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Belo Horizonte
2018
Marcos Pereira Anjo Coutinho
Belo Horizonte
2018
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
CDU: 35
Ficha catalográfica elaborada por Roziane do Amparo Araújo Michielini – CRB 6/2563
Marcos Pereira Anjo Coutinho
________________________________________________________________
Prof. Dr. Edimur Ferreira de Faria (Orientador) - PUC Minas
________________________________________________________________
Prof. Dr. José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior (Examinador) - PUC Minas
________________________________________________________________
Prof. Dr. Gregório Assagra de Almeida (Examinador) - UIT
________________________________________________________________
Prof. Dr. Adilson de Oliveira Nascimento (Suplente) - PUC Minas
Ao meu orientador, Professor Edimur Ferreira de Faria, pela amizade, pelas críticas
que tanto auxiliaram a elaboração desta pesquisa, pela sólida formação acadêmica e visão
global da ciência jurídica e, principalmente, pela oportunidade que tive de desfrutar de sua
companhia, sua experiência de vida e generosidade.
Ao Professor José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, pelas sugestões ao
desenvolvimento da dissertação, pela sólida formação acadêmica, pelo senso de humor que dá
leveza e pela habilidade de mostrar o Direito por dimensões interdisciplinares.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, que possibilitaram reflexões intensas, por vezes, angustiantes, mas
sempre proveitosas, que auxiliaram esta empreitada, mesmo em ângulos teóricos diversos, em
especial, à Professora Marinella Machado Araújo, ao Professor Flávio Couto Bernardes e ao
Professor Giovani Clark.
Aos colegas do curso de Pós-Graduação da PUC, que ajudaram o autor na construção
das reflexões, Juliano Ribeiro Santos Veloso, Leandro Barbosa, Alice de Siqueira Khouri,
Karol Araújo Durço e Ícaro Ursine.
Aos colegas do Ministério Público, Elaine Martins Parise, quem primeiro me
incentivou a ingressar no curso de pós-graduação da PUC, Maria Angélica Said, colega
próxima, no sotaque e na amizade, e Gregório Assagra de Almeida, com quem tive a honra de
compartilhar as atribuições de Promotoria Especializada na tutela de interesses difusos e
coletivos em Betim e que, desde o princípio, me recomendou o aperfeiçoamento acadêmico.
Aos colegas da Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade, Camila, Valéria,
Fúlvia, Milena, Vanessa, Nilson, Renata, Natália, Mônica, Isabelle, Marina e Giovanni, pela
qualidade do trabalho, pela amizade e por tornarem o cotidiano profissional mais suave.
À minha família, por tudo. Pelo aprendizando nos momentos mais e menos doces, pela
oportunidade de renovação e pelo progresso que opera em minha vida. A construção do meu
universo passa por vocês.
RESUMO
The paper analyzes the governance and administrative planning, seeking to relate the possible
legal repercussions of these guidelines on access to jobs, employment and public functions in
Brazil. The search for the juridical foundations responsible for the framework of access to the
national public authorities came through the interdisciplinary reflections extracted from the
portraits of Brazil, from the intrasystemic critique, based on the normative dimension of the
1988 Constitution, from the dialogue with the Science of Administration and the European
legal administrative doctrine, as well as the diagnosis of state activities, obtained from
repeated judicial decisions, data from the Minas Gerais Public Prosecutor's Office, the Federal
Audit Court and government websites. The connection between patrimonialism and poverty
in Brazil was punctuated in the research, bringing to the fore the objectives of the Brazilian
Republic, which are characterized as legal principles that impose governance and state
planning. The study advanced in the field of interdisciplinarity and in the dialogue of the
internal sources of Law, recognizing the fundamental normative dimension of the governance
from which the legal character of the administrative planning, its corollary, was also
extracted. To the conclusion of the existence of the fundamental right to governance or to
good administration and the right to the administrative planning was added, finally, the
examination of the consequences produced by such norms in the access to the personnel of the
Public Administration. It was concluded that governance and planning effectively shape and
discipline the admission to positions, jobs and functions, as general requirements for the
validity of the State's performance in such cases.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 17
5 GOVERNANÇA .................................................................................................................. 79
5.1 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E AS CONCEPÇÕES POLISSÊMICAS DE
GOVERNANÇA ..................................................................................................................... 79
5.2 GOVERNANÇA CORPORATIVA ................................................................................ 88
5.3 GOVERNANÇA PÚBLICA E SUA DIMENSÃO NORMATIVA .............................. 92
1 INTRODUÇÃO
1
Os retratos do Brasil identificam-se com as obras artísticas, antropológicas, históricas, econômicas e
sociológicas responsáveis pela procura da identificação nacional e de traços particulares de formação, surgindo
para esta pesquisa como assunto central na discussão dos contornos do Estado brasileiro contemporâneo.
18
sem a visão maior do direito fundamental à governança, que reúne o feixe de direitos
imbricados nas concepções de Administração Pública burocrática e gerencial, conforme o
paradigma administrativo eclético da Constituição.
O planejamento estratégico, tático e operacional são conceitos da Ciência da
Administração presentes na ordem jurídica brasileira, que expressam o conteúdo do direito ao
planejamento administrativo, traduzido na imposição do agir estatal planejador geral,
intermediário e detalhado.
Com isso, as ações, atividades, projetos administrativos inerentes à concretização dos
atos vinculados, dos atos decorrentes do poder discricionário e das relações jurídicas da
Administração encontram-se subordinadas ao planejamento.
O acesso a cargos, empregos e funções públicas, finalmente, é tratado no sétimo
capítulo. Inicia-se com o concurso público, que é regra geral constitucional. Enfrenta-se o
atual panorama caótico do ingresso de pessoal na máquina do Estado e nas funções públicas
em sentido amplo.
Estabelece-se a conceituação de cargos, empregos e funções públicas. São trazidas as
exceções constitucionais ao concurso público, incluindo-se, nesse ponto, o exame das
terceirizações e das parcerias com o Terceiro Setor.
Detido enfoque nas contratações temporárias e nos cargos em comissão existe pelo
impacto que o regime especial ainda hoje produz no acesso ao quadro de pessoal, bem como
pela importância estratégica dos cargos de chefia e direção numa Administração Pública
eficiente.
Os requisitos gerais e especiais de validade de formas de acesso a quadro de pessoal
são objeto de reflexão, inclusive na crítica estabelecida à decisão paradigmática do STF em
matéria de contratação temporária (RE 658026/MG), ao misturar requisitos gerais e
específicos na fundamentação do acórdão.
O desenvolvimento do sétimo capítulo permite a discussão dos problemas centrais
desta pesquisa pela conexão verificada entre governança, planejamento, formação do quadro
de pessoal lato sensu, objetivos constitucionais da República e efetiva prestação dos serviços
públicos essenciais.
Ao longo dos capítulos, a dissertação apresenta respostas parciais e conclusões
pontuais que, entrelaçadas, tendem a esquadrinhar os problemas lançados, que repercutem no
cotidiano administrativo brasileiro e na detecção da validade do agir estatal.
23
2 METODOLOGIA DA PESQUISA
2
“Tales (623-546 a.C., aproximadamente) costuma ser considerado o primeiro pensador grego, ‘o pai da
filosofia’ […] Procurando fugir das antigas explicações mitológicas sobre a criação do mundo, Tales queria
descobrir um elemento físico que fosse constante em todas as coisas. Algo que fosse o princípio unificador de
todos os seres. Inspirando-se provavelmente em concepções egípcias, acrescidas de suas próprias observações
da vida animal e vegetal, concluiu que a água é a substância primordial, a origem única de todas as coisas.”
(COTRIM, 2000, p. 78). A água era o elemento primordial (arqué ou arché) de Tales de Mileto.
3
“[…] o estudo do fenômeno da pós-modernidade tem se enriquecido, nas diversas áreas do conhecimento,
devido às rápidas mudanças que se têm processado no âmbito das estruturas sociais. […] O conceito de
modernidade refere-se a um contexto sócio-histórico preciso da cultura ocidental que se inicia, para a maioria
dos teóricos citados, no século XVII, chegando até meados do século XX, com a consolidação de certos
valores, entre eles a crença nas virtudes da razão, responsáveis pela construção de alguns mitos, como a crença
nas virtudes da ciência: a idéia de progresso (com a melhoria progressiva das condições sociais); a concepção
de que a história tem um sentido e a razão deve progressivamente impor sua lei aos acontecimentos; a
convicção de um universalismo dos modelos construídos no Ocidente, entendidos como modelos de referência
e expressão dessa razão; a pressuposição de uma sociedade homogênea e não diferenciada; a ruptura de dois
grandes sistemas normativos (direito e moral/direito e política). […] Quando entram em crise os ideais da
modernidade, ou seja, não são cumpridos alguns dos principais projetos da modernidade por força do próprio
desvirtuamento do capitalismo, segundo entende Boaventura Santos (2000), surge, então, o conceito de pós-
modernidade. Não há um consenso entre os estudiosos quanto à consolidação da ideia de pós-modernidade e
muito menos quanto ao seu provável conteúdo.” (DIAS, 2003, p. 28-30).
24
4
“A base do surgimento de novas formas de compreender o direito é oriunda das mutações sociais globais que
tem ocorrido, não sendo mais possível, inclusive, separar o estudo do direito do estudo dos demais fenômenos
sociais, como apregoaram o positivismo e o normativismo jurídicos, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, em
razão de um movimento de contrução de um objeto próprio de conhecimento da ciência jurídica. […] A
lgitimidade do direito na modernidade assentava na simplificação das estruturas sociais e numa forma de
conhecimento que pressupunha a distinção entre o sujeito (o jurista) e o objeto do conhecimento (as normas
jurídicas).” (DIAS, 2003, p. 28-29).
5
A crise da razão é extensa, atingindo diversas áreas do conhecimento, manifestações artísticas e estéticas.
Morris Berman em sua crítica ao racionalismo antropocêntrico explica que “até as vésperas da revolução
científica” havia a “fusão ou identificação do homem com o seu ambiente natural, expressando uma integração
psíquica [...].” Com a modernidade o panorama mudou, durante a maior parte da história da humanidade
“vigorou a concepção de que o mundo era encantado e o homem se sentia como parte integrante dele.” A
“reversão dessa concepção destruiu, no plano psíquico e físico, o sentimento de integração do homem em
relação à natureza [...].” A crise da razão parece apontar para a urgente invenção de alguma forma de
“reencantamento” (BERMAN apud COTRIM, 2002, p. 20). Em sentido harmonioso, Philippe Nemo aduz a
morte do ateísmo moderno, pela incapacidade momentânea de as humanidades oferecerem um sentido para a
existência humana, pondo-se fim ao niilismo, outro produto triste da cultura europeia dos últimos séculos
(2012). Sobre o tema, igualmente, Adauto Novaes, organizou e publicou “A Crise da Razão” (2006),
dimensionado a sua amplitude multidisciplinar.
6
As técnicas de argumentação jurídica, que buscam assegurar a racionalidade do discurso desenvolvido pelo
intérprete, são influenciadas pela sinergia dos métodos de interpretação e não podem desconsiderar os
balizamentos oferecidos pelos significantes interpretados. A argumentação jurídica é essencialmente metódica
e os métodos de argumentação nitidamente argumentativos: sua sinergia está teleologicamente comprometida
com o direcionamento dos juízos valorativos e decisórios realizados pelo intérprete, justificando-os. A
liberdade decisória do intérprete é diretamente proporcional à intensidade das conflitualidades intrínsecas. O
resultado dessa atividade, por sua vez, somente é suscetível a um controle de racionalidade, não se ajustando a
rígidos referenciais de correção argumentativa e substancial. [...] A conflitualidade intrínseca é um incidente,
efetivo ou potencial, que surge no curso do processo de interpretação e reflete a oposição entre grandezas
argumentativamente relevantes, passíveis de influir no delineamento de uma pluralidade de significados
reconduzíveis ao mesmo enunciado linguístico. (GARCIA, 2015, p. 561 e 572).
25
A filosofia da ciência é [...] filosofia aberta, pois seus princípios não são intocáveis e
suas verdades não são totais e acabadas. Pensar cientificamente é colocar-se no
campo epistemológico intermediário entre teoria e prática, entre matemática e
experiência. Conhecer cientificamente uma lei natural é conhece-la simultaneamente
como fenômeno e como número [...]. (BACHELARD apud MOREIRA; MASSONI,
2011, p. 68).
7
O espectro epistemológico proposto por Gaston Bachelard (2015, p. 140) evidencia tal compreensão:
Idealismo
↑
Convencionalismo
↑
Formalismo
↑
Racionalismo Aplicado e Materialismo Técnico
↓
Positivismo
↓
Empirismo
↓
Realismo
26
Não se quer dizer com isto que a descrença na verdade é de tal forma aceita que os
métodos perderam a razão de ser8. Ao revés, os métodos, independentemente da nomenclatura
utilizada9, são realidade no processo de formação do conhecimento, observando-se o papel
relevante do controle da racionalidade, que funciona como juízo de adequação das formas
eleitas e dos resultados obtidos, a inibir visões herméticas ou totalizantes.
Nessa linha argumentativa, faz-se, em parte, a defesa dos métodos indutivo e dedutivo
no processo de identificação e reconhecimento da governança, submetidos ao controle
racional e ao arcabouço teórico dogmático.
O método indutivo (GUSTIN; DIAS, 2006, p. 22) consiste no procedimento lógico
que utiliza premissas particulares (desorganização de repartições públicas e excessivo número
de cargos em comissão, por exemplo) para atingir uma conclusão geral ou universal (o direito
à governança), sendo que, especialmente nas ciências sociais aplicadas, longe está de
representar modelo desqualificado, não significando a simplória extração de conceitos da
experiência ou da realidade externa.
Apesar das críticas (POPPER, 2013, p. 27-41), trata-se de método ainda hoje utilizado,
e seu reconhecimento científico é aferido por meio do confronto entre o juízo de controle
racional e as inferências indutivas, in verbis:
Não se pode ignorar que no campo jurídico brasileiro ainda prevalece a ideia da
abordagem metodológica que pressupõe o conhecimento como uma verdade pronta
e acabada, com base em enfoques positivistas, os quais colocam o sujeito fora do
sistema de referência, sendo o conhecimento, portanto, mera descrição da realidade.
Veremos que o conhecimento produzido de acordo com estes referenciais
negligencia o fato de o conhecimento jurídico não ser um campo isolado,
independente das outras áreas de conhecimento.
Por isso, fortalecer a pesquisa no campo do saber jurídico passa necessariamente
pela adoção de uma visão do Direito e da Ciência Jurídica como espaços de
apreensão do real de modo relacional, como fala Bourdieu, que necessitam de
epistemologias abertas e de metodologias multidisciplinares que possibilitam
identificar que o objeto não está isolado de um conjunto de relações, da história e da
produção social dos homens. Uma virada epistemológica do habitus científico, nos
dizeres de Fonseca (2007), consistiria na crítica epistemológica da Ciência Jurídica e
dos princípios racionais e dos métodos dedutivos que orientam a produção de
conhecimento deste campo. (FONSECA; CIARALLO; CRUZ, 2011, p. 3977).
A indução, mesmo quando não formula a regra geral, tem importante faceta: permite a
produção indireta do conhecimento através da detecção de anomalias do sistema. Transforma
o conhecimento de regras gerais em alternativa dedutiva. Quando é experimentada a anomalia
(patrimonialismo na Administração Pública), por dedução é factível a produção do
conhecimento também.
As críticas ao método indutivo hoje são passíveis de resposta calcada na concepção
ora desenvolvida: o conhecimento produzido na ciência jurídica não pode ser hermético,
isolado de outras áreas afins do saber, cabendo à pesquisa científica a nova visão do Direito,
entendido como espaço de apreensão do real, invariavelmente cercado pela vigilância
epistemológica.
A dedução, na forma simples, é método lógico que exprime raciocínio silogístico,
condicionando a veracidade de uma conclusão ao acerto das premissas anteriores (POPPER,
2013, p. 27-41).
Esta pesquisa desenvolve também a lógica dedutiva, como, exemplificativamente, na
extração lógica ordinária da essência normativa da governança e do planejamento
administrativo, pelo fato de representarem antecedentes ou alicerces da eficiência
administrativa, no contexto do Estado Democrático de Direito brasileiro, repercutindo no
28
10
Na visão de Gadamer, “a virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem” (GADAMER,
2016, p. 497-612) viabiliza o entendimento de que a subsunção, tipicamente positivista, calcada na idéia do
rigorismo metodológico estrito, estaria superada. Apesar de o título de sua obra trazer referência a “método”, a
construção do pensamento, embora distanciada da concepção anarco-epistemológica, caminha ao largo da
metodologia tradicional. Nessa linha, a hermenêutica jurídica transforma-se em “[...] processo que se
caracteriza por sua circularidade, pois tem o seu começo na pré-compreensão que o intérprete tem do texto,
enquanto depois aquela retorna já modificada. Isso é o “círculo hermenêutico”. Essa ideia da circularidade da
compreensão foi originariamente desenvolvida por Schleiermacher para expressar a relação recíproca entre o
singular e o todo, entre o particular e o geral. Um texto é entendido na sua totalidade a partir da compreensão
de cada uma das suas partes, as que, por sua vez, geram uma nova visão do todo, porém, são só dois momentos
de um único acontecer.” (LOPES, 2000, p. 106).
29
Neste item informa-se, em breves linhas, as razões do modelo teórico escolhido para o
desenvolvimento da argumentação jurídica da pesquisa, com a finalidade de se estabelecer a
coerência metodológica e a harmonia epistemológica da opção.
De plano, evidencia-se no trabalho o afastamento do positivismo jurídico, como se
extrai das considerações já estabelecidas acima.
Nada obstante, algumas observações prévias são relevantes, de modo a facilitar a
transmissão das ideias.
O positivismo jurídico, expressão representativa de inúmeras correntes de pensamento,
que abrangem matizes diversos do positivismo legalista, científico, sociológico, crítico,
jurídico empírico, lógico-jurídico, conceitual, estadista, institucionalista e legal racionalista
(MACHADO, 2008, p. 330), na presente realidade constitucional, possibilita ao intérprete
exames substantivos de legalidade, viabilizando a incorporação de juízos axiológicos como
critério de validação do Direito, bem como a construção de linhas argumentativas permeadas
pela moral, o que se traduz no denominado positivismo jurídico inclusivo11, detectável no
pós-escrito de Herbert L. A. Hart (2012, p. 307-356).
O positivismo inclusivo não adota o mecanicismo decorrente da estrita lógica jurídica
silogística, notadamente após o advento das Constituições democráticas promulgadas após 2ª
11
Existem questionamentos relativos à dicotomia “positivismo exclusivo x inclusivo”. Ronald Dworkin, na obra
“A Justiça de Toga”, sustenta que o positivismo exclusivo “[...] insiste na tradicional tese positivista de que
aquilo que o direito exige ou proíbe não pode jamais depender de qualquer critério moral. Coleman chama o
professor Joseph Raz, de Oxford, de principal patrocinador contemporâneo do positivismo exclusivo, e discute
as opiniões de Raz com certa profundidade. A segunda modalidade de positivismo é o positivismo “inclusivo”,
que permite a introdução de critérios morais no texto para identificar o direito válido, mas somente se a
comunidade jurídica tiver adotado uma convenção que assim o determine. Coleman responde pela segunda
modalidade, e dedica boa parte de seu livro à afirmação de que sua versão do positivismo inclusivo é superior
a qualquer forma de positivismo exclusivo, e muitíssimo superior a minha interpretação alternativa e não
positivista do direito. [...] Afirmarei que os argumentos que Coleman propõe e os que ele atribui a outros
positivistas não são bem sucedidos. O positivismo exclusivo, pelo menos na versão de Raz, é dogma
ptolemaico: apresenta concepções artificiais de direito e autoridade cujo único valor parece estar na tentativa
de manter o positivismo vivo a qualquer preço. O positivismo inclusivo é pior: não é positivismo nenhum, mas
apenas uma tentativa de manter o termo “positivismo” para uma concepção de direito e da prática jurídica que
é totalmente estranha ao positivismo.” (DWORKIN, 2016, p. 266-267).
30
12
“Gustav Radbruch was a German legal philosopher who shared the ‘positivist’ doctrine [that law and morality
are in principle distinct] until the Nazi tyranny. Prior to his recantation of positivism, he held that resistance to
law was a matter for the personal conscience, to be thought out by individual as a moral problem and the
validity of a law could not be disproved by showing that its requirements were morally evil or even by
showing that the effect of compliance with the law would be more evil than the effect of disobedience.
Radbruch, however, had concluded from the ease with which the Nazi regime had exploited subservience to
mere law – or expressed, as he thought, in the positivist slogan law is law- and from the failure of the German
legal profession to protest against the enormities witch they were required to perpetrate in the name of law,
that positivism (meaning here the insistence on the separation of law as it is from law as it ought to be) had
power fully contributed to the horrors. After the war Radbruch’s conception of law as containing in itself the
essential moral principle of humanitarianism was applied in practice by German courts in certain cases in
which local war criminals spies, aind informers under the Nazi regime were punished.” (ARTHUR; SHAW,
2005, p. 32).
13
Norbert Hoerster, ao lançar, em 1989, a obra “Em Defesa do Positivismo Jurídico” (2009), foi um dos
precursores, segundo Marcelo Campos Galuppo (2014), desse retorno aos paradigmas positivistas, que se
mostravam em desuso pelos pesquisadores do Direito. No cenário brasileiro, a título de exemplo, Eros Roberto
Grau abraçou o positivismo jurídico na obra “Por que tenho medo dos Juízes: (a interpretação/aplicação do
direito e os princípios)”, veja-se: “Retorno ao que afirmei [...] o plano do dever-ser é um espelho, um reflexo
do ser. A estabilidade, o equilíbrio, a regularidade, a normalidade do sistema jurídico reclamam, em condições
extremas, além da inclusão da exceção, a exclusão de outras situações ao seu alcance. Uma e outra – inclusão e
exclusão – consubstanciam transgressões. São elas contudo, que conferem plasticidade ao sistema de direito
positivo burguês. Embora se deva admitir que isso, em última instância, tem de ser mesmo assim, as coisas
resultam terrivelmente perigosas quando juízes e tribunais a nossa volta danam-se a decidir a partir de valores,
afastando-se do direito positivo. Relembro, recorrentemente, a observação de Franz Neuman [1942:441-442]:
‘um sistema legal que construa os elementos básicos de suas normas com princípios gerais ou padrões
jurídicos de conduta não é senão um disfarce que oculta medidas individuais’. O modo de pensar criticamente
me conduz convence-me de que o modo de ser dos juristas, juízes e tribunais de hoje – endeusando princípios,
a ponto de justificar, em nome da Justiça, uma quase discricionariedade judicial – compõe-se entre os mais
bem-acabados mecanismos de legitimação do modo de produção social capitalista. Decidir em função de
princípios é mais justo, encanta, fascina e legitima o modo de produção social. Aquela coisa weberiana da
certeza e segurança jurídica sofre, então, atenuações; evidentemente, no entanto, apenas até o ponto em que
não venha a comprometer o sistema.” (GRAU, 2016, p. 140).
14
O século XXI tem exposto, além do retorno de concepções positivistas, a continuidade do debate entre
“procedimentalistas” e “substacialistas” nas correntes teóricas que buscam superar o positivismo, proliferando-
se em todas as direções as críticas ao pamprincipiologismo, aqui compreendido como a utilização acrítica e/ou
autoritária dos princípios jurídicos como fonte do decisionismo, sendo defendida pelos substancialistas a
ressignificação da ideia de Constituição Dirigente. (STRECK, 2014, p. 126).
Cabe também o registro dos posicionamentos de Álvaro Ricardo de Souza Cruz, que defende uma visão
crítico-deliberativa e fenomenológica do Direito, em superação dos paradigmas jusnaturalistas e positivistas
(2013), e de Ricardo Sanín Restrepo, que trabalha numa perspectiva crítica radical, centrando-se nas ideias de
encriptação da ordem jurídica, de povo oculto (decorrente da prevalência do liberalismo sobre a democracia
31
real) e dos simulacros nos Estados Constitucionais Democráticos clássicos (2013). Ambos, na visão eclética
proposta, contribuem para esta pesquisa, mas não representam os marcos teóricos especificados no item 2.3.
15
Como se depreende das considerações do positivista Luigi Ferrajoli, ao prefaciar a obra Jusnaturalismo e
Positivismo Jurídico, de Norberto Bobbio (2016, p. 7-24), são reconhecidas aporias na gênese positivista: “[...]
Na presença de constituições rígidas, não é mais sustentável a tese kelsiana [...] da equivalência entre validade
e existência das normas jurídicas. A validade das leis, em particular, não depende mais, como no antigo Estado
legislativo de direito, apenas das formas sobre a sua formação, mas depende também da substância das normas
de lei produzidas [...] De modo que pode muito bem haver normas inválidas que existem por força de suas
formas, mas mostram-se ilegítimas por causa dos seus conteúdos. [...] insustentabilidade do princípio da total
ausência de valoração na abordagem científica do estudo do direito [...] impraticável após a mudança de
paradigma do direito [...] que aconteceu com as constituições rígidas do segundo pós-guerra, as quais
positivaram, através da estipulação dos direitos fundamentais, o “dever ser” jurídico do próprio direito. [...] A
ciência jurídica acaba investida, em relação ao direito positivo, de um papel não mais puramente descritivo,
mas também crítico e projetual, ao qual não pode subtrair-se, porque ditado pela própria estrutura do seu
objeto de pesquisa. Antinomias e lacunas estruturais são, de fato, vícios jurídicos que impõem uma crítica
jurídica de dentro do próprio direito, e não simplesmente a crítica política externa a ele.” (BOBBIO, 2016, p.
20-23).
32
nem mesmo no campo das ciências da natureza, a ideia de precisão e certeza na produção do
conhecimento científico prevaleceu, conforme pontua Baracho Júnior:
Opta-se, nesse contexto crítico, pelo modelo do pós-positivismo16 cônscio dos riscos
da instituição autoritária de um “Estado Principiológico”17, fenômeno potencializado, no
Brasil, com o advento da Nova República e da Constituição de 1988.
