertaram no colo.
Não havia como voltar agora. A jornada para Londres
começara.
Justin se levantou e se moveu para ocupar o assento vazio ao
lado dela.
— Você parece muito distante de repente. Aqui. Segure a
minha mão.
Ela lançou um olhar ansioso para fora da janela enquanto
encaixava a mão na dele. O trem ganhava velocidade, deixando
rapidamente a estação para trás.
— Sinto o que Daniel deve ter sentido ao entrar na cova dos
leões.
— Você está um pouco assustada, nada mais.
— Estou petrificada.
— Mas você não está sozinha. Longe disso. Você tem o
Finchley a seu lado. E a srta. Holloway.
— E você. — Ela apertou a mão dele.
— E a mim. — Ele devolveu o aperto firme de seus dedos. —
Pelo tempo que você precisar, da maneira que você quiser.
Capítulo Dezesseis

Londres, Inglaterra
Outubro de 1859

— Houve uma ligeira mudança de planos em relação aos


seus alojamentos — o sr. Finchley avisou, enquanto eles estavam
parados do lado de fora da Waterloo Station. O ponto de carruagens
era próximo, mas ele não chamou uma. Os três jamais caberiam
dentro de um tílburi. Em vez disso, ergueu a mão para um cocheiro
que estava sentado no poleiro de uma carruagem parada do outro
lado da rua.
O cocheiro deu a volta com o veículo e esperou que todos
entrassem. Havia palha molhada no chão da cabine e o interior tinha
um cheiro forte de perfume barato. Helena sentiu-se tentada a
pressionar o lenço no nariz.
— O que você quer dizer? — Justin perguntou. O marido estava
sentado ao lado dela no assento voltado para a frente.
O sr. Finchley se acomodou em frente a eles. Ele vestia um
belo sobretudo de lã e carregava uma bengala com ponta de prata.
Parecia muito mais na moda do que quando Helena o viu pela
última vez.
— Houve certa dificuldade em encontrar uma casa para alugar
— disse. — Mas não é nada com que se preocupar. Não quando há
uma residência perfeitamente adequada disponível na Half Moon
Street.
— Com Jenny? — O humor de Helena melhorou um pouco.
— Se for aceitável para todas as partes. — O sr. Finchley
trocou um olhar com Justin. — É um endereço elegante o suficiente
para nossos propósitos, e há muito espaço. Contratei uma pequena
equipe. Pessoas que conheço e em quem confio.
A ideia do sr. Finchley de uma pequena equipe era um casal de
meia-idade de rosto severo, que parecia ter passado por muitas
dificuldades. O marido deveria atuar como mordomo e lacaio, e a
esposa deveria desempenhar as funções de cozinheira e
governanta.
Helena mal os notou. Quando chegaram à casinha da Half
Moon Street, foi direto para Jenny e envolveu a amiga em um
abraço forte.
Jenny devolveu o gesto com igual intensidade.
— Você está cheirando a perfume barato — ela falou com uma
risada. — Mas a sua aparência está ótima.
Helena deu um passo para trás para examinar a amiga. Jenny
estava usando uma saia de popelina sem babados e uma basquine
de veludo preto. A casaquinha solta na altura da coxa se ajustava
em sua cintura e alargava-se sobre os quadris. Ela não parecia pior
por sua briga com tio Edward, mas Helena sabia que as aparências
enganavam.
— Você está bem?
Jenny sorriu.
— Ele não me tocou. Juro.
Helena não viu motivos para sorrir.
— Ele ter gritado e a expulsado é o suficiente.
— Admito que não foi agradável. Mas não sou feita de açúcar.
Você sabe. Além do mais, estava muito mais preocupada com você.
— Jenny estendeu a mão. — Suba comigo. Tenho algo para lhe
mostrar.
Helena olhou para Justin. Ele e o sr. Finchley estavam
conversando baixinho um com o outro, o semblante de ambos
estava sério. Ele encontrou o olhar dela e sorriu de leve.
— Vá em frente — ele falou.
— Você tem que pedir a permissão dele? — Jenny perguntou
em voz baixa enquanto subiam as escadas para o terceiro andar.
— Não. Claro que não. Mas tenho me agarrado terrivelmente a
ele desde que deixamos Devon. Estou surpresa que ele ainda tenha
circulação em seu braço.
— Gosta dele então?
— Gosto — Helena respondeu. — Um pouco demais.
— Não existe isso de gostar demais, sim? A menos que ele não
goste de você também. Nesse caso, você deve pelo menos tentar
parecer indiferente. — Jenny puxou Helena para um dos quartos. —
Olhe.
Era um quarto grande, com uma cama igualmente grande. Na
parede oposta, um espelho alto estava montado entre duas janelas
com cortinas de chita. À esquerda, havia um lampião a óleo com
cúpula de vidro decorada sobre uma cômoda de nogueira com
tampo de mármore. À direita, ficava uma penteadeira e um guarda-
roupa enorme, também de nogueira. As portas do guarda-roupa
estavam abertas, revelando uma profusão de musseline, lã fina e
seda.
O queixo de Helena caiu de espanto.
— Minhas roupas!
— Foram entregues ontem — Jenny falou. — Tudo, menos
suas joias. Lorde Castleton decidiu mantê-las em segurança.
— Mas como...? — Helena foi até o guarda-roupa, percorrendo
com o olhar as já conhecidas anáguas, corpetes e saias. Algumas
peças estavam penduradas em ganchos instalados na parte de trás
do guarda-roupa, outras estavam dobradas nas prateleiras, cada
item cuidadosamente separado por papel de seda. — Tio Edward
não pode ter permitido.
— Céus, não. Foi a sra. Butterfield quem arranjou tudo. Ela
mandou Martha e Maisy arrumarem tudo em baús enquanto seu tio
estava no clube. Dois dos lacaios carregaram os baús e os
colocaram em uma carruagem alugada.
A sra. Butterfield era governanta da residência do conde de
Castleton na Grosvenor Square há muitos anos. Ela serviu ao pai de
Helena, depois a seu irmão, e parecia feliz em continuar servindo ao
tio de Helena quando ele ascendeu ao título. A mulher nunca
indicou, nem por palavra nem por ação, que desaprovava as
crueldades de tio Edward.
— Eu não teria pensado que a sra. Butterfield correria tal risco
— Helena comentou. — Ela sempre foi leal ao meu tio.
— A sra. Butterfield é leal a todos os condes de Castleton. Mas
isso não equivale a ela não ter consciência.
Helena se absteve de comentar. Seus últimos meses morando
na casa do tio foram um pesadelo. Não conseguia se lembrar de
nenhum dos criados sendo remotamente simpático à sua situação.
Na verdade, a maioria deles, incluindo a sra. Butterfield, não
conseguia olhá-la nos olhos.
— Guardei a maioria das suas coisas — Jenny falou. — Vou
terminar de desfazer seus baús esta tarde. Pretendo bancar a criada
pessoal, já sabe.
— Não seja boba.
— Estou falando sério. Acha que a sra. Jarrow faz ideia de
como arrumar o cabelo de uma dama? Ela sabe cozinhar, admito. E
é ótima com remendos. — Jenny endireitou um dos pequenos potes
de vidro de cosméticos na penteadeira. — A sra. Jarrow e seu
marido fazem qualquer coisa pelo sr. Finchley. Ele salvou o filho
deles de ir para a prisão.
— É mesmo? — Helena olhou para Jenny. — Como?
— Escrevendo um artigo jurídico. Uma argumentação ou algo
assim. Não entendo desses assuntos. Francamente, nem o sr. e a
sra. Jarrow. Muito do que o sr. Finchley faz parece um mistério.
Helena vagou pelo cômodo, observando os móveis pesados, o
carpete grosso e o papel de parede estampado.
Jenny foi atrás dela, ainda falando.
— Veja esta casa, por exemplo. O sr. Finchley insistiu em ficar
com ela. Eu disse a ele que ficaria muito feliz com um quarto em
uma pensão em algum lugar, mas ele não se deixou dissuadir.
— Ele achou que você estaria mais segura aqui.
— Mesmo assim... — Jenny se sentou na beira da cama. — Eu
não deveria ter permitido que ele gastasse um único centavo em
meu nome. É totalmente escandaloso estar em dívida com um
cavalheiro. Se a notícia se espalhasse, eu estaria arruinada.
— Você não está em dívida com o sr. Finchley. — Helena se
sentou ao lado de Jenny. A colcha franziu sob o peso das duas. —
Justin assumiu o aluguel. Ele não lhe contou?
— Isso não muda o fato de eu estar morando aqui desde a
semana passada. E tenho permitido a visita do sr. Finchley. Todos
na rua o viram entrando na casa. Pensarão que sou amante do
homem.
— Pessoas tolas. Ele poderia ser seu irmão.
Um raro rubor coloriu as bochechas de Jenny.
— Não me sinto como se ele fosse meu irmão.
Helena ergueu as sobrancelhas.
— Ele não fez qualquer proposta, fez?
— Nenhuma — Jenny respondeu, com uma careta. Ela acenou
com a mão em um gesto de desprezo. — Mas não falemos dele.
Quero ouvir de você. Conte-me tudo sobre a Abadia de Greyfriar. E
sobre o sr. Thornhill também.
Helena passou a meia hora seguinte descrevendo a vida na
abadia. Contou sobre as falésias, o mar e o tempo terrível. Falou
sobre o sr. Boothroyd, Neville, os criados e os cachorros. Comentou
até mesmo sobre a noite em que o sr. Glyde havia chegado com o
magistrado.
Mas, apesar do pedido de Jenny, compartilhou pouco sobre
Justin. Suas conversas com ele eram muito particulares. Muito
preciosas. E certamente não falaria dos beijos trocados. Nem
mesmo com uma amiga de confiança.
— Você parece feliz lá — Jenny observou quando ela terminou.
Helena alisou uma ruga na colcha, voltando seus pensamentos
para a dura realidade de sua situação. Se ao menos...
— Se ao menos você estivesse livre do seu tio e do sr. Glyde.
— Jenny fez uma pausa. — Eu o vi ontem.
O olhar de Helena se desviou bruscamente para a amiga.
— Meu tio?
— Não. O sr. Glyde. Estava caminhando pela Piccadilly, tão
ousado que você não acreditaria. O brutamontes. Pensei em
empurrá-lo na frente de uma diligência.
— Ele não a viu, não é?
Jenny balançou a cabeça.
— Fui muito cuidadosa.
Helena se levantou da beira do colchão, e começou a andar
pelo quarto.
— Não deve subestimá-lo, Jenny. Sei que ele parece um idiota
estúpido, mas o homem é perigoso. Sem mencionar que seu agarre
parece um torno de ferro. Lembre-se apenas de como ele
costumava agarrar meus braços e me puxar. Ainda estou com
hematomas.
— Pelo menos ele nunca a estrangulou. Não como seu tio fez
naquele dia.
— Tio Edward estava irritado. Ele tinha bebido e acabado de
perder uma fortuna no jogo. Estava desesperado para que eu
assinasse aqueles papéis.
Os olhos de Jenny brilharam:
— Não se atreva a inventar desculpas por ele! Ele poderia ter
matado você. Por um momento, foi o que achei que tivesse
acontecido.
Helena não gostava de lembrar do acontecido. O tio a pegou
pela garganta e a sacudiu como um terrier sacode um rato.
O terror a paralisou. Viu-se incapaz de gritar. Incapaz de
respirar.
— Não estou dando desculpas. Simplesmente afirmo um fato.
Meu tio pode ser desonesto e até violento às vezes, mas o sr. Glyde
é implacável. Ele veio até a abadia no meio de uma tempestade,
Jenny. Está determinado a me arrastar de volta para o tio Edward,
para que ele possa me trancar em algum lugar e jogar a chave fora.
— Ele não obterá sucesso. — A voz profunda de Justin soou da
porta.
Helena se virou de chofre, sentindo o coração palpitar ao vê-lo.
Ele não entrou no quarto. Simplesmente ficou lá, com o ombro
apoiado no batente da porta.
— Desça para a sala de estar — pediu. — O Finchley gostaria
de lhe falar.

◆◆◆

— É esse o seu plano? — Helena olhou para o sr. Finchley,


incrédula. — Manter meu tio ocupado com documentos legais até
que o artigo do jornal vá para a impressão?
Ela estava na sala de estar, sentada ao lado de Jenny em um
sofá de chita. O sr. Finchley havia se acomodado em uma cadeira
em frente a elas, e era possível ver a pomada em seu cabelo
castanho-escuro brilhando à luz dos lampiões a gás. Apenas Justin
permanecia de pé. Ele se encostou na prateleira entalhada da
lareira, girando uma caixinha laqueada na mão. Helena não tinha
dúvidas de que ele estava ouvindo o debate com total atenção.
— Não é infalível — Finchley reconheceu. — Na verdade, é
deveras frágil em aparência. Nada ainda foi submetido aos tribunais.
Neste estágio, é um pouco mais do que uma troca de cartas furiosa
entre mim e os advogados de Castleton. A questão é que eles
entendem que há uma base legal forte para nossa reivindicação.
Helena estava perdida.
— Que reivindicação? Achei que não levaríamos meu tio nos
tribunais.
— Não vamos. Mas os advogados dele não sabem disso. No
que diz respeito a eles, a batalha já foi travada.
Ela o fitou, perplexa.
O sr. Finchley se inclinou para a frente na cadeira.
— Pense nisso assim: a senhora é, essencialmente, parte de
uma propriedade cuja posse está em disputa.
Uma faísca de indignação enrijeceu sua espinha.
— Não me vejo pensando em mim como parte de uma
propriedade, senhor.
— Não é uma ofensa pessoal, milady. É uma realidade legal.
Aos olhos dos tribunais, a senhora é propriedade de seu marido. A
única esperança de seu tio de obter o controle sobre a sua pessoa,
e, por conseguinte, de sua fortuna, é, primeiro, provando que seu
casamento com Thornhill não é válido. Os advogados dele me
parecem sujeitos competentes. Eles o aconselharão a ficar longe da
senhora até que os tribunais tenham se manifestado sobre o
assunto.
— Em outras palavras — Justin concluiu —, seu tio não deve
aparecer à nossa porta com o magistrado em um futuro próximo.
— Ou assim esperamos. — O sr. Finchley tirou os óculos por
um breve instante. — Infelizmente, isso não o impedirá de enviar um
de seus capangas para sequestrá-la e levá-la para um hospício
particular em algum lugar.
Justin devolveu a caixa laqueada à prateleira da lareira.
— É por isso que a senhora não deve, em hipótese alguma, sair
desta casa desacompanhada.
Helena comprimiu os lábios. Propriedade dele, decerto. Mas
não contestaria o sentido de seu decreto.
— Não precisa se preocupar com isso. Não tenho vontade de ir
a lugar nenhum sem a sua companhia.
O estratagema legal do sr. Finchley não a fez se sentir muito
mais segura. Ela ainda passou a noite andando de um lado para o
outro e espiando pela janela do quarto. Conseguiu dormir porque
continuou se lembrando da presença de Justin no quarto adjacente
e de Jenny ao fim do corredor.
Na manhã seguinte, o sr. Finchley voltou para a casa na Half
Moon Street. Ele não estava sozinho. Com ele, vinha um belo
cavalheiro de cabelos escuros e possuidor dos olhos mais azuis que
Helena já viu.
— Lady Helena — Sr. Finchley falou —, quero apresentá-la ao
sr. Charles Pelham.
Helena apertou a mão do homem. Ele era da altura de Justin,
com um rosto sério e um olhar tão penetrante que parecia tentar
sondar as profundezas de sua alma.
E talvez estivesse.
— Devemos todos passar à sala de visitas? — Jenny
perguntou. — A menos que prefira falar sozinha com o sr. Pelham.
A ideia de compartilhar os detalhes de sua provação na frente
de uma sala cheia de pessoas deixou Helena um pouco nauseada.
Mas não eram estranhos. Eram seus amigos. Pessoas que
cuidavam dela.
— Não será necessário — falou.
Justin apoiou a mão na parte inferior de suas costas enquanto
todos subiam as escadas. Ela não teve um momento a sós com ele
desde que desembarcaram do trem. Sentia falta dele. O que era um
despautério. O homem não fora a lugar nenhum. O momento que
fosse, ele estava a apenas um quarto de distância. E ainda... de
alguma forma, em um espaço de tempo muito curto, sua presença
se tornou essencial para a felicidade dela. Para sua sensação de
segurança e bem-estar. Precisava estar com ele. Ouvir sua voz e
sentir o toque de sua mão na dela.
Justin pensaria menos dela quando soubesse toda a extensão
das indignidades a que tinha sido submetida? Sentiria que isso a
maculava, de alguma forma?
Era como ela se sentia. Como se tivesse sido maculada com
uma substância nojenta que não poderia ser lavada.
Justin afastou a mão de suas costas quando eles entraram na
sala. Ele ficou por perto enquanto ela se acomodava no sofá, mas
não se sentou ao seu lado. Ele teria que deslocar Jenny para que
fosse possível. Em vez disso, caminhou até a lareira a carvão no
lado oposto do aposento e se recostou na cornija entalhada como
fizera na noite anterior.
A sra. Jarrow trouxe chá, e Jenny o serviu. As mãos de Helena
tremiam demais para segurar o bule.
O sr. Pelham não tomou mais do que um gole antes de devolver
a xícara à bandeja e retirar um caderninho e um lápis do bolso
interno do casaco. Olhou para ela com firmeza.
— Posso fazer perguntas, se a senhora preferir, mas pode ser
mais fácil simplesmente começar sua história desde o início.
Helena umedeceu os lábios.
— Muito bem.
O relógio com detalhes dourados na prateleira da lareira bateu
as onze horas.
Quando soou meio-dia, ela ainda estava falando.
Ocasionalmente, o sr. Pelham fazia uma pergunta ou solicitava
esclarecimentos, mas na maioria das vezes o homem apenas ouvia;
o tempo todo fazendo anotações em seu caderninho.
— A senhora descreve o primeiro tratamento em Lowbridge
House como um tratamento de água fria — ele disse em um ponto.
— Pode explicar em que isso implicou?
Helena acenou com a cabeça.
— Se o senhor quiser. — Ela cruzou as mãos no colo. Estavam
tremendo, descontroladas. — As enfermeiras de Lowbridge me
colocavam em uma banheira cheia de água em temperatura glacial.
Havia uma... uma espécie de tampa. Tinha um buraco em uma das
extremidades para a cabeça. Isso lhes permitia manter um paciente
na água gelada pelo tempo que quisessem. O sr. Glyde disse...
O sr. Pelham desviou o olhar do caderninho.
— Glyde esteve presente durante este tratamento?
— Sim. É parte do motivo pelo qual meu tio o emprega. Sempre
que eu resistia a um dos tratamentos, ele me pegava pelos braços e
me sacudia para que eu obedecesse. Então, quando eu estava
suficientemente subjugada, ele me arrastava para onde quer que eu
tivesse que ir. Em Lowbridge, quando eu não... quando eu não
aceitava me despir e entrar na banheira, as enfermeiras o
chamavam. Ele... — ela se interrompeu, perdendo brevemente a
compostura.
Jenny segurou a mão dela e a apertou.
— Não é decente. Você não deveria ter que repetir.
— A escolha é sua, milady — Pelham falou em tom calmo. —
Mas saiba: a senhora não está sozinha. Falei com inúmeras outras
pessoas, tanto homens quanto mulheres, que foram submetidos a
tratamentos igualmente terríveis em hospícios privados, como a
Lowbridge House.
Helena deu a ele um aceno quase imperceptível.
— Está tudo bem, Jenny. Eu preciso terminar. — Com
gentileza, soltou a mão e apoiou-a de volta no colo.
Queria fazer isso sozinha, sem se apegar a Jenny nem a Justin.
Parecia importante que mantivesse um senso de independência, de
controle, ao contar sua história, por mais ilusório que esse controle
pudesse ser.
— O sr. Glyde ficava do lado de fora com a carruagem — ela
continuou. — As enfermeiras o chamavam e, com sua ajuda, elas...
elas despiam até minha roupa íntima e... me forçavam a entrar na
banheira. Colocavam a tampa sobre mim, prendendo-me dentro. —
Sua voz tremia, mas ela continuou: — Não havia como sair. Eu
ficava congelada. Entorpecida. Implorava para que me deixassem ir,
o que servia apenas para fortalecer sua determinação de me manter
na água. O sr. Glyde disse ter ouvido falar de um lunático que uma
vez foi mantido em banhos frios por três dias seguidos.
O sr. Pelham ergueu os olhos para ela, com uma expressão
séria.
— Quanto tempo a senhora ficou no banho?
— Duas horas, daquela primeira vez.
— E eles eram subsequentes?
Helena lançou um breve olhar para Justin. O marido ainda
estava de pé ao lado da lareira. Seus braços estavam cruzados; a
mandíbula, endurecida. Mesmo à distância, ela podia ver o espasmo
rítmico de um músculo tensionando em sua bochecha.
— Três, talvez quatro horas — respondeu. — Perdia a conta.
— Esses banhos frios sempre eram administrados no hospício?
— o sr. Pelham perguntou.
— Sim. Apenas a sangria e a eletroterapia que foram feitos na
Grosvenor Square.
— Pelo dr. Collins, o médico particular de lorde Castleton?
— Exatamente.
O lápis do sr. Pelham voou pelas páginas do caderno. Ela se
perguntou se ele usava o método de estenografia para escrever.
— Preciso que a senhora descreva esses tratamentos também
— ele falou. — Entendo que é difícil.
O sr. Finchley retirou o relógio de bolso e olhou as horas antes
de colocá-lo de volta no bolso do colete sem dizer uma palavra.
Permaneceu em silêncio durante a entrevista, sentado nas
proximidades com um caderno no qual ocasionalmente anotava
algo.
— A senhora é capaz de continuar? — o sr. Pelham perguntou
a ela.
Helena lhe assegurou que sim. Passou a hora seguinte
contando a ele tudo sobre os outros tratamentos aos quais fora
submetida. As sanguessugas e lancetas que a sangraram até ela
ficar fraca e apática. Os purgantes que a deixaram doente e fraca. E
os choques elétricos que a apavoraram quase tanto quanto os
banhos de gelo em Lowbridge House.
— O dr. Collins tinha uma máquina de eletroterapia — ela disse.
— Um dispositivo portátil em uma caixa de madeira. Não sei bem
como descrever. Funcionava por imã, creio eu. Ele girava uma
pequena manivela na lateral da caixa e produzia um choque elétrico.
Ele o aplicava com um par de cabos de latão colocado disposto
sobre uma esponja molhada.
— Em que partes de seu corpo ele aplicou o choque? — o sr.
Pelham perguntou.
— Meus braços ou minhas... minhas pernas. O choque não era
forte, mas se ele girasse a manivela muito rápido, poderia torná-la
mais forte.
Justin soltou um som baixo de desagrado de seu lugar ao lado
da lareira.
— Parece mais tortura do que remédio. Isso, sim.
— É charlatanismo — Finchley disse a ele. — Puro e simples.
— Finchley está certo — Pelham concordou. — Infelizmente,
qualquer pessoa com dinheiro suficiente pode comprar uma
máquina de eletroterapia. São anunciadas como sendo capazes de
curar todas as doenças, do câncer à dor de dente.
Jenny contraiu os lábios de raiva.
— Parecia algo saído da Inquisição Espanhola. Uma
engenhoca infernal, operada por um velho tolo e trêmulo. E depois
de cada sessão, lorde Castleton aparecia no quarto com aquele
maldito papel. — Helena bem lembrou. — Ele prometeu que pararia
com tudo se eu assinasse. Ele queria muito o dinheiro.
— A coragem nunca lhe faltou? — o sr. Pelham perguntou.
Ela franziu a testa, perplexa:
— O senhor acha que foi a coragem que me impediu de
assinar? Garanto que não. Nunca fiquei mais assustada em minha
vida do que nos meses após o desaparecimento de meu irmão. No
final, eu teria assinado qualquer coisa que meu tio colocasse diante
de mim, e com prazer. Mas eu sabia que não faria diferença. Ele já
tinha ido longe demais.
O rosto do sr. Pelham estava inescrutável.
— A senhora acredita que ele a teria colocado para fora de
qualquer maneira.
— Sim — afirmou. — Sei que ele teria.

◆◆◆

— Acha que ela está bem? — Finchley perguntou.


