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Justin acordou bem antes da aurora. O fogo havia se apagado
e o quarto estava frio. Helena se aconchegou nele para se aquecer.
A bochecha estava sobre seu peito; o braço, envolto na barriga de
Justin. O braço dele, de alguma forma, conseguiu se insinuar ao
redor dela. A mão estava apoiada, de forma bastante possessiva, na
curva de seu quadril.
Deveria ter parecido uma impertinência. Ela era uma dama.
Sobrinha de um conde. Filha e irmã de condes também. Quando
limpou o arranhão em seu joelho na noite passada, ficou muito
surpreso pelo sangue não ser azul.
Quando menino, a coisa mais próxima de um título com que
havia se deparado tinha sido na pessoa de sir Oswald. Um mero
baronete. A primeira vez que o viu cavalgando pelos portões do
orfanato em um magnífico Caçador negro, Justin ficou admirado. Foi
uma emoção bem passageira.
— Saiam do caminho, seus órfãos pedintes! — sir Oswald
gritou.
Justin estava na entrada com Finchley, Archer e Neville. Sir
Oswald brandiu o chicote para dispersá-los. A borla de couro havia
estalado na bochecha de Archer. Justin teve que agarrar o amigo
pelo braço e puxá-lo para fora do caminho do cavalo.
Finchley, entretanto, não se moveu um único centímetro. Ele
era o menor e mais magro deles, mas era, como agora, possuidor
de uma firmeza anormal dos nervos. Através dos óculos de segunda
mão que usava empoleirados no nariz, o menino semicerrou os
olhos para a figura longínqua de sir Oswald.
— Quem é esse?
— O rei — Neville respondeu.
— Não é o rei — Archer retrucou. — O rei é um homem velho.
Justin havia observado o cavalheiro alto e vestido de forma
impecável apear na entrada do prédio de pedra de três andares
onde os órfãos de Abbot’s Holcombe ficavam alojados.
— Talvez seja o pai de alguém — ele havia comentado. — Que
veio para levá-lo para casa.
Parecia ter sido há uma vida. Foi aquele breve encontro matinal
que pôs em movimento os eventos das duas décadas seguintes.
Tudo porque eles ficaram fascinados com a aparência de um
cavalheiro elegante. Porque ficaram deslumbrados com a riqueza e
a posição social.
Mas se Justin estava deslumbrado com Helena, não tinha nada
a ver com sua riqueza e linhagem aristocrática. Como poderia? Ele
não sabia sobre nada disso até o aparecimento de Hargreaves e
Glyde. Até então, sabia apenas que ela era uma dama. Uma mulher
de fina categoria.
Ela era boa demais para ele em qualquer circunstância. Estava
visível para quem quisesse ver. Mas tocá-la não parecia uma
impertinência. Parecia natural e certo. Como se ela tivesse sido feita
especialmente para se deitar em seus braços.
Inclinou a cabeça para o cabelo dela e respirou fundo.
Ela não se mexeu. Nem mesmo quando ele a soltou e se retirou
da cama bem devagar. Helena havia dito que não dormia bem
desde que partiu de Londres. E, considerando o que ela passou, ele
não tinha dúvidas. Depois dos eventos de ontem, ele também
estava se sentindo um pouco cansado.
Mas não havia tempo a perder.
Avivou o fogo da lareira para ela e, depois de recolher algumas
peças de roupa no quarto de vestir, seguiu para o banho. Em quinze
minutos, estava limpo, barbeado e vestido. Jogou uma muda de
roupa em uma velha mala de couro e desceu as escadas.
Boothroyd estava na cozinha, como sempre a essa hora da
manhã. Ele se sentou à mesa de madeira, com o guardanapo
enfiado na camisa enquanto espalhava geleia em um pedaço de
torrada. Neville estava sentado em frente a ele, terminando um prato
de ovos e bacon. Paul e Jonesy se moviam a seus pés.
Ao ver Justin, Boothroyd parou. Seus olhos focaram na mala.
— Você vai, então.
— Creio que devo — Justin respondeu.
Boothroyd voltou a colocar a torrada no prato. Ele puxou o
guardanapo da gola e o jogou sobre a mesa.
— Por quanto tempo?
— Não devo demorar mais de dois dias.
Neville afastou os olhos do desjejum.
— Ainda está chovendo, Justin.
— Está, sim. — Justin atravessou o piso de pedras para se
juntar a eles na mesa. Serviu-se de uma xícara de chá e bebeu em
pé. — Não se preocupe. Não vou derreter.
— Acredita ser sábio empreender essa viagem, senhor? —
Boothroyd perguntou.
— Mais sábio agora do que quando a estrada secar. — Justin
respondeu. — Vou alugar uma carruagem para me levar a
Barnstaple. Posso pegar um trem rápido de lá para Londres.
— E como planeja chegar a King’s Abbot?
Justin deu de ombros.
— Da mesma forma que sempre faço quando a estrada do
penhasco fica intransitável.
Boothroyd franziu os lábios.
— Perdoe-me por dizer isso, senhor, mas um dia quebrará o
pescoço.
— Justin não vai cair — Neville afirmou. Em seguida, franziu o
cenho. — Vai, Justin?
— Decerto que não. — Justin lançou um olhar de advertência
para Boothroyd. Não havia razão para alarmar Neville. A verdade
era que, embora a estrada do penhasco ficasse intransitável para
cavalos ou carruagem, alguém que conhecia o terreno, alguém que
estivesse em forma e fosse extremamente cuidadoso, poderia
seguir a pé. Era um pouco arriscado. Mas eram menos de cinco
quilômetros. E não era como se estivesse escalando a face do
penhasco.
— Estará coberto de lama quando chegar a King’s Abbot —
Boothroyd afirmou.
Justin terminou o chá.
— Muito provavelmente. — Ele se virou para Neville e colocou
a mão no ombro do amigo. — Tenho uma tarefa especial para você,
Neville.
Neville se empertigou na cadeira.
— O que é?
— Enquanto eu estiver fora, você deverá cuidar da sra.
Thornhill.
Boothroyd ergueu as sobrancelhas.
Justin o ignorou.
— Quero que você cuide dela. Você, Paul e Jonesy. — Ele
encarou Neville. — Entendeu?
Neville deu um aceno solene.
— Sim, Justin.
— Bom homem. — Ele olhou para Boothroyd. — Ninguém virá.
Não há ninguém em King’s Abbot que ouse se arriscar na estrada
do penhasco. No entanto... esteja vigilante.