Submetidos à euforia social da redemocratização18, muitos aplicadores do Direito
nacional, guiados pelos ventos pós-positivistas, alimentaram-se da fé no
pamprincipiologismo19.
A normatividade dos princípios conferiu impulso à esperança, por vezes ingênua, da
plena realização do Direito por meio dos textos normativos abertos, como solução pronta para
a crise social, o que num país com dificuldades de concretizar o piso vital mínimo soava
16
“[...] o pós-positivismo jurídico constitui, em linhas gerais, um novo paradigma no plano da teoria jurídica,
que objetiva contestar as insuficiências, as aporias e as limitações do juspositivismo formalista tradicional.
Afirmam que próprio termo ‘pós-positivismo’, que também é conhecido como não-positivismo ou não-
positivismo principiológico, é detentor de um status provisório e genérico na sua categoria terminológica,
tanto que não é pacífico o entendimento sobre o emprego dessa expressão, o que ocorre até entre os autores
que partilham das suas teses axiais. Esclarecem, ainda, que as suas bases filosóficas são ecléticas e compõem
uma constelação de autores, os quais mantêm ponto de contato com as concepções tardias de Gustav Radbruch
e passam pelas influências da teoria da justiça de John Raws, além de incorporarem elementos da filosofia
hermenêutica e as bases da teoria do discurso de Habermas.” (ALMEIDA, 2008, p. 211).
17
“É até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional vive, hoje, a euforia do se convencionou chamar
de Estado Principiológico. Importa ressaltar, no entanto, que notáveis exceções confirmam a regra de que a
euforia do novo terminou por acarretar alguns exageros e problemas teóricos que têm inibido a própria
efetividade do ordenamento jurídico.” (ÁVILA, 2015, p. 43).
18
“Estou cansado de ser enganado/Papo furado e demagogia/Não vão encher (o quê)/A minha barriga vazia/
Espero da Constituinte/ Em minha mesa muito pão/ Uma poupança cheia de cruzados/ E um carnaval com
muita paz no coração (CAPRICHOSOS DE PILARES 1987, 2017).
19
“Não se deve olvidar que o direito constitucional tem sido relegado a um plano secundário em nosso País.
Essa afirmação pode parecer contraditória se examinarmos a quantidade de obras, dissertações e teses escritas
sobre essa temática. Com efeito, de um lado, há um fenômeno que pode ser denominado de ‘banalização da
Constituição’, sendo o pamprincipiologismo um dos sintomas. De outro, está a velha dogmática jurídica, refém
do sentido comum teórico dos juristas, no interior do qual o direito continua a ser visto como uma mera
instrumentalidade. Há uma cultura manualesca que sustenta velhas práticas, a ponto de ainda não termos
conseguido superar os princípios gerais do direito, axiomas herdados do positivismo do século XIX. O próprio
Supremo Tribunal Federal ainda lança mão de princípios como o pas de nullité sans grief. Ou seja, em pleno
paradigma do Constitucionalismo Contemporâneo, os princípios constitucionais ainda são vistos como uma
mera continuidade do ancien régime.” (STRECK, 2014, p. 931).
Em sentido congruente, Carlos Ari Sundfeld, em “Direito Administrativo para céticos”, critica a arbitrariedade
de muitos intérpretes: “Será que esses hiperprincípios vêm mesmo do ordenamento?” (SUNDFELD, 2014, p.
197).
33
A questão central que está no cerne do debate acadêmico deve ser colocada da
seguinte maneira. Se deixarmos as decisões de princípio exigidas pela Constituição a
cargo dos juízes, e não do povo, estaremos agindo dentro do espírito da legalidade,
tanto quanto nossas instituições o permitam, mas correremos o risco de que os juízes
venham a fazer as escolhas erradas. [...]
Não precisamos exagerar o perigo. As decisões realmente impopulares
serão corroídas porque a adesão pública será relutante [...]
Ainda assim, devemos conceber nossas instituições para reduzir o risco de
erro, tanto quanto possível. [...]
O direito constitucional não poderá fazer um verdadeiro progresso enquanto
não isolar o problema dos direitos contra o Estado e tornar esse problema parte da
sua própria agenda. Isso conta como um argumento em favor de uma fusão do
direito constitucional e da teoria moral, uma relação que, inacreditavelmente, ainda
está por ser estabelecida. (DWORKIN, 2016, p. 232-233).
20
“[…] a ideia matriz de força normativa da Constituição e do constitucionalismo dirigente […] perde terreno
dia a dia, a ponto de autores como J. J. Gomes Canotilho, antes corifeu das teses que seduziram inúmeros
juristas, declarar, agora, que o constitucionalismo dirigente morreu, questão, alías, que deve ser devidamente
contextualizada, para evitar mal-entendidos e críticas injustas ao mestre de Coimbra.
Com efeito, em sua primeira fase (década de 80, a partir de obras como Constituição dirigente e vinculação do
34
[…] uma teoria jurídica que rejeita elementos avaliativos, assume, ainda que
indiretamente, que o raciocínio prático poderia ser tanto para um lado como para o
outro. Esse silêncio tem implicações morais, ainda que não os almeje. Logo, o
positivismo jurídico não coloca analiticamente a Filosofia Moral em seu devido
lugar, pois, como já dissemos acima, ainda que se esconda, este representa uma
perspectiva moral. Ademais, identificar o direito não é uma tarefa somente possível
pela metodologia positivista, não estamos negando a sua relevância, mas apenas a
sua exclusividade. (MATOS; STRECK, 2017).
legislador), que aqui se pode denominar de Canotilho I, o professor coimbrano chegou a afirmar que já não se
podia falar de normas (textos jurídicos) programáticas e, portanto, as assim denominadas “normas
programáticas” não são o que lhe assinalava a doutrina tradicional: “simples programas”, “exortações morais”,
“declarações”, “sentenças políticas” etc., juridicamente desprovidas de qualquer vinculariedade, e, sim, que às
normas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes
preceitos da Constituição. […]
Essa posição de Canotilho vem sendo gradativamente revista, afirmando o autor, por exemplo, que “confiar no
direito o encargo de regular – e de regular autoritária e intervencionisticamente – equivale a desconhecer
outras formas de direcção política que vão desde os modelos regulativos típicos da subsidiariedade, isto é,
modelos de autodirecção social estatalmente garantida, até aos modelos neocorporativos, passando pelas
formas de delegação conducente a regulações descentradas e descentralizadas”. […]
A Constituição dirigente lidava com fins, tarefas, encargos, missões, valores. Ao contrário disso, hoje se
argumenta racionalmente em termos de paradoxos, de dilemas e de teoremas. A ideia dirigente compatibiliza-
se com uma lógica material de valores, mas coaduna-se pouco com a razão lógica dos discrusos analíticos.
Assim, acentua que a teoria constitucional deve levar em conta que as sociedades modernas pluralistas
estruturam-se em termos de complexidade que, longe de assentar na intencionalidade construtivista da política,
radica antes na auto-organização. Esta mesma complexidade gera sistemas diferenciados e códigos funcionais
diferenciados, sendo irrealista tentar, através de um código unitarizante dos vários sistemas sociais, dirigir
constitucionalmente a sociedade.
Canotilho conclui o aludido prefácio dizendo que “a Constituição dirigente está morta se o dirigismo
constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, por si só, operar
transformações emancipatórias. Também suportará impulsos tanáticos qualquer texto constitucional dirigente
introvertidamente vergado sobre si próprio e alheio aos processos de abertura do Direito constitucional ao
Direito internacional e os direitos supranacionais.” (STRECK, 2014, p. 126-129).
21
Segundo a doutrina de José Adércio Leite Sampaio, as inúmeras concepções sobre Constituição ora acentuam
a) a “dimensão normativa”, que abrange o ângulo normativo do processo político ou a Constituição
democrático-deliberativa; a Constituição como processo da razão pública; a Constituição dualista; a
Constituição como garantia do devido processo político; a Constituição discursiva; a Constituição como
cultura e processo público; a Constituição aberta ao tempo; o aspecto moral da normatividade ou a
Constituição principiológica e a Constituição dirigente b) a “dimensão real” da Constituição, que traz os
paradigmas da Constituição da integração ou o hegelianismo constitucional; a Constituição total; a
35
com aberturas de espaço, de tempo, do mundo dos sentidos e dos projetos de vida presentes
nas Constituições, in verbis:
24
Por mais de uma razão determinada disposição constitucional deixa de ser cumprida. Em certos casos, ela se
apresenta desde o primeiro momento irrealizável. De outras vezes, o próprio poder constituído impede sua
concretização, por contrariar-lhe o interesse político. E, ainda, um preceito constitucional frustra-se em sua
realização por obstáculos opostos por injunções de interesses de segmentos econômica e politicamente
influentes [...] A Constituição transforma-se, assim, em um mito, um mero instrumento de dominação
ideológica, repleta de promessas que não serão honradas [...] Captando esta realidade com amarga ironia,
afirmou Celso Antônio Bandeira de Mello que, se um ser extraterrestre, dotado de inteligência, aportasse no
Brasil e decidisse desvendar os usos e costumes nativos à luz da Constituição de 1969, especialmente no título
‘Da Ordem Econômica e Social’, ficaria surpreso e embevecido com o elevado padrão de civilização que
logramos erigir (BARROSO, 2003, p. 61-64).
37
Regina Lírio do Valle e Direito ao Planejamento, de Juliano Ribeiro Santos Veloso sinalizam
os fundamentos básicos da construção argumentativa desta dissertação.
39
25
“[...] destaca-se, dentre as diversas tentativas de recuperar a função integradora do Direito, uma aposta na força
legitimadora dos discursos de justificação e de aplicação das normas jurídicas. Além dos discursos universais
de justificação das normas abstratas e da garantia da certeza do Direito, é de se salientar a importância de uma
aplicação específica das normas gerais que garanta e faça justiça ao caráter de unicidade e especificidade de
cada caso concreto, superando-se ainda propostas interpretativas solitárias [...] (BARACHO JÚNIOR, 2008, p.
36-37).
40
[...] a ciência não comporta mais uma atitude de mera descrição ou de explicação
superficial de seus fenômenos: sua atitude há de ser proativa no tocante aos
fenômenos, buscando nestas suas potencialidades preditivas, a dizer, indicando as
ocorrências possíveis dentro de um determinado contexto, passando-se a falar dela
como empreendimento ou processo criativo [...] de algo estático, inabalável,
inquestionável, expressões tipicamente dogmáticas, passa-se a ter, como
característica fundamental da ciência, a falseabilidade. Como afirma João Silva
(2009, p. 169), ― dogma é produto do espírito do Homem; ‘falsificabilidade’ é o
que busca a ciência quanto às leis do mundo”. E isso altera, profundamente, o
conceito de ciência. (BELCHIOR, 2015, p. 44-45).
26
“[…] a crença de que uma ordem constitucional efetiva, fundada na legitimidade do poder político, na atuação
construtiva dos Tribunais e na participação popular organizada e esclarecida, poderá conduzir, no início dessa
nova era, a uma sociedade contemporânea, aberta e justa na partilha das riquezas e das oportunidades.”
(BARROSO, 2003, p. 282).
41
século passado.
Quando se estuda a governança, o planejamento administrativo e os cargos, empregos
ou funções públicas, naturalmente desvela-se a utilidade do conhecimento dos traços
brasileiros que influenciam a formação estatal e a própria essência da máquina pública, o que
vai além, como visto, das normas jurídicas abstratamente consideradas.
A gradual construção da identidade do povo (MÜLLER, 2013) é o ponto que importa
para a delimitação de um constitucionalismo brasileiro capaz de apreender as dimensões, os
matizes e as peculiaridades nacionais27.
A abertura da ciência jurídica permite, diante da essência interdisciplinar e da
inexistência de modelo teórico absoluto, que a Constituição passe “a ser vista como uma fonte
insuscetível de ser acessada sem sensibilidade” (GARCIA, 2015, p. 4). Nesse sentido, é a
doutrina de Steven D. Smith, compatível com o enfoque nacional ora estabelecido:
27
“[...] disse eu em setembro de 1996 aos estudantes de pós-graduação em Fortaleza, ouve-se hoje na Alemanha
Oriental muitos alemães, muitos dos quais estão justamente decepcionados com os novos rumos de
desenvolvimento da sociedade e da política, afirmar com amargura: ‘Nós fomos o povo!’
Nesse momento um estudante pediu a palavra. Ele disse: ‘O nosso problema no Brasil deveria ser formulado
então nos seguintes termos: ‘Nós nunca fomos um povo’. [...]” (MÜLLER, 2013, p. 117).
28
[...] the Constitution is less a legal instrument than a “repositor of the ‘glimpses’, ‘memories’ and ‘dreams’ of
the culture’s moral ambitions.” Progressive constitutional faith must rest primarily on Fourteenth Amendment,
which West regards as “a source of moral insight and a vision of the just society [...]. This understanding
transforms the constitutional text from a legal document – one whose “existence frustrates more than
facilitates normative debate – to a far less authoritarian but more facilitative text. The facilitative Constituition
is valuable primarily as a “source of insight”; it guides us in much the same way as “the writings of Aristotle,
John Stuart Mill, John Rawls, and Roberto Unger.
42
“Os donos do poder – formação do patronato político brasileiro”, cuja primeira edição
é datada de 1958, representa um clássico sociopolítico atual, que condensa a experiência
jurídica do autor Raymundo Faoro com incursões na história do Brasil colonial, imperial e
republicano.
Trata-se de obra sem pretensões estéticas, com preocupação científica, cujo objetivo
maior é retratar a impressão (ou tese) do autor sobre o Brasil, com inspiração weberiana, em
que “o distanciamento do Estado dos interesses da nação reflete o distanciamento do
estamento dos interesses do restante da sociedade” e o “patrimonialismo, estamento e
capitalismo politicamente orientado [...] são conceitos-chave e inter-relacionados”
(CAMPANTE, 2003, p. 155).
Ao traçar o perfil do Estado teleologicamente descolado da sociedade, Raymundo
Faoro sugere que a satisfação de interesses corporativos e estamentais colocam-se como
obstáculos à saúde democrática e institucional do País, propiciando inúmeros fenômenos
mantenedores do atraso e das ofensas ao piso vital mínimo, entre eles o distorcido acesso a
cargos públicos objeto desta pesquisa.
São estabelecidas diversas premissas na obra que auxiliam a percepção do
entendimento de Faoro: a) a compreensão do Brasil passa pelo Império Português, antes
mesmo da expansão marítima, quando algumas circunstâncias, como o fim da ocupação
moura, formam precocemente um Estado português com matiz ‘moderno’, desprovido,
entretanto, da experiência feudal, típica da Idade Média; b) transportada essa realidade para o
Brasil colônia, também não se respirou, em momento algum, o modelo feudal, vivenciando-se
imediatamente o mercantilismo e, depois, o capitalismo em sentido estrito; c) a ausência dos
corpos intermediários (feudos), no jogo de esferas de poder, trouxe a ocupação de espaço por
uma categoria do Estado lusitano (peritos em lei e técnicas de mando, auxiliares do Rei), que
foi o embrião do estamento burocrático; d) no modelo de Max Weber, os estamentos têm a
característica de forma de associação no corpo da sociedade, como ocorre na Índia. Nas
condições históricas interpretadas por Faoro, o estamento burocrático diferencia-se por
43
brasileira, segundo a visão ora firmada, passa pelo enfrentamento da distorcida dimensão
administrativa e burocrática a serviço dos interesses pessoais e/ou corporativos, que utilizam a
Administração Pública para perpetuação do estamento e manutenção dos privilégios,
característicos do patrimonialismo nacional, em afronta aos objetivos da República previstos
na Constituição.
O papel da sociedade civil, na cessação desse roteiro iníquo, é primordial, sem olvidar,
entretanto, que a eficácia do controle pela sociedade hipercomplexa atual passa por
ressignificação dos institutos do Direito Público29, cabendo ao intérprete aferir os pontos de
partida constitucionais a serem seguidos, bem como debater os agudos problemas do caráter
estritamente alegórico ou simbólico das normas jurídicas.
O enfraquecimento da “máquina estatal de favores privados” e a concretização dos
direitos fundamentais após 1988 ainda não foram equacionados satisfatoriamente, a indicar,
diante da imutabilidade histórica, o caráter atual da obra no debate jurídico:
29
Gregório Assagra de Almeida sustenta, inclusive, a superação desta summa divisio: “A summa divisio Direito
Público e Direito Privado, herança do Direito Romano, não se sustenta no Estado Democrático de Direito
delineado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [...] A summa divisio, implantada na Lei
Fundamental brasileira de 1988, é a Direito Coletivo e Direito Individual (Título II, Capitulo I, da CF/88).
[...] A summa divisio clássica Direito Público e Direito Privado fundamenta-se numa visão equivocada em
torno do Direito, incompatível com o Estado Democrático de Direito, pois pressupõe uma situação de
desigualdade entre o Poder Público e os particulares – de um lado estaria o Poder Público, revestido de
imperium, e de outro, os particulares, que ocupariam uma posição inferior e subordinada. Pergunta-se onde
ficaria o Direito Coletivo dentro do contexto clássico da summa divisio. Essa divisão é própria de um Estado
de espírito autoritário, incompatível com as conquistas e as transformações implantadas no Brasil com a
Magna Carta Constitucional de 1988. [...] A própria Constituição consagra expressamente o princípio da
aplicabilidade dos direitos e garantias constitucionais fundamentais (§1º do art. 5º da CF/88) e o seu
desrespeito no plano do Direito Coletivo tem ocorrido, em grande parte, devido à visão distorcida do que é
denominado de “Direito Público” e das diretrizes principiológicas construídas a partir de uma visão de Estado
que se situa fora da sociedade e, até certo ponto, muito distante dos seus reais e mais agudos problemas.”
(ALMEIDA, 2008, p. 606-610).
45
30
“Quatro motivos ou temáticas marcam Raízes do Brasil: o sistema colonial português, o patriarcado rural, o
homem “cordial” e as aporias do liberalismo brasileiro. A colonização portuguesa é discutida especialmente
nos capítulos 1 e 2. No capítulo 4, Buarque de Holanda tenta distinguir mais claramente o domínio colonial
português do espanhol, de modo a destacar aquilo que frequentemente se denomina padrão colonial ibérico.
De acordo com este padrão, os espanhóis teriam se esforçado para “vencer e retificar a fantasia caprichosa da
paisagem agreste” em suas colônias. Para Portugal, contudo, “a colônia [seria] simples lugar de passagem,
para o governo como para os súditos”. (COSTA, 2014, p. 833).
46
31
Na perspectiva teórica eclética que orienta o desenvolvimento desta pesquisa, não se refuta a importância das
teorias procedimentalistas, destacando-se apenas que a pluridimensionalidade constitucional permite leituras
não colidentes entre as teses substancialistas e a teoria discursiva de Habermas.
Vale sublinhar, não obstante a advertência de José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, in verbis: “Uma teoria
jurídica deve, entretanto, viabilizar respostas concretas, que possam ser operadas por milhares de profissionais
do direito e cidadãos que, precisando lidar com um fluxo intenso de conflitos não têm formação, aptidão ou
vontade para lidar com propostas excessivamente genéricas. Não faço aqui uma defesa de perspectivas como a
de Richard Posner, nem tampouco a apologia do realismo jurídico ou do direito alternativo. Entretanto, é
importante considerar que uma teoria jurídica deve traçar ao menos horizontes para respostas concretas, pois o
direito é também um sistema que se caracteriza pela coerção, sendo o consenso apenas uma possibilidade.
Não é papel da teoria discursiva do direito trazer respostas concretas para os problemas do direito brasileiro.
Os juristas brasileiros que a estudam, entretanto, têm o dever de oferecer respostas concretas, ou de auxiliar na
busca de tais respostas, as quais, em geral, estão sendo excessivamente modestas.” (BARACHO JÚNIOR,
47
Uma conclusão desse estudo será a percepção de que Raízes do Brasil não foi
sempre símbolo de crítica ao legado ibérico em que depois foi erigido. A consulta à
edição princeps revela uma grande ambiguidade do autor em relação ao passado. A
cifra do parágrafo de abertura desvenda-se, ao correr das páginas, tanto pela
afirmação otimista da identidade cordial quanto pela indagação desassossegada
sobre as condições de implantação da civilidade. O oximoro com que Sérgio
Buarque sintetizou o dilema político de seu livro empregava sintomaticamente,
como verbo, o vocábulo que também designava a forma de sua escrita: tratava-se de
‘ensaiar a organização de nossa desordem’. (FELDMAN, 2016, p. 127).
2015, p. 9).
32
“Em Raízes do Brasil, as possibilidades heurísticas do gênero ensaístico são exploradas ao máximo. A
linguagem plástica escolhida por Sérgio Buarque de Holanda permite converter circunstâncias complexas em
um vocabulário de compreensão geral. Assim, o autor faz uso de dualismos como trabalho e aventura, ou
semeador e ladrilhador, para descrever e tipificar concisamente os padrões abrangentes de conduta. A
propósito, a tensão entre estes dois polos geraria o movimento que levaria ao avanço da história. Neste caso, o
autor recorre, claramente, tanto à metodologia dos tipos ideais de Weber quanto à dialética de Hegel.”
(COSTA, 2014, p. 832-833).
33
“A simpatia à brasileira - o homem simpático de que tanto se fala entre nós, o homem “feio, sim, mas
simpático” e até “ruim ou safado, é verdade, mas muito simpático”; o “homem cordial” a que se referem os Srs.
Ribeiro Couto e Sérgio Buarque de Holanda – essa simpatia e essa cordialidade, transbordam principalmente
do mulato. Não tanto do retraído e pálido como do cor-de-rosa, do marrom, do alaranjado. Ninguém como eles
é tão amável; nem tem um riso tão bom; uma maneira mais cordial de oferecer ao estranho a clássica xicrinha
de café; a casa; os préstimos. Nem modo mais carinhoso de abraçar e de transformar esse rito como já
dissemos orientalmente apolíneo de amizade entre homens em expansão caracteristicamente brasileira,
dionisiacamente mulata, de cordialidade.” (FREYRE, 2013, p. 496).
34
Roberto DaMatta aborda os modos de navegação social do brasileiro, sob a ótica do denominado “jeitinho”,
com características distintas do “homem cordial”, embora ambíguo, de Sérgio Buarque de Holanda.
35
“Em oposição à ética protestante do trabalho constituinte da sociabilidade norte-europeia, Buarque de Holanda
diagnostica nos portugueses uma moral de trabalho pouco desenvolvida, que se ajusta bem “a uma reduzida
capacidade de organização social”. Tal característica seria historicamente condicionada; ela refletiria o fato de
que a ascensão da burguesia portuguesa não havia levado simplesmente à destituição da velha elite, mas sim a
uma existência continuada e parasitária deste grupo. Este déficit na organização social também teria
influenciado o domínio colonial do Brasil. Depois da chegada dos portugueses à costa brasileira, em 1500, a
colonização não teria sido planejada ou pensada: ela “se fez apesar de seus autores”, já que “aventureiros” – e
não “trabalhadores” – estariam envolvidos em tal processo.” (COSTA, 2014, p. 833).
48
36
“No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de
funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível
acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu
ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos,
foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um
dos efeitos decisivos da supremacia inconstestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência
dos chamados ‘contratos primários’, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam
na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso
ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem
assentar a sociedade em norams antiparticularistas.” (HOLANDA, 2016, p. 175-176).
49
O ensaio de Roberto DaMatta “O que faz o brasil Brasil?”, cuja primeira edição é de
1984, aponta a existência de camadas de compreensão possíveis do País, com “b” maiúsculo e
“b” minúsculo, a viabilizarem diferentes formas de observações nacionais, in verbis:
[...] enquanto não formos capazes de discernir essas duas faces de uma mesma nação
e sociedade, estaremos fadados a um jogo cujo resultado já se sabe de antemão. Pois,
como ocorre com as moedas, ou teremos como jogada um “brasil”, pequeno e
defasado das potências mundiais, Brasil que nos leva a uma autoflagelação
desanimadora; ou teremos como jogada o Brasil dos milagres e dos autoritarismos
políticos e econômicos, que periodicamente entra em crise.
Será, portanto, discutir o Brasil como uma moeda. Como algo que tem dois lados. E
mais: como uma realidade que nos tem iludido, precisamente porque nunca lhe
propusemos esta questão relacional e reveladora [...]. (DAMATTA, 1997, p. 20).
Dentro dessa proposta não planificada, são examinados os eventos e ritos sociais
(carnaval, festas religiosas etc.), as figuras humanas, as esferas públicas e particulares ou
privadas, por meio do enfoque na casa, na rua, no trabalho, na ilusão das relações raciais, na
comida, no carnaval, nas mulheres, na arte e nos modos de navegação social (malandragem e
“jeitinho” brasileiro).
