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Enquadramento teórico
No Brasil, as pesquisas relacionadas aos processos de ensino e
aprendizagem musical suscitaram desde os anos 80 uma gama de trabalhos
voltados para a questão da troca, do diálogo entre saberes seja entre diferentes
áreas como, por exemplo, a educação com interfaces em várias áreas como
biologia, história, literatura, educação, antropologia, sociologia e filosofia
(gonçalves, 2003), seja traçando parâmetros comparativos entre os tipos de
educação formal, informal e não formal (barboza, 1995; gohn, 2001) até serem
transplantadas tais discussões para outras áreas que se ligavam à educação
popular, bem como para a educação musical.
Na educação musical, pensando em alguns percalços pedagógicos (como
a evasão e o desinteresse pelas aulas de música, com destaque para o âmbito
da educação básica), ocorrem também às vezes alguns descompassos durante
os processos de ensino e aprendizagem dentro das escolas, o que levou os
estudiosos e educadores a partir para a análise de outros campos de estudo
pertencentes às manifestações culturais populares para com eles aprender
através de seus modos de sociabilização e transmissão de saberes culturais
e musicais. Essa tem sido, aliás, uma das funções basilares de uma das mais
recentes abordagens em educação musical denominada Pontes, cujo aporte
Objetivos da pesquisa
Com o objetivo geral de analisar o macroprocesso educativo da bateria
da Associação Recreativa Escola de Samba Malandros do Morro − ARESMM,
foram gerados dois objetivos específicos e complementares: a) compreender
a organização interna da escola − espaço em que jovens e adultos aprendem
Metodologia do estudo
A metodologia escolhida para essa pesquisa foi a perspectiva qualitativa,
baseada em pressupostos etnográficos, com coleta de dados através da
observação participante.
Invariavelmente a pesquisa participante tem ligação com a questão
etnográfica, embora o estudo não tenha pretendido chegar a traçar uma
etnografia do grupo, pois não foi produzida etnografia tal como a considera
Geertz (1973, p. 7), uma “descrição profunda” (thick description). De forma
mais abrangente, ao estudar qualquer contexto, vale lembrar Wolcott (apud
menga, 1986, p. 14) que chama atenção para a utilização da etnografia que, em
educação, se deve preocupar em “pensar o ensino e a aprendizagem dentro
de um contexto cultural amplo. Da mesma maneira, as pesquisas sobre a
escola não devem se restringir ao que se passa no âmbito da escola, mas sim
relacionar o que é aprendido dentro e fora da escola”.
Os atores sociais envolvidos no estudo foram os ritmistas da bateria,
o mestre de bateria e algumas pessoas ligadas à administração da MM,
levando em consideração seu entorno, uma vez que se pode afirmar serem os
participantes integrantes de uma grande família – a “malandrense” ou verde-
branco (cores oficiais da escola). Nessa ampla rede social, todos pareciam ter
pai, tio ou irmão que tocava, cantava, que fazia ou fizera parte da história da
Malandros.
Primeira 1º e 2º “O que deveria ter sido o primeiro Saber a letra do samba-enredo evita, na maioria das
lição: ensaio, na verdade, ficou sendo apenas vezes, que o ritmista “atravesse” o samba, “cruze”, quer
Aprender um dia para reconhecimento da letra e dizer, saia do tempo, da “cadência”, faça as batidas antes
o samba- dos arranjos do samba (…) No primeiro ou depois da marcação.
enredo ensaio com a bateria mais completa
ocorreu um fato bastante inusitado.
O mestre [de bateria] já começou o
ensaio pelo que seria o fim do samba,
quer dizer ensaiando os breques finais
que concluíam o samba-enredo (…) Os
arranjos, os breques são dominados a
partir do conhecimento que se tem da
letra e da música do samba-enredo”.