Justin atravessou a sala e se sentou. Helena se retirou para o
quarto para descansar. A entrevista de Pelham a deixou exausta.
Ela ficou pálida e esgotada, ainda tremia muito depois de o homem
ter partido.
— Não.
— Talvez você devesse ir até ela.
— A srta. Holloway está com ela — Justin observou. — A
presença dela tornou a minha bastante supérflua. — Viu-se incapaz
de evitar que a pontada de irritação transparecesse em sua voz.
Desde sua chegada à casa em Half Moon Street, a srta. Holloway o
suplantou como defensora e protetora de Helena. Ela parecia sentir
que era seu direito estar sempre ao lado de Helena.
— Ah. Bem, suponho que seja o melhor. Dado o que
aconteceu, lady Helena apreciará o apoio de outra mulher. —
Finchley guardou o caderninho e o lápis de volta no bolso interno do
casaco. — Perguntamos o impensável dela, como bem sabe. A
maioria das mulheres não consegue falar do próprio corpo, nem no
de qualquer outra pessoa, sem desmaiar. Até a esposa de Keane, a
mulher mais sensata que você conheceu na vida, refere-se ao peito
de frango como colo do frango. É ridículo, mas é isso.
Justin não conseguia ser filosófico sobre o assunto. O sangue
ainda fervia com a ideia de alguém com as mãos em Helena. Ao
ouvir como Glyde a forçou a tirar as roupas e a entrar no banho frio,
precisou se segurar para não correr para a rua, encontrar o canalha
e despedaçá-lo. Foi necessário cada grama de seu autocontrole
manter o semblante frio.
— As mulheres são delicadas por natureza — Finchley
continuou. — Acho que é o que admiro na srta. Holloway. Ela é uma
mulher forte e eficiente, não é dada às bobagens.
— Ela é senhora de si.
Finchley colocou os óculos com mais firmeza no nariz.
— Nem todo mundo quer sair para resgatar donzelas em
perigo. Nem todos podemos ser heróis. Alguns de nós aspiramos a
uma companheira agradável com quem compartilhar o jugo da vida.
— Você faz isso de compartilhar o jugo da vida soar
interessante. Como se vocês fossem dois bois. — Justin recostou-
se na cadeira e esticou as pernas. — Meu Deus, Tom, você precisa
sair mais.
— Isso vindo de um sujeito que foi obrigado a encontrar o amor
por meio de um anúncio matrimonial.
Um silêncio pesado caiu sobre a sala.
Finchley franziu o cenho.
— Você a ama, não é?
Justin suspirou. A última coisa que queria fazer era discutir o
que sentia por Helena com Tom Finchley. O homem era seu melhor
amigo. Praticamente um irmão. Mas os laços de amizade só se
estendiam até certo ponto.
— Eu me importo com ela. Muito.
— Mas não a ama.
Justin esfregou a testa.
— Não sei — admitiu, após um longo momento. — Muitas
vezes me pergunto se sou capaz de sentir qualquer emoção.
O rosto de Finchley se transformou em uma carranca
meditativa. Era a expressão exata que ele usava quando se
intrigava com uma questão legal particularmente espinhosa.
— Talvez você não reconheça o sentimento. Nenhum de nós
teve muita experiência em amar alguém ou em ser amado. Eu sei
que eu não.
— Nem eu — Justin falou. — Que par deprimente nós somos.
— Não sei — Finchley comentou. — Parece que nos saímos
bem. E quem pode dizer? O amor pode muito bem fazer mais mal
às nossas vidas do que bem. É a causa de conflitos sem fim. Isso
eu posso afirmar com base em minhas experiências com a lei.
Violência, assassinato, caos. Todos perpetrados em nome do amor.
— Eu preferiria ter lealdade — Justin. — Parece uma qualidade
muito mais valiosa.
— Lealdade é essencial, sim. E amizade não seria ruim. É mais
estável. Menos volátil do que o amor.
— Precisamente.
— Você e lady Helena são amigos?
— Somos. Muito bons amigos, pelo menos é o que espero.
— Hum — Finchley considerou isso. — Já que disse isso,
admito que, além da amizade, não desprezaria um pouco de ternura
de uma mulher. Uma palavra ou olhar suave.
— Ou o toque.
— Isso também. — Um sorriso irônico cintilou nos olhos de
Finchley. — Sem dúvida, eu deveria seguir seu exemplo e encontrar
uma esposa adequada.
Justin considerou seu amigo com diversão relutante.
— E se o fizesse... a srta. Holloway seria uma candidata para a
posição?
— O quê? — As orelhas de Finchley ficaram vermelhas. —
Não. — Ele balançou a cabeça. — Ela está muito além do meu
alcance.
— Ela é a acompanhante de uma dama.
— Que por acaso é prima distante do conde de Castleton.
— Perdoe-me — Justin falou. — Devo estar com algum
problema auditivo. Por um momento, a mim pareceu que você disse
que não poderia cortejar uma mulher porque ela é parente distante
de um membro da nobreza. Você. O homem que facilitou meu
casamento com a filha de um conde.
— Não é igual.
— O inferno que não é.
— Seu pai era um baronete — Finchley retrucou, irritado. — O
meu pode muito bem ser o bêbado do vilarejo. Ou pior. — Justin
estava pronto para uma resposta afiada, mas não teve oportunidade
de pronunciá-la. A porta da sala se abriu antes que ele pudesse
falar e Helena entrou. Ela usava um elegante vestido de seda preta
com acabamento em veludo. Ela segurava um chapéu-boneca de
veludo emplumado com a mão enluvada. Ele e Finchley se
levantaram imediatamente.
— Perdoem a interrupção — falou.
Justin a observou. Ela ainda estava pálida, mas não tremia
mais. Na verdade, parecia bastante determinada.
— Não está interrompendo nada.
— Não conseguiu descansar? — Finchley perguntou.
— Descansei bastante. — Helena ergueu o queixo uma fração.
— Eu gostaria de dar uma volta.
Justin foi até ela e perguntou em voz baixa:
— Agora?
— Por favor.
Ele lhe lançou um longo olhar avaliador.
— Muito bem. Vou buscar meu chapéu.
Capítulo Dezessete

Helena segurou o braço de Justin quando saíram de casa e


começaram a percorrer a Half Moon Street em direção ao Green
Park. Eles mantiveram um ritmo calmo e confortável, como se
costumassem passear juntos no coração da elegante Londres.
— Resolvi não me agarrar mais a você — ela falou.
Ele olhou para ela.
— Algum motivo em particular?
— Além de poupar o seu pobre braço? — Ela olhou diretamente
à frente. — Estou farta de ser uma criatura tão assustada e pobre de
espírito.
— Não há nenhuma pobreza de espírito em se ter medo. Você
teve uma boa causa.
— Talvez. Mas esses medos afetaram todos os aspectos da
minha vida. Fiquei muito assustada e zangada com a injustiça da
situação. Isso me mudou. Eu mal sei quem sou agora.
Justin não respondeu. Seu olhar ficou distante, como se
estivesse contemplando algum dilema problemático dele mesmo.
Caminhou ao lado dele em silêncio, enquanto as saias de seda
e veludo balançavam suavemente a cada passo. A Half Moon Street
era uma rua pequena e bastante tranquila, ladeada por casas
estreitas e elegantes. Dois jovens cavalheiros de calça xadrez
caminhavam juntos em direção à Piccadilly e uma babá de
aparência severa empurrava um carrinho de bebê na direção da
Curzon Street. Fora isso, a rua estava deserta.
Pelo menos, parecia estar.
Se havia personagens suspeitos à espreita, ela não os viu. Não
que fosse provável que o sr. Glyde estivesse escondido atrás de um
poste em plena luz do dia.
— Acredita mesmo que tais sentimentos podem mudar uma
pessoa? — Justin perguntou, de forma abrupta.
Helena demorou a responder. Teve a sensação de que a
pergunta tinha mais a ver com seus próprios demônios que com os
dela.
— O medo e a raiva não deveriam ser os princípios
orientadores da vida de alguém.
— Qual é a alternativa? Perdoar e esquecer?
— É o ideal.
O olhar do marido pousou em seu rosto.
— Você pode perdoar seu tio pelo que ele fez? Ou o sr. Glyde?
— O sr. Glyde? Definitivamente não. Mas meu relacionamento
com meu tio é um pouco mais complicado. Ele nem sempre foi o
homem que é hoje.
— Não? — Justin parecia cético.
— De fato. Quando eu era menina, achava que ele era um
sujeito alegre. Sempre que vinha nos visitar, escondia guloseimas
em seus bolsos para eu encontrar. Estava sempre me trazendo
presentinhos. Um leque de papel ou um cavalo em miniatura
esculpido em ébano. Uma vez, quando eu era muito pequena, ele
até me trouxe um filhote de cachorro spaniel. — Helena sorriu de
leve ao se lembrar. — Meu pai se opôs, é claro, não queria que
ninguém me estragasse. Mas tio Edward insistiu que eu pudesse
ficar com ela.
— Você tem boas lembranças do homem.
— Apesar de tudo, sim. Tenho.
— Mas não pode perdoá-lo.
— Não — ela disse —, ainda não. Talvez nunca. Mas devo
encontrar uma maneira de superar o acontecido e continuar
vivendo. Não posso permitir que a dor que eles infligiram me arraste
para a lama.
— Não vai. Você é muito forte para isso.
— Não sou forte, Justin. Eu já estava meio que desistindo
quando o conheci. Na noite da tempestade, quando você me
encontrou na borda do penhasco, eu estava bastante preparada
para morrer.
— Você estava apavorada. E é compreensível.
— Sim — ela reconheceu baixinho. — Mas não posso continuar
assim. Mesmo se houver uma causa. Tenho que encontrar uma
forma de voltar a ser a pessoa que eu era antes deste pesadelo
começar. Se não fizer isso, meu tio e o sr. Glyde terão vencido.

◆◆◆

Naquela noite, eles foram ao teatro Haymarket. A única


produção para a qual o sr. Finchley conseguira ingressos em tão
pouco tempo foi uma nova peça intitulada A Amiga Lamentadora.
Foi anunciada como uma comedietta, mas não houve muitas cenas
que inspirassem humor. O enredo apresentava uma viúva infeliz
que, embora tivesse se casado com um marquês há pouco tempo,
não fazia nada além de lamentar a perda de seu amado primeiro
marido falecido. O público resmungou seu descontentamento muito
mais do que riu ou aplaudiu.
Com a ajuda de Jenny, Helena colocou com cuidado um vestido
de noite de seda azul claro, com babados triplos e mangas curtas
com detalhes rendados. O decote em forma de coração era baixo,
mas de um jeito elegante, e revelava uma extensão maior de seu
colo do que ela já havia exibido na presença de Justin; a menos que
se contasse a noite em que ele tirou suas roupas molhadas.
Não era nada mais ou menos ousado do que o que havia usado
em visitas anteriores ao teatro, mas mesmo assim a fez se sentir
vagamente constrangida.
— Eu ficaria mais confortável com uma gola Bertha — ela disse
a Jenny. Esse tipo de gola era de renda, larga e arredondada,
prendia-se à garganta e caía cobrindo o pescoço e os ombros.
Muitas damas as combinava com seus vestidos.
— Por quê? Seus hematomas já desapareceram bem. Os que
não, estão bem escondidos sob suas luvas e mangas.
— Não são os hematomas que me preocupam. É minha
modéstia. Prefiro cobrir o colo.
— Para todos comentarem? — Jenny balançou a cabeça. — Já
é ruim você não ter joias. Não permitirei que digam que você se
tornou desleixada.
Sentada no camarote privado do segundo andar que o sr.
Finchley conseguiu para eles, Helena não se sentia deselegante.
Mesmo assim, não tinha dúvidas de que as pessoas estavam
falando a seu respeito. À luz das lâmpadas a gás e do lustre
brilhante, viu muitos lornhões apontados para ela; e para Justin
também.
— Eles vão aparecer no intervalo — ela avisou. — Vão querer
conhecê-lo.
Justin parecia imperturbável com a informação. Vestindo
casaca de noite e calça preta, plastrão de seda creme amarrado no
pescoço, ele parecia muitíssimo à vontade entre a multidão de
cavalheiros bem-vestidos e damas na moda. Também estava muito
bonito.
— É para isso que estamos aqui.
Ela olhou para ele por mais um momento, sentindo anseio
estranho se contorcer em seu peito. Quando ele se virou e
encontrou seu olhar, ela lhe ofereceu um sorriso fraco e triste.
— Você gostaria de estar em Devon?
— Na abadia?
— Você tem muito que fazer lá. O sr. Boothroyd deve estar
perdido sem você.
— Ele vai conseguir lidar com tudo — Justin falou. — Além
disso, onde em King’s Abbot poderíamos ter tido uma noite como
esta?
Helena abriu o delicado leque de papel que usava preso a um
cordão de seda no pulso. Suas folhas eram pintadas com uma cena
elaborada e detalhada de uma grande casa de campo em uma
paisagem pitoresca. Giles o comprou para ela do célebre fabricante
M. Duvelleroy quando visitaram o Palácio de Cristal tantos anos
antes.
— É uma peça terrível — ela comentou.
— Eu estava falando da companhia.
— Oh. — Helena se abanou.
— Você está linda esta noite. Eu lhe disse isso?
Ele não tinha. Quando ela desceu as escadas na Half Moon
Street, vestida com suas melhores roupas, ele apenas a olhou. Algo
breve e inquietante luziu em seu olhar. Feroz e faminto. Um pouco
como um lobo voraz. O que fez algo estremecer em seu ventre.
— Mas, na verdade, você sempre está — ele continuou. — Era
de se imaginar que eu já estivesse acostumado, mas sempre me
surpreendo toda vez que a vejo.
— Não precisa me cobrir de lisonjas.
— Ah. Isso mesmo. Eu tinha me esquecido. — Sua boca se
curvou em um sorriso constrito. — Prefere que eu me abstenha de
quaisquer atos ligeiramente românticos.
— Prefiro que não me provoque e me faça corar.
— Não a estou provocando — ele disse. — Mas vou me abster
de atos românticos no futuro, se é o que deseja.
— Foi o acordo, não foi? Sem romance. Só amizade.
— E algo mais que amizade — ele a lembrou.
Helena procurou em seu rosto por algum sinal de seus
pensamentos.
— Romance é o algo mais?
Sua expressão era ilegível.
— Diga-me você.
Estava escuro no teatro, o som da peça e do público era uma
fonte constante de barulho ao fundo. E, no entanto, havia
privacidade em meio a tantas pessoas. Na verdade, naquele
momento, seu camarote no segundo nível parecia um mundo à
parte de tudo. Um santuário iluminado a gás no qual ela poderia dar
voz aos anseios mais íntimos de seu coração.
— Não — ela respondeu. — O algo mais não é romance. É
amor.
Justin a fitou, com o rosto severo meio sombreado à luz a gás.
— Amor — ele repetiu. A voz profunda era tão inexpressiva
quanto seu rosto.
O constrangimento foi rápido ao extinguir a breve labareda de
esperança no peito de Helena.
— Falando em termos gerais — ela acrescentou. —
Filosoficamente, não pessoalmente.
— Ah — ele disse. — Entendo.
Ela fixou a atenção no palco.
Justin sentou-se ao seu lado em um silêncio sombrio. Uma ou
duas vezes sentiu seu olhar sobre ela, mas não o retribuiu. A cortina
abaixaria em breve. Haveria muito com que lidar então. Precisava
manter o semblante tranquilo. Abster-se de se aborrecer com algo
tão tolo como uma rejeição percebida de seus sentimentos
emergentes.
Se alguém tinha o direito de ficar chateado nessa relação, era
Justin. Ela havia virado sua vida inteira do avesso. Primeiro,
casando-se com ele sob falsos pretextos e, em seguida, colocando-
o no meio de um escândalo. Não tinha o direito de pedir mais nada.
Não quando ele já tinha dado tanto de si para ela e sua causa vil.
Depois de vários longos minutos olhando para o palco, fingindo
não se importar com conceitos triviais como amor e afeto, a cortina
enfim foi abaixada e as luzes do teatro, acesas.
A multidão inquieta se levantou, e o som de vozes rindo e
conversando ficou mais alto.
Helena agitou o leque, observando enquanto os camarotes se
esvaziavam. Os cavalheiros se afastavam para buscar refrescos
para as damas, que iam visitar as amigas. Não demoraria muito
mais.
— Está vendo alguém que você conhece? — Justin perguntou.
Ela assentiu.
— Várias pessoas.
A tensão nervosa acelerou seu pulso.
Haviam se preparado de modo adequado para enfrentar a
multidão inquisitiva? Momentos atrás, ela se sentia relativamente
confiante. Ela e Justin planejavam dizer que se conheceram
enquanto ela estava de férias em Devon. Que foram apresentados
por um conhecido mútuo. Não estava muito longe da verdade. No
entanto, considerando a curiosidade coletiva da sociedade educada,
ela de repente se perguntou se seria explicação suficiente.
Talvez devessem ter inventado uma história mais convincente
sobre como se conheceram e se casaram? Algo para explicar como
a filha de um conde se veria casada com um ex-soldado. Um
homem sem família ou conexões.
Mas não houve tempo para formular uma nova história. Antes
que pudesse dar voz às suas preocupações, o primeiro visitante
entrou no camarote.
Peregrine Trowbridge, o visconde de Wexford, era um libertino
de cabelos loiros com uma queda por coletes espalhafatosos e
cavalos velozes. Helena conheceu a irmã mais nova do cavalheiro
anos antes de Giles partir para a Índia.
— Lady Helena — cumprimentou-a, ao fazer uma mesura. —
Sabia que eu havia lhe reconhecido do outro lado do teatro.
— Lorde Wexford, quero apresentá-lo ao meu marido, capitão
Justin Thornhill.
Justin havia se levantado quando lorde Wexford entrou. Ele
ficou ao lado de sua cadeira, um tanto protetor, ou assim ela
imaginou.
— Wexford — disse.
— Thornhill. — Lorde Wexford apertou a mão de Justin. —
Esteve recentemente no exército de Sua Majestade servindo na
Índia, certo? Tenho ouvido sobre seu casamento com lady Helena.
Deixou todos nós a ver navios. Atrevo-me a dizer que foi obra de
Giles. Ele sempre brincava dizendo que veria a irmã casada com um
oficial antes de consentir dar sua mão a um de nós.
O coração de Helena se contraiu com a menção do irmão, mas
conseguiu manter o rosto impassível. A mão de Justin pousou de
leve em seu ombro.
— Onde estão residindo em Londres? — lorde Wexford
perguntou. — Não com Castleton, presumo, senão estariam
sentados em seu camarote do outro lado.
— Alugamos uma casa na Half Moon Street — Justin
respondeu.
— Veja só! Lady Poole, a viúva do velho lorde Eustace Poole,
mora na Half Moon Street. Eu a visitei na semana passada. — Lorde
Wexford fez uma pausa para chamar outra pessoa para o camarote.
— Letty? Venha conhecer o marido de lady Helena. — Lady Leticia
Staverley entrou no camarote com uma enorme saia de renda
decorada com rosas de cera.
— Helena, minha querida! — ela exclamou.
Helena se levantou para cumprimentá-la, recebendo o beijo de
Letty na bochecha com um sorriso que era apenas parcialmente
forçado. Ela conheceu Letty em sua juventude, mas as duas nunca
foram muito próximas. Após o desaparecimento de Giles, Helena
teve notícias dela apenas uma vez.
— Não a vejo há anos! — ela disse, ao segurar a mão de
Helena. — Não compareceu a um único evento de que participei
desde o outono passado.
— Letty, este é o marido de lady Helena, o capitão Justin
Thornhill. — Lorde Wexford fez as apresentações. — Ele serviu com
Giles na Índia, sabe?
Helena trocou um olhar fugaz com Justin. Nenhum deles
corrigiu o equívoco de lorde Wexford e, em segundos, o momento
em que eles poderiam ter feito isso caiu no esquecimento.
Era uma coisa estranha e um tanto fortuita, ela refletiu enquanto
uma procissão de velhos conhecidos entrava e saía do camarote.
Logo, todos presumiram que ela conheceu Justin através de
recomendações do irmão. Acreditavam que Giles havia encorajado
uma correspondência entre os dois. Depois do desaparecimento
dele no ano anterior, e após o período de luto dela, pareciam pensar
ser natural que ela e Justin se casassem.
— Seu tio deve ter ficado furioso — lady Elmira Yardley
comentou. Ela era uma mulher idosa, três vezes viúva e sempre se
vestia com camadas de crepe preto e azeviche. Seu olhar astuto foi
de Justin para Helena e vice-versa. — É por isso que não está
usando suas joias, minha querida? Castleton as escondeu?
— De fato, senhora — Helena concordou. — Meu tio tem se
comportado muito mal desde que meu irmão desapareceu na Índia.
— É mesmo? — Lady Elmira se aproximou mais, com os olhos
brilhando e o rosto corado de expectativa mal disfarçada. Ela tinha
uma sede notória por fofoca. — De que maneira, minha querida?
— De maneira pouco cavalheiresca — Helena respondeu. —
Como tenho certeza de que a senhora pode imaginar.
Lady Elmira baixou as sobrancelhas.
— Sim, sim. Sei muito bem do que fala. Castleton sempre foi
um vilão. Eu não venho dizendo isso há vinte anos?
Depois que ela saiu do camarote, Helena se virou para Justin
para explicar.
— Meu tio cortejou lady Elmira depois que seu primeiro marido
faleceu. Ela pensou que ele a pediria em casamento, mas quando
chegou o momento, ele não o fez. Ela nunca o perdoou pela
humilhação.
— O que acha que ela dirá a todos que ele fez a você? —
Justin perguntou.
Helena deu de ombros.
— Não posso imaginar. Embora eu duvide que possa ser algo
pior do que a verdade.

◆◆◆

Eles não ficaram até o fim da peça. Já haviam alcançado seu


propósito. As pessoas viram Helena e falaram com ela. Podiam
atestar que ela parecia e falava perfeitamente bem. Como um bônus
adicional, Justin, de alguma forma, conseguiu se encontrar elevado
à posição de melhor amigo do falecido irmão de Helena. Ele supôs
que era a única maneira de todos os nobres cavalheiros e damas
com quem conversaram poderem conciliar seu casamento com ela.
O que o incomodou mais do que um pouco. Não gostava de ser
levado a se sentir como se estivesse em falta de alguma forma. Mas
depois do desfile de lorde Fulano e lady Sicrana, como poderia
sentir outra coisa?
Não era nada mais que o filho bastardo de um baronete. E nem
mesmo um elegante. Na verdade, ao lado das cintilantes figuras da
sociedade como lorde Wexford e lady Staverley, sir Oswald parecia
um verdadeiro simplório.
E se sir Oswald não era bom o suficiente, então o próprio Justin
era positivamente inaceitável. Mesmo sendo dono da abadia.
Chamou um dos muitos cocheiros ociosos do lado de fora do
teatro e ajudou Helena a entrar. Suas saias enchiam a cabine em
um mar de seda azul e renda. Quando ele subiu atrás dela, foi
obrigado a movê-las cuidadosamente para fora do caminho, para
não esmagá-las sob as pernas. Quando o coche entrou em marcha,
cruzando rapidamente a movimentada West End Street, Helena se
recostou no banco com um suspiro de cansaço. A extensão macia e
curva de seu seio, cuja visão o deixou sem palavras quando ela
desceu as escadas na rua Half Moon, estava agora oculta por um
manto de ópera feito de casimira branca de aparência cara,
debruado com penugem de cisne. Ela segurou a peça como se
fosse um cobertor quente e luxuoso.
— Frio? — ele perguntou.
— Cansada — ela respondeu. — Foi um dia longo e exaustivo.
— Você pode aproveitar meu ombro, se quiser.
Um sorriso tocou seus lábios.
— Sabe, acredito que vou. — Ela apoiou a cabeça de leve em
seu braço. Era um pouco estranho, dada a disparidade de alturas.
— Aqui. — Justin mudou de posição, colocando o braço em
volta dela e puxando-a para perto do peito. — Assim é melhor.
— Humm. Muito mais confortável.
Ele a segurou com gentileza enquanto o tílburi seguia em
direção à Half Moon Street. Eles não falaram. Não havia nada a
dizer, na verdade.
Mas, a cada minuto que passava, o silêncio mútuo parecia
ganhar significado.
— Helena — ele disse, por fim. Sua voz soou rouca. — No
teatro, você disse que algo mais do que amizade de que falamos no
trem era amor.
Ela enrijeceu um pouco em seus braços.
— Eu não quis dizer que você... que nós...
— Sim, eu sei. Você estava falando em termos gerais.
Filosoficamente, não pessoalmente. — Ele soltou um suspiro
pesado. — A questão é... não tenho certeza se sei o que é o amor,
filosófica ou pessoalmente.
— Nunca se apaixonou antes?
— Não que eu saiba.
— Nunca? — Ela parecia incrédula.
— É tão chocante assim?
— Um pouco. Você é um homem do mundo. Bonito e de bom
caráter. Achei que as damas andassem atrás de você.
Bonito? Ele arquivou o elogio para mais tarde.
— Houve algumas mulheres na minha vida, certamente, mas
não as amei. E, é… eu não as chamaria de damas.
— Oh.
Ele fez uma pausa.
— E você?
— Eu o quê?
— Já se apaixonou?
— Não. Não de uma forma romântica. Embora eu tenha tido
interesse em um dos amigos do meu irmão. Lorde Hartright. Ele
costumava me provocar e puxar meu cabelo. Eu esperava que,
quando crescesse, ele se casasse comigo.
Justin não sabia como responder a isso. Era ridículo ter ciúme
de um menino de sua infância? Era, ele decidiu. Patentemente
absurdo. E ainda...
— Este jovem conquistador reside em Londres? — ele
perguntou com indiferença estudada. — É provável que cruzemos
com ele?
— Lorde Hartright? Ah, não, ele há muito se casou e se retirou
para sua propriedade na Nortúmbria. Ele tem seis filhos agora,
acredito.
— Ele não a deixou com o coração partido, então.
Helena riu baixinho.
— Não, decerto. Ele não tinha meu coração. Nunca estive
apaixonada por ele. Nunca amei ninguém.
— Não? Você deve ter tido um exército de pretendentes.
— Nem tantos assim. Na verdade, meu pai não achava que
nenhum homem fosse bom o suficiente para a filha do conde de
Castleton.
— Sem dúvida ele estava certo.
— No final, importava pouco. Logo fiquei de luto, primeiro por
ele e depois por Giles. Namoro e casamento eram as últimas coisas
na minha cabeça. Quanto a me apaixonar... não tenho experiência
alguma. — Ela ficou séria. — Mas sei o que é amar uma pessoa. É
o que sinto por minha mãe e meu irmão.
Ele virou o rosto para o cabelo dela. Seu penteado era um
arranjo intrincado de cachos e tranças, preso nas costas com uma
travessa de filigrana. Cheirava a jasmim, doce e ligeiramente
exótico.
— Descreva para mim — pediu.
— É um laço especial. Um vínculo de memórias e experiências
compartilhadas. Mas é mais que isso. Ah, não posso explicar. — Ela
lutou para encontrar as palavras certas. — É... é quando você vê
uma pessoa e seu ânimo melhora. Quando a felicidade do outro
significa mais para você do que a sua. Quando você faria qualquer
coisa pela pessoa, sacrificaria qualquer coisa, mesmo que o
sacrifício pudesse machucá-lo ou fazê-lo infeliz.
Justin pensou no inferno que Helena havia passado desde que
o irmão desapareceu na Índia.
— Se o outro também a amasse, não pediria esse sacrifício.
— Não é preciso pedir — ela falou. — Você o faz de qualquer
maneira.
Como ela havia feito. Como ainda estava fazendo.
— Acha que seu irmão ficaria feliz em saber o que você
suportou por ele?
A pergunta pareceu surpreendê-la. Quando ela respondeu, a
voz estava cheia de emoção.
— Acho que ele ficaria triste. Ele me deixou esse dinheiro para
garantir meu futuro. Queria ter certeza de que eu ficaria amparada.
Que eu estaria segura.
Justin não sabia nada sobre Giles Reynolds, o falecido conde
de Castleton. Ele poderia muito bem ter sido um irmão bom e
decente. No entanto, Justin sentiu uma raiva avassaladora do
homem.
— Se ele a quisesse segura, não a deveria ter abandonado. Um
homem que acabou de herdar um condado não tem motivo para
continuar como soldado. Ele poderia ter voltado para casa, cuidado
de você.
Helena ergueu a cabeça de seu peito. Os olhos encontraram os
dele à luz da lâmpada da carruagem.
— Você não entende. Ele voltaria para casa quando a rebelião
fosse reprimida. Ele simplesmente não estava pronto ainda. Giles
não suportava viver na Inglaterra. Não depois que minha mãe
morreu. Ele estava inquieto. Precisava de um propósito. Algo ativo
que o impedisse de pensar.
— E de que você precisava?
— Eu?
— Ele a deixou para carregar o fardo. E então partiu e foi morto.
Um curso de ação que qualquer soldado deveria prever ser uma
possibilidade premente.
Helena olhou para ele. Sua boca tremeu.
— Ele não está morto, Justin.
Ah, inferno. O coração de Justin afundou quando ele olhou para
o rosto dela. Não poderia ter escolhido uma coisa pior para dizer,
mesmo se tivesse tentado.
Os dedos dela apertaram a lapela de seu casaco de noite.
— Acha que ele está?
— Não sei — ele respondeu com a voz rouca. —
Provavelmente.
Ela franziu o rosto.
— Não posso... — Helena parou e desviou o olhar do dele em
um esforço visível para recuperar a compostura. — Não posso
aceitar isso. Tenho que acreditar que ele vai voltar.
Justin não a deixaria se esconder dele. Ele a puxou para perto
novamente, incitando-a a encontrar seus olhos.
— Por que, coração? — Ele mal registrou o termo carinhoso
que proferiu, estava apenas vagamente ciente de que era um que
ele jamais havia usado com nenhuma mulher.
— Porque ele é tudo o que tenho — ela respondeu. — Tudo o
que sobrou da minha família.
Justin sustentou o olhar dela.
— Ele não é tudo o que você tem.
Ela abaixou a cabeça e apoiou a bochecha no peito dele.
— Eu sei. Sei mesmo. E estou tentando não ser irracional. Mas
se houver uma chance, Justin, mesmo que seja uma pequena, de
que Giles esteja por aí em algum lugar...
— O que posso fazer? — ele perguntou. — O que a deixaria
mais calma?
Ela fez um som sufocado. Podia ter sido uma risada. Ou um
soluço.
— Ninguém nunca me perguntou isso.
— Estou perguntando agora. Devo escrever algumas cartas
para contatos meus na Índia? Ou encarregar Finchley e Boothroyd
da tarefa?
— Você faria isso?
Justin não tinha vontade de escrever para ninguém na Índia.
Ele também não apreciava pedir a Finchley e Boothroyd que
investigassem o assunto. Mas seus sentimentos não importavam.
Não quando isso significava muito para ela.
— Claro. — Os lábios dele roçaram seu cabelo. — Eu não disse
que iria até os confins da terra por você?
— Disse, sim. — Ela ficou quieta por um longo momento. —
Justin...
Um frisson de ansiedade aguçou seus sentidos. Ele ergueu a
cabeça no mesmo momento em que o tílburi parou em frente à casa
na Half Moon Street. O cocheiro gritou para eles de seu poleiro.
— O que foi? — Justin perguntou.
Helena se sentou. Ela ajeitou a capa sobre os ombros,
lançando um olhar cauteloso por debaixo dos cílios enquanto
amarrava a fita em seu pescoço.
— Não é nada — respondeu. — Só que estou faminta. Espero
que a sra. Jarrow tenha deixado algo para nós na cozinha.
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Capítulo Dezoito

Acho que estou me apaixonando por você.


