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V

(Encontrei na Brasileira do Rossio o Manuel Mendes


─ a primeira pessoa a quem li estes versos.)

Nunca encontrei um pássaro morto na floresta.

Em vão andei toda a manhã


a procurar entre as árvores
um cadáver pequenino
que desse o sangue às flores
1948 e as asas às folhas secas…

Os pássaros quando morrem


caem no céu.

José Gomes Ferreira (PT, 1900-1985)


Noite de luar-bolor

[…] uma das mais transcendentes missões sociais da Arte seria essa luta contra a
monotonia, que concede aos homens a faculdade de transformar a natureza, modificar as leis
eternas, pôr tudo do avesso e dar um pouco de férias revoltas ao tédio organizado em que
vivemos.
Eu, pelo menos, quando me sinto cansado dos pêndulos dos relógios, da injustiça, dos
automóveis, do bater dos corações, do vento, dos satélites, dos astronautas, das plantas
sempre verdes, dos telhados sempre vermelhos, dos homens sempre com cabeça, tronco e
membros, recorro aos poetas. Procuro neles a ilusão de outra lógica. Imagino-me na cidade-
em-que-as-ruas-arrombam-as-casas e os cavalos correm com mil pernas azuis. Deliro a sonhar
o meu retrato com asas. Enlouqueço, em suma, provisoriamente, que é ainda a maneira mais
cómoda de repousar.
Agora mesmo, por exemplo, abri a janela e olhei para o céu.
Lá estava a Lua, a tonta! A Lua bolorenta que ninguém estoira com dinamite ou atravessa
com flechas. A Lua redonda.
1966
Fechei a janela com furor.
E sentei-me à mesa a desenhar uma paisagem nocturna, saudosamente iluminada por uma
Lua quadrada.
O impossível

Apanhar no céu faíscas


para fritar umas iscas

pegar no cheiro do prado


e pintá-lo de encarnado

meter o calor do sol


dentro do meu cachecol

plantar um pomar de rãs


em vez deste de maçãs

morar com uma sereia


num castelinho de areia

com uma toalha de água


secar toda a minha mágoa

fazer da gente crescida


uma gente divertida.
Animais de Estimação

Ó mãe, posso ter um hipopótamo,


uma girafa ou um pinguim?
Diz-me que sim, diz-me que sim.
Gostava tanto de ter um elefante,
um rinoceronte e uma baleia.
Não é boa ideia?
E se for uma vaca,
um canguru e uma doninha?
Também não?
Que grande desgraça!
E se for uma traça?
Não? Então quero um cão,
um gato, um papagaio e uma lombriga.
2010
E, já agora, um coelho, uma aranha e uma formiga.
E um jacaré.
Pois é, também quero um jacaré.
E quero um tubarão
que venha comer à minha mão,
um mosquito que seja bonito,
e uma sardinha que seja só minha.
Álvaro Magalhães (PT, 1951-)
Quando for grande, não quero ser médico, engenheiro ou professor.
Não quero trabalhar de manhã à noite, seja no que for.
Quero brincar de manhã à noite, seja no que for.
Quando for grande, quero ser um brincador.
Ficam, portanto, a saber: não vou para a escola aprender a ser um médico, um engenheiro ou
um professor.
Tenho mais em que pensar e muito mais que fazer.
Tenho tanto que brincar, como brinca um brincador, muito mais o que sonhar, como sonha um
sonhador, e também que imaginar, como imagina um imaginador...
A mãe diz que não pode ser, que não é profissão de gente crescida. E depois acrescenta, a
suspirar: “é assim a vida”. Custa tanto a acreditar. Pessoas que são capazes, que um dia também
foram raparigas e rapazes, mas já não podem brincar.
A vida é assim? Não para mim.
Quando for grande, quero ser brincador. Brincar e crescer, crescer e brincar, até a morte vir
bater à minha porta.
Na minha sepultura, vão escrever: “Aqui jaz um brincador. Era um homem simples e dedicado,
muito dado, que se levantava cedo todas as manhãs para ir brincar com as palavras.”

Álvaro Magalhães, O Brincador


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Mário Cesariny PT
1923-2006
1957

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