O trabalho antropológico de Roberto DaMatta, multiangular, guarda relevância para
50
[...] Como é que se faz diante de um requerimento que está sempre errado? Ou
diante de um prazo que já se esgotou e conduz a uma multa automática que não foi
divulgada de modo apropriado pela autoridade pública? Ou de uma taxação injusta e
abusiva que o Governo novamente decidiu instituir de modo drástico e sem
consulta? [...] entre o “pode” e o “não pode” escolhemos, de modo chocantemente
antilógico, mas singularmente brasileiro, a junção do “pode” com o não pode”. Pois
37
“[…] a rua é espaço que permite a mediação pelo trabalho – o famoso “batente”, nome já indicativo de um
obstáculo que temos que cruzar, ultrapassar ou tropeçar. Trabalho que no nosso sistema é concebido como
castigo. E o nome diz tudo, pois a palavra deriva do latim tripaliare, que significa castigar com o tripaliu,
instrumento que, na Roma Antiga, era um objeto de tortura, consistindo numa espécie de canga usada para
suplicar escravos. Entre a casa (onde não deve haver trabalho e, curiosa e erroneamente, não tomamos o
trabalho doméstico como tal, mas como “serviço” ou até mesmo prazer ou favor…) e a rua, o trabalho duro é
visto no Brasil como algo bíblico. Muito diferente da concepção anglo-saxã que equaciona trabalho (work)
com agir e fazer, de acordo com sua concepção original. Entre nós, porém, perdura a tradição católica romana
e não a tradição reformadora de Calvino, que transformou o trabalho como castigo numa ação destinada à
salvação. Mas nós, brasileiros, que não nos formamos nessa tradição calvinista, achamos que o trabalho é um
horror. Não é à toa que o nosso panteão de heróis oscila entre uma imagem deificada do malandro (aquele que
vive na rua sem trabalhar e ganha o máximo com um mínimo de esforço), o renunciador ou santo (aquele que
abandona o trabalho neste e deste mundo e vai trabalhar para o outro, como fazem os santos e líderes
religiosos) e o caxias, que talvez não seja o trabalhador, mas o cumpridor de leis que devem obrigar os outros a
trabalhar… O fato é que não temos a glorificação do trabalhador, nem a ideia de que a rua e o trabalho são
locais onde se pode honestamente enriquecer e ganhar dignidade. Para nós esses espaços e essa mediação entre
casa e rua pelo trabalho são algo muito complexo.
Mas poderia ser de outro jeito numa sociedade em que até outro dia havia escravos e onde as pessoas decentes
não saíam à rua nem podiam trabalhar com as mãos?” (DaMATTA, 1997, p. 31-32).
38
“Entre a desordem carnavalesca, que permite e estimula o excesso, e a ordem, que requer a continência e a
disciplina pela obediência estrita às leis, como é que nós, brasileiros, ficamos? Qual a ossa relação e a nossa
atitude para com e diante de uma lei universal que teoricamente deve valer para todos? Como procedemos
diante da norma geral, se fomos criados numa casa onde desde a mais tenra idade, aprendemos que há sempre
um mode de satisfazer nossas vontades e desejos, mesmo que isso vá de encontro às normas do bom-senso e
da coletividade em geral?
[…] o dilema brasileiro residia numa trágica oscilação entre um esqueleto nacional feito de leis universais cujo
sujeito era o indivíduo e situações onde cada qual se salvava e se despachava como podia, utilizando para isso
o seu sistema de relações pessoais. Havia, assim, nessa colocação, um verdadeiro combate entre leis que
devem valer para todos e relações que evidentemente só podem funcionar para quem as tem. O resultado é um
sistema social dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo (o sujeito das
leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao polo
tradicional do sistema). Entre os dois, o coração dos brasileiros balança. E no meio dos dois, a malandragem, o
“jeitinho” e o famoso e antipático “sabe com quem está falando?” seriam modos de enfrentar essas
contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro. Ou seja: fazendo uma mediação também pessoal
entre a lei, a situações onde ela deveria aplicar-se e as pessoas nela implicadas, de tal sorte que nada se
modifique, apenas ficando a lei um pouco desmoralizada mas, como ela é insensível e não é gente como nós,
todo mundo fica, com se diz, numa boa e a vida retorna ao seu normal.” (DaMATTA, 1997, p. 97-98).
51
bem, é essa junção que produz todos os tipos de “jeitinhos” e arranjos que fazem
com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver a
realidade social. (DaMATTA, 1997, p. 99-101).
A advertência de que o Direito nacional deve estancar a promoção dos “jeitinhos”, que
podem ser enxergados na dimensão estéril da insinceridade normativa, intimamente ligada à
fraqueza dos laços comunitários e ao patrimonialismo, é leitura que conecta a presente
pesquisa a Roberto DaMatta39.
39
“Há críticas, e muitas, à contribuição de Roberto DaMatta à antropologia. A mais raivosa de todas é de Jessé
de Souza no livro O malandro e o protestante. Mas, tal como diz o ditado que “cão que ladra não morde”, ela
é tão raivosa quanto inofensiva. Jessé simplesmente nega que DaMatta esteja correto sem apresentar evidência
empírica alguma que sustente sua tese. Por exemplo, para Jessé, a corrupção que atingiu o ex-primeiro
ministro alemão Helmut Kohl mostra que a corrupção não é exclusividade do Brasil. Concordamos com ele,
porém, qual o nível de corrupção de Alemanha e Brasil? O escândalo que atingiu Kohl não se compara com
escândalos que atingem inúmeras prefeituras pelo Brasil afora.
Ao contrário de Jessé, os resultados de nossa pesquisa fazem uma crítica moderada, mas consistente, à
interpretação damattiana do Brasil. […] Mas é uma crítica generosa porque – se estiver correta – coloca a obra
52
[...] seria ilusório pretender que esse novo pária tivesse consciência do seu direito a
uma vida melhor e lutasse por ele com independência cívica. O lógico é que
presenciamos: no plano político, ele luta com o “coronel” e pelo “coronel”. Aí estão
os votos de cabresto, que resultam, em grande parte, da nossa organização
econômica rural. (LEAL, 2014, p. 47).
de DaMatta em outro patamar: ele não estaria falando especificamente do Brasil, mas sim da cultura de
qualquer sociedade cuja escolaridade geral é muito baixa. […] Estou afirmando, portanto, que o jeitinho
brasileiro, com denominações específicas a cada país, existiria em qualquer nação em que a maior parte da
população tenha pouco estudo.” (ALMEIDA, 2007, p. 275-276).
53
O maior mal que pode acontecer a um chefe político municipal é ter o governo do
Estado como adversário. Por isso, busca o seu apoio ardorosamente. As eleições
municipais constituem pelejas tão aguerridas em nosso país, justamente porque é
pela comprovação de possuir a maioria do eleitorado no município que qualquer
facção local mais se credencia às preferencias da situação estadual. A esta, como já
notamos, o que mais interessa é ter eleições estaduais e federais, que se seguirem,
maior número de votos, com menor dispêndio de favores e mais moderado emprego
da violência. Apoiar a corrente local majoritária é, pois, o meio mais seguro de obter
esse resultado, inclusive porque a posse do governo municipal representa, para ela e
para o governo estadual, um fator positivo nas eleições, balança em que tanto pesam
o dinheiro público e os benefícios de procedência oficial. (LEAL, 2014, p. 67).
Assim, o Estado tinha controle sobre o “coronel” ao permitir toda sorte de domínio e
abusos, eleitorais ou não, dos chefes municipais, o que lhe era útil no simbólico processo
democrático regional e nacional, em que os políticos obtinham votos consideráveis graças ao
sistema viciado.40
Nutria-se esse modelo do baixo desenvolvimento das atividades urbanas, dos déficits
de cidadania e da limitação de poder dos municípios na federação brasileira41:
40
“A essência, portanto, do compromisso ‘coronelista’ – salvo situações especiais que não constituem regra –
consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições
estaduais e federais; da parte da situação estadual, carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder
da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de
funcionários estaduais do lugar.” (LEAL, 2014, p. 67-68).
41
“[...] A concentração de poder continuava a processar-se na órbita estadual exatamente como sucedia na esfera
provincial durante o Império; mas, como a eleição do governador de Estado não dependia tão puramente da
vontade do centro como outrora a nomeação do presidente de província, o chefe do governo federal só tinha
duas alternativas: ou declarar guerra às situações estaduais, ou compor-se com elas num sistema de
compromisso que, simultaneamente, consolidasse o governo federal e os governos estaduais.
Para que o processo se desdobrasse por essa forma, o bode expiatório teria de ser inevitavelmente o município,
sacrificado na sua autonomia. Entre nós, tanto o Executivo como o Legislativo e o Judiciário federais
favoreceram a concentração de poder nos Estados à custa dos municípios. Aliás, a simples ideia de que os
municípios, deixados à sua livre determinação, acabariam nas mãos de oligarquias locais — que se manteriam,
em caso de contestação, pelo suborno e pela violência — conduzia muito naturalmente à conclusão de que era
preciso dar ao Estado os meios de impedir aquela possibilidade. Porém o que costuma passar despercebido é
que o governo estadual, habitualmente, não empregava tais instrumentos contra os amigos; só os utilizava
contra os adversários. [...] os nossos juristas-idealistas, que pretendiam limitar o poder dos municípios para
impedir as oligarquias locais, acabaram dando aos governadores os meios de que se serviram eles para montar,
em seu proveito, essas mesmas oligarquias locais, fundando, assim, as oligarquias estaduais que davam lugar,
por sua vez, a esta outra forma de entendimento — entre os Estados e a União, que se conhece em nossa
história por “política dos governadores”. Nessa mais ampla composição política, os instrumentos que mais
eficazmente garantiam a preponderância do presidente da República eram, na ordem financeira, os auxílios da
União, destinados a suprir a escassez das rendas estaduais, e, na ordem política, o reconhecimento de poderes
(a degola), que podia manter no Congresso Federal, ou dele expulsar, os senadores e deputados que as fraudes
e os chefes locais extraíam das urnas. Tanto um como outro — o compromisso dos governadores com os
“coronéis” e o compromisso dos presidentes com os governadores — assentavam, portanto, na inconsciência
do eleitorado rural e, por isso mesmo, no tipo de estrutura agrária predominante em nosso país. É evidente,
54
O autor reconhece que o sistema coronelista foi atacado a partir da revolução de 1930,
com a melhoria da condição social, do desenvolvimento da economia industrial e da
urbanização, mas sugere, mesmo afirmando buscar apenas a compreensão do modelo sem
soluções de correção prontas, que o golpe de morte ao coronelismo apenas será materializado
quando seu “círculo vicioso” for efetivamente dinamitado no país, a indicar operação
complexa, mediante a tomada de ações diferenciadas; econômicas, sociais, políticas e
jurídicas, in verbis:
No ponto de vista ora estabelecido, o ensaio de Willi Bolle realiza a ligação entre os
diversos retratos do Brasil, ao trazer, em perspectivas multiangulares, reflexões sobre os
clássicos romances “Grande Sertão: Vereadas” e “Os Sertões”, com o foco no entendimento e
compreensão do País.
porém, que a política dos “coronéis” conduziu ao fortalecimento do poder estadual de modo muito mais
efetivo do que a “política dos governadores” garantia o reforçamento do poder federal.” (LEAL, 2014, p. 109-
110).
55
Com o foco narrativo na primeira pessoa, a história do livro é lida através das lentes
ambíguas do herói problemático Riobaldo 42 : sua coragem e seu medo; erudição,
conhecimentos, dúvidas e incertezas; franquezas e ações destemidas. Por meio do divinal e
maligno sentimento que nutre por Diadorim 43; da razão e da fé; dos contrastes sociais
explicitados nas estruturas de dissimulações do agir dos donos do poder, expõe-se a aguda
falta de comunicação entre as classes sociais brasileiras, em que, paradoxalmente, Riobaldo
transita com liberdade.
O romance de Guimarães Rosa apresenta o diálogo de Riobaldo com um interlocutor
não determinado, descrevendo-se as idas e vindas de sua travessia de vida, como filho de
fazendeiro rico, proprietário de terra, jagunço e líder de bando a vingar a morte Joca Ramiro,
pai de Diadorim. Riobaldo, nesse sentido, tem revelada sua dupla posição social.
Para muitos, Grande Sertão: Veredas é a obra prima da literatura brasileira. Pode ser
lida por tantos ângulos diferentes que seria difícil estabelecer uma lista fechada de caminhos.
A interpretação como jogo literário no universo das letras e palavras, quando
“Guimarães Rosa emprega as mesmas técnicas multidimensionais que dão forma a seus textos
literários, enigmáticos palimpsestos que se leem em várias camadas sobrepostas” 44
42
“O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser. Deus esteja!” (ROSA,
1994, p. 141).
43
Diadorim, num ângulo, também representa o desconhecido, sendo percebida como a dificuldade dos
brasileiros cultos de compreender e sentir o povo. O povo, na República, paradoxalmente, surge como
elemento que constrange e envergonha as elites nacionais, verdadeiro tabu da ordem social, e que, por isso,
merece esquecimento dentro do possível.
44
A esse respeito, o pesquisador roseano Marcelo Marinho, em entrevista intitulada “60 anos de ‘Grande
Sertão:Veredas’, um enigma literário e biográfico” registrou o seguinte: “[…] Primeiro, escaneei e digitalizei o
livro, e então pude fazer uma leitura diagonal. Por exemplo, os fatos que acontecem a cada vez que aparece o
nome “cavalo”. Então, o computador encontrava a ocorrência da palavra e eu esmiuçava o texto para ver o que
havia no entorno, sempre tomando notas, com se tratasse de um poema. E assim por diante, como com a
palavra “arte”, por exemplo. Quando lemos de forma ingênua, sem procurar, nem prestamos atenção, mas
fazendo essa leitura diagonal é possível identificar o que acontece em torno de uma palavra, a que se refere
essa palavra no texto. O crítico Jean Starobinski diz que não é a palavra que dá sentido ao texto, mas o texto
que dá sentido à palavra. Então, eu lia o texto e procurava o sentido que o texto atribuía àquela palavra. A
partir daí, as pistas se multiplicaram e permitiram essa leitura convergente com a “autobiografia irracional”,
uma preciosa pista de leitura dada por Guimarães Rosa, mas até então ignorada pelos leitores […] Essa grande
alegoria do universo das letras parte de nomes de jagunçoes-poetas, alguns bastante óbvios, como Drumõo,
Dos-Anjos ou Selorico Mendes, que é uma referência ao poeta e tradutor Manuel Odorico Mendes. O herói se
chama Riobaldo, e na pronúncia sertaneja transforma-se em “Riobardo”, ou seja, “R-io-bardo’, “Rosa-eu-
poeta”. Há outros nomes mais camuflados. Os nomes dos lugares também colaboram nessa perspectiva, como
o Liso do Sussuarão que é, obviamente, uma referência ao Ferdinand de Saussure. Há muito jogo de palavras
nos nomes de personagens, como Diadorim, que também é Deodorina, ou “presente de Deus”, em grego.
Literalmente, o próprio romance diz que Diadorim é a “alma”, enquanto Otacília é um “prêmio”. O pacto com
o demônio resulta num prêmio, mas paga-se com a alma. São velhos logogrifos de almanaque. A geração mais
jovem trocou pelos videogames os antigos jogos de palavras, como aqueles do Almanaque Fontoura, que
faziam parte da cultura popular. O próprio Grande Sertão: Veredas indica essa pista, já na página 7, logo no
início do livro, qunado Riobaldo menciona um “almanaque grande de logogrifos e charadas”. Está ali
evidenciada essa perspectiva de se jogar com as imagens e as palavras para se construir e agregar vários
sentidos à obra. […] O próprio sentido da obra muda em função da tradução e em função do tempo. […]
57
Em geral, quase toda frase minha tem de ser meditada. Quase todas, mesmo as
aparentemente curtas, simplórias, comezinhas, trazem em si algo de meditação ou de
aventura. Às vezes, juntas, as duas coisas: aventura e meditação. Uma pequena
dialética religiosa, uma utilização, às vezes, do paradoxo; mas sempre na mesma
linha constante, que, felizmente, o Amigo já conhece, pois; mais felizmente ainda,
somos um pouco parentes, nos planos, que sempre se interseccionam, da poesia e da
metafísica. (ROSA, 2003, p. 238-239).
Fato é que a dimensão histórica e social de Grande Sertão: Veredas possui concretude
ampla, embora disfarçada, fazendo com que Willi Bolle, ao transportar o romance para o
conjunto de obras identificadas com os retratos do Brasil, assinale:
A tese aqui discutida é que o romance de Guimarães Rosa é o mais detalhado estudo
de um dos problemas cruciais do Brasil: a falta de entendimento entre a classe
dominante e as classes populares, o que constitui um sério obstáculo para a
verdadeira emancipação do país. A comparar o Grande Sertão: Veredas com os
referidos ensaios sociológicos e historiográficos, cheguei à conclusão de que esse é
o romance de formação do Brasil. (BOLLE, 2004, p. 7).
Quando eu preparava a minha tese, achava estranho que o romance tivesse sido traduzido como “Diadorim”
para o francês, pois o título já direciona o leitor. Inclusive, houve um jornal belga que publicou uma matéria
muito elogiosa sobre Grande Sertão: Veredas e ilustrou com uma fotografia de dois homens abraçados. O
título da matéria era “Grande Sertão: Veredas, o ápice da literatura homossexual no Brasil […]” (MARINHO,
2016).
45
“Os Sertões e Grande Sertão: Veredas, cuja matéria histórica comum é a guerra no sertão, são retratos do
Brasil sob o signo da violência e do crime. Os protagonistas são em ambos os casos os “jagunços”, mas o
sentido deste termo nos dois livros é muito diferente. O nome “jagunços” é atribuído por Euclides da Cunha de
forma bastante arbitrária aos rebeldes religiosos de Canudos, que foram aniquilados pelo Exército brasileiro na
campanha de 1897, conforme relata o próprio ensaísta. Já em Guimarães Rosa – que apresenta uma história
58
ficcional (aproximadamente da mesma época) de lutas de potentados locais, como aliados ou opositores do
Governo, mas sobretudo entre si -, os “jagunços”, de acordo com a acepção mais comum da palavra, são os
capangas ou pistoleiros que constituem aqueles exércitos particulares.
A palavra “jagunço” e a instituição da jagunçagem revestem-se, assim, de importância estratégica para se
compreender o fenômeno da violência e do crime no Brasil. Ao retratar o país sob o ângulo da jagunçagem,
Guimarães Rosa traz à tona o componente de violência que está na origem de todo poder constituído. No
enfoque de considerar Grande Sertão: Veredas uma reescrita crítica d’Os Sertões, pode-se dizer, com uma
formulação extrema, que esse romance, narrado por um jagunço letrado, coloca em debate a maneira
tendenciosa e arbitrária com que o letrado Euclides da Cunha apresenta o jagunço.” (BOLLE, 2004, p. 91-92).
46
“[...] em Guimarães Rosa, a localização do sistema jagunço numa região limítrofe com os centros de poder,
incluindo o território do Distrito Federal, confere ao texto o caráter de um retrato alegórico do Brasil. O que
significa essa encenação de bandos organizando o crime e exercendo o poder no planalto central? O sistema
jagunço, enquanto instituição situada ao mesmo tempo na esfera da Lei e do Crime, deixa de ser um fenômeno
regional e datado, para tornar-se uma representação do funcionamento atual das estruturas do país. (BOLLE,
2004, p. 116-117).
47
[…] a retórica revela-se essencial para a construção do prestígio dos chefes e a manutenção das estruturas do
poder, conforme a clássica lição de Maquiavel. No universo de Grande Sertão: Veredas, o mestre da arte do
59
prisioneiro, seja no momento em que Joca Ramiro faculta a palavra a qualquer dos jagunços
presentes, como se essa etapa incidental tivesse alguma consequência no deslinde do
“processo”, evidenciado a total artificialidade da isonomia existente entre os chefes e os
demais integrantes dos bandos:
discurso, entendida como arte da persuasão é Zé Bebelo. Personagem camaleônico, ele se apresenta ora como
aspirante a deputado, prometendo “aboli[r] o “jaguncismo”, ora como chefe de jagunço, vestido com as
insígnias tradicionais do banditismo político e social, mas aproveitando a primeira ocasião apra tentar entregar
seus subordinados às autoridades…” (BOLLE, 2004, p. 131-132).
48
“Conforme o consenso geral de todos ali presentes, Zé Bebelo “[p]ode ter crime para o Governo, para
delegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados”, mas entre os jagunços é diferente. Crime?... […] Que
crime? Veio guerrear, como nós também. […]” (BOLLE, 2004, p. 135). Assim, a guerra não é condenada em
si mesma. Ao contrário, é aceita como algo pertencente aos domínios do cotidiano, sendo ocorrência trivial.
49
“[…] Guimarães Rosa reconstroi em forma de paródia o padrão maniqueísta de Euclides que opõe a rua do
Ouvidor às caatingas. Essa visão é desconstruída ao longo do romance, na medida em que o leitor é levado a
descobrir que os potentados do sertão são os mesmos que mandam no governo das cidades, do estado e do país.
O raio de ação do sistema jagunço, comandado por ‘cidadãos que se representam’, como ‘seo’ Ornelas e o
coronel Rotílio Manduca, se estende até a capital da República. O romancista corrige assim a historiografia de
Euclides, que deturpou o sentido da palavra ‘jagunço’.” (BOLLE, 2004, p. 136-137).
60
Grande Sertão: Veredas evidencia a atenção especial de Guimarães Rosa para o uso de
elementos míticos e metafísicos, estabelecendo-se a partir daí o liame para as informações e a
produção de conhecimentos históricos, políticos e sociais.
Constrói-se, nessa dinâmica, uma interpretação que permite ligar o pacto à forma
mítica de expressar as justificativas abstratas de poder e da lei, envoltas nos elementos sociais
50
“[...] O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável. Eu queria
ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. “Deus ou o demo?” – sofri um velho pensar. Mas, como
era que eu queria, de que jeito, que? Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar melhor
morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca eu cedia às arras, tudo
meu, tudo o mais – alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! – “Acabar com o Hermógenes! Reduzir aquele
homem!...” –; e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão. Do
Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me lembrava – feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e
mijona, em seus despropósitos, a formiguinha passeando por diante da gente – entre o pé e o pisado. Eu
muxoxava. Espremia, p’r’ ali, amassava. Mas, Ele – o Dado, o Danado – sim: para se entestar comigo – eu
mais forte do que o Ele; do que o pavor d’Ele – e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei sensatez.
Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já
que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopio do pé-devento – o ró-ró
girado mundo a fora, no dobar, funil de final, desses redemoinhos: ... o Diabo, na rua, no meio do
redemunho... Ah, ri; ele não. Aheu, eu, eu! “Deus ou o Demo – para o jagunço Riobaldo!” A pé firmado. Eu
esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei, toda, aquela firmeza me
revestiu: fôlego de fôlego de fôlego – da mais-força, de maior-coragem. A que vem, tirada a mando, de setenta
e setentas distâncias do profundo mesmo da gente. Como era que isso se passou? Naquela estação, eu nem
sabia maiores havenças; eu, assim, eu espantava qualquer pássaro.
Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não
queria existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu estava
bêbado de meu. Ah, esta vida, às não- vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o
ar:
– “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengolindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-
cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-
acordado dum totalzinho sono.
– “Lúcifer! Satanás!...”
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.
– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem
respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência
da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do
assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades-de pancada. Lembrei
dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí
podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem
abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!” (ROSA, 1994, p. 268-269).
Anote-se, na vertente fantástica, a dúvida sobre a própria celebração do pacto: “O diabo não há! É o que eu
digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.” (ROSA, 1994, p. 385).
61
Assim como o romance, também a teoria política só pode falar da história primeva,
especialmente do ‘pacto’, em termos hipotéticos; ambos recorrem a formas
ficcionais. (BOLLE, 2004, p. 158).
Willi Bolle realiza a leitura do pacto ocorrido nas Veredas-Mortas como a alegoria de
um falso contrato social, com lastro na teoria política de Rousseau.52 O bando de jagunços
rasos, a “horda primitiva”, fixa-se como o coletivo humano anterior ao próprio contrato social.
Assim, o acordo entre os proprietários de terra, chefes da jagunçagem e jagunços seria
a alegoria do modelo de falso do contrato social legitimador do poder não democrático; falso
porque na aparência se refere, abstratamente, ao acordo entre iguais, mas, em verdade, não
revela a existência de qualquer ajuste entre povo e representantes de seus interesses reais. Não
há vestígio de soberania popular.
O que existe é um dissimulado acordo entre chefes, o falso contrato que promulga a
desigualdade civil e política. Os pobres e o jagunços rasos do sertão estavam efetivamente à
margem do corpo político, não sendo considerados reais cidadãos até eventualmente
ascenderem a proprietários destacados ou latifundiários:
51
“Medeiro Vaz parece representar um sertão “onde os pastos carecem de fechos”, o mítico sertão primevo dos
homens livres, em oposição a um ex-homem-livre e ex-jagunço como o fazendeiro Riobaldo, que defende o
princípio da propriedade. [...] O autor de Grande Sertão: Veredas não compartilha da visão rousseauniana de
volta a um suposto estado natural puro. Ao lampejo de uma utopia social se sobrepõe a sombra do
autoritarismo e da violência. Medeiro Vaz, assim como os inimigos que ele pretendia combater, acaba por
simbolizar o espírito da “guerra perpétua”, anterior ao pacto social e traduzindo o estado de coisas antes da
Lei.” (BOLLE, 2004, p. 163).
52
“Minha tese é que o pacto em Grande Sertão: Veredas pode ser entendido como uma visão romanceada da lei
fundadora, daquilo que a filosofia política, no limiar da modernidade, imaginou como sendo a base da
sociedade civil e do Estado. Durante as lutas da burguesia emergente contra a monarquia “de direito divino”,
articulou-se, a partir do século XVII, em pensadores como Althusius, Grotius, Pufendorf, Hobbes, Locke e
Rousseau, a idéia de um contrato social. Enquanto Hobbes concebeu o contrato ou pacto de cidadãos ou
sujeitos como institucionalização do poder soberano do Estado, que poderia ser monárquico, aristocrático ou
democrático, Rousseau desenvolveu essa idéia num sentido decididamente democrático. Na sua perspectiva, o
“pacto dos sujeitos” seria um falso contrato social, legitimando o poder do Príncipe – diferentemente do
contrato social verdadeiro, baseado na idéia de soberania do povo, que instituiria um “corpo político”
denominado república, o correspondente da civitas antiga. A base institucional da humanidade civilizada,
conforme Rousseau, não deveria ser simplesmente a cidade enquanto conjunto de seus habitantes, mas
enquanto corpo político (civitas) de “cidadãos” (cives, citoyens).” (BOLLE, 2004, p. 155-156).