— Como sempre, senhor. — Boothroyd se levantou. Quando
Justin saiu da cozinha, ele o seguiu. — O que devo dizer à sra.
Thornhill?
Justin franziu a testa. Ocorreu-lhe que deveria ter deixado um
bilhete para ela. Um descuido de sua parte, mas que seria
facilmente contornado.
Subiu as escadas até a biblioteca, de dois em dois degraus.
Havia dinheiro na mesa de Boothroyd de que ele precisaria para sua
jornada. Também havia papel e caneta. Enquanto o homem mais
velho contava as moedas, Justin mergulhou uma pena afiada no
tinteiro e rabiscou uma mensagem curta para Helena.
Ele fez uma pausa, com a pena equilibrada em sua mão. Após
um momento de reflexão, adicionou um pós-escrito.
Londres, Inglaterra,
Setembro de 1859
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Justin estava feliz por não poder ver o rosto de Helena. Já era
ruim o suficiente sentir o choque percorrer seu corpo. Ele não
precisava vê-lo sendo registrado em seus olhos.
Guiou Hiran pela praia em um passo calmo. Helena estava
meio virada na frente dele, como se estivesse realmente montada
em uma sela lateral. Suas costas se ajustavam de modo confortável
em seu peito, o cabelo trançado era como um tormento sedoso sob
seu queixo. Só precisaria inclinar a cabeça para poder acariciar a
curva suave de sua bochecha. Poderia capturar sua boca com a
dele.
Deus sabia que ele queria. Memórias dos beijos que eles
trocaram no Stanhope Hotel haviam se intrometido em seus
pensamentos com muita frequência ultimamente. A sensação dela
em seus braços. O gosto dela em seus lábios. A maneira como ela
olhava para ele enquanto seus dedos se entrelaçavam.
Se pudesse recriar aqueles momentos... reacender a ternura
entre os dois... talvez ela se esquecesse de seu passado. Cessaria
suas perguntas sobre Oswald Bannister e eles poderiam contemplar
algum tipo de futuro juntos.
E talvez Hiran pudesse criar asas e voar.
— O que você quer dizer com o levou à morte? — ela
perguntou. — Vocês não...
— Não. Nós não o matamos. Embora você deva saber que há
quem pense que sim. Ou, mais precisamente, que eu o matei.
— A Bess me disse que ele caiu do penhasco. E que houve um
inquérito.
— Ela disse? — Justin não ficou totalmente surpreso. Não
havia muitos na aldeia que perderiam a chance de informar sua
futura esposa sobre sua reputação de covarde cruel. — Sir Oswald
sempre foi um sujeito desagradável. Não muito depois de eu voltar
da Índia, ele bebeu até o entorpecimento e cambaleou pelos
penhascos fora da abadia. As pessoas ainda gostam de especular
sobre isso.
Helena virou a cabeça. Seus olhos castanho-esverdeados
estavam brandos de preocupação.
— Por que você o odiava, Justin? Ele o machucou de alguma
forma?
Uma risada amarga borbulhou no peito de Justin. Machucá-lo?
Bom Deus.
Ele freou Hiran e parou perto da água. Colocou Helena no chão
e apeou. Ela esperou, com as saias caídas penduradas em um
braço, enquanto ele pegava as rédeas.
— Oswald Bannister era um bruto, um valentão — ele disse. —
Não tinha um único resquício de honra.
— Muitos cavalheiros não têm. Sei muito bem disso. Não se
pode odiar a todos.
— Sim, bem... é bastante diferente quando o cavalheiro em
questão é o pai de alguém.
Helena arqueou as sobrancelhas.
— Sir Oswald Bannister era seu pai?
— Creio que sim. — Justin passou a mão pela nuca. — Meu e,
possivelmente, de Alex Archer. Provavelmente de nós dois. Não sei.
Ela se afastou dele.
— Quem era a sua mãe? Ela era... — Sua voz se transformou
em um sussurro escandalizado. — Era a amante dele?
— Nada tão refinado. — Justin não conseguia conter a pontada
de raiva em suas palavras. A última coisa que queria era confessar
suas origens vergonhosas para a filha de um conde. Não quando
aquela dama era sua esposa. Não quando ele estava começando a
gostar dela muito, muito mesmo.
Sabia que ela nunca voltaria a olhar para ele da mesma
maneira.
— Minha mãe era a copeira de quinze anos que trabalhava
para ele — explicou. — Sir Oswald abusava regularmente de suas
criadas. Tanto é verdade que o orfanato em Abbot’s Holcombe
estava sob seu patrocínio. Era um lugar conveniente para descartar
seus bastardos.
O semblante de Helena ficou pálido como um pergaminho. Sem
dúvida, foi a coisa mais vil e desprezível que ela ouviu em toda a
sua vida.
— Perdoe-me — ele falou com rispidez. — Não é o tipo de
coisa que se fala na frente de uma dama, é? Mais um falha que
você pode atribuir à minha falta de educação.
Ela não pareceu registrar seu pedido de desculpas.
— O que foi feito de sua mãe?
Ele encolheu os ombros.
— Era só uma criança e ficou feliz por se livrar de um fardo
desagradável. É provável que ela tenha procurado emprego em um
lugar de maior respeito. Ou isso ou foi enviada para uma bastilha de
pobres. Nunca descobri o que aconteceu foi feito dela. Não
consegui nem descobrir seu nome completo. O orfanato não
mantinha registros muito bons, sabe? O proprietário era um dos
comparsas de sir Oswald. Ele nos considerava pouco melhor que
vermes.
Helena não disse nada. Apenas olhou para ele, com as
sobrancelhas cor de mogno unidas em uma linha elegante. Ele não
tinha a menor ideia do que ela estava pensando ou sentindo.
Ele acariciou o pescoço de Hiran. Cada instinto lhe dizia para
parar de falar. Para guardar o resto da história sórdida para si
mesmo. Nada de bom poderia advir de compartilhá-la. Mas algo
bem lá no fundo o incentivou a continuar. Ele queria, precisava, que
ela o conhecesse por quem ele realmente era.
— A primeira vez que nos encontramos com sir Oswald, ele
estava cavalgando através dos portões do orfanato, montado no
cavalo mais bonito que já tínhamos visto. Suas roupas eram muito
elegantes. Ainda me lembro do brilho de suas botas. Engraxada
com algo feito com champanhe, imaginamos. Algo especial
preparado por seu valete. — Justin abriu um sorriso irônico. — Ele
passou por nós como se fosse da realeza. Pode imaginar o efeito
que uma figura tão arrojada teria na imaginação de quatro garotos.
