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No Dia dos Namorados de 2009, eu estava gripada. Não que eu lembre. Sou
conhecida por ter memória ruim. O namorado da época também não se recorda.
Quem guarda a lembrança desse detalhe da minha vida é a Droga Raia.
Ali estão praticamente todas as doenças que tive e todos os métodos contraceptivos
que usei nos últimos 15 anos. Nem minha família, meus amigos, médicos e convênio
sabem tanto sobre minha saúde quanto a RaiaDrogasil.
O anunciante entra em contato com a RD Ads, diz qual público quer atingir e a
empresa faz a busca no banco de dados da RaiaDrogasil. Quem toma antidepressivo,
por exemplo. A propaganda é então direcionada a essas pessoas não só no site da
farmácia, mas nas redes sociais e no YouTube.
O que permite que uma empresa privada, negociada em Bolsa, acumule dados sobre
tantas pessoas? A explicação está na pergunta mais feita nas farmácias do Brasil:
"Qual é o seu CPF?"
CPF?".
Vitor Bertoncini
Bertoncini, CEO da RD Ads
A promessa é que, se der o CPF, o cliente terá descontos que passam de 70%. Mas,
na maioria das vezes, o preço "sem descontos" das farmácias é meramente fictício.
O preço de R$ 31,78 não representa o valor real, só está ali para você dar o CPF.
Hemitartarato de Zolpidem, 10
mg
30 comprimidos, EMS (contra
insônia)
R$ 96,91
R$ 69,14
R$ 45,43
R$ 13,99
R$ 4,80
Alprazolan, 0,5mg
30 comprimidos, EMS (ansiolítico)
R$ 14,05
R$ 14,05
R$ 10,33
R$ 10,33
R$ 4,66
R$ 1,50
A nimesulida não é exceção. A distorção da tabela da Cmed é geral. Isso permite que
indústria e farmácias pratiquem preços fictícios e peçam nossos dados para conceder
descontos também fictícios.
Picanha e biometria
Na hora de pagar, você pode até se identificar para ganhar desconto de algum
programa de fidelidade, mas os valores da picanha, do "cropped" e da gasolina não
vão cair pela metade se você passar seus dados, como ocorre com os medicamentos.
E tem mais: a picanha, o "cropped" e a gasolina não contam grandes segredos sobre
você. No máximo, que não é vegetariano, que segue a moda e que anda de carro.
Com as farmácias é outra coisa. Elas sabem alguns dos nossos maiores
segredos
segredos. No meu caso, conhecem detalhes íntimos da minha vida que, até agora,
pouca gente do meu convívio pessoal sabia.
Sei disso porque pedi que as farmácias onde mais comprei nos últimos anos me
enviassem os dados que mantêm a meu respeito. É um direito previsto pela Lei Geral
de Proteção de Dados, a LGPD.
A planilha que recebi da RaiaDrogasil, por exemplo, registra que:
Tomo antidepressivo há seis anos, tentei parar algumas vezes, mas acabei
voltando (desconto obtido em troca dos meus dados: até 55%);
Logo antes, tomei calmantes fitoterápicos (zero desconto);
Fiz tratamento para endometriose (desconto de até 64%);
Parei de tomar anticoncepcional há nove anos (desconto de até 15%) e, até
me adaptar, usei pílulas do dia seguinte algumas vezes (desconto de 28%).
A lista, que tem 39 páginas, continua. Mas tem coisas que não me sinto à vontade para
compartilhar. Nem em nome do interesse público desta reportagem. As farmácias
sabem do que estou falando.
Uma coisa posso adiantar: é possível que a farmácia saiba muito mais sobre você do
SÓ PARA ASSINANTES
que sabe sobre mim.
Sou "noiada" com privacidade digital. Já há alguns anos, só dou CPF em farmácias
para comprar remédios, por causa dos "descontos", não para produtos de higiene
pessoal.
Por algum tempo, comprei meus antidepressivos em uma farmácia bem longe de casa
porque aceitava dar o desconto do CPF mesmo sem o CPF.
Topo
E em 2021 um post meu viralizou no Twitter quando a Drogasil tentou cobrar 64% a
mais no meu remédio de endometriose se eu não fornecesse, veja só, a minha
biometria.
Não bastava o CPF, queriam também minha digital para que o preço baixasse de R$
133,57 para R$ 48,59. Aí já era demais, nem no meu prédio dei minha biometria. Saí
sem o medicamento.
O Procon de São Paulo e o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec)
cobraram providências
providências. Funcionou. A exigência de biometria caiu. A do CPF
continua em muitas drogarias.
Se você dá o CPF em toda compra que faz nas farmácias, seus dados podem revelar
muito mais do que suas doenças:
É dessa forma que é possível selecionar clientes com perfil "sênior debilitado", nas
palavras da própria RD Ads.
Ou o "sênior ativo", que leva "itens como: coloração para os cabelos, suplementos
nutricionais e vitaminas".
Um dos "cases" da RD Ads é de um produto para bebês. Casais com filhos de até dois
anos foram identificados no banco de dados por meio da compra de "fraldas, papinhas
e produtos correlacionados". A propaganda foi direcionada para eles. Resultado: as
vendas alavancaram 20%.
Vitor Bertoncini
Bertoncini, CEO da RD Ads
A pergunta que fica é: a farmácia pode fazer isso? A resposta não é preto no
branco. Há uma zona cinzenta, pendente de regulação e fiscalização.
A LGPD diz que informações de saúde são consideradas "dados sensíveis", categoria
que precisa de maior proteção. E diz que o compartilhamento para obter vantagem
econômica "poderá ser objeto de vedação ou de regulamentação".
Nos EUA, em fevereiro deste ano, uma empresa de cupons de desconto em remédios
recebeu uma multa milionária da Comissão Federal de Comércio por usar dados de
saúde para vender anúncios.
A RaiaDrogasil diz que os clientes que dão o CPF autorizaram o uso das informações
de saúde. Não sei você, mas eu só fiquei sabendo que vendem meu histórico para
publicidade por esta reportagem. A política de privacidade da empresa não fala de
monetizar os dados. [ Leia a entrevista com Vitor Bertoncini, CEO da RD Ads, braço de
anúncios da RaiaDrogasil]]
A RaiaDrogasil tem várias. Uma delas promete ajudar empresas a cortar custos com a
saúde dos funcionários. Para isso, analisa dados sobre o uso individual do convênio
médico e "utilização de medicamentos".
Outra diz que "apoia clientes crônicos" a ter uma maior "adesão ao tratamento". Depois,
compartilha os dados com a indústria farmacêutica. Há ainda uma empresa de
prontuários eletrônicos e até um laboratório de exames médicos.
Analluza Dallari
Dallari, advogada especializada em aplicação da LGPD na área da saúde.
Nossos CPFs vão continuar alimentando bancos de dados e revelando cada
vez mais sobre nossa saúde e nosso comportamento sexual, enquanto não houver
uma regulamentação sobre o uso de informações de saúde e uma revisão das regras
da Cmed.
O que podemos fazer? Eu pedi para as farmácias apagarem todos os dados que têm
a meu respeito. É outro direito previsto pela LGPD. Podem até continuar exigindo meu
CPF para não cobrar um preço fictício.
Mas, pelo menos, não vão mais armazenar 15 anos dos meus dados de saúde para
fins que desconheço.
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