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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito

Marcos Pereira Anjo Coutinho

ACESSO A CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS CONFORME A


GOVERNANÇA E O PLANEJAMENTO ADMINISTRATIVO:
reflexões à luz dos retratos do Brasil

Belo Horizonte
2018
Marcos Pereira Anjo Coutinho

ACESSO A CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS CONFORME A


GOVERNANÇA E O PLANEJAMENTO ADMINISTRATIVO: reflexões à luz dos
retratos do Brasil

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Stricto Sensu em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
em Direito.

Área de concentração: Direito Público.

Orientador: Prof. Dr. Edimur Ferreira de Faria.

Belo Horizonte
2018
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Coutinho, Marcos Pereira Anjo


M871a Acesso a cargos, empregos e funções públicas conforme a governança e o
planejamento administrativo: reflexões à luz dos retratos do Brasil / Marcos
Pereira Anjo Coutinho. Belo Horizonte, 2018.
196 f.

Orientador: Edimur Ferreira de Faria


Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito

1. Governança. 2. Administração pública. 3. Serviço público - Cargos e


funções. 4. Planejamento administrativo. 5. Serviço público - Administração de
pessoal. I. Faria, Edimur Ferreira de. II. Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 35
Ficha catalográfica elaborada por Roziane do Amparo Araújo Michielini – CRB 6/2563
Marcos Pereira Anjo Coutinho

ACESSO A CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS CONFORME A


GOVERNANÇA E O PLANEJAMENTO ADMINISTRATIVO: reflexões à luz dos
retratos do Brasil

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Stricto Sensu em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
em Direito.

________________________________________________________________
Prof. Dr. Edimur Ferreira de Faria (Orientador) - PUC Minas

________________________________________________________________
Prof. Dr. José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior (Examinador) - PUC Minas

________________________________________________________________
Prof. Dr. Gregório Assagra de Almeida (Examinador) - UIT

________________________________________________________________
Prof. Dr. Adilson de Oliveira Nascimento (Suplente) - PUC Minas

Belo Horizonte, 8 de março de 2018.


A Deus e à contínua esperança do renovar.
À Denise, ao André Luiz e à Carolina.
Aos meus pais, Edmundo e Vera,
E ao meu irmão, Rodrigo.
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Professor Edimur Ferreira de Faria, pela amizade, pelas críticas
que tanto auxiliaram a elaboração desta pesquisa, pela sólida formação acadêmica e visão
global da ciência jurídica e, principalmente, pela oportunidade que tive de desfrutar de sua
companhia, sua experiência de vida e generosidade.
Ao Professor José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, pelas sugestões ao
desenvolvimento da dissertação, pela sólida formação acadêmica, pelo senso de humor que dá
leveza e pela habilidade de mostrar o Direito por dimensões interdisciplinares.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, que possibilitaram reflexões intensas, por vezes, angustiantes, mas
sempre proveitosas, que auxiliaram esta empreitada, mesmo em ângulos teóricos diversos, em
especial, à Professora Marinella Machado Araújo, ao Professor Flávio Couto Bernardes e ao
Professor Giovani Clark.
Aos colegas do curso de Pós-Graduação da PUC, que ajudaram o autor na construção
das reflexões, Juliano Ribeiro Santos Veloso, Leandro Barbosa, Alice de Siqueira Khouri,
Karol Araújo Durço e Ícaro Ursine.
Aos colegas do Ministério Público, Elaine Martins Parise, quem primeiro me
incentivou a ingressar no curso de pós-graduação da PUC, Maria Angélica Said, colega
próxima, no sotaque e na amizade, e Gregório Assagra de Almeida, com quem tive a honra de
compartilhar as atribuições de Promotoria Especializada na tutela de interesses difusos e
coletivos em Betim e que, desde o princípio, me recomendou o aperfeiçoamento acadêmico.
Aos colegas da Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade, Camila, Valéria,
Fúlvia, Milena, Vanessa, Nilson, Renata, Natália, Mônica, Isabelle, Marina e Giovanni, pela
qualidade do trabalho, pela amizade e por tornarem o cotidiano profissional mais suave.
À minha família, por tudo. Pelo aprendizando nos momentos mais e menos doces, pela
oportunidade de renovação e pelo progresso que opera em minha vida. A construção do meu
universo passa por vocês.
RESUMO

Este trabalho pesquisou a governança e o planejamento administrativo, buscando relacionar as


eventuais repercussões jurídicas dessas diretrizes no acesso a cargos, empregos e funções
públicas no Brasil. A busca dos fundamentos jurídicos responsáveis pela moldura do acesso
aos quadros do Poder Público nacional se deu por meio das reflexões interdisciplinares
extraídas dos retratos do Brasil, da crítica intrassistêmica, calcada na dimensão normativa da
Constituição de 1988, do diálogo com a Ciência da Administração e a doutrina jurídica
administrativa europeia, bem como do diagnóstico das atividades estatais, obtido de reiteradas
decisões judiciais, de dados do Ministério Público mineiro, Tribunal de Contas da União e
sites governamentais e legislativos. Pontuou-se, na pesquisa, a conexão existente entre
patrimonialismo e pobreza no Brasil, trazendo-se à baila os objetivos da República brasileira,
caracterizados como princípios jurídicos que impõem a governança e o planejamento estatal.
O estudo avançou no campo da interdisciplinaridade e no diálogo das fontes internas do
Direito, reconhecendo-se a dimensão normativa fundamental da governança, dela sendo
extraído o direito ao planejamento administrativo, seu corolário. À conclusão da existência do
direito fundamental à governança ou à boa administração e do direito ao planejamento
administrativo, somou-se, finalmente, o exame das consequências produzidas por tais normas
no acesso ao quadro de pessoal da Administração Pública. Concluiu-se que a governança e o
planejamento disciplinam o ingresso nos cargos, empregos e funções públicas como requisitos
gerais de validade da atuação estatal em tais hipóteses.

Palavras-chave: Retratos do Brasil. Governança. Planejamento administrativo. Acesso a


cargos. Empregos e funções públicas.
ABSTRACT

The paper analyzes the governance and administrative planning, seeking to relate the possible
legal repercussions of these guidelines on access to jobs, employment and public functions in
Brazil. The search for the juridical foundations responsible for the framework of access to the
national public authorities came through the interdisciplinary reflections extracted from the
portraits of Brazil, from the intrasystemic critique, based on the normative dimension of the
1988 Constitution, from the dialogue with the Science of Administration and the European
legal administrative doctrine, as well as the diagnosis of state activities, obtained from
repeated judicial decisions, data from the Minas Gerais Public Prosecutor's Office, the Federal
Audit Court and government websites. The connection between patrimonialism and poverty
in Brazil was punctuated in the research, bringing to the fore the objectives of the Brazilian
Republic, which are characterized as legal principles that impose governance and state
planning. The study advanced in the field of interdisciplinarity and in the dialogue of the
internal sources of Law, recognizing the fundamental normative dimension of the governance
from which the legal character of the administrative planning, its corollary, was also
extracted. To the conclusion of the existence of the fundamental right to governance or to
good administration and the right to the administrative planning was added, finally, the
examination of the consequences produced by such norms in the access to the personnel of the
Public Administration. It was concluded that governance and planning effectively shape and
discipline the admission to positions, jobs and functions, as general requirements for the
validity of the State's performance in such cases.

Keywords: Portraits of Brazil. Governance. Administrative planning. Access to positions.


Public jobs and functions.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade


ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
ADO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
Art. – artigo
CC – Cargos em comissão
CLAD – Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo
DAS – Direção e Assessoramento Superiores
FC – Funções de confiança
FHC – Fernando Henrique Cardoso
FUNPEN – Fundo Penitenciário Nacional
IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
MPMG – Ministério Público do Estado de Minas Gerais
n. – número
NPM – New Public Mangement
OTS – Organizações de Terceiro Setor
RE – Recurso Extraordinário
Sefip – Secretaria de Fiscalização de Pessoal
SRU-MPMG – Sistema de Registro Único do Ministério Público de Minas Gerais
STF – Supremo Tribunal Federal
TCU – Tribunal de Contas da União
TJMG – Tribunal de Justiça de Minas Gerais
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 17

2 METODOLOGIA DA PESQUISA .................................................................................... 23


2.1 ORIENTAÇÕES METODOLÓGICAS ......................................................................... 24
2.2 TEORIAS DO DIREITO ................................................................................................. 29
2.3 OBRAS PARADIGMÁTICAS ADOTADAS ................................................................ 36

3 RETRATOS DO BRASIL: ANÁLISES INTERDISCIPLINARES SOBRE O PAÍS .. 39


3.1 OS DONOS DO PODER. RAYMUNDO FAORO ........................................................ 42
3.2 RAÍZES DO BRASIL - SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA .................................. 45
3.3 O QUE FAZ O BRASIL BRASIL? ROBERTO DAMATTA ...................................... 49
3.4 CORONELISMO, ENXADA E VOTO - VICTOR NUNES LEAL ............................ 52
3.5 WILLI BOLLE. GRANDESERTÃO.BR: O ROMANCE DA FORMAÇÃO DO
BRASIL ................................................................................................................................... 54
3.6 O PAPEL DOS RETRATOS DO BRASIL .................................................................... 63

4 OBJETIVOS DA REPÚBLICA, RETRATOS DE BRASIL E A LEITURA


ADMINISTRATIVADA DA CONSTITUIÇÃO ................................................................. 67
4.1 OBJETIVOS DA REPÚBLICA. ORIENTAÇÕES DOUTRINÁRIAS ...................... 71
4.2 PATRIMONIALISMO .................................................................................................... 73

5 GOVERNANÇA .................................................................................................................. 79
5.1 ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E AS CONCEPÇÕES POLISSÊMICAS DE
GOVERNANÇA ..................................................................................................................... 79
5.2 GOVERNANÇA CORPORATIVA ................................................................................ 88
5.3 GOVERNANÇA PÚBLICA E SUA DIMENSÃO NORMATIVA .............................. 92

6 PLANEJAMENTO ADMINISTRATIVO ...................................................................... 119

7 ACESSO A CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS NO BRASIL .......... 129


7.1 CONCURSO PÚBLICO E O PANORAMA DO SISTEMA DE ACESSO A
CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS NO PAÍS ........................................ 129
7.2 CONTRATAÇÕES TEMPORÁRIAS ......................................................................... 145
7.3 CARGOS EM COMISSÃO ........................................................................................... 155

8 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 169

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 181


17

1 INTRODUÇÃO

Na era do conhecimento, consolida-se o paradigma de que o êxito das organizações


complexas tem no elemento humano o primeiro alicerce, revelando o caráter imprescindível
das habilidades e lideranças das pessoas que representam órgãos, instituições e entidades nas
esferas públicas ou privadas.
O acesso a cargos, empregos e funções públicas, em linha harmoniosa, possui
dignidade constitucional no Brasil, sendo disciplinado expressamente no título III da
Constituição, que aborda a Administração Pública no capítulo VII, a partir do art. 37.
A academia brasileira examina o tema com enfoque predominante nas normas
constitucionais que disciplinam a isonomia, a impessoalidade, a moralidade e a eficiência
administrativas.
A esse panorama administrativo, são acrescidas as peculiaridades nacionais dos
poverty cycles ou ciclos de pobreza, inerentes ao objetivo da República do art. 3º, III, previsto
no título I da Constituição, que trata dos “princípios fundamentais”.
A tese de que a atenção ao referido objetivo da República pode ser alcançada por meio
do diagnóstico e enfrentamento estratégico de sistemas ou ciclos sociais, políticos e
econômicos perniciosos é viabilizada pelo estudo dos retratos do Brasil1.
Os ciclos de pobreza são fenômenos plurais que exprimem, simultaneamente, causas e
efeitos de atrasos sociais e desorganização estatal. O patrimonialismo brasileiro é um dos
ciclos identificados nos retratos do Brasil, abrangendo o clientelismo, o assistencialismo, o
fisiologismo, o mandonismo, o filhotismo e ocorrências afins.
A hígida formação dos quadros de pessoal da máquina pública, portanto, sinaliza o
dever de respeito não apenas às normas constitucionais da Administração Pública, mas
também a sujeição ao assinalado objetivo da República, dotado de natureza planejadora,
fomentando-se a ruptura do ciclo de pobreza patrimonialista.
Todos esses aspectos são lançados introdutoriamente para dimensionar a magnitude
jurídica, social, econômica e política da matéria, com repercussão direta na vida comunitária e
na maior efetividade da atuação estatal brasileira.
Se o funcionamento do Estado resta sobremaneira abalado, em qualquer país, com a
descriteriosa composição da máquina pública, no Brasil, a questão é agravada pelo

1
Os retratos do Brasil identificam-se com as obras artísticas, antropológicas, históricas, econômicas e
sociológicas responsáveis pela procura da identificação nacional e de traços particulares de formação, surgindo
para esta pesquisa como assunto central na discussão dos contornos do Estado brasileiro contemporâneo.
18

imbricamento nos déficits socioeconômicos existentes.


Apesar dos abstratos contornos constitucionais, o cotidiano administrativo apresenta
realidade dissonante das interpretações extraídas dos textos normativos pela doutrina: normas
gerais e excepcionais, usualmente, confundem-se na práxis administrativa, que aponta para o
agrupamento desordenado do material humano que compõe, direta ou indiretamente, a
engrenagem estatal, em cenário piorado pela complexidade decorrente da coparticipação de
funcionários terceirizados e dos ajustes com o Terceiro Setor.
Essa constatação evidencia simbolismo normativo danoso, a exteriorizar simulacros de
princípios e institutos jurídicos. A eficiência administrativa acaba funcionando como alegoria
distanciada dos meios necessários à sua realização.
Diante do horizonte conturbado, pretende-se examinar se a governança e o
planejamento, pouco trabalhados pela doutrina jurídica nacional, representam impulsos à
ruptura das dissimulações normativas brasileiras.
Questiona-se, então, se as concepções de governança e planejamento administrativo
influenciam o acesso a cargos, empregos e funções públicas, bem como se essas possíveis
diretrizes afiguram-se como antecedentes lógicos da eficiência e da satisfação de direitos
fundamentais cujas prestações sejam incumbência do Estado.
Nessa perspectiva, a presente investigação traz os seguintes problemas centrais: a
governança e o planejamento administrativo são direitos que integram o ordenamento jurídico
brasileiro? Em caso positivo, moldam ou disciplinam o acesso a cargos, empregos e funções
públicas?
Por meio do exame dos retratos do Brasil, dos textos normativos nacionais, da
doutrina jurídica selecionada, de ações judiciais que tramitaram no Supremo Tribunal Federal
(STF) e no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), de informações do Tribunal de
Contas da União (TCU), procedimentos administrativos sob a presidência do Ministério
Público de Minas Gerais (MPMG), bancos de dados oficiais e portais públicos são
construídos os fundamentos, gestados na reflexão sobre o Direito Administrativo brasileiro,
na primeira metade do século XXI.
As respostas provisórias, a serem testadas ao longo da pesquisa, sugerem não ser
possível a prestação do serviço público eficiente, na complexa sociedade brasileira
contemporânea, desprezando-se o vetor da governança e a planejada estruturação da máquina
pública, no universo jurídico.
Estabelece-se, a partir daí, a vinculação do sistema de acesso a cargos, empregos e
funções públicas à governança e ao planejamento, que representariam mais do que simples
19

recomendações aos agentes públicos e políticos, evidenciando o conteúdo deontológico.


Os objetivos gerais, assim, buscam analisar o status jurídico da governança e do
planejamento administrativo, bem como a eventual forma de incidência sobre o sistema de
acesso ao quadro de pessoal do Estado e às funções públicas, de modo a contribuir, no campo
da ciência jurídica, para a superação dos hiatos das funções administrativas do Estado e do
hipertrófico simbolismo normativo brasileiro.
Para tanto, são delimitados objetivos específicos que, a partir dos retratos do Brasil,
permitem descrever a formação e os contornos nacionais; analisar, sob o ângulo do Direito
Administrativo, o objetivo da República de erradicação da pobreza; expor o fenômeno dos
poverty cycles; examinar o patrimonialismo; perquirir a influência da governança corporativa
e da Ciência da Administração na esfera jurídica administrativa; decompor as funções
administrativas do Estado; verificar a importância do caráter instrumental dos direitos;
discutir o poder discricionário e o ato vinculado na Administração Pública à luz da
governança; identificar as formas de acesso a cargos, empregos e funções públicas em sentido
amplo; explorar o paradigma do concurso público e investigar casos excepcionais de acesso,
sob o prisma das contratações temporárias e dos cargos em comissão.
A metodologia da pesquisa, apresentada no segundo capítulo, divide-se em três itens
de conteúdo estrutural que expõem as orientações metodológicas, teorias do Direito e obras
paradigmáticas adotadas.
Reúnem-se os métodos utilizados e as teorias do Direito no mesmo capítulo por opção
que se justifica em decorrência do liame existente entre paradigmas jurídicos e metodologia.
Nesse sentido, a visão aberta da ciência jurídica repercute necessariamente na opção
metodológica da pesquisa científica. Ângulos pós-positivistas, em seu extenso leque, tendem
a considerar metodologia multidimensional, que pode se valer pontualmente dos raciocínios
dedutivos e indutivos, mas neles não se exaure diante do modelo tópico e problemático. O
positivismo, por sua vez, direciona método de pesquisa em tese capaz de subordinar-se à
pretensão de objetividade e da neutralidade científica, traduzidos nas ideias de separação
sujeito-objeto, subsunção (fato-tipo) e sistema fechado.
Sustentou-se, neste capítulo, que os raciocínios indutivo e dedutivo são ângulos
metodológicos utilizados na construção dos argumentos, certo de que a superação positivista
não significa sua eliminação. Assim, quando se afirma que tais métodos são apenas vertentes
do trabalho, registra-se que a crítica jurídica de realidade, não contida apenas nos textos legais,
se alicerça na ideia de problema, ultrapassando a concepção estrita de sistema.
No campo da teoria do Direito, existem aporias e insuficiências epistemológicas em
20

todas as linhas de pensamento atualmente conhecidas.


Desenvolve-se a visão de que o Estado Democrático Direito propicia paradigma
diferenciado à ordem jurídica, ligado à substancialidade das normas. Embora seja admitida,
expressamente, a substancialidade do Direito, nas perspectivas eclética e pluridimensional
adotadas nesta dissertação, é refutado o pamprincipiologismo e não se dinamita o
procedimentalismo, que é incapaz de responder a todos os desafios na seara jurídica, mas
também produz importantes contribuições teóricas.
As compreensões de Ronald Dworkin estabelecidas nas obras “Levando os Direitos a
Sério” e “A Justiça de Toga” e de José Adércio Leite Sampaio em “Teoria da Constituição e
dos Direitos Fundamentais” trazem a base da teoria do Direito para o desenvolvimento desta
pesquisa. A imersão nos retratos do Brasil foi concebida a partir do artigo jurídico
“Dimensões Paradoxais da Jurisdição Constitucional”, de José Alfredo de Oliveira Baracho
Júnior, e da obra “Grandesertão.br”, de Willi Bolle. Os estudos administrativos
constitucionais tiveram alicerce em “Direito fundamental à boa administração pública”, de
Jaime Rodríguez-Arana Muñoz; “Direito fundamental à boa administração e governança”, de
Vanice Regina Lírio do Valle, e “Direito ao Planejamento”, de Juliano Ribeiro Santos Veloso.
O caráter multifacetado desta pesquisa inviabiliza o registro de marco teórico singular.
No capítulo terceiro, dedicado aos retratos do Brasil, foram analisadas as obras “Os
donos do poder”, de Raymundo Faoro, “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, “O
que faz o brasil Brasil?”, de Roberto DaMatta, “Coronelismo, Enxada e Voto”, de Victor
Nunes Leal, e “Grandesertão.br: o romance da formação do Brasil”, de Willi Bolle.
O estudo se deu sob filtro jurídico e administrativo, no contexto das estruturas e
sistemas de funcionamento do Estado brasileiro, aferindo-se, neste ângulo proposto, que Willi
Bolle, apesar do caráter heterogêneo dos retratos, produziu em “grandesertão.br” pesquisa que
realça características comuns observáveis nos aludidos ensaios brasilianos, funcionando como
elo entre os diversos trabalhos de identificação nacional.
Os retratos do Brasil, nas diferentes obras examinadas, permitem a identificação do
patrimonialismo e da “governança caseira” nacional, como modelos decorrentes do acordo
entre os donos do poder, em prática autoritária mantenedora da desigualdade civil e política.
Exteriorizam-se, portanto, sistemas e ciclos nacionais perniciosos a serem enfrentados
no Brasil, o que assegura a importância da leitura administrativa dos objetivos constitucionais
da República.
Os objetivos da República, os retratos do Brasil e o patrimonialismo, discutidos no
quarto capítulo, por sua vez, trazem a conexão entre o poverty cycle inerente ao
21

patrimonialismo nacional e a importância do enfoque administrativo a ser conferido ao art. 3,


III, da Constituição.
São estabelecidas, à vista disso, relações entre o desordenado acesso a cargos,
empregos e funções públicas e o patrimonialismo, refletindo-se sobre a necessidade de o
Direito brasileiro operacionalizar, adequadamente, a efetividade dos direitos fundamentais por
meio de estratégias jurídicas planejadoras.
O capítulo quinto explora o tema da governança. Comenta as suas concepções
polissêmicas, as governanças corporativa e pública. Discute as origens da governança e a
permeabilidade do Direito Administrativo à governança corporativa.
Registra que, na linha desta pesquisa, governança pública, boa administração, boa
governança ou governança são sinônimas, na esteira do entendimento que informa a
impropriedade do tratamento diferenciado entre governo e administração pública.
Examina o direito à boa administração positivado na Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia (Carta de Nice) com status de direito constitucional fundamental nos
países integrantes da União Europeia e a Carta Iberoamericana de los Derechos y Deberes
del Ciudadano en Relación con la Administración Pública, documento multilateral assinado
pelo Governo brasileiro, que também positiva o direito fundamental à boa administração.
Observa-se que a timidez da doutrina brasileira sobre o tema tem incentivo no
tratamento esparso das normas jurídicas administrativas, funcionando como exemplo o art.
37, caput, da Constituição. Contrariamente à opção europeia, que a partir da normatização
expressa do direito fundamental à boa administração, ingressou no exame de seus princípios
decorrentes, no Brasil ocorreu efeito contrário.
A dimensão normativa fundamental da governança no Brasil é construída a partir de
oito ângulos argumentativos distintos que, reunidos, viabilizam, na ordem jurídica, o
reconhecimento desse direito fundamental, compreendido como super princípio ou plexo de
princípios jurídicos que conformam a Administração Pública. Tem ângulo instrumental, que
molda o planejamento administrativo, e possui peso axiológico, ligado aos princípios
fundamentais do Estado Democrático.
No capítulo sexto, aborda-se o planejamento administrativo na ordem jurídica
brasileira, cuja matriz teórica é o direito à governança. Os fundamentos do caráter normativo
da governança equiparam-se aos do planejamento administrativo, ratificando a hermenêutica
gadameriana de que cada coisa particular só pode ser compreendida a partir do geral e vice-
versa.
Assim, não se compreende teoricamente o planejamento administrativo ou a eficiência
22

sem a visão maior do direito fundamental à governança, que reúne o feixe de direitos
imbricados nas concepções de Administração Pública burocrática e gerencial, conforme o
paradigma administrativo eclético da Constituição.
O planejamento estratégico, tático e operacional são conceitos da Ciência da
Administração presentes na ordem jurídica brasileira, que expressam o conteúdo do direito ao
planejamento administrativo, traduzido na imposição do agir estatal planejador geral,
intermediário e detalhado.
Com isso, as ações, atividades, projetos administrativos inerentes à concretização dos
atos vinculados, dos atos decorrentes do poder discricionário e das relações jurídicas da
Administração encontram-se subordinadas ao planejamento.
O acesso a cargos, empregos e funções públicas, finalmente, é tratado no sétimo
capítulo. Inicia-se com o concurso público, que é regra geral constitucional. Enfrenta-se o
atual panorama caótico do ingresso de pessoal na máquina do Estado e nas funções públicas
em sentido amplo.
Estabelece-se a conceituação de cargos, empregos e funções públicas. São trazidas as
exceções constitucionais ao concurso público, incluindo-se, nesse ponto, o exame das
terceirizações e das parcerias com o Terceiro Setor.
Detido enfoque nas contratações temporárias e nos cargos em comissão existe pelo
impacto que o regime especial ainda hoje produz no acesso ao quadro de pessoal, bem como
pela importância estratégica dos cargos de chefia e direção numa Administração Pública
eficiente.
Os requisitos gerais e especiais de validade de formas de acesso a quadro de pessoal
são objeto de reflexão, inclusive na crítica estabelecida à decisão paradigmática do STF em
matéria de contratação temporária (RE 658026/MG), ao misturar requisitos gerais e
específicos na fundamentação do acórdão.
O desenvolvimento do sétimo capítulo permite a discussão dos problemas centrais
desta pesquisa pela conexão verificada entre governança, planejamento, formação do quadro
de pessoal lato sensu, objetivos constitucionais da República e efetiva prestação dos serviços
públicos essenciais.
Ao longo dos capítulos, a dissertação apresenta respostas parciais e conclusões
pontuais que, entrelaçadas, tendem a esquadrinhar os problemas lançados, que repercutem no
cotidiano administrativo brasileiro e na detecção da validade do agir estatal.
23

2 METODOLOGIA DA PESQUISA

A razão demonstrativa (logos) capaz de mostrar a verdade ou desvelar (aletheia) as


coisas a partir das coisas mesmas2, desde a Grécia Antiga, representa o alicerce filosófico que
separa a crença comum ou a opinião (doxa) do conhecimento científico ou da crença
justificada (episteme). (NORRIS, 2007, p. 11-12).
A produção do conhecimento traz, assim, a ideia de desvelamento pelo uso da razão,
distanciando-se, ao ser transportado para o atual estado da arte das ciências sociais aplicadas,
do simples “estudo sobre determinado tema” ou do isolado “levantamento de opiniões”
(GUSTIN; DIAS, 2006, p. 5-6): a pesquisa decorrente crença justificada não traduz o mero
registro ou a compilação de dados e informações, o que é incompatível com a formulação do
problema e com os objetivos exteriorizados no iter destinado ao atingimento da verdade ou da
provável verdade científica.
O trabalho em questão busca trazer argumentos que respondam, com alicerces teóricos
compatíveis, as perguntas centrais relativas à existência do direito à governança, perquirindo,
em corte epistemológico, a eventual conexão desses direitos com o acesso a cargos, empregos
e funções públicas.
Trata-se de dissertação com enfoque restrito ao Brasil, inserida no final da segunda
década do século XXI, período caracterizado por crise em larga escala3: crise da democracia
representativa; crise institucional e política brasileira; crise dos modelos econômicos e da
globalização; crise social, com o avanço da pobreza (SCHWARTZMAN, 2007); e, no campo

2
“Tales (623-546 a.C., aproximadamente) costuma ser considerado o primeiro pensador grego, ‘o pai da
filosofia’ […] Procurando fugir das antigas explicações mitológicas sobre a criação do mundo, Tales queria
descobrir um elemento físico que fosse constante em todas as coisas. Algo que fosse o princípio unificador de
todos os seres. Inspirando-se provavelmente em concepções egípcias, acrescidas de suas próprias observações
da vida animal e vegetal, concluiu que a água é a substância primordial, a origem única de todas as coisas.”
(COTRIM, 2000, p. 78). A água era o elemento primordial (arqué ou arché) de Tales de Mileto.
3
“[…] o estudo do fenômeno da pós-modernidade tem se enriquecido, nas diversas áreas do conhecimento,
devido às rápidas mudanças que se têm processado no âmbito das estruturas sociais. […] O conceito de
modernidade refere-se a um contexto sócio-histórico preciso da cultura ocidental que se inicia, para a maioria
dos teóricos citados, no século XVII, chegando até meados do século XX, com a consolidação de certos
valores, entre eles a crença nas virtudes da razão, responsáveis pela construção de alguns mitos, como a crença
nas virtudes da ciência: a idéia de progresso (com a melhoria progressiva das condições sociais); a concepção
de que a história tem um sentido e a razão deve progressivamente impor sua lei aos acontecimentos; a
convicção de um universalismo dos modelos construídos no Ocidente, entendidos como modelos de referência
e expressão dessa razão; a pressuposição de uma sociedade homogênea e não diferenciada; a ruptura de dois
grandes sistemas normativos (direito e moral/direito e política). […] Quando entram em crise os ideais da
modernidade, ou seja, não são cumpridos alguns dos principais projetos da modernidade por força do próprio
desvirtuamento do capitalismo, segundo entende Boaventura Santos (2000), surge, então, o conceito de pós-
modernidade. Não há um consenso entre os estudiosos quanto à consolidação da ideia de pós-modernidade e
muito menos quanto ao seu provável conteúdo.” (DIAS, 2003, p. 28-30).
24

acadêmico4, de continuada crise da razão.


A crise da razão5 é aqui compreendida como o reconhecimento do caráter incompleto
e relativo das respostas advindas da problematização formulada com lastro nas metodologias
de produção do conhecimento científico.
Nesse cenário de desconfiança das fórmulas teóricas puras, optou-se por construir
argumentação fulcrada nas particularidades do constitucionalismo brasileiro, em “narrativa
construída no interior de seus paradoxos” (BARACHO JUNIOR, 2009, p. 162).
Sem refutar a importância do dogmatismo jurídico, saber quem somos, como estamos
e o que buscamos como nação são reflexões primárias indissociáveis do estudo dos nossos
direitos fundamentais e das conflitualidades hermenêuticas6.

2.1 Orientações metodológicas

Há neste trabalho o reconhecimento de que a identificação dos traços da nação


brasileira na formação e interpretação do constitucionalismo pátrio é ponto sensível da
pesquisa sobre governança e suas repercussões no acesso aos cargos, empregos e funções

4
“A base do surgimento de novas formas de compreender o direito é oriunda das mutações sociais globais que
tem ocorrido, não sendo mais possível, inclusive, separar o estudo do direito do estudo dos demais fenômenos
sociais, como apregoaram o positivismo e o normativismo jurídicos, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, em
razão de um movimento de contrução de um objeto próprio de conhecimento da ciência jurídica. […] A
lgitimidade do direito na modernidade assentava na simplificação das estruturas sociais e numa forma de
conhecimento que pressupunha a distinção entre o sujeito (o jurista) e o objeto do conhecimento (as normas
jurídicas).” (DIAS, 2003, p. 28-29).
5
A crise da razão é extensa, atingindo diversas áreas do conhecimento, manifestações artísticas e estéticas.
Morris Berman em sua crítica ao racionalismo antropocêntrico explica que “até as vésperas da revolução
científica” havia a “fusão ou identificação do homem com o seu ambiente natural, expressando uma integração
psíquica [...].” Com a modernidade o panorama mudou, durante a maior parte da história da humanidade
“vigorou a concepção de que o mundo era encantado e o homem se sentia como parte integrante dele.” A
“reversão dessa concepção destruiu, no plano psíquico e físico, o sentimento de integração do homem em
relação à natureza [...].” A crise da razão parece apontar para a urgente invenção de alguma forma de
“reencantamento” (BERMAN apud COTRIM, 2002, p. 20). Em sentido harmonioso, Philippe Nemo aduz a
morte do ateísmo moderno, pela incapacidade momentânea de as humanidades oferecerem um sentido para a
existência humana, pondo-se fim ao niilismo, outro produto triste da cultura europeia dos últimos séculos
(2012). Sobre o tema, igualmente, Adauto Novaes, organizou e publicou “A Crise da Razão” (2006),
dimensionado a sua amplitude multidisciplinar.
6
As técnicas de argumentação jurídica, que buscam assegurar a racionalidade do discurso desenvolvido pelo
intérprete, são influenciadas pela sinergia dos métodos de interpretação e não podem desconsiderar os
balizamentos oferecidos pelos significantes interpretados. A argumentação jurídica é essencialmente metódica
e os métodos de argumentação nitidamente argumentativos: sua sinergia está teleologicamente comprometida
com o direcionamento dos juízos valorativos e decisórios realizados pelo intérprete, justificando-os. A
liberdade decisória do intérprete é diretamente proporcional à intensidade das conflitualidades intrínsecas. O
resultado dessa atividade, por sua vez, somente é suscetível a um controle de racionalidade, não se ajustando a
rígidos referenciais de correção argumentativa e substancial. [...] A conflitualidade intrínseca é um incidente,
efetivo ou potencial, que surge no curso do processo de interpretação e reflete a oposição entre grandezas
argumentativamente relevantes, passíveis de influir no delineamento de uma pluralidade de significados
reconduzíveis ao mesmo enunciado linguístico. (GARCIA, 2015, p. 561 e 572).
25

públicas no Brasil, cuja marca do patrimonialismo é nódoa histórica.


Encampa-se o paradigma de que a ciência é um fenômeno político e social também, a
romper com os modelos ideais7, impulsionando a pesquisa complexa, o que é acentuado nas
ciências sociais aplicadas:

[...] as duas grandes abordagens epistemológicas – empirismo e racionalismo –


acabam se mostrando insuficientes e, ao mesmo tempo, complementares, pois
analisam os elementos – sujeitos e objeto – de forma isolada, dando prioridade a um
deles. Isto se deve ao fato de que não há como imaginar o “eu” sem objeto ou um
objeto sem o “eu”. Para haver um ato de conhecimento, o “eu” que conhece há de se
defrontar com o objeto cognoscível, ou seja, aquele que será conhecido, um
influenciando diretamente o outro. Dessa forma, com o passar do tempo, foram
várias as correntes epistemológicas que surgiram com o objetivo de criticar, superar,
ou de complementar referidas teorias [...]. (BELCHIOR, 2015, p. 35).

Em decorrência da compreensão de pluridimensionalidade do fenômeno jurídico-


constitucional (SAMPAIO, 2013, p. 721), adquire relevância o norte da vigilância
epistemológica, como forma de controle e fechamento das respostas advindas do ciclo
hermenêutico.
Como o diagnóstico científico não tem unidade, sim pluralidade, o autor filia-se aos
entendimentos que enxergam a produção do conhecimento como probabilidade de verdade,
invariavelmente contingente e restrito, sendo relevante a dosagem dos graus de realismo e
idealismo:

A filosofia da ciência é [...] filosofia aberta, pois seus princípios não são intocáveis e
suas verdades não são totais e acabadas. Pensar cientificamente é colocar-se no
campo epistemológico intermediário entre teoria e prática, entre matemática e
experiência. Conhecer cientificamente uma lei natural é conhece-la simultaneamente
como fenômeno e como número [...]. (BACHELARD apud MOREIRA; MASSONI,
2011, p. 68).

7
O espectro epistemológico proposto por Gaston Bachelard (2015, p. 140) evidencia tal compreensão:

Idealismo

Convencionalismo

Formalismo

Racionalismo Aplicado e Materialismo Técnico

Positivismo

Empirismo

Realismo
26

Não se quer dizer com isto que a descrença na verdade é de tal forma aceita que os
métodos perderam a razão de ser8. Ao revés, os métodos, independentemente da nomenclatura
utilizada9, são realidade no processo de formação do conhecimento, observando-se o papel
relevante do controle da racionalidade, que funciona como juízo de adequação das formas
eleitas e dos resultados obtidos, a inibir visões herméticas ou totalizantes.
Nessa linha argumentativa, faz-se, em parte, a defesa dos métodos indutivo e dedutivo
no processo de identificação e reconhecimento da governança, submetidos ao controle
racional e ao arcabouço teórico dogmático.
O método indutivo (GUSTIN; DIAS, 2006, p. 22) consiste no procedimento lógico
que utiliza premissas particulares (desorganização de repartições públicas e excessivo número
de cargos em comissão, por exemplo) para atingir uma conclusão geral ou universal (o direito
à governança), sendo que, especialmente nas ciências sociais aplicadas, longe está de
representar modelo desqualificado, não significando a simplória extração de conceitos da
experiência ou da realidade externa.
Apesar das críticas (POPPER, 2013, p. 27-41), trata-se de método ainda hoje utilizado,
e seu reconhecimento científico é aferido por meio do confronto entre o juízo de controle
racional e as inferências indutivas, in verbis:

Quando a generalização for de conceitos ou de proposições, derivados ou não de


procedimentos positivistas, a boa prática investigativa consiste em definir
sistematicamente seu significado e determinar o domínio de validade da
generalização e as ressalvas correspondentes. (THIRY-CHERQUES, 2009, p. 27).

Como assevera Miguel Reale, a realidade jurídica enseja a necessidade de integração


de questões axiológicas, históricas, econômicas e sociais para a adequação do Direito
(REALE, 1979, p. 8-14).
Tal complexidade termina por viabilizar a indução controlada, por meio de uma
vigilância epistemológica do mundo sensível: o “processo pelo qual a Ciência Social se
8
“Não se pode, no entanto, cair num ceticismo total, ou no extremo oposto e afirmar, como Feyerabend (1977, p.
274 e 279), que a ciência pede uma epistemologia anárquica. Admite-se que não há ainda explicações
razoáveis que demonstrem como funciona o processo de descoberta das soluções para os problemas e que
também não há critérios e procedimentos universalmente aceitos que possam ser usados para justificar e
demonstrar com certeza a veracidade de uma hipótese. Admite-se também que a ciência e seus procedimentos
são encarados como um processo histórico e como um sistema aberto, sujeitos a mudanças drásticas atreladas
à cultura de cada época e à área de conhecimento em que estiver o problema investigado. Porém, alguns
critérios básicos são discerníveis dentro do procedimento geral, amplo, utilizado no construir a ciência. E é
nesse sentido que se deve compreender método científico: como a descrição e a discussão de quais critérios
básicos são utilizados no processo de investigação científica.” (KÖCHE, 2015, p. 68-69).
9
A sistematização fechada tem perigoso viés totalizante e reducionista, em especial nas ditas ciências sociais
aplicadas, naturalmente porosas aos fatos extraídos da comunidade. Isso não significa que a abertura do pensar
seja antagônica com a ideia de método, ao menos na dimensão desenvolvida nesta pesquisa.
27

diferencia e resguarda das fragilidades epistemológicas do senso comum” (FONSECA;


CIARALLO; CRUZ, 2011).
A percepção do funcionamento cotidiano da Administração Pública e o exame da
eficácia social dos direitos fundamentais no contexto do Estado brasileiro, portanto, é aliada
importante da pesquisa científica que apura a juridicidade da governança, bem como sua
relação com o acesso a cargos, empregos e funções públicas:

Não se pode ignorar que no campo jurídico brasileiro ainda prevalece a ideia da
abordagem metodológica que pressupõe o conhecimento como uma verdade pronta
e acabada, com base em enfoques positivistas, os quais colocam o sujeito fora do
sistema de referência, sendo o conhecimento, portanto, mera descrição da realidade.
Veremos que o conhecimento produzido de acordo com estes referenciais
negligencia o fato de o conhecimento jurídico não ser um campo isolado,
independente das outras áreas de conhecimento.
Por isso, fortalecer a pesquisa no campo do saber jurídico passa necessariamente
pela adoção de uma visão do Direito e da Ciência Jurídica como espaços de
apreensão do real de modo relacional, como fala Bourdieu, que necessitam de
epistemologias abertas e de metodologias multidisciplinares que possibilitam
identificar que o objeto não está isolado de um conjunto de relações, da história e da
produção social dos homens. Uma virada epistemológica do habitus científico, nos
dizeres de Fonseca (2007), consistiria na crítica epistemológica da Ciência Jurídica e
dos princípios racionais e dos métodos dedutivos que orientam a produção de
conhecimento deste campo. (FONSECA; CIARALLO; CRUZ, 2011, p. 3977).

A indução, mesmo quando não formula a regra geral, tem importante faceta: permite a
produção indireta do conhecimento através da detecção de anomalias do sistema. Transforma
o conhecimento de regras gerais em alternativa dedutiva. Quando é experimentada a anomalia
(patrimonialismo na Administração Pública), por dedução é factível a produção do
conhecimento também.
As críticas ao método indutivo hoje são passíveis de resposta calcada na concepção
ora desenvolvida: o conhecimento produzido na ciência jurídica não pode ser hermético,
isolado de outras áreas afins do saber, cabendo à pesquisa científica a nova visão do Direito,
entendido como espaço de apreensão do real, invariavelmente cercado pela vigilância
epistemológica.
A dedução, na forma simples, é método lógico que exprime raciocínio silogístico,
condicionando a veracidade de uma conclusão ao acerto das premissas anteriores (POPPER,
2013, p. 27-41).
Esta pesquisa desenvolve também a lógica dedutiva, como, exemplificativamente, na
extração lógica ordinária da essência normativa da governança e do planejamento
administrativo, pelo fato de representarem antecedentes ou alicerces da eficiência
administrativa, no contexto do Estado Democrático de Direito brasileiro, repercutindo no
28

acesso a cargos, empregos e funções públicas. De modo didático, pode-se consignar o


seguinte silogismo: a eficiência é um direito. A governança e o planejamento são pressupostos
essenciais para a materialização da eficiência. Logo, a governança e o planejamento têm
raízes normativas ao obrigarem (e não apenas recomendarem) a atenção do Administrador.
Os métodos indutivos e dedutivos, portanto, são ângulos metodológicos desta pesquisa,
na construção dos argumentos que façam frente aos problemas propostos. E quando se afirma
que tais métodos são apenas vertentes do trabalho, frisa-se, em dissonância com o positivismo,
que a crítica jurídica da realidade se alicerça no pensamento tópico e problemático,
sobrepujando a ideia de sistema fechado.10
Dessa forma, ao se questionar a possibilidade jurídica do Estado ser obediente à
governança pública e ao planejamento, por exemplo, incursão na esfera privada da
governança corporativa termina por colocar em colisão alguns paradigmas do Direito
Administrativo que, acaso interpretados sob a égide positivista, funcionariam como
empecilhos ao desenvolvimento teórico desta pesquisa, sendo os métodos dedutivos e
indutivos, nesse aspecto, insuficientes.
Na medida em que a ordem jurídica contemporânea condensa, em muitas situações,
textos normativos formalmente antagônicos ou contraditórios, derivados das plurais
concepções de vida na sociedade, a reorganização ou ressignificação do que se compreende
por sistema, merece redobrada atenção. Os paradigmas de objetividade e de neutralidade do
Direito, traduzidos nas ideias de separação sujeito-objeto, subsunção (fato-tipo) e sistema
fechado, numa sociedade hipercomplexa são colocados em xeque, assim como a crença numa
metodologia integral e abrangente.
Os assinalados debates epistemológicos permitem a extração de dois pontos
harmoniosos, no campo das ciências sociais aplicadas. Um deles reside na ideia de que, se é
difícil a captura da verdade, o trabalho com o provável se transforma numa realidade
científica plausível. Noutro ângulo, a ciência sempre poderá ter ângulos experimentais ou
conjecturais, que precisam ser submetidos à vigilância constante.

10
Na visão de Gadamer, “a virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem” (GADAMER,
2016, p. 497-612) viabiliza o entendimento de que a subsunção, tipicamente positivista, calcada na idéia do
rigorismo metodológico estrito, estaria superada. Apesar de o título de sua obra trazer referência a “método”, a
construção do pensamento, embora distanciada da concepção anarco-epistemológica, caminha ao largo da
metodologia tradicional. Nessa linha, a hermenêutica jurídica transforma-se em “[...] processo que se
caracteriza por sua circularidade, pois tem o seu começo na pré-compreensão que o intérprete tem do texto,
enquanto depois aquela retorna já modificada. Isso é o “círculo hermenêutico”. Essa ideia da circularidade da
compreensão foi originariamente desenvolvida por Schleiermacher para expressar a relação recíproca entre o
singular e o todo, entre o particular e o geral. Um texto é entendido na sua totalidade a partir da compreensão
de cada uma das suas partes, as que, por sua vez, geram uma nova visão do todo, porém, são só dois momentos
de um único acontecer.” (LOPES, 2000, p. 106).
29

Os problemas e as hipóteses desta pesquisa científica não subsistem, portanto, sem a


análise das características multidisciplinares da governança, do planejamento e do acesso a
cargos, empregos e funções públicas, que envolvem o Direito, a Ciência da Administração,
Sociologia, Antropologia, Filosofia e a própria formação e características da nação brasileira,
entre considerável gama de fatores temporais e espaciais.

2.2 Teorias do Direito

Neste item informa-se, em breves linhas, as razões do modelo teórico escolhido para o
desenvolvimento da argumentação jurídica da pesquisa, com a finalidade de se estabelecer a
coerência metodológica e a harmonia epistemológica da opção.
De plano, evidencia-se no trabalho o afastamento do positivismo jurídico, como se
extrai das considerações já estabelecidas acima.
Nada obstante, algumas observações prévias são relevantes, de modo a facilitar a
transmissão das ideias.
O positivismo jurídico, expressão representativa de inúmeras correntes de pensamento,
que abrangem matizes diversos do positivismo legalista, científico, sociológico, crítico,
jurídico empírico, lógico-jurídico, conceitual, estadista, institucionalista e legal racionalista
(MACHADO, 2008, p. 330), na presente realidade constitucional, possibilita ao intérprete
exames substantivos de legalidade, viabilizando a incorporação de juízos axiológicos como
critério de validação do Direito, bem como a construção de linhas argumentativas permeadas
pela moral, o que se traduz no denominado positivismo jurídico inclusivo11, detectável no
pós-escrito de Herbert L. A. Hart (2012, p. 307-356).
O positivismo inclusivo não adota o mecanicismo decorrente da estrita lógica jurídica
silogística, notadamente após o advento das Constituições democráticas promulgadas após 2ª

11
Existem questionamentos relativos à dicotomia “positivismo exclusivo x inclusivo”. Ronald Dworkin, na obra
“A Justiça de Toga”, sustenta que o positivismo exclusivo “[...] insiste na tradicional tese positivista de que
aquilo que o direito exige ou proíbe não pode jamais depender de qualquer critério moral. Coleman chama o
professor Joseph Raz, de Oxford, de principal patrocinador contemporâneo do positivismo exclusivo, e discute
as opiniões de Raz com certa profundidade. A segunda modalidade de positivismo é o positivismo “inclusivo”,
que permite a introdução de critérios morais no texto para identificar o direito válido, mas somente se a
comunidade jurídica tiver adotado uma convenção que assim o determine. Coleman responde pela segunda
modalidade, e dedica boa parte de seu livro à afirmação de que sua versão do positivismo inclusivo é superior
a qualquer forma de positivismo exclusivo, e muitíssimo superior a minha interpretação alternativa e não
positivista do direito. [...] Afirmarei que os argumentos que Coleman propõe e os que ele atribui a outros
positivistas não são bem sucedidos. O positivismo exclusivo, pelo menos na versão de Raz, é dogma
ptolemaico: apresenta concepções artificiais de direito e autoridade cujo único valor parece estar na tentativa
de manter o positivismo vivo a qualquer preço. O positivismo inclusivo é pior: não é positivismo nenhum, mas
apenas uma tentativa de manter o termo “positivismo” para uma concepção de direito e da prática jurídica que
é totalmente estranha ao positivismo.” (DWORKIN, 2016, p. 266-267).
30

Guerra Mundial, quando a sofisticação do matiz constitucional da ordem jurídica ganhou


impulso, rompendo o paradigma do Estado Legislativo de Direito.
O estudo das teorias do Direito, na segunda metade do século XX, traz, em patamar
especial, a figura de Gustav Radbruch12, que, a partir do trabalho “Injustiça legal e direito
supralegal” (RADBRUCH, 1946, p. 105-108), reafirmou a concepção finalística de justiça do
ordenamento jurídico, inspirando, de modo direto, pesquisadores antipositivistas, como
Robert Alexy.
Paradoxalmente, é perceptível nas últimas décadas o fortalecimento do positivismo na
academia13, em aparente contra-ataque ao manejo acrítico das normas jurídicas carregadas de
valores e densidade axiológica pelo Poder Judiciário.14

12
“Gustav Radbruch was a German legal philosopher who shared the ‘positivist’ doctrine [that law and morality
are in principle distinct] until the Nazi tyranny. Prior to his recantation of positivism, he held that resistance to
law was a matter for the personal conscience, to be thought out by individual as a moral problem and the
validity of a law could not be disproved by showing that its requirements were morally evil or even by
showing that the effect of compliance with the law would be more evil than the effect of disobedience.
Radbruch, however, had concluded from the ease with which the Nazi regime had exploited subservience to
mere law – or expressed, as he thought, in the positivist slogan law is law- and from the failure of the German
legal profession to protest against the enormities witch they were required to perpetrate in the name of law,
that positivism (meaning here the insistence on the separation of law as it is from law as it ought to be) had
power fully contributed to the horrors. After the war Radbruch’s conception of law as containing in itself the
essential moral principle of humanitarianism was applied in practice by German courts in certain cases in
which local war criminals spies, aind informers under the Nazi regime were punished.” (ARTHUR; SHAW,
2005, p. 32).
13
Norbert Hoerster, ao lançar, em 1989, a obra “Em Defesa do Positivismo Jurídico” (2009), foi um dos
precursores, segundo Marcelo Campos Galuppo (2014), desse retorno aos paradigmas positivistas, que se
mostravam em desuso pelos pesquisadores do Direito. No cenário brasileiro, a título de exemplo, Eros Roberto
Grau abraçou o positivismo jurídico na obra “Por que tenho medo dos Juízes: (a interpretação/aplicação do
direito e os princípios)”, veja-se: “Retorno ao que afirmei [...] o plano do dever-ser é um espelho, um reflexo
do ser. A estabilidade, o equilíbrio, a regularidade, a normalidade do sistema jurídico reclamam, em condições
extremas, além da inclusão da exceção, a exclusão de outras situações ao seu alcance. Uma e outra – inclusão e
exclusão – consubstanciam transgressões. São elas contudo, que conferem plasticidade ao sistema de direito
positivo burguês. Embora se deva admitir que isso, em última instância, tem de ser mesmo assim, as coisas
resultam terrivelmente perigosas quando juízes e tribunais a nossa volta danam-se a decidir a partir de valores,
afastando-se do direito positivo. Relembro, recorrentemente, a observação de Franz Neuman [1942:441-442]:
‘um sistema legal que construa os elementos básicos de suas normas com princípios gerais ou padrões
jurídicos de conduta não é senão um disfarce que oculta medidas individuais’. O modo de pensar criticamente
me conduz convence-me de que o modo de ser dos juristas, juízes e tribunais de hoje – endeusando princípios,
a ponto de justificar, em nome da Justiça, uma quase discricionariedade judicial – compõe-se entre os mais
bem-acabados mecanismos de legitimação do modo de produção social capitalista. Decidir em função de
princípios é mais justo, encanta, fascina e legitima o modo de produção social. Aquela coisa weberiana da
certeza e segurança jurídica sofre, então, atenuações; evidentemente, no entanto, apenas até o ponto em que
não venha a comprometer o sistema.” (GRAU, 2016, p. 140).
14
O século XXI tem exposto, além do retorno de concepções positivistas, a continuidade do debate entre
“procedimentalistas” e “substacialistas” nas correntes teóricas que buscam superar o positivismo, proliferando-
se em todas as direções as críticas ao pamprincipiologismo, aqui compreendido como a utilização acrítica e/ou
autoritária dos princípios jurídicos como fonte do decisionismo, sendo defendida pelos substancialistas a
ressignificação da ideia de Constituição Dirigente. (STRECK, 2014, p. 126).
Cabe também o registro dos posicionamentos de Álvaro Ricardo de Souza Cruz, que defende uma visão
crítico-deliberativa e fenomenológica do Direito, em superação dos paradigmas jusnaturalistas e positivistas
(2013), e de Ricardo Sanín Restrepo, que trabalha numa perspectiva crítica radical, centrando-se nas ideias de
encriptação da ordem jurídica, de povo oculto (decorrente da prevalência do liberalismo sobre a democracia
31

No campo desta pesquisa, todavia, as profundas incongruências epistemológicas15


levam à refutação do positivismo, essencialmente reducionista, como base teórica para o
estudo.
Isso porque a doutrina positivista acredita na objetividade e na neutralidade como
alicerces ou atributos do Direito, o que não se mostra de acordo com a concepção assinalada
no item anterior.
A objetividade representa o afastamento técnico do conteúdo do Direito, sob o ponto
de vista de que os critérios de correção, justos ou injustos, são estritamente subjetivos. Com
isso, a maximização da forma é alçada ao patamar de elemento validador da ordem jurídica.
Apenas o critério da validade formal da norma possibilitaria, assim, um enquadramento
efetivamente científico do Direito. A norma jurídica não seria identificada, portanto, por
critério ontológico, apenas genético: a sua origem e produção.
A neutralidade, por sua vez, identifica o objeto do Direito fora dos valores ou das
compreensões de conteúdo produzidas pelo sujeito cognoscente. O Direito seria neutro porque
para sua conceituação o exame ontológico seria inútil. Decorre da neutralidade a ênfase na
função descritiva das teorias jurídicas, blindando-se o Direito de avaliações substantivas.
Contrariamente às autoafirmações extraídas do positivismo inclusivo, Marcelo
Campos Galuppo (2014) une-se ao segmento que ainda vislumbra, no mecanicismo, o terceiro
atributo geral positivista, como consequência indissolúvel da tese da neutralidade do Direito.
Deduz, para tanto, que a pretensão de pureza advinda do ideal de sistema jurídico fechado traz
a automática imposição lógica da interpretação mecanicista ou silogística, mesmo que mais
elaborada e distante do engessamento da Escola da exegese ou Escola filológica, gestada no
século XIX.
Sedimentando o ponto de vista que ora se constrói, é importante o acréscimo de que,

real) e dos simulacros nos Estados Constitucionais Democráticos clássicos (2013). Ambos, na visão eclética
proposta, contribuem para esta pesquisa, mas não representam os marcos teóricos especificados no item 2.3.
15
Como se depreende das considerações do positivista Luigi Ferrajoli, ao prefaciar a obra Jusnaturalismo e
Positivismo Jurídico, de Norberto Bobbio (2016, p. 7-24), são reconhecidas aporias na gênese positivista: “[...]
Na presença de constituições rígidas, não é mais sustentável a tese kelsiana [...] da equivalência entre validade
e existência das normas jurídicas. A validade das leis, em particular, não depende mais, como no antigo Estado
legislativo de direito, apenas das formas sobre a sua formação, mas depende também da substância das normas
de lei produzidas [...] De modo que pode muito bem haver normas inválidas que existem por força de suas
formas, mas mostram-se ilegítimas por causa dos seus conteúdos. [...] insustentabilidade do princípio da total
ausência de valoração na abordagem científica do estudo do direito [...] impraticável após a mudança de
paradigma do direito [...] que aconteceu com as constituições rígidas do segundo pós-guerra, as quais
positivaram, através da estipulação dos direitos fundamentais, o “dever ser” jurídico do próprio direito. [...] A
ciência jurídica acaba investida, em relação ao direito positivo, de um papel não mais puramente descritivo,
mas também crítico e projetual, ao qual não pode subtrair-se, porque ditado pela própria estrutura do seu
objeto de pesquisa. Antinomias e lacunas estruturais são, de fato, vícios jurídicos que impõem uma crítica
jurídica de dentro do próprio direito, e não simplesmente a crítica política externa a ele.” (BOBBIO, 2016, p.
20-23).
32

nem mesmo no campo das ciências da natureza, a ideia de precisão e certeza na produção do
conhecimento científico prevaleceu, conforme pontua Baracho Júnior:

O positivismo foi superado pelas ciências da natureza na primeira metade do século


XX, dando lugar a formulações científicas fundadas no espaço oposto ao da certeza:
a possibilidade da refutação.
Teorias como a teoria da relatividade, na física, foram decisivas para essa
transformação, que acabou por alcançar também o direito, hoje abordado por muitos
sob uma perspectiva própria das teorias da linguagem. (BARACHO JÚNIOR, 2015,
p. 2).

Opta-se, nesse contexto crítico, pelo modelo do pós-positivismo16 cônscio dos riscos
da instituição autoritária de um “Estado Principiológico”17, fenômeno potencializado, no
Brasil, com o advento da Nova República e da Constituição de 1988.
Submetidos à euforia social da redemocratização18, muitos aplicadores do Direito
nacional, guiados pelos ventos pós-positivistas, alimentaram-se da fé no
pamprincipiologismo19.
A normatividade dos princípios conferiu impulso à esperança, por vezes ingênua, da
plena realização do Direito por meio dos textos normativos abertos, como solução pronta para
a crise social, o que num país com dificuldades de concretizar o piso vital mínimo soava

16
“[...] o pós-positivismo jurídico constitui, em linhas gerais, um novo paradigma no plano da teoria jurídica,
que objetiva contestar as insuficiências, as aporias e as limitações do juspositivismo formalista tradicional.
Afirmam que próprio termo ‘pós-positivismo’, que também é conhecido como não-positivismo ou não-
positivismo principiológico, é detentor de um status provisório e genérico na sua categoria terminológica,
tanto que não é pacífico o entendimento sobre o emprego dessa expressão, o que ocorre até entre os autores
que partilham das suas teses axiais. Esclarecem, ainda, que as suas bases filosóficas são ecléticas e compõem
uma constelação de autores, os quais mantêm ponto de contato com as concepções tardias de Gustav Radbruch
e passam pelas influências da teoria da justiça de John Raws, além de incorporarem elementos da filosofia
hermenêutica e as bases da teoria do discurso de Habermas.” (ALMEIDA, 2008, p. 211).
17
“É até mesmo plausível afirmar que a doutrina constitucional vive, hoje, a euforia do se convencionou chamar
de Estado Principiológico. Importa ressaltar, no entanto, que notáveis exceções confirmam a regra de que a
euforia do novo terminou por acarretar alguns exageros e problemas teóricos que têm inibido a própria
efetividade do ordenamento jurídico.” (ÁVILA, 2015, p. 43).
18
“Estou cansado de ser enganado/Papo furado e demagogia/Não vão encher (o quê)/A minha barriga vazia/
Espero da Constituinte/ Em minha mesa muito pão/ Uma poupança cheia de cruzados/ E um carnaval com
muita paz no coração (CAPRICHOSOS DE PILARES 1987, 2017).
19
“Não se deve olvidar que o direito constitucional tem sido relegado a um plano secundário em nosso País.
Essa afirmação pode parecer contraditória se examinarmos a quantidade de obras, dissertações e teses escritas
sobre essa temática. Com efeito, de um lado, há um fenômeno que pode ser denominado de ‘banalização da
Constituição’, sendo o pamprincipiologismo um dos sintomas. De outro, está a velha dogmática jurídica, refém
do sentido comum teórico dos juristas, no interior do qual o direito continua a ser visto como uma mera
instrumentalidade. Há uma cultura manualesca que sustenta velhas práticas, a ponto de ainda não termos
conseguido superar os princípios gerais do direito, axiomas herdados do positivismo do século XIX. O próprio
Supremo Tribunal Federal ainda lança mão de princípios como o pas de nullité sans grief. Ou seja, em pleno
paradigma do Constitucionalismo Contemporâneo, os princípios constitucionais ainda são vistos como uma
mera continuidade do ancien régime.” (STRECK, 2014, p. 931).
Em sentido congruente, Carlos Ari Sundfeld, em “Direito Administrativo para céticos”, critica a arbitrariedade
de muitos intérpretes: “Será que esses hiperprincípios vêm mesmo do ordenamento?” (SUNDFELD, 2014, p.
197).
33

tentador, fomentando-se o decisionismo.


Verificando o expansionismo Judiciário sob a égide pós-positivista, Ronald Dworkin
chega a frisar:

A questão central que está no cerne do debate acadêmico deve ser colocada da
seguinte maneira. Se deixarmos as decisões de princípio exigidas pela Constituição a
cargo dos juízes, e não do povo, estaremos agindo dentro do espírito da legalidade,
tanto quanto nossas instituições o permitam, mas correremos o risco de que os juízes
venham a fazer as escolhas erradas. [...]
Não precisamos exagerar o perigo. As decisões realmente impopulares
serão corroídas porque a adesão pública será relutante [...]
Ainda assim, devemos conceber nossas instituições para reduzir o risco de
erro, tanto quanto possível. [...]
O direito constitucional não poderá fazer um verdadeiro progresso enquanto
não isolar o problema dos direitos contra o Estado e tornar esse problema parte da
sua própria agenda. Isso conta como um argumento em favor de uma fusão do
direito constitucional e da teoria moral, uma relação que, inacreditavelmente, ainda
está por ser estabelecida. (DWORKIN, 2016, p. 232-233).