Helena quase disse isso a ele. Uma estúpida confissão pueril
que teria deixado os dois terrivelmente desconfortáveis. Apenas a
chegada oportuna do coche de aluguel na Half Moon Street a
deteve.
Estava feliz por não ter dito a ele. Preferia se agarrar ao
momento maravilhoso, quando ele a chamou de coração, ou ao
próximo, quando ele prometeu mais uma vez ir até os confins da
terra por ela. Qualquer um era preferível a ver, novamente, o olhar
vazio que ele deu a ela no camarote do teatro quando ela
mencionou o amor pela primeira vez.
Haveria tempo suficiente para resolver o complicado
emaranhado de suas emoções. Por enquanto, precisava se
concentrar na tarefa em mãos.
Pelham disse que seu artigo seria publicado em uma semana.
Ele prometeu enviar uma mensagem antes de o jornal ser impresso.
Era um pequeno conforto. Ainda acordava todas as manhãs com os
nervos à flor da pele, nunca sabendo se, de um momento para o
outro, este seria o dia em que sua reputação estaria arruinada para
sempre.
Esperava que o tempo de espera pela publicação passaria a
um ritmo interminável. Em vez disso, a semana seguinte voou em
um turbilhão de visitas matinais, passeios à tarde no Hyde Park e
visitas noturnas a teatros, óperas e musicais. Com Justin sempre ao
seu lado, os medos de Helena começaram a diminuir gradualmente.
Mesmo assim, onde quer que estivessem, fosse comprando luvas
na Bond Street ou ouvindo a um recital de Beethoven na casa de
sua vizinha, lady Poole, Helena ainda olhava de forma diligente ao
redor em busca de sinais de seu tio ou do sr. Glyde.
Nunca viu nenhum deles.
No entanto, notícias de seu tio chegavam à sua porta com certa
regularidade. Os visitantes da Half Moon Street adoravam falar dele
durante o chá. O comportamento do homem em relação às joias que
Helena herdara da mãe era um assunto particularmente popular.
— Um vilão absoluto — lady Leticia Staverley declarou ao
morder um dos biscoitos de gengibre que a sra. Jarrow assara
naquela manhã. — Como ele ousa esconder suas joias de você?
Certamente algo pode ser feito.
Helena estava sentada em frente a Letty na sala. Jenny estava
sentada ali perto, e ela parecia dar toda a sua atenção ao pedaço de
bordado em seu colo.
— Por que o capitão Thornhill ainda não interveio? — Letty
perguntou.
— Não vimos meu tio desde a nossa chegada a Londres —
Helena respondeu. Enquanto tomava um gole de chá, perguntou-se
se algum dia seria capaz de mencionar o tio sem o tremor de
desconforto que acompanhava o ato. A sensação era sempre mais
pronunciada quando Justin não estava por perto.
Gostaria que ele se juntasse a ela quando as visitas chegassem
à Half Moon Street, mas o marido raramente o fazia, a menos que a
pessoa que viesse fosse outro cavalheiro. Supôs que ele não
considerava as mulheres uma ameaça grande o suficiente para
justificar sua presença.
— Deve enfrentá-lo — Letty incentivou. — E sei exatamente o
lugar. — Ela puxou a bolsinha de veludo para o colo e começou a
remexer nela. — Minha tia Beatrice vai dar um baile na sexta-feira
em sua casa na Belgrave Square. Já soube? Os convites foram
enviados há muito tempo. É certo de que vai estar lotado. Ela afirma
que não pode caber uma única pessoa a mais em seu salão de
baile. Mas depois de um pouco de bajulação... — Letty retirou um
cartão grosso creme de sua bolsa. — Consegui tirar isso dela.
Helena pegou o cartão oferecido, observando rapidamente a
escrita preta.
— Agradeço, Letty, mas... — Ela lutou para encontrar uma
desculpa. — Sexta-feira? É apenas daqui a alguns dias. Não me
deixa tempo para fazer um vestido.
— Tolice. — Letty acenou com a mão. — Você se casou
recentemente, e não muito bem, se não se importa com o que digo.
Ninguém espera que você esteja na última moda.
Helena se irritou:
— Na verdade, eu me importo que diga. Acredito que me casei
muito bem.
Letty apenas riu.
— Com que ardor o defende. Sabia que devia ser um
casamento por amor. Fiz uma aposta amigável com lady Angeline
Clement, sabe. Ela disse que você se casou apenas porque o
capitão Thornhill era amigo de Giles. Como se qualquer mulher
inteligente fosse se casar com um estranho puramente para honrar
a memória do irmão morto. A pata tola. Vou visitá-la ao sair daqui e
pegar as minhas dez libras.
Depois que Letty se foi, Jenny deixou a costura de lado e se
levantou para chamar a sra. Jarrow para tirar os apetrechos do chá.
— Pata tola — murmurou depois que a governanta saiu levando
a bandeja. Ela se sentou ao lado de Helena no sofá. — É o termo
preciso que eu usaria para descrever Letty Staverley. E isso se eu
estivesse sendo gentil.
— Ela não percebe que está sendo ofensiva.
— Sem dúvida. Ela tem a profundidade de caráter de uma
poça.
Helena entregou o convite a Jenny.
— Acha que eu e o Justin devemos comparecer?
Jenny franziu a testa.
— Imagino que as pessoas vão querer ver como você interage
com seu tio.
— Sim, mas é necessário? Na sexta-feira, o artigo estará
publicado. Sei que devo me mostrar depois. Para provar ao mundo
que não estou louca. Mas participar de um baile, onde todos os
presentes leram sobre o que foi feito comigo... — Helena lançou a
Jenny um olhar angustiado. — Devo passar pela experiência?
— Não sei bem — Jenny respondeu. — O sr. Finchley poderia
aconselhá-la melhor. Tudo faz parte do grande plano dele, não é? —
Ela deixou o convite de lado e, mais uma vez, levantou-se. — Vou
convidá-lo para jantar, se você quiser. — Ela foi até a mesinha de
nogueira no canto e tirou uma folha de papel. — O sr. Thornhill dará
as boas-vindas à sua presença, ouso dizer. Ele não gosta de
números ímpares.
— Ele não se importa.
— Disparates. Sou um verdadeiro estorvo para o homem. Ele
prefere jantar sozinho com vocês todas as noites.
Helena não tinha tanta certeza. Pareceu-lhe que as refeições
noturnas eram, em grande parte, eventos informais. Comiam, como
de costume, antes de partir para a ópera ou o teatro. Que Jenny
jantasse com eles fazia pouca diferença. Não era como se ela e
Justin costumassem trocar confidências à mesa. Na verdade, a
conversa se limitava ao corriqueiro.
Não que Justin estivesse se comportando de maneira fria ou
indiferente com ela. Muito pelo contrário. Ele às vezes segurava a
mão da esposa durante as apresentações. E, na carruagem, no
caminho de volta para casa, sempre lhe oferecia o ombro.
Era durante essas curtas viagens de coche de West End à Half
Moon Street que a maior parte de sua intimidade ocorria. Embora
intimidade fosse um termo relativo. Afinal, não estavam
compartilhando a cama. E ele não a beijou novamente, não desde o
tempo que passaram no Stanhope Hotel. Mas sua voz se
aprofundava quando falava com ela, e os olhos cinzentos a olhavam
com um calor possessivo que fazia seu ventre estremecer.
Eles conversavam e riam baixinho juntos. Compartilhavam
anedotas sobre suas infâncias, e também outras passagens não tão
engraçadas. Sentia que eles estavam se conhecendo. Confiando
um no outro.
Ele estava começando a se apaixonar por ela também?
Helena não sabia. E estava com medo de perguntar. Sentia, no
fundo, que abordar o assunto novamente e ser rejeitada colocaria
um fim abrupto à intimidade atual entre os dois. O frágil vínculo que
estavam forjando seria quebrado.
Não se atreveu a arriscar. Ainda não. Mas tentava, com
desespero, ser corajosa. Superar seus medos e recuperar alguma
aparência da força e independência que possuiu uma vez. Logo,
disse a si mesma. Logo, ela abriria o coração para ele.
Ofereceria a ele seu amor, livremente e sem expectativas. O
que o marido escolheria fazer estaria por conta dele.

◆◆◆

— Um baile? — Finchley perguntou. — Oferecido por Lady


Beatrice Wardlow? Naturalmente, vocês devem comparecer.
Justin abaixou a faca para o prato.
— Certo. — Ele olhou para Finchley através da mesa de jantar,
encontrando seus olhos sobre o castiçal de velas tremulantes de
cera de abelha. Essa não era a resposta que esperava quando
concordou em convidar o amigo para jantar. — E como isso serve à
nossa causa ao nos vermos cara a cara com Castleton em um
ambiente tão público?
Finchley espetou um pedaço de carneiro cozido com o garfo.
Ele chegou pontualmente às sete, usando um terno recém passado,
sapatos engraxados e cabelo penteado para trás e alisado com óleo
de Macassar. Ele não era dândi de forma alguma, mas parecia
muito mais elegante do que a versão amarrotada e com a barba por
fazer de Tom Finchley a que Justin havia se acostumado ao longo
dos anos.
— Castleton não estará lá — ele disse, depois de engolir o
carneiro com o auxílio de um gole de vinho. — Não se o artigo tiver
saído.
Justin trocou um olhar rápido com Helena. As sobrancelhas
dela estavam unidas em uma linha preocupada.
— E se não tiver?
— É provável que ele ainda não apareça — Finchley disse. —
Não se souber que vocês estarão presentes.
— Como sabe tanto sobre o que ele pode ou não fazer? — a
srta. Holloway perguntou.
— Tenho meus métodos.
Mas a srta. Holloway não seria ludibriada.
— Então peço que os revele. Costumo pensar que o senhor é
mágico, mas sei que deve haver uma explicação mais racional que
essa.
Finchley inclinou a boca de forma breve em um sorriso torto.
Era quase infantil.
— Tenho um espião na casa de Castleton.
A srta. Holloway ficou boquiaberta.
— Quem?
— Um lacaio. Ele ocupou o lugar de um rapaz chamado Henry
no fim do mês passado.
— O Henry que foi a Bridgehampton para visitar a mãe doente?
— O Henry que está relaxando em um hotel em Margate com
os bolsos cheios de dinheiro.
A srta. Holloway se recostou na cadeira.
— Minha nossa. Como o senhor é desleal. — Ela riu de
repente. — Suponho que seu espião esteja bisbilhotando lorde
Castleton enquanto conversamos.
— Possivelmente. — Finchley olhou para Justin e Helena com
uma expressão séria. — Embora não tenha sido apenas por meio
dos esforços do rapaz que descobri que Castleton tentaria evitar
vocês dois.
— Como, então? — Helena perguntou.
— O bom senso, principalmente, junto com o que sei sobre a
natureza humana. — Finchley largou a taça de vinho. — Lorde
Castleton só colocou as mãos em você em uma ocasião. O restante
do dano físico que você sofreu foi administrado por seus
representantes, seja pelo sr. Glyde, médicos ou por pessoas
afiliadas ao hospício.
— Castleton é um covarde natural — Justin disse.
Finchley assentiu.
— Precisamente. Além disso, ele tem uma aversão imensa a
esse escândalo que está sendo divulgado. Se fosse ao baile, ele
não faria uma cena lá.
— Mas o senhor disse que ele não compareceria — Helena o
lembrou.
— Não acredito que ele vá. Como o Justin disse, o homem é
um covarde natural. E a senhora, milady, estará em companhia de
um sujeito que é tudo, menos isso. — Finchley lançou a Justin um
olhar severo. — O que me lembra, se por acaso Castleton
comparecer ao baile, deve fazer um esforço para não acabar com
ele.
— Não posso prometer nada — Justin disse.
Finchley suspirou.
— Pelo menos tente não causar uma cena. Não vai ajudar,
como bem sabe. Devemos convencer as pessoas de que Castleton
é o irracional, não lady Helena, e certamente não você. — Ele fez
uma pausa. — O que me leva ao assunto do sr. Glyde. O homem
parece ter se desintegrado. Pelham não consegue encontrá-lo. Nem
eu. O que me deixou... inquieto.
— E quanto ao seu espião? — Justin perguntou. — Ele ouviu
alguma coisa?
— Nada. O que pode significar que não há nada para ouvir.
Ou...
— Ou então o quê? — A voz de Justin estava carregada de
impaciência.
— É possível que Castleton esteja sendo extremamente
cuidadoso. Ele pode ter um plano traçado com Glyde. Embora, além
de sequestro, não consigo imaginar qual seria esse plano.
Uma sombra de preocupação cruzou o rosto de Helena.
— Acha que ele virá aqui?
— Não. Aqui, não. Mas ele deve estar escondido em algum
lugar. Aconselho que sejam vigilantes.
A srta. Holloway deixou de lado os talheres.
— Isso significa que não vai ao baile?
Justin se virou para Helena. Ela era uma visão de elegância e
moda em um vestido cinza-escuro enfeitado com fitas de um
carmesim brilhante. O corpete era confortável, preso na frente por
uma fileira de botões pequenos cobertos de seda que iam da cintura
ao pescoço. Desde sua chegada a Londres, parecia a ele que, cada
vez que piscava, ela estava com um vestido diferente. Havia
vestidos de manhã e de tarde, vestidos de passeio, vestidos de gala
e vestidos de noite para o teatro. Cada um era feito de tecidos ricos
e enfeitados com detalhes luxuosos. Não tinha dúvidas de que o
custo de até mesmo um desses vestidos seria excessivo a um
homem com poucos rendimentos.
— A decisão é sua — ele disse. — Podemos ir, se quiser. Ou
ficar aqui.
Helena hesitou antes de responder. E então:
— Eu gostaria de ir — ela respondeu em voz baixa.
A srta. Holloway não pareceu surpresa.
— Eles tocarão a valsa lá. A Helena adora valsar. Quanto
tempo faz, minha querida?
— Um ano — ela respondeu. — Desde que Giles desapareceu.
— Você deve estar terrivelmente enferrujada. — A srta.
Holloway olhou para o sr. Finchley e suas bochechas coraram. —
Tenho uma ideia. Por que não praticamos?
— Aqui? — Finchley perguntou.
— Podemos mover os móveis da sala. Não vai nos deixar muito
espaço para dançar, mas deve ser o suficiente.
— Eu não valso há um século — Finchley confessou. — E
você, Thornhill?
— Há um século e meio — Justin disse, de forma severa. E não
estava muito interessado em aulas corretivas.
— Bem, então. — A srta. Holloway se levantou, obrigando
Justin e Finchley a se levantarem também.
— O que devemos fazer com a música? — Helena perguntou
ao se afastar da cadeira.
— Humm. — Jenny lançou um olhar questionador para
Finchley. — Acredito que a sra. Jarrow não toque piano?
— Não — Finchley respondeu com uma risada baixa. —
Enfaticamente, não.
— Então eu toco. Afinal, não preciso dançar. Não é como se eu
fosse ao baile.
— Bobagem. — Helena colocou a mão na curva do braço de
Justin, permitindo que ele a acompanhasse para fora da sala de
jantar. — Vamos nos revezar ao piano. Os cavalheiros não se
importam de praticar a valsa conosco. Monsieur Claude sempre
disse que só se pode se tornar hábil dançando com vários parceiros.
— Monsieur Claude? — Justin quase odiava perguntar.
Helena sorriu para ele:
— O tutor de dança que meu pai empregava quando eu era
menina. Ele era um emigrado francês e um tirano absoluto.
— Ah — Justin respondeu. — Claro que era.

◆◆◆

Apesar da insistência de Jenny, foi Helena quem fez o primeiro


turno no pequeno pianoforte da sala. Ela teria que ser cega para
não ver o quanto Jenny queria dançar com o sr. Finchley, e Helena
não tinha a menor intenção de fazer a amiga esperar chegar sua
vez de estar nos braços dele.
O sr. Finchley sabia que Jenny gostava dele? Helena achou
que sim. Mas até mesmo os cavalheiros mais inteligentes podiam
ser um pouco obtusos quando se tratava dos assuntos do coração.
— Devo virar as páginas para você? — Justin perguntou,
parando ao lado dela.
— Não é necessário. — Suas mãos se moveram com
habilidade sobre as teclas. — Memorizei a maior parte da partitura e
posso improvisar nas partes que me esqueci.
— Você é talentosa nisso, não é?
— Dificilmente. Não pratico há um ano. Toco de forma
descuidada, na melhor das hipóteses.
— Estou gostando — ele afirmou.
Helena sorriu.
— Você gostaria mais se fosse tocado por uma orquestra. Um
único instrumento nunca pode fazer justiça. Agora, isso... — Ela
mudou para uma de suas valsas favoritas de Chopin. — Foi escrito
para o pianoforte.
— Essa não, Helena — Jenny objetou do outro lado da sala.
Ela e o sr. Finchley, que estiveram girando rapidamente, estavam
agora parados. — É lenta demais.
Helena voltou para algo mais alegre. Enquanto tocava,
observou Jenny e o sr. Finchley retomarem a valsa. Jenny estava
corando, e o sr. Finchley olhava para ela através dos óculos com um
sorriso iluminando o rosto geralmente sério.
Ele era órfão, como Justin. Um cavalheiro sem lar e sem
família. Ninguém para chamar de seu. Mas se estava descontente
com sua sorte na vida, nunca demonstrou. E não o faria agora, com
Jenny em seus braços.
— Você é a próxima vítima, Thornhill —Finchley disse quando a
música parou. — Venha e deixe a srta. Holloway mostrar a você
como se faz.
Justin cruzou a sala para dançar com Jenny. Helena tocou outra
valsa, dessa vez escolhendo uma peça mais lenta, e mais curta. Ela
teve a impressão de que Justin estava dançando com Jenny mais
por cortesia do que por prazer.
O sr. Finchley veio ficar ao seu lado, mas sua atenção se
demorou em Justin e Jenny.
— Thornhill é muito pouco sentimental para gostar de dançar.
Helena olhou para ele enquanto tocava.
— Acha que ele não é sentimental?
— Acho que ele prefere arriscar o pescoço a ficar confinado a
um salão de baile, forçado a se envolver com sutilezas sociais. Ele é
um homem de ação. Sempre foi. Mesmo quando criança.
— Foi o que ele me disse.
— Ele era nosso líder destemido, sabe.
Helena voltou o olhar para as teclas enquanto se debatia em
uma passagem difícil.
— Ele se sente responsável por todos vocês.
O sr. Finchley olhou para ela com leve surpresa.
— Ele disse isso?
— Não com tantas palavras — ela admitiu.
Ele riu.
— Com nenhuma palavra, aposto. Mas está certa, milady.
Thornhill suportaria o peso do mundo por nós, se pudesse. Ele
assume os fardos de todos, em detrimento dele mesmo. É uma das
suas particularidades mais irritantes.
— Estou quase sem fôlego — Jenny falou, parando. — Venha e
troque de lugar comigo, Helena.
Helena se levantou e foi até Justin. Ele observou com atenção
conforme ela cruzava a sala. Quando estendeu a mão, ela a pegou,
sentindo a outra se curvar com firmeza em torno de sua cintura. Ele
a atraiu para muito mais perto do que havia feito com Jenny. A
proximidade de seu corpo, tão grande e quente, provocou um
arrepio de excitação. Ela inclinou a cabeça para trás para olhar para
ele.
— O sr. Finchley diz que você não gosta de dançar.
Justin olhou para ela com um sorriso nos lábios.
— Talvez eu nunca tenha tido a parceira certa.
Helena queria perguntar se ela era a parceira certa, mas
parecia uma pergunta tola. Como ele poderia saber se nunca
dançaram juntos?
Jenny começou a tocar uma valsa popular, o ritmo lento e
regular como um relógio. Foi fácil para Helena pegar o ritmo,
especialmente com Justin conduzindo-a.
— Um-dois-três — ela murmurou enquanto valsavam por toda a
extensão da sala.
Justin riu. E então a girou em um movimento elaborado.
Ela ofegou de alegria, o que só o inspirou a girá-la novamente.
Jenny mudou para uma música animada e estimulante,
enquanto Justin valsava com Helena ao redor da sala. Eles giraram,
deslizaram, e se viraram. Foi fácil. Hilariante. Quando a música
finalmente parou, Helena estava sem fôlego de tanto rir.
— Tsc, tsc, tsc — Jenny brincou. — O que aconteceu com a
sua expressão de tédio que está tão em voga?
— Eu nunca a dominei — Helena respondeu ao recuperar o
fôlego. Ela sorriu para Justin. Ele ainda a segurava com força em
seus braços. — Vou tentar parecer indiferente a você quando
valsarmos juntos no baile.
Justin inclinou a cabeça em uma reverência simulada.
— Vou esperar por isso, milady.
Uma de suas mãos estava apoiada no ombro dele. Ela deveria
ter removido, sinalizando que ele poderia soltá-la ir. Em vez disso,
enquanto Jenny e o sr. Finchley trocavam palavras baixas ao
pianoforte, ela a ergueu e, muito suavemente, roçou os dedos em
sua bochecha.
Com o gesto breve e íntimo, Justin ficou imóvel. Ela o ouviu
inspirar, sentiu a mão dele se apertar em reflexo em sua cintura
coberta pelo espartilho. O sorriso dela desapareceu junto com o
dele.
Estou me apaixonando por você.
Ela não disse isso. Não podia. Dizer estragaria tudo. Mas a
sensação queimava dentro dela. Uma chama brilhante e radiante
que ela tinha certeza de que devia estar cintilando no fundo de seus
olhos, revelando tudo para ele.
Gosto de você. Eu me importo com você. Estou me
apaixonando por você.
— Minha vez — o sr. Finchley falou. — Embora eu não prometa
ser tão ousado quanto Thornhill com todas aquelas voltas e giros.
Helena tratou de tirar a mão do rosto de Justin. Ele se afastou
dela com igual rapidez. Mas não a entregou ao sr. Finchley.
— Chega de dançar. — A voz dele soou estranha aos ouvidos
dela. Era mais profunda e um tanto irregular. — Estamos todos
acalorados. Vamos ao Gunter’s tomar sorvete.
Helena se sentiu nervosa e mais do que um pouco tola, mas
controlou suas feições.
— Ah, sim — ela concordou. — Que ideia maravilhosa.
— Não tenho certeza se o Gunter's ainda está servindo sorvete
a esta hora — Finchley comentou. — Mas não acho que faria mal ir
até Berkeley Square e descobrir.
— Todos nós? — Jenny perguntou, levantando-se de trás do
piano.
— Claro — Justin respondeu. — Vou providenciar uma
carruagem.
E, com isso, ele saiu da sala, cheio de propósito.
Capítulo Dezenove

