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Regine Algayer-Kauffmann

Assuntos de gênero:
mulheres nos performances
musicais em Malawi e Mocambique

Regine Algayer-Kauffmann*

Resumo
Este artigo discute, tomando como perspectiva um repertório conceitual e
teórico metodológico da Etnomusicologia, as relações de gênero em algumas
comunidades de Malawi e Moçambique, a partir das perfomances musicais
encenadas por homens e mulheres de alguns grupos. O artigo traz breve dis-
cussão sobre os instrumentos musicais que são utlizados nas referidas per-
formances, e mostra como as relações de gênero nos grupos em questão é
dotada de mudanças, e por isso construída de forma sócio-histórica-cultural.
Palavras chave: Moçambique; Malawi; Gênero; Danças; Música.

Resumen
En este trabajo se analiza, tomando como punto de vista un repertorio con-
ceptual y teórico metodológico de Etnomusicología, las relaciones de género
en algunas comunidades en Malawi y Mozambique, desde actuaciones mu-
sicales protagonizadas por hombres y mujeres de algunos grupos. El artículo
proporciona una breve discusión de los instrumentos musicales que son ut-
lizados en estas actuaciones, y muestra cómo las relaciones de género en los
grupos en cuestión están dotadas de cambios, y estarán construidos de forma
sociohistórico-cultural.
Palabras clave: Mozambique; Malawi; género; bailes; Música.

1. Introdução
Este artigo se dedica ao papel das mulheres e o papel das mulheres nas culturas locais
na produção musical numa área extensa e difere dum lugar para o outro. A questão é
culturalmente diversa da África do sudeste. se é apropriado focar-se ao papel das mu-
Isso pode parecer um pouco audacioso por- lheres independentemente das condições
que sabemos imaginar o argumento segun- individuais do local? Sim, estou convencida
do o qual uma área assim é grande demais disso. Isto é possível. Há semelhanças que

* Professora da Universidade Viena (Áustria), Departamento de Musicologia.

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abrem a possibilidade de abordar este tema o ano 2012, junto com Moya Malamusie,
numa perspectiva suficientemente larga. e a filha dela, Dyna, fazia parte do projeto
Mas, de qualquer forma, teremos que levar de pesquisa sobre “Individual Histories of
em consideração que para uma descrição East-African Music Composers” (As Histó-
densa o importante é não limitar-se às ob- rias individuais dos compositores da músi-
servações na superfície, mas é importante ca do sudeste africano), que foi patrocinado
penetrar numa estrutura mais profunda. por Austrian Science Fund FNF, e dirigido
Quando se trata do papel das mulheres, a por Gerhard Kubik. Em 2013, nós, Moya
contribuição delas à uma cultura tem que Malamusi, August Schmidhofer e eu mesma
ser vista dentro do quadro da cultura intei- – empreendemos a viagem à Malawi com os
ra, no contexto das condições individuais e nossos estudantes. Fiz uma revisão biblio-
no fundo historico. gráfica das publicações sobre o tema nos úl-
Eu vou limitar-me às formulações das timos cinquenta anos (livros, artigos, multi-
questões que podem ser seguidas pelos ex- medias) para colecionar as informações que
perts nas pesquisas do futuro. Isto é o que levam a certo tipo de inventário. Por agora
nós vamos tomar como primeiro passo para eu me encontro só no início, i. e. eu não te-
contribuir à compreensão dos assuntos de nho pretensão de dizer que as minhas infor-
gênero na perspectiva intercultural. O nos- mações são completas neste aspecto.
so objetivo aqui é introduzir um aspecto da Há duas boas razões porque eu decidi
diversidade cultural aos debates teóricos de investigar o papel da mulher na música por
gênero, e, assim, à abertura do diálogo inter- meio dos instrumentos que elas tocam. A
cultural atribuirá importancia àquelas so- primeira razão ja mencionei. É o fato que –
ciedades cujas histórias são essencialmente levando em consideração a prática musical
diferentes da europeia e ao que foi desconsi- no sudeste africano – é óbvio que as mulhe-
derado no passado. res não tocam instrumentos musicais – com
O meu ponto de partida não é nem sensa- pouquíssimas exceções. Por isso, tocar ins-
cional nem novo. É bem conhecido – até en- trumento musical é um excelente ponto de
tre os experts que não estudam os assuntos referência de manifestação dos papéis do
de gênero explicitamente – que a construção gênero. A segunda razão é que os instrumen-
da identidade de gênero é acompanhada por tos musicais constituem os únicos objetos
vários tabus e restrições. Estes tabus não são tangíveis que a música gera. Os instrumen-
necessariamente expressivos, mas mesmo tos musicais em si não são a arte, mas eles
assim são efetivos e largamente espalhados. são meios para o objetivo, meio através do
Aqui eu vou prestar atenção a um desses ta- qual a música é produzida. Os instrumentos
bus que é expressivo nos países que vamos musicais tem as características específicas
levar aqui em consideração, Malawi e Mo- deles. Os sons e o efeito sonoros deles tem
cambique. Trata-se do fato que as mulheres uma coloração particular por causa da fabri-
tocam certos instrumentos musicais – são cação deles, e por causa do material usado.
pouquissimos – e outros não (numerosos). Sugerindo, a maneira específica como tocá
As minhas informações vem de dois cam- -los, e sua interrelação com o corpo humano
pus de estudo em Mocambique e Malawi, é criada. Então, o ser humano entra no cená-
feitos no periodo entre 2012 e 2013. O cam- rio. Os instrumentos musicais são os indica-
po da minha pesquisa que eu fazia durante dores importantes duma cultura. E, enfim, o