62
[...] podemos considerar o trato de Riobaldo com o Diabo, pelo prisma da teoria
política de Rousseau, como alegoria de um falso contrato social. Nem por isso deixa
de existir grande diferença entre os nossos dois autores em termos de filosofia da
história. Enquanto Rousseau descreve os fundamentos da desigualdade entre os
homens e o falso contrato social com o intuito de substituí-lo pelo contrato social
verdadeiro, Guimarães Rosa desmonta o discurso utópico iluminista, para revelar
lucifericamente a ordem político-social vigente. [...]
Da facilidade com que os donos do poder se amoldam a novas situações políticas,
Riobaldo é um bom exemplo. Ele transita dos jagunços legalistas de Zé Bebelo para
os fora-da-lei de Joca Ramiro, deixa-se iniciar à matança pelo Hermógenes e depois
assume a chefia para matar Hermógenes, alicia os miseráveis com a promessa de
tomar o dinheiro dos ricos e acaba montando um exercito de jagunços para defender
suas propriedades.
Essa adaptabilidade política do protagonista traduz a experiência do seu criador, que
serviu a governos tão diferentes como o de Getúlio Vargas, Gaspar Dutra, Juscelino
Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, Castello Branco... O romancista que
conhecia intimamente o funcionamento da máquina do poder e todos os segredos da
retórica, usou seus conhecimentos para contar, a partir dessa perspectiva de dentro,
criptograficamente, como se articula a política no país. (BOLLE, 2004, p. 173 e 177).
53
“[...] o pacto com o Diabo, enquanto alegoria de um falso contrato social, representa a lei fundadora que
condiciona o comportamento dos chefes, não apenas nas suas ações, mas também e sobretudo em seus
discursos. O pacto é a base para uma prática da linguagem a forjar “as formas do falso”, uma retórica do faz-
de-conta que se apodera do espaço público.” (BOLLE, 2004, p. 190).
63
54
Juridificação da política, no sentido empregado, representa a normatização de fatos essencialmente ligados a
escolhas políticas da comunidade, ou seja, o transporte para o Direito das concepções políticas e ideológicas de
um povo. A importância estratégica do Direito Constitucional reside neste aspecto.
55
José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, ao examinar a utilização, no universo jurídico, dos retratos de Brasil,
afirma não se ter o escopo, com isso, de construir “uma opção teórica entre estas compreensões do Direito e da
literatura, mas considerar as possibilidades de uma tradição construída pelas ciências sociais aplicadas no
Brasil a partir das artes [...].” (BARACHO JÚNIOR, 2009, p. 158).
64
objetivamente estabelecida.
A dimensão normativa do Direito, portanto, é um dos ângulos insuperáveis no debate
jurídico. Na perspectiva eclética aqui defendida, o diálogo entre as dimensões constitucionais,
em seus diversos matizes, é a chave do processo hermenêutico, cabendo o registro de que
[...] de fato, a realidade não pode ser isolada do plano da objetividade e a idealidade
no plano do subjetivismo. Como a literatura do século XX demonstrou, existem
olhares sobre o mundo, e não uma realidade objetiva a ser observada. Magistrais
nesse sentido as lições de Julio Cortázar em Las barbas del diablo e, entre nós,
Guimarães Rosa, tanto no Grande Sertão: Veredas quanto em contos de Sagarana e
Primeiras Estórias.
Não pretendo, portanto, mistificar o que seria a realidade. O que pretendo é
considerar a existência de conhecimentos não sistêmicos, assim como a necessidade
de interação entre diferentes sistemas. (BARACHO JUNIOR, 2015, p. 9).
56
A obra “1988: segredos da Constituinte”, a título de exemplo, traz elucidativas entrevistas de inúmeras
autoridades constituintes que assumiram posições de relevo na ocasião. Entre elas, o ex-ministro do STF
Nelson Jobim (NJ), que brindou com a sinceridade desconcertante sobre episódios e “pactos” que
instrumentalizaram a gênese normativa do “poder constituinte originário” brasileiro:
“[...] Em determinado momento surgiu um impasse complicado quanto ao repouso semanal remunerado. O
pessoal da esquerda era coordenado pelo Plínio de Arruda Sampaio, que era o líder do PT. Naquela época, o
Plínio não era o radical que veio a ser. Era um sujeito que negociava, um cara ótimo. O texto da esquerda
queria “repouso semanal remunerado obrigatoriamente aos domingos”. A direita queria “repouso semanal
remunerado, na forma de convenção ou contrato coletivo de trabalho”. A direita tinha razão, alguns trabalhos
não podiam parar no domingo. E deu-se o impasse. Ninguém tinha voto para aprovar nenhuma delas. O dr.
Ulysses me chama: “Olha, Jobim, vamos lá resolver esse assunto.” Eu peguei o Antônio Britto e fomos
trabalhar. Conversa com um, conversa com outro. Ninguém abria mão. Então fiz uma redação, aprovada pela
direita e pela esquerda, que está na Constituição: “[...] repouso semanal remunerado, preferencialmente aos
domingos”. Ficou o domingo que o Plínio queria, e ficou o enfraquecimento do verbo, que a direita queria.
Não era obrigatório, era preferencial. Todo mundo aprovou [risos de satisfação].
Quanto mais ambíguo, mais fácil de passar... NJ – O jogo era esse. Tu tinha que trabalhar com
ambiguidades. Quando não se conseguia o acordo, e não tinha solução num texto ambíguo, eu usava a técnica
de jogar para a lei complementar ou lei ordinária.” (CARVALHO, 2017, p. 210-211).
57
“O pensamento sociológico e antropológico brasileiro é praticamente unânime em apontar o caráter
patrimonialista da política nacional. Esse pensamento sublinha como os políticos se apropriam privadamente
do que é público.” (ALMEIDA, 2007, p. 97).
58
“[...] há uma forte contradição entre direito e realidade constitucionais nos países “subdesenvolvidos”. A rigor,
assim entendo, a questão diz respeito à falta de normatividade jurídica do texto constitucional como fórmula
democrática: a partir deste não se desenvolve suficientemente um processo concretizador de construção do
direito constitucional; mas, ao mesmo tempo, a linguagem constitucional desempenha relevante papel político-
65
simbólico, também com amplas implicações na esfera jurídica.” (NEVES, 2011, p. 3).
66
A Constituição traçou objetivos no art. 3º, entre eles a construção de sociedade livre,
justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais (incisos I a III), intitulados princípios
fundamentais (Título I).
Nessa primeira metade do século XXI, período de continuada crise da razão e de
incertezas políticas, sociais e econômicas, crescem o repúdio aos agentes políticos59 e a
descrença na democracia representativa. Tais eventos também são impactantes na formação
do senso comum de que os objetivos da República representam adornos fantásticos da
Constituição, inutilidades jurídicas.
Apesar de os retratos do Brasil sugerirem conclusão contrária, ou seja, a importância
da perseguição dos objetivos constitucionais, por meio do diagnóstico e enfrentamento dos
ciclos ou sistemas deficientes, a desmontar o simbolismo estéril e a insinceridade normativa,
há timidez da comunidade jurídica sobre o tema.
Diante dessas conjunturas, sublinha-se que os objetivos da República60, sob o viés
liberal ou comunitarista 61 , integram os pontos de partida da dimensão normativa
constitucional brasileira, in verbis:
59
“[...] Sorrindo para a câmera/Sem saber que estamos vendo/Chorando que dá pena/Quando sabem que estão
em cena/Sorrindo para as câmeras/Sem saber que são filmados/Um dia o sol ainda vai nascer/Quadrado! [...]”
(TITÃS, 2005). Música composta para o escândalo criminal de 2005, conhecido como “Mensalão”.
“[...] Neste país de manda-chuvas/ cheio de mãos e luvas/ tem sempre alguém se dando bem/ de São Paulo a
Belém [...]” (CAROLINA; ZÉ, 2005).
60
“Toda sociedade se funda sobre acordos, sejam eles frutos de uma tradição ou de uma decisão racional, sejam
eles conscientes ou não. A questão não é, propriamente se há um acordo ou pacto que funde a vida social, mas
em que tipo de acordo ela se funda, ou seja, qual é a natureza de tal acordo, como ele ocorre e em que consiste
e, mais precisamente, de que modo concebe a relação entre indivíduo (a parte) e a totalidade (a organização
social). As respostas a estas perguntas indicam a existência de duas matrizes teóricas concorrentes que
procuram fundamentar o que seja o Direito e o Estado como resultado de tais acordos, chamadas de
Comunitarismo e de Liberalismo. Evidentemente, que tais matrizes são generalizações tanto de características
que podemos encontrar nas comunidades e nas sociedades que se desenvolveram no ocidente quanto de
idealizações conceituais que se fizeram destas mesmas comunidades e sociedades ao longo da história do
pensamento político. Este alerta é importante para lembrar o leitor que as matrizes [...] funcionam como um
tipo ideal de função expressamente interpretativa, que visam a compreender os acordos que se realizam no
interior de um grupo social.” (GALUPPO, 2003, p. 337-338).
61
Merece o registro, neste momento de crise política nacional e radicalizações autoritárias por determinados
movimentos sociais, de direita e de esquerda, que o Estado mínimo é tão utópico (ou distópico, a nosso ver)
quanto o Estado total. O próprio Robert Nozick, na obra Anarquia, Estado e Utopia, sugestivamente estrutura
seu ponto de vista libertário, com influência de imperativo categórico kantiano, por meio de “um arcabouço
para a utopia” (NOZICK, 2011, p. 427-430) destinado à criação do Estado minimalista.
68
62
“[...] many of us tend to be confused about the causes of poverty and, therefore, not sure what to do about it. A
review of research on poverty indicates that the dialogue has been polarized between those who believe
poverty is caused by individual behaviors and those who believe poverty is caused by political/economic
structures. Proponents of both of these views often make “either/or” assertions: If poverty is caused by
individual behaviors, then political or economic structures are not at fault and vice versa. Taking a “both/and”
approach, however, is more productive. “Poverty is caused by both the behavior of the individual and
political/economic structures – and everything between.” This book’s authors categorize the research into four
clusters along a continuum of causes of poverty: - Behaviors of the individual. – Absence of human and social
capital. – Exploitation. – Political/economic structures.” (PAYNE, 2013, p. 155).
Nesta dissertação, ressalta-se, no capítulo 4, o ciclo de pobreza relacionado a vício da estrutura política e social
69
A pobreza é o estado de quem não tem o necessário para a vida, de quem vive com
escassez; [...] consiste, assim, na falta de renda e recursos suficientes para o
sustento, na fome e na desnutrição, más condições de saúde, limitado acesso à
educação e na maior incidência de doenças e mortalidade, especialmente
mortalidade infantil. [...] Pois bem, erradicar esse estado é o que constitui o objetivo
fundamental da República aqui analisado. [...] Em verdade, também a erradicação da
pobreza e da marginalização é um modo de se construir aquela sociedade livre, justa
e solidária, objetivo fundamental consignado no inciso I do artigo em comentário.
(SILVA, 2006, p. 47-48).
brasileira: o patrimonialismo.
63
Noel Rosa, em “O orvalho vem caindo”, de 1933, apresenta pioneira crítica em letra de música, por meio dos
lamentos de “pessoa em situação de rua”, relacionando-se diretamente com a pobreza e desgovernança da
máquina pública brasileira, verbis: “O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu/ e também vão sumindo,
as estrelas lá do céu/ Tenho passado tão mal/ A minha cama é uma folha de jornal/Meu cortinado é um vasto
céu de anil/ E o meu despertador é o guarda civil (Que o dinheiro ainda não viu!)/ [...] A minha sopa não tem
osso e nem tem sal/ Se um dia passo bem, dois e três passo mal (Isso é muito natural!) [...].” (DOMINGUES,
1933).
64
“[...] set of factors or events by which poverty, once started, is likely to continue unless there is outside
intervention. Once an area or a person has become poor, this tends to lead to other disadvantages, which may
in turn result in further poverty [...].” (MCGLYNN, 2002, p. 770).
“São exemplos de ciclos de pobreza [...] os loteamentos clandestinos, o precário saneamento básico, o ensino
público fundamental de má qualidade, o clientelismo político, entre vasta gama de fenômenos deletérios, a
evidenciar a amplitude e heterogeneidade da questão.” (COUTINHO, 2015, p. 153).
70
65
Simon Schwartzman consigna que “[…] ao lado de uma economia moderna, existem milhões de pessoas
excluídas de seus benefícios, assim como dos serviços proporcionados pelo governo a seus cidadãos. Isto pode
ser uma consequência de processos de exclusão, pelos quais setores, antes incluídos, foram expulsos e
marginalizados por processos de mudança social, econômica ou política; ou de processos de inclusão limitada,
pelos quais o acesso a emprego, renda e benefícios do desenvolvimento econômico fica restrito a determinados
segmentos da sociedade. O resultado, em ambos os casos, é o mesmo, mas as implicações políticas e sociais
podem ser muito distintas. Processos de exclusão social e econômica tendem a ser muito mais violentos e
traumáticos do que situações de inclusão limitada. Um exemplo claro do primeiro caso é a Argentina, uma
sociedade moderna e razoavelmente rica, com o sistema do bem-estar social bem desenvolvido, que foi
destruída ao longo dos anos, culminando em um quadro de desemprego generalizado, perda de benefícios
sociais e deslocamento de grandes setores da população para abaixo da linha de pobreza. Exemplos do
segundo tipo são os países andinos – Bolívia, Peru, Equador – nos quais, através dos séculos, a população
nativa foi mantida for a dos benefícios da economia moderna. Onde se situa o Brasil: próximo da Argentina ou
aos países andinos? A análise histórica e a evidência empírica sugerem a segunda hipótese.”
(SCHWARTZMAN, 2007, p. 31-32). Essas observações de Simon Schwartzman sobre o Brasil, embora com
lastros teóricos diversos, também se harmonizam com a ideia da “viagem redonda” de Raymundo Faoro.
71
66
Like any large organization, governments need a hierarchy of people to make policies and to implement them
on all levels: from top officials to street-level bureaucrats that deal directly with everyday citizen. [...]
They are the power brokers, the managing directors in the government hierarchy. At the other end of the
spectrum are the legions of lower-level bureaucrats and public servants. These men and women serve as the
vital link between the policy direction of heads office and the actual delivery of services.
67
Relativamente aos debates sobre a diferença entre regras e princípios, firma-se neste trabalho o ponto de vista
estabelecido por José Adércio Leite Sampaio, na obra Teoria da Constituição e dos Direitos Fundamentais, no
sentido de que “os ontológicos estão equivocados, embora não totalmente desprestigiados. A diferença entre
regra e princípio, dito este em sentido estrito para diferenciar dos velhos e clássicos princípios, é, até certo
ponto, arbitrária e contingente, produto de compreensões linguísticas prévias, mas não desnecessária na prática.
[...] é necessária, pois se concebermos uma norma como regra ou como princípio, haverá consequências
jurídicas e práticas a serem consideradas, ainda que por vício de repetição, tamanha a sua presença nos
discursos constitucionais.” (SAMPAIO, 2013, p. 405).
68
“Os constitucionalistas do positivismo, p. ex., haviam intentado separar com rigor o jurídico e o
programático.” (BONAVIDES, 2006, p. 244).
69
“As normas constitucionais de eficácia plena são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à
sua incidência imediata. [...] Não necessitam de providência normativa ulterior para sua aplicação. [...] As
normas constitucionais de eficácia contida também receberam do constituinte normatividade suficiente para
reger os interesses de que cogitam. Mas preveem meios normativos (leis, conceitos genéricos etc.) não
destinados a desenvolver sua aplicabilidade, mas, ao contrário, permitindo limitações à sua eficácia e
aplicabilidade. [...] Normas de eficácia limitada, em geral, não receberam do constituinte normatividade
suficiente para sua aplicação, o qual deixou ao legislador ordinário a tarefa de completar a regulamentação da
matéria nelas traçada em princípio ou esquema. As de princípio institutivo encontram-se principalmente na
parte orgânica da constituição, enquanto as de princípio programático compõem os elementos socioideológicos
que caracterizam as cartas magnas contemporâneas. Todas elas possuem eficácia ab-rogativa da legislação
precedente incompatível e criam situações subjetivas simples e de interesse legítimo, bem como o direito
subjetivo negativo. Todas, enfim, geram situações subjetivas de vínculo. [...]
72
[...] Bem o nota Carmen Lúcia Antunes da Rocha quando argutamente observa que
“todos os verbos utilizados na expressão normativa - construir, erradicar, reduzir,
promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se
tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são
definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político
retratado pelo constituinte na elaboração do texto constitucional.” (SILVA, 2006, p.
46).
4.2 Patrimonialismo
71
“Uma Teoria da Constituição para o nosso tempo deve assentar-se no sistema de valores fundamentais da
Constituição, partindo do pressuposto de que não são imutáveis.” (BARACHO, 1978, p. 47).
72
Clientelismo é o “tipo de relação política em que uma pessoa (o patrão) dá proteção a outra (o cliente) em
troca de apoio, estabelecendo-se um laço de submissão que, por um lado, não depende de relações de
parentesco e, por outro, não tem conotação jurídica.” (FERREIRA, 2010). “Entre políticos, costume que
consiste em favorecer uma clientela em troca de votos” (MICHAELIS, 2016).
Assistencialismo é a “prática que consiste numa pretensa assistência social às pessoas carentes da sociedade,
exercida por políticos, com o intuito de conseguir apoio eleitoral.” (MICHAELIS, 2016).
Fisiologismo é a “atitude ou prática (de políticos, funcionários públicos etc.) caracterizada pela busca de
ganhos ou vantagens pessoais, em lugar de ter em vista o interesse público.” (FERREIRA, 2010). É o “modo
de proceder e prática de alguns políticos e de certos servidores do Estado que buscam benefícios pessoais em
detrimento do interesse público.” (MICHAELIS, 2016).
Filhotismo, segundo Victor Nunes Leal, é verificado, frequentemente na prática municipal, quando o poder
econômico e político local “convoca muitos agregados da ´gamela´ municipal” e perfaz “a utilização do
dinheiro, dos bens e dos serviços do governo municipal nas batalhas eleitorais” (LEAL, 2014, p. 60).
Mandonismo, ainda na obra do ex-Ministro, seria a “[...] outra face do filhotismo [...] que se manifesta na
perseguição aos adversários: ‘para os amigos pão, para os inimigos pau’. As relações do chefe local com seu
74
adversário raramente são cordiais. O normal é a hostilidade. Além disso, como é óbvio, sistemática recusa de
favores, que os adversários, em regra geral, se sentiriam humilhados de pedir.” (LEAL, 2014, p. 60).
73
Na obra “A cabeça do brasileiro” realizou-se pesquisa de campo destinada à medição do patrimonialismo
brasileiro, inclusive com perguntas transversais/indiretas aos entrevistados: “No caso da “festa com som alto”
(letra e), procurou-se sintetizar a questão das regras de “boa vizinhança”. Do ponto de vista patrimonialista,
incomodar o vizinho como o som alto não é problema de quem dá a festa, mas um problema do vizinho. Tal
como no velho ditado “os incomodados que se mudem”. Para quem dá uma festa, o espaço público é
determinado pelo bem-estar dos vizinhos. Desconsiderar isso é tratar o público como se fosse privado. Talvez
isso explique por que os países mais antipatrimonialistas do mundo, os de tradição anglo-saxã, são tão
silenciosos.” (ALMEIDA, 2007, p. 100).
75
O Estado Patrimonial, para Érico Veríssimo, prima pela sua incompetência. O que
depende dele não funciona. Se os fenômenos naturais fossem da alçada da
pachorrenta burocracia, haveria uma subversão no estado do tempo. Eis o que
afirmava um dos representantes da última geração dos Cambará, Floriano, numa
cena que se passa na Porto Alegre de 1945, ao observar, junto com o seu amigo
Roque Bandeira, o belo entardecer:
É uma sorte o pôr do sol não depender do governo e de nenhuma autarquia, porque,
se dependesse, o trabalho cairia nas garras de funcionários incompetentes e
desonestos, haveria negociata na compra do material, acabariam usando tintas
ordinárias... e nós não teríamos espetáculos como este. (VERÍSSIMO, Érico. O
Tempo e o Vento III, Ob. Cit., p. 699).
Ao lado da incompetência, o Estado patrimonial caracteriza-se pelo clientelismo e
por uma estrutura familística e anárquica. Não há espaço público. É tudo uma
emanação da Casa Grande dos poderosos. As instituições pouco importam. Império
ou República, tudo depende das pessoas que mandam, dos Donos do Poder.
(VÉLEZ RODRIGUEZ, 2008, p. 216).
74
“Patrimonialismo e corrupção são idéias afins, e isso significa que quanto mais alguém acha correto e defende
valores patrimonialistas, mais tenderá a ser tolerante com a corrupção e práticas correlatas. Nesse sentido, os
dados da PESB permitem concluir que essa tolerância é realmente maior entre aqueles de escolaridade mais
baixa; que a população do Nordeste convive melhor com a corrupção do que os habitantes da região Sul... [...]
Que tipo de pressão sofre um político eleito em grande parte por pessoas que formam aqueles 17% que
consideram correto usar um cargo público em seu próprio benefício?” (ALMEIDA, 2007, p. 109).
76
75
Roberto DaMatta, em artigo publicado no dia 23 de agosto de 2017, nos jornais Estado de São Paulo e O
Globo, exemplifica faceta patrimonialista brasileira, valendo-se da repercussão ocasionada por decisão em
habeas corpus do Ministro Gilmar Mendes, que dias antes desconstituíra a prisão cautelar de empresário
ligado a concessionárias de transporte público no estado do Rio de Janeiro, detido no aeroporto do Galeão
quando rumava para Portugal apenas com passagem de ida:
“[...] O ministro do STF Gilmar Mendes faz uma pergunta capital: “Você acha que ser padrinho de casamento
impede alguém de julgar um caso?”
O uso e o abuso dos elos pessoais no campo formal são o nosso problema central. Como mostro na minha
obra, há um dilema entre muitas leis e pouca reflexão sociológica sobre o peso de uma ética da casa que é
levada para o mundo impessoal da rua. Não é minha intenção julgar ou denunciar um julgador, mas ampliar,
nos limites de um texto jornalístico, um problema central da sociologia de países que, como o Brasil, têm
tentado adotar a agenda ideológica da democracia liberal.
A questão do ministro nos abre para as ambiguidades do “você sabe com quem está falando?” e do “jeitinho”.
Se você responder com um “não”, você presume que o juiz vai englobar — subtraindo — o padrinho. Mas se
você ouvir sua mulher, parentes e amigos e, mais do que isso, rememorar sua biografia, você vai verificar que
o “não” é muito complicado.
Num sistema relacional — uma estrutura na qual as relações são mais importantes do que os atores — o juiz
solta o indiciado que é muito mais afilhado do que um cidadão sujeito da lei. Não é fácil ficar com a lei numa
terra onde a lei é para inimigos; num sistema no qual se resiste a tudo, menos ao pedido de um amigo; e amor
com amor se paga!
Como indivíduos-cidadãos, somos todos sujeitos da lei, mas os laços com certas pessoas relativizam o estatuto
político-legal, fazendo com que a lei universal — essa clave mestra da democracia — torne-se um estorvo e
seja ignorada, reprimida ou arrogantemente aviltada. [...]
A pergunta do ministro é sintomática da ausência de uma ética pública. Valer dizer: de uma “ética política”
porque é justo no mundo público que surgem os becos pelas quais escapolem legalmente compadres, parentes,
correligionários e amigos.” (DaMATTA, 2017).
76
Distancia-se dos objetivos da presente dissertação o aprofundamento dos conceitos sociológicos de Estado
Patrimonial trazidos por Max Weber e Karl Wittfogel acerca desse fenômeno. Cabe registrar brevemente que
“Max Weber entende o Estado como ‘uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso
legítimo da força dentro de um determinado território’. [...] Weber distingue três tipos puros de dominação
legítima [...] a racional, a tradicional e a legítima. [...] No seio da dominação tradicional, Weber distinguiu dois
tipos básicos: o patrimonialismo e o feudalismo. [...] O patrimonialismo é caracterizado por Weber como
aquela forma de dominação tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu
77
poder doméstico. Ao lado da organização do poder político, segundo o modelo doméstico, é igualmente
essencial ao patrimonialismo a estruturação do quadro administrativo, por intermédio do qual se exerce a
dominação.” (VÉLEZ RODRÍGUEZ, 2006, p. 11-13).
“Se o arbítrio predomina, o patrimonialismo aproxima-se do que Weber classificou de patrimonialismo
sultanista, ou patriarcal, ou puro. Se prevalece a tradição, o patrimonialismo tende a transformar-se em
patrimonialismo estamental ou descentralizado, no qual as relações entre o príncipe e o corpo administrativo
são mais estáveis e equalizadas. Para Weber, cada forma de dominação engendra tensões e conflitos
específicos na luta pelo poder. O equilíbrio tenso e instável entre tradição e arbítrio e entre governantes
centralizadores e quadro administrativo descentralizador é característico dos tipos de dominação tradicional –
patrimonialismo e feudalismo. [...]” (CAMPANTE, 2003, p. 157).
79
5 GOVERNANÇA
Este capítulo subdivide-se em três itens que procuram expor a complexa temática da
governança e delimitar a sua dimensão normativa, que especialmente interessa à presente
pesquisa.
Para tanto, há o estudo dos modelos de Administração Pública, da polissemia de
governança, o exame desse conceito nas esferas privada e pública e, finalmente, a exposição
dos argumentos que atribuem a essência de norma jurídica.
77
Definir administração pública é tarefa complexa: “[…] Moreira Neto (1992, p. 81) conceitua administração
pública como “[...] o conjunto de atividades preponderantemente executórias, praticadas por pessoas jurídicas
de direito público ou por suas delegatárias, gerindo recursos total ou parcialmente públicos, na prossecução
dos interesses legalmente cometidos ao Estado”. A função administrativa, examinada como uma das atividades
estatais ou funções do Estado, traz em si pluralidade de nuanças, podendo ser estudada sob o prisma subjetivo
ou organizacional e, ainda, sob o ângulo objetivo ou funcional. A diversidade de matizes faz com que, por
vezes, utilize-se a denominada caracterização residual da administração pública: o “[...] conjunto de atividades
que não se enquadram na legislação, nem na jurisdição” (MEDAUAR, 1999, p. 47), não obstante “haver
incontestável unidade sistêmica entre as vertentes conceituais, inexistindo antagonismos, sim
complementações.” (COUTINHO, 2006, p. 496).