Não houve tempo de mandar fazer um vestido antes do baile


de lady Wardlow. Em vez disso, Helena foi obrigada a se contentar
em usar um de seus vestidos de baile da temporada anterior,
embora com alterações significativas. Jenny e a sra. Jarrow
passaram dois dias costurando, e a própria Helena ajudou a aplicar
debruns na bainha.
O resultado final foi uma criação de tirar o fôlego. O traje de
seda branca tinha o corpete trançado e saia dupla presa por um
cordão de flores frescas e folhagens. O profundo decote em V era
baixo e atravessava seus ombros, e as mangas curtas terminavam
logo acima da linha das luvas que iam até o cotovelo. Ela combinou
tudo com um leque pintado, sapatilhas de seda bordada e uma
coroa de flores em seus cabelos presos.
Justin a elogiou quando ela desceu as escadas, mas, assim
como nos dias anteriores, seu silêncio falava mais do que suas
palavras.
O artigo ainda não havia sido publicado.
Seria isso que estava inspirando sua inquietação? Helena não
sabia dizer. Tudo o que sabia era que a crescente intimidade entre
eles parecia ter parado bruscamente. Com frequência, o sentia
olhando para ela, mas quando tentava retribuir o olhar, seus olhos
se desviavam.
Ele tinha ouvido algo mais sobre seu tio e o sr. Glyde? Algo que
estava com medo de dizer a ela? Ou era simplesmente porque
havia se cansado de Londres? Porque havia se cansado dela?
— Mudou de ideia quanto ao baile? — ela perguntou durante o
trajeto até a casa de lady Wardlow, na Belgrave Square. Eles
alugaram uma carruagem para a noite. Era mais confortável do que
um coche de aluguel, Justin havia dito. Mas ele não parecia
particularmente confortável sentado em frente a ela. O marido
olhava pela janela, com a postura rígida e inflexível; tal qual um
soldado na linha de frente de uma batalha.
— Justin — ela o chamou.
Ele lhe lançou um olhar distraído.
— O que foi?
— Perguntei se você mudou de ideia quanto a ir ao baile.
Podemos dar meia-volta, se desejar.
— Depois de todo o esforço que você fez? — Seu olhar se
demorou no vestido de baile por um breve momento. — Acho que
não.
Helena refletiu que o próprio Justin também não havia poupado
esforços. Ele usava um fraque de noite completo com colete de
cetim branco e cauda preta. O cabelo havia sido meticulosamente
penteado, o chapéu e as luvas estavam ao lado dele no assento da
carruagem. Ele parecia bonito de uma forma severa e militar.
— Não me importo com nada disso — ela falou. — Se você não
quiser ir...
— Não estou me objetando.
Ela apertou os lábios. Seriam as queimaduras? Ele estava
cansado de ver as pessoas olhando-o e fazendo perguntas sobre a
Índia? Não que houvesse muitas. Até agora, a maioria de suas
saídas se limitaram a entretenimentos noturnos, teatros mal
iluminados e coisas do gênero. Para ter certeza, houve um ou dois
curiosos durante suas caminhadas diurnas no parque, mas nada
muito desagradável. Na verdade, Justin nunca pareceu se importar
muito.
A carruagem sacolejou pela rua e só o tilintar do arreio rompia o
silêncio entre eles.
— Ouso dizer que você ficará feliz em se livrar de mim esta
noite — Helena comentou.
Justin olhou para ela novamente, mas era difícil ler sua
expressão.
— Livrar-me de você?
— É considerado péssimo marido e mulher passarem muito
tempo na companhia um do outro em um baile — ela explicou. —
Devem dançar com outras pessoas, até mesmo jantar com outras
pessoas. Seria impróprio de outra forma.
— Esse é o costume, não é?
— É, sim.
— Não me importa. Não vou dançar com mais ninguém.
Uma onda primitiva de prazer a percorreu com sua declaração
taciturna.
— Ainda será esperado que eu dance. As pessoas achariam
estranho se eu não o fizesse. E não é esse o objetivo deste
exercício? Se comportar o mais normalmente possível?
Justin franziu o cenho em desaprovação. No entanto, quando o
primeiro homem no baile pediu uma dança, ele não fez objeção ao
ver Helena permitir que o cavalheiro escrevesse o nome no
pequeno cartão de dança que ela usava pendurado em seu pulso.
Em meia hora, todas as suas danças estavam reservadas, e a
carranca de Justin se transformou em uma máscara gelada de
desprazer.
— Você sempre foi tão popular? — ele grunhiu ao guiá-la ao
longo dos cantos do salão de baile.
A orquestra tocava uma exuberante polonesa. Lady Wardlow
havia escolhido uma para abrir o baile. Ela e o parceiro, um distinto
cavalheiro de meia-idade, estavam de braços dados e conduziam os
outros casais em um passeio ao redor da sala.
Letty não estava exagerando quando disse que o baile estaria
lotado. Quase não havia espaço de manobra entre todas as
anáguas e crinolinas de arame. Pior ainda, a luz a gás que
tremeluzia nas arandelas douradas e no majestoso trio de lustres de
cristal sugava lentamente todo o oxigênio da sala superaquecida.
Uma senhora corpulenta já havia desmaiado em uma pilha de
musselina engomada.
— Não é popularidade — Helena explicou. — É curiosidade.
Dois desses senhores, sir Bernard e lorde Flood...
— Eles sugeriram a polca e o reel, se não me engano.
Sugeriram? Ela já tinha se esquecido.
— Sim, bem... eles são dois dos homens que procurei para me
ajudarem com meu tio. Dois dos homens que se recusaram a
intervir em meu nome.
O braço de Justin ficou tenso debaixo de sua mão. Ele a olhou
com espanto.
— Por que aceitou dançar com eles?
— Pela mesma razão que concordei em voltar a Londres.
Porque estou tentando ser corajosa. Para enfrentar meus medos. E
porque você e o sr. Finchley insistem que devemos mostrar a todos
que não há nada de irregular em meu comportamento.
Um músculo na mandíbula dele se contraiu.
— Se tivessem concordado em ajudá-la, eles poderiam ter feito
alguma coisa? Poderiam ter evitado tudo isso?
— Não sei. Na época, acreditei que sim, mas pensando bem...
eles provavelmente não são poderosos o suficiente para influenciar
meu tio.
Um movimento através do salão chamou sua atenção. A mão
dela apertou o braço de Justin.
— Mas ele é.
Justin seguiu o olhar para o cavalheiro alto de cabelos grisalhos
que estava perto da fileira das jovens que nunca eram tiradas para
dançar e das acompanhantes destas, todas dispostas ao longo da
parede mais distante.
— O conde de Wolverton — ela disse. — O amigo mais antigo
de meu pai e um dos homens mais poderosos de Londres.
— Ele foi um dos homens a quem você pediu ajuda?
— Não. Eu nunca o visitei. — Ela observou enquanto lorde
Wolverton se destacava do grupo à parede e começava a caminhar
em direção a eles. — Eu já sabia que ele não me ajudaria. Ele vê a
questão da loucura com muita severidade. Na verdade, foi ele quem
encorajou meu pai a mandar internar minha mãe.
As apresentações foram curtas e um tanto desnecessárias.
Lorde Wolverton já tinha ouvido falar de seu casamento. Ele
perguntou a Justin alguns detalhes sobre seu regimento na Índia,
questionou Helena sobre o tempo em Devon e a convidou para
dançar. Uma valsa estava começando. Uma das valsas que havia
reservado especialmente para Justin. Mas não havia maneira
educada de recusar o conde.
Helena pegou sua mão estendida e permitiu que ele a
conduzisse até o piso polido do salão de baile. Os espelhos de
parede com moldura dourada refletiam as luzes bruxuleantes e os
dançarinos girando, dando a ilusão de que o baile estava ainda mais
lotado do que aparentava.
— O que é isso que ouvi sobre uma rixa com seu tio? — lorde
Wolverton questionou assim que começaram a dançar. — Lady
Yardley afirma que ele roubou suas joias.
— Sim, ele as escondeu de mim.
— Por que razão?
— Pela mesma razão que se esforçou para tirar o resto da
minha herança de mim; ganância.
Lorde Wolverton a conduziu por uma volta tranquila.
— O que quer dizer sobre sua herança?
— Ele está me pressionando para passar tudo para ele. Os
métodos que ele empregou para me persuadir se tornaram cada vez
mais bárbaros.
— Essa é uma acusação séria, senhora.
— É a verdade, milorde.
Lorde Wolverton franziu as espessas sobrancelhas prateadas
em uma carranca incrédula.
— Não sei como Castleton conseguiu esconder qualquer coisa
de você. Você é maior de idade, não é? A menos que o testamento
tenha sido considerado inválido.
— Não foi.
— Então não vejo qual é o argumento do homem. A lei é a lei.
Sim, era, Helena pensou com amargura, mas apenas para os
homens e, mesmo assim, apenas para os mais poderosos. Para as
mulheres e para os pobres, enfermos e sem amigos, a lei raramente
proporcionava qualquer conforto ou proteção.
— A lei é tão boa quanto os homens que a aplicam — ela
respondeu.
Lorde Wolverton errou um passo, quase pisando no pé dela.
Ele murmurou um pedido de desculpas:
— Não se espera uma discussão jurídica ao valsar com uma
jovem bonita.
— Não, de fato. Perdoe-me, milorde. — Helena não tinha ideia
de como conseguia manter a voz tão firme. — Haverá tempo
suficiente para discutir esses assuntos nos próximos dias.
O olhar de lorde Wolverton parecia uma navalha recém-afiada.
— A que se refere, senhora?
— Nada desagradável, senhor, garanto-lhe. — Helena o olhou
dentro dos olhos quando ele a girou novamente.
De alguma forma, conseguiu manter o semblante calmo durante
o resto da dança, mas quando lorde Wolverton a devolveu a Justin,
ela pôde sentir que começava a tremer.
— Pode me levar lá para fora, por favor? — perguntou a ele.
Justin o fez sem questionar, apenas parou para pegar sua capa
de noite. Ele a envolveu nos ombros dela ao acompanhá-la através
das portas que davam para o terraço de mármore.
Estava frio lá fora, mas depois do calor opressor do salão de
baile, Helena deu boas-vindas ao vento.
— O que aconteceu? — Justin perguntou.
Ela balançou a cabeça.
— Nada, nada. — Em seguida, continuou. — Talvez seja
demais para mim. Ver todas essas pessoas. Ter que fingir.
Ele se encostou na grade de mármore do terraço, olhando-a
com a mesma expressão ilegível que usava desde sua chegada.
— Não é tudo fingimento, é?
Ela não respondeu. Não soube responder.
— Quando o sr. Pelham vai publicar o artigo? Ele disse que
seria em uma semana, mas já se passaram dez dias desde que ele
foi à Half Moon Street. Há algo que você não está me contando?
Algo deu errado?
— Se tivesse, eu não esconderia de você. — Ele cruzou os
braços. — Pelham está apenas sendo minucioso. Finchley diz que
ele até rastreou os antecedentes de Glyde, se você pode acreditar.
Embora o próprio Glyde continue a se mostrar um tanto esquivo.
O olhar de Helena vagou sobre o jardim abaixo. Tochas a óleo
colocadas ao longo do perímetro iluminavam pequenas seções do
paisagismo em voga. O restante do jardim estava lançado em
sombras e trevas inconstantes.
— Ele pode estar aqui agora.
— Não o vi.
— Tem estado vigilante?
— Naturalmente — Justin respondeu. — É para isso que estou
aqui.
Ela suspirou.
— Você faz tudo soar como se fosse um dever. Eu gostaria... —
Ela parou, ouvindo quando a orquestra começou a música para a
próxima dança. Era a quadrilha. Não conseguia se lembrar para
quem a havia prometido.
Justin deu um passo à frente e pegou sua mão. Ele abriu o
cartão de dança em seu pulso, lendo a anotação à luz de uma
tocha.
— Lorde Wexford.
— Ah, sim. Eu tinha me esquecido. — Ela olhou através portas
do terraço. Lá dentro, o salão de baile brilhava com lâmpadas a gás
e velas. Os convidados brilhavam também, as senhoras cintilavam
com colares, pulseiras e brincos valiosos. — É melhor voltarmos
antes que ele sinta minha falta.
Justin continuou segurando a sua mão. Ele estava olhando para
as assinaturas em seu cartão de dança e franzindo a testa.
— Achei que você havia se comprometido com todas as
danças.
— Sim.
— Então, o que são todos esses pontos em branco?
Um rubor envergonhado aqueceu suas bochechas.
— São as suas danças. Eu as guardei para você. A menos que
você prefira...
Ele limpou a garganta.
— Não. É... eu não tinha percebido...
— São apenas valsas. E a dança da ceia, é claro. É um reel,
mas pensei...
— Tudo bem. — Ele largou seu cartão de dança, mas não a sua
mão. Ele a colocou com suavidade em seu braço. — Vou
acompanhá-la de volta.
Ela o puxou até que ele olhou para ela.
— Sinto muito por ter aceitado o convite de lady Wardlow — ela
falou em voz baixa. — Sei que você não está gostando de nada
disso.
— Bobagem — ele respondeu. — Quem não gosta de um
baile?

◆◆◆

Foi a última dança do baile. A valsa final. Justin girou Helena


em outra volta dramática. Depois de quatro danças juntos,
desenvolveram uma espécie de ritmo. Um bastante bom, ele
pensou. Quem se importaria se fossem démodé? Em sua opinião,
todo aquele despautério sobre maridos e esposas passarem a maior
parte da noite separados era ridícula. Regras tais foram, sem
dúvida, promulgadas por pessoas em casamentos infelizes.
Ele olhou para o rosto de Helena. Ela estava corada, linda e
infinitamente encantadora.
— Cuidado — ele falou. — Sua indiferença está lhe escapando.
Um sorriso brilhou em seus olhos.
— Ah, não preciso me preocupar mais com isso. Não soube?
Nosso casamento é por amor. Espera-se que ajamos como tolos.
O coração de Justin apertou dolorosamente.
— Um casamento por amor? Quem lhe disse isso?
— Lady Leticia Staverley. Parece que é o que todos estão
dizendo. Isso e que você é amigo do meu irmão. — Suas saias de
seda balançavam sobre suas pernas enquanto ele a rodopiava pelo
salão. — Parece mais problema do que vale a pena corrigir. Afinal,
não ficaremos aqui por muito mais tempo, certo?
Justin não sabia o que dizer. O futuro do casamento deles era
um assunto que vinha atormentando sua cabeça esses tempos. Na
verdade, nos últimos dias, todo o caso tinha se tornado muito mais
complicado do que parecia quando ele e Helena se conheceram em
Devon.
Ainda a queria. Claro que sim. Queria tudo dela. Sua risada e
seus sorrisos. Seus beijos suaves e a terna carícia de suas mãos.
Queria seu coração e sua alma; e seu corpo. Ele a queria tanto que
às vezes era doloroso olhar para ela.
O problema era que o relacionamento deles não podia mais ser
reduzido ao que ele queria.
Mas não podia pensar sobre nada disso. Agora não.
Não quando ela estava em seus braços.
— Um-dois-três — ele murmurou em seu ouvido.
Ela riu baixinho.
— Temo que passamos dessa fase há muito tempo.
— Deveras. Mas nunca se deve esquecer o básico. — Ele
executou outra volta escandalosa, tendo imenso prazer na maneira
como os olhos dela brilharam e os lábios se curvaram em um
sorriso. Quando a música acabou, ele a conduziu para fora da pista
de dança.
Foram brevemente apanhados em um mar de outros
convidados se despedindo e pegando casacos e capas. Mas não se
demoraram. Depois de se despedirem da anfitriã, saíram para a rua.
Estava repleta de carruagens pretas reluzentes, muitas das quais
com brasões laqueados nas portas.
Seu próprio veículo mais humilde estava no final do quarteirão.
Não adiantava chamar o cocheiro. A rua estava muito
congestionada para que ele chegasse mais perto.
— Teremos que caminhar até lá — Justin comentou.
Helena colocou a mão enluvada com mais segurança em seu
braço quando eles começaram a descer a rua. Não deram mais que
alguns passos quando Justin sentiu os pelos da nuca se eriçarem
em advertência. Ele se virou de forma brusca quando um lampejo
de mau presságio chamou sua atenção.
— O que há de errado? — Helena perguntou.
Justin olhou para um lado a outro da rua, mas não havia sinal
do sr. Glyde, nem de qualquer outra pessoa que parecesse um
vilão. Mesmo assim, tinha a nítida sensação de que estavam sendo
observados.
— Nada — respondeu. Mas quando alcançaram a carruagem,
não perdeu tempo em conduzir Helena para dentro. Subiu atrás
dela, sentando-se ao seu lado no assento voltado para a frente.
Helena retirou vários grampos do penteado.
— O salão de baile estava excepcionalmente quente — ela
comentou ao remover a coroa de flores. — Todas as flores
murcharam.
— Eu percebi. Pétalas caíram de suas saias durante o reel.
— Verdade? Que embaraçoso. — Ela colocou a coroa de lado.
— Acho que as flores de cera teriam sido melhores. Mas não teriam
cheirado tão bem.
Ele esticou o braço ao longo do encosto do assento e, como
havia se tornado seu costume durante as viagens de carruagem
para casa, ela se acomodou mais perto dele, apoiando a cabeça em
seu peito.
— Ah, bem — ela suspirou —, foi bom enquanto durou.
Ele passou o braço em volta dos ombros da esposa, mesmo
quando as palavras provocaram uma pontada de desespero direto
em seus órgãos vitais. Ela se referia aos enfeites do vestido, mas
para ele tais sentimentos assumiam um significado totalmente
diferente. Sim, foi bom. E Justin esperava, com fervor, que durasse
muito tempo. Mas era preciso ser realista.
Estava tudo chegando ao fim.
Esse fato foi sendo martelado nele a cada dança no baile
daquela noite. No vestido de seda enfeitado com rosas, nas tranças
escuras amarradas em uma coroa de flores e a pele macia em
exibição elegante, Helena era tão deslumbrante e inatingível quanto
o diamante Koh-i-Noor. Uma joia rara e preciosa de valor infinito. E o
brilho elegante da alta sociedade londrina era seu ambiente
adequado. Não o campo. E certamente não uma abadia remota e
arruinada na costa de Devon.
— Sabe o que eu gostaria de fazer amanhã? — ela perguntou.
Justin virou o rosto para o cabelo dela.
— O que, minha querida?
— Gostaria de fazer algo... ir a algum lugar... com a Jenny e o
sr. Finchley. Não parece justo que devamos sair todas as noites e
ela tenha que esperar por nós, sozinha na sala de estar, com
apenas seu bordado por companhia.
— O que ela fazia para se ocupar antes de todo esse
desagrado começar?
— Ela não era obrigada a fazer nada. Eu nunca tinha saído
tanto assim antes. Certamente, não todas as noites. E se eu fosse a
um baile ou jantar, me assegurava de que Jenny também fosse
convidada. Ela não é uma criada, você sabe.
— Você paga a ela, não é?
— Sim, uma soma anual, mas é mais uma mesada que um
salário. E não é o suficiente. Quando o banco liberar meus fundos,
pretendo separar um valor para dar independência a ela.
— Você a mandaria para longe?
Helena deu um pequeno puxão na casaca dele.
— Não seja bobo. Eu nunca mandaria Jenny embora. Mas ela
deve ser livre para ir se quiser. É terrível depender de outras
pessoas. Não importa o quanto sejam gentis, você sempre se sente
em dívida. Como se fosse uma obra de caridade.
— Não vou discutir com isso.
— É assim que você se sentiu? No orfanato?
— Em dívida? Meu Deus, não. Não havia nada pelo que ser
grato. Fomos tratados de forma abominável. Todo o estabelecimento
era corrupto, as crianças malvestidas e mal alimentadas. Quando
saí de lá para ser aprendiz, não me senti em dívida com eles. Eu me
senti como se...
— O quê?
— Como se tivessem tirado algo de mim. Como se tivessem
contraído uma dívida. Quando saí da Inglaterra, estava determinado
que um dia os faria pagar.
— Está falando de vingança.
— Estou falando de justiça.
Ela moveu os dedos em seu casaco, alisando uma ruga
inexistente.
— Foi você quem fechou o orfanato?
— Eu? — Justin deu uma risada sem humor. — Meu foco
estava em sir Oswald na época. Foi o Finchley. E ele não apenas
fechou; mandou derrubar o prédio.
Helena digeriu a informação em silêncio.
— Ele é tão bom e bem-humorado — falou, por fim. — Como se
nada o incomodasse, exceto questões de direito.
— Finchley é bastante amável, admito. Mas ele tem uma mente
diabólica e uma natureza implacável. Pode guardar rancor por mais
tempo do que qualquer pessoa que já conheci. Não vale a pena
estar longe das boas graças dele.
— Vou me lembrar disso.
— Não há necessidade. Não é provável que você faça nada
para incorrer a ira dele.
— Meu Deus, espero que não. — Ela acomodou a bochecha de
forma mais confortável em seu peito. — Você acha que ele vai
concordar em nos acompanhar em um passeio amanhã?
— Com a srta. Holloway? Sem dúvida. O que você tem em
mente?
— Um entretenimento noturno. Algo alegre. Ainda não
aceitamos convites. Podemos fazer o que quisermos.
— No sábado à noite, você pode escolher as diversões. Mas se
formos nós quatro... — Justin considerou as opções. — As
apresentações no Cremorne Gardens se encerram amanhã. Terá
malabaristas, equilibristas e assim por diante. Música e dança
também.
— Nunca fui — Helena falou. — Meu pai acreditava que lugares
como o Cremorne Gardens e o Vauxhall eram antros de perdição.
— E são — Justin respondeu. — É metade da diversão.
Capítulo Vinte

Localizado na margem norte do Tâmisa, o Cremorne Gardens


abrangia cerca de cinco hectares nos quais todos os tipos de
entretenimento eram oferecidos ao público. Havia exibições militares
e feitos de ousadia perigosa, incluindo apresentações de corda
bamba e subidas de balão. Música e dança eram apresentados em
um palco, comida quente e bebidas frias eram servidas no salão de
banquetes, e um grande pavilhão abrigava exposições de
horticultura de todo o mundo.
Entraram nos jardins por um par de majestosos portões de ferro
preto. Helena segurou o braço de Justin, e Jenny estava
acompanhada pelo sr. Finchley. A noite estava fria, e ela e Jenny
usavam mantos por cima dos vestidos.
— O que devemos fazer primeiro? — o sr. Finchley perguntou.
— Dançar — Jenny respondeu de forma enfática.
A noite começou em um turbilhão de atividades. Eles
dançaram, riram e tomaram champanhe. Assistiram a um
equilibrista se balançar em um cabo de aço pendurado a quase dois
metros do solo; uma exibição que fez Helena ofegar várias vezes e
enterrar o rosto na manga de Justin. E, então, a pedido do sr.
Finchley, eles procuraram uma das atrações mais populares do
jardim: o famoso cão que joga uíste.
— Lily, A Cadela Instruída — Jenny leu em voz um cartaz alta.
— Que enganação!
Mas quando um voluntário foi chamado em meio ao público
para atuar como oponente de Lily no uíste, a pequena spaniel
marrom e branco realmente pareceu jogar um jogo digno de crédito.
— Tão astuta quanto uma viúva de Bath — o sr. Finchley
observou.
— O dono está dando dicas para ela — Justin apontou.
— Que dicas? — Helena não conseguia discernir nenhuma. Na
verdade, o cavalheiro de bigode parado ao lado do cachorrinho mal
se mexia.
— Admita — Finchley desafiou, quando enfim se afastaram. —
A cadela é um gênio.
— Se eu tivesse um cachorro genial — Jenny retrucou —, o
treinaria para fazer algo mais útil do que jogar uíste e dominó.
Helena riu.
— Temos dois cães na abadia. Paul e Jonesy. Não consigo
imaginar que eles fossem gostar de um jogo de cartas. A menos que
houvesse um osso bem grande envolvido.
Justin a olhou com um tipo estranho de sorriso brincando em
seus lábios. Ele não disse nada.
Seu humor estava um tanto instável ultimamente.
Na maioria das vezes, ele se comportava como antes. Era
gentil e protetor, às vezes confiando nela, às vezes provocando-a e
fazendo-a rir. Mas havia momentos em que ele ficava quieto.
Quando seus pensamentos pareciam se voltar para dentro. Pior
ainda, havia momentos em que ele tinha ataques de mau humor.
Quando ficava conciso e impaciente, refletindo sobre algum
problema, cuja tema parecia bastante indisposto a compartilhar.
— Vamos visitar o Pavilhão Ashburnham? — ele perguntou.
Todos concordaram que deveriam e seguiram pelos jardins até
a imensa estrutura em estilo catedral que, recentemente, havia sido
palco de uma exposição de plantas americanas. Foi feito em
madeira unida com parafusos de ferro e ostentava um telhado de
lona impermeável. Mais de duzentas janelas retangulares sem vidro
alinhavam-se na parte superior das paredes, deixando o pavilhão
aberto aos elementos.
— Está tão escuro e vazio — Jenny comentou. — A exposição
deve estar fechada.
Justin ergueu a mão e esfregou a nuca. E seu olhar vagou
sobre a paisagem circundante. Era pontilhada por árvores e
arbustos e entrecruzada por caminhos nos quais pequenos grupos
de pessoas caminhavam, conversavam e riam.
Helena sentiu o corpo dele ficar rígido ao seu lado.
— O que há de errado? — ela perguntou. Ele se comportou
dessa maneira fora da casa de Lady Wardlow. — Está vendo
alguém?
O sr. Finchley se aproximou de Justin. Helena viu os dois
trocarem um olhar ponderado. Havia mais compreensão naquele
olhar, mais história, do que ela podia compreender no momento.
— Justin? — ela perguntou.
— O Finchley vai levar você e a srta. Holloway para casa — ele
respondeu de forma abrupta.
Um arrepio de medo desceu pela espinha de Helena.
— Por quê? É o sr. Glyde? Ele está aqui?
O sr. Finchley segurou o braço de Helena com gentileza.
— Se puder me acompanhar, milady.
Ela não se mexeu.
— Justin, eu...
— Vamos conversar em casa. — Ele lhe lançou um olhar
severo: — Sem perguntas, Helena. Preciso que você vá com o
Finchley. Agora.
— Mas...
— Agora! — ele grunhiu.
Foi um comando de campo de batalha, se é que já ouviu um,
que quase a fez estremecer. Droga, ele e sua arrogância! Ela
ergueu um pouco o queixo, atraindo a dignidade para si com a
mesma segurança com que puxava o manto de veludo.
— Como quiser.
O coração martelava quando ela segurou o braço do sr.
Finchley.
Ele ofereceu o outro braço para Jenny.
— Direto para a carruagem, senhoras. Sem demora.
Helena olhou para Justin por cima do ombro, mas ele não a
olhava. O marido voltara a fitar a paisagem escura.
— Eu não vi nada — Jenny disse. — Você viu alguma coisa?
Você viu?
— Nada — o sr. Finchley respondeu ao levá-las às pressas
para os portões do jardim. — Mas conheço Thornhill há muito tempo
para fazer perguntas quando ele fica com aquele olhar.
◆◆◆

Justin ficou imóvel enquanto Horace Glyde emergia do grupo de


árvores perto do Pavilhão Ashburnham. Ele estava usando um
casaco de tecido escuro, e um chapéu de feltro de aba baixa caía
sobre os olhos.
— Há quanto tempo está nos seguindo? — Justin perguntou.
Seu sangue já estava fervendo, mas quando olhou para o homem
que havia caçado e machucado Helena, uma raiva incandescente
acendeu dentro dele. Queimou as arestas cruas de sua razão, não
deixando nada para trás, exceto um desejo primitivo de violência
rápida e brutal.
Glyde o avaliou com cautela.
— Eu não o estou seguindo, chefe. Procuro a sobrinha de
Castleton.
Justin avançou para ele.
— Ela é minha esposa. Realmente achou que eu lhe deixaria
levá-la?
Glyde não deu sinais de recuar. Era um bruto enorme. Muito
provavelmente nunca teve que fugir de uma luta em toda sua vida
miserável.
— Não depende do senhor, não é? É a lei. Exatamente como o
magistrado disse em Devon.
— Se suas ações são legais, por que está se escondendo em
Mayfair e Cremorne Gardens? Por que não se mostra à luz do dia?
Glyde avançou. Parou em frente à entrada do pavilhão, a
apenas um braço de distância de Justin.
— Sua senhoria não quer escândalo, senhor. Sabe disso.
— O que sei é que o senhor parece gostar de aterrorizar damas
bem-nascidas.
— Não é nada pessoal.
— Para mim, é. — Por reflexo, Justin cerrou os punhos ao lado
do corpo. O som sinistro de seus dedos estalando fez Glyde lançar
um olhar inquieto para baixo.
— Calma, chefe — ele disse. — Não há necessidade de brigar.
É só um trabalho.
— Machucar e abusar das mulheres?
— Não uma mulher. Uma lunática. O senhor viu os papéis.
Castleton disse... humpf! — A cabeça de Glyde estalou para trás em
seu pescoço grosso quando Justin acertou um soco impressionante
em sua mandíbula.
Depois disso, Glyde abandonou qualquer pretensão de
civilidade.
Ele se voltou para Justin, acertando-o no ombro. O capitão
quase perdeu o equilíbrio. Diabos. O homem tinha punhos do
tamanho de pedras. Justin o acertou no rosto novamente e depois
na barriga. Glyde devolveu golpe após golpe.
Lutaram um com o outro, tropeçando pela porta do pavilhão e
passando por uma mesa de plantas.
Não foi uma luta adequada com golpes executados com
perfeição. Foi violenta, desorganizada e sangrenta. Glyde cortou o
lábio de Justin e seu supercílio. Justin vagamente registrou ter
arrancado alguns dentes de Glyde e quase o estrangulado com o
próprio lenço de pescoço.
Mas não importava quantos socos e golpes foram trocados,
Glyde continuou vindo. Ele era grande, brutal e aparentemente
implacável. Fatos que só serviram para atiçar ainda mais a raiva de
Justin.
— Não pode vencer, chefe — Glyde ofegou, circulando ao redor
dele. — Não é uma luta equilibrada.
Justin cuspiu sangue no chão do pavilhão.
— O inferno que não é.
— Não sou um rapaz magricela que pegou o xelim da rainha.
Não pode me espancar por atrevimento.
— Espancar? — A voz de Justin vibrou com fúria. — Eu vou
matá-lo.
— O senhor? — Glyde bufou. — Improvável. — Ele se lançou
para frente, agarrando Justin com um aperto de ferro. — Eu sei
como vocês, cavalheiros, lutam.
Justin segurou Glyde pela camisa.
— Quem disse que sou um cavalheiro? — ele perguntou. E
então bateu com o alto da testa na ponte do nariz de Glyde,
quebrando-o em um ruído audível de cartilagem e osso.
Glyde uivou de dor quando o sangue jorrou de suas narinas.
Ele agarrou o rosto.
— Seu bastardo! — ele gemeu. Ou algo muito parecido. Justin
não conseguia entender suas palavras.
Ele puxou Glyde pelo casaco antes que o homem pudesse cair
no chão.
— Estou pensando em encontrar um pouco de água fria e
forçá-lo a ficar debaixo dela por quatro ou cinco horas — ele
grunhiu. — Mas, dada a nossa localização atual, imagino que terei
que me contentar em bater em você até que fique inconsciente.