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instrumento musical – como qualquer outro Jiya da vila chamada Namila (Mocambique),
objeto cultural – tem o valor financeiro. Pos- e as tocadoras de nkangala (arco musical)
sui-lo significa prestígio e a possibilidade da Velina Samuel da área Mwanza, Elena Ka-
riqueza e do poder. Os instrumentos musi- chepa de Kuthembwe, Blantyre e Elita John.
cais são ícones em muitos aspectos. Eu vou começar por mangwila.
Depois das considerações gerais sobre o
sujeito, eu gostaria de explicar brevemente 2.1 Mangwila
o que vocês podem esperar nas seguintes No livro de Margot Dias, sobre os instru-
partes. Eu vou – como já foi indicado acima mentos musicais em Mocambique, publi-
– começar apresentando alguns exemplos cado no ano 1986, há uma foto reproduzida
representativos do meu inventário. Como já em que Gerhard Kubik tinha tirado durante
foi mencionado, as mulheres tocam só pou- o trabalho de campo dele nas montanhas de
cos instrumentos musicais. Isso facilita a Mitucue, em Mocambique no ano 1962.1 A
ideia do inventário durante um período rela- foto mostra uma mulher jovem, tocadora de
tivamente curto. Na segunda parte gostaria xilofone mangwilo. Esta mulher é a Senhora
de aproximar-me do sujeito na perspectiva Muhua. O outro tocador é um menino que
do gênero. Aqui, eu vou concentrar-me no não é visível na foto. Mesmo assim, no ano
termo fazer genero (doing gender). Eu vou 1964 Kubik escreveu:
explicar brevemente o termo e oferecer um
“Na primeira vila das montanhas de Mitu-
esboço de como este termo pode ser útil para cue encontramos uma mulher, senora (sic!)
o nosso sujeito, e para uma etnomusicologia Muhua, tocando xilofone junto com um me-
orientada para o estudo do gênero em geral. nino. Isso foi pela primeira vez que quando
Na terceira parte eu vou apresentar o exem- vi uma mulher tocando xilofine na África.
plo da dança nyanga panpipe como o estu- S. Muhua foi introduzida a mim pelo líder
como uma curiosidade. O fato que ela sabia
do de caso. Se – como será logo apresentado
tocar manguilo foi valorizado como um su-
– a identidade do gênero é construida por cesso extraordinário do povo da vila dela.
doing gender, então o contrário também Enquanto eu gravei a música, ela e o povo
tem que ser possível, i. e. desfazer o gênero dela deram risada.”2
(undoing gender). A dança nyanga panpi-
Em 2005 August Schmidhofer gravou
pe é um exemplo da rejeição ou da atuação
vídeos nas montanhas de Mitucue, e encon-
contra as regras. Undoing gender tem um
trou de novo as mulheres que tocaram man-
potencial subversivo, pois desfazendo o gê-
gwilo. Ele gravou as mulheres, Esperança e
nero pode levar a criação da consciência, e a
Filomena, em Namacoma (distrito de Cuam-
ordem social pode mudar. No fim do artigo
1 Esta foto foi publicada pela primeira vez em KU-
apresento uma conclusão preliminatória.
BIK, 1982, p. 159, fig. 99. Kubik, Musikgeschich-
te in Bildern, Ostafrika,1982, p. 159, fig.99.
2. O inventário 2 In the first village of the Mitucue mountains we
met a woman, senora (sic!) Muhua, playing a
É um fato surprendente que a lista de com- xylophone together with a small boy. It was the
first time in Africa that I have seen a woman
positores-músicos no sudeste africano, in- playing a xylophone. S. Muhua was introduced
vestigada no decorrer do projeto da pesquisa to me by the chief as a curiosity. That she could
acima mencionado, contenha somente cinco play manguilo was valued as an extraordinary
achievement of her people in the village. When
nomes de mulheres. Estas são as tocadoras we made recording, she and her people smiled.
de mangwila (xilophone) Selina e Madalena Kubik,1964, p. 90f