Cabe o registro introdutório de que, enquanto a ideia de administração pública (burocrática ou gerencial)
indica a estrutura administrativa eleita em determinada sociedade, o sentido de governança que mais interessa
à presente pesquisa adequa-se à noção de boa administração, consubstanciada em feixe de princípios jurídicos
que envolvem a operacionalização ou o agir estatal propriamente dito. São noções, embora formalmente
distintas, umbilicalmente vinculadas.
78
“[…] irretorquível que o “modelo chines” de autoritarismo centralizador, ainda que possa conduzir, anos
consecutivos, ao crecimento do PIB, alcança resultados pífios em termos de consistência intertemporal das
políticas públicas. Basta o partido definir que tenham de ser financiados determinados empreendimentos e os
bancos estatais perigosamente cedem. Logo apesar de o modelo produzir números vistosos (liderança mundial
em comércio) o faz à expensas do sacrifício da prudência. Em dado momento, semelhante modelo carecerá de
instituições do Estado de Direito, da segurança social e dos impostergáveis cuidados ambientais. Quer dizer, o
exemplo chinês de planejamento de cima para baixo, longe está de ser o ideal, pois adstrito a compromissos
sectários e a compadrios desviantes, com alta probabilidade de deslegitimação.” (FREITAS, 2014, p. 11).
79
“[…] o “modelo americano” de gestão (a despeito de seus méritos em tentativas de controle dos net benefits)
tem sido fiscalmente irresponsável e avesso à poupança, capturado por políticos de vista curta. Por isto,
também funciona mal, mercê de incentivos distorcidos, colapsos financeiros periódicos e crescente iniquidade,
com altíssimos custos associados.” (FREITAS, 2014, p. 11).
80
“[…] o modelo nórdico, à primeira vista, parece superior, mas é de improvável exportação. Desse modo, a
saída parece estar em combinar virtudes de vários modelos e selecionar as melhores características, com o
80
Mas não é só. Como visto no item 4.2 desta dissertação, a administração
patrimonialista não é restrita ao modelo que vigorava no Antigo Regime, dele extraindo-se a
gênese do patrimonialismo contemporâneo, também designado de neopatrimonialismo,
compreendido como a forma de “dominação política tradicional em que não há uma separação
visível entre as esferas pública e privada, em que esses dois domínios se misturam na
concepção do governante [...]” (TORRES, 2013, p. 144).
Justamente por isso, reconhece-se que “essa forma de administração transpôs-se, com
algumas modificações, a outros contextos” (COSTIN, 2010, p. 31):
Mais uma vez, retorna-se aos retratos do Brasil, na figura de Raymundo Faoro, cuja
“viagem redonda”, consubstanciada numa rota sem mudanças, transmite a ideia de que “toda
nossa trajetória, desde o descobrimento, é uma história marcada pela forte presença do
Estado, controlado e espoliado por uma elite denominada pelo autor estamento burocrático
[...]” (TORRES, 2013, p. 144). 82 O pacto entre os proprietários de terra, líderes da
82
Em sentido harmonioso, tem-se que “A situação indivisa, e desejosamente criada, de promiscuidade entre o
público e o privado, amalgamada numa esteira centralizadora, faz com que a administração pública
patrimonial arvore seus odioso resultados na atividade administrativa em detrimento justamente do interesse
que deveria preservar: o público.
Tal tipo de administração pública ainda é observado em muitos municípios brasileiros, especialmente naqueles,
encravados nos mais diversos rincões do nosso vasto território que, apesar de toda evolução normativa sobre
gestão pública e dos imperativos constitucionais contrapostos, permanecem submersos numa névoa de valores
coloniais de subordinação da coisa pública à autoridade senhorial.
[...] o patrimonialismo brasileiro remonta ao anacrônico sistema português de gestão pública, calcada na força
centralizadora e ablativa das medidas tomadas pelos seus administradores, geralmente dotados de propósitos
meramente egoísticos ou simplesmente autocráticos.
Ora, a perspectiva patrimonial de administração pública, calcada nos parâmetros meramente pessoais da
autoridade senhorial e manifestamente corporificada numa atuação legal desprovida de qualquer racionalidade
82
85
“A relação entre burocracia e controle é intensa e conhecida: níveis mais elevados e sofisticados de controle
exigem, quase automaticamente, maiores e melhores estruturas burocráticas. As empresas conhecem bem esta
relação e, no entanto, mecanismos de controle são cada vez mais adotados e sofisticados no mundo corporativo.
Nitidamente, se os mecanismos de controle continuam sendo utilizados e desenvolvidos, é porque a relação
custo/benefício aponta no sentido de que vale a pena criar e custear essas estruturas e estabelecer esses
procedimentos burocráticos. Sem dúvida, essa estrutura burocrática de controle propicia conhecimentos vitais
sobre a composição, o modo de funcionamento, o gerenciamento de estoques e os processos organizacionais
internos das corporações.” (TORRES, 2013, p. 21).
86
“A noção pejorativa de burocracia, que é a mais difundida na sociedade, associa esse modelo [...] à hipertrofia
de estruturas administrativas, ou à superposição de uma série de etapas desnecessárias ao longo da execução
de um processo ou procedimento administrativo. Por esse prisma, burocracia é entendida como sinônimo de
uma estrutura essencialmente descartável, ineficiente e onerosa, pois absorve recursos financeiros e humanos
que seriam mais bem empregados em áreas produtivas e finalísticas, tanto nas empresas quanto na
administração pública.
Especialmente na ciência política, o conceito de burocracia também está ligado à noção de oligarquização e
caráter antidemocrático. Um dos estudos mais contundentes sobre a oligarquização das organizações políticas
foi feito por Robert Michels, no princípio do século XX. Em seu trabalho, o autor analisa um longo processo
de oligarquização e profissionalização dos quadros dirigentes dos partidos socialistas. Quase invariavelmente,
esse processo leva ao afastamento e ao distanciamento da cúpula em relação às bases dessas organizações,
subsidiando a clássica formulação micheliana da lei de bronze das oligarquias.” (TORRES, 2013, p. 16).
84
87
Registra-se, segundo a defesa do modelo dialógico, que “A administração pública dialógica se caracteriza,
primordialmente, por: a) empreender uma concepção democrática da função administrativa nos seus mais
diversos segmentos; b) fomentar o emprego da consensualidade no trato das matérias ou questões públicas; c)
destacar a politização do cidadão com vista a participar efetivamente na formação da decisão estatal; e d)
trabalhar relações talhadas, sempre que possível, na reciprocidade comunicativa. [...] A administração pública
dialógica, portanto, encerra os esteios de um paradigma dialógico do direito, baseado na teoria do discurso
capaz de romper “a tensão entre uma prática dogmática do direito e os ideais do Estado constitucional e
democrático de direito institucionalizado” [...] Jürgen Habermas sintetiza a teoria do discurso na validade das
normas de ação em que concordariam, na qualidade de participantes de discursos racionais, os cidadãos
possivelmente afetados por elas [...] donde ressai, tranquilamente, a dimensão dialógica da teoria discursiva
habermasiana. Não há como negar que a teoria do discurso fortalece a democracia participativa e prestigia a
legitimidade, uma vez que permite um alargamento do canal de comunicação que envolve o Estado e a
sociedade, tudo sob o signo do agir comunicativo entre os promovedores da ação comunicativa, de maneira a
resultar num consenso resultante e validado pelo procedimento pautado pela dialogia.”. (LIMA, 2013, p. 99-
111).
Estabelece o referido autor a compreensão de que apenas a administração dialógica promoveria a gestão
pública efetivamente democrática, caracterizando-se o modelo patrimonial pela gestão autocrática, o modelo
burocrático pela gestão tecnocrática e o gerencial por modelo de gestão teleocrática, vinculada à eficiente
enquanto a atuação funcional na administração dialógica seria associada, antes, ao consensualidade. (LIMA,
2013. p. 111).
A administração obediente ao desenho constitucional de 1988 buscará o consenso e a participação plural de
atores, sem dicotomias com o dever estatal de submissão à eficiência administrativa. Na esteira do diálogo
entre as fontes do Direito, não há supremacia ou via única dialógica dentro da gama multidimensional de
vetores da boa administração.
88
“[…] um Estado propulsor […] leva em conta outros sistemas sociais autônomos por ele orientados à atuação
num sentido definido como harmônico com o interesse geral (MORAND, 1999, p. 71). Parcerias e consenso
são as novas palavras de ordem, numa esfera pública habitada por múltiplos atores, finalmente reconhecidos
como interlocutores necessários. […]
Finalmente, é possível falar num Estado incitador, orientado pelo intuito de influenciar – como o Estado
propulsivo -, mas por meios mais persuasórios, a partir de estratégias, como a máxima abertura à informação, a
difusão de conhecimentos e outras técnicas dirigidas a exercer ascend6encia sobre os comportamentos.”
(VALLE, 2011, p. 89-90).
85
89
“É interessante observar que, a despeito de entusiasmos ou exageros iniciais, a reforma da gestão pública, na
maioria dos países, teve uma lógica de preservação de traços importantes da administração burocrática, tais
como: carreiras estruturadas e com exigência de concursos públicos para atividades de policiamento,
fiscalização, regulação e coordenação de políticas públicas; exigência de procedimentos estruturados,
incluindo licitações e tomadas formais de preços para compras governamentais e contratação de obras e
serviços; procedimentos previstos em leis e regulamentos para elaboração, movimentação e arquivamento de
documentos oficiais; mecanismos de proteção do servidor público contra perseguições políticas; estruturas de
controle interno e externo (que continuam a verificar inclusive adequação a procedimentos estabelecidos),
mesmo na presença de uma sociedade vigilante e de contratação de empresas de auditoria.” (COSTIN, 2010, p.
35).
86
e do Terceiro Setor, como governança corporativa; ora como matéria pertinente às relações
internacionais, partindo de sua dimensão política90; no âmbito público interno, nas dimensões
da accountability91, de técnica de gestão, de processo complexo de tomada de decisão, de
práticas do Estado mínimo92, do New Public Mangement (NPM)93, da boa governança94, da
governança como sistema sociocibernético95, do conjunto de redes organizadas, em que o
Estado é um dos atores no sistema mundial96 (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114), ou, ainda,
na essência normativa do direito fundamental à boa administração ou boa governança, no
Estado Democrático (VALLE, 2011; FREITAS, 2014; RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ,
2012), sendo esta última um dos objetos da presente dissertação.
Nos estudos sobre o tema, trabalhos do Banco Mundial também ressaltam a amplitude
conceitual de governança, com largo conteúdo político, econômico e jurídico:
[...] em 1992 [...] o traduziu como ‘a maneira pela qual o poder é exercido na
administração dos recursos sociais e econômicos de uma país, visando ao
desenvolvimento’ (THE WORLD BANK, 1992, p. 14). É da mesma agência
internacional a afirmação de que o conceito envolve três distintos aspectos, a saber:
1. A forma de que se reveste o regime político; 2. o processo pelo qual a autoridade
é exercida na gestão dos recursos econômicos e sociais de um país, rumo ao próprio
90
“Um dos sérios problemas da análise científica é a imprecisão dos conceitos. Com a palavra governança
parece estar acontecendo um movimento de uso amplo da expressão, sem que sua utilização esteja cercada do
cuidado analítico que requer. É preciso, portanto, precisar o seu significado no contexto em que é aplicado.
Além disso, vale a pena destacar que governança tem aplicação em variados campos, com sentidos diferentes.
[...] Busca-se aqui estudar a governança como um problema das relações internacionais, partindo de sua
dimensão política, e buscando identificar a sua importância para o Direito Internacional.” (GONÇALVES,
2006).
91
“O termo accountability pode ser aceito como o conjunto de mecanismos e procedimentos que levam aos
decisores governamentais a prestar contas dos resultados de suas ações, garantindo-se maior transparência e a
exposição pública das políticas públicas. Quanto maior a possibilidade de os cidadãos poderem discernir se os
governantes estão agindo em função do interesse da coletividade e sancioná-los apropriadamente, mais
“accountable” é um governo. Trata-se de um conceito fortemente relacionado ao universo político
administrativo anglo-saxão.” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 25).
92
“[...] baseado na necessidade da redução dos déficits públicos [...] refere-se a uma nova forma de intervenção
pública e ao papel dos mercados na produção dos serviços públicos (STOCKER, 1995);” (MATIAS-
PEREIRA, 2010, p. 114).
93
“[...] o NPM prega a gestão e os novos mecanismos institucionais em economia, através da introdução de
métodos de gestão do setor privado e do estabelecimento de medidas incitativas (“incentives”) no setor
público;” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114).
94
“[…] utilizada originalmente pelo Banco Mundial com referência a suas políticas de empréstimos, a boa
governança é uma norma que supõe a eficácia dos serviços públicos, a privatização das empresas estatais, o
rigor orçamentário e a descentralização administrativa;” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114).
95
“[…] a governança pode ser considerada “as the pattern or structure that emerges in a social-political system
as common result or outcome of the interacting intervention efforts of all involved actors”(KOOIMAN, 1993).
As palavras centrais dessa definição são a complexidade, a dinâmica das redes e a diversidade dos atores. O
mundo político seria assim marcado pelas coestratégias: a cogestão, a corregulação, assim como as parcerias
público-privado.;” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114).
96
“[...] a governança refere-se a “managing networks that are self-organizing” Considerando que o Estado é um
dos atores (e não mais o único e exclusivo ator) no sistema mundial, as redes integradas e horizontais (ONGs,
redes profissionais e científicas, meios de comunicação) desenvolvem suas políticas e modelam o ambiente
desse sistema (RHODES, 1996).” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114).
88
97
“[...] as organizações privadas também criam mecanismos de governança para lidar com a delegação de poder.
A gênese de uma organização que nasce e cresce no mercado, simplificadamente, passa por algumas etapas: O
“dono” cria a empresa, a empresa cresce, o dono não mais executa sozinho, a empresa passa por sucessivos
processos de delegação. O “dono” se vê obrigado a implementar mecanismos de incentivo e monitoramento,
para que os agentes aos quais ele delegou poderes estejam alinhados com as suas expectativas.” (MACHADO
FILHO, 2013, p. 77).
98
“Em 1984, quando participei do AMP (Advanced Management Program) da Harvard Business School,
estudamos os problemas relacionados a conselho, acionistas e diretorias, mas a expressão corporate
governance não existia. Ela surgiu na língua inglesa apenas no final dos anos 1980, o que demonstra quanto é
recente esta discussão.” (STEINBERG, 2003, p. 109).
89
99
“O fator humano é a grande questão a gerir. Sem diminuir a margem dos seus agentes para cometer abusos, as
empresas não criam condições para o próprio crescimento e perenidade.” (STEINBERG, 2003, p. 53).
100
Frequentemente, é utilizada a expressão stakeholder no contexto da governança corporativa, a indicar a “parte
interessada” no negócio. Não se trata de termo restrito aos sócios das empresas. A expressão shareholder,
embora também indicativa de parte interessada, é mais restrita, referindo-se aos acionistas. Nesse sentido, nas
atividades empresariais de uma empresa mineradora, por exemplo, o Estado é um stakeholder, do mesmo
90
A partir dos paradigmas até o momento estabelecidos, podem ser relacionados como
princípios gerais da governança corporativa o planejamento, a transparência, a equidade, a
prestação de contas (accountability), a responsabilidade corporativa e a eficiência.
O planejamento tem lastro no próprio objetivo social, pressupondo a existência de
metas e planos de organização para o alcance dos compromissos da empresa. É antecedente
lógico da eficiência - a esperada qualidade final dos serviços ou produtos da organização
decorrentes da gestão.
Nesta dissertação, o princípio do planejamento, corolário da governança pública,
possui valor especial, ao guardar relação estreita com o tema referente às formas de acesso a
cargos, empregos e funções estatais, representando meio para o enfraquecimento de específico
ciclo de pobreza nacional consubstanciado no patrimonialismo, o que será enfrentado no
próximo capítulo.
O agir transparente, por sua vez, é prática indispensável no cotidiano das entidades e
corporações estando umbilicalmente relacionada à prestação de contas (accountability) e à
responsabilidade corporativa, excluindo-se de sua abrangência apenas o segredo do modo de
fazer ou de produzir, nos limites estabelecidos em lei.
A transparência é considerada pelo IBCG como um dos quatro princípios básicos da
governança corporativa, juntamente com a equidade, a prestação de contas (accountability) e
a responsabilidade corporativa, representando o mais amplo “desejo de disponibilizar para as
partes interessadas as informações que sejam de seu interesse e não apenas aquelas impostas
por disposições de leis ou regulamentos.” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA
CORPORATIVA, 2016, p. 20).
A equidade indica ser imperativo o “[...] tratamento justo e igualitário de todos os
grupos minoritários, seja do capital, seja das demais “partes interessadas” (stakeholders),
como colaboradores, clientes, fornecedores ou credores.” (SLOMSKI, 2014, p. 132). A
atenção especial aos “direitos, deveres, necessidades, interesses e expectativas” (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2016, p. 21) dos stakeholder e
shareholders é consequência que se extrai do princípio da equidade na governança
corporativa.
O princípio da prestação de contas (accountability), como o próprio nome antecipa,
condensa o dever dos agentes da entidade ou corporação de prestarem contas da atuação no
exercício de suas funções “de modo claro, conciso, compreensível e tempestivo, assumindo
integralmente as consequências de seus atos e omissões [...]” (INSTITUTO BRASILEIRO
DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2016, p. 21).
A responsabilidade corporativa possui largo espectro, sendo traduzida no dever de se
observar a “viabilidade econômico-financeira das organizações, reduzir as externalidades
negativas de seus negócios e suas operações e aumentar as positivas”. Cabe aos agentes da
empresa, por meio deste princípio, atenderem “no seu modelo de negócios, os diversos
capitais (financeiro, manufaturado, intelectual, humano, social, ambiental, reputacional, entre
outros) (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2016, p. 21),
zelando pela perenidade da organização.
Nesse sentido, a responsabilidade corporativa tem extensão muito superior ao enfoque
meramente econômico e financeiro. Os executivos “devem incorporar considerações de
ordem social e ambiental na definição de negócios e operações”, representando “visão mais
ampla da estratégia empresarial, contemplando todos os relacionamentos com a comunidade
em que a sociedade atua.” (SLOMSKI, 2014, p. 133).
A função social da empresa tem estreita ligação com a governança e a
responsabilidade corporativa, porquanto impositiva do envolvimento da empresa no ambiente
comunitário, por meio de ações inclusivas diversas.
Já o princípio da eficiência, no modelo de governança corporativa, vincula-se aos fins
sociais da empresa ou organização. É a diretriz final relacionada ao atingimento dos objetivos
estatutários da entidade ou corporação.
A melhoria do desempenho da entidade ou da corporação, fruto da adequada
governança, atende a esta diretriz existencial consubstanciada na eficiência.
Como visto, a eficiência, mesmo para as sociedades com fins lucrativos, não se esgota
no campo econômico, diante da gama de interesses complexos decorrentes do exercício das
atividades corporativas, a demandarem inclusive a construção do paradigma da função social
da empresa. Isso tudo sem mencionar as OTS, também submetidas às recomendações de boa
administração e governança para a consecução dos interesses comuns.
É importante sublinhar, finalmente, que o fortalecimento das atividades das
Organizações de Terceiro Setor OTS, nas últimas duas décadas, trouxe reforço ao elo
existente entre a governança corporativa e a governança, na medida em que na “essência das
práticas de governança está a necessidade da redução do desalinhamento entre principal e
agente, de forma que se busque conciliar os interesses de longo prazo do empreendimento.”
92
101
“Esse desalinhamento, derivado da delegação de poder e da criação de assimetrias informacionais, ocorre em
qualquer tipo de organização, embora se levando em conta as diferenças intrínsecas dos diversos tipos de
organização, com e sem fins lucrativos. Os mecanismos de governança podem ser aplicados a organizações
não governamentais de caráter social, associações de classe, cooperativas, universidades, clubes de futebol etc.
Segundo Fischer (2002, p. 51), os maiores desafios para as OTS estão na melhoria da eficácia de gestão dessas
organizações ou, em essência, nas melhorias da governança:
Para superar essa vulnerabilidade e fortalecer-se no estabelecimento de alianças estratégicas, as organizações
da sociedade civil necessitam desenvolver algumas competências essenciais […] as competências para
apresentar sua operação e sua gestão com transparência, em um conceito aproximado do significado do termo
inglês accountability. E as competências para produzir serviços com alto padrão de qualidade, que gerem
resultados efetivos e passíveis de avaliação pelo conjunto da sociedade civil.” (MACHADO FILHO, 2013, p.
104-105).
93
102
L’administration est autonome au point de se réglementer elle-même et d’avoir conscience d’une certaine
moralité qui s’impose à elle.
En ce qui concerne la réglementation opérée soit par les décrets du chef de l’État, soit par les arrêtés des
autorités diverses, la situation de l’administration active est la même que vis-à-vis de la législation, c’est-à-dire
qu’elle doit l’obéissance à la règle posée avec la même latitude résultant du choix de l’opportunité. Au reste,
nous avons vu que la réglementation fait partie du bloc de la légalité.
Quant à la moraliaté administrative, son existence provient de ce que tout être possédant une conduite pratique
forcément la distinction du bien et du mal. Comme l’administration a une conduite, elle pratique cette
distinction en même temps que celle du juste et de l’injuste, du licite et de l’illicite, de l’honorable et du
déshonorant, du covenable et de l’inconvenant. La moralité administrative est souvent plus exigeante que la
légalité. Nous verrons que l’institution de l’excès de pouvoir, grâce à laquelle sont annulés beaucoup d’actes
de l’ administration, est fondée beaucoup plus sur la notion de la moralité administrative que sur celle de la
légalité, de telle sorte que l’administration est liée dans une certaine mesure par la morale juridique,
particulièrement en ce qui concerne le délournement de pouvoir (V. infra, recours pour excès de pouvoir).
Mais on se rendra compte de la marge que conserve sur ce point le pouvoir discrétionnaire de l’administration,
quand on saura que celle-ci ne se considère pas encore comme tênue de donner les motifs des décisions qu’elle
prend; or, le détournement de pouvoir ne peut être saisi que dans les motifs de la décision.
94
basicamente concentradas nas fórmulas tributárias, o Estado trilha caminho que, a par das
escolhas políticas e ideológicas, precisa estar amparado em organizada e ágil estrutura
administrativa legitimadora103 de suas ações ordinárias, para a melhor realização das metas
estabelecidas.
No Brasil, além dessa realidade comum às democracias ocidentais globalizadas, existe
ainda o programa normativo da Constituição destinado a romper o subdesenvolvimento, não
buscando apenas a modernização. Como anotado em capítulos anteriores, a coparticipação da
Administração Pública na ruptura ou enfraquecimento de ciclos de pobreza é exigência
constitucional normatizada nos objetivos da República, o que mais se assemelha a verdadeiro
desafio constitucional, tamanhos os déficits ainda hoje verificados em nosso País.
A especial atenção para os mecanismos de melhora de desempenho, assim, é
experiência bem vinda da governança corporativa, verbis:
103
Quando se aborda a “legitimidade” na ação estatal usualmente é exposta a distinção entre governança e
governabilidade. “Enquanto a governabilidade diz respeito às condições do exercício da autoridade política,
governança qualifica o modo de uso dessa autoridade”, por meio do feixe de princípios jurídicos que
disciplinam o agir da administração pública. Governabilidade, assim, é a “capacidade política de governar.”
(MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 110).
104
“A partir da metade da década de 50 do século XX começa a surgir a preocupação com uma democracia mais
completa, com a democracia que transpõe o limiar da eleição de representantes políticos para expressar-se
também no modo de tomada de decisão dos eleitos. Emergiu a idéia de que o valor da democracia depende
também do modo pelo qual as decisões são tomadas e executadas. Verificou-se que havia, com frequência,
96
grande distanciamento entre as concepções políticas de democracia vigentes num país e a maneira com que
ocorriam as atuações da Administração [...] Passou a haver, então, uma pregação doutrinária em favor da
democracia administrativa, que pode ser incluída na chamada democracia de funcionamento ou operacional
[...] Isso porque, o caráter democrático de um Estado declarado na Constituição, deve influir sobre o modo de
atuação da Administração, para repercutir de maneira plena em todos os setores estatais.” (MEDAUAR, 2015,
p. 44-45).
105
“[…] democracia liberal, na atualidade, exige do cidadão a participação além do processo eleitoral.”
(TÔTORA, 2014, p. 79).
106
A visão clássica estabelece a seguinte orientação: “[...] governo é atividade política e discricionária;
administração é atividade neutra, normalmente vinculada à lei ou à norma técnica. Governo é conduta
independente; administração é conduta hierarquizada. O Governo comanda com responsabilidade
97
contemporânea.
Assinala Agustín Gordillo que “não existem nem teórica, nem praticamente, os atos de
governo: porque todos os atos do Poder Executivo estão sujeitos à revisão judicial [...]”107
(GORDILLO, 2003, p. VIII-33, tradução nossa).
Nesse sentido, é rejeitada a tese da separação dos atos de governo e atos de gestão,
frente à impossibilidade da dissociação “entre atividade política e função administrativa –
donde restará justificada a preocupação de legitimar-se, pela abertura democrática, as escolhas
estratégicas que se formulem no exercício da administração” (VALLE, 2011, p. 55):
constitucional e política, mas sem responsabilidade profissional pela execução; a Administração executa sem
responsabilidade constitucional ou política, mas com responsabilidade técnica e legal pela execução. A
Administração é o instrumento de que dispõe o Estado para por em prática as opções políticas do Governo.”
(MEIRELLES, 2016, p. 69).
107
No existen, ni teórica ni prácticamente, los actos de gobierno: porque todos los actos del Poder Ejecutivo
están sujetos a revisión judicial.
98
do Direito Administrativo.