Apesar das crises e insuficiências epistemológicas aferidas em todas as matrizes


teóricas hoje conhecidas no Direito, não se afasta esta pesquisa da tese de que o Estado
Democrático Direito, insculpido na Constituição de 1988, propicia paradigma diferenciado à
ordem jurídica brasileira, fortemente ligada à substancialidade das normas constitucionais,
verbis:

Mais do que assegurar os procedimentos da democracia – que são absolutamente


relevantes – é preciso entender a Constituição como algo substantivo, porque
contém direitos sociais, fundamentais, coletivos lato sensu que o pacto constituinte
estabeleceu como passíveis de realização. [...]
Uma concepção exclusivamente procedimental da Constituição não pode responder
a questões básicas, como as do valor e aplicação dos princípios [...] os princípios ou
são princípios materiais ou não são nada. Não são apenas esquemas de um regime
qualquer, não são esquemas de um proceder qualquer, não são esquemas de um
processo qualquer, são verdadeiras dimensões materiais. [...] um texto, para ser
operacional, tem que transportar dimensões materiais que se possam concretizar. [...]
Não há confusão possível entre um Estado de Direito e outro de não direito, entre
uma democracia e uma ditadura, entre uma sociedade e uma não sociedade, entre um
Estado ecológico e um Estado não ecológico, entre igualdade real e desigualdade,
entre uma comunidade inclusiva e uma sociedade de exclusão dos outros. [...].
(STRECK, 2014, p. 148-149).

O viés da substancialidade constitucional é reconhecido sem atribuir-se à pesquisa


rótulo totalizante, hermético ou o enquadramento clássico de Canotilho20. Isso porque ao se

20
“[…] a ideia matriz de força normativa da Constituição e do constitucionalismo dirigente […] perde terreno
dia a dia, a ponto de autores como J. J. Gomes Canotilho, antes corifeu das teses que seduziram inúmeros
juristas, declarar, agora, que o constitucionalismo dirigente morreu, questão, alías, que deve ser devidamente
contextualizada, para evitar mal-entendidos e críticas injustas ao mestre de Coimbra.
Com efeito, em sua primeira fase (década de 80, a partir de obras como Constituição dirigente e vinculação do
34

denominar um trabalho de liberal ou comunitarista; de procedimentalista ou substancialista e


de tantas outras classes e/ou categorias estritas, a perspectiva pluridimensional do Direito que
ora se pretende abordar é prejudicada.
Fixa-se, inclusive, a pretensão de ultrapassar a metodologia positivista, pelas aporias
insuperáveis assinaladas, sem desqualificá-la de forma absoluta, haja vista que o
conhecimento sistemático dos textos normativos e dos enunciados também é base sobre a qual
se apoia o pesquisador no campo jurídico:

[…] uma teoria jurídica que rejeita elementos avaliativos, assume, ainda que
indiretamente, que o raciocínio prático poderia ser tanto para um lado como para o
outro. Esse silêncio tem implicações morais, ainda que não os almeje. Logo, o
positivismo jurídico não coloca analiticamente a Filosofia Moral em seu devido
lugar, pois, como já dissemos acima, ainda que se esconda, este representa uma
perspectiva moral. Ademais, identificar o direito não é uma tarefa somente possível
pela metodologia positivista, não estamos negando a sua relevância, mas apenas a
sua exclusividade. (MATOS; STRECK, 2017).

A visão eclética é o caminho eleito nesta pesquisa a partir do reconhecimento da


pluridimensionalidade21 do Direito na sociedade contemporânea, que é pós-nacional e plural,

legislador), que aqui se pode denominar de Canotilho I, o professor coimbrano chegou a afirmar que já não se
podia falar de normas (textos jurídicos) programáticas e, portanto, as assim denominadas “normas
programáticas” não são o que lhe assinalava a doutrina tradicional: “simples programas”, “exortações morais”,
“declarações”, “sentenças políticas” etc., juridicamente desprovidas de qualquer vinculariedade, e, sim, que às
normas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes
preceitos da Constituição. […]
Essa posição de Canotilho vem sendo gradativamente revista, afirmando o autor, por exemplo, que “confiar no
direito o encargo de regular – e de regular autoritária e intervencionisticamente – equivale a desconhecer
outras formas de direcção política que vão desde os modelos regulativos típicos da subsidiariedade, isto é,
modelos de autodirecção social estatalmente garantida, até aos modelos neocorporativos, passando pelas
formas de delegação conducente a regulações descentradas e descentralizadas”. […]
A Constituição dirigente lidava com fins, tarefas, encargos, missões, valores. Ao contrário disso, hoje se
argumenta racionalmente em termos de paradoxos, de dilemas e de teoremas. A ideia dirigente compatibiliza-
se com uma lógica material de valores, mas coaduna-se pouco com a razão lógica dos discrusos analíticos.
Assim, acentua que a teoria constitucional deve levar em conta que as sociedades modernas pluralistas
estruturam-se em termos de complexidade que, longe de assentar na intencionalidade construtivista da política,
radica antes na auto-organização. Esta mesma complexidade gera sistemas diferenciados e códigos funcionais
diferenciados, sendo irrealista tentar, através de um código unitarizante dos vários sistemas sociais, dirigir
constitucionalmente a sociedade.
Canotilho conclui o aludido prefácio dizendo que “a Constituição dirigente está morta se o dirigismo
constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, por si só, operar
transformações emancipatórias. Também suportará impulsos tanáticos qualquer texto constitucional dirigente
introvertidamente vergado sobre si próprio e alheio aos processos de abertura do Direito constitucional ao
Direito internacional e os direitos supranacionais.” (STRECK, 2014, p. 126-129).
21
Segundo a doutrina de José Adércio Leite Sampaio, as inúmeras concepções sobre Constituição ora acentuam
a) a “dimensão normativa”, que abrange o ângulo normativo do processo político ou a Constituição
democrático-deliberativa; a Constituição como processo da razão pública; a Constituição dualista; a
Constituição como garantia do devido processo político; a Constituição discursiva; a Constituição como
cultura e processo público; a Constituição aberta ao tempo; o aspecto moral da normatividade ou a
Constituição principiológica e a Constituição dirigente b) a “dimensão real” da Constituição, que traz os
paradigmas da Constituição da integração ou o hegelianismo constitucional; a Constituição total; a
35

com aberturas de espaço, de tempo, do mundo dos sentidos e dos projetos de vida presentes
nas Constituições, in verbis:

A Constituição pluridimensional é o objeto desse querer cívico comprometido com a


ação. [...] Ela se chama “pluridimensional” exatamente porque resulta da conjugação
dialética das dimensões normativo-textual (enunciados de norma), fático-limitador-
interativo (a complexidade do real) e volitivo-pragmático (do querer e da ação). Mas
também porque admite o pluralismo de projetos de vida boa, sem prévio
compromisso com uma determinada “ideologia”, em sentido forte do termo, a não
ser a própria ideologia de Constituição. [...]
A porosidade semântica dos enunciados normativos facilita a sua ambientação ao
mundo do escrito, do texto, e ao mundo da prudência das ações. É por isso também
que permite o encontro das duas tradições do constitucionalismo, franco-americana
e britânica, ainda que a prevalência da escritura sobre a “Constituição da
razoabilidade” continue a ser a marca da racionalidade múltipla e discursivamente
vinculada ao mundo dos valores e das contingências humanas. [...]
Essa pluridimensionalidade tem a ver com as suas quatro aberturas: a) ao espaço -
abrindo-se ao interior (ordenamento sub ou infraconstitucionais) e ao exterior
(ordenamentos supraconstitucionais); b) ao tempo – pois é resultado de operações
pretéritas, mas se nutre de esperanças dos seres humanos ainda sem rosto que
ocupam o futuro. É, em outras palavras, um pacto intergeracional ou ecológico; c)
ao mundo dos sentidos – pois que é aberta a concretizações pela ação patriótica
(constitucionalmente patriótica, bem entendido); e d) aos projetos de vida boa –
porque define pouco da substância axiológica (núcleo constitucional duro),
disponibilizando-se a contextualizações e procura do bem comum e individual.
(SAMPAIO, 2013, p. 119-120).

O conjunto de características da “Constituição pluridimensional” reforça a ideia de


flexibilidade condicionada da produção científica no Direito, calcada na vigilância
epistemológica justificada 22 dos caminhos argumentativos escolhidos, algo indispensável
nesse contexto multifacetado e paradoxal23 da ordem jurídica:

Constituição institucional e a Constituição dialógico-republicana. (SAMPAIO, 2013, p. 92-111).


22
“A dificuldade mais séria está em assumir como central o problema do fator de correção do Direito e de
posicioná-lo dentro ou fora do sistema jurídico, tendo de se definir com algum grau de precisão qual(is)
seria(m) esse(s) critério(s), sem correr o risco de se cair na armadilha do subjetivismo do aplicador da norma
ou, o mais grave, da formulação aparentemente científica, mas que só serve para esconder o que já se decidiu
de maneira descontrolada. Isso faz lembrar Ângelo, em Medida por medida, de William Shakespeare, para
quem a dureza da lei poderia ser atenuada, desde que a noviça com ele se deitasse para salvar o irmão da pena
de morte no Ducado de Viena.” (RODRIGUES JÚNIOR, 2012).
23
Em sentido congruente, José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior enxerga a condição paradoxal do Direito na
modernidade, in verbis: “O ministro Gilmar Mendes, através de suas obras e de suas atuações na Casa Civil da
Presidência da República, na Advocacia Geral da União e no Supremo Tribunal Federal, está preocupado com
a possibilidade de garantir o direito através da aplicação otimizada da sanção eliminando o que ele entende
como excessos do devido processo brasileiro, tornando mais efetivas normas jurídicas através da vinculação
dos juízes e da exação de súmulas, em uma só palavra, através de uma jurisdição de massas.
Álvaro Ricardo de Souza Cruz, por seu turno, está preocupado com a construção compartilhada das decisões,
que não se legitimam como meros atos de autoridade, mas apenas através de um processo discursivo, no qual
os possíveis afetados tenham iguais oportunidades de manifestação.
São extremos que afirmam a condição paradoxal do Direito na modernidade, mas extremos que não se
colocam em posição dialética, com a possibilidade de superação de uma posição pela outra, até porque
diversos autores que se colocam neste antagonismo reconhecem a pertinência do método dialógico para o
Direito contemporâneo.” (BARACHO JÚNIOR, 2009, p. 166).
36

A lembrarmos que os métodos científicos são escolhidos pelas pré-compreensões do


intérprete, conduzindo-o à solução que mais se compatibilize com o seu “sentimento
pessoal de justiça” […] só há uma forma de neutralizar ou, pelo menos, minimizar
as injunções dos valores do intérprete: imbuir-se de uma deontologia da
interpretação como um diálogo com as fontes e a integridade do direito, aberto ao
controle, próprio (argumentar importa questionar e fiscalizar a “compreensão” e seus
tributos às pré-compreensões) e externo (das partes, da hierarquia judiciária e da
sociedade). O intérprete não é o proprietário do texto. É, ao contrário, funcionário da
comunidade de intérpretes da Constituição. (SAMPAIO, 2013, p. 721).

Nesse sentido, a construção do trabalho parte do texto constitucional de 1988,


conferindo-se relevo à dimensão normativa da Constituição, sem abandonar o enfoque da sua
dimensão real na formação da ordem jurídica, o que no Brasil é medida útil para o exame dos
paradoxos nacionais: o Estado Democrático de Direito no eterno País do futuro, em que “os
donos do poder” (FAORO, 2012) consolidam a insinceridade normativa24.

2.3 Obras paradigmáticas adotadas

A problematização relativa à incidência dos direitos à governança e ao planejamento


administrativo no acesso a cargos, empregos e funções públicas não é compatível com a
adoção de único paradigma, motivo pelo qual são registradas neste item as obras adotadas que
representam os alicerces do trabalho.
Os marcos teóricos são extraídos a partir do diálogo entre os três núcleos condutores
da presente pesquisa: as teorias do Direito, os retratos do Brasil e o Direito Administrativo
constitucional, este último o responsável pela discussão da governança e planejamento no
setor público.
Levando os Direitos a Sério e A Justiça de Toga, de Ronald Dworkin; Teoria da
Constituição e dos Direitos Fundamentais, de José Adércio Leite Sampaio; Dimensões
Paradoxais da Jurisdição Constitucional, de José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior;
grandesertão.br, de Willi Bolle; Direito fundamental à boa administração pública, de Jaime
Rodríguez-Arana Muñoz; Direito fundamental à boa administração e governança, de Vanice

24
Por mais de uma razão determinada disposição constitucional deixa de ser cumprida. Em certos casos, ela se
apresenta desde o primeiro momento irrealizável. De outras vezes, o próprio poder constituído impede sua
concretização, por contrariar-lhe o interesse político. E, ainda, um preceito constitucional frustra-se em sua
realização por obstáculos opostos por injunções de interesses de segmentos econômica e politicamente
influentes [...] A Constituição transforma-se, assim, em um mito, um mero instrumento de dominação
ideológica, repleta de promessas que não serão honradas [...] Captando esta realidade com amarga ironia,
afirmou Celso Antônio Bandeira de Mello que, se um ser extraterrestre, dotado de inteligência, aportasse no
Brasil e decidisse desvendar os usos e costumes nativos à luz da Constituição de 1969, especialmente no título
‘Da Ordem Econômica e Social’, ficaria surpreso e embevecido com o elevado padrão de civilização que
logramos erigir (BARROSO, 2003, p. 61-64).
37

Regina Lírio do Valle e Direito ao Planejamento, de Juliano Ribeiro Santos Veloso sinalizam
os fundamentos básicos da construção argumentativa desta dissertação.
39

3 RETRATOS DO BRASIL: ANÁLISES INTERDISCIPLINARES SOBRE O PAÍS

O desenvolvimento desta pesquisa mostra que o exame do acesso a cargos, empregos e


funções públicas, no contexto do direito à governança e ao planejamento administrativo, não
procura fundamento apenas no campo normativo, tampouco no estrito enfoque da doutrina
estrangeira.
O Direito é ciência social aplicada e tem porosidade naturalmente compatível com a
História, a Ciência Política, a Sociologia, Antropologia e tantas outras áreas do conhecimento,
a ressaltarem as particularidades do fenômeno jurídico nacional.
Ao se homenagear linha de argumentação pluridimensional, não circunscrita a
modelos clássicos da hermenêutica constitucional e administrativa, antes de condenar a
ciência jurídica e a dimensão normativa a planos secundários, anseia-se, em verdade,
enriquecê-las e complementá-las, estimulando a força integradora do Direito genuinamente
brasileiro, alvo de especial atenção no Estado Democrático, promotor da interação das esferas
públicas e privadas, sem hierarquias castradoras (BARACHO JUNIOR, 2008, p. 36)25.
A virada linguística impulsionou esse novo olhar avesso à crença na objetividade
científica do Direito:

A voracidade cognitiva do Iluminismo deu lugar a uma situação de indigência, na


qual os espaços vazios de comunicação passaram a ser preenchidos por sinais
abstratos ou meramente funcionais, o que fez do universo cultural contemporâneo
um espaço dominado por sigas e palavras técnicas, onde o símbolo quase sempre
funciona como recondutor imediato de uma coisa à sua função. Sonia Viegas afirma:
A indigência do discurso, seu poder de expressão pelo que não diz, tornou-se, pois,
a partir de fins do século passado, na arte, na filosofia, na ciência (que se pense,
por exemplo, na psicanálise, com sua noção de inconsciente), o tema central, o
ponto de referencia para todos os que concentrassem na linguagem sua atenção.
[...]
A linguagem pensada desta forma luta contra as tendências positivistas da
razão. A arte proclama a autonomia do sentido poético sobre o discurso lógico; a
arte passa a buscar, na consciência do vazio da palavra e da experiência da
ambiguidade do sentido e da mensagem, a expressão coerente com a realidade em
torno, onde não se encontram certezas ou fundamentos definidos.
A compreensão do Direito como linguagem incorpora o sentido dos
desafios que a arte buscou para si já há alguns anos. (BARACHO JÚNIOR, 2009, p.
162-163).

Nessa linha, como visto no capítulo anterior, a epistemologia contemporânea

25
“[...] destaca-se, dentre as diversas tentativas de recuperar a função integradora do Direito, uma aposta na força
legitimadora dos discursos de justificação e de aplicação das normas jurídicas. Além dos discursos universais
de justificação das normas abstratas e da garantia da certeza do Direito, é de se salientar a importância de uma
aplicação específica das normas gerais que garanta e faça justiça ao caráter de unicidade e especificidade de
cada caso concreto, superando-se ainda propostas interpretativas solitárias [...] (BARACHO JÚNIOR, 2008, p.
36-37).
40

harmoniza-se com a ambiguidade e os paradoxos na elaboração das narrativas do Direito, no


caminho para as respostas requeridas:

[...] a ciência não comporta mais uma atitude de mera descrição ou de explicação
superficial de seus fenômenos: sua atitude há de ser proativa no tocante aos
fenômenos, buscando nestas suas potencialidades preditivas, a dizer, indicando as
ocorrências possíveis dentro de um determinado contexto, passando-se a falar dela
como empreendimento ou processo criativo [...] de algo estático, inabalável,
inquestionável, expressões tipicamente dogmáticas, passa-se a ter, como
característica fundamental da ciência, a falseabilidade. Como afirma João Silva
(2009, p. 169), ― dogma é produto do espírito do Homem; ‘falsificabilidade’ é o
que busca a ciência quanto às leis do mundo”. E isso altera, profundamente, o
conceito de ciência. (BELCHIOR, 2015, p. 44-45).

Os retratos do Brasil são o conjunto de obras artísticas e científicas ligadas à


identificação nacional e aos traços particulares da formação brasileira, o que é, segundo o
paradigma desta pesquisa, particularmente importante na discussão dos contornos,
constituição, horizontes e mazelas do Estado brasileiro, em especial do patrimonialismo,
fenômeno responsável por sensível desajuste da máquina pública idealizada pelas normas
constitucionais.
A origem remota dos “retratos” decorre da missão artística francesa que chegou ao Rio
de Janeiro, em 1816, com artífices e pintores do quilate de Jean Baptiste Debret e Nicolas-
Antoine Taunay, deixando o legado das primeiras impressões diferenciadas do Brasil, não
limitadas ao simples registro da exuberância da natureza (SCHMIDLIN, 2010).
Mostrou-se natural, na caminhada pátria, o incremento do significado dos “retratos”
(BOLLE, 2004, p. 23) para neles abranger também as publicações brasilianas de Gilberto
Freyre, Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda, Willi Bolle, João Guimarães Rosa,
Victor Nunes Leal, Euclides da Cunha, Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta, entre outros, por
razões parecidas: o foco nas especificidades nacionais, a procura por traços e raízes
particulares, a construção de pontos de vista sobre a gênese e o processo de amadurecimento
brasileiro; aspectos importantes para a reflexão mais profunda do sentimento constitucional26,
cuja análise não é estranha ao Direito.
É relevante ter em conta, assim, que o olhar agudo sobre o Brasil não se inicia no
universo científico. É na estética que aparecem as primeiras reflexões. Os “retratos”
representam, nesse sentido, a tradição nascida da arte, ganhando tons científicos apenas no

26
“[…] a crença de que uma ordem constitucional efetiva, fundada na legitimidade do poder político, na atuação
construtiva dos Tribunais e na participação popular organizada e esclarecida, poderá conduzir, no início dessa
nova era, a uma sociedade contemporânea, aberta e justa na partilha das riquezas e das oportunidades.”
(BARROSO, 2003, p. 282).
41

século passado.
Quando se estuda a governança, o planejamento administrativo e os cargos, empregos
ou funções públicas, naturalmente desvela-se a utilidade do conhecimento dos traços
brasileiros que influenciam a formação estatal e a própria essência da máquina pública, o que
vai além, como visto, das normas jurídicas abstratamente consideradas.
A gradual construção da identidade do povo (MÜLLER, 2013) é o ponto que importa
para a delimitação de um constitucionalismo brasileiro capaz de apreender as dimensões, os
matizes e as peculiaridades nacionais27.
A abertura da ciência jurídica permite, diante da essência interdisciplinar e da
inexistência de modelo teórico absoluto, que a Constituição passe “a ser vista como uma fonte
insuscetível de ser acessada sem sensibilidade” (GARCIA, 2015, p. 4). Nesse sentido, é a
doutrina de Steven D. Smith, compatível com o enfoque nacional ora estabelecido:

[…] a Constituição é menos um instrumento jurídico do que um “repositor dos


‘vislumbres’, ‘memórias’ e ‘sonhos’ das ambições morais da cultura”. A fé
constitucional progressiva deve se basear principalmente na Décima Quarta Emenda,
a qual o Ocidente considera como “uma fonte de percepção moral e uma visão da
sociedade justa […]. Esse entendimento transforma o texto constitucional de um
documento legal – aquele cuja “existência frustra mais do que facilita o debate
normativo – para um texto muito menos autoritário, mas mais facilitador. A
Constituição facilitadora é valiosa principalmente como uma “fonte de percepção”;
ela nos guia do mesmo modo que “os escritos de Aristóteles, John Stuart Mill, John
Rawls e Roberto Unger.”28 (SMITH, 1998, p. 79, tradução nossa).

Os retratos do Brasil, no contexto desta pesquisa, viabilizam meios de identificação de


ciclos deletérios do País, entendidos como fenômenos sociais, econômicos ou políticos que
perturbam ou inibem o funcionamento estatal previsto na ordem jurídica, possibilitando o
enfrentamento mais qualificado e organizado dos problemas nacionais e o incentivo à eficácia
social de normas fundamentais da República, o que será assinalado no capítulo 4.
Este trabalho sintetizará aspectos pontuais inerentes a cinco autores cujas obras
guardam pertinência com os objetivos preliminares aqui estabelecidos, consistentes na

27
“[...] disse eu em setembro de 1996 aos estudantes de pós-graduação em Fortaleza, ouve-se hoje na Alemanha
Oriental muitos alemães, muitos dos quais estão justamente decepcionados com os novos rumos de
desenvolvimento da sociedade e da política, afirmar com amargura: ‘Nós fomos o povo!’
Nesse momento um estudante pediu a palavra. Ele disse: ‘O nosso problema no Brasil deveria ser formulado
então nos seguintes termos: ‘Nós nunca fomos um povo’. [...]” (MÜLLER, 2013, p. 117).
28
[...] the Constitution is less a legal instrument than a “repositor of the ‘glimpses’, ‘memories’ and ‘dreams’ of
the culture’s moral ambitions.” Progressive constitutional faith must rest primarily on Fourteenth Amendment,
which West regards as “a source of moral insight and a vision of the just society [...]. This understanding
transforms the constitutional text from a legal document – one whose “existence frustrates more than
facilitates normative debate – to a far less authoritarian but more facilitative text. The facilitative Constituition
is valuable primarily as a “source of insight”; it guides us in much the same way as “the writings of Aristotle,
John Stuart Mill, John Rawls, and Roberto Unger.
42

reflexão brasileira, por vezes divergente, sobre as pessoas, a sociedade o Estado e o


patrimonialismo; elementos representativos da antessala para o exame e reconhecimento dos
paradoxos, simulacros jurídicos e insinceridades normativas (BARROSO, 2003) da
permanente pátria do futuro.

3.1 Os donos do poder. Raymundo Faoro

“Os donos do poder – formação do patronato político brasileiro”, cuja primeira edição
é datada de 1958, representa um clássico sociopolítico atual, que condensa a experiência
jurídica do autor Raymundo Faoro com incursões na história do Brasil colonial, imperial e
republicano.
Trata-se de obra sem pretensões estéticas, com preocupação científica, cujo objetivo
maior é retratar a impressão (ou tese) do autor sobre o Brasil, com inspiração weberiana, em
que “o distanciamento do Estado dos interesses da nação reflete o distanciamento do
estamento dos interesses do restante da sociedade” e o “patrimonialismo, estamento e
capitalismo politicamente orientado [...] são conceitos-chave e inter-relacionados”
(CAMPANTE, 2003, p. 155).
Ao traçar o perfil do Estado teleologicamente descolado da sociedade, Raymundo
Faoro sugere que a satisfação de interesses corporativos e estamentais colocam-se como
obstáculos à saúde democrática e institucional do País, propiciando inúmeros fenômenos
mantenedores do atraso e das ofensas ao piso vital mínimo, entre eles o distorcido acesso a
cargos públicos objeto desta pesquisa.
São estabelecidas diversas premissas na obra que auxiliam a percepção do
entendimento de Faoro: a) a compreensão do Brasil passa pelo Império Português, antes
mesmo da expansão marítima, quando algumas circunstâncias, como o fim da ocupação
moura, formam precocemente um Estado português com matiz ‘moderno’, desprovido,
entretanto, da experiência feudal, típica da Idade Média; b) transportada essa realidade para o
Brasil colônia, também não se respirou, em momento algum, o modelo feudal, vivenciando-se
imediatamente o mercantilismo e, depois, o capitalismo em sentido estrito; c) a ausência dos
corpos intermediários (feudos), no jogo de esferas de poder, trouxe a ocupação de espaço por
uma categoria do Estado lusitano (peritos em lei e técnicas de mando, auxiliares do Rei), que
foi o embrião do estamento burocrático; d) no modelo de Max Weber, os estamentos têm a
característica de forma de associação no corpo da sociedade, como ocorre na Índia. Nas
condições históricas interpretadas por Faoro, o estamento burocrático diferencia-se por
43

adquirir o caráter de instância politicamente dominante, com poder decisório no Estado e na


sociedade, utilizando a burocracia como meio para sua perpetuação; e) o natural interesse de
perpetuação do estamento burocrático produz o deletério efeito de tornar o poder central do
Estado e a própria sociedade meios descartáveis para a continuidade de sua existência
privilegiada. A ideia de grupo privilegiado traz, ainda, o status elevado e a noção de honra no
pertencimento, em mecanismo de retroalimentação do ciclo vicioso que perdura até os dias
atuais; f) o estamento burocrático prepondera sobre as classes sociais e a própria sociedade da
qual faz parte; g) com isso, a consequente dimensão administrativa e burocrática figuravam
como instrumentos de segurança do estamento; h) a raiz do patrimonialismo nacional decorre
do estamento; i) com o advento do capitalismo, o sistema feudal perece. Todavia, isso não se
verifica no modelo patrimonial estamental-burocrático, que se amolda à nova realidade; j) a
“viagem redonda”, capítulo final da obra, arremata que a realidade exibe a forma de poder
institucionalizada no patrimonialismo, cuja legitimidade fixa base no tradicionalismo, numa
estrutura político-social, que, embora evolua em complexidade, persiste em essência há seis
séculos; k) o estamento burocrático, lastreado no capitalismo, adquiriu essência aristocrática,
da nobreza da toga e dos títulos. O patronato político não foi eliminado pelas ideologias
formalmente impostas, liberais e democráticas (FAORO, 2013).
Elabora-se uma interpretação do Brasil sem o objetivo de fazer a construção
prospectiva, embora deixe alguns sinais inerentes ao processo de dissecação histórica que
Faoro realiza, especialmente ao abordar a “viagem redonda” (FAORO, 2013, p. 819),
insinuando o papel importante da sociedade civil para a ruptura do círculo mantenedor do
baixo desenvolvimento.
Os diagnósticos interdisciplinares realizados integram-se, congruentemente, com as
perplexidades debatidas no universo jurídico, relacionadas, por um lado, com a carência de
atenção à governança na seara administrativa e, noutro ângulo, com as deturpações no acesso
a cargos, empregos ou funções públicas, não raras vezes conectadas ao clientelismo,
assistencialismo, mandonismo, filhotismo, fisiologismo, entre outros, que nesta pesquisa são
tratados como ângulos do patrimonialismo.
Embora sem interpretar sob a ótica estamental de Faoro, o sociólogo José de Souza
Martins formula conclusão que, por matriz diversa, se une harmoniosamente ao raciocínio
desenvolvido, verbis: [...] as transformações sociais e políticas são lentas, não se baseiam em
acentuadas e súbitas rupturas sociais, econômicas e institucionais. O novo surge sempre como
um desdobramento do velho (MARTINS, 2011, p. 83).
Um dos estímulos para romper o círculo vicioso e a kafkiana “viagem redonda”
44

brasileira, segundo a visão ora firmada, passa pelo enfrentamento da distorcida dimensão
administrativa e burocrática a serviço dos interesses pessoais e/ou corporativos, que utilizam a
Administração Pública para perpetuação do estamento e manutenção dos privilégios,
característicos do patrimonialismo nacional, em afronta aos objetivos da República previstos
na Constituição.
O papel da sociedade civil, na cessação desse roteiro iníquo, é primordial, sem olvidar,
entretanto, que a eficácia do controle pela sociedade hipercomplexa atual passa por
ressignificação dos institutos do Direito Público29, cabendo ao intérprete aferir os pontos de
partida constitucionais a serem seguidos, bem como debater os agudos problemas do caráter
estritamente alegórico ou simbólico das normas jurídicas.
O enfraquecimento da “máquina estatal de favores privados” e a concretização dos
direitos fundamentais após 1988 ainda não foram equacionados satisfatoriamente, a indicar,
diante da imutabilidade histórica, o caráter atual da obra no debate jurídico:

A obra Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro, de


Raymundo Faoro, traz como tema central uma explicação para as mazelas do Estado
e da nação brasileiros: a estrutura de poder patrimonialista estamental plasmada
historicamente pelo Estado português, posteriormente congelada, transplantada para
a colônia americana, reforçada pela transmigração da Corte lusa no início do século
XIX e transformada em padrão a partir do qual se organizaram a Independência, o
Império e a República no Brasil.
Uma imutabilidade histórica, que se constitui através de arranjos intimamente
relacionados nos campos econômico e sociopolítico. No primeiro, prevalece o
capitalismo politicamente orientado. O Estado não assume o papel de fiador e
mantenedor de uma ordem jurídica impessoal e universal […]. (CAMPANTE, 2003,
p. 153).

A interpretação brasiliana de Faoro, nesse sentido, reforça o dever de precaução


constitucional para que o Estado, através da sua dimensão administrativa e burocrática, não

29
Gregório Assagra de Almeida sustenta, inclusive, a superação desta summa divisio: “A summa divisio Direito
Público e Direito Privado, herança do Direito Romano, não se sustenta no Estado Democrático de Direito
delineado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [...] A summa divisio, implantada na Lei
Fundamental brasileira de 1988, é a Direito Coletivo e Direito Individual (Título II, Capitulo I, da CF/88).
[...] A summa divisio clássica Direito Público e Direito Privado fundamenta-se numa visão equivocada em
torno do Direito, incompatível com o Estado Democrático de Direito, pois pressupõe uma situação de
desigualdade entre o Poder Público e os particulares – de um lado estaria o Poder Público, revestido de
imperium, e de outro, os particulares, que ocupariam uma posição inferior e subordinada. Pergunta-se onde
ficaria o Direito Coletivo dentro do contexto clássico da summa divisio. Essa divisão é própria de um Estado
de espírito autoritário, incompatível com as conquistas e as transformações implantadas no Brasil com a
Magna Carta Constitucional de 1988. [...] A própria Constituição consagra expressamente o princípio da
aplicabilidade dos direitos e garantias constitucionais fundamentais (§1º do art. 5º da CF/88) e o seu
desrespeito no plano do Direito Coletivo tem ocorrido, em grande parte, devido à visão distorcida do que é
denominado de “Direito Público” e das diretrizes principiológicas construídas a partir de uma visão de Estado
que se situa fora da sociedade e, até certo ponto, muito distante dos seus reais e mais agudos problemas.”
(ALMEIDA, 2008, p. 606-610).
45

sirva de meio ou instrumento para a continuidade de privilégios de grupos dominantes, em


mecanismo de retroalimentação nociva que perdura até os dias atuais, na “viagem redonda”.
O patrimonialismo é patologia presente em fases e períodos brasileiros diversos até os
dias atuais, resistindo ao capitalismo e à ideologia liberal, inclusive, fomentando um
capitalismo peculiar, baseado no Estado burocrático estamental, com os políticos atuando em
interesses próprios, sem a percepção do povo.
O capitalismo clássico anglo-americano foi, assim, inteiramente estranho à formação
brasileira, em que uma espécie de silogismo político e normativo tem sido detectado, saindo-
se continuamente do abstrato para a realidade, fortalecendo-se a prática dos simbolismos
jurídicos hipertrofiados.

3.2 Raízes do Brasil - Sérgio Buarque de Holanda

Raízes do Brasil é obra octogenária, de 1936, mas continua a influenciar estudiosos do


pensamento nacional, ao trazer visão estabelecida a partir da gênese patriarcal e rural da
sociedade brasileira escravagista, com lastro na dominação pessoal e afetiva, que apontava o
predomínio do círculo familiar e não das normas gerais, abstratas e impessoais oriundas do
espírito das Constituições norte-americana, inglesa e francesa. Representa, por um ângulo, a
busca de superação do passado colonial30.
A subjetividade e o caráter aleatório presente nas relações interpessoais está na raiz
brasileira e a guinada nesse panorama estaria na modernização e urbanização crescente,
afirmação a ser lida no contexto das primeiras publicações do ensaio, datadas da primeira
metade do século passado.
O “homem cordial” de Sérgio Buarque tem face que se relaciona com o agir dominado
pelo coração, sendo gestado no ambiente do patriarcado nacional que, por sua vez, termina
por retroalimentá-lo.
É ponto nuclear das Raízes do Brasil e não se resume à ideia homem gentil ou dotado
de traquejo social especial, ligando-se à resistente tentativa de personalizar as interações
interpessoais:

30
“Quatro motivos ou temáticas marcam Raízes do Brasil: o sistema colonial português, o patriarcado rural, o
homem “cordial” e as aporias do liberalismo brasileiro. A colonização portuguesa é discutida especialmente
nos capítulos 1 e 2. No capítulo 4, Buarque de Holanda tenta distinguir mais claramente o domínio colonial
português do espanhol, de modo a destacar aquilo que frequentemente se denomina padrão colonial ibérico.
De acordo com este padrão, os espanhóis teriam se esforçado para “vencer e retificar a fantasia caprichosa da
paisagem agreste” em suas colônias. Para Portugal, contudo, “a colônia [seria] simples lugar de passagem,
para o governo como para os súditos”. (COSTA, 2014, p. 833).
46

Como sistema abrangente de poder, o patriarcado forma o meio no qual se desen-


volve o “homem cordial”. O “homem cordial” é o núcleo analítico deste ensaio e é,
portanto, extensivamente explicado em termos conceituais e analíticos. Ele corres-
ponde simultaneamente a um tipo ideal sociopsicológico e a um padrão de sociabili-
dade. Por meio do “homem cordial”, Buarque de Holanda não buscou destacar nem
a generosidade, nem a inocência dos brasileiros. Tampouco se trata de uma gentileza
no sentido de uma simpatia ritualizada. Buarque de Holanda entende por “cordia-
lidade” a tentativa constante de personalizar todas as interações interpessoais: em
primeiro plano devem estar os sentimentos, não o anonimato da ordem legalizada
que promete tratar a todos como iguais. O “homem cordial” quer ser chamado pelo
primeiro nome – de preferência, por um diminutivo com “nhô” ou “nhá” – e não
quer ser tratado como apenas mais um entre milhões de cidadãos. Ele corresponde a
um sistema político no qual apenas amizades e lealdades pessoais são relevantes,
porque as decisões tomadas sob influência das emoções não precisam seguir uma lei
ou uma argumentação universal; sua justificativa é sempre pessoal e particular. A
reprodução de hierarquias do poder anda de mãos dadas com este padrão político:
In a cordial society, universal principles cease to be a right and become an
authentic punishment for those who don’t occupy the superior ranks of the multiple
hierarchies that organize social ex- changes, or for those who don ́t have contacts in
the centers of power.
Ao mesmo tempo, a ação do “homem cordial” é a única resposta promissora à
incerteza jurídica. Afinal, esta é a única estratégia sensata perante instituições
estatais que não funcionam segundo os princípios previsíveis das normas escritas e
que, ao contrário, são controladas por funcionários “patrimoniais”, cujo objetivo é
implementar os interesses “dos laços de sangue e de coração”. Neste ambiente de
instabilidade normativa e institucional, o “homem cordial” busca ofuscar os
conflitos, converter desconhecidos em amigos e interpretar os benefícios estatais no
sentido de favores e retribuições. Quando assim mesmo surgem conflitos, falta o
repertório institucional e pessoal necessário para resolvê-los de maneira pacífica e
argumentada, razão pela qual os conflitos, no geral, terminam de forma trágica.
Portanto, a predisposição à violência não é o oposto da cordialidade: a violência é
característica necessária e inerente ao “homem cordial” na medida em que qualquer
antagonismo é interpretado como ameaça à existência deste modelo de
personalidade e sociabilidade. (COSTA, 2014, p. 834-835).

A obra revela, nesse contexto, o “homem-emoção” em contraponto ao “homem-razão”,


nascendo daí tanto a gentileza sedutora quanto a agressividade brutal, a intolerância, a
ausência de impessoalidade, o desrespeito usual a regras abstratas e os entraves “ibéricos” na
assertividade dialógica social, a sugerir, inclusive, reflexões sobre o cabimento da importação,
plena e imediata, por exemplo, da perspectiva procedimentalista de Habermas no direito
brasileiro.31

31
Na perspectiva teórica eclética que orienta o desenvolvimento desta pesquisa, não se refuta a importância das
teorias procedimentalistas, destacando-se apenas que a pluridimensionalidade constitucional permite leituras
não colidentes entre as teses substancialistas e a teoria discursiva de Habermas.
Vale sublinhar, não obstante a advertência de José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, in verbis: “Uma teoria
jurídica deve, entretanto, viabilizar respostas concretas, que possam ser operadas por milhares de profissionais
do direito e cidadãos que, precisando lidar com um fluxo intenso de conflitos não têm formação, aptidão ou
vontade para lidar com propostas excessivamente genéricas. Não faço aqui uma defesa de perspectivas como a
de Richard Posner, nem tampouco a apologia do realismo jurídico ou do direito alternativo. Entretanto, é
importante considerar que uma teoria jurídica deve traçar ao menos horizontes para respostas concretas, pois o
direito é também um sistema que se caracteriza pela coerção, sendo o consenso apenas uma possibilidade.
Não é papel da teoria discursiva do direito trazer respostas concretas para os problemas do direito brasileiro.
Os juristas brasileiros que a estudam, entretanto, têm o dever de oferecer respostas concretas, ou de auxiliar na
busca de tais respostas, as quais, em geral, estão sendo excessivamente modestas.” (BARACHO JÚNIOR,
47

A ideia do “homem cordial” brasileiro, empreendida pelo historiador e sociólogo


Sérgio Buarque, por sua complexidade32, é alvo de compreensões diferenciadas, como se
observa nas obras de Gilberto Freyre (2013, p. 496)33 e de Roberto DaMatta (1997, p. 97-
108)34.
Dentre as leituras diversas, cabe, ainda, o registro de Luiz Feldman sobre os paradoxos
do próprio autor, na edição pioneira de 1936:

Uma conclusão desse estudo será a percepção de que Raízes do Brasil não foi
sempre símbolo de crítica ao legado ibérico em que depois foi erigido. A consulta à
edição princeps revela uma grande ambiguidade do autor em relação ao passado. A
cifra do parágrafo de abertura desvenda-se, ao correr das páginas, tanto pela
afirmação otimista da identidade cordial quanto pela indagação desassossegada
sobre as condições de implantação da civilidade. O oximoro com que Sérgio
Buarque sintetizou o dilema político de seu livro empregava sintomaticamente,
como verbo, o vocábulo que também designava a forma de sua escrita: tratava-se de
‘ensaiar a organização de nossa desordem’. (FELDMAN, 2016, p. 127).

O patrimonialismo do “homem cordial” representa o aspecto que especialmente


interessa ao presente trabalho, porquanto é vinculado à desorganização estatal e aos abusos de
direito verificados no trato da coisa pública nacional, indicativo da nossa “desordem”35:

No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da família


patriarcal, o desenvolvimento da urbanização – que não resulta unicamente do

2015, p. 9).
32
“Em Raízes do Brasil, as possibilidades heurísticas do gênero ensaístico são exploradas ao máximo. A
linguagem plástica escolhida por Sérgio Buarque de Holanda permite converter circunstâncias complexas em
um vocabulário de compreensão geral. Assim, o autor faz uso de dualismos como trabalho e aventura, ou
semeador e ladrilhador, para descrever e tipificar concisamente os padrões abrangentes de conduta. A
propósito, a tensão entre estes dois polos geraria o movimento que levaria ao avanço da história. Neste caso, o
autor recorre, claramente, tanto à metodologia dos tipos ideais de Weber quanto à dialética de Hegel.”
(COSTA, 2014, p. 832-833).
33
“A simpatia à brasileira - o homem simpático de que tanto se fala entre nós, o homem “feio, sim, mas
simpático” e até “ruim ou safado, é verdade, mas muito simpático”; o “homem cordial” a que se referem os Srs.
Ribeiro Couto e Sérgio Buarque de Holanda – essa simpatia e essa cordialidade, transbordam principalmente
do mulato. Não tanto do retraído e pálido como do cor-de-rosa, do marrom, do alaranjado. Ninguém como eles
é tão amável; nem tem um riso tão bom; uma maneira mais cordial de oferecer ao estranho a clássica xicrinha
de café; a casa; os préstimos. Nem modo mais carinhoso de abraçar e de transformar esse rito como já
dissemos orientalmente apolíneo de amizade entre homens em expansão caracteristicamente brasileira,
dionisiacamente mulata, de cordialidade.” (FREYRE, 2013, p. 496).
34
Roberto DaMatta aborda os modos de navegação social do brasileiro, sob a ótica do denominado “jeitinho”,
com características distintas do “homem cordial”, embora ambíguo, de Sérgio Buarque de Holanda.
35
“Em oposição à ética protestante do trabalho constituinte da sociabilidade norte-europeia, Buarque de Holanda
diagnostica nos portugueses uma moral de trabalho pouco desenvolvida, que se ajusta bem “a uma reduzida
capacidade de organização social”. Tal característica seria historicamente condicionada; ela refletiria o fato de
que a ascensão da burguesia portuguesa não havia levado simplesmente à destituição da velha elite, mas sim a
uma existência continuada e parasitária deste grupo. Este déficit na organização social também teria
influenciado o domínio colonial do Brasil. Depois da chegada dos portugueses à costa brasileira, em 1500, a
colonização não teria sido planejada ou pensada: ela “se fez apesar de seus autores”, já que “aventureiros” – e
não “trabalhadores” – estariam envolvidos em tal processo.” (COSTA, 2014, p. 833).
48

crescimento das cidades, mas também do crescimento dos meios de comunicação


[...] ia acarretar um desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.
Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por
tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado
e do público. Assim, eles se caracterizaram justamente pelo que separa o funcionário
“patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o
funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de
seu interesse particular; as funções, os empregos, os benefícios que deles aufere
relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como
sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das
funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha
dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a confiança
pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as suas
capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal [...]. O funcionalismo
patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização,
adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do
burocrático, quanto mais caracterizados estejam os dois tipos. (HOLANDA, 2016, p.
175).

A desordem brasileira fica palpável, nas dimensões jurídica e política, quando é


idealizada a implantação acrítica do modelo de Estado inventado com a derrocada do Antigo
Regime.
Reflete-se nos paradoxos nacionais experimentados pelo processo de formação e pelo
uso, conflitante com o “homem cordial” 36, de paradigmas econômicos, políticos e jurídicos
estrangeiros, frutos de experiências sociais e históricas diversas: importamos o Estado
burocrático sem sermos burocratas; adotamos o positivismo não sendo positivistas;
encampamos o liberalismo, alheios ao espírito liberal, abraçamos as regras do Estado social
sem vivenciarmos as conquistas dos direitos de segunda geração; ingressamos no Estado
democrático de Direito carregando o peso da falta de reflexão histórica e contemplamos a
pós-modernidade ou a modernidade contemporânea com os mesmos “hábitos de consumo”
pretéritos.
Domenico de Masi, na obra “O futuro chegou”, aborda esse ângulo que reflete “a parte
mais desesperançada” do discurso de Sérgio Buarque:

O brasileiro, em sua opinião, é constitucionalmente malandro; os movimentos


apenas aparentemente reformadores, partiram quase sempre do alto e as reformas,

36
“No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de
funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível
acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu
ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos,
foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um
dos efeitos decisivos da supremacia inconstestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência
dos chamados ‘contratos primários’, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam
na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso
ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem
assentar a sociedade em norams antiparticularistas.” (HOLANDA, 2016, p. 175-176).
49

realizadas de modo imaturo, foram acolhidas com indiferença por um povo


inconsciente. Em suma, “a democracia no Brasil sempre foi um reprovável mal-
entendido. [...]
Raízes do Brasil termina com uma triste escolha. Não é bem verdade – defende
Sérgio Buarque – que o caráter brasileiro seja incompatível com os ideais
democráticos: basta pensar na tenacidade com que sempre defendeu a autonomia do
indivíduo, na inconsistência do preconceito de raça e de cor e na rapidez com que
passou a vida rural, mais autoritária, à vida urbana, aliada natural das ideias
democrático-liberais. Porém, não basta ser cordial para ser democrático, pois “com a
cordialidade não se criam bons princípios”. Uma verdadeira democracia exige um
sólido elemento normativo, regras capazes de assegurar oportunidades iguais para
todos, uma superação dos personalismos através de uma disciplina social e uma
série de regras baseadas no consenso. Exige o primado das instituições e a soberania
popular. Na ausência dessas garantias, pode tomar o controle “um demônio pérfido e
pretensioso”, que induz os homens a se verem diferentes do que são e a criarem
novas predileções e repúdios de natureza autoritária, como o fascismo. (2014, p.
664-666).

Tal ambiente configura-se em fonte viva do simbolismo viciado do Direito brasileiro,


cuja eficácia social ou efetividade é considerada, em hermetismo juspositivista, temática
estranha à ciência jurídica. A ciência jurídica brasileira tem sido mais um elemento agregador
da desordem nacional.

3.3 O que faz o brasil Brasil? Roberto DaMatta

O ensaio de Roberto DaMatta “O que faz o brasil Brasil?”, cuja primeira edição é de
1984, aponta a existência de camadas de compreensão possíveis do País, com “b” maiúsculo e
“b” minúsculo, a viabilizarem diferentes formas de observações nacionais, in verbis:

[...] enquanto não formos capazes de discernir essas duas faces de uma mesma nação
e sociedade, estaremos fadados a um jogo cujo resultado já se sabe de antemão. Pois,
como ocorre com as moedas, ou teremos como jogada um “brasil”, pequeno e
defasado das potências mundiais, Brasil que nos leva a uma autoflagelação
desanimadora; ou teremos como jogada o Brasil dos milagres e dos autoritarismos
políticos e econômicos, que periodicamente entra em crise.
Será, portanto, discutir o Brasil como uma moeda. Como algo que tem dois lados. E
mais: como uma realidade que nos tem iludido, precisamente porque nunca lhe
propusemos esta questão relacional e reveladora [...]. (DAMATTA, 1997, p. 20).

Dentro dessa proposta não planificada, são examinados os eventos e ritos sociais
(carnaval, festas religiosas etc.), as figuras humanas, as esferas públicas e particulares ou
privadas, por meio do enfoque na casa, na rua, no trabalho, na ilusão das relações raciais, na
comida, no carnaval, nas mulheres, na arte e nos modos de navegação social (malandragem e
“jeitinho” brasileiro).
O trabalho antropológico de Roberto DaMatta, multiangular, guarda relevância para
50

esta pesquisa ao abordar as perturbações e os paradoxos entre o mundo da casa e o mundo da


rua, bem como as diferenças ontológicas entre pessoas e a coletividade, as primeiras
carregadas de direitos, valores familiares e tradicionais, descoladas do agrupamento de
indivíduos, essencialmente desarticulado, representando um dos traços das nossas
disfuncionalidades comunitárias37.
Extrai-se, dessa visão, que os “modos de navegação social”38 (v.g., a malandragem e o
jeitinho) são viabilizados pelos referidos contrastes dos diferentes Brasis, retroalimentando o
desajuste da máquina pública; um dos elementos danosos à sociedade brasileira:

[...] Como é que se faz diante de um requerimento que está sempre errado? Ou
diante de um prazo que já se esgotou e conduz a uma multa automática que não foi
divulgada de modo apropriado pela autoridade pública? Ou de uma taxação injusta e
abusiva que o Governo novamente decidiu instituir de modo drástico e sem
consulta? [...] entre o “pode” e o “não pode” escolhemos, de modo chocantemente
antilógico, mas singularmente brasileiro, a junção do “pode” com o não pode”. Pois

37
“[…] a rua é espaço que permite a mediação pelo trabalho – o famoso “batente”, nome já indicativo de um
obstáculo que temos que cruzar, ultrapassar ou tropeçar. Trabalho que no nosso sistema é concebido como
castigo. E o nome diz tudo, pois a palavra deriva do latim tripaliare, que significa castigar com o tripaliu,
instrumento que, na Roma Antiga, era um objeto de tortura, consistindo numa espécie de canga usada para
suplicar escravos. Entre a casa (onde não deve haver trabalho e, curiosa e erroneamente, não tomamos o
trabalho doméstico como tal, mas como “serviço” ou até mesmo prazer ou favor…) e a rua, o trabalho duro é
visto no Brasil como algo bíblico. Muito diferente da concepção anglo-saxã que equaciona trabalho (work)
com agir e fazer, de acordo com sua concepção original. Entre nós, porém, perdura a tradição católica romana
e não a tradição reformadora de Calvino, que transformou o trabalho como castigo numa ação destinada à
salvação. Mas nós, brasileiros, que não nos formamos nessa tradição calvinista, achamos que o trabalho é um
horror. Não é à toa que o nosso panteão de heróis oscila entre uma imagem deificada do malandro (aquele que
vive na rua sem trabalhar e ganha o máximo com um mínimo de esforço), o renunciador ou santo (aquele que
abandona o trabalho neste e deste mundo e vai trabalhar para o outro, como fazem os santos e líderes
religiosos) e o caxias, que talvez não seja o trabalhador, mas o cumpridor de leis que devem obrigar os outros a
trabalhar… O fato é que não temos a glorificação do trabalhador, nem a ideia de que a rua e o trabalho são
locais onde se pode honestamente enriquecer e ganhar dignidade. Para nós esses espaços e essa mediação entre
casa e rua pelo trabalho são algo muito complexo.
Mas poderia ser de outro jeito numa sociedade em que até outro dia havia escravos e onde as pessoas decentes
não saíam à rua nem podiam trabalhar com as mãos?” (DaMATTA, 1997, p. 31-32).
38
“Entre a desordem carnavalesca, que permite e estimula o excesso, e a ordem, que requer a continência e a
disciplina pela obediência estrita às leis, como é que nós, brasileiros, ficamos? Qual a ossa relação e a nossa
atitude para com e diante de uma lei universal que teoricamente deve valer para todos? Como procedemos
diante da norma geral, se fomos criados numa casa onde desde a mais tenra idade, aprendemos que há sempre
um mode de satisfazer nossas vontades e desejos, mesmo que isso vá de encontro às normas do bom-senso e
da coletividade em geral?
[…] o dilema brasileiro residia numa trágica oscilação entre um esqueleto nacional feito de leis universais cujo
sujeito era o indivíduo e situações onde cada qual se salvava e se despachava como podia, utilizando para isso
o seu sistema de relações pessoais. Havia, assim, nessa colocação, um verdadeiro combate entre leis que
devem valer para todos e relações que evidentemente só podem funcionar para quem as tem. O resultado é um
sistema social dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo (o sujeito das
leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao polo
tradicional do sistema). Entre os dois, o coração dos brasileiros balança. E no meio dos dois, a malandragem, o
“jeitinho” e o famoso e antipático “sabe com quem está falando?” seriam modos de enfrentar essas
contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro. Ou seja: fazendo uma mediação também pessoal
entre a lei, a situações onde ela deveria aplicar-se e as pessoas nela implicadas, de tal sorte que nada se
modifique, apenas ficando a lei um pouco desmoralizada mas, como ela é insensível e não é gente como nós,
todo mundo fica, com se diz, numa boa e a vida retorna ao seu normal.” (DaMATTA, 1997, p. 97-98).
51

bem, é essa junção que produz todos os tipos de “jeitinhos” e arranjos que fazem
com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver a
realidade social. (DaMATTA, 1997, p. 99-101).

Positivando a Constituição de 1988 metas e deveres típicos dos Estados prestacionais,


torna-se dramática a consecução dos objetivos da República diante dos paradigmas sociais
flexibilizadores das normas jurídicas, sempre a depender da ocasião, das pessoas envolvidas e
das condições subjetivas:

Até que ponto os brasileiros mostram, no cotidiano das relações interpessoais,


valores compatíveis com a prática democrática? Como eles vêem as noções de
igualdade, os princípios do universalismo e a obediência às leis? […] Nossa
pesquisa mostrou que Roberto DaMatta está essencialmente correto. O Brasil é
hierárquico, familista, patrimonialista e aprova tanto o “jeitinho” quanto um amplo
leque de comportamentos similares. Porém uma qualificação importante precisa ser
feita. O país não é monolítico, é uma sociedade dividida entre o arcaico e o moderno.
(ALMEIDA, 2007, p. 275).

A “viagem redonda” de Faoro se casa, nesse ponto, com os paradoxos descortinados


por DaMatta, fruto das ambiguidades nacionais e da “lógica relacional” brasileira:

[...] na política aparece com o nome de negociação ou conciliação [...] no mundo


econômico surge na curiosa combinação de uma economia estatizada com uma
iniciativa privada vigorosa e ainda importante. Que na religião aparece com a
intrigante mistura de catolicismo com religiões afro-populares. E que na cosmologia
em geral – e aqui estou pensando na literatura popular e erudita do Brasil – aparece
sob uma certa ânsia de criar personagens intermediários, gente que pode permitir a
conciliação de tudo o que a sociedade mantém irremediavelmente dividido por um
movimento inconsciente. [...]
De fato, como se pode corrigir o mundo público brasileiro por meio de leis
impessoais, se não se faz simultaneamente uma série de críticas das redes de
amizade e compadrio que embebem toda a nossa vida política, institucional e
jurídica? (DaMATTA, 1997, p. 123-125).

A advertência de que o Direito nacional deve estancar a promoção dos “jeitinhos”, que
podem ser enxergados na dimensão estéril da insinceridade normativa, intimamente ligada à
fraqueza dos laços comunitários e ao patrimonialismo, é leitura que conecta a presente
pesquisa a Roberto DaMatta39.

39
“Há críticas, e muitas, à contribuição de Roberto DaMatta à antropologia. A mais raivosa de todas é de Jessé
de Souza no livro O malandro e o protestante. Mas, tal como diz o ditado que “cão que ladra não morde”, ela
é tão raivosa quanto inofensiva. Jessé simplesmente nega que DaMatta esteja correto sem apresentar evidência
empírica alguma que sustente sua tese. Por exemplo, para Jessé, a corrupção que atingiu o ex-primeiro
ministro alemão Helmut Kohl mostra que a corrupção não é exclusividade do Brasil. Concordamos com ele,
porém, qual o nível de corrupção de Alemanha e Brasil? O escândalo que atingiu Kohl não se compara com
escândalos que atingem inúmeras prefeituras pelo Brasil afora.
Ao contrário de Jessé, os resultados de nossa pesquisa fazem uma crítica moderada, mas consistente, à
interpretação damattiana do Brasil. […] Mas é uma crítica generosa porque – se estiver correta – coloca a obra
52

3.4 Coronelismo, Enxada e Voto - Victor Nunes Leal

Publicado em 1948, com o título “O município e o regime representativo no Brasil:


contribuição ao estudo do coronelismo”, o trabalho de Victor Nunes Leal foi designado, a
partir da segunda edição, como “Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime
representativo no Brasil”.
Trata-se de “obra fundamental para o conhecimento da realidade brasileira” (LEAL,
2014, p. 42), conforme frisou Barbosa Lima Sobrinho no prefácio à segunda edição. Isso
ocorre porque a pesquisa científica empreendida pelo autor logrou identificar, com ineditismo,
um sistema deletério no funcionamento do Estado brasileiro, e não apenas características
herméticas do mandonismo local.
Até então, a ideia de coronelismo e dos fenômenos inerentes aos poderes políticos e
econômicos locais era restrita à concepção dos abusos patrimonialistas, em suas mais variadas
facetas, nos municípios. Era inexistente, a compreensão do sistema gerado por conta dessa
realidade brasileira.
O Estado republicano com feições democráticas distanciadas da realidade, ligado a
estruturas econômica e social frágeis, torna a eleição um compromisso de forma, passível de
interferências danosas quantas vezes forem necessárias à manutenção das vantagens e
interesses dos detentores de maior força. Descortinou-se, então, que tais fenômenos são
estabilizados por meio do modelo consubstanciado no sistema do coronelismo, que nasce nos
municípios e possui tentáculos nos planos estaduais e federal.
No plano social, observa-se no ambiente de coronelismo a ausência de circulação do
conhecimento e das informações básicas, num povo “completamente analfabeto, ou quase,
sem assistência médica, não lendo jornais nem revistas, nas quais se limita a ver figuras”
tendo o “patrão na conta de benfeitor” (LEAL, 2014, p. 47).
No plano político, fica exposta a conveniência dessa situação para os agentes estaduais
e federais desejosos pela mantença do status quo nas eleições artificiais:

[...] seria ilusório pretender que esse novo pária tivesse consciência do seu direito a
uma vida melhor e lutasse por ele com independência cívica. O lógico é que
presenciamos: no plano político, ele luta com o “coronel” e pelo “coronel”. Aí estão
os votos de cabresto, que resultam, em grande parte, da nossa organização
econômica rural. (LEAL, 2014, p. 47).

de DaMatta em outro patamar: ele não estaria falando especificamente do Brasil, mas sim da cultura de
qualquer sociedade cuja escolaridade geral é muito baixa. […] Estou afirmando, portanto, que o jeitinho
brasileiro, com denominações específicas a cada país, existiria em qualquer nação em que a maior parte da
população tenha pouco estudo.” (ALMEIDA, 2007, p. 275-276).
53

O sistema coronelista permitia à elite política e econômica local (municipal) a


manutenção do controle dos assuntos do Estado, inclusive a enorme gama de “benefícios de
procedência oficial”, como a influência sobre as forças policiais:

O maior mal que pode acontecer a um chefe político municipal é ter o governo do
Estado como adversário. Por isso, busca o seu apoio ardorosamente. As eleições
municipais constituem pelejas tão aguerridas em nosso país, justamente porque é
pela comprovação de possuir a maioria do eleitorado no município que qualquer
facção local mais se credencia às preferencias da situação estadual. A esta, como já
notamos, o que mais interessa é ter eleições estaduais e federais, que se seguirem,
maior número de votos, com menor dispêndio de favores e mais moderado emprego
da violência. Apoiar a corrente local majoritária é, pois, o meio mais seguro de obter
esse resultado, inclusive porque a posse do governo municipal representa, para ela e
para o governo estadual, um fator positivo nas eleições, balança em que tanto pesam
o dinheiro público e os benefícios de procedência oficial. (LEAL, 2014, p. 67).