“Respeite 3º “Hoje o ensaio começou apenas com os O trecho demonstrou uma preocupação com o nível de
meu tamborins (…) O mestre posicionando-se excelência técnico-instrumental dos ritmistas pensado
tamborim” na frente dos tamborins, tocava trechos totalmente em função da música. É função do mestre
(Os do arranjo, e nós repetíamos. Fez poucas estar atento à forma de pegar as baquetas, o modo de
tamborins vezes cada trecho (no máximo duas tocar qualquer dos instrumentos e, quando não existe
aprendem) vezes) e devagar. Assim que considerava essa preocupação, logo se torna evidente o prejuízo no
suficiente a demonstração, passava com resultado sonoro. Em torno dessa discussão, em seu
todos (...) O mestre chamou a atenção depoimento, o mestre exemplificou o que ocorre com
de alguns para o atraso na repetição das escolas de renome nacional como a Mangueira cujos
batidas (...) deveriam segurar o braço tamborins trabalham bastante, ou seja, têm uma boa
e mexer só o antebraço, evitando-se técnica e conseguem excelentes atuações. O mestre diz:
distanciar do tamborim com a baqueta “Como disse o puxador de samba da Mangueira, J.: ‘Tem
o máximo possível para não perder o que respeitar meu tamborim’ ”.
tempo [o andamento].”
Os testes 10º “Houve outra forma que identificava um Outra finalidade a ser perseguida com os testes,
teste em andamento. Em um ensaio, o depois do ingresso no grupo, encontrou-se no sentido
mestre ficou um bom tempo, talvez uns integrativo, ou seja, como aquele ritmista se portaria,
15 minutos, esperando que alguém do evoluiria dentro dos grupos e se, realmente, tinha
surdo aprendesse a batida correta, em condições de lá permanecer (…) Em suma, a avaliação
consequência de uma falha detectada será sempre em função de um processo inclusivo
na aprendizagem de um dos ritmistas, e coletivo, daí a preocupação de se dar chance aos
descoberta quando, intencionalmente, iniciantes de conseguirem uma colocação no grupo
um dos ‘principais’ saiu de cena (…) Trata-se, enfim, de dominar tecnicamente seu
[do ensaio]. Sem a presença dos instrumento, o que torna o teste a busca da superação
mais experientes, alguns perdem o de seus próprios limites, numa visão preocupada com o
referencial, sentem-se descobertos, respeito à individualidade no que tange à aprendizagem.
sem apoio; as inseguranças acabam
aparecendo.”
“Eu aprendi 13º Fiquei conversando com F., antes do A partir da conversa que tivemos em que diz que
sozinho” ensaio. Não levei meu tamborim, mas aprendeu sozinho, entendi que, na verdade, esta
ele me emprestou o dele, alegando afirmativa traduz a necessidade de afirmação das
que não estava com vontade de tocar pessoas sobre a sua capacidade de poder aprender por
naquele dia. Até fiquei surpresa por ele conta própria, às vezes sem ajuda de outros ou mesmo
ter me emprestado o tamborim dele, com uma ajuda mínima. Representa a vontade de
pois parecia bastante zeloso e ciumento encontrar sozinho, os próprios caminhos que levem ao
com seu instrumento. Era o único que saber, à superação das dificuldades iniciais que exige a
mantinha o instrumento guardado na aprendizagem de um instrumento. Aquele que diz que
capa de couro até o ensaio começar. aprendeu sozinho, de fato, pode não estar enganado,
mas muitas vezes esquece que a própria vivência no
mundo do samba pode ser considerada uma fonte de
aprendizagem.
Múltiplos 13º Em meio ao ensaio um colega de bateria Ao entrevistar os ritmistas uma verdade imperou entre
professores me disse: “Olha, pra você aprender, os inúmeros depoimentos: a de que todos, sem exceção,
você treina em casa, fica ouvindo o CD tiveram ou tinham um amigo mais experiente que os
e tentando imitar as batidas, ouvindo incentivava ou que acabara ensinando os primeiros
vários toques e identificando o que caminhos da música, do samba. Muitos “professores” até
eles estão fazendo; daqui a pouco você o foram sem ter consciência disso, pois nem imaginavam
estará conseguindo fazer igual” (M., que serviam de exemplo e inspiração para aquele colega
comunicação pessoal) ritmista. A figura do mestre de bateria não representa
a de único professor. Muitos ensinam, mas a ninguém
está predeterminada a função docente (…) Dessa forma,
vê-se que o processo de aprender ocorre de maneira
individualizada (…) A aprendizagem deve ser completada
com o treino, as tentativas, as experimentações do
músico, o que normalmente acontece em casa ou até na
casa de um amigo.