Neville achou que ele fosse o rei. Mas eu, idiota patético que era,
esperava que ele pudesse ser meu pai.
— Porque você se parecia com ele?
— Sim, de forma geral. Ele tinha cabelos pretos e olhos azul-
acinzentados. E era alto, embora eu suponha que todo homem
pareça alto para um menino. Mas eu estaria mentindo se dissesse
que esse é o motivo. A verdade é que sempre sonhei que estava
destinado a coisas melhores. Que era um herdeiro perdido ou algo
assim. Nunca consegui aceitar as minhas circunstâncias. Devia ser
um engano, eu pensava. Uma confusão de uma parteira local ou
alguma trama de vingança cruel que resultou em meu roubo de
meus pais abastados e no meu esconderijo em um orfanato. — Ele
deu uma risada sem humor. — Eu li muitas histórias
sensacionalistas quando menino.
Helena não pareceu achar graça nenhuma.
— Como você descobriu quem ele era?
— Nós o seguimos. Escutamos sua conversa com o sr.
Cheevers, o sujeito que dirigia o orfanato. Mais tarde, Finchley
examinou os arquivos no escritório do orfanato. Não havia muito a
ser encontrado lá, mas havia o suficiente para confirmar nossas
suspeitas. Na semana seguinte, descemos os penhascos de Abbot’s
Holcombe. Um pescador mantinha um velho barco amarrado em
uma enseada próxima. Nós o usamos para remar até a abadia.
Hiran escolheu aquele momento para cutucá-lo no ombro com o
focinho.
— Ele está ficando impaciente para comer a sua aveia — Justin
avisou. — É melhor começarmos a voltar.
Ele lhe ofereceu o braço, e ela o aceitou. Hiran caminhava ao
lado deles com rédea solta.
— Por que vocês foram à abadia? — Helena perguntou. —
Porque queriam vê-lo?
— Eu queria conhecê-lo. Explicar a ele quem eu era. Pensei
que se ele me conhecesse adequadamente, se pudesse ver o
quanto eu era inteligente e capaz, perceberia que eu não pertencia
ao orfanato.
A mão dela apertou o seu braço.
— O que aconteceu?
— Basta dizer que não foi a volta ao lar que eu havia
imaginado. Sir Oswald estava no jardim, cuidando de suas roseiras.
Ele não admitiu ter me gerado, nem a qualquer um de nós. Nem
mesmo nos permitiu entrar na casa. Quando o pressionamos para
saber de nossas mães, ele recorreu a vulgaridades e ofensas.
Acabou amaldiçoando a todos nós e nos expulsou da propriedade.
— A resposta mordaz de sir Oswald à mera sugestão de que Justin,
ou qualquer um dos órfãos, pudesse vir e ficar na abadia ecoou na
mente de Justin.
Está louco? Acha que eu deixaria o fedelho bastardo de alguma
copeira meretriz morar nesta casa? Você não é adequado para
meus estábulos, rapaz.
— Mas você continuou voltando — Helena concluiu.
— Sim.
— Com que propósito?
— No início? Achamos que poderíamos persuadi-lo a se
acostumar conosco. Não funcionou bem assim.
Justin se absteve de entrar em detalhes. Não havia sentido em
contar a Helena que sir Oswald havia espancado Archer na visita
seguinte. Nem que, na terceira, ele apontou uma pistola para Justin
em uma fúria bêbada.
— Depois disso, começamos a aparecer puramente por
despeito. Só de nos ver, sir Oswald se irritava como nada mais.
Brincávamos em sua praia e fuçávamos nos prédios externos.
Cavávamos buracos em seus jardins ou nos esgueirávamos por
uma janela entreaberta e substituíamos o licor por água do mar.
Travessuras infantis estúpidas. — Justin olhou para a Abadia de
Greyfriar assomando à distância. — Tudo se intensificou a partir de
então.
— Meu Deus — Helena murmurou. — Ele poderia mandar
prendê-los. Ou pior. Não consigo imaginar por que ele não fez isso.
— Boothroyd o convenceu a desistir.
Ela franziu a testa.
— Não pensei que o sr. Boothroyd serviu como secretário de sir
Oswald por tanto tempo.
— Ele veio trabalhar na Abadia de Greyfriar um ou dois anos
antes.
— E agora ele trabalha para você — ela concluiu. — Acho isso
muito estranho.
Justin podia imaginar que fosse o caso. Para qualquer um que
conhecesse a essência do caráter de Boothroyd, no entanto, fazia
todo o sentido.
— Ele se correspondeu comigo e com Finchley ao longo dos
anos. Ele nos aconselhou sobre investimentos e coisas do gênero.
Boothroyd tinha consciência, entende? Ele era um homem decente;
um criado leal à procura de um senhor digno. Não demorou muito
para ele perceber o tipo de homem que sir Oswald era.
— Mesmo assim, permaneceu a serviço dele.
— Um fato que ele lamenta até hoje. Pode se dizer que
trabalhar para mim é sua penitência. Deus sabe que é um trabalho
bastante ingrato.
— Ele é fiel a você —Helena concedeu. — Mas isso dificilmente
o desculpa por não ter feito nada quando você era criança.
— Não o julgue com muita severidade. Depois do acidente de
Neville, foi Boothroyd quem fez arranjos para que eu, Finchley e
Archer virássemos aprendizes. Ele sabia que era a única maneira
de se livrar de nós. — Justin fez uma pausa, acrescentando: —
Resolver problemas é a habilidade particular de Boothroyd.
— Ele parece ter falhado neste caso. Você está aqui agora, não
é? Você é o dono da abadia.
— Verdade, mas nos manteve longe de problemas por um
tempo. Com Finchley indo para Londres e Neville ferido, éramos
apenas Archer e eu. E então, um dia, Archer se foi. Ele rompeu seu
contrato de aprendiz. Desapareceu sem dizer uma única palavra.
Não consegui encontrar nenhum vestígio dele em qualquer lugar.
— Foi quando você se juntou ao exército? — Helena perguntou.
Ele assentiu.
— Você deve ter se saído muito bem lá.
— Bem o bastante. — Ele sempre esteve disposto a se colocar
em perigo. A assumir riscos extraordinários. Alguns o chamavam de
heroico. A verdade era que, no início, ele simplesmente não se
importava se viveria ou morreria. Como resultado, ganhou o respeito
de seus superiores, e subiu rapidamente na hierarquia dos homens
alistados.