Assim, o Estado tinha controle sobre o “coronel” ao permitir toda sorte de domínio e
abusos, eleitorais ou não, dos chefes municipais, o que lhe era útil no simbólico processo
democrático regional e nacional, em que os políticos obtinham votos consideráveis graças ao
sistema viciado.40
Nutria-se esse modelo do baixo desenvolvimento das atividades urbanas, dos déficits
de cidadania e da limitação de poder dos municípios na federação brasileira41:

40
“A essência, portanto, do compromisso ‘coronelista’ – salvo situações especiais que não constituem regra –
consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições
estaduais e federais; da parte da situação estadual, carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder
da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de
funcionários estaduais do lugar.” (LEAL, 2014, p. 67-68).
41
“[...] A concentração de poder continuava a processar-se na órbita estadual exatamente como sucedia na esfera
provincial durante o Império; mas, como a eleição do governador de Estado não dependia tão puramente da
vontade do centro como outrora a nomeação do presidente de província, o chefe do governo federal só tinha
duas alternativas: ou declarar guerra às situações estaduais, ou compor-se com elas num sistema de
compromisso que, simultaneamente, consolidasse o governo federal e os governos estaduais.
Para que o processo se desdobrasse por essa forma, o bode expiatório teria de ser inevitavelmente o município,
sacrificado na sua autonomia. Entre nós, tanto o Executivo como o Legislativo e o Judiciário federais
favoreceram a concentração de poder nos Estados à custa dos municípios. Aliás, a simples ideia de que os
municípios, deixados à sua livre determinação, acabariam nas mãos de oligarquias locais — que se manteriam,
em caso de contestação, pelo suborno e pela violência — conduzia muito naturalmente à conclusão de que era
preciso dar ao Estado os meios de impedir aquela possibilidade. Porém o que costuma passar despercebido é
que o governo estadual, habitualmente, não empregava tais instrumentos contra os amigos; só os utilizava
contra os adversários. [...] os nossos juristas-idealistas, que pretendiam limitar o poder dos municípios para
impedir as oligarquias locais, acabaram dando aos governadores os meios de que se serviram eles para montar,
em seu proveito, essas mesmas oligarquias locais, fundando, assim, as oligarquias estaduais que davam lugar,
por sua vez, a esta outra forma de entendimento — entre os Estados e a União, que se conhece em nossa
história por “política dos governadores”. Nessa mais ampla composição política, os instrumentos que mais
eficazmente garantiam a preponderância do presidente da República eram, na ordem financeira, os auxílios da
União, destinados a suprir a escassez das rendas estaduais, e, na ordem política, o reconhecimento de poderes
(a degola), que podia manter no Congresso Federal, ou dele expulsar, os senadores e deputados que as fraudes
e os chefes locais extraíam das urnas. Tanto um como outro — o compromisso dos governadores com os
“coronéis” e o compromisso dos presidentes com os governadores — assentavam, portanto, na inconsciência
do eleitorado rural e, por isso mesmo, no tipo de estrutura agrária predominante em nosso país. É evidente,
54

A superposição do regime representativo, em base ampla, a essa inadequada


estrutura econômica e social, havendo incorporado à cidadania ativa um volumoso
contingente de eleitores incapacitados para o consciente desempenho de sua missão
política, vinculou os detentores do poder público, em larga medida, aos condutores
daquele rebanho eleitoral. Eis aí a debilidade particular do poder constituído, que o
levou a compor-se com o remanescente poder privado dos donos de terras no
peculiar compromisso do “coronelismo”. (LEAL, 2014, p. 233).

O autor reconhece que o sistema coronelista foi atacado a partir da revolução de 1930,
com a melhoria da condição social, do desenvolvimento da economia industrial e da
urbanização, mas sugere, mesmo afirmando buscar apenas a compreensão do modelo sem
soluções de correção prontas, que o golpe de morte ao coronelismo apenas será materializado
quando seu “círculo vicioso” for efetivamente dinamitado no país, a indicar operação
complexa, mediante a tomada de ações diferenciadas; econômicas, sociais, políticas e
jurídicas, in verbis:

Fecha-se, assim, o círculo vicioso: no plano econômico, agricultura rotineira e


decadente, indústria atrasada e onerosa, uma e outra empobrecendo
sistematicamente o país; no plano político, sobrevivência do “coronelismo”, que
falseia a representação política e desacredita o regime democrático, permitindo e
estimulando o emprego habitual da força pelo governo ou contra o governo. Não
podemos negar que o “coronelismo” corresponde a uma quadra da evolução política
do nosso povo, que deixa muito a desejar. Tivéssemos maior dose de espírito
público e as coisas certamente se passariam de outra forma. Por isso, todas as
medidas de moralização da vida pública nacional são indiscutivelmente úteis e
merecem o aplauso de quantos anseiam pela elevação do nível político do Brasil.
Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da
população rural, e, em consequência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão
sério obstáculo às intenções mais nobres (LEAL, 2014, p. 239).

A ideia de ciclos de atraso nacional que se retroalimentam das situações originadas


dos déficits brasileiros, nos mais variados espectros, é ponto relevante da presente dissertação,
unindo-a à obra Coronelismo, Enxada e Voto, atual em sua problematização da realidade.

3.5 Willi Bolle - Grandesertão.br: o romance da formação do Brasil

No ponto de vista ora estabelecido, o ensaio de Willi Bolle realiza a ligação entre os
diversos retratos do Brasil, ao trazer, em perspectivas multiangulares, reflexões sobre os
clássicos romances “Grande Sertão: Vereadas” e “Os Sertões”, com o foco no entendimento e
compreensão do País.

porém, que a política dos “coronéis” conduziu ao fortalecimento do poder estadual de modo muito mais
efetivo do que a “política dos governadores” garantia o reforçamento do poder federal.” (LEAL, 2014, p. 109-
110).
55

As narrativas literárias de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha, interpretadas e


contrastadas por Willi Bolle, permitem um olhar difuso sobre o Brasil, não apenas rural e
linear, mas também urbano e complexo, em sua ambiguidade.
Diante da estrutura argumentativa da presente dissertação, interessam neste item,
especificamente, duas análises de Willi Bolle: a primeira sobre a jagunçagem como sistema
retórico e a segunda sobre o pacto de Riobaldo.
Considerações sobre o ensaio de Bolle e os romances de Guimarães Rosa e Euclides
da Cunha, não obstante, merecem ser anotadas, de modo a ratificar a importância da eleição,
neste trabalho, da obra grandesertão.br.
Os Sertões, de Euclides da Cunha (2016), perfaz tratamento histórico e literário da
Guerra de Canudos, ocorrida no interior do estado da Bahia, na última década do século XIX,
sendo considerado um retrato do Brasil.
Euclides valeu-se de suas experiências e qualificações profissionais, como jornalista,
engenheiro e geógrafo, para desenvolver as narrativas retratistas sobre a “terra”, onde
prevalece a descrição espacial e física das regiões; o “homem”, em que existe a identificação
das pessoas e personalidades (jagunços, mestiços, sertanejos, a liderança messiânica de
Antônio Conselheiro) e a “luta”, que representa a parte final do romance na qual são contadas
as expedições do Exército para aniquilar a rebelião de Canudos.
De forma inovadora, abandonou as visões idealistas e românticas até então frequentes
na literatura nacional, abordando os contrastes entre o Brasil sertanejo e o Brasil moderno,
bem como a dimensão da identidade miscigenada brasileira. Não há, nesse último ponto, mais
extremos na sua narrativa (v.g., nobres portugueses e índios brasileiros). Os Sertões é
representação que traz a ideia de aprofundamento das etnias no Brasil, indicativa de mundo
misturado.
A leitura do Euclides da Cunha é sombria. Sua estética naturalista privilegiou o
sofrimento, os massacres, o sangue, os jagunços, o sertanejo rude e o messianismo de Antônio
Conselheiro, opositor da “República ateia”. A associação do Império com a religião e a
mística do líder do movimento, que exercia sobretudo uma função de fé, se dá em narrativa
que perfaz a confrontação entre a nação brasileira e seu heterogêneo povo.
Grande Sertão: Veredas (ROSA, 1994), por sua vez, é romance singular, na
importância, e plural, nos matizes de interpretação.
Busca-se o conhecimento do Brasil por meio do diálogo entre os gêneros, o que não é
verificado nas pesquisas de estrito cunho histórico ou social: coteja-se aqui o romance
ficcional com as categorias conceituais da tradição ensaística.
56

Com o foco narrativo na primeira pessoa, a história do livro é lida através das lentes
ambíguas do herói problemático Riobaldo 42 : sua coragem e seu medo; erudição,
conhecimentos, dúvidas e incertezas; franquezas e ações destemidas. Por meio do divinal e
maligno sentimento que nutre por Diadorim 43; da razão e da fé; dos contrastes sociais
explicitados nas estruturas de dissimulações do agir dos donos do poder, expõe-se a aguda
falta de comunicação entre as classes sociais brasileiras, em que, paradoxalmente, Riobaldo
transita com liberdade.
O romance de Guimarães Rosa apresenta o diálogo de Riobaldo com um interlocutor
não determinado, descrevendo-se as idas e vindas de sua travessia de vida, como filho de
fazendeiro rico, proprietário de terra, jagunço e líder de bando a vingar a morte Joca Ramiro,
pai de Diadorim. Riobaldo, nesse sentido, tem revelada sua dupla posição social.
Para muitos, Grande Sertão: Veredas é a obra prima da literatura brasileira. Pode ser
lida por tantos ângulos diferentes que seria difícil estabelecer uma lista fechada de caminhos.
A interpretação como jogo literário no universo das letras e palavras, quando
“Guimarães Rosa emprega as mesmas técnicas multidimensionais que dão forma a seus textos
literários, enigmáticos palimpsestos que se leem em várias camadas sobrepostas” 44

42
“O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser. Deus esteja!” (ROSA,
1994, p. 141).
43
Diadorim, num ângulo, também representa o desconhecido, sendo percebida como a dificuldade dos
brasileiros cultos de compreender e sentir o povo. O povo, na República, paradoxalmente, surge como
elemento que constrange e envergonha as elites nacionais, verdadeiro tabu da ordem social, e que, por isso,
merece esquecimento dentro do possível.
44
A esse respeito, o pesquisador roseano Marcelo Marinho, em entrevista intitulada “60 anos de ‘Grande
Sertão:Veredas’, um enigma literário e biográfico” registrou o seguinte: “[…] Primeiro, escaneei e digitalizei o
livro, e então pude fazer uma leitura diagonal. Por exemplo, os fatos que acontecem a cada vez que aparece o
nome “cavalo”. Então, o computador encontrava a ocorrência da palavra e eu esmiuçava o texto para ver o que
havia no entorno, sempre tomando notas, com se tratasse de um poema. E assim por diante, como com a
palavra “arte”, por exemplo. Quando lemos de forma ingênua, sem procurar, nem prestamos atenção, mas
fazendo essa leitura diagonal é possível identificar o que acontece em torno de uma palavra, a que se refere
essa palavra no texto. O crítico Jean Starobinski diz que não é a palavra que dá sentido ao texto, mas o texto
que dá sentido à palavra. Então, eu lia o texto e procurava o sentido que o texto atribuía àquela palavra. A
partir daí, as pistas se multiplicaram e permitiram essa leitura convergente com a “autobiografia irracional”,
uma preciosa pista de leitura dada por Guimarães Rosa, mas até então ignorada pelos leitores […] Essa grande
alegoria do universo das letras parte de nomes de jagunçoes-poetas, alguns bastante óbvios, como Drumõo,
Dos-Anjos ou Selorico Mendes, que é uma referência ao poeta e tradutor Manuel Odorico Mendes. O herói se
chama Riobaldo, e na pronúncia sertaneja transforma-se em “Riobardo”, ou seja, “R-io-bardo’, “Rosa-eu-
poeta”. Há outros nomes mais camuflados. Os nomes dos lugares também colaboram nessa perspectiva, como
o Liso do Sussuarão que é, obviamente, uma referência ao Ferdinand de Saussure. Há muito jogo de palavras
nos nomes de personagens, como Diadorim, que também é Deodorina, ou “presente de Deus”, em grego.
Literalmente, o próprio romance diz que Diadorim é a “alma”, enquanto Otacília é um “prêmio”. O pacto com
o demônio resulta num prêmio, mas paga-se com a alma. São velhos logogrifos de almanaque. A geração mais
jovem trocou pelos videogames os antigos jogos de palavras, como aqueles do Almanaque Fontoura, que
faziam parte da cultura popular. O próprio Grande Sertão: Veredas indica essa pista, já na página 7, logo no
início do livro, qunado Riobaldo menciona um “almanaque grande de logogrifos e charadas”. Está ali
evidenciada essa perspectiva de se jogar com as imagens e as palavras para se construir e agregar vários
sentidos à obra. […] O próprio sentido da obra muda em função da tradução e em função do tempo. […]
57

(MARINHO, 2012, p. 188), ou mesmo as leituras filosóficas, políticas, jurídicas e estéticas,


todas, encontram amparos consistentes no multifacetado romance. A obra é um manancial de
veredas inesgotáveis.
Em entrevista concedida no ano de 1962, em Berlim, Guimarães Rosa afirma que sua
obra “[…] tem um fundo telúrico, real e aí passa-se uma história com transcendência visando
até o metafísico, seria quase uma espécie de um Fausto sertanejo […]” (ROSA, 2017). Em
sentido congruente, Guimarães Rosa assinala, em correspondência enviada ao seu tradutor
alemão, que

Em geral, quase toda frase minha tem de ser meditada. Quase todas, mesmo as
aparentemente curtas, simplórias, comezinhas, trazem em si algo de meditação ou de
aventura. Às vezes, juntas, as duas coisas: aventura e meditação. Uma pequena
dialética religiosa, uma utilização, às vezes, do paradoxo; mas sempre na mesma
linha constante, que, felizmente, o Amigo já conhece, pois; mais felizmente ainda,
somos um pouco parentes, nos planos, que sempre se interseccionam, da poesia e da
metafísica. (ROSA, 2003, p. 238-239).

Fato é que a dimensão histórica e social de Grande Sertão: Veredas possui concretude
ampla, embora disfarçada, fazendo com que Willi Bolle, ao transportar o romance para o
conjunto de obras identificadas com os retratos do Brasil, assinale:

A tese aqui discutida é que o romance de Guimarães Rosa é o mais detalhado estudo
de um dos problemas cruciais do Brasil: a falta de entendimento entre a classe
dominante e as classes populares, o que constitui um sério obstáculo para a
verdadeira emancipação do país. A comparar o Grande Sertão: Veredas com os
referidos ensaios sociológicos e historiográficos, cheguei à conclusão de que esse é
o romance de formação do Brasil. (BOLLE, 2004, p. 7).

Restringe-se este item da dissertação, como afirmado anteriormente, à abordagem de


Willi Bolle sobre a jagunçagem como sistema retórico e o pacto de Riobaldo, por conta do
ângulo de leitura da obra, que firma a compreensão administrativa dos objetivos da República
estabelecidos na Constituição, a ser abordada nos próximos capítulos.
O sistema de jagunço, referido no capítulo III45 de Grandesertão.br harmoniza-se com

Quando eu preparava a minha tese, achava estranho que o romance tivesse sido traduzido como “Diadorim”
para o francês, pois o título já direciona o leitor. Inclusive, houve um jornal belga que publicou uma matéria
muito elogiosa sobre Grande Sertão: Veredas e ilustrou com uma fotografia de dois homens abraçados. O
título da matéria era “Grande Sertão: Veredas, o ápice da literatura homossexual no Brasil […]” (MARINHO,
2016).
45
“Os Sertões e Grande Sertão: Veredas, cuja matéria histórica comum é a guerra no sertão, são retratos do
Brasil sob o signo da violência e do crime. Os protagonistas são em ambos os casos os “jagunços”, mas o
sentido deste termo nos dois livros é muito diferente. O nome “jagunços” é atribuído por Euclides da Cunha de
forma bastante arbitrária aos rebeldes religiosos de Canudos, que foram aniquilados pelo Exército brasileiro na
campanha de 1897, conforme relata o próprio ensaísta. Já em Guimarães Rosa – que apresenta uma história
58

a visão de Victor Nunes Leal sobre o coronelismo (2014), no sentido de identificar um


modelo não apenas marginal ou desviante do sistema público do Estado, mas funcionalmente
integrado às relações de poder político do Brasil, verbis:

[...] Ao contrário de outros estudiosos da jagunçagem, o romancista não coloca o seu


narrador numa suposta posição de objetividade “do lado de fora”, mas como alguém
que vive nas contingências do sistema vigente. Com isso, ele retoma o problema
exatamente no ponto onde Euclides da Cunha se desviou e alterou o sentido da
palavra “jagunço”: na análise da justiça do Estado que “parlamenta com os
criminosos” e “sanciona a soberania da capangagem impune”. Ao focalizar o
sistema jagunço, Guimarães Rosa não retrata um poder paralelo, mas o poder.
(BOLLE, 2004, p. 125).

O banditismo coletivo como instituição ou mecanismo estatal que viabiliza o exercício


da violência particular e da vingança com a permissão autoridade pública beneficiada é
aspecto nacional a merecer reflexão46 pelo imbricamento que possui em determinadas fontes
da anestesia social do País da “viagem redonda” (FAORO, 2012): as dissimulações e os
simbolismos estéreis, inclusive no plano jurídico-normativo.
O Direito e a Justiça, representados no julgamento de Zé Bebelo na Fazenda Sempre-
Verde, substituíram a vingança então existente no meio da jagunçagem? Houve realmente a
instituição de novo modelo a partir daí? O desenrolar do romance responde negativamente.
A vingança continuou a ser a tônica nas relações entre os jagunços, a indicar que
circunstâncias pessoais e de privilégio levaram Zé Bebelo a receber esse tratamento não
ortodoxo, consubstanciado na permissão do exercício do seu direito de defesa e de julgamento
“justo”.
A dissimulação é observada em etapas prévias e no também curso do julgamento de
Zé Bebelo47, seja quando Riobaldo defende, por razões pessoais, o tratamento diferenciado ao

ficcional (aproximadamente da mesma época) de lutas de potentados locais, como aliados ou opositores do
Governo, mas sobretudo entre si -, os “jagunços”, de acordo com a acepção mais comum da palavra, são os
capangas ou pistoleiros que constituem aqueles exércitos particulares.
A palavra “jagunço” e a instituição da jagunçagem revestem-se, assim, de importância estratégica para se
compreender o fenômeno da violência e do crime no Brasil. Ao retratar o país sob o ângulo da jagunçagem,
Guimarães Rosa traz à tona o componente de violência que está na origem de todo poder constituído. No
enfoque de considerar Grande Sertão: Veredas uma reescrita crítica d’Os Sertões, pode-se dizer, com uma
formulação extrema, que esse romance, narrado por um jagunço letrado, coloca em debate a maneira
tendenciosa e arbitrária com que o letrado Euclides da Cunha apresenta o jagunço.” (BOLLE, 2004, p. 91-92).
46
“[...] em Guimarães Rosa, a localização do sistema jagunço numa região limítrofe com os centros de poder,
incluindo o território do Distrito Federal, confere ao texto o caráter de um retrato alegórico do Brasil. O que
significa essa encenação de bandos organizando o crime e exercendo o poder no planalto central? O sistema
jagunço, enquanto instituição situada ao mesmo tempo na esfera da Lei e do Crime, deixa de ser um fenômeno
regional e datado, para tornar-se uma representação do funcionamento atual das estruturas do país. (BOLLE,
2004, p. 116-117).
47
[…] a retórica revela-se essencial para a construção do prestígio dos chefes e a manutenção das estruturas do
poder, conforme a clássica lição de Maquiavel. No universo de Grande Sertão: Veredas, o mestre da arte do
59

prisioneiro, seja no momento em que Joca Ramiro faculta a palavra a qualquer dos jagunços
presentes, como se essa etapa incidental tivesse alguma consequência no deslinde do
“processo”, evidenciado a total artificialidade da isonomia existente entre os chefes e os
demais integrantes dos bandos:

A lição principal dos dois episódios de julgamento de Zé Bebelo é que o discurso do


poder é, por natureza, duplo e dissimulado. Riobaldo aparece não apenas no papel de
crítico desse discurso, mas também de aprendiz, através do qual o sistema vigente se
regenera. O que ocorre na Fazenda Sempre Verde, muito além de uma deliberação
sobre a vida de Zé Bebelo, é uma encenação retórica do sistema jagunço diante dos
subordinados. Podemos identificar três estratagemas básicos de dissimulação
(BOLLE, 2004, p. 134-135).

Os estratagemas de dissimulação no julgamento ocorrido na Fazenda Sempre-Verde


representam, alegoricamente, o funcionamento das estruturas de poder no Brasil, expostas no
romance por meio da falsa expectativa da paz no sertão com a vitória sobre o adversário;48 do
“faz-de-conta de que a guerra no sertão é uma forma de rebeldia contra as forças do Governo
repressor”;49 e da “ilusão de que os chefes se pautam pelo julgamento de seus subordinados.”
(BOLLE, 2004, p. 135-137).
O exame de Grande Sertão: Veredas permite a leitura do discurso mitificador e
dissimulador das estruturas de dominação existentes na nação brasileira:

Se Euclides da Cunha construiu uma historiografia em que a narração mitificada da


Luta acaba enfraquecendo o poder analítico da parte estrutural que trata do Homem,
a utilização do mito por Guimarães Rosa opera no sentido oposto. Seu romance é
carregado de elementos míticos, porque só assim é possível reproduzir o discurso
essencialmente mitificador e dissimulador das estruturas de dominação – reproduzir,
para que o comentário do narrador possa revelar como a violência institucionalizada
articula o seu discurso. (BOLLE, 2004, p. 139).

O capítulo IV de Grandesertão.br traz o extenso debate sobre pacto fáustico de

discurso, entendida como arte da persuasão é Zé Bebelo. Personagem camaleônico, ele se apresenta ora como
aspirante a deputado, prometendo “aboli[r] o “jaguncismo”, ora como chefe de jagunço, vestido com as
insígnias tradicionais do banditismo político e social, mas aproveitando a primeira ocasião apra tentar entregar
seus subordinados às autoridades…” (BOLLE, 2004, p. 131-132).
48
“Conforme o consenso geral de todos ali presentes, Zé Bebelo “[p]ode ter crime para o Governo, para
delegado e juiz-de-direito, para tenente de soldados”, mas entre os jagunços é diferente. Crime?... […] Que
crime? Veio guerrear, como nós também. […]” (BOLLE, 2004, p. 135). Assim, a guerra não é condenada em
si mesma. Ao contrário, é aceita como algo pertencente aos domínios do cotidiano, sendo ocorrência trivial.
49
“[…] Guimarães Rosa reconstroi em forma de paródia o padrão maniqueísta de Euclides que opõe a rua do
Ouvidor às caatingas. Essa visão é desconstruída ao longo do romance, na medida em que o leitor é levado a
descobrir que os potentados do sertão são os mesmos que mandam no governo das cidades, do estado e do país.
O raio de ação do sistema jagunço, comandado por ‘cidadãos que se representam’, como ‘seo’ Ornelas e o
coronel Rotílio Manduca, se estende até a capital da República. O romancista corrige assim a historiografia de
Euclides, que deturpou o sentido da palavra ‘jagunço’.” (BOLLE, 2004, p. 136-137).
60

Riobaldo50: esoterismo ou lei fundadora? (BOLLE, 2004, p. 141-194).

[...] o pacto de Riobaldo com o Diabo é o ato-chave do romance. O pacto não é


apenas a motivação profunda para o protagonista nos narrar a sua vida, mas traduz
também a reflexão de Guimarães Rosa a respeito das instituições sobre as quais
repousam a ordem pública, o sistema político do país, as estruturas jurídicas do
Estado e o próprio processo da modernização. (BOLLE, 2004, p. 155).

Grande Sertão: Veredas evidencia a atenção especial de Guimarães Rosa para o uso de
elementos míticos e metafísicos, estabelecendo-se a partir daí o liame para as informações e a
produção de conhecimentos históricos, políticos e sociais.
Constrói-se, nessa dinâmica, uma interpretação que permite ligar o pacto à forma
mítica de expressar as justificativas abstratas de poder e da lei, envoltas nos elementos sociais

50
“[...] O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável. Eu queria
ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. “Deus ou o demo?” – sofri um velho pensar. Mas, como
era que eu queria, de que jeito, que? Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar melhor
morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca eu cedia às arras, tudo
meu, tudo o mais – alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! – “Acabar com o Hermógenes! Reduzir aquele
homem!...” –; e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão. Do
Hermógenes, mesmo, existido, eu mero me lembrava – feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e
mijona, em seus despropósitos, a formiguinha passeando por diante da gente – entre o pé e o pisado. Eu
muxoxava. Espremia, p’r’ ali, amassava. Mas, Ele – o Dado, o Danado – sim: para se entestar comigo – eu
mais forte do que o Ele; do que o pavor d’Ele – e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei sensatez.
Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já
que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopio do pé-devento – o ró-ró
girado mundo a fora, no dobar, funil de final, desses redemoinhos: ... o Diabo, na rua, no meio do
redemunho... Ah, ri; ele não. Aheu, eu, eu! “Deus ou o Demo – para o jagunço Riobaldo!” A pé firmado. Eu
esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei, toda, aquela firmeza me
revestiu: fôlego de fôlego de fôlego – da mais-força, de maior-coragem. A que vem, tirada a mando, de setenta
e setentas distâncias do profundo mesmo da gente. Como era que isso se passou? Naquela estação, eu nem
sabia maiores havenças; eu, assim, eu espantava qualquer pássaro.
Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não
queria existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu estava
bêbado de meu. Ah, esta vida, às não- vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o
ar:
– “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengolindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-
cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinho ninhante mal-
acordado dum totalzinho sono.
– “Lúcifer! Satanás!...”
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.
– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem
respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência
da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do
assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranqüilidades-de pancada. Lembrei
dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí
podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem
abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!” (ROSA, 1994, p. 268-269).
Anote-se, na vertente fantástica, a dúvida sobre a própria celebração do pacto: “O diabo não há! É o que eu
digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.” (ROSA, 1994, p. 385).
61

inerentes à propriedade51, justiça e ordem político-social, verbis:

Assim como o romance, também a teoria política só pode falar da história primeva,
especialmente do ‘pacto’, em termos hipotéticos; ambos recorrem a formas
ficcionais. (BOLLE, 2004, p. 158).

Willi Bolle realiza a leitura do pacto ocorrido nas Veredas-Mortas como a alegoria de
um falso contrato social, com lastro na teoria política de Rousseau.52 O bando de jagunços
rasos, a “horda primitiva”, fixa-se como o coletivo humano anterior ao próprio contrato social.
Assim, o acordo entre os proprietários de terra, chefes da jagunçagem e jagunços seria
a alegoria do modelo de falso do contrato social legitimador do poder não democrático; falso
porque na aparência se refere, abstratamente, ao acordo entre iguais, mas, em verdade, não
revela a existência de qualquer ajuste entre povo e representantes de seus interesses reais. Não
há vestígio de soberania popular.
O que existe é um dissimulado acordo entre chefes, o falso contrato que promulga a
desigualdade civil e política. Os pobres e o jagunços rasos do sertão estavam efetivamente à
margem do corpo político, não sendo considerados reais cidadãos até eventualmente
ascenderem a proprietários destacados ou latifundiários:

O pacto político primordial, reconstituído no Discurso de Rousseau por via


conjectural, ressurge em Grande Sertão: Veredas como um ritual arcaico,
reatualizado pelo protagonista-jagunço e rememorado pelo narrador-fazendeiro. A
contribuição de Guimarães Rosa para a teoria política e da história consiste em
narrar, por meio da “estória” da ascensão de um raso jagunço a chefe e latifundiário,
a história da institucionalização da propriedade, da lei e da ordem social. (BOLLE,
2004, p. 158).

51
“Medeiro Vaz parece representar um sertão “onde os pastos carecem de fechos”, o mítico sertão primevo dos
homens livres, em oposição a um ex-homem-livre e ex-jagunço como o fazendeiro Riobaldo, que defende o
princípio da propriedade. [...] O autor de Grande Sertão: Veredas não compartilha da visão rousseauniana de
volta a um suposto estado natural puro. Ao lampejo de uma utopia social se sobrepõe a sombra do
autoritarismo e da violência. Medeiro Vaz, assim como os inimigos que ele pretendia combater, acaba por
simbolizar o espírito da “guerra perpétua”, anterior ao pacto social e traduzindo o estado de coisas antes da
Lei.” (BOLLE, 2004, p. 163).
52
“Minha tese é que o pacto em Grande Sertão: Veredas pode ser entendido como uma visão romanceada da lei
fundadora, daquilo que a filosofia política, no limiar da modernidade, imaginou como sendo a base da
sociedade civil e do Estado. Durante as lutas da burguesia emergente contra a monarquia “de direito divino”,
articulou-se, a partir do século XVII, em pensadores como Althusius, Grotius, Pufendorf, Hobbes, Locke e
Rousseau, a idéia de um contrato social. Enquanto Hobbes concebeu o contrato ou pacto de cidadãos ou
sujeitos como institucionalização do poder soberano do Estado, que poderia ser monárquico, aristocrático ou
democrático, Rousseau desenvolveu essa idéia num sentido decididamente democrático. Na sua perspectiva, o
“pacto dos sujeitos” seria um falso contrato social, legitimando o poder do Príncipe – diferentemente do
contrato social verdadeiro, baseado na idéia de soberania do povo, que instituiria um “corpo político”
denominado república, o correspondente da civitas antiga. A base institucional da humanidade civilizada,
conforme Rousseau, não deveria ser simplesmente a cidade enquanto conjunto de seus habitantes, mas
enquanto corpo político (civitas) de “cidadãos” (cives, citoyens).” (BOLLE, 2004, p. 155-156).
62

Importam à dissertação, ademais, as ideias de Willi Bolle sobre o narrador pactário


(Riobaldo) e a função diabólica da linguagem (BOLLE, 2004, p. 174).
Neste viés interpretativo, harmonioso com as concepções de “Os donos do poder”, de
Raymundo Faoro, assinala-se a dimensão camaleônica de Riobaldo na travessia pelos sertões,
adaptando-se a todas as mudanças na sua escalada pelo poder, inteiramente despido das
utopias iluministas:

[...] podemos considerar o trato de Riobaldo com o Diabo, pelo prisma da teoria
política de Rousseau, como alegoria de um falso contrato social. Nem por isso deixa
de existir grande diferença entre os nossos dois autores em termos de filosofia da
história. Enquanto Rousseau descreve os fundamentos da desigualdade entre os
homens e o falso contrato social com o intuito de substituí-lo pelo contrato social
verdadeiro, Guimarães Rosa desmonta o discurso utópico iluminista, para revelar
lucifericamente a ordem político-social vigente. [...]
Da facilidade com que os donos do poder se amoldam a novas situações políticas,
Riobaldo é um bom exemplo. Ele transita dos jagunços legalistas de Zé Bebelo para
os fora-da-lei de Joca Ramiro, deixa-se iniciar à matança pelo Hermógenes e depois
assume a chefia para matar Hermógenes, alicia os miseráveis com a promessa de
tomar o dinheiro dos ricos e acaba montando um exercito de jagunços para defender
suas propriedades.
Essa adaptabilidade política do protagonista traduz a experiência do seu criador, que
serviu a governos tão diferentes como o de Getúlio Vargas, Gaspar Dutra, Juscelino
Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, Castello Branco... O romancista que
conhecia intimamente o funcionamento da máquina do poder e todos os segredos da
retórica, usou seus conhecimentos para contar, a partir dessa perspectiva de dentro,
criptograficamente, como se articula a política no país. (BOLLE, 2004, p. 173 e 177).

Riobaldo captura, assim, a essência do discurso do poder: a dissimulação. Pratica o


que criticava, é demagogo, utiliza-se dos jagunços em seu interesse pessoal e, ao final, mesmo
pagando o alto preço da morte de Diadorim, torna-se grande proprietário rural deixando a
jagunçagem53.
Nesse contexto da relação desequilibrada entre “senhores”/“escravos” e
“cidadãos”/“hordas primitivas”, torna-se palpável que o exercício do poder tem regras do jogo
real não escritas, sendo não raro antagônicas com as normas abstratamente formuladas pelo
Poder legiferante que integra o falso “pacto social”.
A insinceridade normativa, como visto, tem campo fértil em tal ambiente, trazendo a
pertinência do debate ora estabelecido.

53
“[...] o pacto com o Diabo, enquanto alegoria de um falso contrato social, representa a lei fundadora que
condiciona o comportamento dos chefes, não apenas nas suas ações, mas também e sobretudo em seus
discursos. O pacto é a base para uma prática da linguagem a forjar “as formas do falso”, uma retórica do faz-
de-conta que se apodera do espaço público.” (BOLLE, 2004, p. 190).
63

3.6 O papel dos retratos do Brasil

As manifestações heterogêneas que expressam traços e características de nosso País,


denominadas de retratos do Brasil, são instrumentos úteis à pesquisa que procura garimpar
elementos do processo de construção nacional, as perspectivas e características da nação
Brasil, na construção de argumentos jurídicos.
Quando se aborda o Direito Administrativo nesse ângulo eminentemente
constitucional, em que é objeto de estudo a complexa temática da juridificação da política54,
tem-se dilatada a porta de entrada para o mundo da interdisciplinaridade (SANTOS, 2008, p.
52), fenômeno potencializado com a prolongada crise da razão que atormenta (ou ilumina) o
Ocidente, desde o século passado.
Afinal, a concepção de sistema jurídico hermético, como examinado no capítulo 2, é
epistemologicamente insustentável diante dos paradigmas defendidos nesta pesquisa.
O estudo dos retratos do Brasil, antes de representar mais uma linha teórica do
Direito55, tem cabimento nesta pesquisa como espaço de argumentação construído a partir dos
objetivos constitucionais da República, para que, de modo não autoritário, seja possível
identificar, fora do senso comum, falhas e desajustes na gênese administrativa nacional a
merecerem reflexões construtivas.
Não é desnecessário registrar que as ciências sociais aplicadas sofrem a tentação do
flerte com verdades unilaterais, em silencioso maniqueísmo vinculado à opinião do
pesquisador, desconectada de qualquer diálogo com a rede de conhecimentos.
A fuga do senso comum, das veredas acríticas e da dissimulação retórica ou
regulamentar é alvo que norteia o desenvolvimento do presente trabalho, adquirindo os
retratos do Brasil, nesse contexto, a relevância de amparar a construção das ideias.
A pluridimensionalidade constitucional (SAMPAIO, 2013, p. 721) aponta para a
compreensão um tanto óbvia de que a sociedade não muda apenas com a positivação de regras,
mas o Direito também é lacunoso quando visto exclusivamente na dimensão realista. As
aporias do realismo jurídico surgem em diversos questionamentos, como o próprio fato de os
Tribunais que praticam o “realismo” terem jurisdição por força de norma escrita

54
Juridificação da política, no sentido empregado, representa a normatização de fatos essencialmente ligados a
escolhas políticas da comunidade, ou seja, o transporte para o Direito das concepções políticas e ideológicas de
um povo. A importância estratégica do Direito Constitucional reside neste aspecto.
55
José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, ao examinar a utilização, no universo jurídico, dos retratos de Brasil,
afirma não se ter o escopo, com isso, de construir “uma opção teórica entre estas compreensões do Direito e da
literatura, mas considerar as possibilidades de uma tradição construída pelas ciências sociais aplicadas no
Brasil a partir das artes [...].” (BARACHO JÚNIOR, 2009, p. 158).
64

objetivamente estabelecida.
A dimensão normativa do Direito, portanto, é um dos ângulos insuperáveis no debate
jurídico. Na perspectiva eclética aqui defendida, o diálogo entre as dimensões constitucionais,
em seus diversos matizes, é a chave do processo hermenêutico, cabendo o registro de que

[...] de fato, a realidade não pode ser isolada do plano da objetividade e a idealidade
no plano do subjetivismo. Como a literatura do século XX demonstrou, existem
olhares sobre o mundo, e não uma realidade objetiva a ser observada. Magistrais
nesse sentido as lições de Julio Cortázar em Las barbas del diablo e, entre nós,
Guimarães Rosa, tanto no Grande Sertão: Veredas quanto em contos de Sagarana e
Primeiras Estórias.
Não pretendo, portanto, mistificar o que seria a realidade. O que pretendo é
considerar a existência de conhecimentos não sistêmicos, assim como a necessidade
de interação entre diferentes sistemas. (BARACHO JUNIOR, 2015, p. 9).

Os objetivos da República, sob a dimensão normativa constitucional, deontológica,


orientam e vinculam a atuação planejada do Estado. E, neste ponto, ganha relevo o alerta já
formulado há décadas pelos retratos do Brasil: as ambiguidades e dissimulações56 inerentes à
repartição do poder entre os chefes e os estamentos nacionais, em simulacro democrático
rousseauniano, não podem ser ignoradas pelos operadores do Direito no exame da
concretização jurídica da Constituição.
Portanto, como trilhar as metas constitucionalmente estabelecidas, num ambiente
patrimonialista exacerbado 57 , revelador da função hipertroficamente simbólica 58 do texto

56
A obra “1988: segredos da Constituinte”, a título de exemplo, traz elucidativas entrevistas de inúmeras
autoridades constituintes que assumiram posições de relevo na ocasião. Entre elas, o ex-ministro do STF
Nelson Jobim (NJ), que brindou com a sinceridade desconcertante sobre episódios e “pactos” que
instrumentalizaram a gênese normativa do “poder constituinte originário” brasileiro:
“[...] Em determinado momento surgiu um impasse complicado quanto ao repouso semanal remunerado. O
pessoal da esquerda era coordenado pelo Plínio de Arruda Sampaio, que era o líder do PT. Naquela época, o
Plínio não era o radical que veio a ser. Era um sujeito que negociava, um cara ótimo. O texto da esquerda
queria “repouso semanal remunerado obrigatoriamente aos domingos”. A direita queria “repouso semanal
remunerado, na forma de convenção ou contrato coletivo de trabalho”. A direita tinha razão, alguns trabalhos
não podiam parar no domingo. E deu-se o impasse. Ninguém tinha voto para aprovar nenhuma delas. O dr.
Ulysses me chama: “Olha, Jobim, vamos lá resolver esse assunto.” Eu peguei o Antônio Britto e fomos
trabalhar. Conversa com um, conversa com outro. Ninguém abria mão. Então fiz uma redação, aprovada pela
direita e pela esquerda, que está na Constituição: “[...] repouso semanal remunerado, preferencialmente aos
domingos”. Ficou o domingo que o Plínio queria, e ficou o enfraquecimento do verbo, que a direita queria.
Não era obrigatório, era preferencial. Todo mundo aprovou [risos de satisfação].
Quanto mais ambíguo, mais fácil de passar... NJ – O jogo era esse. Tu tinha que trabalhar com
ambiguidades. Quando não se conseguia o acordo, e não tinha solução num texto ambíguo, eu usava a técnica
de jogar para a lei complementar ou lei ordinária.” (CARVALHO, 2017, p. 210-211).
57
“O pensamento sociológico e antropológico brasileiro é praticamente unânime em apontar o caráter
patrimonialista da política nacional. Esse pensamento sublinha como os políticos se apropriam privadamente
do que é público.” (ALMEIDA, 2007, p. 97).
58
“[...] há uma forte contradição entre direito e realidade constitucionais nos países “subdesenvolvidos”. A rigor,
assim entendo, a questão diz respeito à falta de normatividade jurídica do texto constitucional como fórmula
democrática: a partir deste não se desenvolve suficientemente um processo concretizador de construção do
direito constitucional; mas, ao mesmo tempo, a linguagem constitucional desempenha relevante papel político-
65

normativo (NEVES, 2011), que discrepa da eficácia social do Direito brasileiro?


A doutrina de Marcelo Neves sinaliza, inclusive, o risco do esfacelamento
constitucional como consequência danosa do pacto entre os donos do poder:

Para os sobrecidadãos e subcidadãos a Constituição não se apresenta como horizonte


do seu agir e vivenciar jurídicos: os primeiros usam, desusam ou abusam da
Constituição conforme as constelações concretas de poder; aos últimos são estranhos
os direitos e garantias fundamentais constitucionalmente amparados. Disso resulta,
como já salientei acima, que a generalização de relações de sobreintegração e
subintegração nos subsistemas da sociedade, aqui especialmente na política e no
direito, leva a implosões jurídicas e políticas. (NEVES, 2011, p. 198).

Os retratos do Brasil, nesse contexto, viabilizam a formulação de crítica interna com


enfoque nos contornos nacionais, permitindo o debate sobre a adequação de nossas
construções e importações teóricas, nossos silêncios legislativos, simulacros jurídicos e
ambiguidades, tornando a ciência jurídica, ao menos, fonte transparente de ponderação das
vicissitudes nacionais. O ato de “tapar o sol com a peneira” por meio do Direito fica
enfraquecido, o que, por si só, já representa contribuição democrática à efetividade normativa.
Descortina-se um Estado prestacional abstratamente desenhado após 1988 em que os
serviços públicos essenciais de educação, saúde, segurança pública e tantos outros funcionam
mal. Em verdade, havendo disponibilidade de recursos financeiros pessoais, o primeiro passo
do cidadão é distanciar-se ao máximo desses serviços prestados pelo poder público, seja com
planos de saúde, escolas particulares, contratos de seguro, segurança privada etc., em
contradição com o texto da Constituição vigente.
A título de exemplo, pesquisa nacional de saúde do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), publicada em 2015, apontou esse diagnóstico, cuja intuição não trazia
maiores dificuldades para se desvelar: o maior uso do serviço público essencial é proporcional
à redução do poder aquisitivo:

A PNS 2013 investigou aspectos sobre a cobertura de saúde suplementar, estimando


a proporção da população que tem acesso ao serviço de planos de saúde e os gastos
dos moradores com a saúde suplementar. Em 2013, 27,9% da população tinha algum
plano de saúde (médico ou odontológico). As Regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste
apresentaram as maiores proporções (36,9%, 32,8% e 30,4%, respectivamente) e as
Regiões Norte e Nordeste, as menores (13,3% e 15,5%, respectivamente). A Região
Sudeste registrou percentual quase três vezes maior que o verificado na Região
Norte. Na área urbana (31,7%), o percentual de pessoas cobertas por plano de saúde
era cerca de cinco vezes superior ao observado na área rural (6,2%). [...]
Das pessoas que ficaram internadas em hospitais por 24 horas ou mais, 65,7% (8,0
milhões) tiveram esse atendimento por meio do Sistema Único de Saúde - SUS. As
Regiões Nordeste e Norte registraram as maiores proporções: 76,5% e 73,9%,

simbólico, também com amplas implicações na esfera jurídica.” (NEVES, 2011, p. 3).
66

respectivamente. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA,


2015, p. 30 e 50).

Nessa ordem de ideias, em que os objetivos da República são normas jurídicas


ordinariamente descumpridas, busca-se alicerçar o paradigma de que é função do intérprete
expor as conjunturas da inefetividade normativa.
Assim, constrói-se a leitura administrativa desses princípios estruturantes, de modo a
propiciar a abertura de “clareiras no imobilismo tão benéfico aos locatários, melhor,
comodatários do poder, possibilitando a vida real dos direitos de papel.” (SAMPAIO, 2010, p.
338).
67

4 OBJETIVOS DA REPÚBLICA, RETRATOS DE BRASIL E A LEITURA


ADMINISTRATIVADA DA CONSTITUIÇÃO

A Constituição traçou objetivos no art. 3º, entre eles a construção de sociedade livre,
justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza, a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais (incisos I a III), intitulados princípios
fundamentais (Título I).
Nessa primeira metade do século XXI, período de continuada crise da razão e de
incertezas políticas, sociais e econômicas, crescem o repúdio aos agentes políticos59 e a
descrença na democracia representativa. Tais eventos também são impactantes na formação
do senso comum de que os objetivos da República representam adornos fantásticos da
Constituição, inutilidades jurídicas.
Apesar de os retratos do Brasil sugerirem conclusão contrária, ou seja, a importância
da perseguição dos objetivos constitucionais, por meio do diagnóstico e enfrentamento dos
ciclos ou sistemas deficientes, a desmontar o simbolismo estéril e a insinceridade normativa,
há timidez da comunidade jurídica sobre o tema.
Diante dessas conjunturas, sublinha-se que os objetivos da República60, sob o viés
liberal ou comunitarista 61 , integram os pontos de partida da dimensão normativa
constitucional brasileira, in verbis:

59
“[...] Sorrindo para a câmera/Sem saber que estamos vendo/Chorando que dá pena/Quando sabem que estão
em cena/Sorrindo para as câmeras/Sem saber que são filmados/Um dia o sol ainda vai nascer/Quadrado! [...]”
(TITÃS, 2005). Música composta para o escândalo criminal de 2005, conhecido como “Mensalão”.
“[...] Neste país de manda-chuvas/ cheio de mãos e luvas/ tem sempre alguém se dando bem/ de São Paulo a
Belém [...]” (CAROLINA; ZÉ, 2005).
60
“Toda sociedade se funda sobre acordos, sejam eles frutos de uma tradição ou de uma decisão racional, sejam
eles conscientes ou não. A questão não é, propriamente se há um acordo ou pacto que funde a vida social, mas
em que tipo de acordo ela se funda, ou seja, qual é a natureza de tal acordo, como ele ocorre e em que consiste
e, mais precisamente, de que modo concebe a relação entre indivíduo (a parte) e a totalidade (a organização
social). As respostas a estas perguntas indicam a existência de duas matrizes teóricas concorrentes que
procuram fundamentar o que seja o Direito e o Estado como resultado de tais acordos, chamadas de
Comunitarismo e de Liberalismo. Evidentemente, que tais matrizes são generalizações tanto de características
que podemos encontrar nas comunidades e nas sociedades que se desenvolveram no ocidente quanto de
idealizações conceituais que se fizeram destas mesmas comunidades e sociedades ao longo da história do
pensamento político. Este alerta é importante para lembrar o leitor que as matrizes [...] funcionam como um
tipo ideal de função expressamente interpretativa, que visam a compreender os acordos que se realizam no
interior de um grupo social.” (GALUPPO, 2003, p. 337-338).
61
Merece o registro, neste momento de crise política nacional e radicalizações autoritárias por determinados
movimentos sociais, de direita e de esquerda, que o Estado mínimo é tão utópico (ou distópico, a nosso ver)
quanto o Estado total. O próprio Robert Nozick, na obra Anarquia, Estado e Utopia, sugestivamente estrutura
seu ponto de vista libertário, com influência de imperativo categórico kantiano, por meio de “um arcabouço
para a utopia” (NOZICK, 2011, p. 427-430) destinado à criação do Estado minimalista.
68

O ordenamento jurídico estabelece a realização de fins, a preservação de valores e a


manutenção ou a busca de determinados bens jurídicos essenciais à realização
daqueles fins e à preservação desses valores. O intérprete não pode desprezar esses
pontos de partida. (ÁVILA, 2015, p. 54-55).

Na atual configuração do Estado Democrático, a interpretação mais compatível com a


dimensão extraída do texto constitucional revela a presença de temperamento liberal ou
temperamento comunitarista no País, como queira denominar o hermeneuta:

Se identificarmos a primazia da liberdade ao liberalismo e a primazia da igualdade


ao comunitarismo, e se pensarmos nos autores da matriz liberal e nos autores da
matriz comunitarista, constataremos que o grande problema é que a primazia de um
desses conceitos sobre o outro falseia os próprios conceitos de liberdade e de
igualdade, que não são mais compreensíveis um sem o outro. (GALUPPO, 2003, p.
346).

A presente dissertação apresenta duas abordagens relacionadas aos objetivos da


República brasileira.
A primeira expõe que essas diretrizes formalizam a natureza planejadora da
Constituição, a ser detalhada nos capítulos 5 e 6, referentes à governança e ao planejamento
administrativo.
Na travessia de superação de vícios sistêmicos nacionais, a governança, o
planejamento administrativo e a qualificada composição da máquina pública são leituras
administrativas do texto constitucional que adquirem caráter estratégico, por força do próprio
formato prestacional do Estado brasileiro.
A segunda abordagem, específica deste capítulo, mostra que o ataque aos ciclos de
pobreza enseja também o enfoque administrativo, por meio da realização do planejamento
estratégico estatal e da crítica ao patrimonialismo. Revela-se dever jurídico prioritário do
Estado, porquanto decorrente de objetivos da República, residindo aí a importância da
qualificada formação do máquina administrativa e dos quadros de pessoal no setor público.
Não se desconhece que a chaga populista, efervescente no Brasil, torna ainda mais
delicada a abordagem jurídica da pobreza, que é assunto complexo62 e resistente ao tempo63.

62
“[...] many of us tend to be confused about the causes of poverty and, therefore, not sure what to do about it. A
review of research on poverty indicates that the dialogue has been polarized between those who believe
poverty is caused by individual behaviors and those who believe poverty is caused by political/economic
structures. Proponents of both of these views often make “either/or” assertions: If poverty is caused by
individual behaviors, then political or economic structures are not at fault and vice versa. Taking a “both/and”
approach, however, is more productive. “Poverty is caused by both the behavior of the individual and
political/economic structures – and everything between.” This book’s authors categorize the research into four
clusters along a continuum of causes of poverty: - Behaviors of the individual. – Absence of human and social
capital. – Exploitation. – Political/economic structures.” (PAYNE, 2013, p. 155).
Nesta dissertação, ressalta-se, no capítulo 4, o ciclo de pobreza relacionado a vício da estrutura política e social
69

José Afonso da Silva assim define a pobreza:

A pobreza é o estado de quem não tem o necessário para a vida, de quem vive com
escassez; [...] consiste, assim, na falta de renda e recursos suficientes para o
sustento, na fome e na desnutrição, más condições de saúde, limitado acesso à
educação e na maior incidência de doenças e mortalidade, especialmente
mortalidade infantil. [...] Pois bem, erradicar esse estado é o que constitui o objetivo
fundamental da República aqui analisado. [...] Em verdade, também a erradicação da
pobreza e da marginalização é um modo de se construir aquela sociedade livre, justa
e solidária, objetivo fundamental consignado no inciso I do artigo em comentário.
(SILVA, 2006, p. 47-48).

A realização constitucional, no cenário de ofensas ao piso vital mínimo, é mais difícil:


o acesso ordinário a cargos públicos, ainda que formalmente idôneo, escora-se em
meritocracia artificial; o estamento burocrático encontra terreno fértil para perpetuação e o
Estado democrático deixa de se implementar plenamente, estabelecendo-se os simbolismos
hipertrofiados, promessas futuras, textos irrealizáveis. O patrimonialismo, nessas
circunstâncias, tem campo aberto para se perpetuar.
São decisivos, assim, o diagnóstico e a compreensão dos inúmeros ciclos de pobreza,
“caracterizados como a retroalimentação originada do próprio ambiente deficitário, sendo
simultaneamente efeito e causa”, representativos de “[...] fenômenos sociais, econômicos e
políticos que auxiliam a manutenção de uma determinada situação de carência. Apresentam-
se, assim, como nocivos elementos estabilizadores de um quadro de pobreza, não
dinamitáveis sem uma intervenção externa” (COUTINHO, 2015, p. 152).
Conforme assinalado, um dos ciclos de pobreza64 fixa-se na estrutura patrimonialista
do Estado brasileiro, intimamente conectada, por sua vez, ao deficiente acesso a cargos,
empregos e funções públicas.
O clientelismo, o fisiologismo, o assistencialismo, mandonismo, o filhotismo etc.
germinam no campo fértil da pobreza. Mas, corroboram também a sua manutenção,

brasileira: o patrimonialismo.
63
Noel Rosa, em “O orvalho vem caindo”, de 1933, apresenta pioneira crítica em letra de música, por meio dos
lamentos de “pessoa em situação de rua”, relacionando-se diretamente com a pobreza e desgovernança da
máquina pública brasileira, verbis: “O orvalho vem caindo, vai molhar o meu chapéu/ e também vão sumindo,
as estrelas lá do céu/ Tenho passado tão mal/ A minha cama é uma folha de jornal/Meu cortinado é um vasto
céu de anil/ E o meu despertador é o guarda civil (Que o dinheiro ainda não viu!)/ [...] A minha sopa não tem
osso e nem tem sal/ Se um dia passo bem, dois e três passo mal (Isso é muito natural!) [...].” (DOMINGUES,
1933).
64
“[...] set of factors or events by which poverty, once started, is likely to continue unless there is outside
intervention. Once an area or a person has become poor, this tends to lead to other disadvantages, which may
in turn result in further poverty [...].” (MCGLYNN, 2002, p. 770).
“São exemplos de ciclos de pobreza [...] os loteamentos clandestinos, o precário saneamento básico, o ensino
público fundamental de má qualidade, o clientelismo político, entre vasta gama de fenômenos deletérios, a
evidenciar a amplitude e heterogeneidade da questão.” (COUTINHO, 2015, p. 153).
70

pertencendo a eles a paternidade de entraves sociais, nessa complexa ciranda de ofensas a


direitos do homem.
Ao constitucionalismo importa discutir a matéria, em obediência aos pontos de partida
do sistema brasileiro, o que é, em tese, de interesse jurídico relativo para outras potências do
Direito Constitucional, reforçando-se, assim, a convicção das particularidades dos retratos do
Brasil. Abre-se o horizonte para pensar a Constituição sob prisma nacional:

A reflexão jurídica no Brasil parece algumas vezes acreditar que as teorias


produzidas alhures trarão o instrumental que necessitamos para enfrentar problemas
que são particulares, históricos; sem dúvida que elas contribuem sobremaneira para
qualificar a nossa reflexão, mas estão longe de buscar alternativas que sejam
diretamente voltadas para nós. (BARACHO JÚNIOR, 2009, p. 161).

Diante da leitura administrativa dos objetivos da Constituição é possível afirmar que o


organizado acesso a cargos, empregos e funções públicas representa medida determinante
para o enfraquecimento de específico ciclo de pobreza, ao favorecer a ruptura do paradigma
patrimonialista na Administração Pública, e, consequentemente, auxiliar o satisfatório
desfecho da distópica “viagem redonda” de Raymundo Faoro ou da interminável “inclusão
limitada” de Simon Schwartzman65.
O preenchimento adequado da máquina pública e a melhor qualificação do quadro de
pessoal ou do material humano que, direta ou indiretamente, representa o Poder Público
relaciona-se com o incentivo às positivas ações estatais e à perda de poder das oligarquias
nacionais, afigurando-se como antessala da concretização dos serviços públicos eficientes:

Como qualquer grande organização, os governos precisam de uma hierarquia de


pessoas para fazer políticas e para implementá-las em todos os níveis: de
funcionários superiores a burocratas a nível de rua que lidam diretamente com
cidadão cotidiano. [...]

65
Simon Schwartzman consigna que “[…] ao lado de uma economia moderna, existem milhões de pessoas
excluídas de seus benefícios, assim como dos serviços proporcionados pelo governo a seus cidadãos. Isto pode
ser uma consequência de processos de exclusão, pelos quais setores, antes incluídos, foram expulsos e
marginalizados por processos de mudança social, econômica ou política; ou de processos de inclusão limitada,
pelos quais o acesso a emprego, renda e benefícios do desenvolvimento econômico fica restrito a determinados
segmentos da sociedade. O resultado, em ambos os casos, é o mesmo, mas as implicações políticas e sociais
podem ser muito distintas. Processos de exclusão social e econômica tendem a ser muito mais violentos e
traumáticos do que situações de inclusão limitada. Um exemplo claro do primeiro caso é a Argentina, uma
sociedade moderna e razoavelmente rica, com o sistema do bem-estar social bem desenvolvido, que foi
destruída ao longo dos anos, culminando em um quadro de desemprego generalizado, perda de benefícios
sociais e deslocamento de grandes setores da população para abaixo da linha de pobreza. Exemplos do
segundo tipo são os países andinos – Bolívia, Peru, Equador – nos quais, através dos séculos, a população
nativa foi mantida for a dos benefícios da economia moderna. Onde se situa o Brasil: próximo da Argentina ou
aos países andinos? A análise histórica e a evidência empírica sugerem a segunda hipótese.”
(SCHWARTZMAN, 2007, p. 31-32). Essas observações de Simon Schwartzman sobre o Brasil, embora com
lastros teóricos diversos, também se harmonizam com a ideia da “viagem redonda” de Raymundo Faoro.
71

Eles são os ruptores de poder, os diretores da hierarquia do governo. No


outro extremo do espectro, estão as legiões de burocratas de nível inferior e
servidores públicos. Esses homens e mulheres servem como o vínculo vital entre a
direção política do chefe de escritório e a entrega efetiva dos serviços66 (PICK, 2010,
p. 182, tradução nossa).

Como será visto, o estabelecimento de nortes administrativos, calcados a partir da


ideia governança e do planejamento administrativo, orienta a estruturação do Poder Público e,
naturalmente, cria empecilho ao preenchimento patrimonialista da máquina estatal, forjando
caminhos para a realização dos direitos fundamentais.
É oportuno, antes, estabelecer breves definições e delimitações teóricas acerca dos
objetivos da República e do patrimonialismo.

4.1 Objetivos da República. Orientações doutrinárias

Os objetivos da República são designados pela Constituição como princípios


fundamentais67, elencados entre os dispositivos estruturantes do Estado brasileiro.
Não obstante, existe discussão doutrinária sobre a essência do texto constitucional que
disciplinou essas diretrizes, ora tratadas como programa68, despidas de normatividade ou
ainda com a discussão, hoje questionada, acerca de sua eficácia limitada69; ora significando

66
Like any large organization, governments need a hierarchy of people to make policies and to implement them
on all levels: from top officials to street-level bureaucrats that deal directly with everyday citizen. [...]
They are the power brokers, the managing directors in the government hierarchy. At the other end of the
spectrum are the legions of lower-level bureaucrats and public servants. These men and women serve as the
vital link between the policy direction of heads office and the actual delivery of services.
67
Relativamente aos debates sobre a diferença entre regras e princípios, firma-se neste trabalho o ponto de vista
estabelecido por José Adércio Leite Sampaio, na obra Teoria da Constituição e dos Direitos Fundamentais, no
sentido de que “os ontológicos estão equivocados, embora não totalmente desprestigiados. A diferença entre
regra e princípio, dito este em sentido estrito para diferenciar dos velhos e clássicos princípios, é, até certo
ponto, arbitrária e contingente, produto de compreensões linguísticas prévias, mas não desnecessária na prática.
[...] é necessária, pois se concebermos uma norma como regra ou como princípio, haverá consequências
jurídicas e práticas a serem consideradas, ainda que por vício de repetição, tamanha a sua presença nos
discursos constitucionais.” (SAMPAIO, 2013, p. 405).
68
“Os constitucionalistas do positivismo, p. ex., haviam intentado separar com rigor o jurídico e o
programático.” (BONAVIDES, 2006, p. 244).
69
“As normas constitucionais de eficácia plena são as que receberam do constituinte normatividade suficiente à
sua incidência imediata. [...] Não necessitam de providência normativa ulterior para sua aplicação. [...] As
normas constitucionais de eficácia contida também receberam do constituinte normatividade suficiente para
reger os interesses de que cogitam. Mas preveem meios normativos (leis, conceitos genéricos etc.) não
destinados a desenvolver sua aplicabilidade, mas, ao contrário, permitindo limitações à sua eficácia e
aplicabilidade. [...] Normas de eficácia limitada, em geral, não receberam do constituinte normatividade
suficiente para sua aplicação, o qual deixou ao legislador ordinário a tarefa de completar a regulamentação da
matéria nelas traçada em princípio ou esquema. As de princípio institutivo encontram-se principalmente na
parte orgânica da constituição, enquanto as de princípio programático compõem os elementos socioideológicos
que caracterizam as cartas magnas contemporâneas. Todas elas possuem eficácia ab-rogativa da legislação
precedente incompatível e criam situações subjetivas simples e de interesse legítimo, bem como o direito
subjetivo negativo. Todas, enfim, geram situações subjetivas de vínculo. [...]
72

espécie de normas jurídicas de cunho teleológico que, imperativamente, produzem


comportamentos obrigatórios e efeitos vinculantes imediatos.
A doutrina de José Afonso da Silva pontua que “[...] só na aparência é que as
disposições do art. 3º têm sentido programático. São, em verdade, normas dirigentes ou
teleológicas, porque apontam fins positivos a serem alcançados pela aplicação de preceitos
[...]” (SILVA, 2006, p. 46), citando parcela do pensamento administrativista brasileiro, in
verbis:

[...] Bem o nota Carmen Lúcia Antunes da Rocha quando argutamente observa que
“todos os verbos utilizados na expressão normativa - construir, erradicar, reduzir,
promover – são de ação, vale dizer, designam um comportamento ativo. O que se
tem, pois, é que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são
definidos em termos de obrigações transformadoras do quadro social e político
retratado pelo constituinte na elaboração do texto constitucional.” (SILVA, 2006, p.
46).