No campo jurídico, a governança, boa governança ou boa administração é alvo de
considerável atenção na doutrina administrativa europeia, fenômeno incentivado, em parte,
pela sua expressa tipificação na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta de
Nice), proclamada em 7 de dezembro de 2000, que se tornou juridicamente vinculativa com a
entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2009108, possuindo, desde então, o
mesmo valor jurídico dos tratados:
108
“TRATADO DE LISBOA. [...] ARTIGO 6.º 1. A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios
enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, com as
adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor
jurídico que os Tratados. De forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal
como definidas nos Tratados.” (PORTUGAL, 2008).
99
direito fundamental à boa administração implica a subversão do seu próprio potencial como
mecanismo de democratização e aperfeiçoamento da função da mesma natureza [...]” que
representa o dever de proteção do interesse público e a defesa da coletividade. Ou seja, o
conflito interno da governança estaria situado na tensão causada pela precedência da
“proteção das situações individuais, quando o objetivo era configurar um modelo de agir do
Estado.” (VALLE, 2011, p. 102).
Nada obstante, ambas as situações apontadas são superáveis.
A uma, porque a ideia de direito ou de norma constitucional cristalizada não é
compatível com o Estado Democrático de Direito, em que a transformação da realidade social
é uma das características do ordenamento jurídico. A Constituição não é compatível com o
escopo de engessamento normativo das futuras gerações.
Nesse sentido, pululam exemplos de normas e institutos jurídicos, como o princípio
democrático, a isonomia e a própria mutação constitucional 110 , que testemunham
precisamente a essência dinâmica do Direito.
De modo similar, Vanice Regina Lírio do Valle registra essa natureza do direito à
governança:
[...] o Direito não pode ter a pretensão de internalizar em seu próprio sistema um
valor – boa administração – que, por definição, é dinâmico, sem preservar essa
mesma característica. Juridicizar boa administração não pode jamais significar uma
ruptura, ou pretensão de estabilização de um conceito que repudia visceralmente a
cristalização, exigindo, ao contrário, adaptação permanente, resiliência. [...]
A constatação do caráter fluido e temporalmente localizado do conceito não há de
gerar para o Direito igualmente qualquer dificuldade teórica de maior envergadura.
Afinal, também nas ciências jurídicas, especialmente no campo dos direitos
fundamentais, a atualização permanente de sentido é um imperativo, sob pena de
perda de aplicação e relevância. (VALLE, 2011, p. 99 e 107).
110
“As Constituições têm vocação de permanência. Idealmente, nelas têm abrigo as matérias que, por sua
relevância e transcendência, devem ser preservadas da política ordinária. A constitucionalização retira
determinadas decisões fundamentais do âmbito de disposição das maiorias eventuais. Nada obstante isso, as
Constituições não são eternas nem podem ter a pretensão de ser imutáveis. Uma geração não pode submeter a
outra aos seus desígnios. Os mortos não podem governar os vivos. Porque assim é, todas as Cartas Políticas
preveem mecanismos institucionais para sua própria alteração e adaptação a novas realidades [...]. Com efeito,
a modificação da Constituição pode dar-se por via formal e por via informal. A via formal se manifesta por
meio da reforma constitucional, procedimento previsto na própria Carta [...]. Já a alteração por via informal se
dá pela denominada mutação constitucional, mecanismo que permite a transformação do sentido e do alcance
de normas da Constituição, sem que se opere, no entanto, qualquer modificação do seu texto. A mutação está
associada à plasticidade de que são dotadas inúmeras normas constitucionais.” (BARROSO, 2016, p. 157-158).
101
agir da esfera estatal, harmoniza-se, no paradigma democrático, com o ângulo subjetivo das
pretensões individuais.
Assim, o “direito fundamental à boa administração, traduzido na sua dimensão
objetiva como governança, incorpora à ideia de resultado a sobrevalorização da cidadania
ativa”, compatibilizando-se com a dimensão subjetiva representada nas expectativas
individuais ou coletivas da ação administrativa, “evoluindo de uma lógica marcadamente
economicista, para curvar-se a uma dimensão ética que necessariamente deve orientar o poder
num Estado Democrático de Direito (VALLE, 2011, p. 162).
A lição da doutrina italiana é compatível com essa abertura democrática e o enfoque
plural do direito à boa governança:
Constitui, como boa aproximação, uma fórmula abrangente usada para afirmar a
reivindicação correta dos cidadãos de que a Administração não é apenas respeitadora
dos legados e dos direitos e interesses dos indivíduos, mas, ao mesmo tempo, produz
resultados produtivos para a comunidade 111 (GIUFRIDA, 2012, p. 15, tradução
nossa).
111
[...] costituisce, com buona approssimazione, una formula omnicomprensiva cui si ricorre per affermare la
giusta pretesa dei cittadini a che l’Amministrazione sia non solo rispettosa dela lege e dei diritti e degli
interessi dei singoli, ma, al contempo, produttiva di risultati utili per la collettività.
112
A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 19.841, de
22 de outubro de 1945, traz o princípio da boa-fé nas relações jurídicas internacionais, em interpretação dos
seus arts. 1º e 2º (ORGANIZAÇAO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).
102
Por sua vez, no ano de 2013, a Carta Iberoamericana de los Derechos y Deberes del
Ciudadano en Relación con la Administración Pública foi aprovada pelo Conselho Diretivo
do CLAD, em 10 de outubro. Mais uma vez, houve o reconhecimento do direito à boa
administração e da sua fundamentalidade:
113
[...] Los principios básicos que guiarán la acción del buen gobierno son:
a. El respeto y reconocimiento de la dignidad de la persona humana.
b. La búsqueda permanente del interés general.
c. La aceptación explícita del gobierno del pueblo y la igualdad política de todos los
ciudadanos y los pueblos.
d. El respeto y promoción de las instituciones del Estado de Derecho y la justicia
social.
3. Los valores que guiarán la acción del buen gobierno son, especialmente: Objetividad, tolerancia, integridad,
responsabilidad, credibilidad, imparcialidad, dedicación al servicio, transparencia, ejemplaridad, austeridad,
accesibilidad, eficacia, igualdad de género y protección de la diversidad étnica y cultural, así como del medio
ambiente.
4. Se entiende por buen gobierno aquél que busca y promueve el interés general, la
participación ciudadana, la equidad, la inclusión social y la lucha contra la pobreza,
respetando todos los derechos humanos, los valores y procedimientos de la democracia y el Estado de Derecho.
Este Código, a partir de los principios y valores fundamentales reconocidos, se articula en três tipos de reglas
de conducta, las vinculadas a: la naturaleza democrática del gobierno, a la ética gubernamental y a la gestión
pública.
103
114
[...] Preámbulo. [...] La buena Administración Pública adquiere una triple funcionalidad. En primer término,
es un principio general de aplicación a la Administración Pública y al Derecho Administrativo. En segundo
lugar, es una obligación de toda Administración Pública que se deriva de la definición del Estado Social y
Democrático de Derecho, especialmente de la denominada tarea promocional de los poderes públicos en la que
consiste esencialmente la denominada cláusula del Estado social: crear las condiciones para que la libertad y la
igualdad de la persona y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas, removiendo los obstáculos que
impidan su cumplimiento y facilitando la participación social. En tercer lugar, desde la perspectiva de la
persona, se trata de un genuino y auténtico derecho fundamental a una buena Administración Pública, del que
se derivan, como reconoce la presente Carta, una serie de derechos concretos, derechos componentes que
definen el estatuto del ciudadano en su relación con las Administraciones Públicas y que están dirigidos a
subrayar la dignidad humana. La buena Administración Pública, sea como principio, como obligación o como
derecho fundamental, no es ciertamente una novedad de este tiempo. La Administración Pública siempre ha
estado, está, y seguirá estando, presidida por el muy noble y superior principio de servir con objetividad al
interés general. Ahora, con más medios materiales y más personal preparado, tal exigencia en el
funcionamiento y estructura de la Administración Pública implica que el conjunto de derechos y deberes que
definen la posición jurídica del ciudadano esté más claramente reconocido en el ordenamiento jurídico y, por
ende, sea mejor conocido por todos los ciudadanos. [...] 25. Los ciudadanos son titulares del derecho
fundamental a la buena Administración Pública, que consiste en que los asuntos de naturaleza pública sean
tratados con equidad, justicia, objetividad, imparcialidad, siendo resueltos en plazo razonable al servicio de la
dignidad humana. En concreto, el derecho fundamental a la buena Administración Pública se compone, entre
otros, de los derechos señalados en los artículos siguientes, que se podrán ejercer de acuerdo con lo previsto
por la legislación de cada país.
115
Va más allá que lo dispuesto en el Ordenamiento jurídico europeo pues el contenido de este documento del
CLAD trasciende, y supera, la regulación europea establecida en el artículo 41 de la Carta Europea.
104
116
O princípio da legalidade antecede a invenção de modelos administrativos (burocrático e gerencial) e da
governança, vinculando-se ao nascimento do próprio Estado de Direito burguês decorrente da Revolução
Francesa. Exterioriza, de forma simbólica, a proteção dos direitos individuais em face do Estado, mas,
paradoxalmente, permite, com autoritarismo, a manutenção de privilégios e poderes de império da
Administração. Daí a ressignificação de legalidade por juridicidade pretendida por parcela da doutrina
administrativista contemporânea (BINENBONJM, 2014). A par disso, a legalidade, em ótica restrita, também
é figura central no modelo da Administração Pública burocrática.
105
[...] Quando nos referimos à boa Administração, não nos referimos a um conceito
filosófico, para ser considerado, em qualquer caso, lege ferenda, mas aludimos a um
conceito legal, incorporado como veremos já em vários sistemas legais e que gera
uma série de obrigações jurídicas públicas, que podem ser exigidas por vários
meios118. (SOLÉ, 2012, p. 307, tradução nossa).
117
“O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo,
voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste
em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se
voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma
política em processo de desenvolvimento.” (STRECK, 2008, p. 306).
118
Cuando nos referimos a la buena Administración, no hacemos alusión a un concepto filosófico, para ser
considerado, en todo caso, de lege ferenda, sino que aludimos a un concepto jurídico, incorporado como
veremos ya en diversos ordenamientos y que genera una serie de obligaciones jurídicas públicas susceptibles
de ser exigidas por diversas vías.
106
119
“Os processos decisórios e de prestação de contas, no setor público, também são fonte de legitimidade. Nas
empresas, as decisões são tomadas pela direção, que presta contas a proprietários e acionistas. Já no setor
público, a sociedade participa das decisões das organizações, que a elas prestam contas de forma muito mais
complexa. Para tomar decisões, não basta às organizações públicas seu mandato legal: é preciso legitimá-las
por meio de uma interlocução democrática com a sociedade.
Por fim, é imperativo recuperar a legitimidade do Estado perante a população – desenvolver estratégias de
contraposição às práticas patrimonialistas, fortalecer a ética e a transparência públicas, promover a
participação do cidadão e conquistar qualidade no atendimento da população. Isso porque, se a democracia
107
possibilita que a sociedade se organize e cobre resultados dos governos, a frustração das expectativas e o
desânimo consequente de uma precária atuação do Estado comprometem o desenvolvimento democrático do
país. Logo, a qualidade da gestão pública é fator decisivo para alcançar os resultados esperados pela sociedade
e, portanto, para a legitimidade do Estado.” (OLIVEIRA, 2014, p. 35).
120
“A fragmentação administrativa no Estado contemporâneo foi, e ainda é, impulsionada: (i) pela transição de
uma “Administração Pública social” para uma “Administração Pública social e reguladora”; processo, através
do qual, a Administração Pública sofreu, a partir da segunda metade do século XX, uma “fuga” do centro, com
a proliferação de entidades institucionais ou territoriais distintas do Estado, o que propiciou um alargamento
das estruturas e atividades de uma Administração prestadora e social; e, mais recentemente, a partir da década
de 1970, uma divisão de tarefas público-administrativas, com os setores privados da sociedade (sociedade civil
e iniciativa privada), em razão da constatação da crise do Estado social, o que transformou a “face” da
Administração Pública, ao imputar a ela o papel de garantidora, reguladora e fiscalizadora de todas as
entidades e atividades delegadas e fragmentadas; (ii) pela democratização da Administração Pública [...]; (iii) e
pela busca da eficiência, como princípio jurídico-constitucional da Administração Pública que determina uma
maior fragmentação administrativa de forma a atender os princípios da universalidade, solidariedade,
continuidade dos serviços públicos, igualdade e dignidade da pessoa humana.” (FREITAS, 2011, p. 291-292).
121
Embora seja detectável carga de complexidade no estudo das funções administrativas do Estado na doutrina
brasileira, verifica-se que os enfoques residem nos critérios critérios orgânicos ou subjetivos, com atenção
especial para o sujeito e agente que exerce a atividade; critérios objetivos, fulcrados no conteúdo da função;
critérios formais, que examinam o tratamento jurídico da matéria e, finalmente, critérios residuais ou práticos,
que concluem ser atividade administrativa, de modo geral, aquilo que não for identificado como função
judicial ou ação legislativa (CARVALHO FILHO, 2017, p. 4). Desse modo, revela-se, predominantemente, a
preocupação sistemática que nem sempre é acompanhada do imperativo de readequação ou ressignificação das
funções administrativas do Estado no século XXI.
108
122
A sociedade pós-industrial é, paradoxalmente, a sociedade da (des)organização, da tecnoestrutura
hiperdimensionada, da burocracia e da infinidade de mecanismos verticais.
109
123
Sublinha-se o entendimento de que “não parece correto designar-se ‘ato discricionário’ aquele emanado do
agente público no exercício de discricionariedade. Correto seria, a nosso sentir, adotar-se a expressão ‘ato
decorrente do poder discricionário’, a despeito de que expressivos administrativistas pátrios e estrangeiros
adotem a expressão ‘ato discricionário’. A discricionariedade é do agente administrativo. A esse a lei confere o
poder para praticar o ato ou de não praticá-lo, dependendo da situação concreta, ou, ainda, de adiar para época
que julgar oportuna a emanação do ato.” (FARIA, 2016, p. 157-158).
111
124
“A doutrina costuma analisar a discricionariedade e a vinculação de forma contraposta, incidindo aquela nas
hipóteses em que a lei confere margem de liberdade ao administrador, e esta última quando já se estabelece de
antemão e em termos de incontestável objetividade a única solução a ser adotada, sem qualquer margem de
subjetividade do intérprete. Essa concepção, porém, ainda está atrelada ao paradigma da filosofia da
consciência e à metodologia lógico-dedutiva típica do positivismo, por meio do qual seria possível extrair do
texto normativo a verdade única.” (VARESCHINI, 2014, p. 268).
125
Cabe pontuar que a virada linguística não é debatida na academia como sentença de relativização do Direito,
112
tornando-o vago, inseguro e incerto. Funciona, em realidade, como constatação de que “a linguagem não é
apenas um terceiro elemento entre sujeito e objeto, mas sim fundamento de todo o pensar, na medida e que é
pela linguagem, e somente por meio dela, que o sujeito tem acesso ao mundo [...].” (VARESCHINI, 2014, p.
265).
126
“O conceito clássico de discricionariedade administrativa encontra fundamento no positivismo que, dentre
outras, defende a seguinte concepção: considerando que as normas jurídicas são incapazes de prever todas as
situações concretas e, ainda, contemplam termos imprecisos, confere-se ampla margem de liberdade ao juiz
para a resolução dos “casos difíceis”. É nesse ponto que o positivismo amolda-se ao paradigma da consciência,
porquanto o juiz, de forma solipsista, determina a melhor solução para o caso concreto, nas hipóteses de lacuna
do ordenamento jurídico [...]” (VARESCHINI, 2014, p. 263-264).
127
“Como explica Andreas Krell, de forma magistralmente clara, o enfoque jurídico-funcional (funktionell-
rechtliche Betrachtungs-weise) parte da premissa de que o princípio da separação de poderes deve ser
entendido, hodiernamente, como uma divisão de funções especializadas, o que enfatiza a necessidade de
controle, fiscalização e coordenação recíprocos entre diferentes órgãos do Estado democrático de direito.
Assim, as diversas figuras que caracterizam os diferentes graus de vinculação à juridicidade (vinculação plena,
conceito jurídico indeterminado, margem de apreciação, opções discricionárias, redução da discricionariedade
a zero) nada mais são do que códigos dogmáticos para uma delimitação jurídico-funcional dos âmbitos
próprios da Administração e dos órgãos jurisdicionais.” (BINENBOJM, 2014, p. 40).
113
Nesse contexto, por mais ampla ou reduzida que seja a discricionariedade (ou os graus
de vinculação) na tomada do ato correto pelo agente público, a plasticidade128 inerente à
atuação administrativa reclama, indisfarçavelmente, a boa governança, até mesmo, como se
frisou, para a eficaz eliminação do autoritarismo administrativo.
As lacunas da governança e de planejamento administrativo, aliás, fomentam a má
qualidade de vários serviços executados ou prestados pela Administração Pública, em
consequência parcial do uso indevido do poder discricionário, conforme já restou sinalizado
pela doutrina brasileira, verbis:
128
Para Di Pietro, a plasticidade na atuação discricionária origina-se dos seus elementos formadores,
concebendo-se a discricionariedade como “[...] faculdade que a lei confere à Administração para apreciar o
caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções,
todas válidas, perante o direito.” (DI PIETRO, 2012, p. 62).
114
fórmula que não se revela matematicamente exitosa, por força da finitude dos recursos
estatais.
A permeabilidade aos princípios da governança corporativa, nesse contexto, é mais um
fenômeno a cunhar a dimensão normativa da governança na esfera estatal.
Não há pacto social, contrato social, sentimento constitucional ou qualquer outra
expressão, liberal ou não, indicativa de legitimidade e adesão comunitária em torno da esfera
pública que perdure nas situações em que a Constituição, por exemplo, prometa x prestações
relativas a direitos sociais, os políticos eleitos prometam 2x e o Estado realize x/2 ou menos.
Daí o porquê da indispensabilidade do Terceiro Setor e da coparticipação dos demais
atores sociais na consecução do interesse coletivo.
Gregório Assagra de Almeida, ao sustentar a superação da summa divisio Direito
Público e Direito Privado no Estado Democrático de Direito, trilha raciocínio de que a
tradicional visão da esfera pública não responde às exigências sociais:
129
O CLAD indica, em sua página na internet, que a representação brasileira se dá por intermédio do Ministério
do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (CENTRO LATINOAMERICANO DE ADMINISTRACIÓN
PARA EL DESARROLLO, 2017).
130
“Artigo 1. Os propósitos das Nações unidas são:
1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para
evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios
pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das
116
22 de outubro de 1945.
As oito perspectivas assinaladas ao final deste capítulo, combinadas, traçam
consistente quadro da dimensão normativa da governança no Brasil.
Não se trata, como visto, de direito fundamental a ingressar no rol de inutilidades
influenciadas pela crença de que a norma é a solução final para uma nova realidade
comunitária, ao lado do simbólico arsenal de promessas de boa vida já concebidas pelos
Poderes constituídos.
A sua raiz normativa vem dos próprios princípios fundamentais da ordem jurídica,
impulsionando a eficácia social das normas jurídicas administrativas e dos direitos
fundamentais.
A governança dirige-se ao Estado e ao cidadão, caracterizando-se como princípio
jurídico, aqui entendido como a norma jurídica com densidade semântica menor; apelo a
valores políticos e sociais, embora não confundidos com valores; possibilidade de exceção
expressa ou implícita e defectibilidade ou superação mais constante do que as regras
(SAMPAIO, 2013, p. 406-407), que, contrariamente, não possuem a dimensão de peso dos
princípios e, nos casos de conflito, uma delas não é considerada válida, por meio do modelo
tudo-ou-nada (DWORKIN, 2016).
Guia-se, objetivamente, como dever jurídico da Administração Pública, impositivo de
ação ou obstativo de prática contrária a sua essência. Subjetivamente, abraça a dimensão dos
direitos subjetivos públicos ou direitos coletivos, bem como os deveres dos cidadãos frente ao
Poder Público131.
Com a análise do direito fundamental à governança132, princípio jurídico multiangular
que desenha o contemporâneo formato da Administração Pública democrática, é oportuna,
diante dos objetivos específicos desta pesquisa, a abordagem do planejamento administrativo,
cuja dimensão normativa deriva da concepção jurídica de governança pública.
131
O direito à governança, segundo Juarez Freitas, é “[...] direito fundamental à administração pública eficiente e
eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, sustentabilidade, motivação proporcional,
imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas
omissivas e comissivas.” (FREITAS, 2014, p. 167).
132
Juarez Freitas também pontua a larga amplitude do direito à boa administração, que em seu entendimento
abriga “[...] (a) o direito à administração pública transparente, que supõe evitar a opacidade (salvo nos casos
em que o sigilo se apresentar justificável, e ainda assim não definitivamente); (b) o direito à administração
pública sustentável, que implica fazer preponderar, inclusive no campo regulatório, o princípio constitucional
da sustentabilidade, que determina a preponderância dos benefícios sociais, ambientais e econômicos sobre os
custos diretos e indiretos (externalidades negativas), de molde a assegurar o bem-estar multidimensional das
gerações presentes sem impedir que as gerações futuras alcancem o próprio bem-estar multidimensional; (c) o
direito à administração pública dialógica, com amplas garantias ao contraditório e ampla defesa e motivação
explícita, clara e congruente; (d) o direito à administração pública imparcial e desenviesada, isto é, aquela que,
evitando os desvios cognitivos, não pratica nem estimula discriminação negativa de qualquer natureza e, ao
mesmo tempo, promove as discriminações inversas ou positivas (redutoras das desigualdades iníquas); (e) o
direito à administração pública proba, que veda condutas éticas não universalizáveis; (f) o direito à
administração pública respeitadora da legalidade temperada; (g) o direito à administração pública preventiva,
precavida, eficaz (não apenas economicamente eficiente) e comprometida com resultados compatíveis com
indicadores de qualidade de vida, em horizonte de longa duração.” (FREITAS, 2014, p. 167-168).
119
6 PLANEJAMENTO ADMINISTRATIVO
[...] além de estar presente em diversas normas, é capaz de gerar direitos e deveres,
implicando a efetividade dos comportamentos sociais, segundo leciona Reale (2002,
p. 62): [...] “’Direito’ está em correlação essencial com o que denominamos
‘experiência jurídica’, cujo conceito implica a efetividade de comportamentos
sociais em função de um sistema de regras que também designamos com o vocábulo
Direito.” (VELOSO, 2014, p. 27).
boa governança, por preceder os demais princípios derivados desse direito fundamental.
A importância do direito ao planejamento exterioriza-se na sua imprescindibilidade
para a organização da máquina pública, execução das atividades e destinação dos finitos
recursos, funcionando como antecedente lógico do princípio da eficiência administrativa,
outro fator argumentativo a confirmar a raiz normativa ora defendida.
A eficiência administrativa “provoca para a Administração Pública um dever positivo
de atuação otimizada, considerando-se os resultados da atividade exercida, bem como a
adequação da relação entre os meios e os fins [...].” A eficiência é considerada bipotencial,
porque impõe o “máximo aproveitamento das potencialidades existentes, isto é, dos recursos
escassos que a coletividade possui, como o resultado quantitativamente e qualitativamente
otimizado [...].” (FREITAS, 2011, p. 135).
Todavia, o princípio da eficiência, na sua dimensão jurídica, ganha ares artificiais
propulsores da insinceridade normativa quando estudado isoladamente, dissociado do
planejamento administrativo.
Pontua-se, inclusive, a crítica realizada no capítulo anterior acerca dos hiatos teóricos
das funções administrativas do Estado, alheias à governança e ao planejamento
administrativo. O simulacro do Estado concretizador de direitos fundamentais perpassa a
discussão dessa lacuna central na dogmática administrativa.
A eficiência administrativa obriga o Estado “a otimizar os resultados alcançados em
relação aos recursos disponíveis e investidos em sua consecução em um marco de
compatibilidade com a equidade e com o serviço objeto de interesse geral”133 (tradução
nossa), conforme dispõe o item 7, do capítulo segundo (“Princípios”) da Carta
Iberoamericana de los Derechos y Deberes del Ciudadano en Relación con la Administración
Pública.
O planejamento administrativo, apesar da proximidade conceitual, tem sentido e
alcance distintos da eficiência, identificando-se com o princípio da eficácia, previsto no item 6
133
A optimizar los resultados alcanzados en relación con los recursos disponibles e invertidos en su consecución
en un marco de compatibilidad con la equidad y con el servicio objetivo al interés general.
Esse conceito de eficiência administrativa é compatível com a dimensão normativa do Estado Democrático de
Direito brasileiro, auxiliando a refutação das críticas que enxergam no modelo gerencial de Administração
Pública uma “cruzada neoliberal”. Na esteira dos fundamentos desenvolvidos nesta pesquisa, o paradigma
administrativo fragmentado/policêntrico de intercâmbio e conexão entre as diversas esferas e atores, nas
sociedades ocidentais do século XXI, exibe a face eclética da eficiência.
De modo congruente, Daniela Bandeira de Freitas registra que “tanto o sistema jurídico português, como o
sistema jurídico brasileiro, submeteram o princípio da eficiência à vertente teleológica do Estado social, ao
integrá-lo aos valores da justiça social e do bem-estar de todos os cidadãos.” Segundo a autora, o princípio da
eficiência administrativa desdobra-se em outros sete subprincípios: universalidade; produtividade;
economicidade; qualidade; celeridade e presteza; continuidade ou não interrupção da prestação e
desburocratização. (FREITAS, 2011, p. 134-135).
121
da mesma Carta:
134
Principio de eficacia, en cuya virtud las actuaciones administrativas deberán realizarse, de acuerdo con el
personal asignado, en el marco de los objetivos establecidos para cada ente público, que siempre estarán
ordenadas a la mayor y mejor satisfacción de las necesidades y legítimas expectativas del ciudadano.