◆◆◆

Uma hora depois de voltarem para a casa na Half Moon Street,


um menino apareceu com uma mensagem para o sr. Finchley.
Helena não sabia o que dizia o papel. Só sabia que tinha vindo de
Justin.
— Ele está bem? — ela perguntou, desesperada.
O sr. Finchley enfiou o bilhete dobrado no bolso do casaco.
— Bem o suficiente para mandar me buscar. — Ele pegou o
chapéu e o sobretudo das mãos do sr. Jarrow e foi até a porta. —
Devo ir imediatamente.
Helena o seguiu, com Jenny logo atrás.
— Feche bem a casa, Jarrow — Finchley orientou.
E então ele se foi.
— Bem! — Jenny exclamou. — Ele não ajudou em nada.
Helena não teve coragem de ficar irritada com o sr. Finchley.
Estava muito preocupada com Justin. Ele devia ter visto o sr. Glyde
ou o seu tio. Era a única explicação.
Mas o que aconteceu a seguir? Não gostava nem de cogitar.
Justin era um homem grande, musculoso e de ombros largos. O tio
jamais poderia ter esperança de vencê-lo se os dois brigassem. No
entanto, o sr. Glyde, embora nem de longe fosse tão alto quanto
Justin, era quase do tamanho de uma casa.
Ela torceu as mãos enquanto subia as escadas e voltava para o
salãozinho. Jenny pediu outro bule de chá, e as duas se sentaram
juntas diante da lareira a carvão e esperaram.
E esperaram mais.
Quando o pequeno relógio sobre a lareira bateu duas horas,
Helena insistiu que Jenny fosse se deitar.
— Não há razão para nós duas ficarmos acordadas até o
amanhecer.
Jenny apertou os lábios.
— Você deveria se recolher também, Helena. Está muito tensa.
Helena balançou a cabeça.
— Não conseguiria pregar o olho.
— Pelo menos troque o vestido de noite. Não pode passar a
noite toda de espartilho e crinolina. — Jenny segurou a mão dela. —
Venha para o seu quarto. Vou soltar seu cabelo e escová-lo para
você. Você se sentirá melhor depois disso.
Relutante, Helena fez o que Jenny sugeriu. Pouco depois,
voltou sozinha para o salãozinho, com o roupão de flanela amarrado
na cintura e os cabelos preso em uma trança simples. Ela se
aninhou no sofá de chita. A casa estava silenciosa e os únicos sons
eram o tique-taque rítmico do relógio e o estalar das brasas na
lareira. Fechou os olhos por um breve momento. A próxima coisa
que soube era que o relógio estava batendo as três horas. Seus
olhos se abriram turvos. Que amolação! Ela devia ter adormecido.
Sentou-se ereta no sofá e ouviu. Não havia som de mais ninguém
na casa, mas do lado de fora, podia ouvir o leve chacoalhar e o som
de cascos batendo de um tílburi se afastando.
Desceu correndo as escadas, com a saia volumosa de seu
roupão flutuando atrás dela. O sr. Jarrow passou a noite no corredor,
de vigília em uma cadeira de espaldar reto. Ele ainda estava lá, mas
agora estava de pé, destrancando a porta.
Justin e o sr. Finchley entraram. Seus chapéus e casacos
haviam sumido, seus cabelos estavam desgrenhados e as camisas
e calças estavam em um estado deplorável. Se Helena não
soubesse, teria suspeitado que estivessem bêbados. Mas enquanto
descia as escadas com pressa, viu o rosto de Justin iluminado pela
luz a gás.
Levou a mão à boca, mal sufocando seu suspiro de horror.
O olhar de Justin encontrou o dela.
— Ah, maldição — ele murmurou.
— O que aconteceu? — ela gritou. — Quem fez isso com você?
— Parece pior do que é — Justin respondeu enquanto o sr.
Jarrow fechava a porta atrás deles.
Ela cruzou o corredor, estendendo a mão trêmula para ele
apenas para recuar na incerteza.
— Você está coberto de sangue!
— Ferimentos na cabeça sempre sangram muito — Finchley
explicou, prestativo.
Ela lançou um olhar bravo a ele.
— Não finja que não é sério. Está óbvio que ele foi
severamente espancado.
— Muito severamente — o sr. Finchley concordou. — Basta
olhar para o dano que Glyde fez aos punhos dele.
A ironia na voz do sr. Finchley lhe escapou. Helena segurou
uma das mãos de Justin nas suas. Os dedos estavam esfolados e
sangrando.
— Ah, Justin — ela sussurrou. — Você lutou com ele?
— Milady? — A sra. Jarrow apareceu no corredor. Estava de
touca de dormir e chinelos, segurando o roupão até o queixo. — A
senhora precisa de mim?
Helena respirou fundo para se acalmar. Não desmoronaria.
Recusava-se a ser essa pessoa.
— De fato, sra. Jarrow. Pode levar água quente e roupa de
cama para o meu quarto? E uma garrafa de conhaque também.
— Imediatamente, senhora.
Justin fez uma careta para ela. Pelo menos, era o que parecia.
Era difícil dizer por causa de todo o sangue e inchaço.
— Achei que já estivesse dormindo.
— Enquanto você estava no escuro em algum lugar arriscando
sua vida? — Ela segurou o braço dele e o conduziu até a escada. —
Se foi isso que pensou, senhor, então não me conhece.
O sr. Finchley recuou em direção à porta.
— Como minha presença não é mais necessária...
— Espere — Helena ordenou. — Podemos ainda precisar que
você chame um médico.
— Não, não será preciso. — Justin parou ao pé da escada para
olhar para o sr. Finchley. — Vá para casa, Tom. Falo com você
amanhã.
O sr. Finchley sorriu para ele.
— Já é amanhã — ele respondeu antes de sair.
O sr. Jarrow trancou a porta.
— A senhora vai precisar de mais alguma coisa, milady?
— Não, obrigada, sr. Jarrow. Isso é tudo.
O sr. Jarrow esboçou uma reverência cansada e saiu do salão.
E então Helena e Justin ficaram sozinhos.
Ela olhou para o rosto machucado dele.
— Por que você fez isso?
— Ele mereceu.
— Mas olhe para você — ela disse baixinho. — Seu pobre
rosto. Ele não pode ter valido a pena.
Justin olhou fixamente para ela.
— Não. Mas você vale.

◆◆◆

Helena mergulhou outra toalha na bacia com água


ensanguentada e a levou ao rosto de Justin. Ela limpou a maior
parte do sangue seco de seu rosto e mãos, revelando uma coleção
aleatória de cortes e arranhões irregulares, nenhum dos quais
parecia ser fatal.
Justin se manteve imóvel enquanto ela cuidava dele,
suportando suas atenções em um silêncio estoico. Ele estava
sentado na beira da cama com os pés ainda calçados com as botas
encostados no chão. Helena ficou entre suas pernas e estendeu a
mão para limpar um ferimento em sua têmpora. Sentiu os olhos de
Justin mirá-la enquanto trabalhava.
— Achou que era isso que eu queria? Que você se envolvesse
em brigas com aquele grande palerma? — Afastou uma mecha
rebelde da testa dele, a fim de limpar o ferimento. — Eu nunca teria
pedido a você para lutar contra ele em meu nome. Nunca.
Justin permitiu que ela ralhasse com ele, sem reclamar. Não
ofereceu nenhuma explicação.
— Como acha que me senti esta noite? Sem saber se você
estava seguro ou se tinha sido assassinado e jogado no Tâmisa? —
Ela largou o tecido na água tingida de sangue da bacia e estendeu a
mão para desabotoar os botões da gola da camisa dele.
Ele segurou a mão dela.
— O que você está fazendo?
— Você precisa tirar essa camisa — respondeu.
— Não tenho ferimentos debaixo dela.
— Eu vou julgar isso. A menos que você prefira que eu chame
um médico.
Ele cerrou a mandíbula. E então soltou a sua mão, permitindo
que ela desabotoasse o colarinho. Quando ela terminou, ele
rapidamente tirou a camisa pela cabeça.
Ela olhou para baixo. Havia escoriações em seu peito e o que
pareciam ser hematomas florescendo ao longo de suas costelas,
mas não foi isso que fez seu coração quase parar e sua boca secar.
Não. Foi a visão dele, tão chocante, gloriosamente masculino.
Helena nunca tinha visto o peito nu de um cavalheiro antes,
exceto em livros com imagens da antiguidade clássica. Lembrou-se
de uma delas com uma placa representando uma estátua de
Prometeu acorrentado a uma rocha. O titã grego estava
parcialmente despido, com os músculos magros dos braços e tórax
bem definidos. Os braços nus e o torso de Justin foram moldados
nas mesmas linhas da estátua. Na verdade, os planos rígidos e
sulcos de seus músculos poderiam ter sido esculpidos em pedra.
Mas, ao contrário do Prometeu de mármore, o peito de Justin
era levemente coberto por pelos escuros que se estreitava em uma
linha que desaparecia debaixo das calças de lã.
Também era coberto de cicatrizes.
Ao longo de cada um de seus braços havia marcas
queimaduras. Do mesmo tamanho e formato das cicatrizes que
marcavam seu rosto e pescoço. Eram vermelhas e enrugadas,
caindo em linhas grossas uma sobre a outra. Atiçador quente, ele
disse. Eles o esquentaram no fogo e, em seguida, me marcaram
com ele.
Helena umedeceu os lábios. Justin a fitava com a expressão
inescrutável de sempre. Ela estava dolorosamente ciente da
intensidade de seu olhar. Será que o marido achou que ela se
encolheria ao vê-lo? Não sentia muita vontade de se encolher. Pelo
contrário. Queria tocá-lo. Traçar os dedos sobre cada cavidade e
sulco de seu peito musculoso.
Pegou uma toalha limpa, sentindo as mãos repentinamente
instáveis enquanto embebia o tecido na água e o torcia.
— Será que ele quebrou suas costelas? — Ela pressionou um
pequeno corte abaixo de seu ombro direito.
Ele prendeu a respiração.
— Não.
— Dói? — Ela esfregou a toalha molhada de leve sobre o peito
dele.
— Não — ele repetiu.
— Você fala como se doesse.
— Não dói.
Helena franziu o cenho para ele. Todos os cavalheiros eram tão
difíceis quando estavam feridos? Giles, não. Mas também não
conseguia se lembrar de Giles ter se envolvido em uma briga a
socos com um homem das dimensões do sr. Glyde.
Jogou a toalha de volta na bacia e, em seguida, levou tudo para
a cômoda. A sra. Jarrow havia trazido um pote de unguento junto
com as toalhas. Helena abriu a tampa e cheirou. Satisfeita, voltou a
ficar entre as pernas de Justin.
— O que é isso? — ele perguntou.
— Algum tipo de bálsamo. Tem cheiro de cera de abelha e mel.
— Ela tocou o queixo dele com os dedos, erguendo o rosto para que
pudesse aplicar uma boa quantidade em um dos cortes. — Onde
está o sr. Glyde agora? Ele voltou para o meu tio?
— Não. Ele não está com o seu tio. — Justin fechou os olhos
enquanto ela passava pomada nos cortes na testa. — Está nas
docas de Londres.
— O que ele está fazendo lá, pelo amor dos céus?
— Agora? Está amarrado nos fundos de um navio.
— O quê?
Justin abriu os olhos de novo. Pela primeira vez desde seu
retorno, viu algo parecido com humor em seu olhar.
— Glyde disse que aterrorizá-la era trabalho para ele, nada
mais. Então... — Ele deu de ombros. — Encontrei uma nova
ocupação para ele.
Helena o olhou, boquiaberta.
— Uma nova ocupação? — Estava fascinada e horrorizada. —
Onde?
— Nas Índias Ocidentais. Ele partirá com a maré da manhã.
— Ele se foi? Deixou Londres? — Ela pressionou a mão sobre
o diafragma. — Ele vai voltar?
— Não — Justin respondeu, suavizando a voz. — Ele não vai
voltar.
Helena mal conseguia acreditar. O sr. Glyde foi embora? Ele
nunca mais a machucaria?
O pote de unguento caiu no chão quando ela passou os braços
em volta do pescoço de Justin. Estava além das palavras. Além de
qualquer coisa. Tudo o que conseguiu foi abraçá-lo com força,
esperando, contra todas as esperanças, que ele entendesse o
quanto estava grata pelo que tinha feito por ela.
Justin passou um braço por sua cintura. Ele recuou para olhar
para ela.
— Não quero sua gratidão. Não fiz isso por esse motivo.
— Mas a tem de qualquer maneira — respondeu. — E muito
mais.
Depois, ela se perguntaria se ele moveu a cabeça por vontade
própria ou se foi ela quem o incitou com a pressão insistente de sua
mão. Ela temia muito que fosse o último.
Quem quer que tenha instigado o movimento, levou a sua boca
a encontrar a dele em um beijo sensual e apaixonado.
Ele não a rejeitou. Não no começo. Por um breve momento, ele
retribuiu o beijo com a mesma ternura que demonstrou por ela no
Stanhope Hotel. E então...
— Não — ele falou com gentileza — Não. — Justin tocou sua
bochecha. — Não é uma boa ideia.
Helena ficou rígida de vergonha quando ele se afastou. Uma
onda de humilhação esmagadora apertou sua garganta.
— Você está certo.
Mas não sabia com o que estava concordando. Estava
mortificada demais para pensar. Com muita vergonha de olhá-lo nos
olhos. Se um buraco se abrisse no chão, saltaria nele de bom grado.
Meu Deus, ela o beijou. E agora... ele a estava rejeitando.
— Só vai confundir as coisas — Justin disse.
— Entendo. — Ela se afastou dele. — Perdoe-me, pensei...
mas você está certo. Eu estava errada.
— Helena...
Ela deu outro passo para trás em direção à porta.
— Está claro como o dia. Não sei por que não consegui ver isso
antes.
Ele se moveu para se levantar da cama.
— De que é que você está falando?
— Você não pode superar. As mentiras que eu contei. A
maneira como eu o enganei para se casar comigo.
— Não seja ridícula. Não é por isso... — Ele interrompeu com
um grunhido baixo de frustração. — Bom Deus, Helena, já
superamos isso. Você não mentiu para mim. Eu sabia que você
tinha segredos. Eu a quis de qualquer maneira.
— Você não me quer. Não pode me querer. — Suas bochechas
queimaram. — Quando alguém faz algo errado, você é incapaz de
perdoar.
Um espasmo de emoção passou pelo rosto de Justin.
— Não você. Nunca você.
— Por que não? Seria justo, no meu caso. O que fiz é
imperdoável. Foi estúpido da minha parte pensar... esperar... — Ela
engoliu em seco. — Depois do que escondi de você, não mereço o
seu perdão.
Um olhar desolado de resignação cintilou nos olhos de Justin.
Ficou ali por um momento e depois sumiu, apagado como a chama
de uma vela enquanto sua expressão se endurecia em firme
resolução.
— Você gostaria de saber o que é imperdoável? — ele
perguntou. — As coisas que eu escondi de você.
— Nada poderia ser pior do que isso.
— Acha que não? — Ele olhou para ela. — No dia em que nos
conhecemos no King’s Arm, você me perguntou a qual general servi
em Cawnpore. Você queria saber se era o major-general Hugh
Wheeler ou se eu havia chegado mais tarde, como parte das forças
de apoio, sob o comando do general de brigada Neill.
Helena o encarou, sentindo o constrangimento com a rejeição
dele diminuir.
— Você disse que não foi o general Neill. Que você não tomou
parte no... — Ela não conseguiu mencionar o estupro. — Na...
pilhagem... perpetrada por seus homens.
— Não tomei — ele falou. — Mas se eu tivesse executado
minhas funções com habilidade, não teria havido necessidade de
Neill cavalgar com suas tropas e retomar a cidade.
— Não entendo.
— Por minha causa, mais de duzentas mulheres e crianças
foram massacradas em Cawnpore. Mulheres e crianças britânicas.
Todas capturadas e mortas da maneira mais hedionda. Mesmo
assim, sobrevivi. Eu. Quem deveria protegê-las. Isso não é
imperdoável?
Uma sensação de mal-estar se infiltrou no sangue de Helena.
Mais de duzentas mulheres e crianças britânicas? Bom Deus. Ele
não queria dizer...
— O massacre de Cawnpore — ela sussurrou.
Ela sabia do acontecido. Todo mundo sabia. Foi há dois anos e
saiu em todos os jornais. Os primeiros relatórios descreveram as
atrocidades em detalhes explícitos. Os atos indignaram o público
britânico.
E inflamou as forças de apoio.
Sob o comando do general de brigada Neill, eles exigiram uma
vingança brutal contra os responsáveis. Muitos indianos inocentes
foram vítimas de sua ira.
Justin se sentou na beira da cama.
— A guarnição britânica em Cawnpore estava sitiada. Não
duraríamos muito mais tempo. Não tínhamos recursos. Depois de
três semanas, o general Wheeler não teve escolha a não ser
negociar com os rebeldes. Em troca de sua rendição, ele fez seu
líder, um rajá rebelde chamado Nana Sahib, garantir às mulheres e
crianças salvo-conduto para fora da cidade.
Helena se aproximou enquanto ele falava, com os braços
cruzados.
— Fui um dos soldados que escoltou as mulheres e crianças
até o rio Ganges. Havia barcos lá que as levariam para um local
seguro. — A garganta de Justin se apertou. — Mas quando
chegamos a Sati Chaura Ghat... quando começamos a embarcar
nos barcos...
— Os cipaios atacaram — ela completou.
— Eles mataram a maioria dos soldados. Meu oficial também.
Vou poupá-la dos detalhes. Quanto às mulheres e crianças...
— Eles os capturaram e prenderam em uma casinha perto de
um poço. Li sobre isso nos jornais.
— Elas não foram apenas presas lá, Helena. Foram
massacradas.
— Eu sei — ela reconheceu em voz baixa. Os jornais
publicaram reportagens sobre o que os soldados britânicos
encontraram quando finalmente chegaram para resgatar as
mulheres. Foi indescritível. Uma tragédia horrível e estúpida que
Helena nem conseguia imaginar. — Ah, mas Justin... não foi sua
culpa. Como poderia ter sido?
— Porque eu simpatizava com eles — ele respondeu com
súbita ferocidade. — Nunca pensei que deveríamos estar na Índia.
Quem poderia culpá-los por nos odiar? Nós os desrespeitávamos.
Nós o tratávamos como animais. — Ele fechou uma das mãos. —
Eu tinha amigos entre eles. Homens e mulheres decentes. Fiz
negócios com eles. Até investi parte dos meus ganhos. Quando o
inferno começou, meu julgamento foi questionado. E quando fui
incumbido de escoltar as mulheres e crianças prisioneiras para a
segurança... — O rosto dele se contorceu.
— Mas isso é... — Helena ficou horrorizada. — Certamente
ninguém poderia ter pensado...
— Que não lutei tanto quanto poderia? Que não fiz o meu
melhor para protegê-las do mal? — Ele se inclinou para frente, com
os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça entre as mãos.
Passou os dedos pelo cabelo já desgrenhado. — Fizeram mais do
que pensar. Alguns deles disseram isso. Embora raramente na
minha cara.
— Como puderam sugerir tal coisa? Você foi capturado e
torturado!
— Sim — ele disse. — Mas eu não fui morto. — Ele olhou para
ela, com a boca contorcida em um sorriso amargo. — Ao contrário
dos outros prisioneiros, meus captores me deixaram viver.
Capítulo Vinte e um

Justin se levantou de forma abrupta da cama e cruzou o quarto


até a cômoda com tampo de mármore. A sra. Jarrow tinha trazido
uma garrafa de conhaque. Não havia copos. Ele supôs que Helena
pretendia derramar a bebida em suas feridas ou algo assim. Mas
não se importava para o que seria.
Tirou a rolha com os dentes e deu um longo gole, direto do
gargalo.
Estava bastante consciente de seu estado semivestido. Com o
peito e os braços com cicatrizes expostos à vista de Helena, sentia-
se estranhamente vulnerável. Como um rapaz inexperiente com sua
primeira mulher. Mas tais sentimentos empalideceram em
comparação ao desespero e à desesperança que se abateram
sobre ele ao contar o que tinha se passado em Cawnpore.
Helena ficou perto da cama, observando-o enquanto ele bebia.
O cabelo dela estava preso em uma longa trança, atada na frente de
um ombro com uma fita de seda preta. Podia ver manchas de
sangue em seu roupão, de quando ela limpou suas feridas.
Havia algo surpreendentemente íntimo sobre os dois juntos em
seu quarto, cada um em um estado de nudez. Era como sempre
imaginou que seria a vida de casado. Estar, de certa forma,
confortável com uma mulher. A sensação de que ela o aceitava. Por
inteiro.
Mesmo assim, não planejara contar a ela sobre o massacre.
Não agora. Possivelmente nunca. Era uma fonte de vergonha para
ele. Um fracasso que resultou na morte de inúmeras pessoas.
— Você disse que era apenas um dos soldados encarregados
de escoltar as mulheres e crianças até os barcos — Helena
apontou. — O que significa que havia outros.
— Isso mesmo.
— O que aconteceu com esses soldados? Foram todos
mortos?
— De jeito nenhum. — Ele se recostou na cômoda, com a
garrafa de conhaque ainda em sua mão. — Alguns conseguiram
atravessar o rio.
— E onde estão agora?
— Não tenho a menor ideia. — Ele tomou outro gole de
conhaque. Sabia o que ela queria dizer e não queria ouvir.
Não que isso a impedisse.
— Eu me pergunto se, como você, eles assumem tanta
responsabilidade pelo que aconteceu — falou. — Eu me pergunto
se eles estão lá fora, cumprindo sua penitência em algum lugar, se
autoflagelando e coisas do gênero.
— Helena...
Ela cruzou os braços
— O sr. Finchley me disse que você assume os fardos de todos
os outros. Que suportaria o peso do mundo, se pudesse.
— Disse? — Parecia algo que Finchley diria.
— Acredito que ele esteja certo. Eu mesma vi. Com Neville e
os criados da abadia. Comigo. Você cuida de todos. É da sua
natureza proteger as pessoas. Mas um único soldado não poderia
ter salvado todas aquelas mulheres e crianças, Justin. Você deve
saber disso. Nem mesmo se esse soldado fosse você.
Ele balançou a cabeça.
— Não é tão simples assim.
— Claro que é. Você só precisa se perdoar. — Ela foi em
direção a ele, os olhos procurando os seus. — Mas você não pode,
pode? É tão implacável com as próprias falhas quanto com as de
outras pessoas.
Ele se encolheu. Era a segunda vez que ela mencionava sua
incapacidade de perdoar. Meu Deus, mas era verdade. Não tinha
perdão dentro de si. Não conseguia se lembrar se já tinha perdoado
alguém.
— Não a incluí nesse grupo — ele falou, com voz rouca. —
Nunca incluí.
Ela parou na frente de Justin. As saias de seu roupão se
agruparam ao redor das pernas dele.
— Então, por que... — Ela hesitou por um momento, parecendo
incrivelmente incerta. — Por que parou de me querer?
A pergunta deixou Justin temporariamente sem fala. Na
verdade, não poderia ter ficado mais surpreso se ela pegasse uma
marreta e o golpeasse na cabeça.
— Depois da noite em que o sr. Glyde veio à abadia, você
nunca mais tentou me beijar. Nem tentou me persuadir a... — Um
rubor tomou conta de seu rosto.
Ele gemeu.
— Acha que não a desejo? Acha que não morro um pouco toda
vez que a vejo... toda vez que desejo beijá-la? Tomar você em meus
braços?
Seu rubor se aprofundou para escarlate.
— Então, por quê?
Por quê? Havia se feito essa pergunta centenas de vezes nas
últimas semanas. A resposta era sempre a mesma.
— Que tipo de canalha teria relações com uma mulher que não
o escolheu por sua própria vontade?
Ela franziu o cenho.
— Hipoteticamente? Um sem-fim de cavalheiros.
— Não, eles não fariam isso. Não se fossem dignos de tal título.
— Você está errado. Conheço inúmeras damas que se casaram
com cavalheiros escolhidos por seus pais. A preferência delas
jamais foi levada em consideração. E o marido de cada uma deve
ter tido relações com elas, porque muitas agora têm filhos. Algumas
têm dois ou três.
— Não é a mesma coisa. Quando você veio até mim em Devon,
foi por desespero. Não fosse pelo que passou com o seu tio, você
nunca teria respondido a um anúncio matrimonial. Você teria sido
livre. Rica, com um título e livre. Não acredito que você teria se
casado. E se isso acontecesse, teria sido com um homem como
Wexford ou um daqueles outros lordes ou cavalheiros.
Ela bufou com desdém.
— Nada disso importa agora. O passado não pode ser mudado.
E o fato é que respondi ao seu anúncio. Eu decidi me casar com
você.
— Mas você não teria feito...
— Que diferença faz? Não estamos vivendo na terra do teria e
deveria. Estamos vivendo no aqui e agora. E aqui e agora estou
casada com você.
— Não a possuirei.
Helena recuou como se ele a tivesse esbofeteado.
— Não fisicamente — disse. — Não até que tudo isso seja
resolvido.
— Entendo. — Ela ainda estava muito corada. Tal assunto não
deveria ser discutido entre homens e mulheres. Mesmo se fossem
casados. — Não tenho direito de expressar a minha opinião quanto
ao assunto
— Quando tudo acabar. Quando você estiver livre para escolher
o que realmente deseja.
— Muito bem — ela respondeu. — Mas meus sentimentos
sobre o assunto não vão mudar.
Justin não gostaria de perguntar quais eram esses sentimentos.
Ela ainda não os havia articulado por completo. Estava claro que a
esposa queria que ele a beijasse. Era alguma coisa, não era? Uma
atração física podia ser construída. E, quando associada a uma
amizade, supôs que os dois poderiam ficar satisfeitos, pelo menos
por um curto período. Se ao menos...
Se ao menos ele fosse um homem diferente e a abadia um
lugar diferente. Se ele pudesse dar tudo que ela merecia. Restaurar
sua vida ao que poderia ter sido se as coisas não tivessem corrido
tão mal com o tio e o sr. Glyde.
Mas ele não podia fazer nenhuma dessas coisas. Não estava
em seu poder fazê-la feliz. Percebia isso agora. A verdade havia
sido revelada nas últimas semanas, enquanto a observava se mover
pela sociedade. Ela pertencia a esse lugar, com pessoas de seu
próprio nível. Pessoas com títulos importantes que andavam em
carruagens laqueadas e dançavam em salões de baile dourados.
Quando tudo acabasse, teria que deixá-la ir. Era a única coisa que
poderia fazer. Quando se cuidava de alguém, se fazia o sacrifício.
Não era necessário que pedissem. Você o fazia de qualquer
maneira. Mesmo que o deixasse desolado. Mesmo que lhe partisse
coração.

◆◆◆

Depois de ficar acordada a maior parte da noite, Helena dormiu


até o meio-dia. O resto do dia, passou com Jenny. Trabalharam em
bordados na sala, sentadas lado a lado no sofá macio de chita.
Helena precisava de algo ativo para ocupar a cabeça. Não imporia
sua presença a Justin.
Não que ele estivesse procurando por ela. O homem passou a
maior parte da tarde respondendo cartas do sr. Boothroyd e outros
de seus sócios comerciais. Na verdade, ele só saiu do quarto às
cinco da tarde, e só por ocasião de uma resposta a uma nota
enviada pelo sr. Finchley.
Helena olhou em expectativa nervosa quando ele rompeu o
selo e desdobrou o papel. Leu o conteúdo rapidamente.
— O Finchley diz que teve notícias do sr. Pelham. O artigo será
impresso na segunda-feira.
— Amanhã? — Jenny olhou de Helena para Justin. — E o que
acontece então?
— Vamos agir como se nada tivesse se passado — Justin
afirmou.
Helena deixou o bordado de lado. As mãos começaram a
tremer e o estômago, a revirar.
— Pode ser um desafio.
— Por que seria?
— As pessoas vão querer saber por que parece que você lutou
dez rounds com um pugilista premiado.
Justin fez uma careta, elevou a mão ao rosto.
— Muito ruim, não é?
— Não está bom — Helena respondeu, franca.
— De fato — Jenny concordou, e se virou para Helena. —
Talvez o sr. Finchley possa acompanhá-la pela cidade?
O peito de Helena se apertou em um protesto silencioso. Não
queria que o sr. Finchley a acompanhasse a lugar nenhum. Por mais
que gostasse do homem, ele era um péssimo substituto para Justin.
E, depois de amanhã pela manhã, precisaria mais do que nunca da
presença do marido. De que outra forma, a não ser com ele ao seu
lado, ela enfrentaria o mundo após a publicação do artigo?
Ela se levantou e foi até ele:
— Venha para a luz. Deixe-me ver.
Obediente, Justin caminhou até as janelas e se virou para
encará-la. Helena levou a mão ao rosto do homem com o pretexto
de examinar seus ferimentos; no entanto, não havia nada clínico em
seu toque. As pontas dos dedos roçaram de leve sua sobrancelha,
em seguida desceram ao longo da mandíbula até o inchaço ao lado
da boca. Traçou o lábio inferior dele com a ponta do polegar.
— Sugiro gelo — disse —, para o inchaço.
Seus olhos encontraram os dela, o olhar cinza-escuro estava
repleto de um emaranhado desconcertante de emoção. Havia calor
e ternura ali, mas também havia algo mais. Algo que o fez franzir as
sobrancelhas com perplexidade. Era tristeza. Desolação. O
sentimento tremeluziu por um instante e depois sumiu, e ele fechou
a expressão.
— Temos gelo? — Jenny se mexeu para se levantar. — Vou até
a cozinha e perguntar à sra. Jarrow.
— Eu vou — Justin afirmou de forma abrupta.
Helena tirou a mão do rosto dele. Ela o observou sair da sala. O
marido não queria ficar sozinho com ela. Homem tolo. Ele realmente
acreditava que ela não sabia o que se passava na própria cabeça?
Que quando as coisas com o tio estivessem resolvidas, ela decidiria,
por capricho, que não se importava mais com ele?
Voltou para o sofá e retomou seu assento ao lado de Jenny.
— Ele parece um rufião — Jenny comentou baixinho. — Acha
que o sr. Glyde está melhor ou pior?
— Pior — Helena disse sem hesitar.
— Ótimo. Ele merece qualquer punição que o sr. Thornhill lhe
tenha impingido. — Jenny enfiou a linha na agulha. — Só queria ter
estado presente para ver.