Nesse contexto, defende-se a essência de norma jurídica principiológica 70 dos


objetivos da República, que exercem papel conformador da legislação e submetem
imediatamente os Poderes Executivo e Judiciário.
A administração pública deve agir, em todas as suas esferas, de modo compatível com
as diretrizes estruturantes do Estado, desenvolvendo atuação preferencial no enfrentamento do
patrimonialismo, cuja dinamitação é ligada aos objetivos da República.
Harmoniosamente, Gilberto Bercovici assevera que:

O art. 3º da CF faz parte dos princípios constitucionais fundamentais. A


característica teleológica destes princípios lhes confere relevância e função de

As normas programáticas, além da eficácia supramencionada, desempenham papel de relevo na ordem


jurídico-política do país. Condicionam a atividade dos órgãos do Poder Público. Indicam o sentido dos fins
sociais e do bem comum que devem guiar o intérprete e o aplicador do Direito.” (SILVA, 2015, p. 260).
70
Na esteira da compreensão dos princípios jurídicos como realidade da dimensão normativa constitucional,
conforme frisado anteriormente, adota-se a conceituação aberta de José Adércio Leite Sampaio: “[…] Embora
existam esforços de definição do critério diferenciador, é mais acertada a combinação de alguns deles […]: a)
o nome dado pelo legislador à norma não é suficiente para caracterizá-la como princípio ou regra. É mero
indicativo; b) a densidade semântica das regras, em geral, é bem maior do que a dos princípios; c) os
princípios têm mais diretamente apelo aos valores do que as regras, mas não são valores, nem podem ser
usados como se fossem; d) há princípios de caráter político e econômico, portanto, sem vínculos morais
diretos; e)a possibilidade de exceção expressa a um comando normativo dá a ele, com alguma margem de
segurança, o perfil de regra. Se a exceção for implícita, deveremos notar se se trata de algo verificável
abstratamente ou se depende do contexto de um caso real para identificar-se. Na primeira hipótese, outra vez a
probabilidade milita a favor das regras; no segundo, princípios; f) se não há exceção expressa ou implícita,
estamos muito provavelmente no domínio das regras; g) a defectibilidade ou superação de um princípio,
portanto, é bem mais constante do que ocorre com as regras; h) esse caráter defectível ou definitivo das
normas é muito mais produto da interpretação dominante ou o resultado dinâmico da práxis jurídica,
especialmente a jurisprudencial, do que algo pré-datadao pela estrutura ou qualidade normatica de cada uma
delas.” (SAMPAIO, 2013, p. 406-407).
73

princípios gerais de toda ordem jurídica. Os princípios constitucionais fundamentais


são, nas palavras de Paulo Bonavides, as “normas-chaves” do sistema jurídico [...]
Os princípios constitucionais fundamentais, como os do art. 3º, possuem caráter
obrigatório, com vinculação imperativa para todos os poderes públicos, ou seja,
conformam a legislação, a prática judicial e a atuação dos órgãos estatais, que devem
agir no sentido de concretizá-los. (BERCOVICI, 2005, p. 104-105).

Assim, os objetivos da República representam um dos alicerces normativos, de


natureza principiológica, para o reconhecimento, no atual período histórico brasileiro71, do
dever jurídico administrativo de atenção prioritária à higidez das formas de acesso a cargos,
empregos e funções públicas, por força do vínculo direto com a redução de ciclo específico de
pobreza consubstanciado no patrimonialismo.
Como será examinado, essas normas também positivam o caráter planejador da
Constituição de 1988, a evidenciar, noutra linha argumentativa, aspectos essenciais da raiz
normativa da governança e do planejamento administrativo.
A magnitude dos objetivos da República mostra ângulo administrativo de leitura da
Constituição, como forma de superar as barreiras patrimonialistas da Administração brasileira
que contribuem ainda hoje para o imobilismo nacional.

4.2 Patrimonialismo

A abordagem do patrimonialismo nesta pesquisa tem plasticidade que engloba a ideia


geral do Estado administrado como bem pessoal ou familiar e todas as nuanças relativas,
direta ou indiretamente, à confusão entre as esferas públicas e privadas, inclusive os
fenômenos inerentes ao clientelismo, assistencialismo, fisiologismo, filhotismo e
mandonismo72.

71
“Uma Teoria da Constituição para o nosso tempo deve assentar-se no sistema de valores fundamentais da
Constituição, partindo do pressuposto de que não são imutáveis.” (BARACHO, 1978, p. 47).
72
Clientelismo é o “tipo de relação política em que uma pessoa (o patrão) dá proteção a outra (o cliente) em
troca de apoio, estabelecendo-se um laço de submissão que, por um lado, não depende de relações de
parentesco e, por outro, não tem conotação jurídica.” (FERREIRA, 2010). “Entre políticos, costume que
consiste em favorecer uma clientela em troca de votos” (MICHAELIS, 2016).
Assistencialismo é a “prática que consiste numa pretensa assistência social às pessoas carentes da sociedade,
exercida por políticos, com o intuito de conseguir apoio eleitoral.” (MICHAELIS, 2016).
Fisiologismo é a “atitude ou prática (de políticos, funcionários públicos etc.) caracterizada pela busca de
ganhos ou vantagens pessoais, em lugar de ter em vista o interesse público.” (FERREIRA, 2010). É o “modo
de proceder e prática de alguns políticos e de certos servidores do Estado que buscam benefícios pessoais em
detrimento do interesse público.” (MICHAELIS, 2016).
Filhotismo, segundo Victor Nunes Leal, é verificado, frequentemente na prática municipal, quando o poder
econômico e político local “convoca muitos agregados da ´gamela´ municipal” e perfaz “a utilização do
dinheiro, dos bens e dos serviços do governo municipal nas batalhas eleitorais” (LEAL, 2014, p. 60).
Mandonismo, ainda na obra do ex-Ministro, seria a “[...] outra face do filhotismo [...] que se manifesta na
perseguição aos adversários: ‘para os amigos pão, para os inimigos pau’. As relações do chefe local com seu
74

Fixando-se o núcleo da dissertação no exame do acesso a cargos, empregos e funções


públicas à luz da governança e do planejamento administrativo, o interesse da abordagem
patrimonialista, neste item, restringe-se a sua relação próxima com a desorganização
administrativa brasileira, o empreguismo, a pobreza e o hipertrofiado simbolismo jurídico-
constitucional.
Nesse contexto, a insinceridade normativa brasileira adquire proporção elevada
quando contrastados os objetivos da República com o fenômeno patrimonialista, indicativo de
específico ciclo de pobreza nacional, como visto no item 4.1.
Os ensaios antropológicos e históricos dos retratos do Brasil atribuem, por razões
diversas, a forte presença da cultura patrimonialista73 em nosso meio, sendo retirado da
interpretação de Raymundo Faoro que “o instrumento de poder do estamento é o controle
patrimonialista do Estado, traduzido em um Estado centralizador e administrado em prol da
camada político-social que lhe infunde vida” (CAMPANTE, 2003, p. 154), fazendo com que
o País não tenha uma dinâmica ativa de classes sociais, por força do engessamento
estamental.
A imobilidade de classes sociais integra o aludido ciclo de pobreza e as evidências
extraídas da pesquisa de campo ratificam a tese de que o patrimonialismo brasileiro possui
direta ligação com a pobreza, sendo percebido mais intensamente nas regiões onde o piso vital
mínimo sofre abalos maiores, in verbis:

A aceitação social do patrimonialismo é muito grande. O caso mais extremo, no qual


alguém se utiliza de um cargo público como se fosse propriedade particular, é
tolerado por 17% da população brasileira! [...] No extremo oposto, na situação que
dá título a este capítulo (“cada um cuida do que é seu e o governo cuida do que é
público”), quase ¾ da população brasileira afirmam não considerar que o que é
público merece ser cuidado por todos. [...].
[...] a proporção dos que defendem um ponto de vista patrimonialista é maior no
Nordeste. Destaca-se a quarta pergunta (já que o governo não cuida do que é
público, então quem deve cuidar), em que o apoio ao patrimonialismo é mais de
duas vezes maior no Nordeste (30%) do que nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul
(14%, 14% e 12%, respectivamente). (ALMEIDA, 2007, p. 102-105).

adversário raramente são cordiais. O normal é a hostilidade. Além disso, como é óbvio, sistemática recusa de
favores, que os adversários, em regra geral, se sentiriam humilhados de pedir.” (LEAL, 2014, p. 60).
73
Na obra “A cabeça do brasileiro” realizou-se pesquisa de campo destinada à medição do patrimonialismo
brasileiro, inclusive com perguntas transversais/indiretas aos entrevistados: “No caso da “festa com som alto”
(letra e), procurou-se sintetizar a questão das regras de “boa vizinhança”. Do ponto de vista patrimonialista,
incomodar o vizinho como o som alto não é problema de quem dá a festa, mas um problema do vizinho. Tal
como no velho ditado “os incomodados que se mudem”. Para quem dá uma festa, o espaço público é
determinado pelo bem-estar dos vizinhos. Desconsiderar isso é tratar o público como se fosse privado. Talvez
isso explique por que os países mais antipatrimonialistas do mundo, os de tradição anglo-saxã, são tão
silenciosos.” (ALMEIDA, 2007, p. 100).
75

O patrimonialismo, enquanto ciclo de pobreza, é causa e efeito da permanência do


insatisfatório funcionamento da máquina estatal, escancarando, por meio da desgovernança,
as portas para o empreguismo e a corrupção74.
A higidez da formação da máquina pública, assim, é decisiva, porquanto avessa a ideia
de empreguismo, aqui compreendida como a distribuição de cargos, empregos, funções ou
parcerias/terceirizações com intuito distanciado da boa administração, assecuratória do status
quo deletério.
Daí porque indicam os estudos sobre o patrimonialismo a utilidade da “reforma do
aparelho do Estado que, a par de dignificar a condição de funcionário público, notadamente
remunerando-a adequadamente, assegurasse, ao mesmo tempo, a eliminação de toda espécie
de empreguismo” (PAIM et al, 2015, p. 34).
E o diálogo com a literatura também auxilia conclusão similar, conforme se extrai da
obra “A análise do patrimonialismo através da literatura latino-americana”, de Ricardo Vélez
Rodriguez.
Nesse ensaio, o autor examina o romance “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo,
perfazendo detecções históricas, políticas e sociológicas da epopeia do escritor gaúcho.
Por meio da narrativa de Érico Veríssimo, o Estado patrimonial, carregado de
autoritarismo, má gestão/incompetência e clientelismo, revela a nação de donos do poder:

O Estado Patrimonial, para Érico Veríssimo, prima pela sua incompetência. O que
depende dele não funciona. Se os fenômenos naturais fossem da alçada da
pachorrenta burocracia, haveria uma subversão no estado do tempo. Eis o que
afirmava um dos representantes da última geração dos Cambará, Floriano, numa
cena que se passa na Porto Alegre de 1945, ao observar, junto com o seu amigo
Roque Bandeira, o belo entardecer:
É uma sorte o pôr do sol não depender do governo e de nenhuma autarquia, porque,
se dependesse, o trabalho cairia nas garras de funcionários incompetentes e
desonestos, haveria negociata na compra do material, acabariam usando tintas
ordinárias... e nós não teríamos espetáculos como este. (VERÍSSIMO, Érico. O
Tempo e o Vento III, Ob. Cit., p. 699).
Ao lado da incompetência, o Estado patrimonial caracteriza-se pelo clientelismo e
por uma estrutura familística e anárquica. Não há espaço público. É tudo uma
emanação da Casa Grande dos poderosos. As instituições pouco importam. Império
ou República, tudo depende das pessoas que mandam, dos Donos do Poder.
(VÉLEZ RODRIGUEZ, 2008, p. 216).

A par das críticas acadêmicas e literárias, a considerável aceitação social evidencia

74
“Patrimonialismo e corrupção são idéias afins, e isso significa que quanto mais alguém acha correto e defende
valores patrimonialistas, mais tenderá a ser tolerante com a corrupção e práticas correlatas. Nesse sentido, os
dados da PESB permitem concluir que essa tolerância é realmente maior entre aqueles de escolaridade mais
baixa; que a população do Nordeste convive melhor com a corrupção do que os habitantes da região Sul... [...]
Que tipo de pressão sofre um político eleito em grande parte por pessoas que formam aqueles 17% que
consideram correto usar um cargo público em seu próprio benefício?” (ALMEIDA, 2007, p. 109).
76

não se tratar o patrimonialismo de manifestação cultural ou modo de agir restrito a gestores


dos recursos públicos, como o senso comum poderia simplificar, diante do momento atual de
repulsa a agentes políticos brasileiros:

[...] autores da importância de Sérgio Buarque de Holanda e Roberto DaMatta


identificam o caráter antiliberal da sociedade brasileira. O primeiro aponta que no
Brasil uma ética personalista, intimista, afetiva e sentimentalista sobrepuja sua
inimiga liberal: a ética impessoal, racional e eficaz; o segundo chama atenção para o
fato de que muitas vezes “a casa” engloba “a rua”.
A rua é o ambiente público – na maioria das vezes, inóspito, autoritário e desolador.
A casa é o ambiente privado do sentimento, do afeto da família e do que é pessoal.
A rua é o espaço público de regras impessoais e a casa, o espaço privado do
particularismo. Toda vez que a casa engloba a rua, a consequência é a utilização
privada do que é público.” (ALMEIDA, 2007, p. 98).

O desafio do combate ao caráter patrimonialista, portanto, decorre da sua própria


complexidade e imbricamento no seio comunitário brasileiro75.
As repercussões na Administração Pública desse fenômeno, examinado em parte nesta
dissertação, é apenas um ângulo76 do patrimonialismo, mas que já é capaz de mostrar a

75
Roberto DaMatta, em artigo publicado no dia 23 de agosto de 2017, nos jornais Estado de São Paulo e O
Globo, exemplifica faceta patrimonialista brasileira, valendo-se da repercussão ocasionada por decisão em
habeas corpus do Ministro Gilmar Mendes, que dias antes desconstituíra a prisão cautelar de empresário
ligado a concessionárias de transporte público no estado do Rio de Janeiro, detido no aeroporto do Galeão
quando rumava para Portugal apenas com passagem de ida:
“[...] O ministro do STF Gilmar Mendes faz uma pergunta capital: “Você acha que ser padrinho de casamento
impede alguém de julgar um caso?”
O uso e o abuso dos elos pessoais no campo formal são o nosso problema central. Como mostro na minha
obra, há um dilema entre muitas leis e pouca reflexão sociológica sobre o peso de uma ética da casa que é
levada para o mundo impessoal da rua. Não é minha intenção julgar ou denunciar um julgador, mas ampliar,
nos limites de um texto jornalístico, um problema central da sociologia de países que, como o Brasil, têm
tentado adotar a agenda ideológica da democracia liberal.
A questão do ministro nos abre para as ambiguidades do “você sabe com quem está falando?” e do “jeitinho”.
Se você responder com um “não”, você presume que o juiz vai englobar — subtraindo — o padrinho. Mas se
você ouvir sua mulher, parentes e amigos e, mais do que isso, rememorar sua biografia, você vai verificar que
o “não” é muito complicado.
Num sistema relacional — uma estrutura na qual as relações são mais importantes do que os atores — o juiz
solta o indiciado que é muito mais afilhado do que um cidadão sujeito da lei. Não é fácil ficar com a lei numa
terra onde a lei é para inimigos; num sistema no qual se resiste a tudo, menos ao pedido de um amigo; e amor
com amor se paga!
Como indivíduos-cidadãos, somos todos sujeitos da lei, mas os laços com certas pessoas relativizam o estatuto
político-legal, fazendo com que a lei universal — essa clave mestra da democracia — torne-se um estorvo e
seja ignorada, reprimida ou arrogantemente aviltada. [...]
A pergunta do ministro é sintomática da ausência de uma ética pública. Valer dizer: de uma “ética política”
porque é justo no mundo público que surgem os becos pelas quais escapolem legalmente compadres, parentes,
correligionários e amigos.” (DaMATTA, 2017).
76
Distancia-se dos objetivos da presente dissertação o aprofundamento dos conceitos sociológicos de Estado
Patrimonial trazidos por Max Weber e Karl Wittfogel acerca desse fenômeno. Cabe registrar brevemente que
“Max Weber entende o Estado como ‘uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso
legítimo da força dentro de um determinado território’. [...] Weber distingue três tipos puros de dominação
legítima [...] a racional, a tradicional e a legítima. [...] No seio da dominação tradicional, Weber distinguiu dois
tipos básicos: o patrimonialismo e o feudalismo. [...] O patrimonialismo é caracterizado por Weber como
aquela forma de dominação tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu
77

necessidade de ressignificação de paradigmas administrativos na busca pelo Direito


realizável, capaz de romper as algemas do simbolismo estéril.
Nesse ponto, adquire relevo a abordagem da governança e do planejamento
administrativo, elementos centrais desta pesquisa que tende a questionar se o acesso a cargos,
empregos e funções públicas submete-se, com amparo na ordem constitucional, a essas
diretrizes.

poder doméstico. Ao lado da organização do poder político, segundo o modelo doméstico, é igualmente
essencial ao patrimonialismo a estruturação do quadro administrativo, por intermédio do qual se exerce a
dominação.” (VÉLEZ RODRÍGUEZ, 2006, p. 11-13).
“Se o arbítrio predomina, o patrimonialismo aproxima-se do que Weber classificou de patrimonialismo
sultanista, ou patriarcal, ou puro. Se prevalece a tradição, o patrimonialismo tende a transformar-se em
patrimonialismo estamental ou descentralizado, no qual as relações entre o príncipe e o corpo administrativo
são mais estáveis e equalizadas. Para Weber, cada forma de dominação engendra tensões e conflitos
específicos na luta pelo poder. O equilíbrio tenso e instável entre tradição e arbítrio e entre governantes
centralizadores e quadro administrativo descentralizador é característico dos tipos de dominação tradicional –
patrimonialismo e feudalismo. [...]” (CAMPANTE, 2003, p. 157).
79

5 GOVERNANÇA

Este capítulo subdivide-se em três itens que procuram expor a complexa temática da
governança e delimitar a sua dimensão normativa, que especialmente interessa à presente
pesquisa.
Para tanto, há o estudo dos modelos de Administração Pública, da polissemia de
governança, o exame desse conceito nas esferas privada e pública e, finalmente, a exposição
dos argumentos que atribuem a essência de norma jurídica.

5.1 Administração Pública e as concepções polissêmicas de governança

Muitas são as formas da administração pública e plurais os conceitos de governança


hoje discutidos, a revelarem um dos árduos aspectos envolvendo o debate e a identificação do
direito à governança na ordem jurídica brasileira77.
Quando se lança o olhar sobre o modelo chinês78 de administração pública conclusões
distintas necessariamente decorrem do cotejo com o modelo norte-americano79 ou o padrão
nórdico80 de gerir a máquina estatal. Os três exemplos indicam a inequívoca confirmação de

77
Definir administração pública é tarefa complexa: “[…] Moreira Neto (1992, p. 81) conceitua administração
pública como “[...] o conjunto de atividades preponderantemente executórias, praticadas por pessoas jurídicas
de direito público ou por suas delegatárias, gerindo recursos total ou parcialmente públicos, na prossecução
dos interesses legalmente cometidos ao Estado”. A função administrativa, examinada como uma das atividades
estatais ou funções do Estado, traz em si pluralidade de nuanças, podendo ser estudada sob o prisma subjetivo
ou organizacional e, ainda, sob o ângulo objetivo ou funcional. A diversidade de matizes faz com que, por
vezes, utilize-se a denominada caracterização residual da administração pública: o “[...] conjunto de atividades
que não se enquadram na legislação, nem na jurisdição” (MEDAUAR, 1999, p. 47), não obstante “haver
incontestável unidade sistêmica entre as vertentes conceituais, inexistindo antagonismos, sim
complementações.” (COUTINHO, 2006, p. 496).
Cabe o registro introdutório de que, enquanto a ideia de administração pública (burocrática ou gerencial)
indica a estrutura administrativa eleita em determinada sociedade, o sentido de governança que mais interessa
à presente pesquisa adequa-se à noção de boa administração, consubstanciada em feixe de princípios jurídicos
que envolvem a operacionalização ou o agir estatal propriamente dito. São noções, embora formalmente
distintas, umbilicalmente vinculadas.
78
“[…] irretorquível que o “modelo chines” de autoritarismo centralizador, ainda que possa conduzir, anos
consecutivos, ao crecimento do PIB, alcança resultados pífios em termos de consistência intertemporal das
políticas públicas. Basta o partido definir que tenham de ser financiados determinados empreendimentos e os
bancos estatais perigosamente cedem. Logo apesar de o modelo produzir números vistosos (liderança mundial
em comércio) o faz à expensas do sacrifício da prudência. Em dado momento, semelhante modelo carecerá de
instituições do Estado de Direito, da segurança social e dos impostergáveis cuidados ambientais. Quer dizer, o
exemplo chinês de planejamento de cima para baixo, longe está de ser o ideal, pois adstrito a compromissos
sectários e a compadrios desviantes, com alta probabilidade de deslegitimação.” (FREITAS, 2014, p. 11).
79
“[…] o “modelo americano” de gestão (a despeito de seus méritos em tentativas de controle dos net benefits)
tem sido fiscalmente irresponsável e avesso à poupança, capturado por políticos de vista curta. Por isto,
também funciona mal, mercê de incentivos distorcidos, colapsos financeiros periódicos e crescente iniquidade,
com altíssimos custos associados.” (FREITAS, 2014, p. 11).
80
“[…] o modelo nórdico, à primeira vista, parece superior, mas é de improvável exportação. Desse modo, a
saída parece estar em combinar virtudes de vários modelos e selecionar as melhores características, com o
80

que existem múltiplas concepções de governança imbricadas nas diversas formas de


administração pública espalhadas pelo mundo, sem perder de vista que sempre precisará haver
uma governança eleita, ainda que o fenômeno da globalização traga reflexos profundos no
tema.
Nesse contexto, a presente dissertação delimita o estudo da governança ao Brasil do
século XXI, cotejado com a dimensão apresentada pela Constituição de 1988, cujo texto
normativo, segundo interpretação majoritária, caminha na transição da administração pública
burocrática para o modelo gerencial, daí fluindo as percepções sobre a governança brasileira.
O problema de difícil solução, como já detectado no capítulo dos retratos do Brasil, é
que sequer foram vivenciadas internamente, no seio comunitário nacional, as condições
responsáveis pela gestação da ideia weberiana de administração burocrática e até mesmo do
positivismo filosófico ou jurídico.
As importações teóricas não tiveram sincronia com a realidade social e a sucessão dos
modelos não se deu conforme os moldes, persistindo no Brasil, atualmente, largos traços de
administração patrimonial em meio a concepções burocráticas, gerenciais e dialógicas. Essas
situações particulares do País representam desafio considerável não apenas no campo do
Direito, mas também em outras searas que se propõem a discutir a por si só complexa noção
governança.
Antes do ingresso no tema central deste capítulo, é oportuna breve nota sobre os
paradigmas da administração pública, o seu estado da arte hoje reconhecido e as relações
umbilicais com a governança.
O estudo da administração pública apresenta classificação tripartite das formas
históricas de administração (COSTIN, 2010, p. 31), indicativas da sua linha evolutiva: a)
administração patrimonialista 81 ; b) administração pública burocrática e c) administração
pública gerencial ou pós-burocrática.
A administração patrimonialista foi objeto de reflexões tanto no estudo dos retratos do
Brasil quanto no capítulo que abordou os objetivos da República. Como visto, o
patrimonialismo ainda é deletério ciclo de pobreza nacional, demandando, por imperativo
constitucional, o prioritário dever estatal de enfrentamento estratégico pelo Estado.
O modelo patrimonialista é característico do Estado absolutista, em que o patrimônio

sincretismo inteligente e adaptativo, isento de cegueiras ideológicas.” (FREITAS, 2014, p. 12).


81
“Segundo Bresser-Pereira (1998, p. 20-22), há três formas de administrar o Estado: a administração
patrimonialista, a administração pública burocrática e a administração pública gerencial, que outros autores
chamam de pós-burocrática. O autor tira o qualificativo de pública da administração patrimonialista, pois esta
não visaria o interesse público.” (COSTIN, 2010, p. 31).
81

real confundia-se com os bens públicos:

A administração patrimonialista era o modelo de administração própria das


monarquias absolutas, em que o patrimônio do rei se confundia com o patrimônio
público. O estado não era apenas o rei, como no célebre dito atribuído a Luís XIV. O
Estado era considerado propriedade do rei. O Tesouro Real seria o tesouro público,
numa clara confusão de público e privado. Uma visão religiosa do exercício da
autoridade real associava o rei, investido de poder pela providência divina, à
imagem de protetor e proprietário de seus súditos que deveriam lealdade a ele, não a
nação. O regicídio, ou qualquer ameaça ao poder do rei, seria, nesse contexto um
sacrilégio. (COSTIN, 2010, p. 31).

Mas não é só. Como visto no item 4.2 desta dissertação, a administração
patrimonialista não é restrita ao modelo que vigorava no Antigo Regime, dele extraindo-se a
gênese do patrimonialismo contemporâneo, também designado de neopatrimonialismo,
compreendido como a forma de “dominação política tradicional em que não há uma separação
visível entre as esferas pública e privada, em que esses dois domínios se misturam na
concepção do governante [...]” (TORRES, 2013, p. 144).
Justamente por isso, reconhece-se que “essa forma de administração transpôs-se, com
algumas modificações, a outros contextos” (COSTIN, 2010, p. 31):

Associou-se, nas democracias representativas incipientes, ao clientelismo e ao


fisiologismo, mas com o seu amadurecimento, mostrou-se incompatível com a
lógica e as demandas de uma sociedade civil estruturada, urbana e uma economia de
mercado. [...] esse modelo de administração não convive com a sociedade industrial
moderna [...]” (COSTIN, 2010, p. 31).

Mais uma vez, retorna-se aos retratos do Brasil, na figura de Raymundo Faoro, cuja
“viagem redonda”, consubstanciada numa rota sem mudanças, transmite a ideia de que “toda
nossa trajetória, desde o descobrimento, é uma história marcada pela forte presença do
Estado, controlado e espoliado por uma elite denominada pelo autor estamento burocrático
[...]” (TORRES, 2013, p. 144). 82 O pacto entre os proprietários de terra, líderes da

82
Em sentido harmonioso, tem-se que “A situação indivisa, e desejosamente criada, de promiscuidade entre o
público e o privado, amalgamada numa esteira centralizadora, faz com que a administração pública
patrimonial arvore seus odioso resultados na atividade administrativa em detrimento justamente do interesse
que deveria preservar: o público.
Tal tipo de administração pública ainda é observado em muitos municípios brasileiros, especialmente naqueles,
encravados nos mais diversos rincões do nosso vasto território que, apesar de toda evolução normativa sobre
gestão pública e dos imperativos constitucionais contrapostos, permanecem submersos numa névoa de valores
coloniais de subordinação da coisa pública à autoridade senhorial.
[...] o patrimonialismo brasileiro remonta ao anacrônico sistema português de gestão pública, calcada na força
centralizadora e ablativa das medidas tomadas pelos seus administradores, geralmente dotados de propósitos
meramente egoísticos ou simplesmente autocráticos.
Ora, a perspectiva patrimonial de administração pública, calcada nos parâmetros meramente pessoais da
autoridade senhorial e manifestamente corporificada numa atuação legal desprovida de qualquer racionalidade
82

jagunçagem e jagunços como alegoria do simbolismo hipertrófico do contrato social, em


Grande Sertão: Veredas, permanece atual, sob a concepção do País que funciona na esteira do
acordo entre chefes, trazendo limitações palpáveis ao desenvolvimento83.
A governança, entendida como núcleo do direito fundamental à boa administração
(VALLE, 2011), dever jurídico estatal, técnica de administração, práticas de gestão
(MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 30) ou em quaisquer de seus inúmeros matizes que serão
examinados, resta intensamente prejudicada no contexto patrimonialista, apresentando-se ora
como obstáculo aos fins privados pretendidos pela administração, ora como dever distanciado
das preocupações imediatas dos donos do poder: abre-se o espaço para a vulgarização da
insinceridade normativa da Constituição, em perigosa fonte de descrença da ordem jurídica
brasileira.
Em seguida à administração patrimonialista, didaticamente, apresenta-se a segunda
forma histórica, denominada de administração pública burocrática, vigente no Brasil a partir
da Revolução de 1930, que pôs fim à República Velha.84
O modelo burocrático, vantajoso em relação aos paradigmas de dominação política
patrimonialista e carismática, é associado “ao tipo ideal de dominação racional-legal de Max
Weber” (COSTIN, 2010, p. 31-32).
Nele se almeja, por lei e regulamentos exaustivos, moldar e disciplinar a conduta do
servidor público por meio do formalismo, da impessoalidade, da hierarquização, da
especialização e do rígido controle de meios (procedimentos).
Assim, “a exigência de regras abstratas e universalistas aplicáveis a todos os
cidadãos”, as relações verticalizadas de autoridade fomentadas pela hierarquização
administrativa, o expansionismo de normas da disciplina administrativa, a ideia de

administrativa, apenas representa a manutenção de um regime comprometido com a crueza da superposição


social de classes e dos seus propósitos...[...]” (LIMA, 2013, p. 79-80).
83
Gilberto Bercovici faz interessante distinção entre desenvolvimento e modernização, sendo o primeiro “um
fenômeno com dimensão histórica: cada economia enfrenta problemas que lhe são específicos [...] a passagem
do subdesenvolvimento para o desenvolvimento só pode ocorrer em processo de ruptura com o sistema,
interna e exteriormente [...] o desenvolvimento só pode ocorrer com a transformação das estruturas sociais.
Quando não ocorre nenhuma transformação, seja social, seja no sistema produtivo, não se está diante de um
processo de desenvolvimento, mas de simples modernização. Com a modernização, mantém-se o
subdesenvolvimento, agravando a concentração de renda. Ocorre assimilação do progresso técnico das
sociedades desenvolvidas, mas limitada ao estilo de vida e aos padrões de consumo de uma minoria
privilegiada.” (BERCOVICI, 2005, p. 52-53).
84
“[...] a partir do primeiro governo de Vargas, o ethos patrimonial passa a dividir os espaços e a cultura da
administração pública com o modelo burocrático, que começa lentamente a ser implantado no Brasil. Um
processo histórico de expansão quantitativa e qualitativa da administração pública e privada, exigida pelo
desenvolvimento do capitalismo, irá relativizar a total supremacia da administração patrimonial no Brasil, que
se mostra em descompasso com os novos avanços tecnológicos e institucionais que o capitalismo promove e
potencializa.” (TORRES, 2013, p. 146).
83

especialização do corpo técnico de servidores e o controle interno85 são frutos da concepção


burocrática de administração pública (TORRES, 2013, p. 20-21).
86
O paradigma burocrático representou inegável avanço comparado ao
patrimonialismo, não sendo errado afirmar que, ainda hoje, a administração pública
prestacional eficiente pode se valer de princípios burocráticos acrescidos de outras dimensões
normativas contemporâneas.
Aliás, algumas normas jurídicas que corporificam princípios de governança inseridos
na administração pública burocrática estão expressamente previstas no art. 37, caput, da
Constituição de 1988, como é o caso da impessoalidade administrativa. Ou seja, a governança
brasileira tem na impessoalidade um norte, nos termos da dimensão normativa constitucional.
Isso não significa, à toda evidência, que a ideia de governança apresenta-se exaurida
por meio da realização desses paradigmas, que já eram insuficientes para responder às
exigências do Estado social do século passado, quanto mais da sociedade pós-industrial e do
mundo globalizado atual:

Enquanto o Estado desempenhava um papel restrito a pouco mais que a proteção de


contratos, segurança interna e externa da população e arbitragem de seus conflitos,
esse modelo de administração pública pareceu ser suficiente [...] A complexidade
das novas tarefas atribuídas ao poder público no Estado Social - como a prestação de
diversos serviços públicos, como educação e saúde, a regulação de atividades
passíveis de externalidades, como a vigilância sanitária, a proteção do meio
ambiente, as diferentes políticas sociais voltadas ao combate às desigualdades –
tornou indispensável a ideia da eficiência da máquina pública, a qual, para tanto,
deveria levar em conta seus custos, ter uma administração menos hierárquica e mais
flexível e, sobretudo, buscar a melhoria da qualidade dos serviços prestados ao
cidadão. (COSTIN, 2010, p. 33).

85
“A relação entre burocracia e controle é intensa e conhecida: níveis mais elevados e sofisticados de controle
exigem, quase automaticamente, maiores e melhores estruturas burocráticas. As empresas conhecem bem esta
relação e, no entanto, mecanismos de controle são cada vez mais adotados e sofisticados no mundo corporativo.
Nitidamente, se os mecanismos de controle continuam sendo utilizados e desenvolvidos, é porque a relação
custo/benefício aponta no sentido de que vale a pena criar e custear essas estruturas e estabelecer esses
procedimentos burocráticos. Sem dúvida, essa estrutura burocrática de controle propicia conhecimentos vitais
sobre a composição, o modo de funcionamento, o gerenciamento de estoques e os processos organizacionais
internos das corporações.” (TORRES, 2013, p. 21).
86
“A noção pejorativa de burocracia, que é a mais difundida na sociedade, associa esse modelo [...] à hipertrofia
de estruturas administrativas, ou à superposição de uma série de etapas desnecessárias ao longo da execução
de um processo ou procedimento administrativo. Por esse prisma, burocracia é entendida como sinônimo de
uma estrutura essencialmente descartável, ineficiente e onerosa, pois absorve recursos financeiros e humanos
que seriam mais bem empregados em áreas produtivas e finalísticas, tanto nas empresas quanto na
administração pública.
Especialmente na ciência política, o conceito de burocracia também está ligado à noção de oligarquização e
caráter antidemocrático. Um dos estudos mais contundentes sobre a oligarquização das organizações políticas
foi feito por Robert Michels, no princípio do século XX. Em seu trabalho, o autor analisa um longo processo
de oligarquização e profissionalização dos quadros dirigentes dos partidos socialistas. Quase invariavelmente,
esse processo leva ao afastamento e ao distanciamento da cúpula em relação às bases dessas organizações,
subsidiando a clássica formulação micheliana da lei de bronze das oligarquias.” (TORRES, 2013, p. 16).
84

A inúmeros princípios derivados da dominação racional-legal, como a legalidade e a


impessoalidade, outras diretrizes atualmente reconhecidas são agregadas, não havendo,
portanto, barreiras estanques na divisão tripartite das formas históricas da administração
pública. Assim, a interseção ou mesmo a confusão de modelos ocorre no espectro burocrático,
gerencial e, com grande lesividade à coisa pública, no ângulo patrimonialista também.
Retornando à aludida classificação, tem-se que a terceira forma histórica de
administração pública, espelhando o modelo contemporâneo, é apresentada pela doutrina
como a administração gerencial.
Não se desconhece a existência de vozes que sustentam outros modelos supervenientes
ao gerencial, como a administração pública dialógica87, decorrente da teoria discursiva do
direito de Habermas, mas, na esteira do marco teórico desenvolvido nesta dissertação,
enxerga-se o especial procedimentalismo habermasiano apenas como uma das dimensões
normativas extraídas da Constituição de 1988.
Também são mencionados os modelos de Estado propulsivo e de Estado incitador88,
baseados na ideia de novos atores e na quebra do monopólio estatal da esfera pública.

87
Registra-se, segundo a defesa do modelo dialógico, que “A administração pública dialógica se caracteriza,
primordialmente, por: a) empreender uma concepção democrática da função administrativa nos seus mais
diversos segmentos; b) fomentar o emprego da consensualidade no trato das matérias ou questões públicas; c)
destacar a politização do cidadão com vista a participar efetivamente na formação da decisão estatal; e d)
trabalhar relações talhadas, sempre que possível, na reciprocidade comunicativa. [...] A administração pública
dialógica, portanto, encerra os esteios de um paradigma dialógico do direito, baseado na teoria do discurso
capaz de romper “a tensão entre uma prática dogmática do direito e os ideais do Estado constitucional e
democrático de direito institucionalizado” [...] Jürgen Habermas sintetiza a teoria do discurso na validade das
normas de ação em que concordariam, na qualidade de participantes de discursos racionais, os cidadãos
possivelmente afetados por elas [...] donde ressai, tranquilamente, a dimensão dialógica da teoria discursiva
habermasiana. Não há como negar que a teoria do discurso fortalece a democracia participativa e prestigia a
legitimidade, uma vez que permite um alargamento do canal de comunicação que envolve o Estado e a
sociedade, tudo sob o signo do agir comunicativo entre os promovedores da ação comunicativa, de maneira a
resultar num consenso resultante e validado pelo procedimento pautado pela dialogia.”. (LIMA, 2013, p. 99-
111).
Estabelece o referido autor a compreensão de que apenas a administração dialógica promoveria a gestão
pública efetivamente democrática, caracterizando-se o modelo patrimonial pela gestão autocrática, o modelo
burocrático pela gestão tecnocrática e o gerencial por modelo de gestão teleocrática, vinculada à eficiente
enquanto a atuação funcional na administração dialógica seria associada, antes, ao consensualidade. (LIMA,
2013. p. 111).
A administração obediente ao desenho constitucional de 1988 buscará o consenso e a participação plural de
atores, sem dicotomias com o dever estatal de submissão à eficiência administrativa. Na esteira do diálogo
entre as fontes do Direito, não há supremacia ou via única dialógica dentro da gama multidimensional de
vetores da boa administração.
88
“[…] um Estado propulsor […] leva em conta outros sistemas sociais autônomos por ele orientados à atuação
num sentido definido como harmônico com o interesse geral (MORAND, 1999, p. 71). Parcerias e consenso
são as novas palavras de ordem, numa esfera pública habitada por múltiplos atores, finalmente reconhecidos
como interlocutores necessários. […]
Finalmente, é possível falar num Estado incitador, orientado pelo intuito de influenciar – como o Estado
propulsivo -, mas por meios mais persuasórios, a partir de estratégias, como a máxima abertura à informação, a
difusão de conhecimentos e outras técnicas dirigidas a exercer ascend6encia sobre os comportamentos.”
(VALLE, 2011, p. 89-90).
85

As características dialógica, propulsiva e incitadora são ângulos importantes do Estado


Democrático de Direito, todavia não se apresentam como núcleo do sistema jurídico nacional
de modo a renomear o modelo hoje concebido de administração pública.
O modelo gerencial nasce no ambiente internacional de crise do welfare state e da
burocracia da administração pública, sendo alvo de ataques que, ideológicos, vislumbram o
risco neoliberal de extermínio de direitos sociais (ANDREWS; KOUZMIN, 1998).
Há falta de temperamento nesta visão crítica, contudo, por desconexão com a esfera
normativa brasileira:

A Reforma Gerencial surge como consequência administrativa da consolidação do


Estado Social e ao mesmo tempo como instrumento e fator fundamental de sua
legitimação. O Estado Social só pôde ser pensado e em seguida estabelecido porque
a administração pública burocrática proporcionava um mínimo de eficiência que o
tornava economicamente viável. […] Temos, assim, entre o Estado Social e a
Reforma Gerencial uma relação dialética: a constituição de um Estado que também é
chamado de Estado do Bem-Estar, ao implicar um grande aumento da organização
estatal, exige que sua gestão seja mais eficiente; por sua vez, a Reforma Gerencial
resultante, ao contribuir para essa maior eficiência ou redução de custos, tem um
papel importante na legitimação das ações do Estado, visando oferecer serviços de
consumo coletivo que, por sua natureza, são mais igualitários do que os serviços
pagos individualmente pelos atendidos. (BRESSER-PEREIRA, 2010, p. 114 e 116).

Assim, o afastamento da administração burocrática89 e a encampação de métodos


gerenciais longe estão de impor um capitalismo anárquico ou mesmo a busca pelo fim dos
denominados direitos de segunda geração ou dimensão. Ao revés, dialoga-se,
harmoniosamente, com o ordenamento jurídico nacional, ao priorizar o foco no cidadão como
finalidade estatal:

A administração pública moderna, assinala Kettl (2005), de cujo enfoque se vale a


administração gerencial para priorizar o atendimento às necessidades do cidadão,
deve levar em consideração a avaliação de desempenho do aparelho do Estado, pois
criando-se incentivo à eficiência, o resultado precisa obrigatoriamente ser aferido,
como forma de servir de orientação às decisões político-administrativas e de se
criarem alternativas para o “cidadão-consumidor”. [...]
O modelo gerencial da administração pública, em geral, pode ser
representado por dois pilares fundamentais: a fixação de objetivos e a realização de

89
“É interessante observar que, a despeito de entusiasmos ou exageros iniciais, a reforma da gestão pública, na
maioria dos países, teve uma lógica de preservação de traços importantes da administração burocrática, tais
como: carreiras estruturadas e com exigência de concursos públicos para atividades de policiamento,
fiscalização, regulação e coordenação de políticas públicas; exigência de procedimentos estruturados,
incluindo licitações e tomadas formais de preços para compras governamentais e contratação de obras e
serviços; procedimentos previstos em leis e regulamentos para elaboração, movimentação e arquivamento de
documentos oficiais; mecanismos de proteção do servidor público contra perseguições políticas; estruturas de
controle interno e externo (que continuam a verificar inclusive adequação a procedimentos estabelecidos),
mesmo na presença de uma sociedade vigilante e de contratação de empresas de auditoria.” (COSTIN, 2010, p.
35).
86

avaliação. Ressalta-se que decorre da fixação de objetivos a realização do


planejamento estratégico, a descentralização administrativa e a delegação de
autoridade. No fundamento avaliação, há necessidade de se considerarem os
conceitos de eficiência, eficácia e efetividade. (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 88-
89).

Na ordem constitucional brasileira, a centralidade do princípio da dignidade da pessoa


humana e o fato de o modelo gerencial atender às necessidades do cidadão por meio da
administração pública eficiente, mostram-se compatíveis com os postulados democráticos da
administração promotora do enfraquecimento da crise de racionalidade hoje detectada, “que
adviria da intervenção mediante políticas públicas mal planejadas e ineficazes - e da crise de
legitimidade – decorrente da insatisfação popular e de políticas públicas que não logram
satisfazer os interesses” comunitários (BENTO, 2003, p. 144).
A administração pública gerencial, caracterizada pela gestão e controle de resultados;
maior autonomia do administrador; planejamento; incentivos ao desempenho do servidor;
descentralização; menor verticalização hierárquica; a criação de figuras como as parcerias
público-privadas; Organizações de Terceiro Setor (OTS) para atuação conjunta com o poder
público (COSTIN, 2010, p. 34-35) e a chamada de novos atores, possibilita chance de
satisfação dos direitos sociais na hipercomplexa sociedade pós-industrial, com o incentivo à
participação de novos atores.
No Brasil, o modelo gerencial, ao ser normatizado, transportado para o Direito
Administrativo, padece de lacunas pela omissão de elementos paradigmáticos que lhe são
característicos: fala-se em controle de resultado (eficiência administrativa), mas se omite o
antecedente lógico, consubstanciado no dever do planejamento estratégico.
Tal fenômeno é detectável no exame das funções administrativas do Estado, em que
são reconhecidos o poder de polícia; o poder de editar regras, da produção de decisões e
promoção da execução da lei; o serviço público (a função prestacional); o controle; o fomento
estatal e a regulação (KLEIN; NETO, 2014), mas não se identifica a função administrativa
vinculada à governança e, mais especificamente, ao seu ângulo de planejamento, que antecede
teoricamente as demais. Essas circunstâncias evidenciam o Direito Administrativo
hipertroficamente simbólico e menos permeável à democracia e à almejada eficiência.
A noção de governança, como se percebe no presente capítulo, sofre direta influência
do texto constitucional e das conjunturas sociais, políticas, econômicas, nacionais,
internacionais, públicas e privadas nesta primeira metade do século XXI, sendo a diversidade
de compreensão proporcional às formas da Administração Pública reconhecidas.
Governança é palavra polissêmica, sendo empregada no contexto da iniciativa privada
87

e do Terceiro Setor, como governança corporativa; ora como matéria pertinente às relações
internacionais, partindo de sua dimensão política90; no âmbito público interno, nas dimensões
da accountability91, de técnica de gestão, de processo complexo de tomada de decisão, de
práticas do Estado mínimo92, do New Public Mangement (NPM)93, da boa governança94, da
governança como sistema sociocibernético95, do conjunto de redes organizadas, em que o
Estado é um dos atores no sistema mundial96 (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114), ou, ainda,
na essência normativa do direito fundamental à boa administração ou boa governança, no
Estado Democrático (VALLE, 2011; FREITAS, 2014; RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ,
2012), sendo esta última um dos objetos da presente dissertação.
Nos estudos sobre o tema, trabalhos do Banco Mundial também ressaltam a amplitude
conceitual de governança, com largo conteúdo político, econômico e jurídico:

[...] em 1992 [...] o traduziu como ‘a maneira pela qual o poder é exercido na
administração dos recursos sociais e econômicos de uma país, visando ao
desenvolvimento’ (THE WORLD BANK, 1992, p. 14). É da mesma agência
internacional a afirmação de que o conceito envolve três distintos aspectos, a saber:
1. A forma de que se reveste o regime político; 2. o processo pelo qual a autoridade
é exercida na gestão dos recursos econômicos e sociais de um país, rumo ao próprio

90
“Um dos sérios problemas da análise científica é a imprecisão dos conceitos. Com a palavra governança
parece estar acontecendo um movimento de uso amplo da expressão, sem que sua utilização esteja cercada do
cuidado analítico que requer. É preciso, portanto, precisar o seu significado no contexto em que é aplicado.
Além disso, vale a pena destacar que governança tem aplicação em variados campos, com sentidos diferentes.
[...] Busca-se aqui estudar a governança como um problema das relações internacionais, partindo de sua
dimensão política, e buscando identificar a sua importância para o Direito Internacional.” (GONÇALVES,
2006).
91
“O termo accountability pode ser aceito como o conjunto de mecanismos e procedimentos que levam aos
decisores governamentais a prestar contas dos resultados de suas ações, garantindo-se maior transparência e a
exposição pública das políticas públicas. Quanto maior a possibilidade de os cidadãos poderem discernir se os
governantes estão agindo em função do interesse da coletividade e sancioná-los apropriadamente, mais
“accountable” é um governo. Trata-se de um conceito fortemente relacionado ao universo político
administrativo anglo-saxão.” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 25).
92
“[...] baseado na necessidade da redução dos déficits públicos [...] refere-se a uma nova forma de intervenção
pública e ao papel dos mercados na produção dos serviços públicos (STOCKER, 1995);” (MATIAS-
PEREIRA, 2010, p. 114).
93
“[...] o NPM prega a gestão e os novos mecanismos institucionais em economia, através da introdução de
métodos de gestão do setor privado e do estabelecimento de medidas incitativas (“incentives”) no setor
público;” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114).
94
“[…] utilizada originalmente pelo Banco Mundial com referência a suas políticas de empréstimos, a boa
governança é uma norma que supõe a eficácia dos serviços públicos, a privatização das empresas estatais, o
rigor orçamentário e a descentralização administrativa;” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114).
95
“[…] a governança pode ser considerada “as the pattern or structure that emerges in a social-political system
as common result or outcome of the interacting intervention efforts of all involved actors”(KOOIMAN, 1993).
As palavras centrais dessa definição são a complexidade, a dinâmica das redes e a diversidade dos atores. O
mundo político seria assim marcado pelas coestratégias: a cogestão, a corregulação, assim como as parcerias
público-privado.;” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114).
96
“[...] a governança refere-se a “managing networks that are self-organizing” Considerando que o Estado é um
dos atores (e não mais o único e exclusivo ator) no sistema mundial, as redes integradas e horizontais (ONGs,
redes profissionais e científicas, meios de comunicação) desenvolvem suas políticas e modelam o ambiente
desse sistema (RHODES, 1996).” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 114).
88

desenvolvimento; e 3. a capacidade dos governos para conceber, formular e


implementar políticas e se desincumbir de funções. [...]
Quinze anos depois de sua enunciação original, o conceito de governança alcançou
refinamento pela mesma agência internacional, assumindo, a partir de paper
originário do grupo temático dedicado à governança e combate à corrupção (THE
WORLD BANK, 2007, p. 67), o seguinte conteúdo: governança se refere à maneira
através da qual os agentes e instituições públicas adquirem e exercem sua autoridade
para o provimento de bens e serviços públicos, incluindo a oferta de serviços
essenciais, infraestrutura e um ambiente favorável ao investimento – corrupção é um
produto de uma governança frágil. (VALLE, 2011, p. 39-40).

A par da controvertida origem da governança pública, a abordagem da governança


corporativa, a título introdutório, é importante por conta da influência inequívoca das práticas
do setor privado neste debate.

5.2 Governança corporativa

A governança corporativa surge como consequência natural de assimetrias


informacionais derivadas das situações ordinárias de transferência ou compartilhamento de
poder decisório nas empresas privadas.
Nesse sentido, a governança privada, essencialmente, “trata da minimização de
assimetrias e conflitos de interesses inerentes à delegação de poder”, alinhando a conduta dos
administradores aos interesses da empresa (MACHADO FILHO, 2013, p. 76)97.
O conceito e a própria nomenclatura “governança corporativa” são recentes, embora
seja intuitivo que a organização, a responsabilidade e outras diretrizes integrantes dessa
concepção tenham a gênese perdida na história das primeiras empresas e corporações.
Bengt Hallqvist registra que a ideia contemporânea de governança passou a existir, por
meio da específica terminologia “corporativa”, em período próximo, no final da década de 80
do século passado98.
A autocrítica capitalista, a partir de 1990, reforçou ainda mais a difusão e o
aperfeiçoamento desses paradigmas, em decorrência de reiterados abusos cometidos por

97
“[...] as organizações privadas também criam mecanismos de governança para lidar com a delegação de poder.
A gênese de uma organização que nasce e cresce no mercado, simplificadamente, passa por algumas etapas: O
“dono” cria a empresa, a empresa cresce, o dono não mais executa sozinho, a empresa passa por sucessivos
processos de delegação. O “dono” se vê obrigado a implementar mecanismos de incentivo e monitoramento,
para que os agentes aos quais ele delegou poderes estejam alinhados com as suas expectativas.” (MACHADO
FILHO, 2013, p. 77).
98
“Em 1984, quando participei do AMP (Advanced Management Program) da Harvard Business School,
estudamos os problemas relacionados a conselho, acionistas e diretorias, mas a expressão corporate
governance não existia. Ela surgiu na língua inglesa apenas no final dos anos 1980, o que demonstra quanto é
recente esta discussão.” (STEINBERG, 2003, p. 109).
89

executivos99 nos Estados Unidos:

Esse é o veredito de Robert Monks e Allen Sykes, dois críticos do capitalismo


anglo-americano contemporâneo, em artigo de Martin Wolf, do Financial Times
[...]. Segundo o articulista, no final do século XX, os executivos de primeiro escalão
“desviaram uma riqueza espantosa dos acionistas da corporação para os seus
bolsos”, e boa parte disso se deve a “defeitos já antigos no sistema [...]”.
(STEINBERG, 2003, p. 41).

No Brasil, o estudo da governança corporativa confunde-se com a história do Instituto


Brasileiro de Governança Corporativa (IBCG), fundado em 27 de novembro de 1995.
“Lançado em maio de 1999, o Código de melhores práticas de governança corporativa
colocou o IBGC definitivamente na liderança do movimento no Brasil.” A partir da reedição
de 2001, “seu texto se tornou mais abrangente [...] pois foi além das questões dos conselhos
de administração [...]” (STEINBERG, 2003, p. 112).
Capturou-se, com esse acréscimo trazido no ano de 2001, a essência multidimensional
da governança corporativa, inclusive com densidade axiológica, sendo definida atualmente (5ª
edição, 2ª reimpressão 2016) como:

[...] o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas,


monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho
de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes
interessadas. As boas práticas de governança corporativa convertem princípios
básicos em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de
preservar e otimizar o valor econômico de longo prazo da organização, facilitando
seu acesso a recursos e contribuindo para a qualidade da gestão da organização, sua
longevidade e o bem comum. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA
CORPORATIVA, 2016, p. 20).

A governança corporativa é superprincípio estruturante da atividade da empresa ou


organização, reunindo acervo diversificado de princípios de administração para as empresas
de capital fechado, aberto e organizações ou entidades sem fins lucrativos (associações, OTS,
entres outras), destinando-se a pautar o funcionamento e orientar os interessados diretos
(empregados, clientes, sócios, fornecedores, administradores, investidores, órgãos internos) e
interessados indiretos (a coletividade, o mercado e órgãos ou entidades de controle
externo).100

99
“O fator humano é a grande questão a gerir. Sem diminuir a margem dos seus agentes para cometer abusos, as
empresas não criam condições para o próprio crescimento e perenidade.” (STEINBERG, 2003, p. 53).
100
Frequentemente, é utilizada a expressão stakeholder no contexto da governança corporativa, a indicar a “parte
interessada” no negócio. Não se trata de termo restrito aos sócios das empresas. A expressão shareholder,
embora também indicativa de parte interessada, é mais restrita, referindo-se aos acionistas. Nesse sentido, nas
atividades empresariais de uma empresa mineradora, por exemplo, o Estado é um stakeholder, do mesmo
90

A partir dos paradigmas até o momento estabelecidos, podem ser relacionados como
princípios gerais da governança corporativa o planejamento, a transparência, a equidade, a
prestação de contas (accountability), a responsabilidade corporativa e a eficiência.
O planejamento tem lastro no próprio objetivo social, pressupondo a existência de
metas e planos de organização para o alcance dos compromissos da empresa. É antecedente
lógico da eficiência - a esperada qualidade final dos serviços ou produtos da organização
decorrentes da gestão.
Nesta dissertação, o princípio do planejamento, corolário da governança pública,
possui valor especial, ao guardar relação estreita com o tema referente às formas de acesso a
cargos, empregos e funções estatais, representando meio para o enfraquecimento de específico
ciclo de pobreza nacional consubstanciado no patrimonialismo, o que será enfrentado no
próximo capítulo.
O agir transparente, por sua vez, é prática indispensável no cotidiano das entidades e
corporações estando umbilicalmente relacionada à prestação de contas (accountability) e à
responsabilidade corporativa, excluindo-se de sua abrangência apenas o segredo do modo de
fazer ou de produzir, nos limites estabelecidos em lei.
A transparência é considerada pelo IBCG como um dos quatro princípios básicos da
governança corporativa, juntamente com a equidade, a prestação de contas (accountability) e
a responsabilidade corporativa, representando o mais amplo “desejo de disponibilizar para as
partes interessadas as informações que sejam de seu interesse e não apenas aquelas impostas
por disposições de leis ou regulamentos.” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA
CORPORATIVA, 2016, p. 20).
A equidade indica ser imperativo o “[...] tratamento justo e igualitário de todos os
grupos minoritários, seja do capital, seja das demais “partes interessadas” (stakeholders),
como colaboradores, clientes, fornecedores ou credores.” (SLOMSKI, 2014, p. 132). A
atenção especial aos “direitos, deveres, necessidades, interesses e expectativas” (INSTITUTO
BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2016, p. 21) dos stakeholder e
shareholders é consequência que se extrai do princípio da equidade na governança
corporativa.
O princípio da prestação de contas (accountability), como o próprio nome antecipa,
condensa o dever dos agentes da entidade ou corporação de prestarem contas da atuação no

modo que um trabalhador voluntário é um stakeholder em determinada OTS.


“Shareholders are stakeholders in a corporation, but stakeholders are not always shareholders. A shareholder
owns part of a company through stock ownership, while a stakeholder is interested in the performance of a
company for reasons other than just stock appreciation.” (MACEACHERN, 2017).
91

exercício de suas funções “de modo claro, conciso, compreensível e tempestivo, assumindo
integralmente as consequências de seus atos e omissões [...]” (INSTITUTO BRASILEIRO
DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2016, p. 21).
A responsabilidade corporativa possui largo espectro, sendo traduzida no dever de se
observar a “viabilidade econômico-financeira das organizações, reduzir as externalidades
negativas de seus negócios e suas operações e aumentar as positivas”. Cabe aos agentes da
empresa, por meio deste princípio, atenderem “no seu modelo de negócios, os diversos
capitais (financeiro, manufaturado, intelectual, humano, social, ambiental, reputacional, entre
outros) (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2016, p. 21),
zelando pela perenidade da organização.
Nesse sentido, a responsabilidade corporativa tem extensão muito superior ao enfoque
meramente econômico e financeiro. Os executivos “devem incorporar considerações de
ordem social e ambiental na definição de negócios e operações”, representando “visão mais
ampla da estratégia empresarial, contemplando todos os relacionamentos com a comunidade
em que a sociedade atua.” (SLOMSKI, 2014, p. 133).
A função social da empresa tem estreita ligação com a governança e a
responsabilidade corporativa, porquanto impositiva do envolvimento da empresa no ambiente
comunitário, por meio de ações inclusivas diversas.
Já o princípio da eficiência, no modelo de governança corporativa, vincula-se aos fins
sociais da empresa ou organização. É a diretriz final relacionada ao atingimento dos objetivos
estatutários da entidade ou corporação.
A melhoria do desempenho da entidade ou da corporação, fruto da adequada
governança, atende a esta diretriz existencial consubstanciada na eficiência.
Como visto, a eficiência, mesmo para as sociedades com fins lucrativos, não se esgota
no campo econômico, diante da gama de interesses complexos decorrentes do exercício das
atividades corporativas, a demandarem inclusive a construção do paradigma da função social
da empresa. Isso tudo sem mencionar as OTS, também submetidas às recomendações de boa
administração e governança para a consecução dos interesses comuns.
É importante sublinhar, finalmente, que o fortalecimento das atividades das
Organizações de Terceiro Setor OTS, nas últimas duas décadas, trouxe reforço ao elo
existente entre a governança corporativa e a governança, na medida em que na “essência das
práticas de governança está a necessidade da redução do desalinhamento entre principal e
agente, de forma que se busque conciliar os interesses de longo prazo do empreendimento.”
92

(MACHADO FILHO, 2013, p. 104).101


E particularmente, neste ponto, a crítica ideológica (e avessa ao diálogo das fontes) à
influência da governança corporativa no Direito Administrativo ingressa em contradição,
porquanto a existência dos movimentos sociais organizados e OTS também pressupõe a
defesa do planejamento, da prestação de contas, da transparência e da eficácia social dessas
atividades desenvolvidas em prol da coletividade.
Na hipercomplexa sociedade contemporânea, em que a globalização é o traço
marcante, e o respeito à pluralidade de projetos de boa vida tem assento nas Constituições dos
Estados ocidentais, é inviável a separação rígida entre Estado, sociedade, indivíduos e
mercado de modo a se estabelecer zonas sem interferências entre as diferentes esferas.
Hoje, “a governança não é mais baseada na autoridade central ou políticos eleitos
(modelo da hierarquia) e nem passagem de responsabilidade para o setor privado (modelo de
mercado)”. Ao revés, a governança “[...] regula e aloca recursos coletivos [...]” por meio do
intercâmbio entre os diversos atores políticos, públicos, privados, nacionais e internacionais
(MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 25/30), integrando-se, na realidade contemporânea, às funções
administrativas do Estado.
A governança é ponto praticamente esquecido no Direito Administrativo brasileiro.
Buscar-se-á, então, enfrentar seu conteúdo, importância e as possíveis razões dessa lacuna
teórica.