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ba). A gravação mostra que as duas músicas da Selina, a sua esquerda. Já em 1964 Kubik
resultam da batida simultânea dos pauzi- nos informou de que existem duas partes de
nhos nos pontos específicos. Isso mesmo mangwilo: opachera – parte do início – e
mencionava também Kubik in 1964. Kubik wakulele – a parte que responde a outra an-
escreveu: “Em algumas peças os músicos terior. Opachera repete um padrão básico.
batem só as teclas do xilofone, mas usam Essa parte é considerada mais simples e o
os dois pauzinhos juntos e batem nos luga- ritmo dela continua sendo constante no de-
res particulares” (Kubik, 1964, p. 92). Tan- correr da peça inteira. Wakulele constitui
to Schmidhofer, quanto Kubik salientava o um padrão rítmico mais complexo. Ele tam-
fato de que as teclas mudam com frequência bém pode ser variado. Na maneira como os
durante a peça – pelos músicos próprios ou tocadores dividem as partes entre si mostra
por outra pessoa. Mangwila não é um mero claramente uma estrutura hierárquica. No
instrumento da mulher. Kubik e Schmidho- nosso caso específico é bem claro que Se-
fer escrevem que esse instrumento é tocado lina é aquela das duas irmãs que dispõe de
tanto por homens quanto por mulheres. Ku- maiores capacidades. No início Madalena
bik observou que foi tocado principalmente não participou imediatamente. Depois Seli-
pelos jovens: “Para os jovens pareceu que na lhe ajuda mostrando o padrão. Quando o
tocar no xilofone manguilo é única coisa: pai delas volta, a peça das duas mulheres é
todos os músicos tiveram mais ou menos interrompida e a Selina volta ao lugar origi-
“vinte anos”.3 nal dela. O pai, de passagem, usava a pedra
O terceiro vídeo dos músicos tocando para sentar. Selina o empurra ao lado antes
mangwilo que eu conheço foi gravado por de começar a tocar.
Moya Malamusi, em 2012, numa vila cha- A segunda observação interessante
mada Namina, perto da cidade de Man- tem a ver com o fato que neste documento
dimba, em Mocambique. Mandimba se aquela tocadora que toca a parte chamada
encontra na fronteira com Malawi, uns 150 opachera, fica sentada no lado esquerdo.
quilometros das montanhas de Mitucue. Provavelmente tem várias razões para isso.
No vídeo podemos ver duas mulheres, Seli- Caso observemos o mangwilo muito per-
na e Madalena Jiya. Selina aprendeu tocar to, descobriremos que as teclas não ficam
mangwilo com o pai dela – segundo as mi- livremente nos cepos, mas são afixados a
nhas informações. eles no lado esquerdo. Neste instrumento,
O documento é muito interessante. A
as teclas não são perfuradas na parte es-
gravação inteira dura 30 minutos. Tanto
querda e, consequentemente, os pauzinhos
no inicio quanto no fim da gravação Selina
podem ser inseridos por dentro das teclas
está tocando com o pai dela. Tocando com
dentro dos cepos e por isso não deslizam
o pai, ela está no lado esquerdo enquanto o
com facilidade enquanto tocado. Na parte
pai está no lado direito. No meio da perfor-
de cima nós discutimos o fato que as teclas,
mance – e isso é uma cena que eu gostaria
em geral, ficam livremente colocadas e por
de salientar aqui – o pai sai e depois a Seli-
isso é possível mudar a posição delas du-
na passa para o lado direito e ocupa o lado
rante a peça. Aqui, elas são afixadas num
do pai. Madalena, por sua vez, ocupa o lado
lado só. Mesmo assim, isso tem algumas
3 Manguilo xylophone playing seemed to be for consequências. As teclas afixadas quando
young people only: the players that we recor-
ded were all in their early ‘twenties’ tocadas do lado esquerdo, não podem ba-