— Como você ganhou sua capitania?
— Uma promoção de campo durante os primeiros dias da
rebelião.
— E sir Oswald?
Justin hesitou. Não era uma história agradável.
— Fui vê-lo uma última vez antes de partir para a Índia. Foi a
única ocasião em que o confrontei sozinho. Ficamos parados, um
encarando o outro no topo da estrada. Ele esteve bebendo.
— Que memória boa a sua.
— Dificilmente eu poderia esquecer. Foi o dia em que ele
admitiu que eu era seu filho. Ele disse algumas coisas
desagradáveis sobre minha mãe e depois riu. Falou que ninguém
me queria. Que eu não era nada, nem para ele nem para ninguém.
Que eu nunca seria. Foi quando prometi a ele... — Justin se
interrompeu.
A lembrança deixou um gosto amargo como veneno em sua
boca. Nunca antes, nem mesmo em seus dias mais sombrios no
orfanato, ele se lembrou de ter se sentido tão sozinho. Tão
indesejado. Tão zangado.
— O que você prometeu? — Helena perguntou baixinho.
Justin olhou para ela.
— Que eu voltaria a Devon um dia. E que, quando voltasse,
não me limitaria a tirar a Abadia de Greyfriar dele. Eu tiraria tudo.
Capítulo Quinze
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Londres, Inglaterra
Outubro de 1859
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Na manhã seguinte, o sr. Finchley apareceu ao romper da
aurora trazendo um exemplar do London Courant debaixo do braço.
Estavam tomando o desjejum quando ele chegou, a mesa
abarrotada de pratos meio cheios, potes de mel e de geleia e
xícaras de café ainda fumegante. Ele se sentou na cadeira
desocupada em frente a Justin e espalhou o jornal sobre a mesa.
— Aqui está — ele disse. — Páginas 5 e 6.
— Você já leu? — Justin perguntou.
— Li.
— E?
— É impactante. — O sr. Finchley dobrou a página. Ele olhou
para Helena. — Devo ler em voz alta?
Ela juntou as mãos no colo. Todos os músculos de seu corpo se
retesaram.
— Por favor.
Ele clareou a garganta e começou:
— Ainda não acho que seja uma boa ideia — Justin falou.
A carruagem de laca preta de lorde Wolverton parou em frente
à residência do conde de Castleton, na Grosvenor Square. Tudo o
que Helena precisava fazer era sair e subir os degraus até a porta.
Ela se sentou ao lado de Justin, temporariamente imobilizada.
— Talvez não — ela reconheceu. — Mas sinto que devo ir
adiante.
— Irei com você.
— Não. — Segurou a mão enluvada dele, pressionando-a por
um momento nas suas. — Devo entrar sozinha.
Ela tomou a decisão logo que deixou a Half Moon Street. Não
se encolheria, como uma criatura assustada, atrás de Justin, nem
de lorde Wolverton. Enfrentaria o tio de uma vez por todas.
Mostraria que não a havia destruído.
— Tolice — lorde Wolverton murmurou de seu assento em
frente a eles. — Não precisa vê-lo sozinha. Ele é problema do seu
marido agora. E meu.
— Eu devo — ela repetiu. — É uma questão de dignidade. De
respeito próprio.
Lorde Wolverton pigarreou. Ele não conseguia compreender por
que era tão importante para ela enfrentar o tio sozinha. Mas Justin,
sim. Ele sabia o que significava enfrentar os próprios medos.
Ela segurou a mão dele com força enquanto um minuto se
passava. E depois outro.
— Mudou de ideia? — perguntou.
— Não, não. Só preciso de um momento para criar coragem. —
Ela respirou fundo para se acalmar. — Estou pronta agora.
Justin desceu da carruagem e a ajudou a chegar à calçada.
— Estarei aqui. Se você não voltar em vinte minutos, vou entrar.
Ela assentiu e, por fim, soltou sua mão. A chegada deles foi
anunciada. A porta da casa já estava sendo aberta pelo mordomo
idoso do conde, Netherby. Ao ver Helena, sua expressão
geralmente branda iluminou-se um átimo.
— Milady — ele disse, curvando-se.
— Netherby. — Ela adentrou o saguão de entrada, o olhar
vagou pelo ambiente familiar. — Acredito que o senhor e o resto da
equipe estejam bem?
Netherby olhou para a carruagem antes de fechar a porta. O
brasão do conde de Wolverton era facilmente reconhecível.
— Temos sentido sua ausência, milady. Posso perguntar se a
senhora voltará para nós?
Sentiu uma pontada de tristeza.
— Não, Netherby. Não voltarei. Só vim ver o meu tio e, então,
irei embora. — Ela permitiu que o mordomo pegasse seu chapéu e
luvas, mas não tirou o casaco. Havia um frio distinto no ar. — Onde
ele está?
— Em seu escritório, milady. Devo anunciá-la?
— Não há necessidade. — Ela endireitou as saias e ergueu a
mão para alisar o cabelo enquanto percorria o corredor até a sala
que tinha sido, nos anos anteriores, o escritório de seu pai e depois
de seu irmão. Não se incomodou em bater antes de abrir a porta de
madeira polida.
Tio Edward estava sentado atrás da mesa. Ele era um
cavalheiro corpulento, tendo ganhado peso devido à bebida e às
extravagâncias. Seu cabelo grisalho estava alisado com uma
pomada perfumada, as suíças chegavam quase até o queixo. Um
alfinete de rubi brilhava nas dobras de sua gravata, cintilando
enquanto ele virava a cabeça de um lado para o outro, removendo
papéis das gavetas e mexendo nas coisas em cima da mesa.
Enquanto ele fazia isso, um maço de contas de comerciantes
tombou, esvoaçando para o chão.
Ele ergueu os olhos, então, e a viu. Seu rosto endureceu.
— Tio — ela disse.
Ele se levantou.
— Helena.
O medo familiar correu por suas veias. Lembrou a si mesma
que Justin estava lá fora, preparado para vir em seu auxílio caso
fosse necessário. Aquilo lhe proveu com uma dose extra de
coragem. O suficiente para que pudesse manter uma aparência de
calma enquanto caminhava a passos lentos até a mesa.
Os olhos de tio Edward dispararam para a porta.
— Onde está esse seu marido de quem tenho ouvido tanto? Ele
não está com você?
— Está esperando por mim na carruagem — ela disse. — Junto
com lorde Wolverton.
— Wolverton? O homem é um intrometido infernal. Se eu
descobrir que ele está por trás da bobagem no jornal desta manhã...