5.3 Governança pública e sua dimensão normativa

A gênese da governança pública é controvertida, conforme foi apontado na introdução


deste capítulo.
Parte da doutrina enxerga que a origem remota mais significativa estaria no Direito
Administrativo francês, na primeira década do século XX, quando se buscava a

101
“Esse desalinhamento, derivado da delegação de poder e da criação de assimetrias informacionais, ocorre em
qualquer tipo de organização, embora se levando em conta as diferenças intrínsecas dos diversos tipos de
organização, com e sem fins lucrativos. Os mecanismos de governança podem ser aplicados a organizações
não governamentais de caráter social, associações de classe, cooperativas, universidades, clubes de futebol etc.
Segundo Fischer (2002, p. 51), os maiores desafios para as OTS estão na melhoria da eficácia de gestão dessas
organizações ou, em essência, nas melhorias da governança:
Para superar essa vulnerabilidade e fortalecer-se no estabelecimento de alianças estratégicas, as organizações
da sociedade civil necessitam desenvolver algumas competências essenciais […] as competências para
apresentar sua operação e sua gestão com transparência, em um conceito aproximado do significado do termo
inglês accountability. E as competências para produzir serviços com alto padrão de qualidade, que gerem
resultados efetivos e passíveis de avaliação pelo conjunto da sociedade civil.” (MACHADO FILHO, 2013, p.
104-105).
93

ressignificação do Direito Público nos primórdios do trânsito paradigmático entre as


concepções de Estado liberal e social, por força do crescimento das funções estatais advindas
das mutações comunitárias que se desenhavam progressivamente.
O professor de Direito Público da Universidade de Toulouse, Maurice Hauriou, na
obra Précis de Droit et de Droit Public, abordou ângulo primordial da boa administração ou
governança, ao realizar exames deontológicos e axiológicos no Direito Público, relacionados
especialmente à atuação dos agentes estatais, em consonância com o interesse social do
melhor funcionamento da máquina do Estado:

A administração é autônoma até o ponto de se regular e estar ciente de uma


determinada moral que se impõe a ela.
No que diz respeito aos regulamentos feitos pelos decretos do Chefe de
Estado ou pelos decretos das diversas autoridades, a situação da administração ativa
é a mesma que a legislação, ou seja, isto é, deve obediência à regra posta com a
mesma latitude resultante da escolha da oportunidade. Além disso, vimos que o
regulamento faz parte do bloqueio da legalidade.
Quanto à moral administrativa, a sua existência decorre do fato de que todo
ser que possui uma conduta necessariamente pratica a distinção entre o bem e o mal.
Como a administração tem uma conduta, ela pratica essa distinção ao mesmo tempo
que a dos justos e os injustos, os legais e os ilícitos, o honrado e desonroso, o
adequado e o impróprio. A moral administrativa é muitas vezes mais exigente do
que a legalidade. Veremos que a instituição do excesso de poder, pelo qual muitos
atos da administração são anulados, baseia-se muito mais na noção de moralidade
administrativa do que na legalidade, de modo que a administração é limitada, até
certo ponto, pela moralidade jurídica, particularmente no que diz respeito ao uso
indevido do poder (veja abaixo, recurso ao excesso de poder).
Mas não se desconhece a margem que permanece nesse ponto, o poder
discricionário da administração, quando se sabe que esta ainda não se considera
inclinada a dar os motivos das decisões que toma; O desvio de poder só pode ser
compreendido nos motivos da decisão. 102 (HAURIOU, 1921, p. 352-353, tradução
nossa).

Atribui-se, assim, a Maurice Hauriou a vanguarda teórica da concepção de

102
L’administration est autonome au point de se réglementer elle-même et d’avoir conscience d’une certaine
moralité qui s’impose à elle.
En ce qui concerne la réglementation opérée soit par les décrets du chef de l’État, soit par les arrêtés des
autorités diverses, la situation de l’administration active est la même que vis-à-vis de la législation, c’est-à-dire
qu’elle doit l’obéissance à la règle posée avec la même latitude résultant du choix de l’opportunité. Au reste,
nous avons vu que la réglementation fait partie du bloc de la légalité.
Quant à la moraliaté administrative, son existence provient de ce que tout être possédant une conduite pratique
forcément la distinction du bien et du mal. Comme l’administration a une conduite, elle pratique cette
distinction en même temps que celle du juste et de l’injuste, du licite et de l’illicite, de l’honorable et du
déshonorant, du covenable et de l’inconvenant. La moralité administrative est souvent plus exigeante que la
légalité. Nous verrons que l’institution de l’excès de pouvoir, grâce à laquelle sont annulés beaucoup d’actes
de l’ administration, est fondée beaucoup plus sur la notion de la moralité administrative que sur celle de la
légalité, de telle sorte que l’administration est liée dans une certaine mesure par la morale juridique,
particulièrement en ce qui concerne le délournement de pouvoir (V. infra, recours pour excès de pouvoir).
Mais on se rendra compte de la marge que conserve sur ce point le pouvoir discrétionnaire de l’administration,
quand on saura que celle-ci ne se considère pas encore comme tênue de donner les motifs des décisions qu’elle
prend; or, le détournement de pouvoir ne peut être saisi que dans les motifs de la décision.
94

governança, boa administração ou boa governança, pontuando-se que o referido autor é


“considerado o pioneiro a aventar a ideia da boa administração pública”, ao estabelecer “a
necessidade de observância da moralidade administrativa, através do cumprimento das regras
de conduta pertencentes à disciplina interna da Administração Pública [...]”. A atuação estatal
não estaria condicionada a feixe monodimensional, restrito apenas à legalidade, em raciocínio
sugestivo do primórdio da governança (FERNANDES, 2015, p. 34).
Em lado diverso, a ideia de governança fruto da governança corporativa também é
encontrada.
Segundo Matias-Pereira, o “tema governança tem como base o estudo seminal de
Ronald Coase publicado em 1937, intitulado The Nature of the Firm. Nos anos 1970, esse
estudo foi aperfeiçoado por Oliver Williamson (1975)” (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 115):

A governança, de acordo com as análises de Coase e reforçadas por Williamson,


designaria os dispositivos operacionalizados pela firma para conduzir coordenações
eficazes que tangem a dois registros: os protocolos internos, quando a firma
desenvolve suas redes e questiona as hierarquias internas; os contratos e as
aplicações de normas, quando ela se abre à terceirização. (MATIAS-PEREIRA,
2010, p. 115).

Exemplo similar, de governança pública a partir da concepção de governança


corporativa, está na obra Controladoria e Governança na Gestão Pública, de Valmor Slomski.
Por meio da correlação entre os objetivos de prosperidade estatal, melhora do
desempenho, facilitação de acesso ao capital a custos mais baixos, estabilização
administrativa e os princípios da transparência, equidade, prestação de contas (accountability)
e responsabilidade corporativa, debatidos no âmbito corporativo, Slomski encontra a chave da
implementação desta governança no meio público (SLOMSKI, 2014, p. 127-135).
A enorme complexidade da gestão pública no mundo globalizado sugere a
plausibilidade do intercâmbio de experiências entre as esferas e os diversos atores
interessados, direta ou indiretamente, sob o ônus de sucumbir-se ao isolamento político e
econômico.
O agir administrativo envolve o conjunto heterogêneo de matérias ligadas à
operacionalização da segurança pública, saúde, educação, meio ambiente, saneamento básico,
trazendo para si, ainda, de acordo com o texto constitucional de 1988, responsabilidades
inerentes ao fomento de ambiente favorável à iniciativa privada, para gerar empregos e
melhorar a arrecadação tributária.
Com a crescente demanda de serviços, prestações, políticas públicas e as receitas
95

basicamente concentradas nas fórmulas tributárias, o Estado trilha caminho que, a par das
escolhas políticas e ideológicas, precisa estar amparado em organizada e ágil estrutura
administrativa legitimadora103 de suas ações ordinárias, para a melhor realização das metas
estabelecidas.
No Brasil, além dessa realidade comum às democracias ocidentais globalizadas, existe
ainda o programa normativo da Constituição destinado a romper o subdesenvolvimento, não
buscando apenas a modernização. Como anotado em capítulos anteriores, a coparticipação da
Administração Pública na ruptura ou enfraquecimento de ciclos de pobreza é exigência
constitucional normatizada nos objetivos da República, o que mais se assemelha a verdadeiro
desafio constitucional, tamanhos os déficits ainda hoje verificados em nosso País.
A especial atenção para os mecanismos de melhora de desempenho, assim, é
experiência bem vinda da governança corporativa, verbis:

As entidades públicas governamentais poderão melhorar seus desempenhos


implementando ações de melhoria nos dois ambientes, o ambiente interno e o
ambiente externo. O ambiente interno poderá melhorar seu desempenho
implementando ações saneadoras, desenvolvendo a potencialidade dos recursos
públicos, por ações capitaneadas pela controladoria. E o ambiente externo, com
medidas que atraiam investimentos de iniciativa privada sem a geração de
externalidades negativas, com a geração de emprego e renda, com a aplicação de
medidas corretivas para o cumprimento de leis para a produção do bem-estar social.
(SLOMSKI, 2014, p. 131).

Sustenta-se, então, que os princípios da governança corporativa, no espectro abordado,


podem ser aplicados à governança pública, tendo em vista a proximidade com a dimensão
normativa constitucional brasileira, que desenhou modelo de administração pública gerencial,
positivando normas jurídicas de governança, por meio dos princípios administrativos
constitucionais do art. 37 e da legislação infraconstitucional.
A imensurável demanda social e a finitude dos recursos são aspectos indissociáveis no
estudo da governança, a transmitir a necessidade da participação de outros atores sociais,
como as OTS e a importância do aperfeiçoamento do que se reconhece como administração
pública operacional ou de funcionamento 104 , em contraposição ao modelo cujo status

103
Quando se aborda a “legitimidade” na ação estatal usualmente é exposta a distinção entre governança e
governabilidade. “Enquanto a governabilidade diz respeito às condições do exercício da autoridade política,
governança qualifica o modo de uso dessa autoridade”, por meio do feixe de princípios jurídicos que
disciplinam o agir da administração pública. Governabilidade, assim, é a “capacidade política de governar.”
(MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 110).
104
“A partir da metade da década de 50 do século XX começa a surgir a preocupação com uma democracia mais
completa, com a democracia que transpõe o limiar da eleição de representantes políticos para expressar-se
também no modo de tomada de decisão dos eleitos. Emergiu a idéia de que o valor da democracia depende
também do modo pelo qual as decisões são tomadas e executadas. Verificou-se que havia, com frequência,
96

democrático encerra-se no processo eleitoral da cúpula de governo105.


Diante de todos os fundamentos anotados, esta pesquisa aponta no sentido da
impossibilidade de se fixar, sem margem de dúvida, a titularidade da invenção da governança
pública.
Se é certo que as reflexões sobre os princípios de regência do modelo administrativo
estatal, entendidos como governança, governança pública ou boa administração, vem no
Direito Público muito antes da década de 80 do século passado, quando se tornou
efervescente, conforme visto, o debate sobre governança corporativa, é igualmente palpável a
atual influência desta última na Administração Pública.
Agrega-se a isso o fato da discussão sobre a governança nas entidades privadas
também possuir seus primórdios afastados do surgimento da expressão “governança
corporativa”.
O estudo das raízes da governança, apesar disso, não é estéril, pois, além da
contextualização histórica e do debate aprofundado sobre o conteúdo, expondo-se a natureza
híbrida do fenômeno, também contribui por dinamitar estigmas sobre a governança pública e
a reforma gerencial da administração, alvos de críticas mais políticas do que jurídicas, como
se possível fosse eliminar totalmente as interseções entre os espaços e os atores sociais
envolvidos na atualidade.
Ultrapassada a insolúvel polêmica sobre a questão genética da governança pública,
ingressa-se na delimitação desta pesquisa.
Governança pública, boa administração, boa governança ou governança são aqui
referidas como expressões sinônimas, na esteira do entendimento que informa a
impropriedade da abordagem diferenciada entre os conteúdos essenciais de governo e
administração pública.
A separação entre os atos de governo e atos da Administração, um com status de agir
político e outro com ideia de exteriorização de impulsos mecânicos da estruturação legal da
máquina pública106, é incompatível com os contornos do pós-positivismo e da sociedade

grande distanciamento entre as concepções políticas de democracia vigentes num país e a maneira com que
ocorriam as atuações da Administração [...] Passou a haver, então, uma pregação doutrinária em favor da
democracia administrativa, que pode ser incluída na chamada democracia de funcionamento ou operacional
[...] Isso porque, o caráter democrático de um Estado declarado na Constituição, deve influir sobre o modo de
atuação da Administração, para repercutir de maneira plena em todos os setores estatais.” (MEDAUAR, 2015,
p. 44-45).
105
“[…] democracia liberal, na atualidade, exige do cidadão a participação além do processo eleitoral.”
(TÔTORA, 2014, p. 79).
106
A visão clássica estabelece a seguinte orientação: “[...] governo é atividade política e discricionária;
administração é atividade neutra, normalmente vinculada à lei ou à norma técnica. Governo é conduta
independente; administração é conduta hierarquizada. O Governo comanda com responsabilidade
97

contemporânea.
Assinala Agustín Gordillo que “não existem nem teórica, nem praticamente, os atos de
governo: porque todos os atos do Poder Executivo estão sujeitos à revisão judicial [...]”107
(GORDILLO, 2003, p. VIII-33, tradução nossa).
Nesse sentido, é rejeitada a tese da separação dos atos de governo e atos de gestão,
frente à impossibilidade da dissociação “entre atividade política e função administrativa –
donde restará justificada a preocupação de legitimar-se, pela abertura democrática, as escolhas
estratégicas que se formulem no exercício da administração” (VALLE, 2011, p. 55):

A separação significava, sobretudo, dependência da Administração em relação ao


governo; este, dotado de função primordialmente política; aquela, no exercício de
atividade de simples cumprimento da orientação fixada pelo governo.
Com a transformação do Estado, ‘cresce a transcendência social da Administração,
ao mesmo tempo em que as burocracias se afirmam como corpos estatais; isso
incrementa sua autonomia orgânica e funcional, não só em relação ao legislador,
mas também ante os órgãos superiores executivos, de direção política’. [...]
Também a co-presença no vértice do Poder Executivo de funções governamentais
e funções administrativas dificulta a nítida distinção entre ambas. Além do mais, a
crescente utilização de fórmulas de consenso, acordos e da colaboração de
particulares na tomada de decisões afeta o eixo de causalidade entre governo e
Administração, que muitas vezes ocorre em sentido inverso e muitas vezes nem se
realiza. (MEDAUAR, 2003, p. 141-142).

Ao propor esta dissertação o exame da obediência do acesso a cargos, empregos e


funções públicas à governança e ao planejamento administrativo, fica evidenciado que o
ângulo da governança sob enfoque é o jurídico, atinente ao conteúdo deontológico da boa
administração, governança ou boa governança.
Seriam a governança e o planejamento administrativo faculdades? Poderia o
administrador público recusá-las e negar ao cidadão a atuação obediente a essas diretrizes? Ou
fornece a Constituição guarida à governança e ao planejamento administrativo na esfera
pública brasileira?
Ambiciona-se mostrar, no âmbito da dimensão normativa da governança, que a
construção do seu arcabouço teórico, mais do que mera sistematização, tende a ressignificar o
conteúdo das funções administrativas do Estado e auxiliar o enfraquecimento do simbolismo
hipertrófico de princípios constitucionais expressos, viabilizando o enfrentamento das lacunas

constitucional e política, mas sem responsabilidade profissional pela execução; a Administração executa sem
responsabilidade constitucional ou política, mas com responsabilidade técnica e legal pela execução. A
Administração é o instrumento de que dispõe o Estado para por em prática as opções políticas do Governo.”
(MEIRELLES, 2016, p. 69).
107
No existen, ni teórica ni prácticamente, los actos de gobierno: porque todos los actos del Poder Ejecutivo
están sujetos a revisión judicial.
98

do Direito Administrativo.
No campo jurídico, a governança, boa governança ou boa administração é alvo de
considerável atenção na doutrina administrativa europeia, fenômeno incentivado, em parte,
pela sua expressa tipificação na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta de
Nice), proclamada em 7 de dezembro de 2000, que se tornou juridicamente vinculativa com a
entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2009108, possuindo, desde então, o
mesmo valor jurídico dos tratados:

Artigo 41. Direito a uma boa administração


1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas
instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num
prazo razoável.
2. Este direito compreende, nomeadamente:
a) O direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada
qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente;
b) O direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no
respeito pelos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e
comercial;
c) A obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões.
3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da União, dos danos causados
pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respetivas funções, de
acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros.
4. Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa
das línguas dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua. (UNIÃO
EUROPEIA, 2016).

Ao comentar a positivação, no art. 41º, do direito à boa administração, Jaime


Rodriguez-Arana Muñoz, professor catedrático de Direito Administrativo da Universidade de
La Coruña, traz a ideia de bom governo como direito do cidadão, a vincular as instituições
públicas, que “devem estar conduzidas e dirigidas para uma série de critérios mínimos.”
(RODRIGUEZ-ARANA MUÑOZ, 2012, p. 155-169).
Segundo o jurista espanhol, o conteúdo do direito fundamental à boa administração
constitui cornucópia principiológica, compreendida como arsenal de normas jurídicas capazes
de fazer frente às exigências contemporâneas impostas à esfera pública, possuindo forte
densidade axiológica.
Enumera, Rodriguez-Arana Muñoz, vinte e quatro princípios que compõem, de forma
não taxativa, o direito à governança:

108
“TRATADO DE LISBOA. [...] ARTIGO 6.º 1. A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios
enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, com as
adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor
jurídico que os Tratados. De forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal
como definidas nos Tratados.” (PORTUGAL, 2008).
99

1. Princípio da juridicidade; 2. Princípio do serviço objetivo aos cidadãos; 3.


Princípio promocional; 4. Princípio da racionalidade; 5. Princípio da igualdade de
trato; 6. Princípio da eficácia; 7. Princípio da publicidade das normas; 8. Princípios
da segurança jurídica, da previsibilidade e da certeza normativa; 9. Princípio da
proporcionalidade; 10. Princípio do exercício normativo do poder; 11. Princípio da
imparcialidade e independência; 12. Princípio da relevância; 13. Princípio da
coerência; 14. Princípio da boa-fé; 15. Princípio da confiança legítima; 16. Princípio
do assessoramento; 17. Princípio da responsabilidade; 18. Princípio da facilitação;
19. Princípio da celeridade; 20. Princípio da transparência e acesso à informação de
interesse geral; 21. Princípio da proteção da intimidade; 22. Princípio da ética; 23.
Princípio do devido processo; 24. Princípio da cooperação. (RODRIGUEZ-ARANA
MUÑOZ, 2012, p. 169-172).

Abordando a face normativa, o dever-ser da boa administração, procura-se firmar o


conceito de que esse princípio não representa apenas característica intrínseca dos aparatos
estatais e técnicas de gestão, mas também “um direito que assiste aos cidadãos, exigível
perante os Tribunais, com as dificuldades, é verdade, que implica o conteúdo desse novo
direito” (RODRIGUEZ-ARANA MUÑOZ, 2012, p. 14).
Dentre as dificuldades que envolvem o reconhecimento teórico da governança no
plano jurídico, como norma, dois ângulos surgem na pesquisa ora empreendida.
O primeiro mostra que a governança, possuindo a faceta de conjunto de normas
propulsoras da atuação administrativa estatal, garantidora do compromisso democrático na
sociedade contemporânea, teria vulnerabilidade constante pelas alterações das normas de
gestão. Não se perde de vista que o modelo burocrático era o hegemônico e o positivismo foi
a filosofia dominante, influenciando a ciência jurídica. A história da modernidade é a história
da superação dos paradigmas científicos e da refutação de escolas filosóficas.
A crítica menos aguda poderia, então, submeter o direito à governança ou à boa
administração à analogia similar acima exposta, apontando, a partir daí, a volatilidade que
recai sobre esse conceito.
O segundo aspecto a turvar o caráter normativo da governança residiria nas
contradições decorrentes da suposta preponderância da dimensão subjetiva desse direito.
Explica-se: as normas jurídicas de cunho principiológico e os direitos fundamentais têm a
dimensão subjetiva, “que envolve a projeção daquele direito na esfera individual de cada um”,
e a dimensão objetiva, “que abarca os deveres de agir do poder político organizado de
proteção aos direitos fundamentais.” (VALLE, 2011, p. 102)109.
A crítica aponta que “a presunção em favor da dimensão subjetiva em matéria de
109
Exemplo didático fornecido por Vanice Regina Lírio do Valle situa-se na seara do direito à saúde: “[...] a
projeção na esfera individual, a dimensão subjetiva, assegura ao doente (por exemplo) o direito ao
medicamento de que carece para tratar-se; já a dimensão objetiva determina para a administração o dever de
manter hospitais, devidamente equipados, com a mão de obra e os suprimentos correspondentes.” (VALLE,
2011, p. 102).
100

direito fundamental à boa administração implica a subversão do seu próprio potencial como
mecanismo de democratização e aperfeiçoamento da função da mesma natureza [...]” que
representa o dever de proteção do interesse público e a defesa da coletividade. Ou seja, o
conflito interno da governança estaria situado na tensão causada pela precedência da
“proteção das situações individuais, quando o objetivo era configurar um modelo de agir do
Estado.” (VALLE, 2011, p. 102).
Nada obstante, ambas as situações apontadas são superáveis.
A uma, porque a ideia de direito ou de norma constitucional cristalizada não é
compatível com o Estado Democrático de Direito, em que a transformação da realidade social
é uma das características do ordenamento jurídico. A Constituição não é compatível com o
escopo de engessamento normativo das futuras gerações.
Nesse sentido, pululam exemplos de normas e institutos jurídicos, como o princípio
democrático, a isonomia e a própria mutação constitucional 110 , que testemunham
precisamente a essência dinâmica do Direito.
De modo similar, Vanice Regina Lírio do Valle registra essa natureza do direito à
governança:

[...] o Direito não pode ter a pretensão de internalizar em seu próprio sistema um
valor – boa administração – que, por definição, é dinâmico, sem preservar essa
mesma característica. Juridicizar boa administração não pode jamais significar uma
ruptura, ou pretensão de estabilização de um conceito que repudia visceralmente a
cristalização, exigindo, ao contrário, adaptação permanente, resiliência. [...]
A constatação do caráter fluido e temporalmente localizado do conceito não há de
gerar para o Direito igualmente qualquer dificuldade teórica de maior envergadura.
Afinal, também nas ciências jurídicas, especialmente no campo dos direitos
fundamentais, a atualização permanente de sentido é um imperativo, sob pena de
perda de aplicação e relevância. (VALLE, 2011, p. 99 e 107).

Também não há incongruência entre as dimensões subjetiva e objetiva, comuns aos


direitos que alicerçam e estruturam a ordem jurídica, total ou parcialmente.
No caso, a dimensão objetiva do direito à boa administração, calcada no interesse de

110
“As Constituições têm vocação de permanência. Idealmente, nelas têm abrigo as matérias que, por sua
relevância e transcendência, devem ser preservadas da política ordinária. A constitucionalização retira
determinadas decisões fundamentais do âmbito de disposição das maiorias eventuais. Nada obstante isso, as
Constituições não são eternas nem podem ter a pretensão de ser imutáveis. Uma geração não pode submeter a
outra aos seus desígnios. Os mortos não podem governar os vivos. Porque assim é, todas as Cartas Políticas
preveem mecanismos institucionais para sua própria alteração e adaptação a novas realidades [...]. Com efeito,
a modificação da Constituição pode dar-se por via formal e por via informal. A via formal se manifesta por
meio da reforma constitucional, procedimento previsto na própria Carta [...]. Já a alteração por via informal se
dá pela denominada mutação constitucional, mecanismo que permite a transformação do sentido e do alcance
de normas da Constituição, sem que se opere, no entanto, qualquer modificação do seu texto. A mutação está
associada à plasticidade de que são dotadas inúmeras normas constitucionais.” (BARROSO, 2016, p. 157-158).
101

agir da esfera estatal, harmoniza-se, no paradigma democrático, com o ângulo subjetivo das
pretensões individuais.
Assim, o “direito fundamental à boa administração, traduzido na sua dimensão
objetiva como governança, incorpora à ideia de resultado a sobrevalorização da cidadania
ativa”, compatibilizando-se com a dimensão subjetiva representada nas expectativas
individuais ou coletivas da ação administrativa, “evoluindo de uma lógica marcadamente
economicista, para curvar-se a uma dimensão ética que necessariamente deve orientar o poder
num Estado Democrático de Direito (VALLE, 2011, p. 162).
A lição da doutrina italiana é compatível com essa abertura democrática e o enfoque
plural do direito à boa governança:

Constitui, como boa aproximação, uma fórmula abrangente usada para afirmar a
reivindicação correta dos cidadãos de que a Administração não é apenas respeitadora
dos legados e dos direitos e interesses dos indivíduos, mas, ao mesmo tempo, produz
resultados produtivos para a comunidade 111 (GIUFRIDA, 2012, p. 15, tradução
nossa).

A magnitude da matéria encontra eco também em organismos internacionais, como o


Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo (CLAD), instituído em 1972,
com países membros na América (incluindo o Brasil) e na Europa (Portugal e Espanha),
debruçando-se com frequência sobre a temática do direito à governança.
Embora não dotados de força jurídica vinculativa de tratado, merece nota o fato de que
as declarações, cartas e códigos publicados por esta entidade possuem direta participação e
declaração de compromisso dos governos dos países signatários.
A repercussão no plano interno das normas ali previstas é considerada por meio do
princípio da boa-fé, que abraça as relações jurídicas internacionais112.
Em junho de 2006, o Código Iberoamericano de Buen Gobierno, firmado em
Montevideo, trouxe a concepção dos países integrantes, entre os quais o Brasil, acerca de
contornos da boa administração:

[...] Os princípios básicos que guiarão a ação da boa governança são:


a. O respeito e o reconhecimento da dignidade da pessoa humana.
b. A busca permanente do interesse geral.

111
[...] costituisce, com buona approssimazione, una formula omnicomprensiva cui si ricorre per affermare la
giusta pretesa dei cittadini a che l’Amministrazione sia non solo rispettosa dela lege e dei diritti e degli
interessi dei singoli, ma, al contempo, produttiva di risultati utili per la collettività.
112
A Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), promulgada no Brasil por meio do Decreto nº 19.841, de
22 de outubro de 1945, traz o princípio da boa-fé nas relações jurídicas internacionais, em interpretação dos
seus arts. 1º e 2º (ORGANIZAÇAO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).
102

c. A aceitação explícita do governo do povo e a igualdade política de todos cidadãos


e povos.
d. Respeito e promoção das instituições do Estado de Direito e da Justiça social.
3. Os valores que guiarão a ação da boa governança são, em particular:
Objetividade, tolerância, integridade, responsabilidade, credibilidade,
imparcialidade, dedicação ao serviço, transparência, exemplariedade, austeridade,
acessibilidade, eficácia, igualdade de gênero e proteção da diversidade étnica e
cultural, bem como o meio ambiente.
4. O bom governo é entendido como aquele que busca e promove o interesse geral,
participação cidadã, equidade, inclusão social e luta contra a pobreza, respeitando
todos os direitos humanos, os valores e os procedimentos da democracia e do Estado
de Direito.
Este Código, baseado em princípios e valores fundamentais reconhecidos, é
articulado em três tipos de regras de conduta, relacionadas a: a natureza democrática
do governo, a ética governamental e a gestão pública. 113 (CENTRO
LATINOAMERICANO DE ADMINISTRACIÓN PARA EL DESARROLLO,
2006, tradução nossa).

Por sua vez, no ano de 2013, a Carta Iberoamericana de los Derechos y Deberes del
Ciudadano en Relación con la Administración Pública foi aprovada pelo Conselho Diretivo
do CLAD, em 10 de outubro. Mais uma vez, houve o reconhecimento do direito à boa
administração e da sua fundamentalidade:

[...] Preâmbulo. [...] A boa Administração Pública adquire uma funcionalidade


tripla. Em primeiro lugar, é um princípio geral de aplicação à Administração Pública
e ao Direito Administrativo. Em segundo lugar, é uma obrigação de toda a
Administração Pública que deriva da definição do Estado Social e Democrático do
Direito, especialmente a chamada tarefa promocional dos poderes públicos em que
consiste essencialmente a chamada cláusula do Estado social: criando as condições
de modo que a liberdade e a igualdade da pessoa e dos grupos em que está integrada
sejam reais e efetivas, eliminando os obstáculos que impedem o cumprimento e
facilitando a participação social. Terceiro, na perspectiva da pessoa, é um direito
fundamental genuíno e autêntico a uma boa Administração Pública, do qual,
conforme reconhecido nesta Carta, uma série de direitos específicos, direitos de
componentes que definem o estatuto do cidadão em sua relação com as
Administrações Públicas e que visam enfatizar a dignidade humana. Uma boa
administração pública, seja como princípio, como obrigação ou como direito

113
[...] Los principios básicos que guiarán la acción del buen gobierno son:
a. El respeto y reconocimiento de la dignidad de la persona humana.
b. La búsqueda permanente del interés general.
c. La aceptación explícita del gobierno del pueblo y la igualdad política de todos los
ciudadanos y los pueblos.
d. El respeto y promoción de las instituciones del Estado de Derecho y la justicia
social.
3. Los valores que guiarán la acción del buen gobierno son, especialmente: Objetividad, tolerancia, integridad,
responsabilidad, credibilidad, imparcialidad, dedicación al servicio, transparencia, ejemplaridad, austeridad,
accesibilidad, eficacia, igualdad de género y protección de la diversidad étnica y cultural, así como del medio
ambiente.
4. Se entiende por buen gobierno aquél que busca y promueve el interés general, la
participación ciudadana, la equidad, la inclusión social y la lucha contra la pobreza,
respetando todos los derechos humanos, los valores y procedimientos de la democracia y el Estado de Derecho.
Este Código, a partir de los principios y valores fundamentales reconocidos, se articula en três tipos de reglas
de conducta, las vinculadas a: la naturaleza democrática del gobierno, a la ética gubernamental y a la gestión
pública.
103

fundamental, certamente não é uma novidade desta época. A Administração Pública


sempre foi, é e continuará sendo presidida pelo princípio muito nobre e superior de
servir objetivamente o interesse geral. Agora, com mais recursos materiais e mais
pessoal preparado, tal requisito na operação e estrutura da Administração Pública
implica que o conjunto de direitos e deveres que definem a posição jurídica do
cidadão seja mais claramente reconhecido no sistema legal e, portanto, seja mais
conhecido por todos os cidadãos. [...] 25. Os cidadãos são titulares do direito
fundamental à boa Administração Pública, que consiste em que os assuntos de
natureza pública sejam tratados com equidade, justiça, objetividade, imparcialidade,
sendo resolvidos dentro de um prazo razoável ao serviço da dignidade humana Em
particular, o direito fundamental à boa Administração Pública é composto, entre
outros, pelos direitos indicados nos seguintes artigos, que podem ser exercidos de
acordo com as disposições da legislação de cada país. 114 (CENTRO
LATINOAMERICANO DE ADMINISTRACION PARA EL DESARROLLO,
2013, tradução nossa).

Esse Código também foi objeto de estudo de Jaime Rodriguez-Arana Muñoz. Ao


examinar o direito à boa administração nele contido, sublinhou o professor espanhol que “vai
mais além do que o disposto no ordenamento jurídico europeu, pois o conteúdo desse
documento do CLAD transcende e supera a regulação europeia estabelecida no artigo 41 da
Carta Europeia [...].”115 (RODRIGUEZ ARANA MUÑOZ, 2014, p. 18, tradução nossa).
Apesar da complexidade temática, um fato aparece incontroverso: a realidade
internacional evidencia a firme orientação de reconhecer esse direito fundamental na seara do
Direito Administrativo, como arcabouço teórico dos princípios relacionados à atividade do
Estado.
As pesquisas realizadas nesta dissertação sugerem que uma questão objetiva favoreceu

114
[...] Preámbulo. [...] La buena Administración Pública adquiere una triple funcionalidad. En primer término,
es un principio general de aplicación a la Administración Pública y al Derecho Administrativo. En segundo
lugar, es una obligación de toda Administración Pública que se deriva de la definición del Estado Social y
Democrático de Derecho, especialmente de la denominada tarea promocional de los poderes públicos en la que
consiste esencialmente la denominada cláusula del Estado social: crear las condiciones para que la libertad y la
igualdad de la persona y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas, removiendo los obstáculos que
impidan su cumplimiento y facilitando la participación social. En tercer lugar, desde la perspectiva de la
persona, se trata de un genuino y auténtico derecho fundamental a una buena Administración Pública, del que
se derivan, como reconoce la presente Carta, una serie de derechos concretos, derechos componentes que
definen el estatuto del ciudadano en su relación con las Administraciones Públicas y que están dirigidos a
subrayar la dignidad humana. La buena Administración Pública, sea como principio, como obligación o como
derecho fundamental, no es ciertamente una novedad de este tiempo. La Administración Pública siempre ha
estado, está, y seguirá estando, presidida por el muy noble y superior principio de servir con objetividad al
interés general. Ahora, con más medios materiales y más personal preparado, tal exigencia en el
funcionamiento y estructura de la Administración Pública implica que el conjunto de derechos y deberes que
definen la posición jurídica del ciudadano esté más claramente reconocido en el ordenamiento jurídico y, por
ende, sea mejor conocido por todos los ciudadanos. [...] 25. Los ciudadanos son titulares del derecho
fundamental a la buena Administración Pública, que consiste en que los asuntos de naturaleza pública sean
tratados con equidad, justicia, objetividad, imparcialidad, siendo resueltos en plazo razonable al servicio de la
dignidad humana. En concreto, el derecho fundamental a la buena Administración Pública se compone, entre
otros, de los derechos señalados en los artículos siguientes, que se podrán ejercer de acuerdo con lo previsto
por la legislación de cada país.
115
Va más allá que lo dispuesto en el Ordenamiento jurídico europeo pues el contenido de este documento del
CLAD trasciende, y supera, la regulación europea establecida en el artículo 41 de la Carta Europea.
104

o quadro de timidez do debate em torno do direito à governança no universo brasileiro: a


dimensão normativa da Constituição de 1988 apresenta, na seara administrativa, algumas
normas jurídicas no texto do art. 37 inerentes à administração pública burocrática e gerencial,
esmiuçando um restrito feixe de princípios decorrentes da boa governança escolhidos pelo
poder constituinte.
Igualmente, nos microssistemas coletivos previstos na legislação nacional, cujo marco
é a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a ação civil pública, sensível parcela
de deveres jurídicos ligados à boa administração foi traçada, nas mais diversas áreas -
ambiental, infância e juventude, idosos e defesa do patrimônio público entre outras.
Assim, tem-se privilegiado na doutrina administrativa, pelas características formais da
ordem jurídica brasileira, maior estudo dos princípios e direitos esparsos positivados do que
da base teórica - o direito fundamental à governança ou à boa administração.
A legalidade116, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência, enquanto
princípios jurídicos administrativos, previstos no caput do art. 37 da Constituição, adquiriram
o status de objeto principiológico central, quando, em verdade, não se tratam de normas
jurídicas isoladas ou dispersas, sim integrantes de contexto jurídico administrativo a ser
compreendido como um todo.
Do mesmo modo, “o direito a receber atenção especial e preferencial se se tratar de
pessoas em situação de deficiência, crianças, adolescentes, mulheres gestantes ou adultos
idosos [...]”, na esfera estatal (RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, 2012, p. 174), é
considerado, na doutrina espanhola, direito coletivo decorrente do direito fundamental à
governança, mas no Brasil houve enfoque monodimensional, gerando inclusive lacunas
teóricas nas funções administrativas do Estado, insuficientes para responderem à realidade
social contemporânea.
Longe de se criticar quaisquer microssistemas coletivos, que são decisivos na
promoção do direito à boa governança, a objeção que se faz reside no descompasso entre a
teoria administrativa e a realidade normativa, em distanciamento do tema no Direito
Administrativo brasileiro, acarretando-se o tratamento pulverizado das normas jurídicas nessa
seara.

116
O princípio da legalidade antecede a invenção de modelos administrativos (burocrático e gerencial) e da
governança, vinculando-se ao nascimento do próprio Estado de Direito burguês decorrente da Revolução
Francesa. Exterioriza, de forma simbólica, a proteção dos direitos individuais em face do Estado, mas,
paradoxalmente, permite, com autoritarismo, a manutenção de privilégios e poderes de império da
Administração. Daí a ressignificação de legalidade por juridicidade pretendida por parcela da doutrina
administrativista contemporânea (BINENBONJM, 2014). A par disso, a legalidade, em ótica restrita, também
é figura central no modelo da Administração Pública burocrática.
105

O direito fundamental à governança, embora não seja expresso na ordem jurídica


brasileira, pode ser nela reconhecido como alicerce teórico da Administração Pública
democrática, extraindo-se seu fundamento normativo por meio da conexão de oito
perspectivas desta pesquisa, que enxerga o direito como integridade117:
I - O art. 5º, § 2º, da Constituição disciplina que os direitos e garantias positivados não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
A advertência de que onde “tudo é fundamental, nada é fundamental” (VALLE, 2011,
p. 81) é guia precioso para a autocontenção da argumentação jurídica pós-positivista, a
pontuar os perigos da inflação normativa e do pamprincipiologismo autoritário, já tendo sido
objeto de enfoque em capítulos precedentes.
Quando se inclui o direito à governança e seu caráter fundamental no ordenamento
jurídico brasileiro não se está a repetir antigos erros para os quais o alerta foi dado acima.
Isso porque a governança funciona, primordialmente, como instrumento de
maximização das próprias normas jurídicas já expressas no ordenamento, promovendo (não
apenas recomendando) a criação, modificação e extinção de condutas ou comportamentos nas
relações jurídicas administrativas e nos atos da Administração Pública.
Juli Ponce Solé, professor titular de Direito Administrativo na Universidade de
Barcelona, consigna a seguinte afirmação sobre a essência normativa examinada:

[...] Quando nos referimos à boa Administração, não nos referimos a um conceito
filosófico, para ser considerado, em qualquer caso, lege ferenda, mas aludimos a um
conceito legal, incorporado como veremos já em vários sistemas legais e que gera
uma série de obrigações jurídicas públicas, que podem ser exigidas por vários
meios118. (SOLÉ, 2012, p. 307, tradução nossa).

A confirmação do ângulo instrumental no estudo da governança é um dos caminhos


para o desvelamento da sua dimensão normativa, porquanto torna claro o fato de que ela
representa o conjunto de medidas destinado à efetividade de direitos fundamentais e normas
administrativas:

117
“O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo,
voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste
em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se
voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma
política em processo de desenvolvimento.” (STRECK, 2008, p. 306).
118
Cuando nos referimos a la buena Administración, no hacemos alusión a un concepto filosófico, para ser
considerado, en todo caso, de lege ferenda, sino que aludimos a un concepto jurídico, incorporado como
veremos ya en diversos ordenamientos y que genera una serie de obligaciones jurídicas públicas susceptibles
de ser exigidas por diversas vías.
106

A chave de solução [...] parece repousar na já afirmada percepção do caráter


instrumental do adequado exercício da função administrativa, para fins de
efetividade dos demais direitos fundamentais. Se assim o é, o que se tem, na
afirmação da boa administração como direito fundamental, é uma ampliação da
esfera de proteção desses mesmos direitos, que passa a alcançar não mais só os
resultados concretos do agir estatal – a prestação “x” ou “y” deferida e um cidadão -,
mas também, preventivamente, ao desenvolvimento da função administrativa como
um todo, e desde o início. Não se cuidaria, portanto, de inovação propriamente no
elenco original de direitos fundamentais, mas da explicitação de que esse Estado,
que se apresenta no século XXI, dotado de funções que vão muito além da polícia,
assume compromissos não só em relação aos resultados concretos de sua atuação,
mas igualmente tendo em conta todo o espectro de formulação, implementação e
avaliação das escolhas públicas que lhe são cometidas empreender. (VALLE, 2011,
p. 81).

Assim, o reconhecimento da boa governança situa-se, em parte, na constatação de que


a esfera estatal, trilhando a busca de efetividade dos direitos estabelecidos na Constituição,
precisa opor-se ao simbolismo hipertrófico normativo, formulando-se enfoque crítico da
função administrativa do Estado, compatível com a sociedade contemporânea, que é
complexa e plural, trazendo exigências múltiplas que, mal resolvidas, agravam o quadro de
crise de legitimidade estatal.
O fim da governança confunde-se, nesse sentido, com a eficácia social da moralidade,
da eficiência, da impessoalidade, da juridicidade e demais regras e princípios do Direito
Administrativo.
Daí o conceito elástico do direito à governança formulado por parte da doutrina:

Traduz-se no instrumento jurídico garantidor dos interesses e necessidades gerais


dos cidadãos, fazendo com que a Administração Pública seja cumpridora dos
preceitos determinados pela lei e pelo Direito, através de uma gestão pública
diligente, eficiente e eficaz, e realizadora do bem-estar social, mediante a prática de
atos que visem bem servir aos interesses dos administradores e consagrar os valores
e os direitos fundamentais que regem toda a atividade administrativa em um Estado
de Direito Democrático. (FERNANDES, 2015, p. 28).

As demandas sociais e os deveres estatais propiciam a fragmentação administrativa, o


intercâmbio entre os atores sociais, o aperfeiçoamento das técnicas de gestão e o esforço pela
legitimidade119 do Direito Administrativo.

119
“Os processos decisórios e de prestação de contas, no setor público, também são fonte de legitimidade. Nas
empresas, as decisões são tomadas pela direção, que presta contas a proprietários e acionistas. Já no setor
público, a sociedade participa das decisões das organizações, que a elas prestam contas de forma muito mais
complexa. Para tomar decisões, não basta às organizações públicas seu mandato legal: é preciso legitimá-las
por meio de uma interlocução democrática com a sociedade.
Por fim, é imperativo recuperar a legitimidade do Estado perante a população – desenvolver estratégias de
contraposição às práticas patrimonialistas, fortalecer a ética e a transparência públicas, promover a
participação do cidadão e conquistar qualidade no atendimento da população. Isso porque, se a democracia
107

A governança, nesse contexto fragmentado 120 ou policêntrico, exerce o papel


catalisador, na esfera estatal, de operacionalizar as normas jurídicas administrativas expressas
em lei e na Constituição.
II - O exame analítico das funções administrativas do Estado121, por sua vez, desnuda
severas lacunas do Direito Administrativo.
A doutrina decompõe, sem controvérsias, as funções administrativas estatais
ordinárias em: a) poder de polícia; b) poder de editar regras, produzir decisões e promover a
execução da lei; c) serviço público (a função prestacional); d) controle e e) fomento estatal e
regulação (KLEIN; NETO, 2014).
A governança, quando muito, é apêndice teórico; objeto de estudo restrito no campo
da regulação (KLEIN; NETO, 2014, p. 651). O planejamento administrativo sequer é
lembrado, como se fosse diretriz estranha ao Direito.
Esse hiato, fruto do intercâmbio simplificado com a Ciência da Administração, expõe
a fraca interdisciplinaridade na seara jurídica administrativa e revela fundamento, mesmo não
declarado, que ainda atrela governança à política e Administração Pública à aplicação
mecânica da lei.
Cretella Junior, citando o posicionamento de Seabra Fagundes na obra Controle
administrativo dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, ratifica a conclusão já exposta
nesta pesquisa:

possibilita que a sociedade se organize e cobre resultados dos governos, a frustração das expectativas e o
desânimo consequente de uma precária atuação do Estado comprometem o desenvolvimento democrático do
país. Logo, a qualidade da gestão pública é fator decisivo para alcançar os resultados esperados pela sociedade
e, portanto, para a legitimidade do Estado.” (OLIVEIRA, 2014, p. 35).
120
“A fragmentação administrativa no Estado contemporâneo foi, e ainda é, impulsionada: (i) pela transição de
uma “Administração Pública social” para uma “Administração Pública social e reguladora”; processo, através
do qual, a Administração Pública sofreu, a partir da segunda metade do século XX, uma “fuga” do centro, com
a proliferação de entidades institucionais ou territoriais distintas do Estado, o que propiciou um alargamento
das estruturas e atividades de uma Administração prestadora e social; e, mais recentemente, a partir da década
de 1970, uma divisão de tarefas público-administrativas, com os setores privados da sociedade (sociedade civil
e iniciativa privada), em razão da constatação da crise do Estado social, o que transformou a “face” da
Administração Pública, ao imputar a ela o papel de garantidora, reguladora e fiscalizadora de todas as
entidades e atividades delegadas e fragmentadas; (ii) pela democratização da Administração Pública [...]; (iii) e
pela busca da eficiência, como princípio jurídico-constitucional da Administração Pública que determina uma
maior fragmentação administrativa de forma a atender os princípios da universalidade, solidariedade,
continuidade dos serviços públicos, igualdade e dignidade da pessoa humana.” (FREITAS, 2011, p. 291-292).
121
Embora seja detectável carga de complexidade no estudo das funções administrativas do Estado na doutrina
brasileira, verifica-se que os enfoques residem nos critérios critérios orgânicos ou subjetivos, com atenção
especial para o sujeito e agente que exerce a atividade; critérios objetivos, fulcrados no conteúdo da função;
critérios formais, que examinam o tratamento jurídico da matéria e, finalmente, critérios residuais ou práticos,
que concluem ser atividade administrativa, de modo geral, aquilo que não for identificado como função
judicial ou ação legislativa (CARVALHO FILHO, 2017, p. 4). Desse modo, revela-se, predominantemente, a
preocupação sistemática que nem sempre é acompanhada do imperativo de readequação ou ressignificação das
funções administrativas do Estado no século XXI.
108

Pretender distinguir Administração, Poder Executivo e Governo é criar sutilezas,


sem fundamento sólido na doutrina.
Se a Administração, in genere, é Governo, ou seja, gestão de negócios de alguém, se
o direito administrativo rege, na ordem interna, a Administração Pública, esta
expressão pode ser entendida não só como a pessoa de direito público ou o órgão
político (conceito formal ou orgânico), normalmente competente para exercitar
atividade administrativa, dentro do Estado como também a própria atividade
administrativa exercida (conceito material). (CRETELLA JUNIOR, 2002, p. 33-34).

Nesse contexto, não se há falar na função administrativa eficiente ou em princípio da


eficiência administrativa, ao menos despido de simbolismo estéril, sem a construção de
alicerce teórico capaz de orientar o iter administrativo para o fim pretendido.
Os mecanismos de controle interno, preventivos ou repressivos, constituem apenas
parcela intermediária dos mecanismos que impulsionam a Administração Pública ao
cumprimento das metas estabelecidas pela ordem jurídica.
Por isso, a ideia de Administração policêntrica, no Estado Democrático de Direito, traz
o enfoque de que as funções administrativas clássicas têm falhas e omissões que inviabilizam
os resultados previstos no ordenamento jurídico.
Assim, a estrutura piramidal da Administração, em que os procedimentos
hierarquizados confundem-se com o fim, não responde às exigências básicas de boa
governança da sociedade atual, mantendo o engessamento das funções administrativas,
desconectadas da governança e do planejamento.
A reforma teórica do Direito Administrativo abraça propostas que estabelecem a
mudança do Executivo unitário para a Administração policêntrica, juntamente com superação
da supremacia do interesse público; da legalidade em favor da juridicidade administrativa e
dos graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade:

As autoridades independentes quebram o vínculo de unidade no interior da


Administração Pública, eis que a sua atividade passou a situar-se em esfera jurídica
externa à da responsabilidade política do governo. Caracterizadas por um grau
reforçado da autonomia política de seus dirigentes em relação à chefia da
Administração central, as autoridades independentes rompem o modelo tradicional
de recondução direta de todas as ações administrativas ao governo (decorrente da
unidade da Administração). Passa-se, assim, de um desenho piramidal para uma
configuração policêntrica. (BINENBONJM, 2014, p. 44).

A crise de governabilidade 122 , neste início de século (RODRIGUEZ-ARANA


MUÑOZ, 2012, p. 61), potencializa o debate da dimensão normativa da governança frente à
constatação de que o Direito Administrativo, geneticamente autoritário, também é pouco

122
A sociedade pós-industrial é, paradoxalmente, a sociedade da (des)organização, da tecnoestrutura
hiperdimensionada, da burocracia e da infinidade de mecanismos verticais.
109

permeável à influência de outros ramos do ordenamento jurídico e da ciência da


Administração Pública.
Dessa forma, a incompletude das funções administrativas do Estado é ponto sensível
no reforço à tese da dimensão normativa da governança: busca-se um Estado obediente ao
princípio eficiência administrativa deixando vazio o espaço teórico referente aos pressupostos
normativos antecedentes para o seu atingimento.
III - Também é incrementada a defesa desse direito por meio da superação do
entendimento que atribuía a escola do método jurídico de Otto Mayer o tratamento fechado do
Direito Administrativo, em repulsa ao método exegético, que homenageava a visão
compartilhada da ciência jurídica.
Juliano Ribeiro Santos Veloso fixa importante análise do direito ao planejamento, que
será abordado no próximo capítulo, mencionando o hermetismo erroneamente importado da
doutrina germânica:

Essa diferenciação metodológica do Direito Administrativo brasileiro se daria por


influência da escola alemã [...] afastando de fato o método exegético que se deixava
influenciar pela Ciência da Administração. Trata-se de trabalho realizado no Direito
Administrativo Alemão do final do século XIX, entre 1895 a 1896, muito antes da
Constituição Alemã, de 23 de maio de 1949. [...]
Todavia, não é o que parece ser da leitura do próprio livro de Otto Mayer. O Autor
deixa exatamente claro que sua finalidade é encontrar o objeto do Direito
Administrativo, o que não exclui a contribuição de outras ciências [...] (VELOSO,
2014, p. 30-31).

O paradigma de que caberia à Ciência da Administração tratar dos pressupostos da


eficácia social do Direito Administrativo é obstáculo ainda hoje presente ao desenvolvimento
teórico da governança e do planejamento administrativo, na seara jurídica.
Mas, a interpretação equivocada sobre a teoria de Otto Mayer, vale frisar, mostrava-se
rigorosa até mesmo para a vertente jurídico-positivista tradicional.
Já nos idos de 1964, Themístocles Brandão Cavalcanti alertava que:

[...] o direito administrativo em seu sentido objetivo, pressupõe a ciência da


administração, a existência de processos técnicos que presidem à atividade da
administração [...]
As normas do direito administrativo, pressupondo todos esses elementos técnicos,
fixando os preceitos que devem regular o funcionamento dos serviços públicos, a
função pública, as relações da administração e do Estado com os particulares,
apresenta-se, portanto, como um instrumento de ordem e da harmonia da vida do
Estado com a administração. (CAVALCANTI, 1964, p. 15-17).

A compreensão interdisciplinar do Direito Administrativo, como também será visto no


110

capítulo 6, funciona como promotora do direito à governança e do seu corolário, o direito ao


planejamento administrativo.
IV- O diálogo das fontes, consubstanciado na interlocução do Direito Administrativo
com os demais ramos do ordenamento jurídico, especialmente os vinculados à atividade
estatal ordinária, como o Direito Econômico, Urbanístico, Tributário, Financeiro e Ambiental,
consolida o status de norma fundamental da governança no Brasil.
Não há efetividade adequada do complexo panorama normativo de orçamento,
diretrizes orçamentárias, plano plurianual, responsabilidade fiscal, planejamento tributário,
governança ambiental, planejamento urbanístico/regional e de outras infindáveis espécies de
diretrizes planejadoras e administrativas excluindo-se do Direito Administrativo os deveres de
governança e de planejamento.
Raciocínio oposto encontra amparo na concepção de que a Administração Pública é
autômata ou aplicadora mecânica de regras jurídicas, o que à toda evidência é refutado nesta
pesquisa.
A Constituição de 1988, ademais, traz a dimensão planejadora ao prever no seu art. 3º
diversos objetivos da República, que pressupõem a conduta estatal conforme à governança e,
particularmente, ao planejamento administrativo. O Direito Administrativo alheio ao caráter
planejador da Constituição sedimenta o terreno da ineficácia social, funcionando como
combustível para a deslegitimação da esfera pública.
V- O poder discricionário 123 e a atuação vinculada ou regrada da Administração
Pública também são fatores que descortinam a dimensão normativa da governança, no
ordenamento jurídico brasileiro.
Os apontamentos a seguir estabelecidos, longe de buscarem dissecar a matéria,
direcionam-se, exclusivamente, a mostrar a inafastabilidade da governança na esfera pública,
sob a ótica jurídica tomada a partir do poder discricionário e do ato administrativo vinculado.
O tema em questão encontra-se envolto em profundas controvérsias teóricas relativas a
conceitos jurídicos indeterminados ou fluídos, razoabilidade, proporcionalidade, boa-fé,
justiça, juízo de igualdade, finalidade da lei e probidade (FARIA, 2016, p. 157-193). Não são
desconhecidos, ademais, os paradigmas derivados do giro linguístico-pragmático, que
agregam complexidade ao estudo dos atos vinculados e da discricionariedade, ao

123
Sublinha-se o entendimento de que “não parece correto designar-se ‘ato discricionário’ aquele emanado do
agente público no exercício de discricionariedade. Correto seria, a nosso sentir, adotar-se a expressão ‘ato
decorrente do poder discricionário’, a despeito de que expressivos administrativistas pátrios e estrangeiros
adotem a expressão ‘ato discricionário’. A discricionariedade é do agente administrativo. A esse a lei confere o
poder para praticar o ato ou de não praticá-lo, dependendo da situação concreta, ou, ainda, de adiar para época
que julgar oportuna a emanação do ato.” (FARIA, 2016, p. 157-158).
111

condicionarem a identificação do sentido normativo a mergulho filosófico nos contornos da


linguagem, buscando o “controle dos standards argumentativos, como a analogia, a
argumentação contra legem, a argumentação a contrario senso, as inconsistências parciais das
normas jurídicas [...]” (FERRAZ, 2013, p. 229-230).
Na medida em que o intérprete e o texto normativo não mais se encaixam
perfeitamente na estrutura sujeito-objeto, o modelo de subsunção (fato-tipo) sofre abalo
estrutural, repercutindo consequentemente nos significados e no próprio binômio ato
vinculado/poder discricionário124.
A ideia do mecanicismo dos atos vinculados e, até mesmo, a distinção entre conceitos
jurídicos indeterminados e discricionariedade passam a ser contestadas na academia.
Nesse sentido, determinados segmentos doutrinários sustentam o seguinte:

Não convence uma distinção qualitativa entre atos administrativos “vinculados” e


“discricionários”, uma vez que a discricionariedade sempre expressa uma abertura
de espaços de apreciação e avaliação dos fatos por parte do intérprete/aplicador da
norma, que se materializa através do emprego de conceitos linguísticos abertos,
vagos e pouco concisos. Não há diferença material entre a concessão destas margens
de decisão no lado da hipótese de uma norma ou no lado de seu mandamento; a
formulação concreta dos respectivos textos legais, muitas vezes, é apenas
contingencial. [...]
Por isso, a doutrina brasileira agiria bem caso não adotasse a distinção rígida entre
conceitos indeterminados e discricionariedade, que, na atual situação de avanço
doutrinário sobre o tema, já não faz mais sentido (KRELL, 2013, p. 181-183).

É importante notar que o afastamento teórico da Administração Pública burocrática e


positivista, somada ao escopo constitucional de eliminação do patrimonialismo no Brasil,
amplia a necessidade do debate sobre a organização qualificada na esfera estatal, em
obediência à governança e, em especial, ao planejamento administrativo.
A compreensão de que, no ato administrativo vinculado, “é indispensável a atuação
do intérprete, seja em face da indeterminação de conceitos normativos, seja porque está ele
submetido não apenas a ditames da lei, mas ao ordenamento jurídico [...]” (VARESCHINI,
2014, p. 269) fortalece, assim, o dever de aperfeiçoamento administrativo, diante da
insuficiência do texto legal para a operacionalização e desenvolvimento de ações estatais
concretas125.

124
“A doutrina costuma analisar a discricionariedade e a vinculação de forma contraposta, incidindo aquela nas
hipóteses em que a lei confere margem de liberdade ao administrador, e esta última quando já se estabelece de
antemão e em termos de incontestável objetividade a única solução a ser adotada, sem qualquer margem de
subjetividade do intérprete. Essa concepção, porém, ainda está atrelada ao paradigma da filosofia da
consciência e à metodologia lógico-dedutiva típica do positivismo, por meio do qual seria possível extrair do
texto normativo a verdade única.” (VARESCHINI, 2014, p. 268).
125
Cabe pontuar que a virada linguística não é debatida na academia como sentença de relativização do Direito,
112

Com o advento da guinada linguística, não se justifica mais qualquer vinculação


absoluta, cega, já que muitas expressões normativas são indeterminadas a priori.
Além disso, não se pode olvidar que o resultado das interpretação guarda estreita
relação com as pré-compreensões que o intérprete traz consigo, o qual confere
sentido ao texto normativo, sendo a norma fruto desse processo interpretativo.”
(VARESCHINI, 2014, p. 269).

Além do incremento teórico na seara dos atos vinculados, o enfoque específico do


poder discricionário também evidencia a indispensabilidade do direito à governança na
Administração Pública.
Nesse aspecto, dentro da visão clássica de ato discricionário126, o relevo do agir estatal
planejado, obediente aos alicerces da governança, já se mostrava cristalino, por força dos
hiatos propositais da ordem jurídica, que, incapaz de prever todas as situações do cotidiano
administrativo, transferia ao agente público amplas opções de agir.
Nada obstante, a concepção de ato imperial, insuscetível de controle de mérito pelo
Judiciário, foi descontruída pela doutrina (FARIA, 2016) e os novos contornos da
127
juridicidade trouxeram a ressignificação do poder discricionário, maximizando a
importância da governança como base administrativa do Estado Democrático de Direito,
verbis:

A emergência da noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da


Administração à Constituição, não mais permite falar tecnicamente, numa autêntica
dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários, mas, isto sim, em diferentes
graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade. A discricionariedade
não é, destarte, nem uma liberdade decisória externa ao direito, nem um campo
imune ao controle jurisdicional. Ao maior ou menor grau de vinculação do
administrador à juridicidade corresponderá, via de regra, maior ou menor grau de
controlabilidade judicial de seus atos. Não obstante, a definição da densidade do
controle não segue uma lógica puramente normativa (que se restrinja à análise dos
enunciados normativos incidentes ao caso), mas deve atentar também para os

tornando-o vago, inseguro e incerto. Funciona, em realidade, como constatação de que “a linguagem não é
apenas um terceiro elemento entre sujeito e objeto, mas sim fundamento de todo o pensar, na medida e que é
pela linguagem, e somente por meio dela, que o sujeito tem acesso ao mundo [...].” (VARESCHINI, 2014, p.
265).
126
“O conceito clássico de discricionariedade administrativa encontra fundamento no positivismo que, dentre
outras, defende a seguinte concepção: considerando que as normas jurídicas são incapazes de prever todas as
situações concretas e, ainda, contemplam termos imprecisos, confere-se ampla margem de liberdade ao juiz
para a resolução dos “casos difíceis”. É nesse ponto que o positivismo amolda-se ao paradigma da consciência,
porquanto o juiz, de forma solipsista, determina a melhor solução para o caso concreto, nas hipóteses de lacuna
do ordenamento jurídico [...]” (VARESCHINI, 2014, p. 263-264).
127
“Como explica Andreas Krell, de forma magistralmente clara, o enfoque jurídico-funcional (funktionell-
rechtliche Betrachtungs-weise) parte da premissa de que o princípio da separação de poderes deve ser
entendido, hodiernamente, como uma divisão de funções especializadas, o que enfatiza a necessidade de
controle, fiscalização e coordenação recíprocos entre diferentes órgãos do Estado democrático de direito.
Assim, as diversas figuras que caracterizam os diferentes graus de vinculação à juridicidade (vinculação plena,
conceito jurídico indeterminado, margem de apreciação, opções discricionárias, redução da discricionariedade
a zero) nada mais são do que códigos dogmáticos para uma delimitação jurídico-funcional dos âmbitos
próprios da Administração e dos órgãos jurisdicionais.” (BINENBOJM, 2014, p. 40).
113

procedimentos adotados pela Administração e para as competências e


responsabilidades dos órgãos decisórios, compondo a pauta para um critério que se
poderia intitular jurídico-funcionalmente adequado. (BINENBOJM, 2014, p. 39-40).