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lançar tão livremente como quando tocadas pondentes. As gravações feitas no ano 1959,
do lado direito, i.e. elas produzem tons bem por Margot Dias, dizem respeito a Marra-
diferentes. Eu sugiro que – se medimos o meni e Mpumalane, localizadas na província
espectro sonoro e o vemos – o espectro não da Gaza (que se encontra na área do sul de
seria igual e por isso o som é relativamente Mocambique). Estes instrumentos são (ou
acerado e não tão brilhante. Consequente- foram naquela época) tocados tanto pelos
mente, para resolver o problema técnico, meninos quanto pelas meninas, mas – como
temos que aceitar que as partes são bem di- salientou Dias – pelas meninas com mais
ferentes em termos da coloração do som e
frequência (DIAS, 1986, p. 204).
por isso se misturam no grau menor o que
talvez seja o objetivo original.
2. 4. Idiofones, Membranofones
Agora já estou quase no fim do resumo pre-
2.2 Nkangala
liminar. Há muitos documentos que mos-
Em Malawi encontramos três mulheres to-
tram as mulheres tocando a bateria. Um
cando o arco musical e entre elas Elita John.
Nkangala é considerado como o arco musi- exemplo preeminente disso é com certeza
cal específico para as mulheres. É conside- muheme, de Wagogo, da Tanzânia. Mas,
rado um instrumento contemplativo, tocado existem também documentos de Mocambi-
pelas mulheres tanto para uma instrução in- que a Swazilandia que mostram as mulheres
terior quanto para auto-consciência psicote- tocando a bateria, ou as mulheres com cho-
rapêutica. O interessante é que há também calhos de mão (DIAS, 1986, p. 71; 74). No
um instrumento parecido para os homens ano 2012, numa vila chamada Chisoka, per-
também, no caso, chama-se nyatakangali. to do Ulongwe (Angonia), no Mocambique
Diferentemente do nkangala, o nyatakan- do noroeste, Malamusi e eu gravamos uma
gali é tocado em público e goza de – pelo danca feminina chamada kamsodo. Aqui,
menos assim me parece – uma reputação uma mulher tocou a bateria-líder no centro.
muito mais alta. A técnica e o repertório de- Num exemplo de mangwila podemos ver
veria ser – segundo os experts – mais com- uma mulher batendo com uma peça do ferro
plexo. e assim produzindo um tipo de padrão da ti-
meline que acompanha a música da mulher.
2.3. Chiguvihu Exemplos assim encontramos aqui e aí, mas
O único exemplo da categoria de aerofones
sempre, são raros.
na região, encontrei no livro de Margot Dias,
sobre os instrumentos musicais em Mocam-
3. O que diz a nós esse resumo
bique, publicado no ano 1986. Dias mostra
que em Moçambique se toca chiguvihu (ou preliminar?
chiguvia), também chamado vessel flute. mostra para nós que as mulheres tocam um
Para Dias é óbvio que este descobrimento número relativamente pequeno de instru-
foi muito importante, porque além das fo- mentos musicais e que tocam os assim ra-
tos o livro contêm também a transcrição das ramente. O resumo também mostra que na
duas músicas tocadas pelas meninas na épo- verdade não existem instrumentos típicos
ca dele, e numa fita cassette acompanhante para as mulheres,i.e. instrumentos tocados
encontramos uma lista das músicas corres- exclusivamente só pelas mulheres. Até o