◆◆◆
Na manhã seguinte, o sr. Finchley apareceu ao romper da
aurora trazendo um exemplar do London Courant debaixo do braço.
Estavam tomando o desjejum quando ele chegou, a mesa
abarrotada de pratos meio cheios, potes de mel e de geleia e
xícaras de café ainda fumegante. Ele se sentou na cadeira
desocupada em frente a Justin e espalhou o jornal sobre a mesa.
— Aqui está — ele disse. — Páginas 5 e 6.
— Você já leu? — Justin perguntou.
— Li.
— E?
— É impactante. — O sr. Finchley dobrou a página. Ele olhou
para Helena. — Devo ler em voz alta?
Ela juntou as mãos no colo. Todos os músculos de seu corpo se
retesaram.
— Por favor.
Ele clareou a garganta e começou:

“A condição de lunático parece ser uma das formas mais


terríveis com que um ser humano pode ser identificado. Há,
entretanto, uma condição ainda pior: a de uma pessoa de mente sã
que é tratada por seus semelhantes como se estivesse louca – de
alguém que, estando em seu pleno juízo, está encarcerado em um
asilo destinado exclusivamente aos loucos – e está, portanto, sujeita
à contenção corporal e, pior ainda, às indignidades morais e
intelectuais decorrentes de uma suposta privação da razão.”

Helena encarou as próprias mãos enquanto o sr. Finchley


continuava. O artigo começou discutindo o caso de um jovem
cavalheiro, herdeiro de uma fortuna de trinta mil libras, que foi
internado, por seus parentes gananciosos, em um hospício privado.
Em seguida, vieram mais três casos de senhoras e senhores cujos
parentes também os haviam internado, mas por somas muito
menores. E então, enfim, o artigo mencionou Helena pelo nome.

“Outro caso de tal natureza foi revelado recentemente. Lady


Helena Reynolds, irmã do falecido Giles Reynolds, sexto conde de
Castleton, recebeu de seu irmão uma herança de mais de duzentas
mil libras. No decorrer do último ano, seu tio, Edward Francis
Reynolds, o sétimo conde de Castleton, tentou assumir o controle
da herança ao ameaçar internar a sobrinha em um hospício
particular.”

Sentindo um mal-estar terrível, ela ouviu enquanto o sr.


Finchley lia o relato do sr. Pelham, descrevendo todas as
indignidades que ela sofreu nas mãos do sr. Glyde, dos médicos e
das enfermeiras do Lowbridge House. A escrita era simples e
eficiente, reduzindo as particularidades de seu caso a uma realidade
nua e crua.
O coração batia com força no peito. Foi tomada por uma
sensação de pânico iminente. Nunca, em toda a sua vida, sentiu-se
tão exposta, tão vulnerável. Todo mundo que conhecia devia estava
lendo essas mesmas palavras durante o desjejum. Ficariam
indignados. Enojados. Mesmo os que sentiam pena dela não teriam
simpatia pelo método que ela empregou para reparação. Nenhuma
dama, no entanto, mesmo que desesperada, jamais se exporia à
imprensa dessa forma.
A partir desse momento, sua reputação estava arruinada além
de qualquer esperança de reparo.
Ela contorceu os dedos enquanto o sr. Finchley lia a o desfecho
do artigo.

“Hospícios privados são a maldição do nosso sistema. São


meras especulações comerciais em benefício dos proprietários.
Tudo o que é necessário para a admissão são dois certificados,
assinados por dois médicos não ligados um ao outro, e uma
declaração assinada por um parente; muitas vezes, o faminto
expectante de uma herança. Sob esses arranjos, qualquer homem
ou mulher inglês sensato pode, sem muita dificuldade, ser
encarcerado, como lunático, em um hospício privado. Quantos
permanecem presos dos quais nada sabemos?”

A sala de café da manhã ficou em silêncio. Todos estavam


sentados, sérios, ninguém se aventurou a proferir uma palavra.
— Bem — Jenny murmurou, enfim. — Isso foi... de causar
calafrios.
— Foi poderoso — Finchley afirmou. — E muito persuasivo. —
Ele dobrou o jornal e o colocou de lado. — Mas está certa, srta.
Holloway. Vai provocar calafrios de medo em qualquer pessoa com
parentes gananciosos.
Helena relaxou os dedos e apoiou as mãos no colo. Estavam
úmidas sobre a saia de cambraia branca de seu traje matinal.
— Tudo está exatamente de acordo com o plano — Justin
garantiu a ela. — Não há nada com que se preocupar.
Ela o encarou, consternada. O que poderia dizer? Nenhum
cavalheiro jamais entenderia.
Jenny colocou o guardanapo ao lado do prato.
— É a sua reputação que a está preocupando? Acha que está
além do reparo?
O olhar de Helena encontrou o de Jenny.
— Sei que é estupidez.
— Preocupações quanto à reputação nunca são estúpidas.
O sr. Finchley olhou para Helena, preocupado.
— Se houvesse qualquer outro curso de ação...
— Não havia — Justin afirmou.
Helena sabia que Justin estava certo. Só havia um curso
possível.
— Sim, bem... é tarde demais para reconsiderar, em qualquer
caso. Todos já devem ter lido.
— Não seja boba — Jenny disse. — Metade das mulheres que
conhecemos ainda está na cama.
— Elas vão acordar em breve. No almoço, estarei correndo à
boca miúda por toda Londres.
Jenny estendeu a mão para cobrir a de Helena.
— Por favor, não se prenda a isso, minha querida. Sabe que
era o único recurso à disposição. Que mal há se a sociedade vier a
evitar você? Você nunca se importou com a opinião deles.
— Não — Helena admitiu. — Mas é fácil não se importar
quando se está em uma posição de força.
— Ainda está em uma posição de força — Finchley disse. — A
senhora disse a verdade. O que há de mais forte que isso?
◆◆◆

Desde que veio morar na Half Moon Street, Helena se


acostumou a receber visitas entre uma e três horas da tarde. Mas
no dia em que o artigo foi publicado, ninguém apareceu. Ela se
sentou na sala e esperou enquanto o pequeno relógio da lareira
marcava com delicadeza uma hora e depois a seguinte.
— Nem mesmo os descaradamente curiosos ousaram mostrar
a face — disse com firmeza. — Será que suspeitam que meu tio
estava certo? Que eu possa estar mesmo louca?
— São uns covardes — Justin grunhiu. Ele caminhou pela sala,
inquieto demais para se sentar com Helena e Jenny. — Não farão
nenhum movimento até que vejam para que lado o vento está
soprando.
— O sr. Thornhill tem toda a razão — Jenny concordou. — Vão
esperar que alguém devidamente influente os visite e, em seguida,
virão como roedores.
Helena reconheceu a verdade da declaração. Era como a
sociedade educada se comportava. Não havia muitos que
corressem o risco de dar um passo em falso. Precisavam de um
líder. Alguém para definir o jeito das coisas.
Às quinze para as três, esse alguém chegou.
— O conde de Wolverton — a sra. Jarrow anunciou.
Helena ficou de pé quando lorde Wolverton entrou na sala. O
semblante do homem havia assumido linhas severas e seus olhos
penetrantes brilhavam. Ela cruzou a sala para cumprimentá-lo.
— Milorde. — Ela estendeu a mão.
Ele a pegou na sua.
— Qual é o significado dessas alegações no jornal da manhã?
— questionou. O olhar dele se moveu brevemente para o rosto de
Justin, baixando as sobrancelhas em desaprovação ao ver todos os
cortes e hematomas. — E o que lhe aconteceu, Thornhill?
Justin veio ficar ao lado dela. Sua postura era hostil.
— Um pequeno contratempo — respondeu. — Nada que valha
a pena falar.
— Por favor, venha e sente-se. — Helena conduziu lorde
Wolverton até a sala. Ele esperou que ela voltasse ao seu lugar
antes de se sentar.
Quando ele chegou, Jenny se retirou, com seu bordado, para
uma cadeira de espaldar perto do fogo. Ela nunca participava do
entretenimento de convidados, preferia assumir o papel da humilde,
e silenciosa, dama de companhia.
Justin ficou igualmente calado, mas não se retirou. Ele se
sentou na cadeira em frente a lorde Wolverton.
Sua senhoria não mediu palavras.
— Seu pai ficaria horrorizado, senhora.
Helena ergueu as sobrancelhas.
— Por eu ter procurado a imprensa?
— Por ter se exposto. Fez de si mesma motivo de escárnio. Foi
inadequado. — Ele franziu a testa para ela. — Teria feito melhor se
tivesse procurado a mim.
— Ao senhor? Por que eu faria isso?
— Seu pai era meu amigo mais antigo. Certo, faz muitos anos
que não sua uma presença constante em sua vida, mas poderia ter
me procurado, como cortesia. Eu me gabo de ainda gozar de certa
influência.
Helena inclinou a cabeça:
— Muita influência, milorde. Mas era uma questão de loucura.
Ele emitiu um grunhido desdenhoso.
— Uma questão de ganância, mais provavelmente. A senhora
se esquece de que conheci seu tio quando ele era rapaz. O homem
foi um oportunista conivente nos melhores momentos. Eu não
depositaria fé nenhuma nele. Se tivesse me procurado, eu poderia
ter intervindo.
Era verdade? Ele a teria ajudado? Helena tendia a duvidar.
— Como eu poderia saber que não me julgaria louca? O senhor
aconselhou meu pai a internar minha mãe em um hospício
particular. Havia todas as chances de recomendar o mesmo destino
para mim.
— Sua mãe? — Lorde Wolverton fez uma careta. — A senhora
era uma criança. Não sabe do que está falando.
— Sei que minha mãe sentia tristeza — Helena disse baixinho.
— Mas ela não merecia ser trancafiada por causa disso.
— Era mais do que tristeza, senhora. Era uma melancolia da
pior espécie. Ela não se levantava da cama. Recusava-se a comer
ou beber. Negligenciava suas necessidades mais básicas. Seu pai
consultou os melhores médicos. Eles aconselharam um clima mais
quente, mas quando ele a levou para o continente, ela piorou. O
hospício era o último recurso de que ele dispunha.
Helena se recostou na cadeira, atordoada. Nunca ouvira nada
disso antes. Não se lembrava de como a mãe se comportava
quando ainda morava em casa. Ela era muito pequena. Suas únicas
memórias eram de sua mãe no hospício, apática e indiferente, com
cabelos escorridos e pele da cor de pergaminho.
— Como sabe que não sofro do mesmo mal?
— A condição de sua mãe era evidente em seus olhos; na
palidez de sua tez. Se tivesse a mesma doença, não conseguiria
disfarçar. Não quando sai todas as noites para ir ao teatro ou a um
baile. Seria claro ao olhos de todos.
— Não era evidente para lorde Flood, para sir Bernard ou para
qualquer outro cavalheiro a quem pedi ajuda quando meu tio
começou a me atormentar. Contei-lhes que ele estava tentando me
fazer abrir mão da minha herança; que ele estava me fazendo
ameaças. Nenhum deles desejou intervir em meu nome.
— Por que fariam isso? Seu tio está em dívida com cada um
deles, e Deus sabe com quantos outros. A única esperança que eles
têm de serem pagos é se o novo conde assumir o controle de sua
fortuna. Eles dificilmente teriam feito algo para impedir tal desfecho.
Um rubor envergonhado aqueceu as bochechas de Helena. Ela
abordou aqueles homens com tanta seriedade. Com tanto
desespero. Eles deviam ter achado que ela era uma idiota absoluta.
— Como eu poderia saber com quem ele está em dívida?
— Essas informações são de conhecimento comum.
— Entre cavalheiros, talvez.
— É por isso que deveria ter me consultado. — Lorde
Wolverton olhou para Justin. — O senhor é o marido dela. Não
poderia ter desaconselhado esse curso?
— Eu a encorajei.
— O senhor, por Deus! — A expressão de lorde Wolverton se
tornou estrondosa. — Para quê? Quer isolá-la de seus amigos?
Para fortalecer seu controle sobre a fortuna dela?
A mandíbula de Justin endureceu.
— Que amigos? Quando ela veio até mim, estava sozinha e
assustada. Ela não tinha ninguém para protegê-la.
— Não do senhor, certamente. Quanto tempo levou para se
casar com ela? Um mês? Uma semana?
— Meu marido não sabia de minha fortuna quando nos
casamos — Helena protestou.
— Ele é o responsável por ela agora, aposto. Até o último
centavo. Não esperava nada menos de um homem com suas
origens. — Os lábios de lorde Wolverton se curvaram. — Ah, sim,
eu investiguei aquela mentira sobre o senhor ter servido com o
irmão de lady Helena. Um monte de disparates, tudo isso. Não sei a
que está se prestando, senhor, mas eu o aviso...
— O senhor me avisa? — Justin repetiu. — O senhor, um
homem que não levantou um dedo em nome dela?
— Eu deveria ter seguido seu exemplo e a envolvido no
escândalo da temporada? Da década?
— Pelo menos fiz um esforço para libertá-la desse
emaranhado. O que fez, Wolverton? Além de vir aqui para dar um
sermão a ela depois do ocorrido.
— Se eu soubesse...
— Sabe agora — Justin falou, brusco. — O que pretende fazer
quanto a isso?
A atmosfera no salãozinho crepitava de tensão enquanto os
dois homens se encaravam. Helena prendeu a respiração.
— A única coisa que posso fazer no momento — lorde
Wolverton respondeu por fim — é oferecer meu apoio a ela.
— E como se propõe a fazer isso?
— Para começar, eu a acompanharei a uma visita a Castleton
esta tarde.
O queixo de Helena caiu em descrença.
— Agora?
Lorde Wolverton assentiu.
— Quanto mais cedo lidarmos com ele, melhor.
— Concordo — Justin afirmou.
Uma onda de pânico obstruiu a garganta de Helena. Ela não
conseguia formular as palavras para se opor ao esquema deles.
Sempre soube que deveria, em algum momento, confrontar tio
Edward, mas nunca pensou, nunca esperou, que seria tão cedo.
— Minha carruagem está lá embaixo — lorde Wolverton
informou. — Podemos sair em meia hora.
Justin a avaliou em silêncio.
Helena encontrou os olhos do marido. Soube que ele estava
deixando a palavra final para ela. Ele acreditava que ela era forte o
suficiente para lidar com o tio, mas nunca a obrigaria a fazer nada
contra sua vontade. Ele a apoiaria em qualquer decisão.
Foi esse apoio, aquela lealdade inabalável, que finalmente
soltou sua língua.
— Muito bem, então — disse. — Vamos fazer uma visita a
Grosvenor Square.
Capítulo Vinte e dois

— Ainda não acho que seja uma boa ideia — Justin falou.
A carruagem de laca preta de lorde Wolverton parou em frente
à residência do conde de Castleton, na Grosvenor Square. Tudo o
que Helena precisava fazer era sair e subir os degraus até a porta.
Ela se sentou ao lado de Justin, temporariamente imobilizada.
— Talvez não — ela reconheceu. — Mas sinto que devo ir
adiante.
— Irei com você.
— Não. — Segurou a mão enluvada dele, pressionando-a por
um momento nas suas. — Devo entrar sozinha.
Ela tomou a decisão logo que deixou a Half Moon Street. Não
se encolheria, como uma criatura assustada, atrás de Justin, nem
de lorde Wolverton. Enfrentaria o tio de uma vez por todas.
Mostraria que não a havia destruído.
— Tolice — lorde Wolverton murmurou de seu assento em
frente a eles. — Não precisa vê-lo sozinha. Ele é problema do seu
marido agora. E meu.
— Eu devo — ela repetiu. — É uma questão de dignidade. De
respeito próprio.
Lorde Wolverton pigarreou. Ele não conseguia compreender por
que era tão importante para ela enfrentar o tio sozinha. Mas Justin,
sim. Ele sabia o que significava enfrentar os próprios medos.
Ela segurou a mão dele com força enquanto um minuto se
passava. E depois outro.
— Mudou de ideia? — perguntou.
— Não, não. Só preciso de um momento para criar coragem. —
Ela respirou fundo para se acalmar. — Estou pronta agora.
Justin desceu da carruagem e a ajudou a chegar à calçada.
— Estarei aqui. Se você não voltar em vinte minutos, vou entrar.
Ela assentiu e, por fim, soltou sua mão. A chegada deles foi
anunciada. A porta da casa já estava sendo aberta pelo mordomo
idoso do conde, Netherby. Ao ver Helena, sua expressão
geralmente branda iluminou-se um átimo.
— Milady — ele disse, curvando-se.
— Netherby. — Ela adentrou o saguão de entrada, o olhar
vagou pelo ambiente familiar. — Acredito que o senhor e o resto da
equipe estejam bem?
Netherby olhou para a carruagem antes de fechar a porta. O
brasão do conde de Wolverton era facilmente reconhecível.
— Temos sentido sua ausência, milady. Posso perguntar se a
senhora voltará para nós?
Sentiu uma pontada de tristeza.
— Não, Netherby. Não voltarei. Só vim ver o meu tio e, então,
irei embora. — Ela permitiu que o mordomo pegasse seu chapéu e
luvas, mas não tirou o casaco. Havia um frio distinto no ar. — Onde
ele está?
— Em seu escritório, milady. Devo anunciá-la?
— Não há necessidade. — Ela endireitou as saias e ergueu a
mão para alisar o cabelo enquanto percorria o corredor até a sala
que tinha sido, nos anos anteriores, o escritório de seu pai e depois
de seu irmão. Não se incomodou em bater antes de abrir a porta de
madeira polida.
Tio Edward estava sentado atrás da mesa. Ele era um
cavalheiro corpulento, tendo ganhado peso devido à bebida e às
extravagâncias. Seu cabelo grisalho estava alisado com uma
pomada perfumada, as suíças chegavam quase até o queixo. Um
alfinete de rubi brilhava nas dobras de sua gravata, cintilando
enquanto ele virava a cabeça de um lado para o outro, removendo
papéis das gavetas e mexendo nas coisas em cima da mesa.
Enquanto ele fazia isso, um maço de contas de comerciantes
tombou, esvoaçando para o chão.
Ele ergueu os olhos, então, e a viu. Seu rosto endureceu.
— Tio — ela disse.
Ele se levantou.
— Helena.
O medo familiar correu por suas veias. Lembrou a si mesma
que Justin estava lá fora, preparado para vir em seu auxílio caso
fosse necessário. Aquilo lhe proveu com uma dose extra de
coragem. O suficiente para que pudesse manter uma aparência de
calma enquanto caminhava a passos lentos até a mesa.
Os olhos de tio Edward dispararam para a porta.
— Onde está esse seu marido de quem tenho ouvido tanto? Ele
não está com você?
— Está esperando por mim na carruagem — ela disse. — Junto
com lorde Wolverton.
— Wolverton? O homem é um intrometido infernal. Se eu
descobrir que ele está por trás da bobagem no jornal desta manhã...
— O senhor leu? Fiquei me perguntando. — Um papel caiu aos
pés de Helena. Ela se abaixou para pegá-lo. — Seus assuntos
parecem estar um tanto desordenados.
Ele arrancou o papel da mão dela.
— Meus assuntos! — ele balbuciou. — Você anunciou ao
mundo que estou praticamente falido. Me caluniou. Caluniou meu
bom nome. Estou arruinado em Londres por sua causa. Não tenho
escolha a não ser me retirar para o campo.
— Permanentemente?
— Ah, não se livrará de mim assim tão fácil. Vou consultar
meus advogados em Hampshire, pode ter certeza disso. Eles vão
abrir um processo. Vão forçar uma retração. E fecharão aquele
jornal idiota. Guarde minhas palavras.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Será que vão mesmo? Meu advogado me informou que a
verdade é uma defesa absoluta contra a difamação. E tudo o que
disse ao jornal era verdade. Se o senhor entrar com uma ação
judicial, apenas prolongará o escândalo, e aumentará sua
humilhação.
Os olhos dele brilharam de raiva.
— Sua bruxinha gananciosa. Para que precisa de todo esse
dinheiro? Tudo que precisava fazer era assinar o maldito papel. Eu
teria cuidado de você. Não lhe faltaria nada. Mas não. Tudo tinha
que ficar em suas mãos. Você não se contentaria até que arruinasse
meu bom nome e o seu junto com ele.
Helena colocou as mãos na beirada da mesa.
— O senhor é versado em ganância, tio. Teria me visto morrer
em um hospício para ficar com a fortuna do meu irmão.
— Não seja absurda — ele zombou. — Sabe que eu nunca
teria feito isso no final. Tudo que eu queria era sua assinatura. Se
tivesse assinado o documento, todas aquelas bobagens teriam
parado.
Uma onda de raiva a percorreu.
— Todas aquelas outras bobagens me deixaram com
hematomas por toda parte. Elas me gelaram até a alma por causa
dos banhos de gelo e queimaram meus braços e pernas por causa
dos choques elétricos. Não era uma bobagem. Foi uma tortura
sistemática.
— Era um remédio legítimo. — Sua expressão tornou-se
obstinada. — Mas eu teria colocado um fim a tudo se você tivesse
feito o que pedi.
Ela balançou a cabeça.
— Não acredito no senhor.
— Pois deveria ter acreditado em mim. Deveria ter confiado em
mim.
— O senhor não me deu uma boa razão.
— Tolices! Não fui sempre bom com você? Generoso? — Ela
não contestou o fato. Na verdade, os presentes generosos que ele
trouxe para ela quando criança eram as únicas boas lembranças
que tinha dele.
— Meu pai nunca quis que o senhor me desse presentes.
Sempre achei que ele estava sendo severo. Injusto. Mas não era
nada disso, era? Ele sabia que o senhor tinha problemas com
dinheiro. Sabia que desperdiçaria até seu último centavo se não
fosse controlado. Exatamente como teria feito com a fortuna de
Giles.
O rosto do tio Edward ficou vermelho.
— Giles está morto! Ele está morto há mais de um ano. De que
prova precisa? Seus ossos apodrecidos entregues a você em uma
caixa forrada de veludo?
As palavras a flagelaram com intensidade. Por um instante,
ficou tentada a se virar e fugir. Em vez disso, agarrou a borda da
mesa e se inclinou mais perto.
— Giles pode estar morto. Mas que direito isso lhe deu de fazer
o que fez comigo?
— Todo direito. — Tio Edward se endireitou. — Eu sou o conde
de Castleton agora. A família está sob meus cuidados. Era meu
dever procurar tratamento para você. Para vê-la bem novamente. E
é isso que direi a quem tiver a ousadia de perguntar.
Seu coração bateu de forma descontrolada.
— E eu vou continuar a dizer que canalha inescrupuloso o
senhor é. Vou continuar dizendo até que seja expulso de seus
clubes. Até que nenhuma anfitriã o receba.
— Você é uma harpia vingativa — ele falou. — Mas a que
preço? Você também se arruinou. Ou é estúpida demais para
perceber? Casar-se com um ex-soldado bastardo que vem dos
confins do mundo. Despejar negócios privados da família para um
jornalista infernal. Se eu não achava que você estava louca antes,
sei disso agora, sem sombra de dúvidas.
A voz de Helena baixou com súbita ferocidade.
— Esse ex-soldado é o melhor cavalheiro que já conheci. O
senhor não tem brio suficiente nem para polir as botas dele. Quanto
a mim, pode pensar o que quiser. O senhor não tem mais poder
sobre mim.
Conforme Helena tirava as mãos da mesa, tio Edward a olhava
com cautela.
— Irei ao banco em seguida — ela o informou. — Instruirei os
funcionários a cortar seu acesso às minhas contas. Naturalmente,
eles podem continuar a me solicitar fundos para os salários e
pensões dos empregados, mas, a partir de hoje, o banco deve
pagar a eles diretamente. Não confio mais no senhor para se
comportar como um homem honrado, e não permitirei que nenhum
dos criados de Castleton sofra por sua ganância.
O tio começou a balbuciar de novo, mas ela não o levou em
consideração.
— Agora — ela falou —, pode me trazer minhas joias. E tome
cuidado para não perder tempo. Meu marido não é um homem
paciente. Não seria preciso muita provocação para ele se
apresentar ao senhor como o fez com o sr. Glyde.
Minutos depois, Helena saiu da casa na Grosvenor Square. Um
lacaio vinha atrás dela carregando uma grande caixa incrustada. O
dia parecia mais claro e o ar mais fresco. O peso que esteve em
seus ombros havia muitos meses foi retirado.
Quando viu Justin parado ao lado da carruagem, o rosto se
iluminou com um sorriso mais largo do que qualquer outro que ela já
tinha lhe dado.
— Acabou — disse ela, sem fôlego. — Estou livre.
Justin sorriu para ela enquanto a colocava na carruagem. Era
um sorriso estranho e constrito que não atingiu seus olhos.
— É mesmo?
— Bem, estarei depois de irmos ao banco. A menos que... você
acha que devo levar o sr. Finchley comigo para isso?
— Você tem a carta dele. Atrevo-me a dizer que todo o jargão
jurídico que ele usa nela será o suficiente para fazer os banqueiros
cumprirem as suas ordens.
Lorde Wolverton se inclinou para frente em seu assento.
— Parece que a senhora está ilesa.
— Estou perfeitamente bem — ela assegurou.
— E Castleton?
— Está de partida de Londres. Pretende se retirar para
Hampshire muito em breve.
Lorde Wolverton fez menção de desembarcar da carruagem.
— Vou providenciar para que ele faça isso. — Quando ela abriu
a boca para protestar, ele a impediu com a mão erguida. — Não vou
ouvir objeções. Fez o que sua consciência exige, e eu também
devo.
— Devemos esperar pelo senhor? — Justin perguntou.
— Não há necessidade. O cocheiro voltará para me buscar.
Helena observou enquanto lorde Wolverton subia os degraus
da casa. Netherby prontamente abriu a porta para ele. Por mais que
tentasse, ela não conseguia sentir pena do tio. Ele merecia a
censura da sociedade. E se essa censura fosse administrada na
forma de uma repreensão de lorde Wolverton, tanto melhor.
Justin se acomodou ao lado dela na carruagem.
O lacaio o seguiu até a porta, ainda com a caixa grande nos
braços.
— Onde devo colocar, milady?
— Pode me entregar — Helena pediu. Estava pesada. Quase
pesada demais para ela erguê-la. — Obrigado, James. Cuide-se,
sim?
Ele se inclinou e suas bochechas ficaram vermelhas.
— Sim, milady.
— Outro admirador? — Justin perguntou quando a carruagem
começou a avançar.
— Dificilmente. A mãe dele é governanta de nossa propriedade
de Hampshire. Eu o conheço desde que ele era menino. — Ela
posicionou a caixa de forma mais confortável em seu colo. — Olhe,
Justin. — Ela abriu a tampa.
Justin olhou para o conteúdo da caixa.
— Bom Deus — ele disse baixinho. — Achei que buscaria as
suas joias, não toda a coleção da família.
— Não seja bobo. A coleção inteira pertence ao condado. Mas
essas... essas são minhas. — Ela estendeu a mão e retirou um
broche cintilante. O diamante em seu centro era tão grande quanto
um ovo de codorna. — Algumas foram presentes de meu pai e
irmão, mas a maioria eu herdei de minha mãe. Ela era filha de
conde, sabe.
— Claro que era — Justin resmungou.
Helena olhou para cima, parando de examinar as joias.
— Está tudo bem?
— Sim. Apenas uma leve dor de cabeça.
Ela fechou a caixa.
— Meu querido, você deveria ter dito alguma coisa.
Justin desviou o rosto do dela e fitou a janela. Ela teve a
impressão de tê-lo chateado, mas não conseguia imaginar como.
Talvez ele estivesse sofrendo de mais do que uma leve dor de
cabeça? Ele não teve muito tempo para se recuperar depois da luta
com o sr. Glyde. Ela teria que insistir para que ele descansasse.
— Devemos esquecer o banco e voltar direto para a Half Moon
Street? — Ela tocou no braço dele e o sentiu ficar tenso com o
toque de seus dedos.
— Não — ele respondeu. — Vamos terminar isso hoje. Vamos
acabar com isso.
◆◆◆