Las Autoridades buscarán que los procedimientos y las medidas adoptadas logren su finalidad y, para ello,
procurarán remover de oficio los obstáculos puramente formales y evitarán las dilaciones y los retardos,
buscando la compatibilidad con la equidad y el servicio objetivo al interés general. En esta materia será de
aplicación, de acuerdo con los diferentes ordenamientos jurídicos, el régimen de responsabilidad del personal
al servicio de la Administración Pública.
122
136
“O Tribunal, apreciando os pedidos de medida cautelar formulados na inicial, por maioria e nos termos do
voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), deferiu a cautelar em relação […] à alínea “h”, por maioria e nos
termos do voto do Relator, deferiu a cautelar para determinar à União que libere o saldo acumulado do
Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de
realizar novos contingenciamentos, vencidos, em menor extensão, os Ministros Edson Fachin, Roberto
Barroso e Rosa Weber, que fixavam prazo de até 60 (sessenta) dias, a contar da publicação desta decisão, para
que a União procedesse à adequação para o cumprimento do que determinado; […]. Plenário, 09.09.2015.”
(BRASIL, 2015b, grifo nosso).
137
Com acidez, após o falecimento de Tancredo Neves, Juca Chaves abordou na música “Nova República” a
agonia social acerca das mudanças nacionais que apenas acontecem no papel: “Adeus Velha República do
João/ começamos a Nova tal igual/ banquete milionário, o escote camarão/ o patriotismo acaba, quando o
whisky é nacional/ não era apendicite o que era então?/ Confundiu-se o doutor, coisa normal/ pois diverticulite
é a inflamação/ da diversão da negligente da frente-liberal/ A Nova ré república pela Velha superada está
sendo, por plagio, processada/ e a tão sonhada luz no túnel não passou decepção/ de uma moto maranhense
contramão/ O povão está preocupado e chora/ o fantasma que seria presidente/ mas ninguém preocupou-se até
agora com a piora/ do nosso brasilzinho tão doente/ pois é clinicamente não é segredo/ o que preocupa o povo
isso eu sei/ não é somente a ausência do simpático Tancredo/ é o excesso de saúde do Sarney, chorei.
(CHAVES, 1985).
124
138
Art. 6º As atividades da Administração Federal obedecerão aos seguintes princípios fundamentais: I –
Planejamento. II – Coordenação. III – Descentralização. IV - Delegação de Competência. V - Contrôle.
Art. 7º A ação governamental obedecerá a planejamento que vise a promover o desenvolvimento econômico-
social do País e a segurança nacional, norteando-se segundo planos e programas elaborados, na forma do
Título III, e compreenderá a elaboração e atualização dos seguintes instrumentos básicos: a) plano geral de
governo; b) programas gerais, setoriais e regionais, de duração plurianual; c) orçamento-programa anual; d)
programação financeira de desembôlso. (BRASIL, 1967).
125
139
Juliano Ribeiro Santos Veloso denomina de multidimensionalidade as diversas formas de planejamento,
classificando-a como característica do planejamento administrativo, ao lado da complexidade, orientação
finalística, seletividade, conexividade, flexibilidade, criatividade, territorialidade, temporalidade, geradora de
segurança jurídica e democrática (VELOSO, 2014, p. 111-126).
126
140
De modo congruente, Juliano Ribeiro Santos Veloso registra as lições de Scott J. Shapiro no sentido de que
“A atividade legal não é só uma atividade de Planejamento, mas de Planejamento social. É importante
preocupar-se não só com que haja Planejamento, mas como é realizado o Planejamento [...].
[...] o Direito é um instrumento que pode ser utilizado para o bem ou para o mal. Por outro lado, há formas
corretas e incorretas de usar o instrumento, bem como não há como legislar esse manual, mas a esperança não
estaria perdida na utilização desse instrumento chamado lei [...].” (VELOSO, 2014, p. 144 e 146).
127
141
O recrutamento requer um cuidadoso planejamento, que constitui uma sequencia de três fases: 1) O que a
organização precisa em termos de pessoas. 2) O que o mercado de RH pode oferecer. 3) Quais são as técnicas
de recrutamento a aplicar. [...] Daí as três etapas do processo de recrutamento: 1) Pesquisa interna das
necessidades. 2) Pesquisa externa do mercado. 3) Definição das técnicas de recrutamento a utilizar. [...]
O planejamento do recrutamento tem, pois, a finalidade de estruturar o sistema de trabalho a ser desenvolvido.
[...] O levantamento interno não é esporádico ou ocasional, mas deve ser contínuo e constante, envolvendo
todas as áreas e níveis da organização no sentido de retratar suas necessidades de pessoal e o perfil,
características e competências que esses novos participantes deverão possuir e oferecer. Em muitas
organizações, a pesquisa interna é substituída por um trabalho mais amplo denominado Planejamento de
Recursos Humanos [...]. (CHIAVENATO, 2015, p. 64-67).
128
Este capítulo não é estruturado com o escopo de inovar o debate acadêmico acerca dos
institutos relacionados ao acesso a cargos, empregos e funções públicas no Brasil, o que,
inclusive, teria complexidade ímpar face ao caráter eminentemente técnico das normas
jurídicas que envolvem o concurso público, a contratação temporária, os cargos de
provimento em comissão, as funções gratificadas e de confiança, entre outras formas previstas
em lei.
Propõe-se indicar o pensamento dominante na doutrina sobre as disciplinas jurídicas
relacionadas ao acesso a cargos, empregos e funções e contextualizá-lo com a realidade
observada no cotidiano administrativo, por meio da jurisprudência dos Tribunais brasileiros,
da doutrina, da pesquisa em sites governamentais e de informações estatísticas do MPMG.
Com isso, será possível perquirir se os textos normativos são concretizados pela
Administração Pública, formando um todo coerente, bem como se a governança e o
planejamento administrativo vinculam esse sistema.
Para tanto, são traçadas observações sobre o concurso público e o panorama do
sistema de acesso a cargos, empregos e funções, capturando-se as suas definições e principais
características hoje percebidas. Em sequência, duas formas de exceção ao concurso público,
ainda fortemente presentes na cultura administrativa brasileira, têm especial abordagem.
142
“O princípio fundamental da ideia de meritocracia na cabeça da maioria de seus defensores é simplesmente
este: que se devem preencher os cargos com as pessoas mais qualificadas, pois a qualificação é um caso
especial de mérito. [...] Na verdade, a questão é mais complicada do que essas formulações indicam. Para
muitos cargos, só se exigem qualificações mínimas; um número bem grande de candidatos pode realizar bem o
serviço, e nenhuma formação adicional os habilitaria a realiza-lo melhor. Nesse caso, parece que a justiça
exigiria que os cargos fossem distribuídos entre os candidatos qualificados por meio do método “primeiro a
chegar, primeiro a levar” (ou por sorteio); e, então, mérito é, decerto, um termo forte demais para definir a
combinação entre o detentor do cargo e seu lugar. Mas outros cargos são abertos para a formação e para os
conhecimentos que exigem, e para eles talvez faça sentido dizer, embora haja inúmeros candidatos
qualificados, que o mais qualificado merece o cargo. Parece que o mérito não é relativo da mesma forma que a
qualificação, mas a frase de Dryden: ‘que o mais merecedor impere sozinho’ indica que deve haver indivíduos
merecedores que não merecem, em última análise, nenhum cargo específico, do mesmo modo que existem
130
Registra-se, nessa linha, que o sistema brasileiro, bem equacionado, pode contribuir
dentro de seus limites para o alcance de expectativas sociais, mas não é o caminho universal.
indivíduos qualificados que devem ceder ao mais qualificado [...].” (WALZER, 2003, p. 184-185).
131
143
“Art 170. O Poder Legislativo votará o Estatuto dos Funcionários Públicos, obedecendo às seguintes normas,
desde já em vigor: [...] 2º) a primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas, e nos
demais que a lei determinar, efetuar-se-á depois de exame de sanidade e concurso de provas ou títulos;”
(BRASIL, 1934).
144
“Art. 95. Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, preenchidos os requisitos que a lei
132
Conforme pontua Adilson Abreu Dallari, o modelo anterior a 1988, instituído em 1969,
propiciava o incremento do patrimonialismo na Administração Pública, tamanhas as brechas
textuais a flexibilizarem os critérios de investidura e provimentos derivados do servidor:
A redação (dolosamente) defeituosa do texto de 1969, art. 97, § 1º, dizendo que
apenas a “primeira investidura”, somente em “cargos públicos” é que dependeria de
aprovação em concurso público, “salvo os casos indicados em lei”, permitiu toda
sorte de burlas e abusos, gerando um empreguismo desenfreado, um super
inchamento dos quadros de pessoal, um descontrole completo do funcionalismo e a
desmoralização do serviço público.
Como a Constituição se referia a “primeira” investidura, entendeu-se que
qualquer outra independeria do concurso público. Assim é que, ao longo do tempo,
conforme relata Márcio Cammarosano, procederam-se a inúmeras “transformações
de cargos”, meio pelo qual os apaniguados exercentes de cargos modestos eram
contemplados com os cargos mais importantes, chegando até mesmo (por vias
transversas) a receber estabilidade em cargo de provimento em comissão. Da mesma
forma, sob a mesma desculpa, foi inventada a figura da “transposição”, destinada a
prover mediante concurso interno, reservado a quem já fosse funcionário público, os
cargos que, a rigor, deveriam ser disputados em concurso público. Não obstante tão
escandalosa inconstitucionalidade, tais procedimentos foram agasalhados até mesmo
pelo STF.
Como a Constituição se referia apenas a “cargos”, entendeu-se que funções
e empregos não eram abrangidos pela obrigatoriedade de concurso. Daí uma
verdadeira enxurrada de admissões sem concurso para funções criadas por decreto.
Pior que isso foi o uso indiscriminado e generalizado de contratações no regime da
CLT, sem qualquer formalidade, tanto para admissão quanto para demissão, gerando
um espantoso quadro de fisiologismo, protecionismo, apadrinhamento e
perseguições. (DALLARI, 1990, p. 35).
estabelecer. § 1º. A nomeação para cargo público exige aprovação prévia em concurso público de provas ou de
provas e títulos.” (BRASIL, 1967).
145
“Art. 97. Os cargos públicos serão acessíveis a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos
em lei. § 1º. A primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de
provas ou de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei.” (BRASIL, 1969).
146
“Art. 37. [...] II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso
público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na
forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) [...]
V- as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos
em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos
previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; (Redação dada pela
133
Por sua vez, emprego público indica “[...] a relação funcional trabalhista, assim como
se tem usado a expressão empregado público como sinônima da de servidor público
trabalhista.” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 653).
O conceito de função pública traz complexidade maior, especialmente pelas
características contemporâneas da Administração Pública policêntrica ou fragmentada148.
Função pública expõe a “atividade em si mesma, ou seja, função é sinônimo de
atribuição e corresponde às inúmeras tarefas que constituem o objeto dos serviços prestados
149
“Agentes honoríficos: São cidadãos convocados, designados ou nomeados para prestar, transitoriamente,
determinados serviços ao Estado [...]. Tais serviços constituem o chamado múnus público, ou serviços
públicos relevantes, de que são exemplos a função de jurado, do mesário eleitoral, de comissário de menores,
de presidente ou membro de comissão de estudo ou de julgamento e outros dessa natureza.” (MEIRELLES,
2016, p. 84).
150
“Agentes credenciados: são os que recebem a incumbência da Administração para representa-la em
determinado ato ou praticar certa atividade específica, mediante remuneração do Poder Público credenciante.”
(MEIRELLES, 2016, p. 86).
151
“Agentes delegados: são particulares - pessoas físicas ou jurídicas - que não se enquadram na acepção própria
de agentes públicos – que receberam a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço
público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob
permanente fiscalização do delegante. […] Nessa categoria encontram-se os concessionários e permissionários
de obras e serviços públicos […] os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos […].” (MEIRELLES, 2016,
p. 85).
136
(BRASIL, 2014c).
152
Art. 1º. Os arts. 1o, 2o, 4o, 5o, 6o, 9o, 10, o parágrafo único do art. 11 e o art. 12 da Lei n. 6.019, de 3 de janeiro
de 1974, passam a vigorar com a seguinte redação: [...]
“Art. 9º O contrato celebrado pela empresa de trabalho temporário e a tomadora de serviços será por escrito,
ficará à disposição da autoridade fiscalizadora no estabelecimento da tomadora de serviços e conterá: [...]
§ 3º - O contrato de trabalho temporário pode versar sobre o desenvolvimento de atividades-meio e atividades-
fim a serem executadas na empresa tomadora de serviços.” (BRASIL, 2017b).
137
153
“No que tange à eficiência da terceirização legal, esta é objeto de questionamentos, em especial pelas suas
consequências não antecipadas. Como o critério para contratação de serviços ofertados por meio do Pregão
Eletrônico é o serviço mais barato, surgiram casos de empresas que simplesmente não pagavam os salários de
seus funcionários que prestavam serviços e órgãos do governo, tirando vantagem tanto do governo como dos
trabalhadores contratados.” (ANDREWS, 2010, p. 108). A gestão desobediente ao planejamento
administrativo, que promove escolhas irrefletidas de processos licitatórios, sinaliza ofensas constitucionais
passíveis de impugnação judicial na hipótese de persistência e/ou inércia de autocontrole da esfera pública.
138
Com efeito, a Constituição quando se refere aos setores de cultura (CF, art. 215),
desporto e lazer (CF, art. 217), ciência e tecnologia (CF, art. 218) e meio ambiente
(CF, art. 225), afirma que tais atividades são deveres do Estado e da sociedade. Faz
o mesmo, em termos não idênticos, em relação à saúde (CF, art. 199, caput) e à
educação (CF, art. 209, caput), afirmando, ao lado do dever do Estado de atuar, que
tais atividades são “livres à iniciativa privada”. (FUX; MODESTO; MARTINS,
2017, p. 68).
154
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO.
TERCEIRO SETOR. MARCO LEGAL DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS. LEI Nº 9.637/98 E NOVA
REDAÇÃO, CONFERIDA PELA LEI Nº 9.648/98, AO ART. 24, XXIV, DA LEI Nº 8.666/93. MOLDURA
139
Nesta dissertação, foram realizadas pesquisas, entre janeiro e junho de 2017, nos sites
institucionais do Governo Federal, dos Governos de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro
e das Assembleias Legislativas de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, evidenciando-se
não haver leis, atos normativos secundários, comissões, audiências públicas ou ações
administrativas para discutir, examinar ou disciplinar técnicas, estratégias ou procedimentos
relacionados ao permanente aperfeiçoamento do sistema de acesso a funções, cargos e
empregos públicos.
141
Além dos hiatos e defeitos apontados em relação ao concurso público, outros ângulos
da desgovernança e consequente falta de planejamento também são percebidos ao longo das
últimas décadas, nas demais formas de acesso.
No artigo “Concurso público: avanços e retrocessos”, Renato Monteiro de Rezende
narra, com base em pesquisa de julgamentos do TCU, o forte descompromisso do Poder
Público com o sistema de acesso155, nas gestões dos Presidentes Fernando Henrique Cardoso
155
Em linha harmoniosa, a obra “Administração Pública no Brasil”, relata que “[...] nos anos 1990 [..] retomou-
se a prática de contratação de funcionários sem concurso público que havia sido difundida na administração
federal nas décadas de 1950 e 60. Segundo levantamento realizado pelo Ministério do Planejamento em 2009,
o governo federal havia admitido irregularmente, por meio de contratos terceirizados, 34165 trabalhadores
(Boff, 2009).” (ANDREWS, 2010, p. 108).
No mesmo sentido: “O Poder Executivo Federal tem sido pródigo em editar medidas provisórias ou
encaminhar projetos de lei ao Congresso Nacional cuidando da prorrogação de contratos temporários.
As leis que criaram as agências reguladoras previram essa espécie de contratação para atender às necessidades
142
e Lula.
Sua pesquisa mostrou que, no ano de 2003, o Ministério do Meio Ambiente
funcionava com 95% da sua força de trabalho formada por terceirizados, contratados
temporários ou ocupantes de cargos em comissão.
No Ministério da Saúde, os contratos temporários abrangiam o percentual de 75% do
quadro, havendo ainda dezenas de milhares de funções e cargos obstruindo o preenchimento
regular por concurso público:
de pessoal dessas autarquias. Assim, por exemplo, foi autorizada a contratação temporária, por até trinta e seis
meses, na ANEEL (art. 34, § 2º, da Lei no 9.427, de 1996), na ANP (art. 76, parágrafo único, da Lei no 9.478,
de 1997), na ANVISA (art. 36, § 1º, da Lei no 9.782, de 1999), dentre outras.
Ocorre que os contratos temporários nas agências reguladoras tiveram sua prorrogação repetidamente
autorizada por lei. O art. 26 da Lei no 9.986, de 2000, permitiu a dilação do prazo dos contratos temporários
por até vinte e quatro meses a partir do vencimento previsto originalmente. De seu turno, o art. 4º da Lei no
10.667, de 2003, autorizou nova prorrogação, até 30/6/2004. O termo final máximo para os contratos foi uma
vez mais estendido, por força do art. 30, § 7º, da Lei no 10.871, de 2004, que o fixou em 31/12/2005. Por fim,
o art. 10 da Lei no 11.292, de 2006, autorizou a prorrogação, até 31/3/2007, dos contratos temporários
referidos no citado art. 30, § 7º, da Lei no 10.871.” (REZENDE, 2008, p. 29).
143
Fenômeno igual se repetiu com a Lei n. 18.185/2009, do estado de Minas Gerais, que
disciplinava a contratação temporária viciada de aproximadamente 12 mil servidores, também
declarada inconstitucional pelo TJMG, no ano de 2017 (MINAS GERAIS, 2017).
Encerrando a amostragem, consigna-se, ainda, que dados da Coordenadoria de
Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas Gerais156, de 2011
a 2017, mostram que as leis estaduais e municipais inconstitucionais, ligadas ao acesso
irregular a cargos, empregos ou funções públicas, representaram 53,4% do acervo total
impugnado pelo Ministério Público, na seara do controle concentrado de constitucionalidade.
156
Informações extraídas em 27 de outubro de 2017, diretamente pelo autor, no SRU-MPMG (Sistema de
Registro Único do Ministério Público de Minas Gerais), que concentra as informações dos procedimentos
administrativos instaurados na Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de
Justiça de Minas Gerais, destinados a apurar eventual inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal.
144
157
Todas as ADOs referem-se à omissão legislativa do percentual mínimo destinado aos servidores de carreira
para o preenchimento de cargos em comissão.
158
No controle concentrado de constitucionalidade, a revogação superveniente da lei impugnada pelo Poder
legiferante ocasiona normalmente a perda de objeto da ação segundo interpretação dominante do STF. Apenas
em casos excepcionais de fraude processual a lei revogada é examinada pela Corte Constitucional: “Leis
Distritais que tentaram revogar os atos normativos impugnados. Posterior edição da Lei Distrital n° 4.342, de
22 de junho de 2009, a qual instituiu novo plano de cargos, carreira e remuneração dos servidores e revogou
tacitamente as Resoluções 197/03, 201/03, 202/03 e 204/03, por ter regulado inteiramente a matéria por elas
tratadas, e expressamente as resoluções n°s 202/03 e 204/03. Fatos que não caracterizaram o prejuízo da ação.
Quadro fático que sugere a intenção de burlar a jurisdição constitucional da Corte. Configurada a fraude
processual com a revogação dos atos normativos impugnados na Ação Direta, o curso procedimental e o
julgamento final da ação não ficam prejudicados. Precedente: ADI n° 3.232/TO, rel. min. Cezar Peluso, DJ
3.10.2008 [...] III. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente.” (BRASIL, 2011a).
145
163
Art. 37 [...] IX - a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade
temporária de excepcional interesse público; (BRASIL, 1988).
164
“O art. 37, IX, da Constituição do Brasil autoriza contratações, sem concurso público, desde que
indispensáveis ao atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público, quer para o
desempenho das atividades de caráter eventual, temporário ou excepcional, quer para o desempenho das
atividades de caráter regular e permanente. A alegada inércia da administração não pode ser punida em
detrimento do interesse público, que ocorre quando colocado em risco o princípio da continuidade da atividade
estatal.” (BRASIL, 2005; BRASIL, 2014a).
165
“Por esse princípio entende-se que o serviço público, sendo a forma pela qual o Estado desempenha funções
essenciais ou necessárias à coletividade, não pode parar.” (DI PIETRO, 2016, p. 102).
147
166
MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça. AgInc – Classe B – V – N. 58.802-1 – Campo Grande.
Relator: Atapoã da Costa. Julgamento em: 25.02.1999.
148
167
“Lamentavelmente, a contratação pelo regime especial, em certas situações, tem servido mais a interesses
pessoais do que ao interesse administrativo. Por intermédio desse regime, têm ocorrido contratações
‘temporárias’ com inúmeras prorrogações, o que as torna verdadeiramente permanentes.” (CARVALHO
FILHO, 2017, p. 648).
149
contratação não se dá por necessidade temporária, surgida por fato inusitado no dia a dia
administrativo e devidamente amparada em lei:
concurso público, também acarreta a punição da autoridade responsável pela contratação, nos
termos do § 2º, do art. 37168 da Constituição:
168
Art. 37 [...] § 2º A não observância do disposto nos incisos II e III implicará a nulidade do ato e a punição da
autoridade responsável, nos termos da lei.
169
O acórdão do TJMG foi assim ementado: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI
MUNICIPAL - CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA - ATIVIDADES DE CARÁTER EVENTUAL OU
PERMANENTE - INDIFERENÇA - SITUAÇÕES DE EXCEPCIONAL INTERESSE PÚBLICO
EVIDENCIADAS - ARTIGO 22 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS -
INCONSTITUCIONALIDADE - INOCORRÊNCIA. I - A excepcionalidade exigida para contratação
temporária não está ligada ao caráter da função (temporária ou permanente), mas sim à excepcionalidade da
situação evidenciada. A contratação, neste caso, se justificaria pelo tempo necessário ou até um novo
recrutamento via concurso público. II - Não há inconstitucionalidade na Lei Municipal que trouxe em seu bojo
situações excepcionais que de fato autorizam a administração contratar de forma temporária para evitar perda
na prestação educacional. (MINAS GERAIS, 2010).
170
O dispositivo impugnado dispunha o seguinte: “[...] Art. 192. Consideram-se como necessidade temporária de
excepcional interesse público as contratações que visem a: [...] III – suprir necessidades de pessoal na área do
magistério”.
151
171
Nesse sentido, o Min. Marco Aurélio, na sessão de julgamento do RE 658026/MG, afirmou o seguinte “[...] o
mais interessante é que a Carta estadual, sob o ângulo da contratação por tempo determinado, proíbe que assim
se faça quanto a funções do magistério. O Município foi adiante e lançou preceito que é abrangente,
viabilizando a contratação para suprir necessidade - gênero - de pessoal na área do magistério. O dispositivo
não permite interpretação dupla. A interpretação é única, ou seja, a autorização peremptória. Por isso,
acompanho o Relator, declarando a inconstitucionalidade do preceito. Ressalto, sob o ângulo da modulação - e
voto contra a modulação -, que a lei já está em vigor desde 1999. Ainda se dará a ela sobrevida de doze meses,
no que contraria... [...] entendo que, celebrados contratos a partir desse preceito, mostraram-se discrepantes da
Carta da República e não podem subsistir. Voto pela inconstitucionalidade, pura e simples, do preceito, ou
seja, do inciso III do artigo 192 da Lei do Município de Bertópolis, de nº 509 de 99.” (BRASIL, 2014c).
153
[...] Por certo, qualquer juiz examina as possibilidades de sua decisão. No entanto,
deve ser sabedor que não há uma relação de causalidade absoluta de seus julgados
como pressupõem os consequencialistas. A entropia estará sempre presente, e esse é
um elemento a ser considerado. Dessa forma, o consequencialismo deve ser
abrandado para incluir o concretismo, ou seja, o exame do conjunto de provas e de
fatos alegados, percebendo o magistrado que o exame das consequências de uma
decisão não pode determinar o conteúdo [...] Em termos de controle de
constitucionalidade, a questão do consequencialismo é introduzida no exame
justamente da modulação temporal dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade de um texto normativo [...] (CRUZ; MEYER; RODRIGUES,
2012, p. 26).
172
“[...] o consequencialismo forte é essencialmente uma teoria que sustenta que a decisão jurídica deva se
pautar em função daquilo que ela acarretará futuramente em termos fáticos na decisão. Então o magistrado
deve decidir seus casos em função das consequências que deles poderão surgir para as partes e para a
sociedade. [...] O pensamento consequencialista é um pensamento que se abre a chamada argumentação de
fundo utilitarista, com algumas correntes de pensamento como o Critical Legal Studies, bem representando
nos domínios nacionais e internacionais pela teoria de Mangabeira Unger. [...] Na visão de Ronald Dworkin, o
consequencialismo apresenta-se também na chamada corrente pragmatista no direito norte-americano, que a
seu ver se contraporia ao convencionalismo de Herbert Hart [...] O consequencialismo forte afeta a chamada
ética deontológica do direito, uma vez que ele possibilita que o julgador passe a decidir livremente de acordo
com suas próprias preferencias pessoais, com aquilo que ele acha que é melhor para a sociedade, ignorando o
direito vigente. [...] O consequencialismo forte pode ser entendido como uma autorização argumentativa ao
Judiciário para se afastar da deontologia normativa e adotar decisões “mais convenientes” ou “mais
preocupadas” com as consequências econômicas, políticas, sociais e morais para a comunidade.” (CRUZ;
MEYER; RODRIGUES, 2012, p. 18-25).
154
temporários com a interpretação voltada para a tese de segurança jurídica pontual, termina por
majorar a insegurança jurídica geral em relação aos abusos de direito que continuam
pululando nas contratações temporárias pelo Brasil, em continuado processo de deterioração
da qualidade do ensino público nacional, da saúde pública e demais áreas essenciais,
prejudicando a efetividade de similares direitos fundamentais cuja tutela foi o mote para
modulação referida.