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arco musical, nkangala, em nyatakanga- 4. Os assuntos de gênero:


li tem a sua contraparte masculina, o que
significa que este tipo de instrumento não é
fazendo o gênero
exclusivamente feminino, enquanto a cons- On ne naît pas femme, on le devient – a
trução específica e o estilo da peça podem pessoa não nasce uma mulher, mas ela tor-
ser considerados típicos. Os instrumentos na-se uma mulher. Esta frase foi escrita por
musicais tocados pelas mulheres são, en- Simone de Beauvoir. Ela foi citada muitas
tão, instrumentos tocados tanto por homens vezes desde a publicação do livro dela, Le
quanto por mulheres. deuxième sexe, no ano 1949. Com a vinda do
Além disso, há instrumentos que, en- conceito doing gender, a declaração de Si-
quanto são tocados, requerem o senso para mone de Beauvoir não é só altamente atual,
um certo padrão de movimento. Já em 1964 mas também ganha nova agudeza. No ano
Kubik teve uma boa intuição quando – refe- de 1987, Candace West e Don Zimmerman,
rindo-se à mangwila tocada nas montanhas na primeira edição da revista Gender and
Society, abriram o debate sobre o concei-
de Mitucue – escreveu: “I have found that
to de doing gender, num artigo revolucio-
the musicians of the Mitucue mountains
nário. Eles defendem a tese de que gênero
think in terms of movements rather than
não é alguma coisa que nós fazemos. Em
in terms of melody” (KUBIK, 1964, p. 91).
todas as sociedades existem os conceitos
Quando observamos Elita John tocando
normativos do que significa ser um homem
nkangala, temos uma impressão de que não
ou uma mulher. O nosso comportamento
é uma melodia abstrata, o que dá o impulso,
é determinado por esses conceitos norma-
mas o movimento ou a combinação dos mo-
tivos, i.e. nós sabemos como devemos nos
vimentos diferentes.
comportar como um homem ou uma mu-
Tipos de instrumentos em geral têm um
lher (WEST; ZIMMERMAN, 1987, p. 126).
alto prestígio numa certa cultura. O xilofone,
“Essas concepcões normativas dos homens
em geral, tem uma alta reputação no sudeste
e das mulheres”, escreve o sociólogo Fran-
africano, i.e. as orquestras de Chopi timbila
cis M. Deutsch, “variam através do tempo,
nos sul de Moçambique, ou ensembles va-
grupos étnicos e situações sociais, mas a
limba, na região de Lower Shire Valley, em oportunidade de comportar-se com a virili-
Malawi. dade como um homem e com a feminilidade
A questão que tem a mesma importância como uma mulher está onipresente. Assim,
como a de quais instrumentos são tocados o gênero é um aspecto da interação social
pelas mulheres, é a questão dos instrumen- que está surgindo o tempo todo”.4
tos que não são tocados por elas. A respos- O debate cujo centro constitui o conceito
ta é simples. Elas não tocam o instrumento doing gender levou a vários insights chaves,
maior tanto no sentido físico quanto no sen- o que é algo que Francine Deutsch sumari-
tido figurativo. Elas sempre tocam a versão zou em quatro temas:
menor dos instrumentos grandes. Estes são 1. As diferenças de gênero não são sim-
os instrumentos que são entregues também
4 These normative conceptions of men and wo-
nas mãos das crianças, instrumentos fáceis men (...)vary acros time, ethnic group, and so-
de fabricar e que não custam muito. Estes cial situation, but the opportunity to behave as
instrumentos são aqueles que não requerem manly or womenly women in ubiquitous. Thus,
gender is an ongoing emergent aspect of social
muito exercício para serem dominados. interaction. Deutsch, 2000, p.107.