Na experiência empírica, todavia, a constitucionalização do Direito, manuseada de


forma acrítica, tem acarretado o aumento da ação administrativa autoritária e, paradoxalmente,
a ampliação arbitrária do círculo discricionário:

A vinculação da Administração aos princípios previstos na Constituição Federal, ao


contrário de restringir a discricionariedade administrativa – a depender do marco
teórico adotado – acabou por alargá-la de forma demasiada, na medida em que tais
normas apresentam alto grau de indeterminação, conferindo ampla margem de
liberdade ao agente público em sua conformação. Tal constatação tem acarretado
severos problemas na interpretação/aplicação do direito, o que acaba refletindo,
também, na atuação administrativa quando da conformação de atos discricionários.
(VARESCHINI, 2014, p. 264-265).

Nesse contexto, por mais ampla ou reduzida que seja a discricionariedade (ou os graus
de vinculação) na tomada do ato correto pelo agente público, a plasticidade128 inerente à
atuação administrativa reclama, indisfarçavelmente, a boa governança, até mesmo, como se
frisou, para a eficaz eliminação do autoritarismo administrativo.
As lacunas da governança e de planejamento administrativo, aliás, fomentam a má
qualidade de vários serviços executados ou prestados pela Administração Pública, em
consequência parcial do uso indevido do poder discricionário, conforme já restou sinalizado
pela doutrina brasileira, verbis:

Os princípios da moralidade e o da eficiência são os que a autoridade administrativa


mais transgride, no exercício da discricionariedade. Ao fazer a escolha no caso
concreto, por má-fé ou por dificuldade de operar corretamente, não adota a melhor
solução. (FARIA, 2016, p. 265).

Dessa forma, os desafios da atividade administrativa típica contemporânea evidenciam


o caráter imprescindível da abordagem teórica a ser conferida aos institutos da governança e
do planejamento administrativo, na ótica normativa.
VI- As sociedades hipercomplexas demonstram a insuficiência dos paradigmas do
Estado Social do século passado para suprir as demandas contemporâneas. Aumentar o
tamanho da máquina administrativa do Estado para cada nova exigência social nascida é

128
Para Di Pietro, a plasticidade na atuação discricionária origina-se dos seus elementos formadores,
concebendo-se a discricionariedade como “[...] faculdade que a lei confere à Administração para apreciar o
caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções,
todas válidas, perante o direito.” (DI PIETRO, 2012, p. 62).
114

fórmula que não se revela matematicamente exitosa, por força da finitude dos recursos
estatais.
A permeabilidade aos princípios da governança corporativa, nesse contexto, é mais um
fenômeno a cunhar a dimensão normativa da governança na esfera estatal.
Não há pacto social, contrato social, sentimento constitucional ou qualquer outra
expressão, liberal ou não, indicativa de legitimidade e adesão comunitária em torno da esfera
pública que perdure nas situações em que a Constituição, por exemplo, prometa x prestações
relativas a direitos sociais, os políticos eleitos prometam 2x e o Estado realize x/2 ou menos.
Daí o porquê da indispensabilidade do Terceiro Setor e da coparticipação dos demais
atores sociais na consecução do interesse coletivo.
Gregório Assagra de Almeida, ao sustentar a superação da summa divisio Direito
Público e Direito Privado no Estado Democrático de Direito, trilha raciocínio de que a
tradicional visão da esfera pública não responde às exigências sociais:

A dogmática jurídica, como ciência do estudo do direito positivo, deve assumir


nítida função construtiva/criativa e transformadora, impondo a compreensão do
direito positivo de forma desmistificada, não-alienada, como expressão da vida
social e a ela diretamente inerente. (ALMEIDA, 2008, p. 599).

O discurso político contrário à comunicação da governança corporativa com Direito


Administrativo, como já destacado anteriormente, é contraditório em si mesmo porque a
existência dos movimentos sociais organizados e das OTS tem base intrínseca na própria
defesa do planejamento, da prestação de contas, da transparência e da eficácia social dessas
atividades formalmente afastadas do Poder Público, mas desenvolvidas em prol da
coletividade.
Na panorama da sociedade pós-industrial, a separação total entre Estado, sociedade,
indivíduos e mercado é inexistente, sendo desarrazoada a pretensão de assegurar, por meio do
Direito, áreas estanques entre as diferentes esferas.
O dever jurídico da governança que recai sobre o Estado também decorre, nesse
ângulo, da pluralidade de atores sociais, stakeholders e das demandas naturais da rede de ação
estatal, que necessita de sofisticação capaz de coordenar atividades destinadas à satisfazer os
objetivos legais e constitucionais.
VII- Os retratos do Brasil exibem um país complexo, ambíguo e a possibilidade de se
identificar, fora do senso comum, falhas e desajustes na formação e estrutura da
Administração Pública brasileira, ainda hoje carregada de patrimonialismo.
Os objetivos planejadores da Constituição previstos no art. 3º, por sua vez, vinculam a
115

prioritária atuação organizada do Estado para os fins neles estabelecidos, em especial a


atuação organizada contra os denominados ciclos de pobreza, entre os quais figura o
patrimonialismo nacional.
O dever jurídico da governança deflui dessas metas superiores da nação, equiparadas a
princípios fundamentais constitucionais.
As lições dos retratos do Brasil têm importância capital, porquanto as dissimulações e
paradoxos no seio do poder nacional evidenciam a deliberada supressão da governança
pública em prol do fortalecimento da “gerência caseira/patrimonialista”, compartilhada entre
os chefes e os estamentos nacionais, o que assinala a urgência da governança pública e do
planejamento administrativo no País, como antessala da efetividade dos direitos sociais e
fundamentais.
A estrutura teórica da governança, antes de representar socorro artificial, com escora
em mais um direito inventado, característica do pamprincipiologismo autoritário e da visão
ingênua de Constituição Dirigente, funciona, ao revés, como obstáculo administrativo
concreto à “viagem redonda” brasileira, fomentando o ataque a específico ciclo de pobreza,
mediante o incremento da gestão que reduz os espaços do “jeitinho” e consequentemente
auxilia a efetividade dos direitos já expressos no ordenamento.
Os retratos do Brasil, nesse contexto, permitem a leitura administrativa do art. 3º da
Constituição, alicerçando a tese do direito à governança e ao planejamento na esfera pública.
VIII - Finalmente, é emblemático o fato de que autoridades do Governo, ligadas ao
Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão129, que representam o Brasil em
organismo internacional (CLAD), firmaram documentos e cartas de compromisso
internacionais onde resta assentada, de forma expressa, o reconhecimento do direito
fundamental à boa administração.
A adesão a esse princípio jurídico em foro internacional, embora sem força de tratado,
reforça o conteúdo normativo da governança, como direito reconhecido.
Sedimenta essa conclusão, como já registrado neste capítulo, o princípio da boa-fé,
aceito no plano internacional por meio da interpretação conferida aos arts. 1º e 2º, da Carta da
Organização das Nações Unidas (ONU)130, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 19.841, de

129
O CLAD indica, em sua página na internet, que a representação brasileira se dá por intermédio do Ministério
do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (CENTRO LATINOAMERICANO DE ADMINISTRACIÓN
PARA EL DESARROLLO, 2017).
130
“Artigo 1. Os propósitos das Nações unidas são:
1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para
evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios
pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das
116

22 de outubro de 1945.
As oito perspectivas assinaladas ao final deste capítulo, combinadas, traçam
consistente quadro da dimensão normativa da governança no Brasil.
Não se trata, como visto, de direito fundamental a ingressar no rol de inutilidades
influenciadas pela crença de que a norma é a solução final para uma nova realidade
comunitária, ao lado do simbólico arsenal de promessas de boa vida já concebidas pelos
Poderes constituídos.
A sua raiz normativa vem dos próprios princípios fundamentais da ordem jurídica,
impulsionando a eficácia social das normas jurídicas administrativas e dos direitos
fundamentais.
A governança dirige-se ao Estado e ao cidadão, caracterizando-se como princípio
jurídico, aqui entendido como a norma jurídica com densidade semântica menor; apelo a
valores políticos e sociais, embora não confundidos com valores; possibilidade de exceção
expressa ou implícita e defectibilidade ou superação mais constante do que as regras
(SAMPAIO, 2013, p. 406-407), que, contrariamente, não possuem a dimensão de peso dos
princípios e, nos casos de conflito, uma delas não é considerada válida, por meio do modelo
tudo-ou-nada (DWORKIN, 2016).
Guia-se, objetivamente, como dever jurídico da Administração Pública, impositivo de

controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz;


2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e
de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;
3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico,
social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e
4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.
Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de
acordo com os seguintes Princípios:
1. A Organização é baseada no princípio da igualdade de todos os seus Membros.
2. Todos os Membros, a fim de assegurarem para todos em geral os direitos e vantagens resultantes de sua
qualidade de Membros, deverão cumprir de boa fé as obrigações por eles assumidas de acordo com a presente
Carta.
3. Todos os Membros deverão resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo que não
sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais.
4. Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a
integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com
os Propósitos das Nações Unidas.
5. Todos os Membros darão às Nações toda assistência em qualquer ação a que elas recorrerem de acordo com
a presente Carta e se absterão de dar auxílio a qual Estado contra o qual as Nações Unidas agirem de modo
preventivo ou coercitivo.
6. A Organização fará com que os Estados que não são Membros das Nações Unidas ajam de acordo com
esses Princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais.
7. Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam
essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os Membros a submeterem tais assuntos a uma
solução, nos termos da presente Carta; este princípio, porém, não prejudicará a aplicação das medidas
coercitivas constantes do Capitulo VII.” (ORGANIZAÇAO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).
117

ação ou obstativo de prática contrária a sua essência. Subjetivamente, abraça a dimensão dos
direitos subjetivos públicos ou direitos coletivos, bem como os deveres dos cidadãos frente ao
Poder Público131.
Com a análise do direito fundamental à governança132, princípio jurídico multiangular
que desenha o contemporâneo formato da Administração Pública democrática, é oportuna,
diante dos objetivos específicos desta pesquisa, a abordagem do planejamento administrativo,
cuja dimensão normativa deriva da concepção jurídica de governança pública.

131
O direito à governança, segundo Juarez Freitas, é “[...] direito fundamental à administração pública eficiente e
eficaz, proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, sustentabilidade, motivação proporcional,
imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas condutas
omissivas e comissivas.” (FREITAS, 2014, p. 167).
132
Juarez Freitas também pontua a larga amplitude do direito à boa administração, que em seu entendimento
abriga “[...] (a) o direito à administração pública transparente, que supõe evitar a opacidade (salvo nos casos
em que o sigilo se apresentar justificável, e ainda assim não definitivamente); (b) o direito à administração
pública sustentável, que implica fazer preponderar, inclusive no campo regulatório, o princípio constitucional
da sustentabilidade, que determina a preponderância dos benefícios sociais, ambientais e econômicos sobre os
custos diretos e indiretos (externalidades negativas), de molde a assegurar o bem-estar multidimensional das
gerações presentes sem impedir que as gerações futuras alcancem o próprio bem-estar multidimensional; (c) o
direito à administração pública dialógica, com amplas garantias ao contraditório e ampla defesa e motivação
explícita, clara e congruente; (d) o direito à administração pública imparcial e desenviesada, isto é, aquela que,
evitando os desvios cognitivos, não pratica nem estimula discriminação negativa de qualquer natureza e, ao
mesmo tempo, promove as discriminações inversas ou positivas (redutoras das desigualdades iníquas); (e) o
direito à administração pública proba, que veda condutas éticas não universalizáveis; (f) o direito à
administração pública respeitadora da legalidade temperada; (g) o direito à administração pública preventiva,
precavida, eficaz (não apenas economicamente eficiente) e comprometida com resultados compatíveis com
indicadores de qualidade de vida, em horizonte de longa duração.” (FREITAS, 2014, p. 167-168).
119

6 PLANEJAMENTO ADMINISTRATIVO

O planejamento, tal como a governança, possui mais de um significado: é técnica


gerencial da Administração Pública, método da governança corporativa (MATIAS-PEREIRA,
2010, p. 87-106), função administrativa, no âmbito da Ciência da Administração
(CHIAVENATO, 2003) e direito, integrante da ciência do dever ser, dotado de normatividade
(VELOSO, 2014), sendo este último o conceito que interessa à presente pesquisa.
O capítulo anterior descortina o prisma de que a governança é a matriz teórica do
direito ao planejamento administrativo.
Essa observação permite o registro inicial de que os fundamentos que revelam a
dimensão normativa da governança, da boa administração ou da boa governança transportam-
se, harmoniosamente, para o planejamento administrativo, de modo a ratificar a hermenêutica
gadameriana de que cada coisa particular só pode ser compreendida a partir do geral e vice-
versa, em expressão do círculo interpretativo ou círculo hermenêutico (GADAMER, 2016).
As críticas e refutações ao direito fundamental à governança, analisadas no capítulo 5,
nesse contexto, também impactam na tese da normatividade do planejamento.
A paridade entre essas situações ocorre, como assinalado, porque o caráter normativo
do planejamento administrativo, deontológico, é ângulo do direito fundamental à governança
ou à boa administração. O planejamento, sob a ótica jurídica, é norma fundada na governança,
contida em seu feixe principiológico.
A perspectiva jurídica do planejamento administrativo, portanto, decorre de sua carga
genética, como elemento originário do plexo normativo da boa governança, e também pelo
fato de que “por meio dele, criam-se, modificam-se e extinguem-se direitos, produzindo
efeitos jurídicos dos mais diversos, além de permear todos os tipos de status de normas, que
vão desde a Constituição até os regulamentos” (VELOSO, 2014, p. 26), verbis:

[...] além de estar presente em diversas normas, é capaz de gerar direitos e deveres,
implicando a efetividade dos comportamentos sociais, segundo leciona Reale (2002,
p. 62): [...] “’Direito’ está em correlação essencial com o que denominamos
‘experiência jurídica’, cujo conceito implica a efetividade de comportamentos
sociais em função de um sistema de regras que também designamos com o vocábulo
Direito.” (VELOSO, 2014, p. 27).

Nesse sentido, a atividade administrativa deve obediência à ação de planejar, que


“ocupa papel protagonista na efetivação dos direitos, visto que é o primeiro ato jurídico do
processo administrativo” (VELOSO, 2014, p. 199), caracterizando-se como a locomotiva da
120

boa governança, por preceder os demais princípios derivados desse direito fundamental.
A importância do direito ao planejamento exterioriza-se na sua imprescindibilidade
para a organização da máquina pública, execução das atividades e destinação dos finitos
recursos, funcionando como antecedente lógico do princípio da eficiência administrativa,
outro fator argumentativo a confirmar a raiz normativa ora defendida.
A eficiência administrativa “provoca para a Administração Pública um dever positivo
de atuação otimizada, considerando-se os resultados da atividade exercida, bem como a
adequação da relação entre os meios e os fins [...].” A eficiência é considerada bipotencial,
porque impõe o “máximo aproveitamento das potencialidades existentes, isto é, dos recursos
escassos que a coletividade possui, como o resultado quantitativamente e qualitativamente
otimizado [...].” (FREITAS, 2011, p. 135).
Todavia, o princípio da eficiência, na sua dimensão jurídica, ganha ares artificiais
propulsores da insinceridade normativa quando estudado isoladamente, dissociado do
planejamento administrativo.
Pontua-se, inclusive, a crítica realizada no capítulo anterior acerca dos hiatos teóricos
das funções administrativas do Estado, alheias à governança e ao planejamento
administrativo. O simulacro do Estado concretizador de direitos fundamentais perpassa a
discussão dessa lacuna central na dogmática administrativa.
A eficiência administrativa obriga o Estado “a otimizar os resultados alcançados em
relação aos recursos disponíveis e investidos em sua consecução em um marco de
compatibilidade com a equidade e com o serviço objeto de interesse geral”133 (tradução
nossa), conforme dispõe o item 7, do capítulo segundo (“Princípios”) da Carta
Iberoamericana de los Derechos y Deberes del Ciudadano en Relación con la Administración
Pública.
O planejamento administrativo, apesar da proximidade conceitual, tem sentido e
alcance distintos da eficiência, identificando-se com o princípio da eficácia, previsto no item 6

133
A optimizar los resultados alcanzados en relación con los recursos disponibles e invertidos en su consecución
en un marco de compatibilidad con la equidad y con el servicio objetivo al interés general.
Esse conceito de eficiência administrativa é compatível com a dimensão normativa do Estado Democrático de
Direito brasileiro, auxiliando a refutação das críticas que enxergam no modelo gerencial de Administração
Pública uma “cruzada neoliberal”. Na esteira dos fundamentos desenvolvidos nesta pesquisa, o paradigma
administrativo fragmentado/policêntrico de intercâmbio e conexão entre as diversas esferas e atores, nas
sociedades ocidentais do século XXI, exibe a face eclética da eficiência.
De modo congruente, Daniela Bandeira de Freitas registra que “tanto o sistema jurídico português, como o
sistema jurídico brasileiro, submeteram o princípio da eficiência à vertente teleológica do Estado social, ao
integrá-lo aos valores da justiça social e do bem-estar de todos os cidadãos.” Segundo a autora, o princípio da
eficiência administrativa desdobra-se em outros sete subprincípios: universalidade; produtividade;
economicidade; qualidade; celeridade e presteza; continuidade ou não interrupção da prestação e
desburocratização. (FREITAS, 2011, p. 134-135).
121

da mesma Carta:

Princípio da eficácia, em virtude do qual as ações administrativas devem ser


realizadas, de acordo com o pessoal designado, no âmbito dos objetivos
estabelecidos para cada entidade pública, que sempre será ordenada para a maior e
melhor satisfação das necessidades e expectativas legítimas do cidadão.
As Autoridades procurarão assegurar que os procedimentos e as medidas adotadas
atinjam seu objetivo e, para o efeito, procurarão remover de ofício os obstáculos
puramente formais e evitar atrasos e atrasos, buscando compatibilidade com
equidade e atendimento objetivo ao interesse geral. Nessa matéria, o regime de
responsabilidade do pessoal ao serviço da Administração Pública será aplicável, de
acordo com os diferentes sistemas legais.134 (CENTRO LATINOAMERICANO DE
ADMINISTRACION PARA EL DESARROLLO, 2013).

Jaime Rodríguez-Arana Muñoz, ao extrair vinte e quatro princípios decorrentes do


direito fundamental à governança, reconheceu entre eles a eficácia, com a mesma orientação
firmada na Carta Iberoamericana, sugerindo o condicionamento do Poder Público à
organização e a marcos fixadores de objetivos estabelecidos por cada ente público:

Princípio da eficácia, em virtude do qual as atuações administrativas realizar-se-ão


no marco dos objetivos estabelecidos por cada ente público. Em especial, as
autoridades buscarão que os procedimentos e as medidas adotadas logrem sua
finalidade [...]. (RODRIGUEZ-ARANA MUÑOZ, 2012, p. 170).

A Carta Iberoamericana de los Derechos y Deberes del Ciudadano en Relación con


la Administración Pública e a doutrina espanhola, portanto, englobam a dimensão normativa
planejadora no denominado princípio da eficácia administrativa.
Nada obstante, prefere-se a designação “planejamento” devido à sintonia com os
textos normativos brasileiros e com a governança corporativa, permeável à Ciência da
Administração. Trata-se de vocábulo técnico e mais preciso do que o genérico termo
“eficácia”.
Quando se alude à sintonia com o ordenamento jurídico nacional, ademais, vale citar
Juliano Ribeiro Santos Veloso, que informa haver 16% do texto constitucional brasileiro
estruturado com normas de planejamento, traduzindo a Constituição de 1988 como verdadeira
“Constituição Planejadora”:

134
Principio de eficacia, en cuya virtud las actuaciones administrativas deberán realizarse, de acuerdo con el
personal asignado, en el marco de los objetivos establecidos para cada ente público, que siempre estarán
ordenadas a la mayor y mejor satisfacción de las necesidades y legítimas expectativas del ciudadano.
Las Autoridades buscarán que los procedimientos y las medidas adoptadas logren su finalidad y, para ello,
procurarán remover de oficio los obstáculos puramente formales y evitarán las dilaciones y los retardos,
buscando la compatibilidad con la equidad y el servicio objetivo al interés general. En esta materia será de
aplicación, de acuerdo con los diferentes ordenamientos jurídicos, el régimen de responsabilidad del personal
al servicio de la Administración Pública.
122

[...] o instituto jurídico do Planejamento é mencionado 99 vezes, por meio dos


termos “plano” (48 vezes), “planejamento/planejar/planejada” (11 vezes) e
“programa” (40 vezes), em mais de 40 artigos, estando presente em quase 16% do
texto constitucional. (VELOSO, 2014, p. 82).

O diálogo entre os ramos do Direito e a legislação infraconstitucional brasileira


também evidenciam o direito ao planejamento administrativo em número considerável de
diplomas135, cabendo menção especial a três deles.
A Lei n. 4.320, de 17 de março de 1964, Lei dos Orçamentos, recepcionada pelos arts.
165 a 169 da Constituição de 1988, com a estatura de lei complementar, é amostra da seara
financeira a refletir a obrigatoriedade do planejamento administrativo para o funcionamento
do Estado.
A necessidade do acoplamento entre a distribuição dos recursos públicos e a
organizada execução administrativa das tarefas estatais mostra a face do sistema de
planejamento nacional traçado pelo legislador, evidenciando a impertinência da omissão
teórica no Direito Administrativo referente aos temas governança e planejamento.
O sistema orçamentário brasileiro, nas suas dimensões jurídica, econômica e política,
revela que o descompasso entre o Direito Financeiro e o planejamento administrativo não
representa opção jurídica legítima do Administrador Público, notadamente quando estão em
jogo os direitos fundamentais.
A normatividade do planejamento administrativo decorre, em parte, dessa percepção
instrumental de concretização dos direitos constitucionalmente previstos, o que obriga a
organização do Estado, impõe a qualificação adequada do quadro de pessoal e determina a
ação planejada da Administração Pública para execução das atividades, estabelecendo-se a
partir daí deveres jurídicos, direitos subjetivos públicos e coletivos:

[...] a melhoria da prestação dos serviços públicos e a implementação das políticas


públicas perpassam, necessariamente, pelo planejamento democrático, conforme as
diretrizes da Constituição de 1988 e os instrumentos orçamentários. Assim, a
ausência de um planejamento responsável acarreta a produção de dois efeitos
inversamente proporcionais: (i) o não atingimento dos objetivos e o (ii) gasto de má
qualidade, isto elide a consecução dos objetivos e torna mais provável o desperdício
de recursos. [...]. (COSTA, 2015, p. 43).

Em linha harmoniosa com a preponderância dos direitos fundamentais na ordem


135
A doutrina traz múltiplos exemplos da legislação planejadora: a) em matéria de segurança pública (Lei n.
11.530/2007); b) educação (Lei n. 10.172/2001); c) cultura (Lei n. 12.343/2010); d) saúde (Lei n. 8.080/1990);
e) previdência (Lei n. 8.213/1991); f) assistência (Lei n. 8.742/1993); g) família (Lei n. 9.263/1996); h) meio
ambiente (Lei n. 6.938/1981); i) serviços notariais e registrais (Lei n. 8.935/1994); j) urbanismo (Lei n.
10.257/2001); k) viação (Lei n. 5.917/1973); l) saneamento (Lei n. 11.445/2007); m) plano de carreira (Lei n.
8.112/1990). (VELOSO, 2014, p. 97-106).
123

jurídica, cabe lembrar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.


347, de relatoria do ministro Marco Aurélio, em tramitação no STF, que sustenta a
inconstitucionalidade do contingenciamento orçamentário de valores do Fundo Penitenciário
Nacional (FUNPEN), na ordem de R$ 2,2 bilhões de reais pela União. O ministro relator
deferiu a liminar, neste ponto, determinando à União que liberasse o saldo acumulado do
FUNPEN para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de realizar
novos contingenciamentos até que se reconheça a superação do estado de coisas
inconstitucional do sistema prisional brasileiro136.
A Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000, Lei de Responsabilidade Fiscal,
por sua vez, nasceu repleta de polêmicas e buscou corrigir a tradição de irresponsabilidade
fiscal e orçamentária dos governantes brasileiros, afirmando, por via indireta, o caráter
jurídico da atividade planejadora do Estado, como ponte para a satisfação dos direitos
fundamentais:

O advento da Lei de Responsabilidade Fiscal não veio sem resistências ideológicas,


mas demonstrou, mais uma vez, que a clivagem neste plano já não mais se faz na
surrada opção, de ordem unida intelectual, entre esquerda e direita, mas entre uma
democracia formal e uma democracia substancial.
Basta examinar os argumentos expendidos pelos que se surpreenderam e se sentiram
incomodados com os novos princípios orçamentário-financeiros, como os do
equilíbrio fiscal e da prudência fiscal, e com a perda das folgadas margens para a
gastança arbitrária e eleitoreira, para claramente se distinguir os que têm a
democracia apenas como um processo de sufrágio de nomes, dos que entendem e
cultuam como uma expressão maior da liberdade de escolha de como cada um
pretende viver. (MOREIRA NETO, 2001, p. 21).

As palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, datadas de 2001, embora atestem


sofrida constatação da “viagem redonda”137 de Raymundo Faoro, mostrando que os avanços

136
“O Tribunal, apreciando os pedidos de medida cautelar formulados na inicial, por maioria e nos termos do
voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), deferiu a cautelar em relação […] à alínea “h”, por maioria e nos
termos do voto do Relator, deferiu a cautelar para determinar à União que libere o saldo acumulado do
Fundo Penitenciário Nacional para utilização com a finalidade para a qual foi criado, abstendo-se de
realizar novos contingenciamentos, vencidos, em menor extensão, os Ministros Edson Fachin, Roberto
Barroso e Rosa Weber, que fixavam prazo de até 60 (sessenta) dias, a contar da publicação desta decisão, para
que a União procedesse à adequação para o cumprimento do que determinado; […]. Plenário, 09.09.2015.”
(BRASIL, 2015b, grifo nosso).
137
Com acidez, após o falecimento de Tancredo Neves, Juca Chaves abordou na música “Nova República” a
agonia social acerca das mudanças nacionais que apenas acontecem no papel: “Adeus Velha República do
João/ começamos a Nova tal igual/ banquete milionário, o escote camarão/ o patriotismo acaba, quando o
whisky é nacional/ não era apendicite o que era então?/ Confundiu-se o doutor, coisa normal/ pois diverticulite
é a inflamação/ da diversão da negligente da frente-liberal/ A Nova ré república pela Velha superada está
sendo, por plagio, processada/ e a tão sonhada luz no túnel não passou decepção/ de uma moto maranhense
contramão/ O povão está preocupado e chora/ o fantasma que seria presidente/ mas ninguém preocupou-se até
agora com a piora/ do nosso brasilzinho tão doente/ pois é clinicamente não é segredo/ o que preocupa o povo
isso eu sei/ não é somente a ausência do simpático Tancredo/ é o excesso de saúde do Sarney, chorei.
(CHAVES, 1985).
124

normativos têm tradicionalmente a eficácia social sobremaneira enfraquecida no Brasil,


sinalizam, por outro lado, a atualidade da urgência de caminhos para a melhor observância
dos direitos fundamentais.
Finalmente, o marco normativo infraconstitucional do direito ao planejamento
administrativo pode ser atribuído ao Decreto Lei n. 200, de 25 de fevereiro de 1967, que, ao
tratar da organização da Administração Pública federal, trouxe expressa menção a
determinadas dimensões de planejamento, nos arts. 6º e 7º.138
Planejamento estratégico, tático e operacional são conceitos da Ciência da
Administração e ganharam notoriedade por meio da governança corporativa. Podem ser
transportados para a esfera pública obedecida a dinâmica estatal traçada no ordenamento, isto
é, considerados os limites constitucionais ligados à vertente teleológica do Estado social que
permeia a dimensão normativa do Estado brasileiro.
Segundo Matias-Pereira,

Planejamento estratégico consiste em examinar a situação atual e a trajetória futura


de uma organização ou comunidade, definindo objetivos, desenvolvendo a estratégia
para atingi-los e avaliando os resultados. Constituem elementos do planejamento
estratégico: (a) análise da situação interna e externa; (b) diagnóstico ou identificação
das questões mais importantes à frente da organização; (c) definição da missão
fundamental; (d) articulação dos seus objetivos básicos; (e) criação de uma visão do
sucesso almejado; (f) desenvolvimento de uma estratégia para realizar a visão e os
objetivos definidos; (g) elaboração de um calendário para executar a estratégia; (h)
mensuração dos resultados [...]. (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 90).

O ângulo normativo do planejamento administrativo não se limita ao dever jurídico


estatal de realizar planos ou programas amplos e diferidos no tempo, o que se aproxima da
concepção do planejamento estratégico, de nível institucional e com conteúdo genérico e
amplo.
Estende-se, também, para as atividades imbricadas no modo como se dá a divisão das
funções estatais, na desconcentração, descentralização, terceirização, repartição de
competências, estruturação orgânica e funcional (planejamento tático, de nível intermediário,
com conteúdo menos genérico e relativamente detalhado), bem como na própria atividade
administrativa ordinária, como filtro antecedente dos atos e negócios jurídicos administrativos

138
Art. 6º As atividades da Administração Federal obedecerão aos seguintes princípios fundamentais: I –
Planejamento. II – Coordenação. III – Descentralização. IV - Delegação de Competência. V - Contrôle.
Art. 7º A ação governamental obedecerá a planejamento que vise a promover o desenvolvimento econômico-
social do País e a segurança nacional, norteando-se segundo planos e programas elaborados, na forma do
Título III, e compreenderá a elaboração e atualização dos seguintes instrumentos básicos: a) plano geral de
governo; b) programas gerais, setoriais e regionais, de duração plurianual; c) orçamento-programa anual; d)
programação financeira de desembôlso. (BRASIL, 1967).
125

(planejamento operacional, de conteúdo detalhado). (CHIAVENATO, 2003).


O agir administrativo, portanto, submete-se integralmente ao planejamento, que
abrange:

[...] o desenvolvimento de processos, técnicas e atitudes administrativas, as quais


proporcionam uma situação viável de avaliar as implicações futuras de decisões
presentes em função dos objetivos [...] (OLIVEIRA, 2006, p. 34).

As ações, atividades e projetos administrativos inerentes à realização dos atos


vinculados, dos atos decorrentes do poder discricionário e das relações jurídicas da
Administração estão abraçadas pelas dimensões de planejamento139.
A título de exemplo, uma singela placa de trânsito mal fixada na rodovia, muito
próxima a cruzamento, provocando a perda do acesso à via secundária pelos motoristas, não
indica falha no planejamento geral ou intermediário, mas sugere o viciado planejamento
administrativo ligado às funções ordinárias, à atividade operacional da Administração Pública
e que produz, como consequência, a desconformidade da ação com o plano constitucional
administrativo, passível de autocontrole de validade do ato ou, até mesmo, de controle judicial
na hipótese de inércia da Administração. E o mais importante: no paradigma do planejamento
a própria existência dos atos administrativos viciados encontra obstáculo possível.
O caso exposto é útil, pois instiga a reflexão de que o princípio da eficiência, como
norte da qualidade final do serviço público, é lacunoso e hipertroficamente simbólico quando
desconectado do planejamento administrativo.
O princípio da eficiência, quando não atendido, viabiliza o exercício da função
administrativa de controle, fase em que o dano frequentemente está materializado (ensejando
o controle corretivo ou repressivo) ou está na iminência de ocorrer (provocando o controle
preventivo ou prévio). Deve-se pontuar que, mesmo no caso do controle preventivo, ao se
desconsiderar a dimensão jurídica do planejamento, não será observada a gênese e o processo
de construção do ato administrativo, mas apenas o iminente ato lesivo isoladamente
considerado. O planejamento administrativo difere da função administrativa de controle,
portanto.
Por meio do planejamento administrativo, nesse contexto, ocorre o estímulo ao
funcionamento dinâmico e eficiente da máquina pública, evitando-se que as ações estatais

139
Juliano Ribeiro Santos Veloso denomina de multidimensionalidade as diversas formas de planejamento,
classificando-a como característica do planejamento administrativo, ao lado da complexidade, orientação
finalística, seletividade, conexividade, flexibilidade, criatividade, territorialidade, temporalidade, geradora de
segurança jurídica e democrática (VELOSO, 2014, p. 111-126).
126

sejam definidas no imediatismo, dificultando-se a implementação de vontades pessoais nem


sempre republicanas; assegura-se a observância da capacidade financeira do ente público;
promove-se a manutenção e conservação do patrimônio público material e imaterial;
eliminam-se riscos da atividade e fomenta-se a correção de vícios embrionários na gestão
capazes de afetar as contas públicas; transporta-se, democraticamente, o anseio e carências da
população para a Administração Pública; viabiliza-se a detecção das prioridades, facilitando a
conclusão progressiva dos projetos a partir da ordem de relevância e compatibiliza o agir
administrativo com os reclames da lei de responsabilidade fiscal para o almejado equilíbrio
das contas públicas, indispensável ao funcionamento do Estado prestacional (ANDRADE,
2008, p. 3).
O planejamento, embora decorrente do direito fundamental à governança, não se
caracteriza pelo objeto reduzido. Possui conteúdo procedimental e também forte matiz
axiológico140condicionado aos objetivos da República e ao modelo eclético adotado pela
Constituição de 1988, que combina Estado social com a Administração gerencial, mais
compatível com as demandas do século XXI.
Segundo Gilberto Bercovici:

O planejamento coordena, racionaliza e dá uma unidade de fins à atuação do Estado,


diferenciando-se de uma intervenção conjuntural ou casuística. O plano é a
expressão da política geral do Estado. É mais do que um programa, é um ato de
direção política, pois determina a vontade estatal por meio de um conjunto de
medidas coordenadas não podendo limitar-se à mera enumeração de reivindicações.
E por ser expressão desta vontade estatal, o plano deve estar de acordo com a
ideologia constitucional adotada. O planejamento está, assim, sempre comprometido
axiologicamente [...]. (BERCOVICI, 2005, p. 69-70).

Na dimensão jurídica examinada, o planejamento administrativo pode ser definido


como norma jurídica constitucional não expressa, mas reconhecida, que decorre do acervo
principiológico do direito fundamental à governança, exteriorizando a obrigatória atuação
planejadora geral, intermediária e detalhada do Estado.
Tem ângulo procedimental, mas também acolhe valores (embora com eles não se
confunda), consistentes na essência democrática e na eclética ideologia constitucional
adotada, impondo, objetivamente, deveres jurídicos à Administração Pública, positivos, com

140
De modo congruente, Juliano Ribeiro Santos Veloso registra as lições de Scott J. Shapiro no sentido de que
“A atividade legal não é só uma atividade de Planejamento, mas de Planejamento social. É importante
preocupar-se não só com que haja Planejamento, mas como é realizado o Planejamento [...].
[...] o Direito é um instrumento que pode ser utilizado para o bem ou para o mal. Por outro lado, há formas
corretas e incorretas de usar o instrumento, bem como não há como legislar esse manual, mas a esperança não
estaria perdida na utilização desse instrumento chamado lei [...].” (VELOSO, 2014, p. 144 e 146).
127

obrigações de fazer, e negativos, obstativos de práticas opostas ao seu conteúdo.


Subjetivamente, contempla direitos subjetivos públicos ou direitos coletivos exigíveis para a
maximização dos direitos fundamentais, a demonstrar a essência derivada da governança.
Trata-se de princípio jurídico. Excepcionalmente, pode ter a função de regra, como na
obrigação constitucional de estabelecer o plano plurianual ou as diretrizes orçamentárias.
A presente dissertação examina as implicações jurídicas que o direito à governança e
ao planejamento administrativo trazem no acesso a cargos, empregos e funções públicas no
Brasil.

Na base do planejamento está a missão, que, em essência, é desenvolver as


capacidades de governar e de gerir recursos – administrativos, financeiros, materiais,
tecnológicos e de pessoal – necessários para formular e implementar as políticas
públicas. Para alcançar a missão é indispensável a consolidação de uma nova cultura
entre seus executores, os servidores públicos. (OLIVEIRA, 2014, p. 71).

Não é difícil intuir que a organização, a estrutura e a melhor qualificação do quadro de


pessoal, bem como de todos os coparticipantes da Administração Pública policêntrica, é fator
significativo para a realização satisfatória dos serviços de interesse coletivo e a maior
efetividade dos direitos fundamentais objeto de prestações estatais.
Lições da Ciência da Administração, sobre o sistema de recursos humanos, confirmam
que a base da excelência organizacional é o elemento humano141, propiciando a conclusão de
que ponto nuclear da boa administração pública tangencia o adequado preenchimento de
cargos, empregos e funções do Estado:

Em plena Era do Conhecimento, a base da excelência organizacional passou a ser o


elemento humano. A globalização, o desenvolvimento tecnológico e a mudança e
transformação da sociedade, fazem com que a capacidade de sobrevivência e
excelência das organizações passe cada vez mais a depender forte e diretamente das
habilidades e competências das pessoas que nelas trabalham. (CHIAVENATO, 2015,
p. 1).

O patrimonialismo, como visto, é ciclo de pobreza que embaraça o desenvolvimento,

141
O recrutamento requer um cuidadoso planejamento, que constitui uma sequencia de três fases: 1) O que a
organização precisa em termos de pessoas. 2) O que o mercado de RH pode oferecer. 3) Quais são as técnicas
de recrutamento a aplicar. [...] Daí as três etapas do processo de recrutamento: 1) Pesquisa interna das
necessidades. 2) Pesquisa externa do mercado. 3) Definição das técnicas de recrutamento a utilizar. [...]
O planejamento do recrutamento tem, pois, a finalidade de estruturar o sistema de trabalho a ser desenvolvido.
[...] O levantamento interno não é esporádico ou ocasional, mas deve ser contínuo e constante, envolvendo
todas as áreas e níveis da organização no sentido de retratar suas necessidades de pessoal e o perfil,
características e competências que esses novos participantes deverão possuir e oferecer. Em muitas
organizações, a pesquisa interna é substituída por um trabalho mais amplo denominado Planejamento de
Recursos Humanos [...]. (CHIAVENATO, 2015, p. 64-67).
128

tornando prioritário, em razão dos objetivos constitucionais da República, o debate da


formação dos quadros de pessoal no campo da governança e do planejamento administrativo.
No ambiente patrimonialista existe o viés da ocupação desregrada da máquina pública
e, em tempos atuais, também os desvios de finalidade envolvendo entidades coparticipantes
(OTS) na execução dos serviços de interesse coletivo, recebedoras de verbas públicas
decorrentes de negócios jurídicos administrativos.
O referido ciclo de pobreza, caracterizado por sua retroalimentação, consagra, por
meio dos déficits comunitários brasileiros, o estímulo ao patrimonialismo, robustecendo as
práticas ligadas ao clientelismo, assistencialismo, mandonismo, fisiologismo e filhotismo, em
abertura larga a todas as formas de corrupção, que provocam em consequência novas
deficiências sociais.
Os direitos fundamentais, nessa ciranda de infrações, dotados de eficácia social tênue,
passam a representar simbólicos projetos futuros de boa vida, em quebra do sentimento
constitucional.
A higidez do acesso a cargos, empregos e funções públicas, obediente à governança e
ao planejamento administrativo, funciona como mecanismo de reforço à ruptura desse
específico ciclo de pobreza, criando obstáculo ao controle patrimonialista do Estado, que é
instrumento de poder e satisfação de interesses das oligarquias e estamentos brasileiros
dominantes.
129

7 ACESSO A CARGOS, EMPREGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS NO BRASIL

Este capítulo não é estruturado com o escopo de inovar o debate acadêmico acerca dos
institutos relacionados ao acesso a cargos, empregos e funções públicas no Brasil, o que,
inclusive, teria complexidade ímpar face ao caráter eminentemente técnico das normas
jurídicas que envolvem o concurso público, a contratação temporária, os cargos de
provimento em comissão, as funções gratificadas e de confiança, entre outras formas previstas
em lei.
Propõe-se indicar o pensamento dominante na doutrina sobre as disciplinas jurídicas
relacionadas ao acesso a cargos, empregos e funções e contextualizá-lo com a realidade
observada no cotidiano administrativo, por meio da jurisprudência dos Tribunais brasileiros,
da doutrina, da pesquisa em sites governamentais e de informações estatísticas do MPMG.
Com isso, será possível perquirir se os textos normativos são concretizados pela
Administração Pública, formando um todo coerente, bem como se a governança e o
planejamento administrativo vinculam esse sistema.
Para tanto, são traçadas observações sobre o concurso público e o panorama do
sistema de acesso a cargos, empregos e funções, capturando-se as suas definições e principais
características hoje percebidas. Em sequência, duas formas de exceção ao concurso público,
ainda fortemente presentes na cultura administrativa brasileira, têm especial abordagem.

7.1 Concurso público e o panorama do sistema de acesso a cargos, empregos e funções


públicas no País

O senso comum enxerga que o concurso público é medida salutar e as formas


especiais, como os cargos em comissão e as contratações temporárias, são nocivas. A
aceitação do primeiro decorre da natureza republicana, a privilegiar a meritocracia142. A

142
“O princípio fundamental da ideia de meritocracia na cabeça da maioria de seus defensores é simplesmente
este: que se devem preencher os cargos com as pessoas mais qualificadas, pois a qualificação é um caso
especial de mérito. [...] Na verdade, a questão é mais complicada do que essas formulações indicam. Para
muitos cargos, só se exigem qualificações mínimas; um número bem grande de candidatos pode realizar bem o
serviço, e nenhuma formação adicional os habilitaria a realiza-lo melhor. Nesse caso, parece que a justiça
exigiria que os cargos fossem distribuídos entre os candidatos qualificados por meio do método “primeiro a
chegar, primeiro a levar” (ou por sorteio); e, então, mérito é, decerto, um termo forte demais para definir a
combinação entre o detentor do cargo e seu lugar. Mas outros cargos são abertos para a formação e para os
conhecimentos que exigem, e para eles talvez faça sentido dizer, embora haja inúmeros candidatos
qualificados, que o mais qualificado merece o cargo. Parece que o mérito não é relativo da mesma forma que a
qualificação, mas a frase de Dryden: ‘que o mais merecedor impere sozinho’ indica que deve haver indivíduos
merecedores que não merecem, em última análise, nenhum cargo específico, do mesmo modo que existem
130

reprovação das modalidades excepcionais tem lastro na rejeição ao “cabide de empregos” e à


quebra da isonomia e da justiça.
Pode-se especular que o motivo para esse paradoxal sentimento, já que o
patrimonialismo é reflexo do brasileiro (ALMEIDA, 2007, p. 102-105), reside no olhar
descrente em relação ao Estado, que protege alguns, exclui outros, se mostra incapaz de
produzir os resultados esperados e, apesar das crises, atravessa incólume a multissecular
viagem redonda, procedendo à inclusão social limitada (SCHWARTZMAN, 2007, p. 31-32),
segundo os interesses dominantes.
É importante ter em conta, todavia, que a pesquisa jurídica não deve estabelecer crítica
vinculada a estritos parâmetros valorativos, tocando o maniqueísmo, como se o abstrato
modelo do concurso público fosse a materialização de direito natural inalienável e as demais
formas a representação normativa do “jeitinho” nacional.
Diversas nações com o mesmo status democrático não têm no concurso público o
paradigma do sistema, como ocorre nos Estados Unidos da América (EUA), onde espécies
híbridas de investidura preponderam na esfera federal, sem o diagnóstico da piora de ofensas
a direitos do Homem:

A forma de recrutamento é um elemento de destaque entre os princípios gerais do


sistema de mérito adotado nos Estados Unidos para os funcionários públicos
federais. Segundo a lei norte-americana, o recrutamento deve ser feito entre
indivíduos qualificados de campos apropriados de trabalho de forma a se construir
uma mão de obra proveniente de todos os segmentos da sociedade, e sua seleção e
promoção devem ser determinadas com base exclusiva na habilidade relativa, no
conhecimento e técnica, após uma competição justa e aberta que assegure igual
oportunidade a todos. As provas de concurso para admissão ao Serviço Público
basicamente habilitam o candidato a ter seu nome inscrito em um registro de
candidatos habilitados. “Quando há uma vaga a preencher, a repartição em questão
solicita à OPM a indicação de candidatos habilitados. Os primeiros colocados na
lista são indicados em primeiro lugar. A autoridade a que compete fazer a nomeação
normalmente efetua sua escolha entre os três primeiros indicados”. Segundo Plano e
Greenberg, este processo de se oferecer à autoridade que está nomeando um
candidato a chance de escolher um entre três foi concebida para que fatores
intangíveis, tais como os traços de personalidade, possam fazer parte de sua decisão.
Este é um processo que não sofreu qualquer alteração com a reforma de 1978. As
provas do concurso podem ser escritas ou práticas, e podem também, tomar a forma
de uma avaliação do treinamento acadêmico e da experiência do candidato, ou
finalmente, consistir em uma combinação desses tipos de avaliação. Nesse sentido,
não se trata de um concurso na tradição brasileira, sendo, muito mais, uma mistura
de concurso e processo seletivo. (RODRIGUES, 1995, p. 7).

Registra-se, nessa linha, que o sistema brasileiro, bem equacionado, pode contribuir
dentro de seus limites para o alcance de expectativas sociais, mas não é o caminho universal.

indivíduos qualificados que devem ceder ao mais qualificado [...].” (WALZER, 2003, p. 184-185).
131

Essas observações iniciais expõem a superficialidade do pensamento que atribui o bem


ao concurso público e o mal às outras formas de acesso. Tal lógica, ao invés de auxiliar a
compreensão dos institutos, fortalecer o sentimento constitucional, a adesão comunitária e a
correção de erros, instiga a manutenção do simbolismo estéril da meritocracia e o
distanciamento de aspectos cruciais a serem levados em conta: a formação do quadro de
pessoal e afins, no Estado democrático inspirado na eficiência de suas ações, tem como
primeiros requisitos a governança e o planejamento administrativo.
Os modelos de acesso a cargos, empregos e funções, portanto, têm peso relativo na
concretização dos direitos fundamentais, ao se mirar o ângulo da execução qualificada das
atividades públicas.
Nesse ponto, anota-se que esta pesquisa defende o padrão constitucional brasileiro de
concurso público, acompanhado de formas especiais de acesso a cargo, emprego e função
para situações bem determinadas, claras.
Embora incapaz de concretizar plenamente os anseios de mérito e qualificação, o que é
agravado pela desigualdade social e o caráter complexo deste País continental, o concurso
público tem a vantagem, abstratamente considerada, de não alimentar o ciclo de pobreza do
patrimonialismo, exposto no capítulo 4.
O que não é aceitável, desde já vale frisar, é o ordenamento jurídico brasileiro ter um
modelo e, na prática, haver o simulacro, com distorções evidenciando a existência de sistema
distinto, permeado pela desgovernança e ausência de planejamento administrativo.
As críticas esboçadas neste capítulo, por conseguinte, não trazem a ideia de pecado
original na gênese ou no tipo das formas de acesso, fixando-se, ao revés, no modo deficiente e,
por vezes, dissimulado de realização no cotidiano administrativo brasileiro.
As raízes do concurso público são encontradas na França revolucionária, com a
derrocada do Estado Absolutista. Apesar do sopro de igualdade, o concurso foi alvo de
resistência inicial, mas, progressivamente, terminou por se fazer modelo com ampla margem
de aceitação no Ocidente (CRETELLA JUNIOR, 1998. p. 118).
No Brasil, foi disciplinado como norma jurídica constitucional a partir da Constituição
de 1934143, fixando-se como regra para todos os cargos públicos somente na Constituição de
1967144, com retrocesso profundo na Constituição de 1969145, atrelada à lógica utilitarista.

143
“Art 170. O Poder Legislativo votará o Estatuto dos Funcionários Públicos, obedecendo às seguintes normas,
desde já em vigor: [...] 2º) a primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas, e nos
demais que a lei determinar, efetuar-se-á depois de exame de sanidade e concurso de provas ou títulos;”
(BRASIL, 1934).
144
“Art. 95. Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, preenchidos os requisitos que a lei
132

Conforme pontua Adilson Abreu Dallari, o modelo anterior a 1988, instituído em 1969,
propiciava o incremento do patrimonialismo na Administração Pública, tamanhas as brechas
textuais a flexibilizarem os critérios de investidura e provimentos derivados do servidor:

A redação (dolosamente) defeituosa do texto de 1969, art. 97, § 1º, dizendo que
apenas a “primeira investidura”, somente em “cargos públicos” é que dependeria de
aprovação em concurso público, “salvo os casos indicados em lei”, permitiu toda
sorte de burlas e abusos, gerando um empreguismo desenfreado, um super
inchamento dos quadros de pessoal, um descontrole completo do funcionalismo e a
desmoralização do serviço público.
Como a Constituição se referia a “primeira” investidura, entendeu-se que
qualquer outra independeria do concurso público. Assim é que, ao longo do tempo,
conforme relata Márcio Cammarosano, procederam-se a inúmeras “transformações
de cargos”, meio pelo qual os apaniguados exercentes de cargos modestos eram
contemplados com os cargos mais importantes, chegando até mesmo (por vias
transversas) a receber estabilidade em cargo de provimento em comissão. Da mesma
forma, sob a mesma desculpa, foi inventada a figura da “transposição”, destinada a
prover mediante concurso interno, reservado a quem já fosse funcionário público, os
cargos que, a rigor, deveriam ser disputados em concurso público. Não obstante tão
escandalosa inconstitucionalidade, tais procedimentos foram agasalhados até mesmo
pelo STF.
Como a Constituição se referia apenas a “cargos”, entendeu-se que funções
e empregos não eram abrangidos pela obrigatoriedade de concurso. Daí uma
verdadeira enxurrada de admissões sem concurso para funções criadas por decreto.
Pior que isso foi o uso indiscriminado e generalizado de contratações no regime da
CLT, sem qualquer formalidade, tanto para admissão quanto para demissão, gerando
um espantoso quadro de fisiologismo, protecionismo, apadrinhamento e
perseguições. (DALLARI, 1990, p. 35).

Essas circunstâncias, reveladas no curso da ditadura militar, favoreceram o


reconhecimento pela Constituição de 1988 da obrigatoriedade do concurso para cargos e
empregos públicos, além de estender o dever jurídico a toda Administração Pública, direta e
indireta, de todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. O
texto normativo visivelmente fechou espaços para as interpretações redutoras dos certames.
A Constituição vigente determina o concurso para cargos e empregos públicos,
referindo-se a provimentos especiais, negócios jurídicos administrativos e a funções públicas
para hipóteses diversas do certame, a teor do art. 37, II, V e XXI146.

estabelecer. § 1º. A nomeação para cargo público exige aprovação prévia em concurso público de provas ou de
provas e títulos.” (BRASIL, 1967).
145
“Art. 97. Os cargos públicos serão acessíveis a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos
em lei. § 1º. A primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de
provas ou de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei.” (BRASIL, 1969).
146
“Art. 37. [...] II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso
público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na
forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) [...]
V- as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos
em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos
previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; (Redação dada pela
133

Impõe-se, assim, rápida definição da terminologia utilizada.


Em que pese alguma variação conceitual147, o conceito de cargo público restringe-se a
“[...] unidade administrativa criada por lei ou por ato de força equivalente, à qual é atribuído
um plexo de atribuições a ser desempenhado pelo funcionário.” (OLIVEIRA, 2008, p. 14).
Cargo público significa o “lugar dentro da organização funcional da Administração
Direta e de suas autarquias e fundações públicas que, ocupado por servidor público, tem
funções específicas e remuneração fixadas em lei [...].” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 652),
não havendo maiores dificuldades teoréticas nesse entendimento ligado à dimensão orgânica
do Estado, verbis:

Cargos públicos, para a doutrina, com pouquíssimas variações, constituem-se locais


estabelecidos no interior da organização funcional da Administração, contando com
denominação própria, atribuições e forma remuneratória estabelecidas em lei, e
submetidos ao regime jurídico estatutário. (BRUNO; DEL OLMO, 2006, p. 35).

Por sua vez, emprego público indica “[...] a relação funcional trabalhista, assim como
se tem usado a expressão empregado público como sinônima da de servidor público
trabalhista.” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 653).
O conceito de função pública traz complexidade maior, especialmente pelas
características contemporâneas da Administração Pública policêntrica ou fragmentada148.
Função pública expõe a “atividade em si mesma, ou seja, função é sinônimo de
atribuição e corresponde às inúmeras tarefas que constituem o objeto dos serviços prestados

Emenda Constitucional nº 19, de 1998)


XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão
contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os
concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da
proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (Regulamento)” (BRASIL, 1988).
147
“No tocante à expressão cargo, o significado que se lhe atribui a Constituição é variado. Por vezes, está a se
referir aos mandatos públicos eletivos, habilitados mediante sufrágio popular: posições estruturais
componentes dos Poderes Executivo e Legislativo, ligadas à organização do Estado e criadas pela própria
Carta, que também estabelece as principais notas do regime jurídico respectivo. Noutra vertente, mais difusa e
genérica, o constituinte utiliza o vocábulo cargo ligado diretamente à estruturação da Administração Pública,
com subclassificações [...] Celso Antônio Bandeira de Mello define os cargos como “[...] as mais simples e
indivisíveis unidades de competência a serem expressadas por um agente, previstas em número certo, com
denominação própria, retribuída por pessoas jurídicas de Direito Público e criadas por lei, salvo quando
concernentes aos serviços auxiliares do Legislativo, caso em que se criam por resolução, da Câmara ou do
Senado, conforme se trate de serviços de uma ou de outra destas Casas” (DI PIETRO; MOTTA; FERRAZ,
2104, p. 11-12).
148
Parte da doutrina procura separar, diante da complexidade do Estado contemporâneo, a atividade
administrativa pública estatal da atividade administrativa pública não estatal. Navegando por essa difícil
vereda, o STF “reconheceu, ao julgar a ADI 3.026, que a OAB, embora titular de algumas competências
essencialmente públicas, não integra a estrutura da Administração Pública. A OAB desempenha competências
públicas, algumas de natureza administrativa, mas sem que a instituição apresente cunho governamental ou
estatal.” (JUSTEN FILHO, 2014, p. 128-129).
134

pelos servidores públicos.” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 652).


Sem embargo, há entendimentos abrangentes que ligam a função pública a qualquer
atividade exercida por pessoa física ou jurídica no desempenho de afazeres ou tarefas públicas
ou de interesse público, como aquela desenvolvida por agentes privados em cooperação com
o Poder Público (BRUNO; DEL OLMO, 2006, p. 6-39). Para outro segmento doutrinário, a
direta relação jurídica estabelecida por pessoa física com o Poder Público, nas hipóteses de
inexistência de cargo, definiria a função pública, levando Hely Lopes Meirelles a afirmar que

[...] é a atribuição ou o conjunto de atribuições que a Administração confere a cada


categoria profissional ou comete individualmente a determinados servidores para a
execução de serviços eventuais, sendo comumente remunerada através do pro
labore. Diferencia-se, basicamente, do cargo em comissão pelo fato de não
titularizar cargo público. [...]
Todo cargo tem função, mas pode haver função sem cargo. (MEIRELLES,
2016, p. 524).

Esta pesquisa sustenta o caráter normativo da governança e do planejamento como


vetores administrativos do Estado Democrático de Direito contemporâneo, em parte derivados
da necessidade de instrumentalização e organização adequada do Poder Público diante do
reconhecimento da sua falibilidade em prover todas as expectativas sociais.
A maximização dos direitos fundamentais passa pela obediência à governança e ao
planejamento administrativo. Nessa realidade, deflui a compreensão elástica de função
pública, nem sempre vinculada diretamente ao Estado, dentro da perspectiva de fragmentação
da Administração Pública.
Ultrapassada a averiguação dos significados básicos de cargo, emprego e função, tem-
se que concurso público de provas ou de provas e títulos, para cargos e empregos públicos, foi
alçado pela doutrina nacional à condição de relevante direito assecuratório da prática estatal
democrática e igualitária, nos seguintes termos:

O concurso é o instrumento que melhor representa o sistema de mérito, porque


traduz um certame de que todos podem participar nas mesmas condições, permitindo
que sejam escolhidos realmente os melhores candidatos.
Baseia-se o concurso em três postulados fundamentais. O primeiro é o
princípio da igualdade, pelo qual se permite que todos os interessados em ingressar
no serviço público disputem a vaga em condições idênticas para todos. Depois, o
princípio da moralidade administrativa, indicativo de que o concurso veda
favorecimento e perseguições pessoais, bem como situações de nepotismo, em
ordem a demonstrar que o real escopo da Administração é o de selecionar os
melhores candidatos. Por fim, o princípio da competição, que significa que os
candidatos participam de um certame, procurando alçar-se a classificação que os
coloque em condições de ingressar no serviço público. (CARVALHO FILHO, 2017,
p. 671-672).
135

Há obrigatoriedade da aprovação prévia em concurso público, que vem a ser um


certame seletivo de provas ou de provas e títulos, indispensável para qualquer
investidura em cargo e emprego público, sem exceções, salvo as previstas na própria
Constituição. É a institucionalização do sistema de mérito e a sacralização da
impessoalidade na admissão de servidores públicos (MOREIRA NETO, 2005, p.
293).

Existe harmonia na doutrina acerca das hipóteses excepcionais ao concurso público,


que abrangem os cargos em comissão e as contratações temporárias.
Residualmente, ainda são apontados os casos de estabilização, previstos no art. 19 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; nomeações aos tribunais estaduais, federais,
tribunais superiores e tribunal de contas e cargos eletivos.
Por sua vez, as funções públicas estão desobrigadas ao concurso, conforme o art. 37, II,
da Constituição. Nessa linha, a título de exemplo, os agentes honoríficos 149 , agentes
credenciados150, agentes delegados151, exercentes de funções de confiança e gratificadas entre
outros não se submetem ao procedimento concursal.
O STF, ao julgar recurso extraordinário interposto pelo MPMG em matéria de
contratação temporária (RE 658026/MG) conferiu repercussão geral ao tema e registrou no
acórdão paradigmático, datado de 2014, cinco hipóteses excepcionais ao concurso público:

Na Constituição Federal existem, primus ictus oculi, cinco exceções ao princípio da


acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas por meio de prévio concurso
público: a) nas nomeações para cargo em comissão declarado em lei como sendo de
livre nomeação e exoneração, conforme previsto no art. 37, inciso II, in fine, da CF;
b) quanto aos cargos eletivos a serem preenchidos pelos agentes políticos (arts. 77,
46, 45, 28, 27 e 29, inciso I, da CF); c) nas hipóteses excepcionais de acesso e de
nomeação junto aos tribunais estaduais e federais, aos tribunais superiores e também
aos tribunais de contas da União e dos estados, respectivamente, com fundamento
nos arts. 94; 73, § 2º; 71 e 75 da CF; d) nas situações de estabilização previstas no
art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de garantir a
segurança jurídica dos servidores públicos civis que, na data da promulgação da
Constituição, contavam com pelo menos cinco anos de exercício nas funções
públicas; e, por fim, e) nas contratações por tempo determinado, para atender a
necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, inciso IX, da CF).

149
“Agentes honoríficos: São cidadãos convocados, designados ou nomeados para prestar, transitoriamente,
determinados serviços ao Estado [...]. Tais serviços constituem o chamado múnus público, ou serviços
públicos relevantes, de que são exemplos a função de jurado, do mesário eleitoral, de comissário de menores,
de presidente ou membro de comissão de estudo ou de julgamento e outros dessa natureza.” (MEIRELLES,
2016, p. 84).
150
“Agentes credenciados: são os que recebem a incumbência da Administração para representa-la em
determinado ato ou praticar certa atividade específica, mediante remuneração do Poder Público credenciante.”
(MEIRELLES, 2016, p. 86).
151
“Agentes delegados: são particulares - pessoas físicas ou jurídicas - que não se enquadram na acepção própria
de agentes públicos – que receberam a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço
público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob
permanente fiscalização do delegante. […] Nessa categoria encontram-se os concessionários e permissionários
de obras e serviços públicos […] os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos […].” (MEIRELLES, 2016,
p. 85).
136

(BRASIL, 2014c).