O princípio da continuidade do serviço público, que tem dignidade constitucional
derivada do princípio da eficiência administrativa, não é panaceia para a salvaguarda dos
ilícitos ou incremento da tese da segurança jurídica, devendo estar atento a três fatores: a) a
essencialidade do serviço; b) a ininterruptabilidade do serviço; e c) a inexistência de abuso de
direito.
A importância da continuidade do serviço, dessa forma, serve como fundamento
jurídico para as contratações temporárias celebradas de acordo com a ordem constitucional,
em ruptura momentânea do concurso público, não para prorrogar o prazo de contratações que
tangenciam o crime, conferindo lastro a duvidosa segurança jurídica. Aceitar o contrário, por
meio do consequencialismo forte, é estimular por via oblíqua a manutenção do panorama
atual de ofensas reiteradas a direitos fundamentais na prestação defeituosa de serviços
públicos essenciais.
Relevante mencionar, ainda, o fato de que punições às pessoas físicas responsáveis
pela idealização temerária das contratações temporárias viciadas é fenômeno insólito no
Brasil.
A jurisprudência tem assinalado que a contratação temporária municipal, celebrada
contra expressa norma constitucional, é penalmente irrelevante caso a violação tenha sido
instrumentalizada por norma local autorizativa:
[...] esta Suprema Corte tem reconhecido que a existência de leis municipais
autorizando a contratação temporária de agentes públicos, para atender a
necessidade de excepcional interesse público, afasta a tipicidade da conduta
referente ao art. 1º, XIII, do DL 201/1967, que exige a nomeação, admissão ou
designação de servidor contra expressa disposição de lei [...]. (BRASIL, 2011b).
A decisão do STF decorre da estrita tipicidade penal. Todavia, não se tem como
refutar o caráter fictício do Direito Penal na hipótese. O § 2º, do art. 37 da Constituição é letra
morta.
Essa questão, embora pouco examinada na seara administrativa por força da essência
criminal, desnuda a ausência do sistema repressivo, permeando, também, esferas de
155
Os primórdios do que hoje se entende por cargo em comissão têm a primeira inserção
constitucional em 1934173, por meio do instituto da “comissão temporária ou de confiança”.
Na ocasião, limitou-se a Constituição a disciplinar o exercício cumulativo e remunerado da
173
Art. 172 - É vedada a acumulação de cargos públicos remunerados da União, dos Estados e dos Municípios.
[...] § 3º - É facultado o exercício cumulativo e remunerado de comissão temporária ou de confiança,
decorrente do próprio cargo. (BRASIL, 1934).
156
comissão temporária ou de confiança com cargos públicos da União, dos Estados e dos
Municípios, denotando apenas a sua natureza de função e não de cargo público.
O estudo contemporâneo do cargo em comissão é substancialmente diferente, em
especial pelo impacto considerável que provoca na esfera estatal.
Nesse ponto, vale o retorno ao início do capítulo para sublinhar a importância do
exame avesso a preconceitos que deterioram a crítica jurídica. Cargo em comissão não é
ontologicamente positivo ou negativo. Sua influência na órbita administrativa não pode ser
tida, de antemão, como deletéria ou proveitosa. O uso que se faz dos cargos em comissão, sim,
é a pedra de toque da averiguação dessa forma de acesso ao quadro de pessoal do Estado.
Não se desconhece que o perfil dos cargos em comissão possibilita críticas relativas à
sua permeabilidade ao patrimonialismo e à raiz discriminadora, baseada na suposta descrença
na habilidade do servidor concursado, que seria incapaz de exercer funções qualificadas de
chefia ou direção. O cargo em comissão representaria, nessa linha, a confissão constitucional
da falibilidade ou deficiência da própria regra geral - o concurso público, improdutivo na
seleção dos melhores.
Essas observações são refutáveis, entretanto.
O patrimonialismo brasileiro é entrave para qualquer forma de acesso ao Estado ou
mesmo para coparticipação dos atores sociais no desenho de Administração policêntrica. Nem
por isso, o seu combate justifica o retorno aos paradigmas da Administração Pública
burocrática, que é insuficiente para atuar na complexa realidade contemporânea. O exercício
estratégico da chefia e da direção em organizações complexas, entre as quais o Estado, não é
elemento a se desprezar na boa administração.
Ademais, a visão de que o cargo em comissão seria o reconhecimento estatal da
deficiência do modelo do concurso público esbarra, de imediato, na previsão de percentual
mínimo obrigatório de cargos em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira
(recrutamento restrito ou limitado), nos termos do art. 37, V, da Constituição. Desse modo,
não há contradição sistêmica, mas simplesmente a escolha constitucional de flexibilizar a
regra do concurso, em hipóteses especiais taxativamente previstas em lei.
Fato é que a dimensão normativa brasileira reconhece a importância dos cargos em
comissão na estrutura administrativa, sendo essa a premissa constitucional sobre o tema.
É pertinente, assim, estabelecer o desenho do instituto dos cargos em comissão à luz
de interpretação constitucional adequada à realidade brasileira.
Os cargos em comissão, previstos no art. 37, V, da Constituição, indicam o modelo,
por vezes opcional, de acesso à máquina pública nas hipóteses de chefia, direção ou
157
assessoramento. Daí porque é facultada pela ordem constitucional, via ato normativo, a
criação de cargos que viabilizem a livre nomeação para essas atividades especiais.
Na linha do raciocínio, a instituição de cargos em comissão não se traduz como dever
jurídico absoluto do ente público que poderá, uma vez preenchidos os requisitos
constitucionais, escolher, com alguma flexibilidade, dentro de sua esfera de autonomia, o
modelo administrativo a trilhar: a via ordinária do concurso, eventualmente unida à função de
confiança, ou a dos cargos em comissão.
Situações há que o provimento em comissão é o caminho jurídico único, sem margem
de opção, como nos casos, por exemplo, da direção de agências reguladoras, de um Ministério
e de Secretarias de Estado ou Município, vinculadas, em tais hipóteses, ao espírito do
mandato174.
Na maior parte dos casos, todavia, a chefia, direção e assessoria são ontologicamente
compatíveis com as atividades desenvolvidas por servidor concursado, embora possuidoras
das características da precariedade, confiança e especialidade.
A própria previsão constitucional do percentual mínimo destinado a servidores de
carreira evidencia essa compatibilidade.
Atenção ao conceito de recrutamento restrito ou limitado surge quando se examina
justamente a exigência do percentual mínimo para os servidores de carreira. Revela não
apenas a ideia destinada à comunhão de experiências entre os integrantes dos diversos
extratos do funcionalismo (JUSTEN FILHO, 2010, p. 949), mas também a harmonia entre os
atributos especiais do cargo de provimento em comissão e a qualificação potencial do servidor
de carreira.
Apesar do emaranhado de designações e nomenclaturas doutrinárias, o recrutamento
restrito é ligado, majoritariamente, à ideia de função de confiança, gratificada ou
comissionada para o exercício de atividades de chefia, direção ou assessoramento na
Administração Pública, exigindo-se servidor de carreira. Já nos cargos em comissão, o
recrutamento restrito se dá por meio da observância do percentual mínimo previsto no art. 37,
V, da Constituição.
O recrutamento amplo, por sua vez, vincula-se exclusivamente aos cargos em
174
Posicionamento dissonante, não seguido nesta pesquisa, é o de José Maria Pinheiro Madeira, que considera o
cargo em comissão eminentemente político, restrito ao preenchimento de escalões do Governo (Ministros,
Secretários e Dirigentes da Administração Indireta), de livre nomeação, contrapondo-se à função de confiança,
que seria de natureza administrativa e direcionada para o exercício de direção, chefia e assessoramento,
exclusivo para servidor de cargo efetivo (MADEIRA, 2005, p. 57). Não é o que se verifica no cotidiano
administrativo nacional, tampouco o que se extrai da doutrina majoritária e jurisprudência brasileira sobre o
tema.
158
comissão, com a possibilidade da livre nomeação incidir fora dos quadros de pessoal do órgão
público, embora não seja vedada nomeação de servidor de carreira.
Nada obstante, a doutrina é divergente quando se lança a visão sobre as terminologias
e características dos instituos examinados, sendo expostos diversos apontamentos que não são
inteiramente harmoniosos entre si175.
Odete Medauar enxerga o cargo em comissão submetido ao “pressuposto da
temporariedade”, tratando-o como sinônimo de cargo de confiança, submetido à livre
nomeação e exoneração:
175
Segundo José dos Santos Carvalho Filho, “A Constituição, no art. 37, V, utilizou a expressão “funções de
confiança”, que, na verdade, é marcada por evidente imprecisão. A análise do dispositivo demonstra que se
pretendeu aludir às já mencionadas funções gratificadas. A expressão é vaga e inexata porque existem várias
outras funções de confiança atribuídas a situações funcionais diversas, como é o caso das relacionadas a cargos
em comissão. A confusão se completa com a expressão funções comissionadas, usada às vezes para indicar
cargos em comissão. A falta de uniformidade impera nesse aspecto.” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 652).
159
O Supremo Tribunal Federal, com acerto, tem repelido não somente a criação de
cargos comissionados com atribuições meramente técnicas (ADIn 3.706, Rel. Min
Gilmar Mendes, DJ, 5 out. 2007), mas também a criação deles em número superior
ao de cargos efetivos existentes no órgão ou entidade (RE 365.368-AgR, Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, DJ, 29 jun. 2007). Pior que a criação desmesurada de cargos
de provimento em comissão é o mau uso que deles fazem certas autoridades com
poder de nomeação, cujo interesse é apenas atender aos que lhes são mais próximos,
como é o caso de alguns parentes. Em suma: o pior é o nepotismo. (GASPARINI,
2011, p. 325-327).
176
Diante da inércia do Poder Legislativo, o Enunciado n. 13 de Súmulas Vinculantes do STF regulamentou a
questão do nepotismo: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por
afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica
investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de
confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações
recíprocas, viola a Constituição Federal.” (BRASIL, 2008).
160
públicos de carreira.
As lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, finalmente, descrevem as
características da discricionariedade, temporariedade e precariedade como típicas do cargo em
comissão.
Os cargos em comissão guardam diferença das funções de confiança pela forma
ordinária de recrutamento e também porque os primeiros representam, na esteira dos
conceitos gerais de Direito Administrativo, um lugar nos quadros da Administração, enquanto
as funções indicam mera atribuição isolada:
Como foi sublinhado, a matéria recebe enfoques diversos na academia, não sendo
uniformes os posicionamentos relativos ao atributo da temporariedade dos cargos em
comissão, bem como as suas diferenças com as funções de confiança, por vezes sendo
estabelecido o tratamento de gênero e espécie; ora separados pela essência política ou
administrativa e, noutras ocasiões, submetidos à dicotomia de recrutamento amplo e restrito.
No exame das características dessas formas de acesso, parece tecnicamente incorreta a
compreensão da temporariedade como elemento marcante do cargo em comissão ou das
funções de confiança, afinal, embora precário, o vínculo não se contamina ou se desnatura
pela longevidade circunstancial, ressalvado o caso atípico do exercício de mandato.
Diferentemente da contratação temporária, cuja vigência indeterminada ou por prazo
muito longo a invalida inexoravelmente, o acesso aos cargos por meio do provimento em
cargo de comissão não se relaciona normativamente com a temporariedade.
A temporariedade, portanto, apenas decorre da constatação empírica das hipóteses
usuais de encerramento desses vínculos, estranha ao exame das características gerais do
instituto e de seus requisitos de validade. Ou seja, a essência e a validade do cargo em
comissão, excetuado o caso de mandato, não são perturbadas se a ocupação perdurar 5 ou 20
anos pela mesma pessoa, diferentemente do que ocorreria na contratação temporária.
161
177
A Ciência da Administração aceita que a “liderança é um dos temas mais discutidos e pesquisados atualmente,
tanto no meio acadêmico, e especialmente nos cursos de Administração, quanto no meio empresarial [...] sem
liderança nenhuma organização sobrevive. [...] liderança trata de autoconhecimento, reflexão, processo
decisório, liberdade, responsabilidade pelas ações, relacionamentos, personalidade e caráter e faz uso dos
conhecimentos de várias ciências ou disciplinas, embora por tradição acadêmica esteja contida nos estudos do
comportamento organizacional. Por fim, liderança tanto pode ser um sonho como um pesadelo, como veremos
no decorrer da nossa discussão [...].” (BARROS NETO, 2009, p. 8-9).
178
Art. 2º Os cargos em comissão estão ligados às atribuições de direção, chefia e assessoramento, sendo vedado
seu provimento para atribuições diversas. [...] §2º - Para os Estados que ainda não regulamentaram os incisos
IV e V do art. 37 da Constituição Federal, pelo menos 50% (cinquenta por cento) dos cargos em comissão
deverão ser destinados a servidores das carreiras judiciárias, cabendo aos Tribunais de Justiça encaminharem
projetos de lei de regulamentação da matéria, com observância desse percentual.
179
Art. 1º. [...] I - cinquenta por cento do total de cargos em comissão DAS, níveis 1, 2, 3 e 4; e II - sessenta por
cento do total de cargos em comissão DAS, níveis 5 e 6 (BRASIL, 2017a).
163
Na esfera estadual, o diagnóstico desta pesquisa, por meio dos exames das ADIs
manejadas pelo Procurador-Geral de Justiça de Minas Gerais, também revela a necessidade de
ressignificação do instituto. Multiplicam-se hipóteses de recrutamento amplo para chefias e
direções que, além de trazerem obscura descrição das atribuições em lei e ausência de
planejamento administrativo, sugerem a mera acomodação de pessoas próximas ao poder
político local.
Exemplo é a Lei n. 3.529, de 26 de março de 2010, do município de Diamantina/MG,
objeto de impugnação no ano de 2016, por meio da ADI n. 1.0000.16.045421-1/000,
justificando-se pelo caráter autoexplicativo o registro da norma jurídica viciada:
[...]
Dispõe sobre a vinculação administrativa da Banda Mirim “Prefeito Antônio de
Carvalho Cruz” e dá outras providências.
[...]
Art. 2º. Fica criado o cargo em comissão de recrutamento amplo de Regente de
Banda Mirim “Prefeito Antônio de Carvalho Cruz”, com referência de vencimento
166.
180
“Art. 17. Os membros do Conselho de Administração e os indicados para os cargos de diretor, inclusive
presidente, diretor-geral e diretor-presidente, serão escolhidos entre cidadãos de reputação ilibada e de notório
conhecimento, devendo ser atendidos, alternativamente, um dos requisitos das alíneas “a”, “b” e “c” do inciso
I e, cumulativamente, os requisitos dos incisos II e III:
I - ter experiência profissional de, no mínimo:
a) 10 (dez) anos, no setor público ou privado, na área de atuação da empresa pública ou da sociedade de
economia mista ou em área conexa àquela para a qual forem indicados em função de direção superior; ou
b) 4 (quatro) anos ocupando pelo menos um dos seguintes cargos:
1. cargo de direção ou de chefia superior em empresa de porte ou objeto social semelhante ao da empresa
pública ou da sociedade de economia mista, entendendo-se como cargo de chefia superior aquele situado nos 2
(dois) níveis hierárquicos não estatutários mais altos da empresa;
2. cargo em comissão ou função de confiança equivalente a DAS-4 ou superior, no setor público;
3. cargo de docente ou de pesquisador em áreas de atuação da empresa pública ou da sociedade de economia
mista;
c) 4 (quatro) anos de experiência como profissional liberal em atividade direta ou indiretamente vinculada à
área de atuação da empresa pública ou sociedade de economia mista;
II - ter formação acadêmica compatível com o cargo para o qual foi indicado; e
III - não se enquadrar nas hipóteses de inelegibilidade previstas nas alíneas do inciso I do caput do art. 1o da
Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar n.
135, de 4 de junho de 2010.
[...]
§ 2o É vedada a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria:
I - de representante do órgão regulador ao qual a empresa pública ou a sociedade de economia mista está
sujeita, de Ministro de Estado, de Secretário de Estado, de Secretário Municipal, de titular de cargo, sem
vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na
administração pública, de dirigente estatutário de partido político e de titular de mandato no Poder Legislativo
de qualquer ente da federação, ainda que licenciados do cargo;
II - de pessoa que atuou, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de
partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;
III - de pessoa que exerça cargo em organização sindical;
IV - de pessoa que tenha firmado contrato ou parceria, como fornecedor ou comprador, demandante ou
ofertante, de bens ou serviços de qualquer natureza, com a pessoa político-administrativa controladora da
empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa ou sociedade em período
inferior a 3 (três) anos antes da data de nomeação;
V - de pessoa que tenha ou possa ter qualquer forma de conflito de interesse com a pessoa político-
administrativa controladora da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa
ou sociedade.” (BRASIL, 2016a).
166
economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios.
Trata-se de norma jurídica que, ao exigir atributos pessoais específicos para o
exercício das atividades públicas, revela a obediência ao princípio do planejamento
administrativo no acesso a cargos públicos. É o que se pode intitular de livre nomeação
planejada.
A atenção à governança e ao planejamento administrativo, assim, permite a utilização
produtiva dessa forma especial de acesso a cargos e funções públicas, viabilizando-se,
preventivamente, a redução dos riscos apontados pelo Tribunal de Contas da União, no
acórdão já referido neste capítulo.
Tais riscos consistem na investidura de pessoa que não possui os requisitos e as
competências necessárias; nos gastos improdutivos; no conflito entre interesses públicos e
privados dos nomeados; no nepotismo e nos impedimentos legais; na fuga do objeto de
direção, chefia ou assessoramento; no descumprimento de percentuais mínimos para
servidores de carreira; na perda de conhecimento no órgão público quando há saída de pessoal
decorrente da provisoriedade do vínculo; e na má utilização de bancos de talentos ou outras
fontes institucionais para identificar candidatos com potencial.
As colocações de Matias-Pereira corroboram o dever de governança ao traçar a
essencialidade da liderança na gestão pública, o que toca sensivelmente os cargos em
comissão e as funções de confiança, nas atividades ligadas a chefias e direções.
Afigura-se a liderança como elemento interno vital do organismo administrativo para
impulsionar a prestação de serviço qualificada:
8 CONCLUSÃO
181
Governança e planejamento administrativo são direitos que integram o ordenamento jurídico brasileiro? Em
caso positivo, moldam ou disciplinam o acesso a cargos, empregos e funções públicas?
182
Nem sempre é exato se tomar como ponto inicial a chegada de Pedro Álvares Cabral, em 1500. Até a vinda
da família real portuguesa, em 1808, os traços sociais e a esfera pública confundiam-se com a vida de mero
entreposto do mercantilismo ibérico. A História do Brasil é mais recente, nessa ótica. E isso traz confiança na
caminhada porvir. Os próprios retratos de Brasil têm origem posterior, na expedição artística francesa datada
de 1816.
170
burocráticos, alvo da atenção de Raymundo Faoro, e do sistema jagunço, examinado por Willi
Bolle.
O poverty cycle ou ciclo de pobreza, relacionado com o art. 3º, III, da Constituição,
indica o fenômeno que produz e estabiliza o quadro de pobreza comunitária, caracterizando-se
pela retroalimentação do próprio ambiente deficitário, como efeito e causa das ofensas ao piso
vital mínimo. Representam, assim, fatos sociais, econômicos e políticos que auxiliam a
perpetuação de situações de carência. São gestados ou estimulados no ambiente de pobreza e
tendem, por sua vez, a produzir mais pobreza.
A segunda abordagem dos objetivos da República, nesse contexto, mostra que a
identificação e o enfrentamento estratégico dos ciclos de pobreza nacionais são obrigações
constitucionais da Administração Pública.
Um dos ciclos de pobreza a retratar o Brasil fixa-se na estrutura patrimonialista do
Estado, que é causa e consequência simultânea do imperfeito acesso a cargos, empregos e
funções públicas.
O patrimonialismo, em sentido amplo, significa o Estado administrado como bem
pessoal ou familiar e demais aspectos ligados à confusão entre as esferas públicas e privadas,
inclusive o clientelismo, assistencialismo, fisiologismo, filhotismo e mandonismo.
Tais situações germinam no solo fértil da pobreza e corroboram a sua manutenção,
pertencendo a eles a paternidade de entraves sociais, na ciranda de ofensas a direitos
fundamentais no Brasil.
Ao constitucionalismo importa discutir a matéria com atenção aos pontos de partida do
sistema brasileiro e a se pensar o Direito sob prisma nacional.
Desse modo, a oposição ao patrimonialismo une-se à meta do eficiente acesso a cargos,
empregos e funções públicas, em conexão direta com o objetivo da República previsto no art.
3º, III, da Constituição.
III- A dimensão normativa da governança é ponto teórico central desta pesquisa, que
procura traçar os contornos jurídicos do acesso a cargos, empregos e funções públicas no
Direito brasileiro.
Muitas dificuldades envolvem o tema, a começar pelo caráter polissêmico da palavra
governança, que é empregada no contexto do mercado e do Terceiro Setor, ligada à
governança corporativa; como matéria pertinente às relações internacionais, partindo de sua
dimensão política; ora no âmbito público interno, nas dimensões da accountability de técnica
de gestão, de processo complexo de tomada de decisão, de práticas do Estado mínimo, do
New Public Mangement (NPM), da boa governança, da governança como sistema
172
sociocibernético do conjunto de redes organizadas, ou, ainda, como direito fundamental à boa
administração ou boa governança, residindo nesta o interesse maior da dissertação.
Também não há consenso sobre as raízes da governança na esfera pública, se
proveniente do setor privado, fruto da governança corporativa, ou se concebida pelo professor
de Direito Público da Universidade de Toulouse, Maurice Hauriou, na primeira década do
século XX.
Divergências à parte, o relevante é notar que, na sociedade contemporânea, a
permeabilidade entre as esferas pública e privada é intensa. As sociedades hipercomplexas
expõem a incapacidade de aplicação estrita dos parâmetros do Estado Social do século
passado para suprir as demandas comunitárias atuais.
Em sentido coerente com essa evolução de paradigmas, governança pública, boa
administração, boa governança ou governança são consideradas expressões sinônimas,
abraçando-se o entendimento que não distingue, ontologicamente, governo e administração
pública, por considerar que a separação entre atos de governo e atos da Administração, um
político e outro impregnado pela ideia mecanicista de aplicação da lei, é incompatível com o
pós-positivismo e a complexidade das atuais relações em sociedade.
Nada obstante, governança não se confunde com Administração Pública, burocrática
ou gerencial, que indica a estrutura administrativa do Estado. Embora complementar, o
sentido de governança é diferente, pois exprime o feixe de princípios jurídicos que
conformam e disciplinam a Administração Pública e o agir estatal. Tem ângulo instrumental
forte, a influenciar o planejamento do Poder Público, e é dotado de peso axiológico ligado aos
princípios fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito.
Seu conceito, portanto, não é filosófico, político ou restrito à Ciência de
Administração, como se a existência na área do Direito fosse perspectiva futura a ser
normatizada ou mera faculdade jurídica (poder de produzir determinado resultado jurídico).
Em verdade, a governança concretiza-se como princípio jurídico e acarreta o nascimento de
deveres e direitos.
Vislumbra-se que a aridez do debate na academia brasileira sobre o tema tem
incentivo no tratamento pulverizado das normas jurídicas nessa seara, em que o art. 37, caput,
funciona como exemplo. Contrariamente à opção metodológica europeia, que a partir da
normatização expressa do direito fundamental à boa administração, na Carta de Nice,
ingressou no exame de seus princípios decorrentes, no Brasil foi verificado efeito inverso na
Constituição de 1988. Foram esmiuçados princípios administrativos constitucionais de
variados matizes e, com isso, arrefeceu-se a análise sistêmica do alicerce teórico da
173
traz a dimensão dos direitos subjetivos públicos ou coletivos e os deveres dos cidadãos frente
ao Poder Público.
Existe abertura à governança, por exemplo, quando o Estado opera nos contratos de
parceria impulsionando a Administração Pública policêntrica, nas convenções de
performance, nos planos estratégicos e nas avaliações de resultado qualificadas pela
legitimidade social da ação pública.
O dever de o Estado implementar controles de resultado qualificados tem lastro no
conteúdo eclético da boa administração. O direito cidadão de cobrar metas de atuação decorre,
em sentido harmonioso, do direito ao planejamento, cuja matriz teórica, como se anuncia, é a
governança.
Sua essência normativa, desse modo, impulsiona a eficácia social das normas jurídicas
administrativas e dos direitos fundamentais, o que confere à governança o significado de
plexo de princípios jurídicos realizadores da administração pública democrática, humanista,
planejadora e eficaz, responsável pela integração da esfera pública na complexa realidade
social contemporânea.
IV- A pesquisa também confirma a hipótese referente ao conteúdo normativo do
planejamento administrativo, cuja matriz teórica é o direito à governança ou à boa
administração.
De forma similar, os fundamentos do caráter normativo da governança, boa
administração ou boa governança transportam-se para o planejamento administrativo,
ratificando a hermenêutica gadameriana de que cada coisa particular só pode ser
compreendida a partir do geral e vice-versa, em expressão do círculo interpretativo ou círculo
hermenêutico.
No contexto desenvolvido nesta dissertação, não se há falar em impessoalidade,
transparência, planejamento administrativo ou eficiência sem a compreensão do alicerce
representado no direito fundamental à governança, que reúne o feixe de direitos imbricados
nas concepções de Administração Pública burocrática e gerencial, conforme a visão híbrida da
Constituição de 1988.
Num de seus ângulos, portanto, o planejamento administrativo é norma jurídica, sem
olvidar que, tal como a governança, possui outros significados, como o de técnica gerencial,
método da governança corporativa e função administrativa, no âmbito da Ciência da
Administração.
A especial importância do direito ao planejamento, identificado pela doutrina europeia
como diretriz próxima ao denominado princípio da eficácia, exterioriza-se no seu liame com a
176
183
Como visto no capítulo 6, o planejamento administrativo pode, excepcionalmente, apresentar-se como regra
jurídica. A obrigação constitucional de estabelecer o plano plurianual ou as diretrizes orçamentárias é
exemplo.
179
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