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plesmente um resultado da nossa so- boa sorte quando a gravamos nas duas vi-
cialização,i.e. resultado da maneira las perto de Tete, região situada perto do rio
como nós somos educados. Zambeze. A danca de flauta de pã nyanga já
2. As diferenças de gênero não são sim- tem a sua curta história de pesquisa, e por
plesmente o resultado das estruturas isso estamos numa boa posição para poder
verticais específicas do poder. Antes, comparar as nossas próprias gravações com
todos os individuos são envolvidos no o que os outros pesquisadores observaram
processo da diferenciação de papéis antes de nós. Num catálogo de exibição dos
de gênero. Todos os indíviduos da co- instrumentos musicais, no National Mu-
munidade contruibuem – através das seum of Ethnology, em Lisboa (1994), po-
suas atividades e comportamentos – demos ler “Nyaga designs the dance of an
ao fato de que as normas de gênero instrumental group which exclusively con-
são reproduzidas diariamente, e as- sists of young men.”5 No artigo publicado
sim confirmadas e reafirmadas a cada por Andrew Tracey (1971), nós aprendemos
dia. mais detalhes. Tracey escreve:
3. Se o gênero não é alguma coisa, nós so- As mulheres que geralmente ficam no grupo
mos só aquilo que fazemos, e assim – fora do círculo de tocadores da flauta de pã
uma consequência inevitável disso – a tem o número pequeno de partes fixas para
nossa identidade de gênero não é dada cantar [...]. As vezes elas cantam o nome dos
passos de dança, Kachaire, Mutwetwe, etc.
pela natureza, mas é algo construído.
As partes tocadas por elas geralmente ten-
4. Mas, se é algo construído e não natu-
dem a fortalecer as melodias inerentes nas
ral, então tudo isso pode ser também partes tocadas pela flauta de pã (TRACEY,
des-construído. Uma das maneiras 1971, p. 80).6
como desconstruir a nossa identida-
Segundo Bulaundi Sakha, líder do grupo
de de gênero é abordado pelo concei-
da dança nyanga Goba (a província de Tete
to de undoing gender.
em Moçambique) que o Moya Malamusi en-
Undoing gender é uma forma de provo- controu no ano 1990, numa vila chamada
cação. Undoing gender, na verdade, desa- Jonathani, campo de refugiados em Malawi,
fia as normas sociais de gênero. Através de somente os homens dançam. Sob certas cir-
undoing gender a consciência pode mudar cunstâncias, segundo Bulaundi, as mulheres
e uma nova consciência pode ser criada por- ficam de pé no meio da pista da dança, “e
que a arbitrariedade destas regras torna-se a tarefa deles é cantar como uma resposta
óbvia através do comportamento que não é às canções que são produzidas por homens
submissivo às normas sociais. Por isso em que tocam nas flautas de pã” (MALAMUSI,
undoing gender encontramos um potencial 1992, p. 86).7
subversivo. 5 “Nyanga designa a dança e o grupo instrumental
exclusivamente constituido por rapazes”.
6 The women who generally stand in a group just
5. A danca de flauta de pã outside the circle of panpipe players, have a
nyanga: um estudo de caso small number of fixed parts to sing [...]. Someti-
mes they sing the name of the dance step being
Sabendo disso, gostaria de virar a nossa performed, Kachaire, Mutwetwe,etc. Their part
tends to reinforce some of the melodies inherent
atenção à dança da flauta de pã nyanga, in the panpipe parts. Tracey 1971, p. 80f
como um caso de estudo. Em 2012 tivemos 7 “and their task is to sing in response to the