“É uma 13º Ao perguntar ao mestre como ele Em alguns momentos das entrevistas que realizei com
questão de chegou à escola de samba, ele o mestre, ele enfatizou a questão do dom para explicar
dom” respondeu: “É um dom mesmo de a facilidade para a aprendizagem musical de alguns
pequeno. Às vezes, eu ia, olhava o ritmistas, inclusive a sua própria (…) Isso evidencia
ensaio, voltava, tal e despertou aquela o “mito do dom”, de bases românticas que integram
vontade, já era desde pequeno mesmo” amplamente as concepções de arte do senso comum.
No período romântico, acreditava-se que a genialidade,
o dom, bem como o talento, eram fenômenos natos
(…) No entanto, a musicalidade, ou seja, a sensibilidade
à música é um fator que depende da oportunidade de
familiarização com a linguagem. Pois todas as pessoas
têm um potencial e o que existe é, de fato, 90% de
transpiração e 10% de inspiração.
A mulher 18º O mestre disse-me que, apesar das Qualquer questão relativa à problemática de gênero
na bateria - participações femininas, nunca uma nesse campo torna-se um capítulo à parte. Pois na
“Dizem que mulher tocou um instrumento pesado academia e na escola, o paradigma feminino de
a mulher na bateria da Malandros, como conhecimento é útil e necessário para construir novas
é um sexo aconteceu na minha segunda ida ao relações entre os sujeitos e novos conhecimentos sobre
frágil...” campo. E me disse: “Você está sendo as experiências de sujeitos dominados e excluídos da vida
a primeira mulher a entrar e pegar um intelectual e da vida social digna. Sob essa perspectiva,
instrumento pesado, que é o repinique. estudos sob a égide de uma epistemologia e metodologia
Nunca uma mulher tocou repinique feminista interessam, sobretudo, a uma educação
aqui, nem tarol, nem surdão”. que pretende ser popular [esse tópico teve vários
desdobramentos].
Considerações finais
A escola de samba, como sugere a própria expressão, é ambiente que
se propõe ensinar e aprender sobre samba. Visto por outro ângulo, é lugar
de aprendizagem para as pessoas da comunidade, algumas encontradas à
margem dos processos escolares formais. Além disso, é espaço extraescolar,
no qual se ensina uma prática cultural e artística que não é contemplada pelo
sistema escolar formal. A educação popular concentra-se no saber que pode
ser usado diretamente na realização dos objetivos sociais das camadas mais
marginalizadas. Consoante essas ideias, entendo que comunidades como a
Escola de Samba Malandros do Morro, por exemplo, desenvolvem meios de
preservação de saberes comunitários e de sua transferência de uma geração
para outra. Trata-se, pois, de novas formas de educação de pessoas jovens
e adultas colocadas ou não à margem da educação oficial, mas que detêm
um conhecimento legítimo praticado dentro de instituições ligadas à arte e à
cultura. No decorrer da pesquisa foi possível perceber principalmente a riqueza
multidisciplinar desse espaço cultural, social, artístico, educativo da MM e
tomá-lo como mais um dos exemplos para a educação popular que nos brindou
sobremaneira com seu visível esforço de inclusão social, valorização da cultura
e educação a partir das bases que o mundo do samba e suas escolas de samba
nos legam.
NOTAS
1 Quando falo em saber popular refiro-me ao conhecimento necessário à vida
cotidiana. Saber, qualquer que seja ele, popular (que agrada ao povo, do próprio
povo), que participa e contribui social, educativa e artisticamente, a interpretar
a sociedade na qual se insere. Ter conhecimento do saber popular e, por
conseguinte, da cultura que cerca determinado grupo resulta fator indispensável
para dar sentido e interpretar as experiências e dele se deriva não só uma maneira
de pensar, como uma maneira de proceder (ochoa apud martinic, 1994, p.73).
2 Segundo Augras (apud riotur, 1991), ao longo da história distinguem-se vários
tipos de grupos carnavalescos, entre eles: “os ranchos, que desfilam sob forma de
cortejos. O desfile dos ranchos incluía: abre-alas, comissão de frente, figurantes,
alegorias, mestre de manobra, mestre-sala e porta-estandarte, primeiro mestre