— O senhor leu? Fiquei me perguntando. — Um papel caiu aos
pés de Helena. Ela se abaixou para pegá-lo. — Seus assuntos
parecem estar um tanto desordenados.
Ele arrancou o papel da mão dela.
— Meus assuntos! — ele balbuciou. — Você anunciou ao
mundo que estou praticamente falido. Me caluniou. Caluniou meu
bom nome. Estou arruinado em Londres por sua causa. Não tenho
escolha a não ser me retirar para o campo.
— Permanentemente?
— Ah, não se livrará de mim assim tão fácil. Vou consultar
meus advogados em Hampshire, pode ter certeza disso. Eles vão
abrir um processo. Vão forçar uma retração. E fecharão aquele
jornal idiota. Guarde minhas palavras.
Ela ergueu as sobrancelhas.
— Será que vão mesmo? Meu advogado me informou que a
verdade é uma defesa absoluta contra a difamação. E tudo o que
disse ao jornal era verdade. Se o senhor entrar com uma ação
judicial, apenas prolongará o escândalo, e aumentará sua
humilhação.
Os olhos dele brilharam de raiva.
— Sua bruxinha gananciosa. Para que precisa de todo esse
dinheiro? Tudo que precisava fazer era assinar o maldito papel. Eu
teria cuidado de você. Não lhe faltaria nada. Mas não. Tudo tinha
que ficar em suas mãos. Você não se contentaria até que arruinasse
meu bom nome e o seu junto com ele.
Helena colocou as mãos na beirada da mesa.
— O senhor é versado em ganância, tio. Teria me visto morrer
em um hospício para ficar com a fortuna do meu irmão.
— Não seja absurda — ele zombou. — Sabe que eu nunca
teria feito isso no final. Tudo que eu queria era sua assinatura. Se
tivesse assinado o documento, todas aquelas bobagens teriam
parado.
Uma onda de raiva a percorreu.
— Todas aquelas outras bobagens me deixaram com
hematomas por toda parte. Elas me gelaram até a alma por causa
dos banhos de gelo e queimaram meus braços e pernas por causa
dos choques elétricos. Não era uma bobagem. Foi uma tortura
sistemática.
— Era um remédio legítimo. — Sua expressão tornou-se
obstinada. — Mas eu teria colocado um fim a tudo se você tivesse
feito o que pedi.
Ela balançou a cabeça.
— Não acredito no senhor.
— Pois deveria ter acreditado em mim. Deveria ter confiado em
mim.
— O senhor não me deu uma boa razão.
— Tolices! Não fui sempre bom com você? Generoso? — Ela
não contestou o fato. Na verdade, os presentes generosos que ele
trouxe para ela quando criança eram as únicas boas lembranças
que tinha dele.
— Meu pai nunca quis que o senhor me desse presentes.
Sempre achei que ele estava sendo severo. Injusto. Mas não era
nada disso, era? Ele sabia que o senhor tinha problemas com
dinheiro. Sabia que desperdiçaria até seu último centavo se não
fosse controlado. Exatamente como teria feito com a fortuna de
Giles.
O rosto do tio Edward ficou vermelho.
— Giles está morto! Ele está morto há mais de um ano. De que
prova precisa? Seus ossos apodrecidos entregues a você em uma
caixa forrada de veludo?
As palavras a flagelaram com intensidade. Por um instante,
ficou tentada a se virar e fugir. Em vez disso, agarrou a borda da
mesa e se inclinou mais perto.
— Giles pode estar morto. Mas que direito isso lhe deu de fazer
o que fez comigo?
— Todo direito. — Tio Edward se endireitou. — Eu sou o conde
de Castleton agora. A família está sob meus cuidados. Era meu
dever procurar tratamento para você. Para vê-la bem novamente. E
é isso que direi a quem tiver a ousadia de perguntar.
Seu coração bateu de forma descontrolada.
— E eu vou continuar a dizer que canalha inescrupuloso o
senhor é. Vou continuar dizendo até que seja expulso de seus
clubes. Até que nenhuma anfitriã o receba.
— Você é uma harpia vingativa — ele falou. — Mas a que
preço? Você também se arruinou. Ou é estúpida demais para
perceber? Casar-se com um ex-soldado bastardo que vem dos
confins do mundo. Despejar negócios privados da família para um
jornalista infernal. Se eu não achava que você estava louca antes,
sei disso agora, sem sombra de dúvidas.
A voz de Helena baixou com súbita ferocidade.
— Esse ex-soldado é o melhor cavalheiro que já conheci. O
senhor não tem brio suficiente nem para polir as botas dele. Quanto
a mim, pode pensar o que quiser. O senhor não tem mais poder
sobre mim.
Conforme Helena tirava as mãos da mesa, tio Edward a olhava
com cautela.
— Irei ao banco em seguida — ela o informou. — Instruirei os
funcionários a cortar seu acesso às minhas contas. Naturalmente,
eles podem continuar a me solicitar fundos para os salários e
pensões dos empregados, mas, a partir de hoje, o banco deve
pagar a eles diretamente. Não confio mais no senhor para se
comportar como um homem honrado, e não permitirei que nenhum
dos criados de Castleton sofra por sua ganância.
O tio começou a balbuciar de novo, mas ela não o levou em
consideração.
— Agora — ela falou —, pode me trazer minhas joias. E tome
cuidado para não perder tempo. Meu marido não é um homem
paciente. Não seria preciso muita provocação para ele se
apresentar ao senhor como o fez com o sr. Glyde.
Minutos depois, Helena saiu da casa na Grosvenor Square. Um
lacaio vinha atrás dela carregando uma grande caixa incrustada. O
dia parecia mais claro e o ar mais fresco. O peso que esteve em
seus ombros havia muitos meses foi retirado.
Quando viu Justin parado ao lado da carruagem, o rosto se
iluminou com um sorriso mais largo do que qualquer outro que ela já
tinha lhe dado.
— Acabou — disse ela, sem fôlego. — Estou livre.
Justin sorriu para ela enquanto a colocava na carruagem. Era
um sorriso estranho e constrito que não atingiu seus olhos.
— É mesmo?
— Bem, estarei depois de irmos ao banco. A menos que... você
acha que devo levar o sr. Finchley comigo para isso?
— Você tem a carta dele. Atrevo-me a dizer que todo o jargão
jurídico que ele usa nela será o suficiente para fazer os banqueiros
cumprirem as suas ordens.