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Os homens cantam, dançam e tocam as res. No momento do início da gravação de


flautas de pã. O encaixe sofisticado de cada Mpaduwé, uma mulher começou o círculo.
parte produz um som denso. O indivíduo to- Pouco depois entraram outras duas mulhe-
cando em padrões que são em si impressio- res. Não o fizeram numa posição qualquer,
nantes. A simultaneidade do canto e assobio, mas na mesma posição que a primeira mu-
acompanhados pela dança, é um grande de- lher. Assim, todas se alinharam até o fim,
safio para todos os participantes. O padrão numa mesma linha. Em Kankhuni foi exata-
do canto e do assobio tem que “encaixar-se”, mente a mesma coisa.
encontrar o seu lugar próprio. Além disso, Isso é diferente do que Tracey descre-
tem que ser produzido simultaneamente veu no ano de 1971. Nas nossas gravações as
com os passos da dança. Qualquer pessoa mulheres não ficaram fora do círculo, posi-
que viu esta dança pelo menos uma vez vai cionando-se de pés juntos com os homens
concordar com Tracey quando escreve: numa mesma linha. Elas não tocam flautas
Eu nunca vou esquecer quando ouvi pela pri- de pã, mas cantam. Tracey escreveu que as
meira vez uma [...] Eu não sou a única pessoa mulheres em certas ocasiões cantaram no-
que ficou tão impressionada; Nyungwe são mes dos passos de dança. No ano 2012 elas
famosas por causa da nyanga numa grande mesmas dançaram. Aparentemente elas não
parte de Mozambique central, na Rhodesia,
tinham – diferentemente da época do Tra-
e no Malawi do sul, e com razão: considera-
da uma música muito difícil a performar pela cey – nenhum problema com passos “alei-
maioria de não – Nyungwe, os passos em si vosos” de dança. Elas dominam os passos
são muito aleivosos e é necessário ter muita da dança do mesmo jeito como os homens.
experiência para ser capaz de se exibir en- Mas, o canto delas é muito mais do que um
quanto toca a parte da flauta de pã ao mesmo adorno. O canto das mulheres é também in-
tempo, e os melhores grupos são estritamen-
timamente ligado com os passos da dança.
te examinados (TRACEY, 1971, p. 73).
O canto delas é um tipo de meta-declaração
O próprio Tracey teve sucesso só mui- ou de comentário do que está acontecendo
tos anos mais tarde, quando ele conheceu no momento.
suficientemente as partes das flautas de pã
nyanga, e aprendeu como tocá-los. Só vinte 6. Desfazer o gênero
anos mais tarde Tracey foi capaz de disper-
sar “delicadeza” dos passos da dança (TRA-
dancando dança de flauta de
CEY, 1992). pã nyanga?
Em 2012 fomos capazes de gravar dois A dança da flauta de pã nyanga é um géne-
grupos de flautas de pã, de danças de nyan- ro que fazia parte do domínio dos homens
ga, em Moçambique. O primeiro grupo veio desde sempre. No nosso campo de pesquisa,
da vila de Mpaduwé, o segundo grupo de durante o ano 2012, muitas vezes observa-
Kankhuni. Ambas vilas foram localizadas mos que as performances dos homens e das
numa estrada do Tete à Changara. O ensem- mulheres são estritamente separadas, i.e..
ble de Mpaduwé foi constituído por 15 pes- quando homens tocaram, as mulheres os
soas, 11 homens e 4 mulheres. No ensemble observaram e vice versa. No entanto, quan-
de Kankhuni tocaram 10 homens e 3 mulhe- do a dança da flauta de pã nyanga é tocado,
songs which are performed by the men on the
as mulheres – pelo menos isso decorre do
panpipes”. que foi gravado – fazem esforço particular