O resto da semana foi passado da mesma maneira que nas


anteriores, exceto que agora, em vez de estar de braço dado com
Justin, estava acompanhada do sr. Finchley ou de lorde Wolverton.
Na terça à noite, o conde a levou a uma apresentação de Otelo, de
Shakespeare, e na quinta à noite a um jantar na casa de sua filha
mais velha. Durante o dia, o sr. Finchley acompanhava a ela e a
Jenny em passeios a museus e excursões de compras na Bond
Street.
Não houve outros convites. Não para festas e jantares, nem
musicais. O artigo do sr. Pelham ainda era o assunto de Londres. E,
embora ninguém ousasse lhe ignorar diretamente enquanto ela
tinha o aval de lorde Wolverton, nenhuma dama teve a coragem de
visitá-la na Half Moon Street. Na verdade, ela se considerava
sortuda por receber uma saudação contida das pessoas na rua.
— O escândalo vai passar — lorde Wolverton prometeu. —
Como acontece com todos os escândalos.
Nesse ínterim, ela tinha que continuar circulando em meio à
sociedade com a coluna reta e a cabeça erguida. Com o tempo,
estava confiante de que poderia resistir à tempestade.
Ficaria ainda mais confiante com Justin ao seu lado.
Infelizmente, seu rosto machucado não era adequado para exibição
pública. Enquanto ela estava passeando por Londres, ele
permanecia na Half Moon Street, lidando com a correspondência e,
ocasionalmente, enviando e recebendo telegramas. Sempre que o
questionava, ele dizia que eram apenas negócios, mas Helena
nunca o tinha visto tão distraído. Na verdade, ele quase não olhava
mais para ela.
Algo entre eles mudou de forma irrevogável. Podia tanto sentir
quanto ver. Na sexta-feira seguinte, ela voltou de um passeio ao
Museu Britânico determinada a confrontá-lo.
O sr. Finchley tentou prolongar a visita. Ele as manteve
ocupadas estudando as antiguidades na Sala Egípcia e admirando
os mármores no Salão Elgin. Cada vez que ela professava sua
intenção de voltar para casa, ele encontrava outro motivo para
mantê-los lá. E quando, por fim, ela insistiu para que fossem
embora, ele não pareceu nem um pouco satisfeito. Quando a
carruagem parou em frente à pequena casa na Half Moon Street,
ela finalmente entendeu o porquê.
Um coche de aluguel estava estacionado do lado de fora, o
cocheiro esperava com paciência em seu assento. O sr. Jarrow
levava a bagagem de Justin para a cabine.
Helena não esperou o sr. Finchley ajudá-la a descer da
carruagem. Ela mesma abriu a porta e saiu cambaleando, com as
saias quase se enredando nas pernas. Não parou para consultar o
sr. Jarrow. Em vez disso, correu direto para a casa. Estava
vagamente ciente de que Jenny e o sr. Finchley haviam ficado para
trás. E o som da voz de Jenny, aguçada e feroz, soou atrás dela.
— Como pôde? — ela questionou o sr. Finchley. — Que tipo de
homem é o senhor?
Helena não olhou para trás. O coração batia em um ritmo
extraordinário. O corredor estava vazio, exceto pela sra. Jarrow.
Helena passou por ela sem dizer uma palavra enquanto subia
correndo as escadas.
Encontrou Justin no salãozinho. Ele estava de pé em frente à
pequena escrivaninha de nogueira no canto, aplicando um selo de
cera vermelha em uma carta. Estava de costas para a porta, mas
ela sabia que ele a ouviu entrar. Ele ficou imóvel por um momento,
com os ombros tensos sob as linhas de sua sobrecasaca preta.
— Aonde você está indo? — ela perguntou.
Ele se virou para encará-la. Sua expressão estava fechada,
mas não havia como disfarçar a rigidez de sua mandíbula e a
resolução sombria persistente no fundo de seu olhar.
— Devo voltar para Devon.
— Aconteceu alguma coisa com Neville? Ou com o sr.
Boothroyd?
— Não. Os dois estão bem. Mas eu estive longe por muito
tempo. Devo voltar.
— Sim, claro. Permita-me apenas dois minutos para preparar
uma valise.
— Não. — Havia aço em sua voz. O que a fez estancar.
— Não vai demorar nem um minuto.
— Não importa quanto tempo leve. Você não irá comigo.
Helena olhou para ele sem entender:
— Deseja que eu vá mais tarde? Depois de fechar a casa?
— Não. — Um músculo flexionou em sua mandíbula. Ele se
voltou para a mesa. — Você não virá de jeito nenhum. Vou viajar de
volta sozinho. Eu deveria ir esta manhã, enquanto você estava no
museu. Finchley achou que seria o melhor para todos os envolvidos.
Mas não consegui. Não sem me despedir devidamente de você.
— Não entendo. Voltará para Londres? É isso? — Havia
esperança em sua pergunta, mas a esperança em seu coração
estava rapidamente se desintegrando em pó. Ela foi até ele e tocou
em seu braço. — Não vai olhar para mim?
A contragosto, ele a atendeu. Mas quando os olhos
encontraram os dela, seu estômago afundou com a compreensão. O
rosto de Justin estava mais duro e inescrutável do que ela já tinha
visto. Ele parecia um estranho absoluto. Frio e impaciente. Ela
soube, então, simplesmente soube, que ele a estava deixando e
nunca mais voltaria.
— Escrevi uma carta para você — ele disse. — Está aqui junto
com os documentos legais que ele redigiu.
— Que documentos legais? É sobre minha herança?
— Não tem nada a ver com dinheiro. Tem a ver com o acordo
que fizemos. Este... casamento. Foi um erro. Existe um meio de
anulá-lo. Assinei os papéis necessários. Finchley pode explicar os
detalhes.
Ele lhe ofereceu a carta, Helena a pegou, entorpecida demais
pelo choque para fazer o contrário.
— Não vou pedir nada de você — ele continuou no mesmo tom
profissional. — Na verdade, é melhor interrompermos a
comunicação a partir de hoje. Será mais fácil para nós dois
seguirmos em frente com tudo isso.
Tudo isso. Ele estava se referindo à vida deles juntos. À
amizade dos dois.
Ao casamento deles.
Ela o fitou, procurando em seu rosto algum sinal de emoção.
— Por que está fazendo isso?
— Eu acho que está bem claro.
— Não para mim, não está.
Justin soltou um grunhido baixo de frustração.
— Preciso explicar? Viemos de mundos diferentes. Não há
como conciliá-los. Nem agora. Nem nunca.
— O que isso importa? Quando estivermos de volta a Devon,
na abadia...
— Você não está me ouvindo. Não a quero comigo na abadia. A
partir deste momento, você não faz mais parte da minha vida. Se
algum dia nos encontrarmos novamente, um evento que creio ser
extremamente improvável, agiremos como estranhos educados e
indiferentes. O que é exatamente como deveria ser, milady.
Helena pressionou a mão no diafragma. Doía respirar. Era
como se ele a tivesse golpeado.
— Você disse que me queria. — As palavras mortificantes
saíram no mais leve dos sussurros. Muito fraco para inspirar um
rubor em suas bochechas.
Ele afastou o olhar do dela.
— Como qualquer homem com sangue em suas veias faria.
Você é uma mulher linda. Não há nada mais que isso. Se tivesse
mais experiência com os homens, entenderia.
— Mas você e eu somos amigos, não somos? Mais que
amigos. — Ela estava começando a soar desesperada. Deus a
ajudasse, ela estava desesperada. — A decisão seria minha.
Quando o perigo passasse, quando eu estivesse livre para fazer
uma escolha.
— Não temos nada em comum, milady. Uma amizade não é
mais possível entre nós do que qualquer outro tipo de
relacionamento. — Ele inclinou a cabeça para ela. — Desejo que
seja feliz.
Ela segurou a manga da casaca de Justin quando ele se moveu
para sair.
— Você disse que iria até os confins da terra por mim.
— E fui. Fui a Abbot’s Holcombe. Vim a Londres. Lugares que
eu não tinha vontade de visitar.
— Então por que o fez? Por que fez todas essas coisas?
— Dever — ele disse. — Mas acabou agora. Seu tio se foi.
Wolverton é seu aliado. Você está segura e livre para viver sua vida
como antes. — Ele tirou a mão dela de seu casaco com gentileza.
— Adeus, milady.
Helena observou, com os olhos marejados, enquanto ele
atravessava o cômodo.
— Espere! — ela gritou quando ele alcançou a porta.
Justin parou, mas não se virou.
Ela deu um passo à frente.
— E quanto ao meu irmão? Ainda fará perguntas?
Ele assentiu em reconhecimento.
— Se eu ouvir alguma notícia, comunicarei por meio de
Finchley.
E então ele se foi.
Helena se sentou às cegas em uma cadeira. O coração e os
pulmões se contraíram em uma miséria de batidas erráticas e
respirações torturadas. Era uma dor física, diferente de tudo o que
ela já experimentou.
Ele não a amava. Não se importava nem um pouco com ela.
Um soluço forte ficou preso em sua garganta. Ela sentiu
lágrimas quentes se derramarem de seus olhos. Abaixou a cabeça,
deixando-as cair sem controle. Só quando ergueu as mãos para
afastá-las, percebeu que ainda segurava a carta dele. Ela olhou
para o papel, sem compreender.
Depois de um longo momento, enxugou os olhos e a abriu, mas
dentro havia nada mais do que documentos legais e uma nota
concisa de Justin dizendo apenas o que ele já havia dito antes.
Nosso casamento foi um erro.
Não lhe exigirei nada.
Desejo que seja feliz.

◆◆◆

— Não quero ficar naquela casa — Helena afirmou.


— Não, de fato — Jenny concordou. — Há muitas lembranças
na Half Moon Street. Mas para onde iremos?
Helena entrelaçou o braço com mais firmeza ao de Jenny
enquanto caminhavam juntas por um caminho de cascalho no
Green Park. Era uma manhã clara e não tão fria como nos dias
anteriores.
— Vou perguntar a lady Wolverton — respondeu. — Ela pode
saber de alguma casa mais perto da Belgrave Square. Por falar
nisso... — Ela suspirou, vagando o olhar sobre a paisagem de
outono. — Talvez possamos fazer uma viagem longa?
— Para onde?
— Algum lugar quente. Algum lugar longe daqui.
— Você quer fugir de novo.
— Bobagem. Simplesmente não desejo ser lembrada a cada
passo de como fui idiota por causa de um homem.
Jenny lhe lançou um breve olhar de comiseração.
— Compreendo perfeitamente, minha querida. Mas se todas as
mulheres em suas circunstâncias deixassem a metrópole, não
sobraria nenhuma em Londres. Todas nós nos tornamos idiotas por
causa de um cavalheiro em um momento ou outro.
Helena não conseguiu evitar que outro suspiro escapasse.
Havia se passado três semanas desde que Justin a deixou, e seu
coração ainda estava tão pesado quanto quando o viu sair da sala,
e de sua vida, para sempre.
— Gostava muito dele? — Jenny perguntou.
— Terrivelmente.
— Gostaria que houvesse uma poção mágica que eu pudesse
preparar para tirar sua dor. Algo para fazer você esquecê-lo.
— Mesmo que tal coisa existisse, não tenho certeza se
aceitaria. Não quero esquecê-lo. A dor me ajuda a lembrar.
— Que sentimentalismo!
— É um pouco.
— Está apaixonada, é esse o problema. A única cura para isso
é o tempo, e muito tempo.
Helena chutou uma pedra perdida com a ponta de bota de cano
curto de couro.
— O que acha que ele está fazendo agora?
Jenny apertou os lábios.
— Espero que esteja molhado, enlameado e miserável naquela
abadia — ela respondeu com indelicadeza. — Espero que o telhado
goteje, que o vinho se transforme em vinagre e que a cozinheira
ferva toda a comida até virar papa. Em suma, espero que ele
apodreça. E Thomas Finchley pode fazer o mesmo.
— Eu gostaria que você perdoasse o sr. Finchley. Ele só é
culpado de apoiar o amigo. Ele e Justin são como irmãos, você
sabe.
— Perdoá-lo? Ora!
— Bem, pelo menos não se torne um mártir por minha causa.
Não espero que desista do sr. Finchley.
— Eu nunca o tive — Jenny afirmou. — O que acho muito bom,
já que recentemente descobri que não o quero.
Helena desejou sentir o mesmo por Justin. Infelizmente, a
ausência do homem nada fez para abrandar seus sentimentos. Ela
o queria tanto agora como quis quando se apaixonou por ele pela
primeira vez.
— Ele sabia o tempo todo que o sr. Thornhill desejava desfazer
o casamento — Jenny continuou em tom de desgosto. — Estava
ocupado redigindo documentos e dando consultoria jurídica
enquanto nos acompanhava pela cidade. — Ela olhou para Helena.
— Foi ideia dele que o sr. Thornhill escapulisse enquanto estávamos
no museu.
— Sim. O Justin disse.
— Estou feliz que ele não seguiu o conselho daquele homem.
Embora eu não saiba o que é pior. Receber uma carta de despedida
ou ouvir na sua cara que... — Jenny se interrompeu quando sua
atenção foi desviada. — Quem são essas?
Helena seguiu seu olhar.
À distância, duas senhoras vestidas com roupas elegantes se
aproximaram no caminho, com as criadas que as acompanhavam a
uma distância discreta. Helena não as reconheceu. Não de
imediato. Mas, à medida que se aproximavam, viu que eram a
viscondessa Parkhurst e lady Amelia Witherspoon. Elas
cumprimentaram Helena com uma reverência educada.
— Lady Helena — a viscondessa Parkhurst falou com frieza.
Helena inclinou a cabeça.
— Lady Parkhurst. Lady Amelia. — As duas damas não
passavam de conhecidas de passagem. No entanto, não foi a falta
de familiaridade que tornou a conversa afetada e incômoda. O fato
lamentável era que, após três semanas, o escândalo em torno do
artigo do sr. Pelham ainda não havia arrefecido de todo. A maioria
das damas e cavalheiros que Helena encontrou durante seus
passeios não sabia como tratá-la.
— Uma bela manhã para caminhar, não? — lady Amelia
perguntou.
— Sim — Helena respondeu. — Está bastante agradável.
— Uma conversa fascinante — Jenny comentou quando as
duas damas seguiram em frente.
Helena abriu um breve sorriso.
— Elas não têm a menor ideia do que me dizer.
— São duas bobas.
— Não vou reclamar. Poderia ser muito pior. — O que não foi,
em grande parte devido à influência de lorde Wolverton. Seguindo a
deixa de sua temível condessa, algumas das damas mais velhas da
sociedade deram apoio a Helena. Elas a convidaram para um chá
ou a incluíram em suas listas de convidados para jantares ou
recitais. Ainda mais importante, algumas poucas haviam assumido
de bom grado a causa das reformas nos hospícios privados. Nada
havia sido feito ainda, mas Helena tinha esperanças.
— Mais uma razão pela qual você não deve pensar em deixar
Londres — Jenny afirmou. — Não importa o quanto seu coração
esteja partido.
Helena se perguntou em que estado estava o coração de
Justin.
— Sabe, durante todo o tempo que estivemos juntos, eu
realmente achei que ele estivesse começando a gostar de mim, mas
no dia em que ele foi embora... as coisas que ele disse. Ele foi tão
frio e insensível. Era como se ele fosse outra pessoa. Como se
nunca tivesse sentido qualquer calor ou afeto por mim.
— Thornhill sempre foi rude e severo. Na verdade, minha
querida, nunca entendi o que viu nele. Ele foi corajoso, devo admitir,
e admiro como ele lidou com o sr. Glyde, mas além disso... — Jenny
balançou a cabeça. — Não. A longo prazo, Thornhill não teria sido
um marido confortável. Afirmo que você está melhor ao ter se
livrado dele.
— Era diferente. Não era mera rudeza. Ele foi frio e cruel. Ele
nunca foi assim. Nunca. — Helena franziu o cenho. — Espere. Não
é bem verdade.
— Viu? Exatamente como eu disse a você. Um bruto insensível.
Na verdade, se ele falou com você dessa forma mais de uma vez,
só atesta seu caráter desagradável.
— Sim, ele foi frio comigo antes, mas foi... — Helena parou de
repente. Ela soltou o braço de Jenny. — Ah, Jenny! Por que não me
lembrei disso antes?
Jenny olhou para ela, as sobrancelhas castanho-escuras
erguidas em dúvida.
— O dia em que ele falou de forma tão fria comigo — Helena
explicou — foi o primeiro dia em que nos conhecemos. Na King’s
Arms em Devonshire. Ele disse algo extremamente vulgar.
— É mesmo? — Jenny abaixou a voz: — O que foi?
Helena acenou.
— Não importa. Além disso, eu ficaria envergonhada de repetir.
— Ela se virou e começou a percorrer rapidamente o caminho por
onde vieram. — Tenho sido tão cega. Tão estúpida.
Jenny andou depressa atrás dela.
— Para onde estamos indo?
— Para a Half Moon Street — Helena respondeu. — E depois
para Grosvenor Square.
— Grosvenor Square! — Jenny ficou boquiaberta. — Meu
Deus, seu tio ainda não voltou de Hampshire, não é?
— Não que eu saiba — Helena falou. — Mas não é o meu tio
que vamos ver.
Capítulo Vinte e três

North Devon, Inglaterra


Outubro, 1859

A nobreza não era tudo o que parecia ser. Justin teve ampla
prova disso nas semanas desde que deixou Helena em Londres.
Sempre ouviu que o autossacrifício era bom para a alma. Que a
virtude era sua própria recompensa e assim por diante. Mas
enquanto ele cuidava da sua vida cotidiana em North Devon, tudo o
que sentia era uma miséria esmagadora.
Não conseguia encontrar prazer em seus negócios. Nenhuma
satisfação nos reparos na abadia. Mesmo seus galopes diários em
Hiran não conseguiram elevar seu ânimo. Ele chegou à triste
conclusão de que não havia nada para ele sem ela.
Seria amor? Essa desolação dolorosa? Como se uma parte
essencial dele tivesse sido arrancada, deixando para trás um vazio
que nenhuma atividade, nem bebida, poderia preencher?
Fosse o que fosse, ele precisava encontrar uma maneira de
dominar o sentimento. Para reduzi-lo a proporções mais
gerenciáveis. Mas não parecia haver método concebível para
superar sua perda. Ele queria Helena. Precisava dela. E se algo não
mudasse logo, havia uma boa chance de ele jogar todas as suas
honrosas intenções ao vento e ir direto para Londres no próximo
trem.
— Estou pensando em voltar para a Índia — ele disse a
Boothroyd uma manhã, enquanto revisavam sua correspondência
na biblioteca. Estava apenas de camisa, com a barba por fazer e o
cabelo em desordem selvagem. Ele parecia e se sentia péssimo.
Boothroyd fez uma pausa no ato de afiar a pena.
— Índia, senhor? O que causou isso?
— O que acha?
— Ah, sim. Entendo. Compreendo perfeitamente. Mas... se me
perdoa, senhor... existem soluções mais simples do que viajar meio
mundo.
— Tais como?
— Poderia encontrar outra esposa.
Justin lançou um olhar mortífero ao seu administrador.
— Sim, sim — Boothroyd disse rapidamente, erguendo a mão.
— Eu não quis ofender. Mas considere. Assim que seu casamento
atual for dissolvido, podemos colocar outro anúncio e desta vez...
— Tenha cuidado, Boothroyd — Justin disse.
— Foi apenas uma sugestão, senhor.
— Se a conhecesse como eu, nunca ousaria fazer isso.
— Como quiser. Sua senhoria era uma mulher singular. O que
me leva à minha próxima sugestão. — Boothroyd deixou de lado
sua pena. — O senhor poderia simplesmente retornar a Londres,
encontrar sua senhoria e trazê-la de volta para a abadia. É o marido
legítimo dela. É de seu direito fazê-lo.
— Desisti dos meus direitos sobre ela, legais e todos os outros.
Ela está livre de mim para sempre. Não vou infligir minha presença
a ela novamente.
— Posso perguntar por quê?
Justin não respondeu. Não de imediato. Caminhou até a fileira
de janelas e olhou para o mar.
— Está feliz aqui, Boothroyd?
— Na abadia, senhor? Ora, sim. Estou muito contente.
— Não fica apenas por um senso de responsabilidade?
Boothroyd refletiu por um momento:
— Sinto certa responsabilidade, como qualquer bom
administrador sentiria. Pela abadia... e por você.
Justin olhou para Boothroyd por cima do ombro.
— Não me deve nada. Se deveu em algum momento, já me
reembolsou há muito tempo. — Ele voltou a olhar pela janela. — Só
precisa dizer uma palavra e terei o prazer de providenciar sua
aposentadoria em algum lugar com uma pensão generosa.
— O senhor sempre foi bom para mim. Mas ainda não estou
pronto para pendurar o arreio.
A boca de Justin se inclinou em um breve sorriso sem humor.
— Confesso que estou aliviado por ouvir isso. Preciso do
senhor aqui para cuidar das coisas quando eu estiver fora. Neville
não é indefeso, mas precisa de cuidados. E há a questão dos
criados.
— De fato, senhor. A perda da sra. Standish é lamentável.
Embora não se possa culpá-la. Ela assumiu a posição acreditando
que o senhor teria uma esposa em casa. Servir em uma casa de
solteiros não era do seu agrado.
Justin não conseguiu ter simpatia pela mulher. Ela partiu logo
depois que ele voltou de Londres. Não que isso importasse.
— Encontre outra pessoa, se puder. Alguém que não considere
uma casa cheia de homens uma ameaça à sua virtude.
— Comecei a perguntar, mas não há muitos que gostariam de
morar em um local tão remoto. — Boothroyd hesitou antes de
adicionar: — Agora, se o senhor se reconciliar com sua dama,
atrevo-me a dizer que ainda podemos atrair a sra. Standish de volta.
Justin fez uma careta:
— Pare, Boothroyd. Fiz algo nobre. Permita-me sofrer por isso
do meu próprio jeito.
— Voltando para a Índia, de todos os lugares? Depois do que
aconteceu com o senhor lá, eu teria pensado...
— Sim, bem... talvez seja hora de seguir em frente com tudo
isso. — As sobrancelhas de Boothroyd subiram quase até a linha do
cabelo.
— Nós dois passamos muitos anos vivendo no passado —
Justin falou. — Não havia espaço para mais nada. Sem esperança
de algo que remetesse a um futuro.
— Lamento que se sinta assim, senhor.
— Não lamente. É uma situação que eu mesmo criei. Ninguém
me forçou a voltar para Devon. A comprar esta casa. A qualquer
momento, eu poderia ter deixado o passado passar. Mas eu queria
justiça. Houve momentos em que essa foi a única coisa que me
ajudou a atravessar a noite.
— O senhor não foi o único injustiçado por sir Oswald. Eu
também tinha motivos para querer justiça.
— Foi há muito tempo. Tempo demais. Estou cansado de olhar
para trás. Quanto ao que aconteceu em Cawnpore... foi uma
tragédia. Não sei se poderei me perdoar por não ter conseguido
proteger aquelas mulheres. Mas eu era feliz lá antes da revolta. Ou
pelo menos tão feliz quanto me lembro de ser antes...
— Antes da chegada de sua senhoria?
Justin olhou para o mar. Ele tinha sido feliz com ela. Mais feliz
do que nunca em sua vida. Não tinha nenhuma expectativa de que
seria assim novamente. Mas talvez, algum dia, ele pudesse
encontrar um pouco de contentamento. Até então...
— Preciso colocar um continente entre mim e lady Helena —
ele disse.
— E então, para a Índia.
— Lá ou algum outro lugar. Um lugar é tão bom quanto outro.
Faça os arranjos. Posso conseguir uma passagem no próximo vapor
que sai de Marselha, se for preciso. — Justin se afastou da janela.
— E agora... — Ele pegou seu casaco. — Vou para a taverna em
King’s Abbot, onde pretendo beber até o esquecimento.