Lorde Wolverton se inclinou para frente em seu assento.
— Parece que a senhora está ilesa.
— Estou perfeitamente bem — ela assegurou.
— E Castleton?
— Está de partida de Londres. Pretende se retirar para
Hampshire muito em breve.
Lorde Wolverton fez menção de desembarcar da carruagem.
— Vou providenciar para que ele faça isso. — Quando ela abriu
a boca para protestar, ele a impediu com a mão erguida. — Não vou
ouvir objeções. Fez o que sua consciência exige, e eu também
devo.
— Devemos esperar pelo senhor? — Justin perguntou.
— Não há necessidade. O cocheiro voltará para me buscar.
Helena observou enquanto lorde Wolverton subia os degraus
da casa. Netherby prontamente abriu a porta para ele. Por mais que
tentasse, ela não conseguia sentir pena do tio. Ele merecia a
censura da sociedade. E se essa censura fosse administrada na
forma de uma repreensão de lorde Wolverton, tanto melhor.
Justin se acomodou ao lado dela na carruagem.
O lacaio o seguiu até a porta, ainda com a caixa grande nos
braços.
— Onde devo colocar, milady?
— Pode me entregar — Helena pediu. Estava pesada. Quase
pesada demais para ela erguê-la. — Obrigado, James. Cuide-se,
sim?
Ele se inclinou e suas bochechas ficaram vermelhas.
— Sim, milady.
— Outro admirador? — Justin perguntou quando a carruagem
começou a avançar.
— Dificilmente. A mãe dele é governanta de nossa propriedade
de Hampshire. Eu o conheço desde que ele era menino. — Ela
posicionou a caixa de forma mais confortável em seu colo. — Olhe,
Justin. — Ela abriu a tampa.
Justin olhou para o conteúdo da caixa.
— Bom Deus — ele disse baixinho. — Achei que buscaria as
suas joias, não toda a coleção da família.
— Não seja bobo. A coleção inteira pertence ao condado. Mas
essas... essas são minhas. — Ela estendeu a mão e retirou um
broche cintilante. O diamante em seu centro era tão grande quanto
um ovo de codorna. — Algumas foram presentes de meu pai e
irmão, mas a maioria eu herdei de minha mãe. Ela era filha de
conde, sabe.
— Claro que era — Justin resmungou.
Helena olhou para cima, parando de examinar as joias.
— Está tudo bem?
— Sim. Apenas uma leve dor de cabeça.
Ela fechou a caixa.
— Meu querido, você deveria ter dito alguma coisa.
Justin desviou o rosto do dela e fitou a janela. Ela teve a
impressão de tê-lo chateado, mas não conseguia imaginar como.
Talvez ele estivesse sofrendo de mais do que uma leve dor de
cabeça? Ele não teve muito tempo para se recuperar depois da luta
com o sr. Glyde. Ela teria que insistir para que ele descansasse.
— Devemos esquecer o banco e voltar direto para a Half Moon
Street? — Ela tocou no braço dele e o sentiu ficar tenso com o
toque de seus dedos.
— Não — ele respondeu. — Vamos terminar isso hoje. Vamos
acabar com isso.
◆◆◆
◆◆◆
A nobreza não era tudo o que parecia ser. Justin teve ampla
prova disso nas semanas desde que deixou Helena em Londres.
Sempre ouviu que o autossacrifício era bom para a alma. Que a
virtude era sua própria recompensa e assim por diante. Mas
enquanto ele cuidava da sua vida cotidiana em North Devon, tudo o
que sentia era uma miséria esmagadora.
Não conseguia encontrar prazer em seus negócios. Nenhuma
satisfação nos reparos na abadia. Mesmo seus galopes diários em
Hiran não conseguiram elevar seu ânimo. Ele chegou à triste
conclusão de que não havia nada para ele sem ela.
Seria amor? Essa desolação dolorosa? Como se uma parte
essencial dele tivesse sido arrancada, deixando para trás um vazio
que nenhuma atividade, nem bebida, poderia preencher?
Fosse o que fosse, ele precisava encontrar uma maneira de
dominar o sentimento. Para reduzi-lo a proporções mais
gerenciáveis. Mas não parecia haver método concebível para
superar sua perda. Ele queria Helena. Precisava dela. E se algo não
mudasse logo, havia uma boa chance de ele jogar todas as suas
honrosas intenções ao vento e ir direto para Londres no próximo
trem.
— Estou pensando em voltar para a Índia — ele disse a
Boothroyd uma manhã, enquanto revisavam sua correspondência
na biblioteca. Estava apenas de camisa, com a barba por fazer e o
cabelo em desordem selvagem. Ele parecia e se sentia péssimo.
Boothroyd fez uma pausa no ato de afiar a pena.
— Índia, senhor? O que causou isso?
— O que acha?
— Ah, sim. Entendo. Compreendo perfeitamente. Mas... se me
perdoa, senhor... existem soluções mais simples do que viajar meio
mundo.
— Tais como?
— Poderia encontrar outra esposa.
Justin lançou um olhar mortífero ao seu administrador.
— Sim, sim — Boothroyd disse rapidamente, erguendo a mão.
— Eu não quis ofender. Mas considere. Assim que seu casamento
atual for dissolvido, podemos colocar outro anúncio e desta vez...
— Tenha cuidado, Boothroyd — Justin disse.
— Foi apenas uma sugestão, senhor.
— Se a conhecesse como eu, nunca ousaria fazer isso.
— Como quiser. Sua senhoria era uma mulher singular. O que
me leva à minha próxima sugestão. — Boothroyd deixou de lado
sua pena. — O senhor poderia simplesmente retornar a Londres,
encontrar sua senhoria e trazê-la de volta para a abadia. É o marido
legítimo dela. É de seu direito fazê-lo.
— Desisti dos meus direitos sobre ela, legais e todos os outros.
Ela está livre de mim para sempre. Não vou infligir minha presença
a ela novamente.
— Posso perguntar por quê?
Justin não respondeu. Não de imediato. Caminhou até a fileira
de janelas e olhou para o mar.
— Está feliz aqui, Boothroyd?
— Na abadia, senhor? Ora, sim. Estou muito contente.
— Não fica apenas por um senso de responsabilidade?
Boothroyd refletiu por um momento:
— Sinto certa responsabilidade, como qualquer bom
administrador sentiria. Pela abadia... e por você.
Justin olhou para Boothroyd por cima do ombro.
