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2ª Edição

Capa: ThiAM

Copyright © Pedro Augusto C. R. Garcia

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A violação de direitos autorais é crime, estabelecido pela lei nº
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do código penal.
Sumário
1.A chegada ..................................................................... 4
2. Oportuna missão ....................................................... 18
3. Primeiras confusões ................................................... 38
4. Primeiro dia ............................................................... 56
5. A primeira conquista .................................................. 83
6. Surpresas e provocações .......................................... 103
7. Confrontos inesperados ........................................... 129
8. Perigos iminentes..................................................... 163
9. Acontecimentos... Estranhos .................................... 195
10. Do amor ao ódio .................................................... 211
11. Rotina árdua .......................................................... 223
12. Importante dia ....................................................... 251
13. Uma grande tempestade ....................................... 266
14. Na toca dos lobos ................................................... 288
15. Retorno conturbado ............................................... 316
16. Prelúdio da batalha................................................ 327
17. Batalha final – Revelações indeléveis ..................... 360
Breve Aviso

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possibilidade de você ser um amigo legal e dar-lhe esse
presentão.
1. A chegada

A floresta era repleta de árvores e flores de diversas cores que


se estendiam pelo longo território. Havia numerosas clareiras,
sendo três delas formadoras de um triângulo equilátero, duas na
divisa com a academia, uma na ponta esquerda e outra na direita,
e, a última, pouco antes do centro, descansava uma rasa lagoa.
Caminhando a passos rápidos por entre as arvores encontrava-
se um grupo, o qual era composto por um jovem e duas crianças,
um menino e uma menina, onde apenas o jovem carregava um
pequeno saco contendo seus pertences.
O mais velho possuía cabelos negros, curtos e lisos, com
aparência de serem cortados com desleixo, olhos castanhos,
assemelhando-se à coloração de sua pele, acostumada a estadias
extensas perante o sol.
As expressões de sua face, denotavam sentimentos dúbios
quanto ao grau de sua permissividade, sendo acentuadas por seu
físico, que, apesar de não possuir uma musculatura muito
acentuada, lhe concedia ar nada amistoso.
Os pequenos, por sua vez, se diferenciavam por sua pele alva e
suas alturas de meramente um metro. Ínfimas, se comparadas aos
oitenta centímetros adicionais do companheiro.
O garoto possuía olhos mais escuros do que o jovem e cabelo
mais fosco, enquanto a menina, portava olhos mais claros e cabelo
mais brilhante.
Havia pequenas alterações entre os trajes que usavam, sendo,
basicamente, uma camiseta branca, uma bermuda marrom escura
e uma bota de couro muito velha.
— Por que temos que ir para lá? — perguntou o menino.
— Eu já disse. Temos que ir para continuar nossa preparação —
respondeu o jovem.

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— Mas estaríamos bem melhores se continuássemos sozinhos
—retrucou.
— Porque você se recusa a conviver com outros humanos,
irmão? — perguntou a garota.
— Não recuso apenas humanos — retrucou, esboçando um leve
sorriso maléfico.
Se incomodando com a mesma discussão que ouvia,
incessantemente, há dias, resolveu intervir, afinal não poderiam
continuar se portando como crianças para sempre.
— Calados vocês dois — ordenou — Eu já falei que essa
instituição é especialista nesse assunto, portanto precisamos ir
para lá independentemente do que vocês quiserem.
— É isso ou você está excitado em ficar perto de dezenas de
mulheres? — Questionou o irmão em tom provocativo.
— E se estiver, qual o problema? — não conseguiu esconder sua
face.
— Homens. Sempre tão imaturos — suspirou.
— Falem menos e apertem o passo para não chegarmos tarde
demais — repreendeu o jovem, aumentando a velocidade de sua
caminhada.
Do alto de uma encosta os viajantes pararam para apreciar a
vista de seu objetivo, enquanto recobravam as forças e pensavam
no futuro que os aguardava. Seria tão conturbado quanto seus
passados?
— Marcus, Amira. Finalmente chegamos à Academia Laetus —
exclamou o líder.
— Já não era hora — suspirou levemente o irmão.
— Ahh... Ela é muito grande e linda — suspirou admirada,
Amira.
Por um instante permaneceram quietos, contemplando a
magnífica vista do alvorecer, como soldados que finalmente
vislumbram o refúgio de seus lares. Com uma única olhadela
Petrus examinou apuradamente o local.