A terceirização na Administração Pública e as atividades das organizações sociais,


embora não estejam incluídas, formalmente, no rol de exceções ao concurso público,
merecem menção porque integram o panorama caótico que envolve a organização da
atividade administrativa e o exercício de funções públicas, em sentido amplo, no Brasil.
A terceirização tem origem na Ciência da Administração, “que visa à redução de
custos, bem como à especialização das atividades empresariais”, sendo conceituada como o
“trespasse do exercício – não da titularidade – de atividades jurídicas ou materiais, realizadas
no exercício de função administrativa [...] sob a égide de um regime de direito público, a
pessoas físicas ou jurídicas” habilitadas (ZOCKUN, 2014, p. 181).
O lastro normativo está no art. 37, XXI, da Constituição, mas os critérios para a
fixação do objeto da terceirização são vagos, alvo de dissensos na doutrina por conta da
indeterminação do instituto.
A distinção entre atividade-meio e atividade-fim, embora consagrada, é lacunosa, daí
porque, segundo Carolina Zancaner Zockun (2014, p. 189), a defesa de critério diferente seria
relevante fator teórico a dificultar a terceirização para atividades estatais internas e
permanentes, em respeito a regra do concurso público. A terceirização teria permissão, nessa
proposta, para as atividades internas e temporárias; externas e temporárias e externas e
permanentes. Nada obstante, a opção exposta na Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017, foi a
de prestigiar a classificação tradicional, que biparte a atividade administrativa em meio e fim.
Com a Lei n. 13.429/2017, Lei das Terceirizações, esse ambiente que já se afigurava
confuso, tende a se agravar. O novo diploma autorizou duas espécies de terceirização: a do
trabalho temporário e a terceirização em geral, que é destinada à empresa de prestação de
serviços.
Existiu permissão da terceirização da atividade-fim às empresas de trabalho
temporário, no art. 1º152. A terceirização da atividade-fim para empresas prestadoras de
serviços não foi expressamente autorizada. Mas, o silêncio do diploma normativo nesse ponto
e também em relação às pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração
Pública Indireta deixam incerta como será resolvida a questão pelo Estado brasileiro.

152
Art. 1º. Os arts. 1o, 2o, 4o, 5o, 6o, 9o, 10, o parágrafo único do art. 11 e o art. 12 da Lei n. 6.019, de 3 de janeiro
de 1974, passam a vigorar com a seguinte redação: [...]
“Art. 9º O contrato celebrado pela empresa de trabalho temporário e a tomadora de serviços será por escrito,
ficará à disposição da autoridade fiscalizadora no estabelecimento da tomadora de serviços e conterá: [...]
§ 3º - O contrato de trabalho temporário pode versar sobre o desenvolvimento de atividades-meio e atividades-
fim a serem executadas na empresa tomadora de serviços.” (BRASIL, 2017b).
137

Não se mostra impossível um casuísmo futuro incitar interpretação que considere


constitucional a terceirização da atividade-fim para todas as pessoas jurídicas de direito
privado, estendendo-se a permissão das empresas de trabalho temporário para as empresas
prestadoras de serviço, como também a sua aplicação às pessoas jurídicas de direito privado
da Administração Pública Indireta.
Tal consequência seria nociva no paradigma teórico de Administração Pública pós-
burocrática, trazido pela Constituição, em ofensas ao concurso público e à eficiência
administrativa, que não se resume à economicidade na dimensão normativa brasileira.
Ademais, a possibilidade ilimitada de se terceirizar atividade-fim traz riscos à
autonomia da Administração Pública Indireta, que deve existir em quadro próprio e não
apenas em razão de negócios jurídicos administrativos.
Como sublinhado, a terceirização é admitida no Estado brasileiro por meio de norma
jurídica constitucional. Flexibiliza encargos administrativos e garante especialização da
atividade-meio. Portanto, as críticas, partindo do horizonte de aceitação constitucional, são
direcionadas à depuração dos critérios para sua utilização153, o que apenas será enfrentado
razoavelmente com o aprimoramento gestão pública alicerçada na governança.
O alerta é destinado à impossibilidade da substituição da eficiência pela
economicidade e à vedação da fuga dissimulada do concurso público, ampliando-se
indevidamente instituto de aplicabilidade restrita na seara estatal.
As atividades das organizações sociais, por outro lado, embora também repercutam na
esfera pública, são dotadas de essência inteiramente diversa da terceirização, por
apresentarem “pessoas jurídicas privadas de fins públicos, sem finalidade lucrativa,
constituídas voluntariamente por particulares, auxiliares do Estado na persecução de
atividades de relevante interesse coletivo”. São as instituições do Terceiro Setor (FUX;
MODESTO; MARTINS, 2017, p. 17).
A possibilidade do Terceiro Setor atuar no ambiente normativo é desenhada pela
Constituição. Superar a concepção da Administração Pública burocrática impõe reconhecer a
incapacidade estatal de tudo prover e a indispensabilidade da coparticipação de outros atores
sociais.

153
“No que tange à eficiência da terceirização legal, esta é objeto de questionamentos, em especial pelas suas
consequências não antecipadas. Como o critério para contratação de serviços ofertados por meio do Pregão
Eletrônico é o serviço mais barato, surgiram casos de empresas que simplesmente não pagavam os salários de
seus funcionários que prestavam serviços e órgãos do governo, tirando vantagem tanto do governo como dos
trabalhadores contratados.” (ANDREWS, 2010, p. 108). A gestão desobediente ao planejamento
administrativo, que promove escolhas irrefletidas de processos licitatórios, sinaliza ofensas constitucionais
passíveis de impugnação judicial na hipótese de persistência e/ou inércia de autocontrole da esfera pública.
138

O modelo policêntrico de Administração Pública, encampado pela Constituição


brasileira, materializou ideologia eclética que condensa paradigmas do Estado social com
Administração Pública gerencial, objetivando a maximização da efetividade dos direitos
fundamentais.
A importância da governança e do consectário planejamento administrativo reside
justamente nesse panorama complexo de demandas sociais crescentes diante de um Estado
com recursos finitos e múltiplas tarefas a executar:

O Estado não se desonera de suas obrigações institucionais quando assegura o


provimento de bens sociais, de modo gratuito e universal, mediante parcerias com
entidades privadas sem fins lucrativos. Assegurar o efetivo provimento de bens
sociais é mais importante do que providenciá-los diretamente, e a execução indireta
de cariz social é forma legítima e prevista na Constituição de cumprimento pelo
Estado de seus fins, desde que adequadamente estruturada. A esfera pública não é
apenas construção estatal, mas também o resultado integrado por entidades privadas
de fins públicos ou de solidariedade social.
As organizações sociais traduzem uma das formas possíveis de participação privada
na esfera pública. São “fórmulas cooperativas de participación”, na expressão
sintética de Garcia de Enterría e Fernandes (1998, p. 78 e ss.). Esses autores,
dissertando sobre o tema da participação privada em funções públicas, afirmam ser
esse modo de atuação participativa mais intenso do que os demais conhecidos, uma
vez que “no se refiere a actuaciones aisladas sino a conductas permanentes
institucionalizadas”, realizadas “mediante la creación por los cidadanos de
organizaciones especiales”, vocacionadas a “fines de interés general”. (FUX;
MODESTO; MARTINS, 2017, p. 17).

Essa compreensão da insuficiência da esfera estatal para atender integralmente às


demandas sociais, diagnóstico comum a todas as democracias ocidentais, propiciou a
atribuição de deveres jurídicos ao Estado e à sociedade para o atingimento da efetividade de
direitos por meio dos serviços públicos compartidos, não privativos ou não exclusivos:

Com efeito, a Constituição quando se refere aos setores de cultura (CF, art. 215),
desporto e lazer (CF, art. 217), ciência e tecnologia (CF, art. 218) e meio ambiente
(CF, art. 225), afirma que tais atividades são deveres do Estado e da sociedade. Faz
o mesmo, em termos não idênticos, em relação à saúde (CF, art. 199, caput) e à
educação (CF, art. 209, caput), afirmando, ao lado do dever do Estado de atuar, que
tais atividades são “livres à iniciativa privada”. (FUX; MODESTO; MARTINS,
2017, p. 68).

Decorrem daí os regimes de parceria, que trazem os convênios administrativos, os


contratos de gestão, a gestão por colaboração e as parcerias voluntárias com as OTS
(CARVALHO FILHO, 2017, p. 369-388), de constitucionalidade reconhecida pelo STF154, e,

154
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO.
TERCEIRO SETOR. MARCO LEGAL DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS. LEI Nº 9.637/98 E NOVA
REDAÇÃO, CONFERIDA PELA LEI Nº 9.648/98, AO ART. 24, XXIV, DA LEI Nº 8.666/93. MOLDURA
139

por consequência direta, a magnitude do direito à governança e ao planejamento


administrativo, face ao crescimento exponencial das atividades públicas e de interesse
coletivo direcionadas à satisfação de direitos na sociedade contemporânea.
Não se desconhece, todavia, que a desatenção à governança e ao planejamento
administrativo, nas relações entre o Estado e o Terceiro Setor, representa mais uma fonte de
incremento desestabilizador do labiríntico sistema de acesso de cargos, empregos e funções
públicas no Brasil.
Conforme a dinâmica deste capítulo procura mostrar, o panorama atual da
acessibilidade a funções públicas, mesmo se possível fosse a utopia mecanicista do
funcionamento autômato da Administração Pública, seria naturalmente mais intrincado do que
o debate administrativo tradicional envolvendo apenas a norma geral do concurso público e
suas exceções formais previstas nos incisos V e IX do art. 37 da Constituição. Todas essas
constatações demandam maior qualificação dos gestores e servidores.
A despeito dessa complexidade inerente aos contornos da Administração Pública
contemporânea, permeável à participação de novos atores sociais, o reforço à urgência do
tratamento teórico da boa governança e do dever de planejar, no Direito Administrativo, vem
das situações triviais de desorganização e ofensas ao ordenamento jurídico pelo Poder Público,
com falhas de gestão decisivas para o ambiente público ineficiente.
Nesse sentido, lançado o olhar sobre a Administração Pública, por meio dos
precedentes judiciais, da doutrina pesquisada, de informações dos sites oficiais de Poderes
Executivos e Legislativos e de estatísticas do MPMG, confirma-se o desalinhado sistema de
acesso.

CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO E SOCIAL.


SERVIÇOS PÚBLICOS SOCIAIS. SAÚDE (ART. 199, CAPUT), EDUCAÇÃO (ART. 209, CAPUT),
CULTURA (ART. 215), DESPORTO E LAZER (ART. 217), CIÊNCIA E TECNOLOGIA (ART. 218) E
MEIO AMBIENTE (ART. 225). ATIVIDADES CUJA TITULARIDADE É COMPARTILHADA ENTRE O
PODER PÚBLICO E A SOCIEDADE. DISCIPLINA DE INSTRUMENTO DE COLABORAÇÃO
PÚBLICO-PRIVADA. INTERVENÇÃO INDIRETA. ATIVIDADE DE FOMENTO PÚBLICO.
INEXISTÊNCIA DE RENÚNCIA AOS DEVERES ESTATAIS DE AGIR. MARGEM DE
CONFORMAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE ATRIBUÍDA AOS AGENTES POLÍTICOS
DEMOCRATICAMENTE ELEITOS. PRINCÍPIOS DA CONSENSUALIDADE E DA PARTICIPAÇÃO.
PÚBLICAS QUE APENAS CONCRETIZA O NOVO MODELO. [...] INEXISTÊNCIA DE PERMISSIVO À
ARBITRARIEDADE. CONTRATO DE GESTÃO. NATUREZA DE CONVÊNIO. CELEBRAÇÃO
NECESSARIAMENTE SUBMETIDA A PROCEDIMENTO OBJETIVO E IMPESSOAL. [...] CONTROLES
PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRESERVAÇÃO DO
ÂMBITO CONSTITUCIONALMENTE DEFINIDO PARA O EXERCÍCIO DO CONTROLE EXTERNO
(CF, ARTS. 70, 71, 74 E 127 E SEGUINTES). INTERFERÊNCIA ESTATAL EM ASSOCIAÇÕES E
FUNDAÇÕES PRIVADAS (CF, ART. 5º, XVII E XVIII). CONDICIONAMENTO À ADESÃO
VOLUNTÁRIA DA ENTIDADE PRIVADA. INEXISTÊNCIA DE OFENSA À CONSTITUIÇÃO. AÇÃO
DIRETA JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE PARA CONFERIR INTERPRETAÇÃO
CONFORME AOS DIPLOMAS IMPUGNADOS. (BRASIL, 2015a).
140

Vícios e desconformidades do próprio concurso público aparecem em primeiro plano.


O concurso público tem o planejamento basicamente limitado à estruturação formal do
certame ou à contratação eventual de empresa encarregada da sua realização.
Não são raras, até mesmo, burlas ao próprio objeto do edital do concurso, o que levou
o STF, no RE 598099/MS, a decidir sobre o intuitivo dever jurídico do Poder Público
submeter-se aos regulamentos editados por si mesmo:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. CONCURSO


PÚBLICO. PREVISÃO DE VAGAS EM EDITAL. DIREITO À NOMEAÇÃO
DOS CANDIDATOS APROVADOS. I. DIREITO À NOMEAÇÃO. CANDIDATO
APROVADO DENTRO DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS NO EDITAL.
Dentro do prazo de validade do concurso, a Administração poderá escolher o
momento no qual se realizará a nomeação, mas não poderá dispor sobre a própria
nomeação, a qual, de acordo com o edital, passa a constituir um direito do
concursando aprovado e, dessa forma, um dever imposto ao poder público. [...] II.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA.
BOA-FÉ. PROTEÇÃO À CONFIANÇA. O dever de boa-fé da Administração
Pública exige o respeito incondicional às regras do edital, inclusive quanto à
previsão das vagas do concurso público. Isso igualmente decorre de um necessário e
incondicional respeito à segurança jurídica como princípio do Estado de Direito.
Tem-se, aqui, o princípio da segurança jurídica como princípio de proteção à
confiança. [...] IV. FORÇA NORMATIVA DO PRINCÍPIO DO CONCURSO
PÚBLICO. Esse entendimento, na medida em que atesta a existência de um direito
subjetivo à nomeação, reconhece e preserva da melhor forma a força normativa do
princípio do concurso público, que vincula diretamente a Administração. É preciso
reconhecer que a efetividade da exigência constitucional do concurso público, como
uma incomensurável conquista da cidadania no Brasil, permanece condicionada à
observância, pelo Poder Público, de normas de organização e procedimento e,
principalmente, de garantias fundamentais que possibilitem o seu pleno exercício
pelos cidadãos. O reconhecimento de um direito subjetivo à nomeação deve passar a
impor limites à atuação da Administração Pública e dela exigir o estrito
cumprimento das normas que regem os certames, com especial observância dos
deveres de boa-fé e incondicional respeito à confiança dos cidadãos. O princípio
constitucional do concurso público é fortalecido quando o Poder Público assegura e
observa as garantias fundamentais que viabilizam a efetividade desse princípio. Ao
lado das garantias de publicidade, isonomia, transparência, impessoalidade, entre
outras, o direito à nomeação representa também uma garantia fundamental da plena
efetividade do princípio do concurso público. [...]. (BRASIL, 2011c).

Nesta dissertação, foram realizadas pesquisas, entre janeiro e junho de 2017, nos sites
institucionais do Governo Federal, dos Governos de Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro
e das Assembleias Legislativas de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, evidenciando-se
não haver leis, atos normativos secundários, comissões, audiências públicas ou ações
administrativas para discutir, examinar ou disciplinar técnicas, estratégias ou procedimentos
relacionados ao permanente aperfeiçoamento do sistema de acesso a funções, cargos e
empregos públicos.
141

Nos referidos portais não foram encontrados documentos públicos ou mesmo


informações que sinalizassem atividades contínuas de planejamento referentes a diagnósticos
da estrutura do sistema de trabalho a ser desenvolvido; pesquisa interna das necessidades
funcionais dos órgãos públicos; aferições sobre número ideal de chefias, cargos de direção e
assessoramento destinados a otimizar a atividade pública; modelo concursal capacitado a
identificar o perfil do candidato mais adequado; características e competências que os novos
servidores deverão possuir e oferecer; eficácia do estágio probatório e os métodos de apuração,
dimensionados no tempo, do número de servidores necessários às demandas da máquina
pública, a médio e longo prazos.
Embora sem mencionar o direito à governança e ao planejamento em suas obras, Di
Pietro traz importante reflexão sobre o planejamento como etapa fundamental no concurso
público que serve como autêntico reconhecimento tácito do caráter normativo, haja vista a
distância teórica entre faculdade jurídica (poder de produzir determinado resultado jurídico) e
dever jurídico (de origem legal ou obrigacional, vinculativo em essência). Planejar, segundo a
posição firmada pela autora, não é mera faculdade jurídica de manejar técnicas de gestão.
Afigura-se como dever constitucional do gestor público:

A finalidade do concurso público, como visto, é clara: selecionar os candidatos mais


aptos à ocupação de cargos efetivos e empregos públicos. Em se tratando da seleção
de pessoas para servir à sociedade exercendo misteres públicos, o certame deve ser
planejado e organizado para que a reposição da força de trabalho esteja sempre
adequada, quantitativa e qualitativamente, à natureza e complexidade das atividades,
aos objetivos e às metas institucionais da Administração Pública. Nesse sentido, o
planejamento constitui etapa fundamental para o pleno êxito do concurso público.
(DI PIETRO; MOTTA; FERRAZ, 2104, p. 55).

Além dos hiatos e defeitos apontados em relação ao concurso público, outros ângulos
da desgovernança e consequente falta de planejamento também são percebidos ao longo das
últimas décadas, nas demais formas de acesso.
No artigo “Concurso público: avanços e retrocessos”, Renato Monteiro de Rezende
narra, com base em pesquisa de julgamentos do TCU, o forte descompromisso do Poder
Público com o sistema de acesso155, nas gestões dos Presidentes Fernando Henrique Cardoso

155
Em linha harmoniosa, a obra “Administração Pública no Brasil”, relata que “[...] nos anos 1990 [..] retomou-
se a prática de contratação de funcionários sem concurso público que havia sido difundida na administração
federal nas décadas de 1950 e 60. Segundo levantamento realizado pelo Ministério do Planejamento em 2009,
o governo federal havia admitido irregularmente, por meio de contratos terceirizados, 34165 trabalhadores
(Boff, 2009).” (ANDREWS, 2010, p. 108).
No mesmo sentido: “O Poder Executivo Federal tem sido pródigo em editar medidas provisórias ou
encaminhar projetos de lei ao Congresso Nacional cuidando da prorrogação de contratos temporários.
As leis que criaram as agências reguladoras previram essa espécie de contratação para atender às necessidades
142

e Lula.
Sua pesquisa mostrou que, no ano de 2003, o Ministério do Meio Ambiente
funcionava com 95% da sua força de trabalho formada por terceirizados, contratados
temporários ou ocupantes de cargos em comissão.
No Ministério da Saúde, os contratos temporários abrangiam o percentual de 75% do
quadro, havendo ainda dezenas de milhares de funções e cargos obstruindo o preenchimento
regular por concurso público:

[...] Fato é, no entanto, que a terceirização continuou a ser adotada em escala


crescente, inclusive para o desempenho de funções inerentes à área-fim dos órgãos e
entidades, tendo sido tal prática condenada, em reiteradas ocasiões, pelo TCU
(Decisão nº 154, de 2001, da 2ª Câmara – DOU de 10/8/2001; Decisão nº 201, de
2002, do Plenário – DOU de 25/3/2002; Acórdão nº 564, de 2003, do Plenário –
DOU de 2/6/2003). Conforme constou do relatório do Acórdão nº 1.520, de 2006, do
Plenário daquela Corte (DOU de 30/8/2006):
6.9 Resta inequívoco que a contratação de trabalhadores terceirizados para o
exercício de tarefas próprias de servidores públicos é afronta direta ao princípio da
seleção mediante concurso público, além de afronta à lei trabalhista, que restringe
as possibilidades de terceirização às atividades-meio de qualquer organização,
púbica ou privada, e, ainda assim, condicionada à inexistência de relação de
pessoalidade e subordinação direta.
6.10 Ademais, a ilegal terceirização de serviços públicos pode trazer consigo uma
armadilha. A informalidade dos critérios de seleção de pessoal terceirizado pode vir
a servir de anteparo à indicação da pessoa que irá ocupar o posto de trabalho,
dando margem à ocorrência de práticas patrimonialistas de apadrinhamento ou
nepotismo. Daí a necessidade de haver contratação de serviços e não locação de
mão-de-obra individualmente selecionada. Ressalte-se que ocorrências dessa
natureza foram identificadas no âmbito do TC 013.742/2004-9, que teve o objetivo
de avaliar o modelo de terceirização vigente na Administração Pública Federal.
6.11 Conforme as informações oferecidas em sua proposta, o Ministério do
Planejamento vem atuando com o objetivo de solucionar a questão. Segundo
informa o órgão, foram realizados concursos nos últimos 3 anos visando o
preenchimento de 24.306 vagas antes terceirizadas, das quais são destacadas 13 mil
vagas para os Hospitais Universitários, 8,4 mil para o INSS e 1.779 antes ocupadas
por trabalhadores vinculados a organismos internacionais. […]
No já citado Acórdão no 1.520, de 2006, o TCU determinou o acompanhamento, por
parte da Secretaria Federal de Controle Interno, do cumprimento do cronograma
elaborado pelo MPOG, referente à substituição gradual, nos anos de 2006 a 2010,
em decorrência de contratos irregulares de terceirização, de 33.125 trabalhadores em
atividade na Administração Direta federal por servidores aprovados em concursos
públicos. A estimativa feita pela unidade técnica do TCU, citada no relatório
daquela decisão, foi de que o número real de terceirizados exercendo atribuições
típicas de cargos públicos chega a 55 mil. (REZENDE, 2008, p. 35-36).

de pessoal dessas autarquias. Assim, por exemplo, foi autorizada a contratação temporária, por até trinta e seis
meses, na ANEEL (art. 34, § 2º, da Lei no 9.427, de 1996), na ANP (art. 76, parágrafo único, da Lei no 9.478,
de 1997), na ANVISA (art. 36, § 1º, da Lei no 9.782, de 1999), dentre outras.
Ocorre que os contratos temporários nas agências reguladoras tiveram sua prorrogação repetidamente
autorizada por lei. O art. 26 da Lei no 9.986, de 2000, permitiu a dilação do prazo dos contratos temporários
por até vinte e quatro meses a partir do vencimento previsto originalmente. De seu turno, o art. 4º da Lei no
10.667, de 2003, autorizou nova prorrogação, até 30/6/2004. O termo final máximo para os contratos foi uma
vez mais estendido, por força do art. 30, § 7º, da Lei no 10.871, de 2004, que o fixou em 31/12/2005. Por fim,
o art. 10 da Lei no 11.292, de 2006, autorizou a prorrogação, até 31/3/2007, dos contratos temporários
referidos no citado art. 30, § 7º, da Lei no 10.871.” (REZENDE, 2008, p. 29).
143

Em 2014, o julgamento do RE 658026/MG pelo STF, paradigmático para hipóteses de


contratações temporárias no Brasil, envolveu o exame de legislação inconstitucional do
município de Bertópolis/MG, relativa ao ingresso irregular de pessoal do magistério no
serviço público.
Com a repercussão geral reconhecida pela Suprema Corte, diante da relevância social
e jurídica da matéria, é possível afirmar que a decisão constitui evidência nacional do
anormalidade administrativa no acesso a cargos públicos.
Esse acórdão será examinado no item 7.2, que trata especificamente das contratações
temporárias, cabendo a lembrança na ocasião apenas para dimensionar a crise de governança.
A Lei Complementar n. 100, de 5 de novembro de 2007, do estado de Minas Gerais,
nesse mesmo sentido, funciona como outro elemento a formar a convicção sobre o panorama
atual de estruturação do serviço público.
Por meio desse ato normativo promoveu-se, sem concurso, o ingresso na titularidade
de cargos públicos de 98 mil contratados, a maioria da Secretaria da Educação de Minas
Gerais. O quadro de subversão administrativa apenas começou a ser enfrentado em 2014, com
a procedência parcial dos pedidos formulados na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI),
manejada pela Procuradoria-Geral da República:

Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 7º da Lei Complementar nº 100/2007


do Estado de Minas Gerais. Norma que tornou titulares de cargos efetivos servidores
que ingressaram na administração pública sem concurso público, englobando
servidores admitidos antes e depois da Constituição de 1988. Ofensa ao art. 37,
inciso II, da Constituição Federal, e ao art. 19 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias. Modulação dos efeitos. Procedência parcial. (BRASIL,
2014b).

Fenômeno igual se repetiu com a Lei n. 18.185/2009, do estado de Minas Gerais, que
disciplinava a contratação temporária viciada de aproximadamente 12 mil servidores, também
declarada inconstitucional pelo TJMG, no ano de 2017 (MINAS GERAIS, 2017).
Encerrando a amostragem, consigna-se, ainda, que dados da Coordenadoria de
Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas Gerais156, de 2011
a 2017, mostram que as leis estaduais e municipais inconstitucionais, ligadas ao acesso
irregular a cargos, empregos ou funções públicas, representaram 53,4% do acervo total
impugnado pelo Ministério Público, na seara do controle concentrado de constitucionalidade.

156
Informações extraídas em 27 de outubro de 2017, diretamente pelo autor, no SRU-MPMG (Sistema de
Registro Único do Ministério Público de Minas Gerais), que concentra as informações dos procedimentos
administrativos instaurados na Coordenadoria de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria-Geral de
Justiça de Minas Gerais, destinados a apurar eventual inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal.
144

Em 2011, o Procurador-Geral de Justiça deflagrou 75 ADIs e Ações Diretas de


Inconstitucionalidade por Omissão (ADO)157, sendo 24 referentes a contratações temporárias
e cargos em comissão. No ano 2012, das 122 ADIs/ADOs ajuizadas, 62 guardavam relação
com o acesso extraordinário aos cargos, empregos e funções públicas. Lado outro, das 79
ADIs/ADOs de 2013, 55 tratavam da matéria. Em 2014, 48 ADIs/ADOs foram manejadas,
sendo 21 atinentes a contratos temporários e cargos em comissão. No ano de 2015, o
Procurador-Geral de Justiça ajuizou 95 ADIs/ADOs. Desse número, 58 eram pertinentes ao
tema. Em 2016, das 135 ADIs/ADOs deflagradas, 77 versavam sobre contratações
temporárias e cargos em comissão. Finalmente, no ano de 2017, até o mês de outubro, foram
deflagradas 50 ADIs/ADOs, sendo 26 referentes a vícios no acesso a cargos e empregos
públicos.
Nos anos referidos, no universo das 604 ADIs/ADOs deflagradas pelo Procurador-
Geral de Justiça, 323 guardavam vínculo com a matéria.
Aproximadamente 90% das ADIs/ADOs sobre contratações temporárias e cargos em
comissão, quando têm o mérito158 examinado, transitam em julgado com os pedidos julgados
procedentes, total ou parcialmente.
Tais informações servem como fragmentos que, reunidos, indicam o simulacro das
formas de acesso a cargos, empregos e funções públicas, no cotidiano administrativo.
O Brasil é complexo, ambíguo e paradoxal. Ainda hoje é amálgama patrimonialista
que não experimentou inteiramente a burocracia weberiana. Simultaneamente, mostra-se
enxertado por princípios gerenciais, dobrando-se, de forma progressiva, aos paradigmas
contemporâneos da Administração policêntrica, diante da urgência de ressignificação da
esfera pública nas sociedade pós-industriais, devido à sua incapacidade de promover sozinha
as atividades públicas e de interesse coletivo.
O retrato administrativo do Brasil é a imagem confusa de promessas (ou
insinceridades) fixadas nos textos abstratos, dissonantes da realização social dos direitos de

157
Todas as ADOs referem-se à omissão legislativa do percentual mínimo destinado aos servidores de carreira
para o preenchimento de cargos em comissão.
158
No controle concentrado de constitucionalidade, a revogação superveniente da lei impugnada pelo Poder
legiferante ocasiona normalmente a perda de objeto da ação segundo interpretação dominante do STF. Apenas
em casos excepcionais de fraude processual a lei revogada é examinada pela Corte Constitucional: “Leis
Distritais que tentaram revogar os atos normativos impugnados. Posterior edição da Lei Distrital n° 4.342, de
22 de junho de 2009, a qual instituiu novo plano de cargos, carreira e remuneração dos servidores e revogou
tacitamente as Resoluções 197/03, 201/03, 202/03 e 204/03, por ter regulado inteiramente a matéria por elas
tratadas, e expressamente as resoluções n°s 202/03 e 204/03. Fatos que não caracterizaram o prejuízo da ação.
Quadro fático que sugere a intenção de burlar a jurisdição constitucional da Corte. Configurada a fraude
processual com a revogação dos atos normativos impugnados na Ação Direta, o curso procedimental e o
julgamento final da ação não ficam prejudicados. Precedente: ADI n° 3.232/TO, rel. min. Cezar Peluso, DJ
3.10.2008 [...] III. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente.” (BRASIL, 2011a).
145

primeira, segunda e terceira geração ou dimensão. Espelha o descompasso entre a


modernização presente e o desenvolvimento lento. As etapas se superposicionam com retardo
histórico consolidadas pela “governança caseira” estamental e oligárquica.
A governança e o planejamento administrativo, nesse contexto, possuem importância
nuclear por dificultarem o livre exercício patrimonialista, funcionando como requisitos159
gerais de validade da atuação administrativa no sistema de acesso, reconfigurando
progressivamente o padrão de ingresso no quadro de pessoal e as atividades públicas.
A crítica jurídica, reveladora da desarticulação administrativa, contribui por inibir a
perpetuação do simbolismo normativo hipertrófico, típico do ambiente patrimonialista.
No próximo item, existe o enfoque das contratações temporárias. Apesar do
incremento das alternativas decorrentes das concepções contemporâneas de Administração
Pública gerencial, como a terceirização e as parcerias com o Terceiro Setor, esses modelos de
acesso extraordinário ainda representam hipóteses muito frequentes e com impacto direto no
patrimonialismo, desorganização e ineficiência estatal brasileira.

7.2 Contratações temporárias

A contratação temporária não é figura nova160, sendo disciplinada de forma expressa


em texto constitucional desde a Carta de 1967, no art. 104161. Naquela ocasião, destinava-se a
suprir a singular hipótese de obras públicas.
A Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que materialmente introduziu nova
Constituição, também disciplinou genericamente o assunto no art. 106162.
Foi a Constituição de 1988, entretanto, com detalhamento maior, que vinculou esse
regime especial às exigências de interesse público temporário e excepcional, na expressa
159
“[...] quando se fala em “pressuposto”, se está no terreno da existência ou não existência do fenômeno
jurídico; se se fala em “requisito”, já se alcança etapa superveniente, que é a da validade ou não do fenômeno
jurídico; ao ser abordada a “condição”, ganha-se a linha de eficácia ou de extinção do fenômeno jurídico. [...]
Os requisitos, justamente por se imiscuírem na formação dos atos ou dos fenômenos jurídicos e por se
insinuarem no pensamento em situações jurídicas mais complexas ou sucedidas em etapas ulteriores de
elaboração jurídica, são de mais difícil compreensão e apreensão [...].” (VILHENA, 1973).
160
O texto constitucional de 1946, com a Emenda Constitucional n. 19, de 1965, trouxe a expressão “cargo
público civil temporário” (art. 182, § 4º), mas não disciplinou efetivamente o instituto. (BRASIL, 1946).
161
Art. 95. Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, preenchidos os requisitos que a lei
estabelecer. § 1º - A nomeação para cargo público exige aprovação prévia em concurso público de provas ou
de provas e títulos. [...] Art. 104. Aplica-se a legislação trabalhista aos servidores admitidos temporariamente
para obras, ou contratados para funções de natureza técnica ou especializada. (BRASIL, 1967).
162
“Art. 97. Os cargos públicos serão acessíveis a todos os brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos
em lei. § 1º A primeira investidura em cargo público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de
provas ou de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei. [...]”
“Art. 106. O regime jurídico dos servidores admitidos em serviços de caráter temporário ou contratados para
funções de natureza técnica especializada será estabelecido em lei especial. (BRASIL, 1969).
146

dicção do art. 37, IX163.


A partir de 1988, durante duas décadas, existiu o posicionamento judicial que admitia
a contratação temporária apenas para atividades sazonais, não abrangendo, portanto, a
possibilidade da celebração para atividades ordinárias estatais: “servidor público: contratação
temporária excepcional (Constituição, art. 37, IX): inconstitucionalidade de sua aplicação para
a admissão de servidores para funções burocráticas ordinárias e permanentes.” (BRASIL,
2004; BRASIL, 2009).
Essa jurisprudência, que por sinal sempre foi alvo de descumprimento pelas
Administrações Públicas, paulatinamente foi modificada, não mais subsistindo na doutrina
majoritária ou nas decisões do STF, sendo aceita a contratação temporária também para
atividades regulares e permanentes.
A flexibilização interpretativa 164 , consolidada no STF, deve-se ao princípio da
continuidade da atividade estatal ou princípio da continuidade do serviço público165.
Foi correta a mudança, haja vista que, na complexa dinâmica pública, o risco de
interrupção de serviços essenciais decorrente de situações anômalas se tornaria palpável, caso
o alicerce exclusivo de acesso a atividades permanentes fosse o concurso público. É difícil
acreditar, por exemplo, que em pequeno município, na hipótese de falecimento de um dos
poucos servidores médicos, o Prefeito tenha que se dirigir aos doentes em tratamento e
convidá-los a aguardar o deslinde do próximo concurso para regularização do serviço público.
Desse modo, em havendo lei e a presença da situação extraordinária e temporária nela
pormenorizadamente descrita, não existe obstáculo constitucional para a celebração do
contrato temporário, mesmo quando se trate de atividade permanente na máquina estatal.
Trata-se a contratação temporária de legítimo instrumento jurídico assecuratório da
continuidade do serviço público, quando materializada dentro das regras constitucionais, sem
abuso de direito.
Mostra-se relevante consignar, nesse ponto, que a contratação temporária possui duas
ordens de requisitos: gerais e específicos.

163
Art. 37 [...] IX - a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade
temporária de excepcional interesse público; (BRASIL, 1988).
164
“O art. 37, IX, da Constituição do Brasil autoriza contratações, sem concurso público, desde que
indispensáveis ao atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público, quer para o
desempenho das atividades de caráter eventual, temporário ou excepcional, quer para o desempenho das
atividades de caráter regular e permanente. A alegada inércia da administração não pode ser punida em
detrimento do interesse público, que ocorre quando colocado em risco o princípio da continuidade da atividade
estatal.” (BRASIL, 2005; BRASIL, 2014a).
165
“Por esse princípio entende-se que o serviço público, sendo a forma pela qual o Estado desempenha funções
essenciais ou necessárias à coletividade, não pode parar.” (DI PIETRO, 2016, p. 102).
147

Os requisitos gerais são os princípios fundamentais e setoriais, expressos ou tácitos,


ligados ao regime democrático, à dignidade da pessoa humana, à governança, ao
planejamento administrativo e ao caput do art. 37, da Constituição, responsáveis pela
conformação dos institutos administrativos.
O dever jurídico de realizar os processos seletivos simplificados para contratações
temporárias serve como exemplo da influência do planejamento administrativo e do art. 37,
caput.
O planejamento impõe o processo seletivo simplificado como forma de organizar e
dinamizar o cadastro de candidatos disponíveis e o ingresso no regime especial. O cadastro de
reserva aumenta as chances de rápida celebração do contrato, nas situações excepcionais que
demandem urgência no restabelecimento dos serviços públicos.
Ademais, é incompatível com as normas do art. 37, caput, a procura de candidatos
para as celebrações dos negócios temporários de forma aleatória ou oculta, pertencendo a
todos os cidadãos o direito à informação de que o ente público precisa de servidores
temporários, bem como o direito de integrar esses quadros especiais.

É contra os princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade a que está adstrita a


Administração Pública a lei que, a pretexto de regular a contratação de pessoal por
tempo determinado para atender à necessidade de excepcional interesse público, não
institui processo de seleção, ainda que simplificado, para o recrutamento de
servidores, e arrola, entre os casos de necessidade temporária e emergencial, a
simples reposição de pessoal técnico-operacional em substituição a funcionários
demitidos, exonerados, falecidos e aposentados.166

Os requisitos específicos da contratação temporária, por outro lado, estão previstos no


inciso IX, do art. 37, da Constituição.
Ao abordar os elementos de validade intrínsecos da contratação temporária, a doutrina
assinala a existência de três requisitos específicos (MADEIRA, 2005, p. 30-31), ligados à
determinabilidade temporal, à temporariedade e à excepcionalidade.
A determinabilidade temporal traz o condicionamento da vigência do contrato
temporário a prazo certo e determinado, em oposição à regra comum, estatutária ou celetista,
cuja relação jurídica tem, por excelência, o prazo indeterminado:

O regime especial deve atender a três pressupostos inafastáveis. O primeiro deles é a


determinabilidade temporal da contratação, ou seja, os contratos firmados com esses
servidores devem ter sempre prazo determinado, contrariamente, aliás, do que ocorre

166
MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça. AgInc – Classe B – V – N. 58.802-1 – Campo Grande.
Relator: Atapoã da Costa. Julgamento em: 25.02.1999.
148

nos regimes estatutário e trabalhista, em que a regra consiste na indeterminação do


prazo da relação de trabalho. Constitui, porém evidente simulação a celebração de
contratos de locação de serviços como instrumento para recrutar servidores, ainda que
seja do interesse de empresas públicas e sociedade de economia mista. (CARVALHO
FILHO, 2017, p. 646-647).

O requisito da temporariedade é diferente, relacionado à necessidade temporária que


gerou a formação do vínculo e à impossibilidade de reiteradas prorrogações contratuais.
Daí porque a celebração de contratos temporários para suprir a demanda de pessoal
decorrente de convênios vinculados à prestação de serviços públicos essenciais, com prazos
indeterminados, relativos à saúde ou educação mostram-se incompatíveis, por ofenderem não
apenas a determinabilidade temporal, mas também o requisito específico da temporariedade,
que autoriza apenas a duração razoável167 contextualizada com a causa excepcional que
ensejou a celebração do contrato.
No mesmo sentido, enseja ofensa ao requisito da temporariedade o administrador que,
aproveitando-se de legítima situação excepcional, posterga de forma anômala a realização de
novo concurso público para suprir a demanda de pessoal, prorrogando artificialmente os
vínculos temporários, verbis:

A contratação temporária de pessoal, prevista no art. 37, IX, há de se fundar em


necessidade eventual. Tratando-se de necessidade permanente, como parece ser o
caso de enfermeiros em nosocômio, revelada, ademais, pelas renovações sucessivas
do contrato, há invalidade do contrato (RIO GRANDE DO SUL, 2000).

Temporariedade traduz, assim, a essência transitória propulsora da celebração desse


contrato administrativo de caráter funcional:

[...] a necessidade desses serviços deve ser sempre temporária. Se a necessidade é


permanente, o Estado deve processar o recrutamento através dos demais regimes. [...]
Caso a função seja permanente, a contratação temporária só é legítima se a
Administração comprovar situação emergencial e transitória, com previsão de ser
posteriormente superada. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 647).

O que torna lícita a contratação temporária, nos termos do segundo requisito


específico, é a provisoriedade do vínculo especial, independentemente da natureza
permanente da função pública.
A contrario sensu, a ofensa constitucional aparece se a função é permanente e a

167
“Lamentavelmente, a contratação pelo regime especial, em certas situações, tem servido mais a interesses
pessoais do que ao interesse administrativo. Por intermédio desse regime, têm ocorrido contratações
‘temporárias’ com inúmeras prorrogações, o que as torna verdadeiramente permanentes.” (CARVALHO
FILHO, 2017, p. 648).
149

contratação não se dá por necessidade temporária, surgida por fato inusitado no dia a dia
administrativo e devidamente amparada em lei:

A necessidade que impõe o comportamento há de ser temporária, segundo os termos


constitucionalmente traçados. Pode-se dar que a necessidade do desempenho não seja
temporária, que ela até tenha de ser permanente. Mas a necessidade, por ser contínua
e até mesmo ser objeto de uma resposta administrativa contida ou expressa num cargo
que se encontre, eventualmente, desprovido, é que torna aplicável a hipótese
constitucionalmente manifestada pela expressão ‘necessidade temporária’. Quer-se,
então, dizer que a necessidade das funções é contínua, mas aquela que determina a
forma especial de designação de alguém para desempenhá-las é temporária. Esse é o
caso, por exemplo, de função de magistério ou de enfermeiro ou de médico a prestar o
serviço em posto de saúde [...] Até o advento do concurso público. (ROCHA, 1999. p.
242).

O terceiro requisito específico da contratação temporária é a excepcionalidade.


Caracteriza-se como a situação atípica no cotidiano administrativo, detalhada na lei regente da
matéria.
A excepcionalidade obriga que a norma jurídica instituidora, sob pena de incorrer em
inconstitucionalidade, discipline hipótese anômala que propicie a formação do vínculo com a
Administração.
Não é compatível com a Constituição, dessa forma, a mera descrição de funções
públicas em lei passíveis de contratação temporária, porquanto a excepcionalidade não se
confunde com função a ser exercida.
É muito comum a normatização seca de funções públicas passíveis de contratação
temporária em violação ao requisito constitucional da excepcionalidade, haja vista que a
função em si considerada é irrelevante para a observância desse requisito, sendo determinante,
sim, a descrição normativa das hipóteses atípicas autorizativas do contrato, que podem ou não
estar atreladas a funções ou cargos.
Assim, a excepcionalidade diz respeito às situações não triviais que autorizam ruptura
provisória do concurso público, normatizadas com clareza pela Administração:

O último pressuposto é a excepcionalidade do interesse público que obriga ao


recrutamento. Empregando o termo excepcional para caracterizar o interesse público
do Estado, a Constituição deixou claro que situações administrativas comuns não
podem ensejar o chamamento desses servidores. Portanto, pode dizer-se que a
excepcionalidade do interesse público corresponde à excepcionalidade do próprio
regime especial. (CARVALHO FILHO, 2017, p. 647).

Segundo o texto constitucional, o descumprimento de quaisquer requisitos, gerais ou


específicos, além de provocar a nulidade do contrato temporário celebrado por fuga do
150

concurso público, também acarreta a punição da autoridade responsável pela contratação, nos
termos do § 2º, do art. 37168 da Constituição:

Todas as contratações temporárias no serviço público que descumprirem a esses


requisitos constitucionais estarão configurando a inobservância do art. 37, II da
Constituição da República, e conforme o preceituado no §2º deste mesmo artigo,
essas contratações serão passíveis de anulação, respondendo o agente público que lhe
der causa pelos danos que causar ao erário, sem prejuízo da ação penal cabível; e o
contratado de boa-fé verá rescindido o seu contrato, sem direito a indenizações outras
que não sejam aquelas de natureza alimentar. (MADEIRA, 2005, p. 32).

As balizas constitucionais impostas à contratação temporária, que decorrem da suposta


vontade política de prestigiar o concurso público, se descolam da realidade administrativa,
como visto no item 7.1.
Amostra relevante do cenário exposto é o acórdão paradigmático do STF (RE
658026/MG), que fixou o norte jurisprudencial sobre o tema, originado de recurso
extraordinário interposto pelo MPMG questionando acórdão do Órgão Especial do TJMG que,
por maioria, julgou improcedente169 o pedido formulado em ADI movida em face do art. 192,
III, da Lei n. 509/1999170 do município de Bertópolis.
A norma municipal autorizava secamente a contratação temporária de pessoal na área
do magistério, despida de qualquer conteúdo normativo detalhado que a amparasse.
A decisão do Órgão Especial do TJMG ofendeu a abstrata formatação constitucional
do instituto da contratação temporária. Forte confusão conceitual entre os requisitos
específicos da contratação temporária existiu e houve, ainda, a ausência de fundamentação
detalhada do significado da excepcionalidade do vínculo.
Em 09 de abril de 2014, com repercussão geral declarada, reformou-se o acordão
estadual:

168
Art. 37 [...] § 2º A não observância do disposto nos incisos II e III implicará a nulidade do ato e a punição da
autoridade responsável, nos termos da lei.
169
O acórdão do TJMG foi assim ementado: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI
MUNICIPAL - CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA - ATIVIDADES DE CARÁTER EVENTUAL OU
PERMANENTE - INDIFERENÇA - SITUAÇÕES DE EXCEPCIONAL INTERESSE PÚBLICO
EVIDENCIADAS - ARTIGO 22 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS -
INCONSTITUCIONALIDADE - INOCORRÊNCIA. I - A excepcionalidade exigida para contratação
temporária não está ligada ao caráter da função (temporária ou permanente), mas sim à excepcionalidade da
situação evidenciada. A contratação, neste caso, se justificaria pelo tempo necessário ou até um novo
recrutamento via concurso público. II - Não há inconstitucionalidade na Lei Municipal que trouxe em seu bojo
situações excepcionais que de fato autorizam a administração contratar de forma temporária para evitar perda
na prestação educacional. (MINAS GERAIS, 2010).
170
O dispositivo impugnado dispunha o seguinte: “[...] Art. 192. Consideram-se como necessidade temporária de
excepcional interesse público as contratações que visem a: [...] III – suprir necessidades de pessoal na área do
magistério”.
151

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.


[...] CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA POR TEMPO DETERMINADO PARA
ATENDIMENTO A NECESSIDADE TEMPORÁRIA DE EXCEPCIONAL
INTERESSE PÚBLICO. PREVISÃO EM LEI MUNICIPAL DE ATIVIDADES
ORDINÁRIAS E REGULARES. DEFINIÇÃO DOS CONTEÚDOS JURÍDICOS
DO ART. 37, INCISOS II E IX DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
DESCUMPRIMENTO DOS REQUISITOS CONSTITUCIONAIS. RECURSO
PROVIDO. DECLARADA A INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA
MUNICIPAL. MODULAÇÃO DOS EFEITOS.
1. O assunto corresponde ao Tema nº 612 da Gestão por Temas da Repercussão
Geral do portal do STF [...]
2. Prevalência da regra da obrigatoriedade do concurso público (art. 37, inciso
II, CF). As regras que restringem o cumprimento desse dispositivo estão previstas
na Constituição Federal e devem ser interpretadas restritivamente.
3. O conteúdo jurídico do art. 37, inciso IX, da Constituição Federal pode ser
resumido, ratificando-se, dessa forma, o entendimento da Corte Suprema de que,
para que se considere válida a contratação temporária, é preciso que: a) os casos
excepcionais estejam previstos em lei; b) o prazo de contratação seja
predeterminado; c) a necessidade seja temporária; d) o interesse público seja
excepcional; e) a necessidade de contratação seja indispensável, sendo vedada a
contratação para os serviços ordinários permanentes do Estado, e que devam estar
sob o espectro das contingências normais da Administração.
4. É inconstitucional a lei municipal em comento, eis que a norma não respeitou
a Constituição Federal. [...]
5. Há que se garantir a instituição do que os franceses denominam de la culture de
gestion, a cultura de gestão (terminologia atualmente ampliada para ‘cultura de
gestão estratégica’) que consiste na interiorização de um vetor do progresso, com
uma apreensão clara do que é normal, ordinário, e na concepção de que os atos de
administração devem ter a pretensão de ampliar as potencialidades administrativas,
visando à eficácia e à transformação positiva.
6. Dá-se provimento ao recurso extraordinário para o fim de julgar procedente a
ação e declarar a inconstitucionalidade do art. 192, inciso III, da Lei nº 509/1999 do
Município de Bertópolis/MG, aplicando-se à espécie o efeito ex nunc, a fim de
garantir o cumprimento do princípio da segurança jurídica e o atendimento do
excepcional interesse social. (BRASIL, 2014c).

A decisão da Corte Constitucional, ao informar os elementos de validade da


contratação temporária, trouxe cinco dimensões a serem observadas, misturando requisitos
gerais com específicos do instituto: a) previsão legal; b) prazo de contratação predeterminado;
c) necessidade temporária; d) interesse público excepcional; e) a indispensabilidade da
contratação, que é vedada para os serviços ordinários, permanentes do Estado que estejam sob
o espectro das contingências normais da Administração.
Na essência, apesar disso, foi mantida similar orientação à afirmada em doutrina sobre
os requisitos do instituto, bipartidos em gerais e específicos. Ao lado dos requisitos
específicos da determinabilidade temporal (item “b”), da temporariedade (item “c”) e da
excepcionalidade (itens “d” e “e”), acrescentou-se na decisão do STF a exigência de lei (item
“a”), que é requisito de validade, mas, tecnicamente, não é requisito específico ou intrínseco
da contratação temporária.
O princípio da legalidade, como visto, é requisito geral de validade, assim como os
152

princípios da governança, do planejamento, da impessoalidade, da moralidade e demais


integrantes do sistema constitucional administrativo, sendo externo ao negócio jurídico
administrativo.
Por outro lado, o item “e” da decisão do STF, ao mencionar a exigência da
indispensabilidade da contratação temporária perfaz uma tautologia, já que não se realizam
contratações dispensáveis. Além do mais, o requisito da excepcionalidade engloba a parte
final do item “e”, ou seja, o fato das contratações de funções permanentes não poderem
ocorrer em situações ordinárias e previsíveis de necessidade de pessoal.
Trouxe o acórdão, por maioria, a modulação dos efeitos decisórios, declarando-se a
inconstitucionalidade de modo a preservar os contratos já firmados até a data do julgamento,
não podendo excederem 12 doze meses de duração.
As breves considerações sobre essa decisão, que exprime a diretriz do Poder Judiciário
brasileiro em matéria de contratação temporária para as esferas municipais, estaduais ou
federal, não impedem a formulação de críticas ao status quo constitucional e administrativo
brasileiro, pouco alterado após o paradigmático acórdão de 2014.
A produção legislativa nula por ofensa ao concurso público continua intensa em
matéria de acesso a cargos, empregos e funções, ficando exposto um sistema real de
contratação temporária substancialmente diferente do modelo ideal e simbólico previsto nos
textos constitucionais.
Apesar dos êxitos elevados no controle da constitucionalidade da legislação de
contratação temporária, como visto no presente item e no 7.1, paradoxalmente as ofensas ao
modelo concursal continuam inalteradas.
Ao decidir, o STF, por maioria 171 , pela modulação dos efeitos decisórios, com
fundamento na segurança jurídica, nasce a percepção de que os entes públicos, nas três esferas,
não terão obstáculo maior para continuar as contratações ilícitas relativas a funções públicas
essenciais, sujeitando-se, quando muito, a prazos alargados em modulação para o
encerramento das relações jurídicas firmadas com lastro no ato normativo viciado.

171
Nesse sentido, o Min. Marco Aurélio, na sessão de julgamento do RE 658026/MG, afirmou o seguinte “[...] o
mais interessante é que a Carta estadual, sob o ângulo da contratação por tempo determinado, proíbe que assim
se faça quanto a funções do magistério. O Município foi adiante e lançou preceito que é abrangente,
viabilizando a contratação para suprir necessidade - gênero - de pessoal na área do magistério. O dispositivo
não permite interpretação dupla. A interpretação é única, ou seja, a autorização peremptória. Por isso,
acompanho o Relator, declarando a inconstitucionalidade do preceito. Ressalto, sob o ângulo da modulação - e
voto contra a modulação -, que a lei já está em vigor desde 1999. Ainda se dará a ela sobrevida de doze meses,
no que contraria... [...] entendo que, celebrados contratos a partir desse preceito, mostraram-se discrepantes da
Carta da República e não podem subsistir. Voto pela inconstitucionalidade, pura e simples, do preceito, ou
seja, do inciso III do artigo 192 da Lei do Município de Bertópolis, de nº 509 de 99.” (BRASIL, 2014c).
153

Por isso, a aplicação casuística do pensamento consequencialista forte172, na decisão


paradigmática de contratação temporária do STF, é questionável, porquanto lesiona a ética
deontológica do Direito e termina por fomentar indiferença sistêmica à continuidade de
malfeitos na Administração Pública:

[...] Por certo, qualquer juiz examina as possibilidades de sua decisão. No entanto,
deve ser sabedor que não há uma relação de causalidade absoluta de seus julgados
como pressupõem os consequencialistas. A entropia estará sempre presente, e esse é
um elemento a ser considerado. Dessa forma, o consequencialismo deve ser
abrandado para incluir o concretismo, ou seja, o exame do conjunto de provas e de
fatos alegados, percebendo o magistrado que o exame das consequências de uma
decisão não pode determinar o conteúdo [...] Em termos de controle de
constitucionalidade, a questão do consequencialismo é introduzida no exame
justamente da modulação temporal dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade de um texto normativo [...] (CRUZ; MEYER; RODRIGUES,
2012, p. 26).

A decisão, que poderia enfraquecer as contratações temporárias ilícitas, não


modificará substancialmente a endemia nacional de ingresso na máquina pública sem
concurso. Quaisquer hipóteses futuras de contratações temporárias para a atividade-fim
essencial do ente público poderão obter modulação, tendo como pano de fundo a segurança
jurídica alicerçada na continuidade do serviço, sob alegação de desconhecimento da lei e
ignorância técnica do vício, como se o autocontrole de constitucionalidade fosse sofisticação
prescindível às demais funções ou Poderes do Estado.
O setor público essencial, formado por contingente de trabalhadores temporários, é
contraditório em si mesmo. Nega a sua própria essência de exercer a atividade-fim. Essa
incompatibilidade grosseira é o traço marcante do abuso de direito, a não recomendar a
modulação, especialmente na decisão paradigmática.
A visão do horizonte nessa matéria mostra, ademais, que modular os efeitos decisórios
no acórdão paradigma objeto de repercussão geral, prorrogando a vigência de contratos

172
“[...] o consequencialismo forte é essencialmente uma teoria que sustenta que a decisão jurídica deva se
pautar em função daquilo que ela acarretará futuramente em termos fáticos na decisão. Então o magistrado
deve decidir seus casos em função das consequências que deles poderão surgir para as partes e para a
sociedade. [...] O pensamento consequencialista é um pensamento que se abre a chamada argumentação de
fundo utilitarista, com algumas correntes de pensamento como o Critical Legal Studies, bem representando
nos domínios nacionais e internacionais pela teoria de Mangabeira Unger. [...] Na visão de Ronald Dworkin, o
consequencialismo apresenta-se também na chamada corrente pragmatista no direito norte-americano, que a
seu ver se contraporia ao convencionalismo de Herbert Hart [...] O consequencialismo forte afeta a chamada
ética deontológica do direito, uma vez que ele possibilita que o julgador passe a decidir livremente de acordo
com suas próprias preferencias pessoais, com aquilo que ele acha que é melhor para a sociedade, ignorando o
direito vigente. [...] O consequencialismo forte pode ser entendido como uma autorização argumentativa ao
Judiciário para se afastar da deontologia normativa e adotar decisões “mais convenientes” ou “mais
preocupadas” com as consequências econômicas, políticas, sociais e morais para a comunidade.” (CRUZ;
MEYER; RODRIGUES, 2012, p. 18-25).
154

temporários com a interpretação voltada para a tese de segurança jurídica pontual, termina por
majorar a insegurança jurídica geral em relação aos abusos de direito que continuam
pululando nas contratações temporárias pelo Brasil, em continuado processo de deterioração
da qualidade do ensino público nacional, da saúde pública e demais áreas essenciais,
prejudicando a efetividade de similares direitos fundamentais cuja tutela foi o mote para
modulação referida.
O princípio da continuidade do serviço público, que tem dignidade constitucional
derivada do princípio da eficiência administrativa, não é panaceia para a salvaguarda dos
ilícitos ou incremento da tese da segurança jurídica, devendo estar atento a três fatores: a) a
essencialidade do serviço; b) a ininterruptabilidade do serviço; e c) a inexistência de abuso de
direito.
A importância da continuidade do serviço, dessa forma, serve como fundamento
jurídico para as contratações temporárias celebradas de acordo com a ordem constitucional,
em ruptura momentânea do concurso público, não para prorrogar o prazo de contratações que
tangenciam o crime, conferindo lastro a duvidosa segurança jurídica. Aceitar o contrário, por
meio do consequencialismo forte, é estimular por via oblíqua a manutenção do panorama
atual de ofensas reiteradas a direitos fundamentais na prestação defeituosa de serviços
públicos essenciais.
Relevante mencionar, ainda, o fato de que punições às pessoas físicas responsáveis
pela idealização temerária das contratações temporárias viciadas é fenômeno insólito no
Brasil.
A jurisprudência tem assinalado que a contratação temporária municipal, celebrada
contra expressa norma constitucional, é penalmente irrelevante caso a violação tenha sido
instrumentalizada por norma local autorizativa:

[...] esta Suprema Corte tem reconhecido que a existência de leis municipais
autorizando a contratação temporária de agentes públicos, para atender a
necessidade de excepcional interesse público, afasta a tipicidade da conduta
referente ao art. 1º, XIII, do DL 201/1967, que exige a nomeação, admissão ou
designação de servidor contra expressa disposição de lei [...]. (BRASIL, 2011b).

A decisão do STF decorre da estrita tipicidade penal. Todavia, não se tem como
refutar o caráter fictício do Direito Penal na hipótese. O § 2º, do art. 37 da Constituição é letra
morta.
Essa questão, embora pouco examinada na seara administrativa por força da essência
criminal, desnuda a ausência do sistema repressivo, permeando, também, esferas de
155

responsabilidades extrapenais, notadamente no campo da improbidade administrativa, verbis:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.


IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITA MUNICIPAL.
CONTRATAÇÃO DE SERVIDORES TEMPORÁRIOS SEM CONCURSO
PÚBLICO. AMPARO EM LEGISLAÇÃO MUNICIPAL. AUSÊNCIA DO
ELEMENTO SUBJETIVO (DOLO). ART. 11 DA LEI 8.429/92. 1. Nos termos da
jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, a contratação de servidores públicos
sem concurso público baseada em legislação local não configura improbidade
administrativa prevista no art. 11 da Lei 8.429/92, por estar ausente o elemento
subjetivo (dolo), necessário para a configuração do ato de improbidade violador dos
princípios da administração pública. A propósito: AgRg no REsp 1358567/MG,
desta relatoria, Primeira Turma, DJe 09/06/2015; REsp 1.248.529/MG, Rel. Min.
Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 18/09/2013. 2. Recurso especial
provido. (BRASIL, 2016b).

A infração à norma constitucional, portanto, não traz quaisquer consequências para os


agentes públicos ou políticos municipais, em interpretação que se estende para os gestores
estaduais e federais também.
O universo dos contratos temporários evidencia que os entes públicos com elevado
grau de desorganização, usualmente descumpridores de deveres constitucionais, o que longe
está de representar situação infrequente, alcançam vantagens espúrias por meio da
desgovernança e da falta de planejamento administrativo. Uma delas é a chance de obter
interpretações judiciais utilitaristas que flexibilizam o cumprimento das normas
administrativas constitucionais.
A soma dessa realidade com o painel de irresponsabilidade pessoal dos gestores
confere a perspectiva de manutenção do cenário negativo.
A defesa do direito à governança e ao corolário planejamento administrativo, nesse
contexto, ganha reforço sob o ângulo da práxis administrativa: reduz as zonas de conforto e os
espaços de ação do administrador patrimonialista, diante do arsenal de deveres jurídicos
destinados à instrumentalização dos direitos fundamentais.