◆◆◆

Helena estava na porta da King’s Arms, sentindo a mais


extraordinária sensação de déjà-vu. Não muito tempo atrás, estava
exatamente no mesmo lugar, usando exatamente o mesmo vestido
de viagem cinza listrado de seda e olhando para a taverna lotada.
Não parecia tão diferente agora. Os mesmos homens amontoados
em torno das mesas. O mesmo cheiro de cerveja, torta de carne e
pele masculina suja pairava no ar. E, do outro lado da sala, o
mesmo cavalheiro alto e taciturno encostava-se ao balcão,
segurando sua bebida.
Justin.
Seu coração deu algumas batidas fortes e esperançosas.
Ela passou entre as mesas, o que fez suas saias roçarem nas
pernas dos cavalheiros sentados ao passar por eles. O
estalajadeiro, o sr. Blevins, enchia a caneca de cerveja de alguém.
Ela chamou sua atenção quando entrou no espaço vazio ao lado de
Justin no balcão.
— Com licença, senhor. Posso usar a sala privada por uma ou
duas horas?
Todo o corpo de Justin ficou rígido.
— Fique à vontade, milady — Blevins respondeu.
Ela virou a cabeça para olhar para Justin e o encontrou fitando-
a com um olhar de tal incredulidade que alguém poderia pensar que
ela era uma aparição que acabara de se materializar ao lado dele.
Seu cabelo preto estava despenteado, como se ele tivesse passado
as mãos pelos fios, e suas bochechas estavam sombreadas com a
barba por fazer. Ele parecia cansado, desesperado e dolorosamente
encantador.
— Olá — ela disse.
Uma carranca escureceu seu semblante.
— O que você está fazendo aqui?
— Vim vê-lo, é claro.
— Todo o caminho de Londres? — Ele se levantou em toda a
sua altura. — Algo se passou com o seu tio?
— Não — respondeu rapidamente. — Pelo que sei, ainda está
em Hampshire. Ele não fez nenhuma tentativa de entrar em contato
comigo.
O olhar de preocupação sumiu do rosto de Justin, apenas para
ser substituído pela mesma expressão fechada que ele tinha no dia
em que a rejeitou de forma tão cruel.
— Como sabia que eu estaria aqui?
Helena se recusou a se intimidar com a frieza em sua voz.
— Boothroyd me contou.
— Você já foi à abadia?
— Naturalmente. Fomos lá primeiro.
— Nós?
— Vou explicar tudo, mas prefiro que não seja em público. Pode
me acompanhar até a sala privada? Podemos falar lá sem
audiência. A menos que prefira...
— Venha. — Ele a pegou pelo braço e a acompanhou pela
taverna. Ele não foi rude, mas mesmo assim ela se sentia como
uma criança obstinada sendo arrastada para a sala de aula por um
tutor severo.
O salão privado era tal qual se lembrava. A mesma mesinha
onde ela se sentou com o sr. Boothroyd e as mesmas cadeiras ao
redor da lareira onde ela uma vez serviu chá a Justin.
Ele a soltou quando cruzaram a soleira. Ela o ouviu fechar a
porta, mas só se virou para encará-lo ao remover o chapéu-boneca,
as luvas e o manto, e jogá-los em uma cadeira vazia.
Justin ficou parado à porta, olhando para ela.
— Explique-se.
Helena teve um breve momento de dúvida. O rosto dele estava
tão severo, sua postura tão hostil. E se ela estivesse enganada? E
se...
Mas ela se recusava a acreditar nisso. Obrigou-se a caminhar
lentamente até a mesa de madeira. Parou atrás de uma das
cadeiras de ripas e apoiou a mão no respaldar.
— Nós nos sentamos aqui juntos naquele primeiro dia. Você se
lembra?
Ele cruzou os braços.
— Helena, achei ter sido claro em Londres.
Helena continuou como se não o tivesse ouvido.
— Eu disse a você que lamentava muito que você tivesse se
queimado. E você disse... — Ela umedeceu os lábios. — Você se
lembra do que disse?
A mandíbula de Justin ficou tensa.
— Algo grosseiro. Que diferença faz?
— Sim, foi muito grosseiro. Na verdade, foi a coisa mais
chocante que alguém já me disse. Se eu não estivesse tão
desesperada, teria fugido naquele momento. — Ela apertou as
mãos nas costas da cadeira. — Mais tarde, no hotel, perguntei por
que você disse tal coisa. Você se lembra?
Justin desviou o olhar dela.
— Helena...
— Você disse que sabia que eu era boa demais para você. Que
estava tentando ser nobre.
— Não vejo sentido em repassar todo o assunto...
— A questão é... — ela falou — não preciso que você seja
nobre. Só preciso que seja meu.
Ele voltou o olhar para o dela. A máscara fria que ele usava
estava começando a rachar, e a emoção profunda lutava para vir à
superfície. Uma onda de euforia quase roubou seu fôlego. Ela
estava certa.
Afinal, ele gostava dela.
Ela soltou as mãos da cadeira e deu um passo em direção a
ele.
— Seus hematomas estão sarando bem.
— Já se passaram várias semanas.
— Sei muito bem disso. — Outro passo a trouxe para mais
perto. — Tem lido as notícias de Londres?
Ele balançou a cabeça.
— O artigo do sr. Pelham causou um certo alvoroço,
exatamente como o sr. Finchley previu. O Times publicou uma série
própria a respeito de hospícios privados. O Parlamento ainda não
mostrou qualquer inclinação para agir, mas tenho esperança de que
o façam. Tenho contribuído com fundos para a causa. Tornou-se
uma espécie de projeto de caridade meu.
Justin não disse nada. Apenas a fitou, com a emoção lutando
em seu olhar cinza como fumaça, enquanto ela avançava para ele.
— Tive que me manter ocupada. Estive muito infeliz. Na
verdade, no dia em que você me deixou em Londres, chorei pela
primeira vez em quase um ano. Achei que meu coração estivesse
partido.
Com a menção de suas lágrimas, a máscara de Justin rachou
um pouco mais.
Ela parou na frente dele, tão perto que as saias se amontoaram
contra as pernas do cavalheiro.
— Passei a viagem para cá me afligindo com o que lhe diria.
Mas agora que o estou vendo, agora que estou aqui, olhando-o
mais uma vez, tudo que posso pensar em dizer é que você pode ser
tão frio e indiferente a mim quanto quiser, mas não vou a lugar
nenhum.
— Helena...
— Não vou concordar em dissolver nosso casamento nem em
viver longe de você. Se quiser se livrar de mim, terá que pedir o
divórcio. Embora, devo avisar, seria o escândalo da década e
provavelmente arruinaria a nós dois.
— Você não sabe o que está dizendo.
— Conheço minha própria mente, Justin. Não sou a mesma
criatura assustada que era quando nos conhecemos.
— Sei disso — ele falou com aspereza repentina. — Está muito
mais forte agora. Se não estivesse, eu nunca teria... — Ele parou de
forma abrupta, passando os dedos pelos cabelos em visível
frustração. Ele se virou e foi até a lareira, de costas para ela. —
Você não deveria ter vindo aqui.
— Bobagem. A Abadia de Greyfriar é minha casa agora. Onde
mais eu deveria estar?
Ele resmungou algo baixinho. Parecia um juramento. Ela não
conseguia decifrar. E então ele riu. Uma risada curta e amarga.
— Abadia de Greyfriar. Sabe quantos anos planejei possuir
aquele lugar amaldiçoado? Eu queria aquele lugar, mais do que
tudo. Além de qualquer razão. Eu acreditava que o merecia. E
pensei que, ao tomá-lo, o vazio dentro de mim seria... eu não sei.
Preenchido ou erradicado. Algo assim.
Ela parou atrás dele.
— E agora é minha. Aquela casa magnífica e miserável, que
nunca me fez feliz. — Ele encarou a lareira fria por um longo
momento. — O desejo que eu sentia pela abadia é apenas uma
sombra pálida do desejo que sinto por você.
Seu pulso batia forte na garganta.
— Então por que tentou me afastar? Tem medo de que eu
também não o faça feliz?
— Como poderia ser feliz quando sei que estaria destruindo a
única coisa, a única pessoa, com quem mais me importo em todo o
mundo? — Ele se virou para encará-la. E a máscara se foi.
Desapareceu. Em seu lugar estava a vulnerabilidade absoluta. —
Eu não tenho sido um bom homem, Helena. Tenho sido egoísta em
minha necessidade. Implacável e duro. Mas com você... — Ele
balançou a cabeça. — Não posso mais ser aquele homem.
— Eu amo qualquer tipo de homem que você seja.
Ele a olhou, em choque.
— O que disse?
— Eu disse que o amo, exatamente como é. — Um rubor
quente cobriu suas bochechas. Ela não sabia em que espírito ele
estava recebendo sua declaração. Parecia estupefato, olhando-a
como se ela tivesse acabado de dizer algo em um idioma ainda não
descoberto. — Percebi em Londres — ela continuou com
determinação. — Na verdade, quase contei a você depois daquela
comedieta horrível. É o último segredo que escondi de você. — Ela
colocou as mãos no peito dele. — Confesso-o agora, de todo o meu
coração.

◆◆◆

Ela o amava.
Justin fitou o rosto de Helena, traçando cada contorno. O
arquear das sobrancelhas cor de mogno, a curva macia das maçãs
do rosto e o arco de seus lábios rosados. Ele devia ter ouvido mal.
Talvez estivesse bêbado. Isso ou alucinado. Na verdade, a própria
presença dela – ali na estalagem, usando o mesmo vestido que ela
usou no dia em que se conheceram – parecia um sonho. Como se
ela tivesse sido conjurada por sua imaginação febril. Ela não parecia
muito real. E ainda...
Conseguia sentir o aroma delicado do jasmim de seu perfume e
o amido leve de suas anáguas. Podia sentir o peso e o calor de
suas mãos delgadas apoiadas em seu peito. Achou que estava
resignado por nunca mais vê-la de novo. A seguir com a vida sem
ela. Bastou um olhar, um toque, e os sentimentos voltaram, ardendo
em seus olhos e apertando seu peito.
Meu Deus, ela o amava.
Ele cobriu as mãos dela com as suas.
— Helena... não sei o que dizer.
— Isso é fácil. Diga que também me ama.
Ele abaixou a cabeça, apoiando a testa na dela.
— É claro que eu a amo — disse, em um grunhido rouco. —
Por que é que acha que a deixei ir?
Uma risada sufocada escapou dela. Soou um pouco como um
soluço.
— Que lógica tortuosa é essa?
— É a sua lógica.
— Minha?
Ele apertou as mãos dela.
— Você me disse que se amasse alguém, sacrificaria qualquer
coisa para fazê-lo feliz.
— É isso que você fez? Sacrificou seu amor por mim? — Ela
retribuiu o aperto quente de seus dedos. — Meu querido, como você
poderia pensar que eu seria feliz sem você?
Meu querido. Seu coração deu um salto. Mas ele não podia se
permitir ser distraído. Agora não. Tinha que manter alguma
aparência de controle.
— Não sou um cavalheiro, Helena, e King’s Abbott está muito
distante do brilho de Londres. Você merece o melhor. Deveria estar
com alguém de sua estirpe.
— Não sou uma planta exótica, Justin. Sou uma mulher.
— Você é uma lady. E eu seria o bastardo mais egocêntrico
vivo se a mantivesse aqui comigo.
Helena se afastou dele com um suspiro.
— Suspeitei que fosse algo dessa natureza.
— Então entende por que tive de desistir de você.
— Você não vai desistir de mim — ela falou. — Ou melhor, eu
não vou desistir de você.
Ele procurou seu rosto, sentindo o coração batendo forte com
algo muito parecido com esperança.
— O que está dizendo?
— Estou dizendo que o autossacrifício é muito bom, mas, ao
contrário de você, no que se refere ao nosso casamento, pretendo
ser egoísta. — Ela se ergueu na ponta das botas, estendendo a
mão para passar os braços em volta do pescoço dele. Ela o olhou
fixamente nos olhos. — Você é meu, Justin Thornhill. Não importa
de onde veio, nem quem eram seus pais. Tudo o que importa é que
você pertence a mim... e eu pertenço a você.
O resto de sua resolução se desfez em pó.
— Sim — ele afirmou. — Sim. Para sempre. — E então ele a
pegou nos braços e a beijou.
Helena se agarrou ao seu pescoço enquanto sua boca se
movia sobre a dela, retribuindo o beijo. Ela era doce, suave e
ferozmente apaixonada. Helena não reteve nada.
E ele também não.
Justin a beijou profundamente. Por inteiro. Sem se importar
com nenhum decoro. Ela se arqueou contra ele, quente e feminina.
As saias pesadas foram esmagadas em suas pernas e as
barbatanas de seu espartilho duras e inflexíveis debaixo da palma
de sua mão que lhe envolvia a cintura. A outra embalava a parte de
trás da cabeça de Helena. Ao longe, ele registrou o som de grampos
de metal caindo no chão da sala enquanto os dedos se
entrelaçavam no penteado elegante.
— Você está me deixando terrivelmente descomposta — ela
murmurou.
— Devo parar?
— Não. — Ela deu um beijo suave em sua boca. — Não ouse.
— E depois outro: — Senti tanto a sua falta.
Ele gemeu.
— Helena... quero você mais do que à vida.
— Eu sou sua — ela prometeu. — Para sempre.
Ele a olhou nos olhos.
— Que idiota eu fui.
— Sim, foi.
— Eu nunca quis magoá-la.
— Eu sei.
— No dia em que deixei Londres... aquelas coisas que disse a
você...
— Por favor, não se desculpe. Não agora. — Ela o puxou pelo
pescoço. — Eu prefiro que me beije de novo.
Ele deu uma risada repentina.
— Prefere, não é? — Ele inclinou a cabeça e roçou os lábios
nos dela com infinita ternura. — Assim?
— Isso.
Justin passou outro braço em volta da cintura de Helena e
recuou em direção a uma das grandes cadeiras perto da lareira. Ele
parou de beijá-la apenas tempo suficiente para abaixar-se no
assento e puxá-la para seu colo.
— Muito melhor. — E então a beijou novamente.
Quando enfim se separaram, os dois estavam corados e sem
fôlego.
— Meu Deus — ela falou. — Alguém poderia ter nos
surpreendido.
Justin olhou para a porta.
— Ainda pode. Devo deixar você se levantar?
— Não, obrigada. Estou bastante confortável aqui.
Ele a puxou para mais perto.
— Você se encaixa muito bem em meus braços.
— É claro. Somos perfeitos um para o outro.
— Destinados a ficar juntos, não? O que me lembra... — Ele
soltou sua cintura para mexer na frente do casaco. —Tenho algo
para você.
— Para mim? Mas como? Você não sabia que eu estaria aqui...
— A voz dela sumiu quando ele retirou uma pedra de lágrimas de
sereia do bolso do colete. Era um tom brilhante de azul, mais
parecido com uma pedra preciosa do que com o resto de uma
garrafa quebrada lapidada pela areia e pelas ondas.
— Eu o encontrei na praia esta manhã quando estava
montando Hiran. Nunca vi uma tão azul. Por um momento, pensei
que fosse uma safira. Uma remanescente do tesouro enterrado,
talvez.
— Ah, Justin. É linda.
— Me fez pensar em você. Do primeiro dia em que
caminhamos juntos pela praia. Você se lembra?
— Como eu poderia esquecer? Ainda tenho a lágrima de sereia
que você me deu então. Está na minha caixa de joias.
— Esta também é sua. — Ele a deixou cair na palma da mão de
Helena. — Para adicionar à sua coleção.
Ela a examinou de perto.
— Uma coisa tão fascinante, lágrimas de sereia. Ele começa
sua jornada de forma tão humilde. E, então, com o tempo...
— Muito tempo.
— Quanto?
— Uma década ou mais, creio.
— E então se transforma em algo novo. Algo extraordinário. —
Ela olhou para ele. — O que você teria feito com ela se eu não
tivesse voltado?
— Não sei. Eu mal sabia o que fazer comigo mesmo. — Ele
afastou uma mecha de cabelo de seu rosto. — Mais uma razão pela
qual estou tão feliz por você estar aqui. Estou contando com você
para me dizer o que vai acontecer agora.
— Devo decidir?
— Imagino que você tenha um plano.
— Não é muito complicado. — Ela passou as costas dos dedos
pela sua mandíbula. — Não vim para Devon sozinha. A Jenny está
comigo. Eu a deixei na abadia para supervisionar os criados.
— Não temos muitos deles no momento. A sra. Standish nos
abandonou há três semanas.
— O sr. Boothroyd me falou. Mas não importa. Eu trouxe muitos
criados comigo. Um mordomo, três criadas e dois lacaios, para ser
mais precisa. Havia vários outros na casa do meu tio que estavam
ansiosos para ir embora, mas eu não queria privá-lo de toda a
equipe de uma vez.
Justin contraiu os lábios.
— Você pegou os criados dele.
— Ele não vai sentir falta. Além disso, nós precisávamos mais
deles. Vamos restaurar a abadia à sua antiga glória. Vou torná-la um
lar adequado para nós.
— Uma tarefa ingrata.
— Nem um pouco. Ficaremos gratos por isso, assim como
Neville e o sr. Boothroyd, e nossos filhos também, quando eles
chegarem. — Ela curvou a mão em volta do pescoço dele. O calor
em seu olhar fez o ventre dele estremecer. — Uma casa, Justin.
Minha e sua.
— Minha casa é onde quer que você esteja.
Os olhos de Helena brilharam.
— Que coisa perfeitamente adorável de se dizer.
— É a verdade. Estive no inferno sem você, Helena. Bom Deus,
hoje eu realmente pensei em voltar para a Índia.
Ela franziu a testa.
— Sim, eu sei. O sr. Boothroyd me contou.
Justin baixou as sobrancelhas.
— Deve perdoá-lo por divulgar seus segredos. Pobre
cavalheiro. Ele estava terrivelmente preocupado com você, e muito
feliz em me ver. Até Jonesy e Paul pareceram aliviados. — Ela
entrelaçou os dedos em sua nuca. — Meu querido, você tem estado
com um humor terrível, não é? Impossível de se conviver.
Ele acariciou sua bochecha.
— Atrevo-me a dizer que você vai remediar isso.
Helena riu.
— Sabe — ela falou enquanto puxava sua boca para outro beijo
suave —, acredito que vou.
Epílogo

Dois meses depois

Helena oscilou precariamente no degrau mais alto da escada,


estendendo a mão para fixar a última vela na árvore de Natal. Era
um pinheiro enorme, alto e cheio, com ramos viçosos que se
estendiam e se enredavam em suas saias de veludo. Uma estrela
metálica cintilante coroava o topo.
— Estou quase conseguindo — ela afirmou. — Quase...
Neville segurou firme a velha escada de madeira.
— Tome cuidado.
— Estou sendo extremamente cuidadosa. É essa vela apagada
que não coopera. Temos mais pedaços de arame? Se puder olhar
na cesta...
— Saio do cômodo por cinco minutos e é isso que encontro no
meu retorno. — A voz de Justin soou da porta. O marido estava
ajudando a decorar, mas quando o correio da tarde chegou, ele deu
uma olhada e se retirou de forma abrupta para a biblioteca.
Ela olhou para ele por cima do ombro.
— Está tudo bem?
— Não, não está nada bem. — Justin cruzou o corredor,
ocupando o lugar de Neville na base da escada. — Desça daí, meu
coração, antes que você quebre o pescoço.
Ela segurou as saias, afastando-as do caminho enquanto
começava a descer. Não desceu mais do que dois degraus quando
as mãos de Justin envolveram sua cintura e a desceram até o chão.
— Eu não estava em perigo — ela assegurou.
Ele lhe lançou um olhar severo.
— Você deveria ter esperado por mim.
— É a última vela da árvore, Justin — Neville explicou. — Nós
estávamos colocando no espaço vazio.
— Há um espaço vazio? — Justin lançou um olhar duvidoso ao
redor do cômodo. — Onde? Cobrimos todas as superfícies
imagináveis da Abadia.
Helena não tinha como argumentar. Na semana anterior, ela
ficou um tanto obcecada com decoração para o feriado vindouro.
Cada cômodo estava adornado com folhagens festivas, azevinho e
laços de fita. Justin e Neville nunca presenciaram uma verdadeira
comemoração de Natal, e ela estava determinada a oferecer uma
para eles com todos os enfeites.
— O que foi que veio pelo correio? — ela perguntou. — Eram
más notícias?
— Era uma carta da Índia.
O coração de Helena acelerou.
— Sobre Giles?
— Venha para a biblioteca comigo por um momento. Podemos
discutir as coisas lá. E Neville? Não se atreva a subir essa escada
enquanto estamos fora. Ela não serve para virar lenha.
Com a mão na parte inferior das costas dela, Justin a guiou até
a biblioteca e fechou a porta. Eles foram até a janela e se sentaram.
— A carta era de Simon Harding — ele falou. — Você se lembra
de quando o mencionei?
Helena assentiu. O sr. Harding e a esposa eram amigos de
Justin desde seus primeiros dias na Índia. Eram muito bem
relacionados, com contatos tanto na comunidade britânica quanto
na nativa. A pedido de Justin, o sr. Harding concordou em fazer uma
pequena investigação.
— Ele descobriu alguma coisa?
— Pode não ser nada. Mas... pode ser significativo. Envolve o
oficial que testemunhou a morte de seu irmão. Aquele em cujas
evidências seu tio herdou o título.
— Coronel Anstruther?
— Harding diz que pode ter havido uma rixa entre Anstruther e
seu irmão. — Justin fez uma pausa. — É um pouco constrangedor.
— O que você quer dizer?
— Envolve a esposa de Anstruther. Aparentemente, havia
rumores de que ela e seu irmão eram amantes.
Helena recuou surpresa. Sabia que o irmão gostava da
companhia de mulheres bonitas. Ele era um sujeito bem-apessoado,
com disposição para flertar. Mas adultério era outra coisa. E com a
esposa de um colega oficial?
— Giles nunca teria sido tão estúpido. E mesmo se tivesse sido,
o que isso poderia ter a ver com todo o resto?
— Provavelmente nada — Justin falou. — Mas... isso pode
colocar em questão a identificação que Anstruther fez do corpo de
seu irmão.
Uma minúscula centelha de esperança se acendeu no peito de
Helena.
— É isso que o sr. Harding pensa?
— Ele não expressou nenhuma opinião. Mas ele diz que, se
quisermos, ele pode combinar uma conversa com Anstruther. Para
fazer algumas perguntas.
— Eu gostaria disso — ela falou. — Muito.
— É muito provável que ela apenas confirme o que já foi
relatado. Que seu irmão morreu durante o cerco. Mas há uma
chance muito pequena de que Harding descubra algo novo. Ele
sabe ler bem as pessoas. É uma das razões pelas quais ele tem tido
tanto sucesso nos negócios.
— Quando ele pode falar com o coronel Anstruther?
— Não até o início da primavera. Anstruther se aposentou em
Delhi, e Harding só voltará lá em abril. Importa-se em esperar?
— De forma alguma. Sou grata por ele ter se empenhado tanto
em meu nome.
— Harding é um bom homem.
Ela fez menção de se levantar.
— Devo escrever uma carta para ele, agradecendo.
Ele segurou a mão dela.
— Não precisa fazer isso agora. Na verdade, não precisa fazer
nada. — Seus dedos se entrelaçaram com os dela. — Deixe o resto
da decoração para a srta. Holloway e Neville. Parece que faz um
século que não fico sozinho com você.
— Um século? Desde hoje de manhã? — Ela sorriu. — Meu
querido, que novidade esse seu conceito de tempo.
Ele abaixou a cabeça e a beijou. De leve, bem suave.
— Como eu adoro seus pequenos carinhos. Eles me fazem
querer levá-la de volta para a cama.
Ela riu, enquanto um rubor aquecia suas bochechas. Nos
últimos dois meses, passaram horas intermináveis na grande cama
elizabetana, aprendendo um com o outro. Ela conhecia a forma dele
agora. O calor e o peso de seu corpo, e a textura da pele bronzeada
pelo sol. Conhecia as batidas de seu coração, que durante os
momentos mais íntimos dos dois, seguia no mesmo ritmo que o
dela.
— Eu amo você — ela falou.
Justin a encarou. Uma emoção intensa brilhou nas profundezas
de seus olhos cinzentos.
— Eu a amo mais.
Helena acariciou a bochecha do marido.
— Impossível.
Sua boca se curvou em um meio sorriso repentino.
— Vamos discutir sobre isso?
— Não tenho forças. Estou exausta de toda essa decoração.
— Não avisei que era um empreendimento muito grande?
Mesmo com os criados...
— Não importa agora. Estamos quase terminando. E você deve
admitir que tudo está muito bonito. O azevinho, a hera e as velas na
árvore. — Ela passou a ponta dos dedos pela barba por fazer. —
Basta esperar, meu amor. Vou dar a você um Natal para se lembrar.
Ele cobriu a mão dela com a sua.
— Você já fez isso.
Ela derreteu um pouco com aquelas palavras. Era tão novo
para ele ser amado e cuidado. Helena sentia isso cada vez que o
beijava ou o acariciava. Cada vez que ficava enroscada em seus
braços. Justin a absorvia. Permitia que seu amor por ele apagasse a
escuridão de seu passado.
— Você está desapontado que o sr. Finchley não vai estar aqui
para as festas?
— Ele pode vir no próximo mês. Depois que a srta. Holloway
nos deixar.
Helena suspirou.
— Gostaria que ela não fosse embora.
— Ela é uma criatura de Londres.
— Creio que sim. Ela nunca foi totalmente feliz no campo. E
agora que lhe dei algum dinheiro, está ansiosa para voltar a Londres
e começar a vida lá.
— Ela conhece os termos de sua independência?
Helena mordeu o lábio.
— Ainda não entrei em detalhes.
Justin não disse nada abertamente. Ele não aprovava sua
intromissão, mas a amava demais para proibir.
— Acha que ela vai ficar tremendamente insatisfeita comigo? —
Helena perguntou.
— Se eu dissesse sim, você deixaria os dois em paz?
— Eu não sou casamenteira. Na verdade, não sou. É só que...
se deixada por própria conta, Jenny nunca o perdoaria. Ela não
tolera tais disparates.
— Finchley não é muito disparatado. Mas você já deve ter
percebido que ele não é um advogado típico. Ele resolve problemas
para seus clientes. Conserta coisas que precisam ser consertadas.
— Ele é reservado.
— Necessariamente. Ele costuma ser contratado por pessoas
poderosas. As ações que ele toma em nome delas nem sempre são
estritamente legais.
Helena considerou.
— Não sei se ele é certo para Jenny ou ela para ele. Mas não
terei o fim da amizade deles na minha consciência.
— Não deveria ter. Fui eu quem fez Finchley redigir os papéis
da anulação. Na época, achei...
— Sei o que você achou.
Ele fez uma careta.
— Foi tolice de minha parte.
— Agora nós podemos concordar. — Ela se esticou para dar
um beijo em sua boca. Os braços de Justin a envolveram e a
puxaram para perto de seu peito.
— Está feliz, querida?
— Hum. Mais que feliz. Muito mais. — Helena se acomodou em
seu abraço. — Você me faz sentir forte, Justin. Na verdade, quando
estou com você, sinto-me corajosa o suficiente para enfrentar o
mundo.
Seus lábios roçaram a têmpora dela e Helena o sentiu sorrir.
— Vamos enfrentá-lo juntos, amor — ele afirmou.
E assim eles fizeram.
Nota da autora

O anúncio matrimonial foi inspirado por dois eventos da vida


real que se passaram no fim da década de 1850.
O artigo que o sr. Pelham escreve para o fictício London
Courant é uma versão parafraseada de um artigo real publicado no
The London Times em 19 de agosto de 1858. O escrito abordava
abusos em hospícios privados e revelava, entre outros fatos
perturbadores, o quanto era frequente que pessoas sãs fossem
subjugadas por parentes gananciosos que tentavam obter o controle
de seu dinheiro.
As vítimas, nesses casos, eram geralmente membros das
classes mais abastadas. Quando combinados com relatos fictícios,
como o caso do confinamento injusto descrito no romance de Wilkie
Collins, de 1859, A mulher de branco, era o suficiente para causar
arrepios na alta sociedade. As pessoas se perguntaram quantas
vezes homens e mulheres foram trancados e torturados com
tratamentos bárbaros até ficarem, de fato, loucos. Era uma situação
quase sombria demais para ser contemplada.
Infelizmente, o editorial do The Times (e os artigos de jornal que
se seguiram) não produziram nenhuma mudança significativa na
gestão dos hospícios privados. Eles eram de domínio dos muito
ricos e, como tal, menos sujeitos a reformas do que as instituições
públicas.
O segundo evento real mencionado em O anúncio matrimonial
é o Massacre de Cawnpore. Também conhecido como o massacre
de Bibighar, ocorreu durante a rebelião indiana de 1857. O que
Justin descreveu enquanto escoltava mulheres e crianças até o rio
Ganges realmente aconteceu. Os rebeldes sipaios invadiram,
atearam fogo aos barcos, massacraram os soldados britânicos e
tomaram mulheres e crianças como reféns, que foram mortas mais
tarde de uma maneira que chocou o povo vitoriano; e provocou uma
retaliação brutal das forças de salvamento.
Se quiser saber mais sobre o Massacre de Bibighar, ou
qualquer outra pessoa, lugar e eventos da vida real que aparecem
em meus romances, visite a parte do blog no meu site.
Agradecimentos

Devo muitos agradecimentos àqueles que ajudaram a dar vida


a O Anúncio Matrimonial.
Para minhas maravilhosas leitoras beta britânicas e
americanas, Sarah, Flora e Lauren, obrigada pelo tempo,
generosidade e feedback imensamente úteis. Sou muito grata a
todas por lerem este livro nos estágios iniciais. E tão rápido também!
À minha brilhante editora, Deb Nemeth, obrigada por todos os
comentários e sugestões atenciosas. Seu conselho foi, como
sempre, perspicaz e inestimável.
Para minha talentosa, e muito paciente, diagramadora, Colleen
Sheehan, obrigada por deixar o miolo dos meus livros tão lindos.
Às colegas autoras de romances históricos, Lena Goldfinch e
Jayne Fresina, obrigada por serem tão gentis e graciosas. O
incentivo de vocês é muito valioso.
Para a incrível equipe da Smith Publicity, especialmente Emma
e Corinne, obrigada pelos esforços em nome dos meus romances
vitorianos. Sou muito grata pelo entusiasmo e profissionalismo de
vocês.
Aos meus fabulosos amigos, fãs e seguidores nas redes sociais
e impressos, obrigada por lerem meus livros. As mensagens e
avaliações me inspiram a continuar escrevendo, mesmo quando as
coisas ficam difíceis.
E, finalmente, aos meus pais, obrigada por absolutamente tudo;
especialmente por cuidar dos meus cachorros barulhentos para que
eu pudesse terminar este livro em paz!

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