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para participar nela. Nós não sabemos das Talvez isso seja uma oportunidade para as
circunstâncias específicas. mulheres e para os homens em Mpaduwé
Aparentemente elas – enquanto ficam e Kankhuni ver que isso não faz papel em
fora do círculo – começam a cantar. Até ago- ensemble de nyanga, independente se os
ra não tocaram nyanga. Se a mulher parti- participantes são homens ou mulheres esta
cipou em nyanga sem receber a instrução, experiência poderia ser transferida às outras
e sem ser examinada antes, o resultado não áreas da vida social.
podia ser uma ação promissora, mas talvez Afinal de contas, na província de Tete já
uma vergonha. Parece que é muito difícil tem mulheres exercendo papel principal na
dominar a simples interação da performan- vida pública como mulheres-líderes. E em
ce de maneira espontânea e sem instrução Malawi, desde 2012, com Madame Joyce
qualquer. As mulheres começam com aquilo Bandahas como a presidenta-mulher.
que sabem bem, i.e. com o canto. O próxi- Mas – senhoras e senhores – os moinhos
mo passo é fazer o que elas também sabem moem muito devagar, infelizmente. Como
bem, i.e. dançar. Em todas as vilas que nós dura cinquenta anos para uma mulher en-
visitamos, durante a pesquisa de campo, ti- trar no círculo dos homens, vai durar, prova-
vemos uma oportunidade de gravar danças velmente, outros cinquenta anos para a pri-
das mulheres. Estas danças foram acompa- meira mulher tocar nyanga. Da perspectiva
nhadas pelos cantos – sem única excepção. humana isso parece um tempo realmente
Isto é, o canto sincronizado com os pas- longo e eu me arrependo de – e isso é muito
sos da dança é uma performance na qual as provável – não poder viver esse momento.
mulheres dominam. Mas, o instrumento é
o maior obstáculo. Dança de flauta de pã, Referências
nyanga, é um gênero como qualquer outro.
BEAUVOIR, Simone de. Le Deuxième Sexe:
É associada com o prestígio e com a iden- Paris, 1949.
tidade étnica. „Nyungwe são famosos por
CAIADO, José P.; MORAIS, Domingos. Catá-
causa nyanga deles numa grande parte
logo da Exposição de Instrumentos Musi-
do Mocambique central, em Rhodesia e no cais de Mocambique. Museu Nacional de
Malawi do sul“8, escreveu Andrew Tracey Etnologia. Lisbon 1994.
(1971, p. 73). Por isso a disposição das mu-
DEUTSCH, Francine M. “Undoing Gender”. In:
lheres de querer participar nela, tem a outra Gender and Society, vol.2/1, 2007, p.106-27.
qualidade, a política. Eu acho que isso é algo
DIAS, Margot. Instrumentos Musicais de
fundamentalmente diferente do que já foi Mocambique. Lisboa: Instituto de Investiga-
observado em cima, no contexto da peça do ção Científica Tropical, 1986.
xilofone mangwilo ou o arco musical nkan-
KUBIK, Gerhard. Recording and Studying Mu-
gala. A dança da flauta de pã Nyanga é um sic in Northern Mocambique. In: African Mu-
gênero complexo, que requer um alto grau sic, 1964, p.77-100.
da interação perfeita. Há uma única divisão
KUBIK, Gerhard. Musikgeschichte in Bil-
aqui, no caso, a profissional. Não existe nada dern. Ostafrika. Leipzig, 1982. VEB Deuts-
como nyanga pequeno para as mulheres, cher Verla für Musik Leipzig.
como oposição à aquele grande dos homens.
MALAMUSI, Moya. “The Nyanga/Ngororombe
8 Nyungwe are famous for their nyanga over a Panpipe Dance: Some Dance Steps for the Nyan-
large part of central Mocambique, Rhodesia, ga Panpipe Dance”. In: African Music, 1971,
and southern Malawi. Vol.5 (1), p.73-89.

Revista África(s), v. 02, n. 04, p. 33-42, jul./dez. 2015 41


Assuntos de gênero: mulheres nos performances musicais em Malawi e Mocambique

TRACEY, Andrew. “The Nyanga Panpipe Dan- West, Candace;Zimmerman, Don H. “Doing
ce”. In: African Music, 1971, Vol. 5(1), p.73-89. Gender”. In: Gender and Society, 1987, Vol.1(2),
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TRACEY, Andrew. “The Nyanga/Ngororombe
Panpipe Dance: Some Dance Steps for the Nyan-
ga Panpipe Dance.” In: African Music, 1992, Recebido em: 13/06/2015
Vol. 7(2), p.108-118. Aprovado em: 02/09/2015

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