7.3 Cargos em comissão

Os primórdios do que hoje se entende por cargo em comissão têm a primeira inserção
constitucional em 1934173, por meio do instituto da “comissão temporária ou de confiança”.
Na ocasião, limitou-se a Constituição a disciplinar o exercício cumulativo e remunerado da

173
Art. 172 - É vedada a acumulação de cargos públicos remunerados da União, dos Estados e dos Municípios.
[...] § 3º - É facultado o exercício cumulativo e remunerado de comissão temporária ou de confiança,
decorrente do próprio cargo. (BRASIL, 1934).
156

comissão temporária ou de confiança com cargos públicos da União, dos Estados e dos
Municípios, denotando apenas a sua natureza de função e não de cargo público.
O estudo contemporâneo do cargo em comissão é substancialmente diferente, em
especial pelo impacto considerável que provoca na esfera estatal.
Nesse ponto, vale o retorno ao início do capítulo para sublinhar a importância do
exame avesso a preconceitos que deterioram a crítica jurídica. Cargo em comissão não é
ontologicamente positivo ou negativo. Sua influência na órbita administrativa não pode ser
tida, de antemão, como deletéria ou proveitosa. O uso que se faz dos cargos em comissão, sim,
é a pedra de toque da averiguação dessa forma de acesso ao quadro de pessoal do Estado.
Não se desconhece que o perfil dos cargos em comissão possibilita críticas relativas à
sua permeabilidade ao patrimonialismo e à raiz discriminadora, baseada na suposta descrença
na habilidade do servidor concursado, que seria incapaz de exercer funções qualificadas de
chefia ou direção. O cargo em comissão representaria, nessa linha, a confissão constitucional
da falibilidade ou deficiência da própria regra geral - o concurso público, improdutivo na
seleção dos melhores.
Essas observações são refutáveis, entretanto.
O patrimonialismo brasileiro é entrave para qualquer forma de acesso ao Estado ou
mesmo para coparticipação dos atores sociais no desenho de Administração policêntrica. Nem
por isso, o seu combate justifica o retorno aos paradigmas da Administração Pública
burocrática, que é insuficiente para atuar na complexa realidade contemporânea. O exercício
estratégico da chefia e da direção em organizações complexas, entre as quais o Estado, não é
elemento a se desprezar na boa administração.
Ademais, a visão de que o cargo em comissão seria o reconhecimento estatal da
deficiência do modelo do concurso público esbarra, de imediato, na previsão de percentual
mínimo obrigatório de cargos em comissão a serem preenchidos por servidores de carreira
(recrutamento restrito ou limitado), nos termos do art. 37, V, da Constituição. Desse modo,
não há contradição sistêmica, mas simplesmente a escolha constitucional de flexibilizar a
regra do concurso, em hipóteses especiais taxativamente previstas em lei.
Fato é que a dimensão normativa brasileira reconhece a importância dos cargos em
comissão na estrutura administrativa, sendo essa a premissa constitucional sobre o tema.
É pertinente, assim, estabelecer o desenho do instituto dos cargos em comissão à luz
de interpretação constitucional adequada à realidade brasileira.
Os cargos em comissão, previstos no art. 37, V, da Constituição, indicam o modelo,
por vezes opcional, de acesso à máquina pública nas hipóteses de chefia, direção ou
157

assessoramento. Daí porque é facultada pela ordem constitucional, via ato normativo, a
criação de cargos que viabilizem a livre nomeação para essas atividades especiais.
Na linha do raciocínio, a instituição de cargos em comissão não se traduz como dever
jurídico absoluto do ente público que poderá, uma vez preenchidos os requisitos
constitucionais, escolher, com alguma flexibilidade, dentro de sua esfera de autonomia, o
modelo administrativo a trilhar: a via ordinária do concurso, eventualmente unida à função de
confiança, ou a dos cargos em comissão.
Situações há que o provimento em comissão é o caminho jurídico único, sem margem
de opção, como nos casos, por exemplo, da direção de agências reguladoras, de um Ministério
e de Secretarias de Estado ou Município, vinculadas, em tais hipóteses, ao espírito do
mandato174.
Na maior parte dos casos, todavia, a chefia, direção e assessoria são ontologicamente
compatíveis com as atividades desenvolvidas por servidor concursado, embora possuidoras
das características da precariedade, confiança e especialidade.
A própria previsão constitucional do percentual mínimo destinado a servidores de
carreira evidencia essa compatibilidade.
Atenção ao conceito de recrutamento restrito ou limitado surge quando se examina
justamente a exigência do percentual mínimo para os servidores de carreira. Revela não
apenas a ideia destinada à comunhão de experiências entre os integrantes dos diversos
extratos do funcionalismo (JUSTEN FILHO, 2010, p. 949), mas também a harmonia entre os
atributos especiais do cargo de provimento em comissão e a qualificação potencial do servidor
de carreira.
Apesar do emaranhado de designações e nomenclaturas doutrinárias, o recrutamento
restrito é ligado, majoritariamente, à ideia de função de confiança, gratificada ou
comissionada para o exercício de atividades de chefia, direção ou assessoramento na
Administração Pública, exigindo-se servidor de carreira. Já nos cargos em comissão, o
recrutamento restrito se dá por meio da observância do percentual mínimo previsto no art. 37,
V, da Constituição.
O recrutamento amplo, por sua vez, vincula-se exclusivamente aos cargos em

174
Posicionamento dissonante, não seguido nesta pesquisa, é o de José Maria Pinheiro Madeira, que considera o
cargo em comissão eminentemente político, restrito ao preenchimento de escalões do Governo (Ministros,
Secretários e Dirigentes da Administração Indireta), de livre nomeação, contrapondo-se à função de confiança,
que seria de natureza administrativa e direcionada para o exercício de direção, chefia e assessoramento,
exclusivo para servidor de cargo efetivo (MADEIRA, 2005, p. 57). Não é o que se verifica no cotidiano
administrativo nacional, tampouco o que se extrai da doutrina majoritária e jurisprudência brasileira sobre o
tema.
158

comissão, com a possibilidade da livre nomeação incidir fora dos quadros de pessoal do órgão
público, embora não seja vedada nomeação de servidor de carreira.
Nada obstante, a doutrina é divergente quando se lança a visão sobre as terminologias
e características dos instituos examinados, sendo expostos diversos apontamentos que não são
inteiramente harmoniosos entre si175.
Odete Medauar enxerga o cargo em comissão submetido ao “pressuposto da
temporariedade”, tratando-o como sinônimo de cargo de confiança, submetido à livre
nomeação e exoneração:

O cargo em comissão é aquele preenchido com o pressuposto da temporariedade;


esse cargo, também denominado cargo de confiança, é ocupado por pessoa que
desfruta de confiança daquele que nomeia ou propõe a nomeação. Se a confiança
deixa de existir ou se há troca de autoridade que propôs a nomeação, em geral o
ocupante do cargo em comissão não permanece [...] Segundo o art. 37, II, da CF, os
cargos em comissão, declarados em lei de livre nomeação e exoneração, não exigem
concurso público. Com a mesma facilidade com que é nomeado o titular de cargo
em comissão, ele o perde, sem garantia alguma, pois é de livre exoneração; daí
dizer-se que seus ocupantes são demissíveis ad nutum, pois esta expressão significa
“um movimento de cabeça”. De acordo com a Constituição Federal, art. 37, inc. V,
na redação dada pela Emenda Constitucional 19/98, as funções de confiança,
exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em
comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e
percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção,
chefia e assessoramento. (MEDAUAR, 2015, p. 325-326).

A doutrina de Medauar sugere o entendimento de que a função de confiança lato sensu,


como gênero, engloba de um lado as hipóteses de cargos em comissão ou cargos de confiança
e de outro as funções de confiança stricto sensu, gratificadas ou comissionadas (BORGES,
2012).
Abordando a vocação para a transitoriedade dos cargos em comissão, Celso Antônio
Bandeira de Mello assinala o caráter provisório, o elemento de confiança e a exoneração ad
nutum como as figuras centrais do conceito:

Os cargos de provimento em comissão (cujo provimento dispensa concurso público)


são aqueles vocacionados para serem ocupados em caráter transitório por pessoa de
confiança da autoridade competente para preenche-los, a qual também pode
exonerar ad nutum, isto é, livremente, quem os esteja titularizando. (MELLO, 2015,
p. 312).

175
Segundo José dos Santos Carvalho Filho, “A Constituição, no art. 37, V, utilizou a expressão “funções de
confiança”, que, na verdade, é marcada por evidente imprecisão. A análise do dispositivo demonstra que se
pretendeu aludir às já mencionadas funções gratificadas. A expressão é vaga e inexata porque existem várias
outras funções de confiança atribuídas a situações funcionais diversas, como é o caso das relacionadas a cargos
em comissão. A confusão se completa com a expressão funções comissionadas, usada às vezes para indicar
cargos em comissão. A falta de uniformidade impera nesse aspecto.” (CARVALHO FILHO, 2017, p. 652).
159

O risco do nepotismo176 para Diógenes Gasparini é o maior potencial negativo dos


cargos em comissão, ressaltando em seus comentários a importância dos precedentes do STF
que cercearam a livre ação dos agentes públicos e políticos ofensiva à moralidade
administrativa.
Nota-se que o administrativista trata cargo em comissão como sinônimo de
comissionado, em contraposição a parte da doutrina que utiliza a expressão comissionado
como integrante do plexo das funções de confiança e gratificadas, ínsitas ao recrutamento
restrito.
Ressalta, Diógenes Gasparini, também, a impropriedade da criação desmesurada de
cargos em comissão, em número superior aos cargos efetivos existentes, verbis:

O Supremo Tribunal Federal, com acerto, tem repelido não somente a criação de
cargos comissionados com atribuições meramente técnicas (ADIn 3.706, Rel. Min
Gilmar Mendes, DJ, 5 out. 2007), mas também a criação deles em número superior
ao de cargos efetivos existentes no órgão ou entidade (RE 365.368-AgR, Rel. Min.
Ricardo Lewandowski, DJ, 29 jun. 2007). Pior que a criação desmesurada de cargos
de provimento em comissão é o mau uso que deles fazem certas autoridades com
poder de nomeação, cujo interesse é apenas atender aos que lhes são mais próximos,
como é o caso de alguns parentes. Em suma: o pior é o nepotismo. (GASPARINI,
2011, p. 325-327).

A rigor, é polêmica a tese de que o exame do número de cargos em comissão em


determinado órgão público, por si só, seja critério normativo para o juízo de
constitucionalidade das normas instituidoras. Parece mais precisa a conclusão de que o
número elevado de cargos em comissão recomenda a investigação da possível fuga das
hipóteses constitucionalmente admitidas, conforme se extrai do art. 37, V, da Constituição.
Sem dúvida, se a quantidade de cargos em comissão relativa à chefia ou direção é
superior ao de servidores efetivos, há prova sólida de desvio de finalidade, haja vista que a
governança, ao menos como se conhece na Ciência da Administração e no universo da
Administração Pública atenciosa à Constituição, não se implementa por meio de verdadeiro
exército de chefes e diretores, cujas atuações e presenças são pontuais e estratégicas na
máquina pública. Entretanto, pode haver situação em que o número elevado de assessores não
represente ruptura da norma constitucional, desde que vinculados funcionalmente a servidores

176
Diante da inércia do Poder Legislativo, o Enunciado n. 13 de Súmulas Vinculantes do STF regulamentou a
questão do nepotismo: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por
afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica
investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de
confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações
recíprocas, viola a Constituição Federal.” (BRASIL, 2008).
160

públicos de carreira.
As lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, finalmente, descrevem as
características da discricionariedade, temporariedade e precariedade como típicas do cargo em
comissão.
Os cargos em comissão guardam diferença das funções de confiança pela forma
ordinária de recrutamento e também porque os primeiros representam, na esteira dos
conceitos gerais de Direito Administrativo, um lugar nos quadros da Administração, enquanto
as funções indicam mera atribuição isolada:

Os cargos em comissão são lugares nos quadros da Administração Pública, aos


quais se atribuem funções de direção, chefia e de assessoramento, providos por livre
nomeação e desprovidos, também, por exoneração ad nutum, e a serem preenchidos
por quaisquer pessoas que satisfaçam os requisitos legais, preferentemente
servidores de carreira, nos casos e percentuais mínimos previstos em lei (art. 37, II e
V, CF).
As funções de confiança são atribuições de direção chefia e de assessoramento de
livre nomeação e exoneração, a serem exercidas exclusivamente por servidores
ocupantes de cargo efetivo (art. 37, V, CF).
Em ambos os casos, o provimento é de competência do Chefe do Poder de Estado ou
do dirigente de entidade constitucional ou legalmente autônoma, em caráter
discricionário, temporário e precário. (NETO, 2005, p. 294).

Como foi sublinhado, a matéria recebe enfoques diversos na academia, não sendo
uniformes os posicionamentos relativos ao atributo da temporariedade dos cargos em
comissão, bem como as suas diferenças com as funções de confiança, por vezes sendo
estabelecido o tratamento de gênero e espécie; ora separados pela essência política ou
administrativa e, noutras ocasiões, submetidos à dicotomia de recrutamento amplo e restrito.
No exame das características dessas formas de acesso, parece tecnicamente incorreta a
compreensão da temporariedade como elemento marcante do cargo em comissão ou das
funções de confiança, afinal, embora precário, o vínculo não se contamina ou se desnatura
pela longevidade circunstancial, ressalvado o caso atípico do exercício de mandato.
Diferentemente da contratação temporária, cuja vigência indeterminada ou por prazo
muito longo a invalida inexoravelmente, o acesso aos cargos por meio do provimento em
cargo de comissão não se relaciona normativamente com a temporariedade.
A temporariedade, portanto, apenas decorre da constatação empírica das hipóteses
usuais de encerramento desses vínculos, estranha ao exame das características gerais do
instituto e de seus requisitos de validade. Ou seja, a essência e a validade do cargo em
comissão, excetuado o caso de mandato, não são perturbadas se a ocupação perdurar 5 ou 20
anos pela mesma pessoa, diferentemente do que ocorreria na contratação temporária.
161

A precariedade do vínculo também não é característica absoluta dos cargos em


comissão, como indica a hipótese da direção das agências reguladoras. A nomeação para esses
cargos depende de aprovação do Senado e a ruptura do vínculo, por conta da estabilização
temporária, apenas ocorre mediante sentença judicial transitada em julgado ou processo
administrativo (arts. 5º e 9º, da Lei n. 9.986/2000). (OLIVEIRA, 2015, p. 647).
Apesar da exceção, não se afigura errôneo tratar a precariedade do cargo em comissão
e da função de confiança como a característica geral, propiciando-se o entendimento de que
são detentores desse atributo face à literalidade do texto constitucional, que menciona a livre
exoneração no art. 37, II.
A confiança, por seu turno, é inerente aos cargos de comissão e às funções gratificadas,
comissionadas ou de confiança. Seu foco é restrito aos contornos do significado de livre
nomeação e, a contrario sensu, à dedução extraída do poder discricionário de exonerar ad
nutum o ocupante do cargo ou o exercente da função. O aprofundamento nesta seara requer
atenção para não se ingressar em tautologia.
Vale frisar que na Administração Pública submetida aos direitos da governança e do
planejamento administrativo, a característica da confiança, embora existente, é a de menor
peso no exame da “livre” nomeação do agente público, como será visto mais a frente.
A especialidade encerra as características gerais dos cargos em comissão e funções de
confiança de acordo com esta pesquisa, sendo consequência lógica da excepcionalidade
dessas formas de acesso e da singular natureza das atividades de direção, chefia e
assessoramento.
Resumindo, cargo em comissão é o cargo público de direção, chefia ou
assessoramento, preenchido por pessoa que não pertence ao quadro de servidores efetivos da
Administração Pública (recrutamento amplo) ou por servidor de carreira em percentuais
mínimos estabelecidos em lei (recrutamento limitado ou restrito). As funções gratificadas, de
confiança ou comissionadas, também inerentes à chefia, direção ou assessoramento, são
funções públicas exercidas apenas por servidores de carreira, efetivos dos quadros da
Administração Pública (recrutamento limitado ou restrito). São dotados, cargos e funções, das
características gerais da precariedade, confiança e especialidade.
As atribuições de chefia, direção ou assessoramento obrigam-se a vir descritas em lei.
Mas não é só. Para que haja respeito ao disposto no art. 37, V, da Constituição, as atribuições
dos cargos em comissão ou funções de confiança exigem redação clara e detalhada. A
descrição normativa ininteligível de atribuições, que apenas pelo nomen iuris do cargo ou da
função pretende transmitir a ideia de atividade relacionada à chefia, direção ou
162

assessoramento também padece de inconstitucionalidade material, por fraude constitucional.


Foi examinado que os cargos em comissão devem obediência a percentual mínimo
para servidores de carreira.
A permeabilidade do Direito Administrativo à Ciência da Administração, que
reconhece a importância dos fatores motivacionais para os servidores de carreira, e o impulso
à liderança em organizações complexas177, fenômeno intrínseco às tarefas de chefia e direção,
são elementos úteis para aferição do percentual mínimo razoável.
Anota-se que a Constituição não determinou a fixação de limite máximo de servidores
de carreira, o que é aspecto a reforçar o convencimento da impropriedade de percentuais
pouco expressivos.
Noutro ângulo, por não trazer a Constituição percentual fixo, o diálogo entre os atos
normativos infraconstitucionais que disciplinam nacionalmente o tema, em auxílio a
identificação do melhor parâmetro, também possui consistência.
O percentual estabelecido no Judiciário nacional, pelo art. 2º, § 2º, da Resolução n. 88,
de 20 de abril de 2010178, do Conselho Nacional de Justiça, foi de 50% para servidores de
carreira.
Trilhando caminho semelhante, o Decreto n. 9.021, de 31 de março de 2017179, do
Poder Executivo federal, dispôs sobre os cargos DAS (Direção e Assessoramento Superiores),
no âmbito da administração pública federal, estipulando 50% de cargos DAS, níveis 1, 2, 3, e
4, e 60% de cargos DAS, níveis 5 e 6, para os servidores de carreira.
Essas faixas percentuais estimulam processo de qualificação do servidor público e
conferem credibilidade ao cargo em comissão, numa Administração Pública que ainda se
encontra envolta em ambiente patrimonialista.
Ademais, a valorização dos servidores públicos é fator motivacional integrado à
dimensão axiológica do direito à governança.

177
A Ciência da Administração aceita que a “liderança é um dos temas mais discutidos e pesquisados atualmente,
tanto no meio acadêmico, e especialmente nos cursos de Administração, quanto no meio empresarial [...] sem
liderança nenhuma organização sobrevive. [...] liderança trata de autoconhecimento, reflexão, processo
decisório, liberdade, responsabilidade pelas ações, relacionamentos, personalidade e caráter e faz uso dos
conhecimentos de várias ciências ou disciplinas, embora por tradição acadêmica esteja contida nos estudos do
comportamento organizacional. Por fim, liderança tanto pode ser um sonho como um pesadelo, como veremos
no decorrer da nossa discussão [...].” (BARROS NETO, 2009, p. 8-9).
178
Art. 2º Os cargos em comissão estão ligados às atribuições de direção, chefia e assessoramento, sendo vedado
seu provimento para atribuições diversas. [...] §2º - Para os Estados que ainda não regulamentaram os incisos
IV e V do art. 37 da Constituição Federal, pelo menos 50% (cinquenta por cento) dos cargos em comissão
deverão ser destinados a servidores das carreiras judiciárias, cabendo aos Tribunais de Justiça encaminharem
projetos de lei de regulamentação da matéria, com observância desse percentual.
179
Art. 1º. [...] I - cinquenta por cento do total de cargos em comissão DAS, níveis 1, 2, 3 e 4; e II - sessenta por
cento do total de cargos em comissão DAS, níveis 5 e 6 (BRASIL, 2017a).
163

A presente realidade dos cargos em comissão, notadamente nas situações de


recrutamento amplo, todavia, ainda é compatível com as críticas relacionadas no item 7.1
deste capítulo, quando se traçou panorama geral do tumultuado e distorcido acesso a cargos,
empregos e funções públicas no país, propiciando-se a conservação do ciclo de pobreza
nacional ligado ao patrimonialismo.
Além do alto número de cargos e funções de chefia e direção, que prejudica o
funcionamento eficiente dos órgãos públicos, dados restritos à União, levantados pela
Secretaria de Fiscalização de Pessoal (Sefip) do TCU, aferiram a magnitude da despesa
pública dos cargos em comissão (CC) e funções de confiança (FC), mapeando os diversos
riscos à Administração Pública e os cuidados de gestão necessários ao se adotar essa forma de
acesso especial, conforme acórdão n. 1332/2016, processo TC 011.954/2015-9, em sessão
datada de 25 de maio de 2016, in verbis:

[...] Poderes Legislativo e Judiciário, assim como o Ministério Público da União


(MPU), possuem, respectivamente, 79%, 56% e 44% de servidores ocupando
FC/CC, valores superiores à média geral, que é de 31%, e à média do Poder
Executivo, de 26%.
Em relação à origem do vínculo de pessoas com CC, 60% dessas funções são
ocupadas por servidores efetivos, enquanto os demais são ocupados por pessoas sem
vínculo com a administração. Quando esta análise é feita por poder, o Legislativo
tem 97% de servidores sem vínculo com a administração e o Judiciário e o
Executivo têm a maioria dos CC ocupados por servidores do próprio quadro, nos
percentuais de 83% e 64%, respectivamente.
Dos R$ 9,68 bilhões gastos mensalmente com os servidores ativos das 278
organizações, R$ 3,47 bilhões, ou 36%, são gastos com os servidores comissionados
ocupantes FC/CC, sendo 7% para os titulares de CC e 29% para ocupantes de FC.
Também foram observadas discrepâncias entre os 30 ministérios participantes, das
278 organizações verificadas. A título de exemplo, o Ministério das Cidades possui
percentual de FC/CC de 40%, menos da metade do observado no Ministério da
Pesca e Aquicultura, de 85%.
A auditoria também avaliou os riscos inerentes aos processos de escolha e indicação
de ocupantes dos cargos comissionados, entre os quais investidura em FC e CC de
pessoa que não possui os requisitos e as competências necessários e conflito entre
interesses públicos e privados das pessoas com essas funções. Também foram
observados casos de FC e CC de pessoa enquadrada nas hipóteses de nepotismo ou
com impedimentos legais e existência de comissionados cujas atribuições não são de
direção, chefia ou assessoramento.
Uma das dificuldades que levam ao risco de investidura em FC/CC de pessoa
enquadrada nas hipóteses de nepotismo refere-se aos normativos que regem a
proibição de tal prática. Na avaliação do TCU, essas normas são de difícil
implementação, em face tanto da dependência de declaração própria daquele que
incide na proibição, quanto da apresentação de eventual denúncia.
O tribunal constatou que, em regra, estruturas mais enxutas, com menor quantidade
de servidores alocados em cargos de chefia, direção e assessoramento tendem a ser
menos burocráticas e mais efetivas, além de possuírem um custo menor. Não foi
afastada, no entanto, a interferência de outros fatores que interferem na
produtividade com custo menor, como, por exemplo, gestão mais eficiente e adoção
de processos de trabalho menos redundantes. Apesar disso, esses aspectos não foram
analisados no trabalho atual.
164

Exemplo da diferença de produtividade foi observado entre dois tribunais regionais


do trabalho (TRT). O TRT-20 possui 37 magistrados e baixou de seu estoque, no
ano de 2014, 34.320 processos. Já o TRT-22, que possui 38 magistrados, baixou
42.380 processos no mesmo período. No TRT-20, que tem percentual de
comissionados de 60%, a produtividade de cada magistrado foi de 928 processos no
ano. No TRT-22, que tem 38% de comissionados, essa produtividade foi de 1.115
processos. Em julho de 2015, o gasto total de pessoal do TRT-22 foi de R$ 5,45
milhões, contra R$ 6,79 milhões do TRT-20. (TRIBUNAL DE CONTAS DA
UNIÃO, 2016).

Na esfera estadual, o diagnóstico desta pesquisa, por meio dos exames das ADIs
manejadas pelo Procurador-Geral de Justiça de Minas Gerais, também revela a necessidade de
ressignificação do instituto. Multiplicam-se hipóteses de recrutamento amplo para chefias e
direções que, além de trazerem obscura descrição das atribuições em lei e ausência de
planejamento administrativo, sugerem a mera acomodação de pessoas próximas ao poder
político local.
Exemplo é a Lei n. 3.529, de 26 de março de 2010, do município de Diamantina/MG,
objeto de impugnação no ano de 2016, por meio da ADI n. 1.0000.16.045421-1/000,
justificando-se pelo caráter autoexplicativo o registro da norma jurídica viciada:

[...]
Dispõe sobre a vinculação administrativa da Banda Mirim “Prefeito Antônio de
Carvalho Cruz” e dá outras providências.
[...]
Art. 2º. Fica criado o cargo em comissão de recrutamento amplo de Regente de
Banda Mirim “Prefeito Antônio de Carvalho Cruz”, com referência de vencimento
166.

A ocupação da máquina pública de forma desorganizada por contingente não


planejado de chefes, diretores e assessores insinua abuso de direito indicativo de: a) má
governança; b) aparelhamento estatal; e c) “cabide” de empregos; e/ou d) outras formas de
corrupção. Tudo em detrimento da efetividade da prestação dos serviços públicos e dos
direitos fundamentais.
A melhor estruturação dos cargos em comissão e das funções de confiança,
gratificadas ou comissionadas, nesse sentido, contribui para o enfraquecimento do ciclo de
pobreza ligado ao assistencialismo, clientelismo, mandonismo, filhotismo e fisiologismo,
freando o domínio patrimonialista do Estado.
A livre nomeação, relacionada ao poder discricionário de escolha, embora existente,
condiciona-se aos pilares do direito à governança, especialmente ao dever de planejamento,
em sintonia com os paradigmas defendidos nesta dissertação. Governança e planejamento
funcionam, assim, como requisitos gerais de validade da ação administrativa no sistema de
165

acesso a cargos, empregos e funções públicas.


Obriga-se o Poder Público, nesse sentido, a estruturar juízo objetivo de adequação
entre o cargo/função e o candidato. A confiança, como visto, é apenas característica interna a
compor o espectro desse vínculo especial, não se esgotando nela a livre nomeação.
A especificação dos requisitos específicos de validade do cargo em comissão ou da
função de confiança compete ao legislador infraconstitucional, em obediência ao direito à
governança e ao planejamento administrativo. Mas, o abuso do poder discricionário de
nomear também pode ensejar correção pela eventual ofensa ao planejamento, dada a sua
dimensão normativa, mesmo inexistindo lei regulamentadora.
A realidade do planejamento administrativo começa, lentamente, a ser enfrentada por
diplomas infraconstitucionais, servindo como exemplo a Lei n. 13.303, de 30 de junho de
2016180, Lei das Estatais, que disciplina o estatuto da empresa pública, da sociedade de

180
“Art. 17. Os membros do Conselho de Administração e os indicados para os cargos de diretor, inclusive
presidente, diretor-geral e diretor-presidente, serão escolhidos entre cidadãos de reputação ilibada e de notório
conhecimento, devendo ser atendidos, alternativamente, um dos requisitos das alíneas “a”, “b” e “c” do inciso
I e, cumulativamente, os requisitos dos incisos II e III:
I - ter experiência profissional de, no mínimo:
a) 10 (dez) anos, no setor público ou privado, na área de atuação da empresa pública ou da sociedade de
economia mista ou em área conexa àquela para a qual forem indicados em função de direção superior; ou
b) 4 (quatro) anos ocupando pelo menos um dos seguintes cargos:
1. cargo de direção ou de chefia superior em empresa de porte ou objeto social semelhante ao da empresa
pública ou da sociedade de economia mista, entendendo-se como cargo de chefia superior aquele situado nos 2
(dois) níveis hierárquicos não estatutários mais altos da empresa;
2. cargo em comissão ou função de confiança equivalente a DAS-4 ou superior, no setor público;
3. cargo de docente ou de pesquisador em áreas de atuação da empresa pública ou da sociedade de economia
mista;
c) 4 (quatro) anos de experiência como profissional liberal em atividade direta ou indiretamente vinculada à
área de atuação da empresa pública ou sociedade de economia mista;
II - ter formação acadêmica compatível com o cargo para o qual foi indicado; e
III - não se enquadrar nas hipóteses de inelegibilidade previstas nas alíneas do inciso I do caput do art. 1o da
Lei Complementar n. 64, de 18 de maio de 1990, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar n.
135, de 4 de junho de 2010.
[...]
§ 2o É vedada a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria:
I - de representante do órgão regulador ao qual a empresa pública ou a sociedade de economia mista está
sujeita, de Ministro de Estado, de Secretário de Estado, de Secretário Municipal, de titular de cargo, sem
vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na
administração pública, de dirigente estatutário de partido político e de titular de mandato no Poder Legislativo
de qualquer ente da federação, ainda que licenciados do cargo;
II - de pessoa que atuou, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de
partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;
III - de pessoa que exerça cargo em organização sindical;
IV - de pessoa que tenha firmado contrato ou parceria, como fornecedor ou comprador, demandante ou
ofertante, de bens ou serviços de qualquer natureza, com a pessoa político-administrativa controladora da
empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa ou sociedade em período
inferior a 3 (três) anos antes da data de nomeação;
V - de pessoa que tenha ou possa ter qualquer forma de conflito de interesse com a pessoa político-
administrativa controladora da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa
ou sociedade.” (BRASIL, 2016a).
166

economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios.
Trata-se de norma jurídica que, ao exigir atributos pessoais específicos para o
exercício das atividades públicas, revela a obediência ao princípio do planejamento
administrativo no acesso a cargos públicos. É o que se pode intitular de livre nomeação
planejada.
A atenção à governança e ao planejamento administrativo, assim, permite a utilização
produtiva dessa forma especial de acesso a cargos e funções públicas, viabilizando-se,
preventivamente, a redução dos riscos apontados pelo Tribunal de Contas da União, no
acórdão já referido neste capítulo.
Tais riscos consistem na investidura de pessoa que não possui os requisitos e as
competências necessárias; nos gastos improdutivos; no conflito entre interesses públicos e
privados dos nomeados; no nepotismo e nos impedimentos legais; na fuga do objeto de
direção, chefia ou assessoramento; no descumprimento de percentuais mínimos para
servidores de carreira; na perda de conhecimento no órgão público quando há saída de pessoal
decorrente da provisoriedade do vínculo; e na má utilização de bancos de talentos ou outras
fontes institucionais para identificar candidatos com potencial.
As colocações de Matias-Pereira corroboram o dever de governança ao traçar a
essencialidade da liderança na gestão pública, o que toca sensivelmente os cargos em
comissão e as funções de confiança, nas atividades ligadas a chefias e direções.
Afigura-se a liderança como elemento interno vital do organismo administrativo para
impulsionar a prestação de serviço qualificada:

Um quadro efetivo requer a clara identificação e articulação da responsabilidade,


bem como a compreensão real e apreciação das várias relações entre os stakeholders
da organização e aqueles que são responsáveis pela gestão dos recursos e obtenção
dos desejados resultados (outcomes). [...]
[...] a boa governança é muito mais do que pôr as estruturas a funcionar, pugnar pela
obtenção de bons resultados, e não é um fim em si mesmo. As melhores práticas de
governança pública requerem um forte compromisso de todos os participantes, para
serem implementados todos os elementos da governança corporativa. Isso exige uma
boa orientação das pessoas, o que envolve uma comunicação melhor; uma
abordagem sistemática à gestão da organização; uma grande ênfase nos valores da
entidade e conduta ética; gestão do risco; relacionamento com o cidadão e os
clientes e prestação de serviço de qualidade. (MATIAS-PEREIRA, 2010, p. 136).

O acesso a cargos, empregos e funções não é fórmula burocrática de interesse pontual


na engenharia da máquina do Estado. O Poder Público é espelho das pessoas que o compõem,
sendo oportuno afirmar que o enfoque restrito ao princípio da eficiência administrativa é
167

lacunoso quando ignora o longo caminho necessário à realização dos direitos.


Por meio da governança, permite-se o regular e planejado ingresso aos quadros de
pessoal e às atividades de interesse público, condição primeira para o saudável funcionamento
da Administração Pública.
169

8 CONCLUSÃO

A pesquisa dedicou-se à análise do acesso a cargos, empregos e funções públicas à luz


da governança e do planejamento administrativo no Brasil.
A busca dos fundamentos jurídicos responsáveis pela moldura da Administração
Pública nacional ocorre por meio das reflexões interdisciplinares extraídas dos retratos do
Brasil, da crítica intrassistêmica, calcada na dimensão normativa da Constituição de 1988, do
diálogo com a Ciência da Administração e a doutrina jurídica administrativa europeia, bem
como do diagnóstico das atividades estatais, obtido de reiteradas decisões judiciais, de dados
do MPMG, TCU e sites governamentais e legislativos.
Por opção estrutural, são organizados cinco tópicos, pontuando-se as ideias e
conclusões parciais, que, interligadas num todo unitário, apresentam respostas aos
problemas181, confirmando as hipóteses levantadas na presente investigação:
I- Os retratos do Brasil são manifestações artísticas e científicas, notadamente de
cunho sociológico, econômico, antropológico e histórico, que expressam traços e
características de nosso País, elementos do processo de construção nacional, as perspectivas e
ambiguidades da nação, sendo utilizadas nesta pesquisa obras de Raymundo Faoro, Sérgio
Buarque de Holanda, Roberto DaMatta, Victor Nunes Leal e Willi Bolle.
Não existe retrato linear brasileiro, pessimista ou otimista, capaz de nos remeter a
condição final de pátria derrotada ou a merecer o título de país do futuro.
Ambíguo, paradoxal e complexo, o Brasil não encontra fórmulas certeiras capazes de
explicar ou promover os anseios de aperfeiçoamento ou progresso.
Escravidão, sociedade patriarcal, coronelismo, “homem cordial”, “jeitinho”,
estamentos burocráticos, engessamento de classes, vocação autoritária, patrimonialismo,
hiatos democráticos entremeados por golpes e contragolpes deparam-se, em nossa curta
História182, com a defesa da autonomia do indivíduo, a rapidez com que passou a vida rural à
vida urbana, os valores democráticos, a esperança, a criatividade da navegação social e a
inconsistência dos ódios e preconceitos - ao menos em contraste com a nação norte-americana,
paradigma nas ações afirmativas importadas nessa primeira metade do século XXI.

181
Governança e planejamento administrativo são direitos que integram o ordenamento jurídico brasileiro? Em
caso positivo, moldam ou disciplinam o acesso a cargos, empregos e funções públicas?
182
Nem sempre é exato se tomar como ponto inicial a chegada de Pedro Álvares Cabral, em 1500. Até a vinda
da família real portuguesa, em 1808, os traços sociais e a esfera pública confundiam-se com a vida de mero
entreposto do mercantilismo ibérico. A História do Brasil é mais recente, nessa ótica. E isso traz confiança na
caminhada porvir. Os próprios retratos de Brasil têm origem posterior, na expedição artística francesa datada
de 1816.
170

Os retratos do Brasil permitem, apesar do cenário heterogêneo, a filtragem de


circunstâncias deletérias, como o patrimonialismo. Esses fatos danosos devem ser
identificados e trabalhados fora do senso comum, com técnicas interdisciplinares, para a
construção de paradigmas jurídicos capazes de interromper a faoriana “viagem redonda”,
cujos avanços tímidos modernizam mas não desenvolvem, conferem formalmente direitos
sociais mas não realizam projetos de vida melhor.
Tal conjuntura, inalterada, repercute no simbolismo hipertrófico do ordenamento
jurídico nacional, que chega a normatizar expressamente o dever de eficiência mas silencia a
respeito dos antecedentes lógicos, consubstanciados na governança e no planejamento
administrativo.
O Estado brasileiro, como em Grande Sertão: Veredas, padece da governança caseira,
decorrente do acordo entre os donos do poder - proprietários de terra, chefes da jagunçagem e
jagunços são alegorias roseanas do falso contrato social legitimador do poder. Verifica-se o
dissimulado acordo entre chefes, em sistema autoritário que fomenta a manutenção da
desigualdade civil e política, administrando-se a apropriação dos espaços públicos conforme o
interesse da ocasião.
Os conhecimentos produzidos no estudo dos retratos do Brasil mostram sistemas
perniciosos nacionais a serem enfrentados e a importância da leitura administrativa dos
objetivos constitucionais da República, consistente na discussão do papel da Administração
Pública e das formas de atuação estatal adequadas à promoção dos direitos fundamentais e das
finalidades da ordem constitucional.
II- A duradoura crise da razão, permeada pela descrença constitucional, as incertezas
políticas, sociais, econômicas e a chaga do populismo contribuem para ideia de que os
objetivos da República são promessas vazias, exemplos da insinceridade normativa brasileira.
De fato, quando se normatiza o objetivo amplo e complexo de erradicar a pobreza,
previsto no art. 3º, III, da Constituição, a eficácia social desse princípio é irrealizável ou muito
baixa se não houver esforços concentrados em múltiplas áreas, entre elas a administrativa.
Os objetivos da República receberam duplo tratamento nesta pesquisa.
O primeiro, como princípios constitucionais que externalizam deveres jurídicos de
governança e planejamento para a Administração Pública brasileira.
Em outro ângulo, é extraída dos retratos do Brasil a percepção de que fenômenos
políticos e socioeconômicos negativos, manifestados no curso de certo período, tendem a
deturpar ou alterar o próprio funcionamento estatal, cristalizados sob a forma de sistemas e
ciclos nocivos, como no caso do coronelismo, referido por Victor Nunes Leal, dos estamentos
171

burocráticos, alvo da atenção de Raymundo Faoro, e do sistema jagunço, examinado por Willi
Bolle.
O poverty cycle ou ciclo de pobreza, relacionado com o art. 3º, III, da Constituição,
indica o fenômeno que produz e estabiliza o quadro de pobreza comunitária, caracterizando-se
pela retroalimentação do próprio ambiente deficitário, como efeito e causa das ofensas ao piso
vital mínimo. Representam, assim, fatos sociais, econômicos e políticos que auxiliam a
perpetuação de situações de carência. São gestados ou estimulados no ambiente de pobreza e
tendem, por sua vez, a produzir mais pobreza.
A segunda abordagem dos objetivos da República, nesse contexto, mostra que a
identificação e o enfrentamento estratégico dos ciclos de pobreza nacionais são obrigações
constitucionais da Administração Pública.
Um dos ciclos de pobreza a retratar o Brasil fixa-se na estrutura patrimonialista do
Estado, que é causa e consequência simultânea do imperfeito acesso a cargos, empregos e
funções públicas.
O patrimonialismo, em sentido amplo, significa o Estado administrado como bem
pessoal ou familiar e demais aspectos ligados à confusão entre as esferas públicas e privadas,
inclusive o clientelismo, assistencialismo, fisiologismo, filhotismo e mandonismo.
Tais situações germinam no solo fértil da pobreza e corroboram a sua manutenção,
pertencendo a eles a paternidade de entraves sociais, na ciranda de ofensas a direitos
fundamentais no Brasil.
Ao constitucionalismo importa discutir a matéria com atenção aos pontos de partida do
sistema brasileiro e a se pensar o Direito sob prisma nacional.
Desse modo, a oposição ao patrimonialismo une-se à meta do eficiente acesso a cargos,
empregos e funções públicas, em conexão direta com o objetivo da República previsto no art.
3º, III, da Constituição.
III- A dimensão normativa da governança é ponto teórico central desta pesquisa, que
procura traçar os contornos jurídicos do acesso a cargos, empregos e funções públicas no
Direito brasileiro.
Muitas dificuldades envolvem o tema, a começar pelo caráter polissêmico da palavra
governança, que é empregada no contexto do mercado e do Terceiro Setor, ligada à
governança corporativa; como matéria pertinente às relações internacionais, partindo de sua
dimensão política; ora no âmbito público interno, nas dimensões da accountability de técnica
de gestão, de processo complexo de tomada de decisão, de práticas do Estado mínimo, do
New Public Mangement (NPM), da boa governança, da governança como sistema
172

sociocibernético do conjunto de redes organizadas, ou, ainda, como direito fundamental à boa
administração ou boa governança, residindo nesta o interesse maior da dissertação.
Também não há consenso sobre as raízes da governança na esfera pública, se
proveniente do setor privado, fruto da governança corporativa, ou se concebida pelo professor
de Direito Público da Universidade de Toulouse, Maurice Hauriou, na primeira década do
século XX.
Divergências à parte, o relevante é notar que, na sociedade contemporânea, a
permeabilidade entre as esferas pública e privada é intensa. As sociedades hipercomplexas
expõem a incapacidade de aplicação estrita dos parâmetros do Estado Social do século
passado para suprir as demandas comunitárias atuais.
Em sentido coerente com essa evolução de paradigmas, governança pública, boa
administração, boa governança ou governança são consideradas expressões sinônimas,
abraçando-se o entendimento que não distingue, ontologicamente, governo e administração
pública, por considerar que a separação entre atos de governo e atos da Administração, um
político e outro impregnado pela ideia mecanicista de aplicação da lei, é incompatível com o
pós-positivismo e a complexidade das atuais relações em sociedade.
Nada obstante, governança não se confunde com Administração Pública, burocrática
ou gerencial, que indica a estrutura administrativa do Estado. Embora complementar, o
sentido de governança é diferente, pois exprime o feixe de princípios jurídicos que
conformam e disciplinam a Administração Pública e o agir estatal. Tem ângulo instrumental
forte, a influenciar o planejamento do Poder Público, e é dotado de peso axiológico ligado aos
princípios fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito.
Seu conceito, portanto, não é filosófico, político ou restrito à Ciência de
Administração, como se a existência na área do Direito fosse perspectiva futura a ser
normatizada ou mera faculdade jurídica (poder de produzir determinado resultado jurídico).
Em verdade, a governança concretiza-se como princípio jurídico e acarreta o nascimento de
deveres e direitos.
Vislumbra-se que a aridez do debate na academia brasileira sobre o tema tem
incentivo no tratamento pulverizado das normas jurídicas nessa seara, em que o art. 37, caput,
funciona como exemplo. Contrariamente à opção metodológica europeia, que a partir da
normatização expressa do direito fundamental à boa administração, na Carta de Nice,
ingressou no exame de seus princípios decorrentes, no Brasil foi verificado efeito inverso na
Constituição de 1988. Foram esmiuçados princípios administrativos constitucionais de
variados matizes e, com isso, arrefeceu-se a análise sistêmica do alicerce teórico da
173

Administração Pública democrática.


A conclusão da existência da dimensão normativa da governança no direito brasileiro,
bem como de sua fundamentalidade, apesar disso, decorre de ângulos diversos pesquisados:
a) o art. 5º, § 2º, da Constituição disciplina que os direitos e garantias positivados não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados. A ponderação
de que onde tudo é direito nada é direito é conselho importante para a autocontenção
pós-positivista. Nesse sentido, quando se inclui o direito à governança e seu caráter
fundamental no ordenamento jurídico não se está a repetir antigos erros. A governança
se presta a maximizar os próprios direitos fundamentais voltados à Administração
Pública já expressos no ordenamento, promovendo (não apenas recomendando) a
criação, modificação e extinção de condutas ou comportamentos;
b) o exame das funções administrativas do Estado evidencia lacunas teóricas no Direito
Administrativo. Sem maiores controvérsias, as funções administrativas são
decompostas atualmente em: 1) poder de polícia; 2) poder de editar regras, produzir
decisões e promover a execução da lei; 3) serviço público (a função prestacional); 4)
controle e 5) fomento estatal e regulação. Esse hiato, que silencia sobre a governança e
a função planejadora estatal, decorre do tímido intercâmbio com Ciência da
Administração, calcado na falsa percepção positivista de que não pertenceria ao
Direito o debate sobre as condições de sua eficácia social.
A incompletude das funções administrativas do Estado é reforço lógico à afirmação do
direito à governança: busca-se o Estado obediente ao princípio eficiência e,
paradoxalmente, deixa-se vazio o espaço teórico referente aos pressupostos
normativos para seu atingimento;
c) em linha harmoniosa, incrementa-se a defesa desse direito também por meio da
superação do entendimento que atribuía à escola do método jurídico de Otto Mayer o
tratamento fechado do Direito Administrativo, em repulsa ao método exegético, que
homenageava a visão compartilhada da ciência jurídica.
A concepção positivista de que os pressupostos da eficácia social do Direito
Administrativo são assuntos extrajurídicos inerentes à Ciência da Administração
representa dificuldade para o desenvolvimento teórico da governança e do
planejamento administrativo;
d) nesse sentido, o diálogo das fontes, exteriorizado pela interlocução do Direito
Administrativo com os demais ramos do ordenamento jurídico, fortalece o status
jurídico da governança.
174

Não há razoável efetividade de orçamento, diretrizes orçamentárias, plano plurianual,


responsabilidade fiscal, planejamento tributário, governança ambiental, planejamento
urbanístico/regional e de muitas outras espécies de normas planejadoras excluindo-se
do Direito Administrativo os deveres de governança e de planejamento;
e) o poder discricionário e a atuação vinculada ou regrada da Administração Pública, por
outro lado, também são fatores que descortinam a dimensão normativa da governança.
O incremento teórico na seara dos atos vinculados, cujo mecanicismo não mais é
aceito, expõe que a meta da eficiência depende de instrumentalização prévia adequada,
não derivando automaticamente desse princípio constitucional, tampouco do
cumprimento mecânico da regra jurídica.
E o poder discricionário, mesmo na sua visão clássica, já explicitava o dever do agir
estatal planejado, obediente aos alicerces da governança. Por mais ampla ou reduzida
que seja a discricionariedade (ou os graus de vinculação) na tomada do ato correto
pelo agente público, a plasticidade da atuação administrativa reclama a dimensão
estruturante da boa governança;
f) a permeabilidade aos princípios da governança corporativa, ademais, é fenômeno a
cunhar a dimensão normativa da governança na esfera estatal. O dever jurídico da
governança pública compatibiliza-se com a pluralidade de atores sociais, stakeholders
e as demandas naturais da rede de ação estatal, que necessita de sofisticação capaz de
coordenar atividades destinadas à satisfazer os objetivos legais e constitucionais;
g) a dimensão planejadora é prevista no art. 3º da Constituição, por meio da normatização
dos objetivos da República, que determinam a prioritária atuação organizada do
Estado para os fins neles estabelecidos, em especial a atuação organizada contra os
denominados ciclos de pobreza, entre os quais figura o patrimonialismo nacional;
h) é modelar, ainda, que autoridades do Governo, ligadas ao Ministério do Planejamento,
Desenvolvimento e Gestão, representantes do Brasil em organismo internacional
(CLAD), firmaram acordos multilaterais e cartas de compromisso internacionais em
que se verifica o reconhecimento ao direito fundamental à boa administração. A
adesão a esse princípio jurídico em foro internacional, embora sem força de tratado,
reforça o conteúdo normativo da governança, como obrigação reconhecida pelo
princípio da boa-fé das relações internacionais.
Todos esses ângulos, conectados, formam a dimensão normativa do direito
fundamental à governança, que se caracteriza como princípio jurídico.
Objetivamente, indica os deveres jurídicos da Administração Pública. Subjetivamente,
175

traz a dimensão dos direitos subjetivos públicos ou coletivos e os deveres dos cidadãos frente
ao Poder Público.
Existe abertura à governança, por exemplo, quando o Estado opera nos contratos de
parceria impulsionando a Administração Pública policêntrica, nas convenções de
performance, nos planos estratégicos e nas avaliações de resultado qualificadas pela
legitimidade social da ação pública.
O dever de o Estado implementar controles de resultado qualificados tem lastro no
conteúdo eclético da boa administração. O direito cidadão de cobrar metas de atuação decorre,
em sentido harmonioso, do direito ao planejamento, cuja matriz teórica, como se anuncia, é a
governança.
Sua essência normativa, desse modo, impulsiona a eficácia social das normas jurídicas
administrativas e dos direitos fundamentais, o que confere à governança o significado de
plexo de princípios jurídicos realizadores da administração pública democrática, humanista,
planejadora e eficaz, responsável pela integração da esfera pública na complexa realidade
social contemporânea.
IV- A pesquisa também confirma a hipótese referente ao conteúdo normativo do
planejamento administrativo, cuja matriz teórica é o direito à governança ou à boa
administração.
De forma similar, os fundamentos do caráter normativo da governança, boa
administração ou boa governança transportam-se para o planejamento administrativo,
ratificando a hermenêutica gadameriana de que cada coisa particular só pode ser
compreendida a partir do geral e vice-versa, em expressão do círculo interpretativo ou círculo
hermenêutico.
No contexto desenvolvido nesta dissertação, não se há falar em impessoalidade,
transparência, planejamento administrativo ou eficiência sem a compreensão do alicerce
representado no direito fundamental à governança, que reúne o feixe de direitos imbricados
nas concepções de Administração Pública burocrática e gerencial, conforme a visão híbrida da
Constituição de 1988.
Num de seus ângulos, portanto, o planejamento administrativo é norma jurídica, sem
olvidar que, tal como a governança, possui outros significados, como o de técnica gerencial,
método da governança corporativa e função administrativa, no âmbito da Ciência da
Administração.
A especial importância do direito ao planejamento, identificado pela doutrina europeia
como diretriz próxima ao denominado princípio da eficácia, exterioriza-se no seu liame com a
176

organização da máquina pública, a execução das atividades e a destinação dos finitos


recursos, funcionando como antecedente lógico direto do princípio da eficiência
administrativa, outro fator a confirmar a raiz normativa ora defendida.
O diálogo entre os ramos do Direito e a legislação infraconstitucional brasileira
consolidam o direito ao planejamento em grande número de diplomas, cabendo menção
especial à Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, Lei dos Orçamentos; à Lei Complementar nº
101, de 4 de maio de 2000, Lei de Responsabilidade Fiscal, e ao Decreto Lei nº 200, de 25 de
fevereiro de 1967, que, ao tratar da organização da Administração Pública federal, trouxe
menção a determinadas espécies de planejamento, que foram recepcionadas pela Constituição
de 1988.
Planejamento estratégico, tático e operacional são conceitos da Ciência da
Administração, utilizados na governança corporativa. Incidem na esfera pública, obedecida a
dinâmica traçada no ordenamento, isto é, considerados os limites da vertente teleológica do
Estado social que permeia, conjuntamente com paradigmas gerenciais, a normatização
constitucional brasileira.
O significado de planejamento administrativo não se limita ao dever jurídico estatal de
realizar programas amplos e diferidos no tempo, o que se aproxima da concepção do
planejamento estratégico, com conteúdo genérico e amplo.
Trata, igualmente, do modo como se dá a divisão das atividades estatais, a
desconcentração, descentralização, terceirização, repartição de competências, estruturação
orgânica e funcional (ligados ao planejamento tático, com conteúdo menos genérico e
relativamente detalhado) e a própria atividade administrativa ordinária, como filtro
antecedente de atos e negócios jurídicos administrativos (planejamento operacional, de
conteúdo detalhado).
Nesse sentido, as ações, atividades e projetos administrativos relativos à concretização
dos atos vinculados, dos atos decorrentes do poder discricionário e das relações jurídicas da
Administração são tocadas pelos deveres de planejamento.
Embora decorrente do direito fundamental à governança, o planejamento não se
caracteriza pelo objeto reduzido. Tem conteúdo procedimental e também matiz axiológico
condicionado, como já referido, aos objetivos da República e ao modelo eclético adotado pela
Constituição de 1988, mais compatível com as demandas do século XXI.
O planejamento administrativo pode ser definido como norma jurídica constitucional
não expressa, mas reconhecida, que decorre do feixe principiológico do direito fundamental à
governança, impondo a atuação planejadora geral, intermediária e detalhada do Estado.
177

V- Ultrapassados os tópicos sobre os direitos à governança e ao planejamento


administrativo, o derradeiro problema da pesquisa situa-se no questionamento da repercussão
dessas normas jurídicas no acesso a cargos, empregos e funções públicas no Brasil.
Antes, importa reiterar que as formas de ingresso no quadro de pessoal do Estado
apresentam no concurso público de provas ou de provas e títulos a regra, figurando como
exceções o regime especial da contratação temporária e os cargos em comissão.
Residualmente, ainda existem os casos de estabilização, previstos no art. 19 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias; as nomeações aos Tribunais estaduais, federais,
tribunais superiores e Tribunal de Contas, e os cargos eletivos, que, por força das suas
peculiaridades, não recebem o enfoque direto desta pesquisa.
As funções públicas, lado outro, estão desobrigadas ao concurso, conforme o art. 37,
II, da Constituição. Nessa linha, agentes honoríficos, agentes credenciados, agentes delegados,
exercentes de funções de confiança e gratificadas não se submetem ao procedimento
concursal.
Por sua vez, a terceirização na Administração Pública e as parcerias do Estado com o
Terceiro Setor são referidas porque integram, indiretamente, o panorama caótico do acesso à
máquina estatal e da coparticipação nas atividades públicas.
Governança e planejamento administrativo, conforme exteriorizado, não são questões
inéditas nos estudos de Direito Administrativo. Para os países integrantes da União Europeia,
a governança ou boa administração tem força de norma fundamental expressa, disciplinada no
art. 41 da Carta dos Direitos Fundamentais - Carta de Nice. Similar normatização ocorreu na
Carta Iberoamericana de los Derechos y Deberes del Ciudadano en Relación con la
Administración Pública, que reconhece a governança ou boa administração e engloba o
direito ao planejamento administrativo no âmbito do princípio da eficácia. O Governo
brasileiro aderiu a esse documento multilateral, em 2013.
Não bastasse a vinculação à Carta Iberoamericana pelo Brasil, as particularidades
nacionais expõem, mais do que a relevância desse tema mundial, o caráter prioritário da
matéria no plano interno, que é ligada ao incremento das condições de eficácia da função
administrativa estatal e dos objetivos da República.
O enfrentamento da governança caseira e patrimonialista do Brasil, em mascarado
acordo de chefes à margem da esfera pública e dos interesses comunitários básicos, inclui a
discussão do acesso a cargos, empregos e funções públicas.
Para a desvitalização do poverty cycle patrimonialista, a higidez no processo de
formação do quadro de pessoal, das parcerias e contratos estatais desponta como dever
178

jurídico resultante do art. 3º, III, da Constituição.


Com o sistema de ingresso mais distante das amarras do patrimonialismo, cria-se a
oportunidade da realização das atividades públicas com autonomia, submetida apenas à ordem
jurídica. Ademais, a melhor formação desses quadros permite o natural aperfeiçoamento das
prestações dos serviços essenciais.
Nesse amplo contexto, a governança e o consequente planejamento emergem como
instrumentos jurídicos tendentes a reorientar as funções administrativas do Estado e
operacionalizar os direitos fundamentais, exercendo, ordinariamente, o papel de requisitos
gerais de validade da ação estatal no acesso a cargos, empregos e funções públicas.
A possibilidade do tratamento homogêneo desses direitos, como requisitos gerais de
validade das formas de acesso, contudo, não afasta determinadas diferenças entre governança
e planejamento administrativo que justificam realce.
O direito à governança tem abrangência maior, caracterizando-se como princípio
fundamental que condensa acervo ou feixe principiológico. Trata-se de norma jurídica que
impõe deveres e institui direitos, mas as eventuais ofensas terminam por repercutir nos
vetores que a compõem, o que é característica típica dos super princípios. De se notar,
inclusive, que o planejamento administrativo, por vezes, é designado como a dimensão
planejadora da governança.
Na linha dos fundamentos desta pesquisa, o planejamento, não obstante seja
reconhecido como princípio jurídico183, possuidor de dimensão de peso e apelo a valores
políticos e sociais, tem objeto menor. Decorre do direito fundamental à governança, impondo
a atuação planejadora geral, intermediária e detalhada do Estado.
Ofensas ao planejamento são comumente diretas, por força do seu objeto menor.
Lesões à governança são usualmente reflexas, em virtude da essência multiangular desse
direito fundamental.
Os requisitos gerais de validade do sistema de acesso evidenciam que o concurso
público, a contratação temporária, os cargos em comissão, as funções de confiança, os
contratos de gestão, as parcerias da administração e as terceirizações não estão
exclusivamente vinculadas às regras especiais e internas traduzidas nos requisitos específicos
ou intrínsecos de validade, inerentes ao conteúdo dos institutos.
Concurso público e as formas assinaladas de acesso, nessa linha, devem obediência a

183
Como visto no capítulo 6, o planejamento administrativo pode, excepcionalmente, apresentar-se como regra
jurídica. A obrigação constitucional de estabelecer o plano plurianual ou as diretrizes orçamentárias é
exemplo.
179

princípios jurídicos que conformam a própria Administração Pública brasileira.


Não são apenas a regularidade do edital do concurso público, a íntegra descrição legal
de abstratas atribuições chefia, a excepcionalidade da contratação temporária ou o processo
licitatório regular que efetivou a contratação de empresa prestadora de serviços que esgotam a
aferição da validade dos atos normativos infraconstitucionais ou da atividade pública
desenvolvida.
A higidez do acesso a cargos, empregos e funções públicas em sentido amplo, sob a
ótica da governança e do planejamento administrativo, portanto, está além dos requisitos
específicos ou intrínsecos de validade, tocando a atividade estatal relacionada aos
diagnósticos da estrutura do sistema de trabalho; a pesquisa interna das necessidades
funcionais dos órgãos públicos; as averiguações sobre o número ideal de chefias ou cargos de
direção e assessoramento destinados a otimizar a atividade pública; a identificação de
lideranças; o modelo concursal capacitado a identificar o perfil do candidato mais adequado
para o cargo a ser provido; as características e competências que os novos servidores deverão
possuir e oferecer; a eficácia do estágio probatório e os métodos de apuração, dimensionados
no tempo, do percentual de servidores necessários às demandas da máquina pública, a médio
e longo prazos; a coordenação das atividades terceirizadas ou sob a responsabilidade de OTS;
bem como os demais aspectos relacionados a recursos humanos, organização e gerenciamento
da máquina pública.
Em linha coincidente com o raciocínio, as contratações temporárias compatíveis com a
ordem constitucional brasileira não se esgotam no respeito à determinabilidade temporal, à
temporariedade e à excepcionalidade das hipóteses previstas em lei.
A exigência planejadora dos procedimentos seletivos simplificados para contratações
temporárias, além de satisfazer o agir impessoal, exemplifica a ordem de requisitos gerais que
obrigam a Administração Pública a melhor organizar esse regime especial, estimulando o
suprimento humano mais qualificado e a ação transparente do Estado, com rápida
possibilidade de contratação facilitada pelo banco/cadastro de candidatos previamente
conhecido.
Cargos em comissão ou funções de confiança, igualmente, não são constitucionais
apenas por trazerem em lei, com precisão técnica e clareza (algo difícil na observação do
cotidiano administrativo), a descrição das atribuições ou funções de chefia e direção. O exame
dos requisitos de validade específicos não é suficiente. A quantidade imprópria de chefes ou
diretores numa entidade ou repartição pública, mesmo com previsão legal, sugere ofensa à
governança, no âmbito do planejamento, independentemente da comprovação de desvio de
180

finalidade do gestor responsável pelas nomeações.


Raciocínio parecido se dá com a ideia de livre nomeação, cujo poder discricionário a
ela inerente expõe-se eventualmente ao controle judicial, mesmo sem lei planejadora fixando
condições básicas para o exercício do cargo ou função. Havendo elementos de convicção a
indicarem induvidosa falta de aptidão ao exercício da liderança em chefia/direção ou
inadequação pessoal diante da gama de funções ou atribuições abstratamente previstas tem-se
por violado o princípio do planejamento administrativo.
Terceirizações e parcerias com o Terceiro Setor, da mesma forma, submetem-se aos
direitos examinados, valendo frisar que o caminho provável de ampliação das hipóteses de
terceirização na esfera pública cobrará alto custo na hipótese de atenção limitada aos
requisitos específicos da validade administrativa.
Os contratos de terceirização, examinados exclusivamente na dimensão formal de
negócios jurídicos submetidos a processos licitatórios, e os ajustes com organizações sociais,
realizados sem o respeito aos requisitos gerais da governança e do planejamento, aprofundam
a crise de gestão brasileira, porquanto descolados dos alicerces necessários ao funcionamento
coordenado da Administração policêntrica, compatível com as demandas sociais da primeira
metade do século XXI.
A governança, sob o ângulo do direito ao planejamento, contribui por minorar o
caótico panorama de acesso direto ou reflexo à máquina pública, debilitando o ciclo de
pobreza patrimonialista.
As conclusões estabelecidas neste capítulo final confirmam as hipóteses pesquisadas,
denotando o relevo do elemento humano, ponto de partida para a excelência das organizações
complexas, a desvelar o caráter primordial do acesso a cargos, empregos e funções públicas
obediente à governança e ao planejamento administrativo.
A realidade do mundo contemporâneo pós-industrial, de crescente escassez de
recursos e reinvindicações sociais dinâmicas, faz com que o exitoso cumprimento das
atividades públicas dependa das habilidades e competências dos agentes do Estado,
coordenados com os demais atores sociais.
O direito fundamental à governança e o direito ao planejamento administrativo
estimulam a ressignificação das tarefas estatais, enfrentando os hiatos das funções
administrativas, a cultura patrimonialista e o simbolismo normativo estéril, que são
legitimamente questionados por efeito dos anseios de realização dos projetos de vida em
sociedade.
181

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