— Não me deve nada. Se deveu em algum momento, já me
reembolsou há muito tempo. — Ele voltou a olhar pela janela. — Só
precisa dizer uma palavra e terei o prazer de providenciar sua
aposentadoria em algum lugar com uma pensão generosa.
— O senhor sempre foi bom para mim. Mas ainda não estou
pronto para pendurar o arreio.
A boca de Justin se inclinou em um breve sorriso sem humor.
— Confesso que estou aliviado por ouvir isso. Preciso do
senhor aqui para cuidar das coisas quando eu estiver fora. Neville
não é indefeso, mas precisa de cuidados. E há a questão dos
criados.
— De fato, senhor. A perda da sra. Standish é lamentável.
Embora não se possa culpá-la. Ela assumiu a posição acreditando
que o senhor teria uma esposa em casa. Servir em uma casa de
solteiros não era do seu agrado.
Justin não conseguiu ter simpatia pela mulher. Ela partiu logo
depois que ele voltou de Londres. Não que isso importasse.
— Encontre outra pessoa, se puder. Alguém que não considere
uma casa cheia de homens uma ameaça à sua virtude.
— Comecei a perguntar, mas não há muitos que gostariam de
morar em um local tão remoto. — Boothroyd hesitou antes de
adicionar: — Agora, se o senhor se reconciliar com sua dama,
atrevo-me a dizer que ainda podemos atrair a sra. Standish de volta.
Justin fez uma careta:
— Pare, Boothroyd. Fiz algo nobre. Permita-me sofrer por isso
do meu próprio jeito.
— Voltando para a Índia, de todos os lugares? Depois do que
aconteceu com o senhor lá, eu teria pensado...
— Sim, bem... talvez seja hora de seguir em frente com tudo
isso. — As sobrancelhas de Boothroyd subiram quase até a linha do
cabelo.
— Nós dois passamos muitos anos vivendo no passado —
Justin falou. — Não havia espaço para mais nada. Sem esperança
de algo que remetesse a um futuro.
— Lamento que se sinta assim, senhor.
— Não lamente. É uma situação que eu mesmo criei. Ninguém
me forçou a voltar para Devon. A comprar esta casa. A qualquer
momento, eu poderia ter deixado o passado passar. Mas eu queria
justiça. Houve momentos em que essa foi a única coisa que me
ajudou a atravessar a noite.
— O senhor não foi o único injustiçado por sir Oswald. Eu
também tinha motivos para querer justiça.
— Foi há muito tempo. Tempo demais. Estou cansado de olhar
para trás. Quanto ao que aconteceu em Cawnpore... foi uma
tragédia. Não sei se poderei me perdoar por não ter conseguido
proteger aquelas mulheres. Mas eu era feliz lá antes da revolta. Ou
pelo menos tão feliz quanto me lembro de ser antes...
— Antes da chegada de sua senhoria?
Justin olhou para o mar. Ele tinha sido feliz com ela. Mais feliz
do que nunca em sua vida. Não tinha nenhuma expectativa de que
seria assim novamente. Mas talvez, algum dia, ele pudesse
encontrar um pouco de contentamento. Até então...
— Preciso colocar um continente entre mim e lady Helena —
ele disse.
— E então, para a Índia.
— Lá ou algum outro lugar. Um lugar é tão bom quanto outro.
Faça os arranjos. Posso conseguir uma passagem no próximo vapor
que sai de Marselha, se for preciso. — Justin se afastou da janela.
— E agora... — Ele pegou seu casaco. — Vou para a taverna em
King’s Abbot, onde pretendo beber até o esquecimento.
◆◆◆
◆◆◆
Ela o amava.
Justin fitou o rosto de Helena, traçando cada contorno. O
arquear das sobrancelhas cor de mogno, a curva macia das maçãs
do rosto e o arco de seus lábios rosados. Ele devia ter ouvido mal.
Talvez estivesse bêbado. Isso ou alucinado. Na verdade, a própria
presença dela – ali na estalagem, usando o mesmo vestido que ela
usou no dia em que se conheceram – parecia um sonho. Como se
ela tivesse sido conjurada por sua imaginação febril. Ela não parecia
muito real. E ainda...
Conseguia sentir o aroma delicado do jasmim de seu perfume e
o amido leve de suas anáguas. Podia sentir o peso e o calor de
suas mãos delgadas apoiadas em seu peito. Achou que estava
resignado por nunca mais vê-la de novo. A seguir com a vida sem
ela. Bastou um olhar, um toque, e os sentimentos voltaram, ardendo
em seus olhos e apertando seu peito.
Meu Deus, ela o amava.
Ele cobriu as mãos dela com as suas.
— Helena... não sei o que dizer.
— Isso é fácil. Diga que também me ama.
Ele abaixou a cabeça, apoiando a testa na dela.
— É claro que eu a amo — disse, em um grunhido rouco. —
Por que é que acha que a deixei ir?
Uma risada sufocada escapou dela. Soou um pouco como um
soluço.
— Que lógica tortuosa é essa?
— É a sua lógica.
— Minha?
Ele apertou as mãos dela.
— Você me disse que se amasse alguém, sacrificaria qualquer
coisa para fazê-lo feliz.
— É isso que você fez? Sacrificou seu amor por mim? — Ela
retribuiu o aperto quente de seus dedos. — Meu querido, como você
poderia pensar que eu seria feliz sem você?
Meu querido. Seu coração deu um salto. Mas ele não podia se
permitir ser distraído. Agora não. Tinha que manter alguma
aparência de controle.
— Não sou um cavalheiro, Helena, e King’s Abbott está muito
distante do brilho de Londres. Você merece o melhor. Deveria estar
com alguém de sua estirpe.
— Não sou uma planta exótica, Justin. Sou uma mulher.
— Você é uma lady. E eu seria o bastardo mais egocêntrico
vivo se a mantivesse aqui comigo.
Helena se afastou dele com um suspiro.
— Suspeitei que fosse algo dessa natureza.
— Então entende por que tive de desistir de você.
— Você não vai desistir de mim — ela falou. — Ou melhor, eu
não vou desistir de você.
Ele procurou seu rosto, sentindo o coração batendo forte com
algo muito parecido com esperança.
— O que está dizendo?
— Estou dizendo que o autossacrifício é muito bom, mas, ao
contrário de você, no que se refere ao nosso casamento, pretendo
ser egoísta. — Ela se ergueu na ponta das botas, estendendo a
mão para passar os braços em volta do pescoço dele. Ela o olhou
fixamente nos olhos. — Você é meu, Justin Thornhill. Não importa
de onde veio, nem quem eram seus pais. Tudo o que importa é que
você pertence a mim... e eu pertenço a você.
O resto de sua resolução se desfez em pó.
— Sim — ele afirmou. — Sim. Para sempre. — E então ele a
pegou nos braços e a beijou.
Helena se agarrou ao seu pescoço enquanto sua boca se
movia sobre a dela, retribuindo o beijo. Ela era doce, suave e
ferozmente apaixonada. Helena não reteve nada.
E ele também não.
Justin a beijou profundamente. Por inteiro. Sem se importar
com nenhum decoro. Ela se arqueou contra ele, quente e feminina.
As saias pesadas foram esmagadas em suas pernas e as
barbatanas de seu espartilho duras e inflexíveis debaixo da palma
de sua mão que lhe envolvia a cintura. A outra embalava a parte de
trás da cabeça de Helena. Ao longe, ele registrou o som de grampos
de metal caindo no chão da sala enquanto os dedos se
entrelaçavam no penteado elegante.
— Você está me deixando terrivelmente descomposta — ela
murmurou.
— Devo parar?
— Não. — Ela deu um beijo suave em sua boca. — Não ouse.
— E depois outro: — Senti tanto a sua falta.
Ele gemeu.
— Helena... quero você mais do que à vida.
— Eu sou sua — ela prometeu. — Para sempre.
Ele a olhou nos olhos.
— Que idiota eu fui.
— Sim, foi.
— Eu nunca quis magoá-la.
— Eu sei.
— No dia em que deixei Londres... aquelas coisas que disse a
você...
— Por favor, não se desculpe. Não agora. — Ela o puxou pelo
pescoço. — Eu prefiro que me beije de novo.
Ele deu uma risada repentina.
— Prefere, não é? — Ele inclinou a cabeça e roçou os lábios
nos dela com infinita ternura. — Assim?
— Isso.
Justin passou outro braço em volta da cintura de Helena e
recuou em direção a uma das grandes cadeiras perto da lareira. Ele
parou de beijá-la apenas tempo suficiente para abaixar-se no
assento e puxá-la para seu colo.
— Muito melhor. — E então a beijou novamente.
Quando enfim se separaram, os dois estavam corados e sem
fôlego.
— Meu Deus — ela falou. — Alguém poderia ter nos
surpreendido.
Justin olhou para a porta.
— Ainda pode. Devo deixar você se levantar?
— Não, obrigada. Estou bastante confortável aqui.
Ele a puxou para mais perto.
— Você se encaixa muito bem em meus braços.
— É claro. Somos perfeitos um para o outro.
— Destinados a ficar juntos, não? O que me lembra... — Ele
soltou sua cintura para mexer na frente do casaco. —Tenho algo
para você.
— Para mim? Mas como? Você não sabia que eu estaria aqui...
— A voz dela sumiu quando ele retirou uma pedra de lágrimas de
sereia do bolso do colete. Era um tom brilhante de azul, mais
parecido com uma pedra preciosa do que com o resto de uma
garrafa quebrada lapidada pela areia e pelas ondas.
— Eu o encontrei na praia esta manhã quando estava
montando Hiran. Nunca vi uma tão azul. Por um momento, pensei
que fosse uma safira. Uma remanescente do tesouro enterrado,
talvez.
— Ah, Justin. É linda.
— Me fez pensar em você. Do primeiro dia em que
caminhamos juntos pela praia. Você se lembra?
— Como eu poderia esquecer? Ainda tenho a lágrima de sereia
que você me deu então. Está na minha caixa de joias.
— Esta também é sua. — Ele a deixou cair na palma da mão de
Helena. — Para adicionar à sua coleção.
Ela a examinou de perto.
— Uma coisa tão fascinante, lágrimas de sereia. Ele começa
sua jornada de forma tão humilde. E, então, com o tempo...
— Muito tempo.
— Quanto?
— Uma década ou mais, creio.
— E então se transforma em algo novo. Algo extraordinário. —
Ela olhou para ele. — O que você teria feito com ela se eu não
tivesse voltado?
— Não sei. Eu mal sabia o que fazer comigo mesmo. — Ele
afastou uma mecha de cabelo de seu rosto. — Mais uma razão pela
qual estou tão feliz por você estar aqui. Estou contando com você
para me dizer o que vai acontecer agora.
— Devo decidir?
— Imagino que você tenha um plano.
— Não é muito complicado. — Ela passou as costas dos dedos
pela sua mandíbula. — Não vim para Devon sozinha. A Jenny está
comigo. Eu a deixei na abadia para supervisionar os criados.
— Não temos muitos deles no momento. A sra. Standish nos
abandonou há três semanas.
— O sr. Boothroyd me falou. Mas não importa. Eu trouxe muitos
criados comigo. Um mordomo, três criadas e dois lacaios, para ser
mais precisa. Havia vários outros na casa do meu tio que estavam
ansiosos para ir embora, mas eu não queria privá-lo de toda a
equipe de uma vez.
Justin contraiu os lábios.
— Você pegou os criados dele.
— Ele não vai sentir falta. Além disso, nós precisávamos mais
deles. Vamos restaurar a abadia à sua antiga glória. Vou torná-la um
lar adequado para nós.
— Uma tarefa ingrata.
— Nem um pouco. Ficaremos gratos por isso, assim como
Neville e o sr. Boothroyd, e nossos filhos também, quando eles
chegarem. — Ela curvou a mão em volta do pescoço dele. O calor
em seu olhar fez o ventre dele estremecer. — Uma casa, Justin.
Minha e sua.
— Minha casa é onde quer que você esteja.
Os olhos de Helena brilharam.
— Que coisa perfeitamente adorável de se dizer.
— É a verdade. Estive no inferno sem você, Helena. Bom Deus,
hoje eu realmente pensei em voltar para a Índia.
Ela franziu a testa.
— Sim, eu sei. O sr. Boothroyd me contou.
Justin baixou as sobrancelhas.
— Deve perdoá-lo por divulgar seus segredos. Pobre
cavalheiro. Ele estava terrivelmente preocupado com você, e muito
feliz em me ver. Até Jonesy e Paul pareceram aliviados. — Ela
entrelaçou os dedos em sua nuca. — Meu querido, você tem estado
com um humor terrível, não é? Impossível de se conviver.
Ele acariciou sua bochecha.
— Atrevo-me a dizer que você vai remediar isso.
Helena riu.
— Sabe — ela falou enquanto puxava sua boca para outro beijo
suave —, acredito que vou.
Epílogo