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Ao pé do barranco, na extrema esquerda, o adorado cantinho
das flores da diretora resplandecia, abrangendo toda a extensão do
barranco lateral, findando no início dos muros da pequena cidade
erguida para suprir as necessidades das alunas.
Levemente acima estava o pátio que divisava com a cidade à
esquerda e a entrada oeste da instituição à direita, possuindo dois
longos bancos por toda a extensão de suas paredes externas. Todos
os andares possuíam a mesma dimensão, com exceção do
primeiro, onde a área interna fora substituída pelo pátio, e o
telhado, que possuía acréscimo horizontal de piso por toda sua
largura, visando cobrir parco espaço da entrada sul.
Por fim enxergava a estrada principal à sua direita, localizada
entre o barranco e a floresta, iniciado na mesma linha em que
ambos encerravam. Seguindo reto pela estrada, topava-se com o
portão de entrada sul.
O jovem, após breve admiração, murmurou, “Espero que dessa
vez consigamos”, alertando os irmãos de que precisavam impedi-
lo de se perder em seus pensamentos.
— Creio que você esteja pensando em outras belezas —
provocou Marcus, mantendo leve sorriso nos lábios.
— Não ponha palavras em minha boca — defendeu-se, fingindo
ignorância.
— Negará que não pensou nem um pouquinho nisso? —
cutucou a menina, não acreditando em sua encenação.
— Bem... Talvez um pouquinho só — admitiu, desmanchando
completamente sua face de seriedade corando levemente.
Olhou para o lado e percebeu o semblante irônico dos irmãos,
surpreendendo-o sobremaneira e o irritando levemente por ter
sido pego tão facilmente.
— Já chega de conversa, vamos em frente para falar com a
diretora — explodiu.
— Petrus, como podemos continuar em frente se há uma
ribanceira diante de nós? — gritaram os irmãos em uníssono.

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— O que estão querendo dizer? — perguntou coçando a cabeça.
Ambos o fitaram com enorme espanto por ser tão
despreocupado ou por possuir um instinto demasiadamente
suicida. Trocaram olhares e se puseram a contestar, mesmo
sabendo que não obteriam resultados.
— Não está vendo esse barranco bem na nossa frente, seu
idiota? — praguejou o garoto.
— Nós chegamos quase pela lateral da escola. Eu avisei que
deveríamos nos manter na estrada — lembrou a irmã.
— Vocês realmente acham que irei dar essa volta enorme só
para chegar ao mesmo lugar? — apontava em direção à estrada
que desembocava no portão sul da escola.
— Pule até lá! — ponderou simplesmente o garoto.
— A ideia é não chamar a atenção — explicou Petrus.
— Então você está planejando descer esse barranco? —
perguntou a irmã sem acreditar.
Observando como estava decidido, os pequenos mudaram suas
posturas, voltando a agir normalmente, visto que nada mais
obteriam com a conversa, por mais que insistissem.
— Não que me importe, mas você tem um plano? — questionou
o irmão impaciente.
— Não estou me importando nem um pouco com essa questão
— respondeu cruzando os braços e jogando a cabeça para o lado.
— Além do mais, estamos bem além do horário que informei para
minha tia.
— Hum, então você quer cortar caminho para não levar bronca
dela. — Concluiu a irmã, caricaturando uma expressão séria
misturada com um sorriso sarcástico.
Seu olhar se dirigiu automaticamente para Amira, admirado
com o fato de ter deduzido mais um de seus intentos tão
facilmente. “Ela se tornou muito esperta. Maldita.”, pensou, porém,
refez sua expressão e indicou, mais uma vez, para descerem.
— Vamos.

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— Fazer o que? — suspiraram.
O trio iniciou a descida calmamente e cuidadosamente para não
perderem o atrito com o solo e nem tropeçarem nas pedras.
Rapidamente avançaram pelo primeiro quarto do trajeto, o qual
era parcialmente coberto por uma grama rasteira e poucos
pedregulhos.
À frente se deparam com um trecho desprovido de qualquer
gramínea, redobrando a cautela, pois, nessas condições, o terreno se
tornava muito mais escorregadio. Para piorar constataram que
estava coberta por pedras de diferentes formatos e tamanhos.
Quando atingiram o terceiro quarto, se depararam com imenso
obstáculo que os forçou a se deterem para que refletissem em
como transpô-lo. Se tratava de uma longa faixa coberta por pedras
de tamanho razoável em cada milímetro, abrangendo um espaço
considerável para impedir que uma pessoa normal saltasse.
— Complicou a vida agora — constatou Petrus com um leve
sorriso.
— Isso parece uma espécie de barreira para aqueles que tentam
atravessar pelo lado errado — refletiu Marcus com um semblante
que simulava seriedade.
— Quem foi mesmo o incompetente que quis descer a ladeira só
porque era mais rápido? — questionou a irmã com uma face
extremamente irônica.
Tais palavras fizeram ambos a observarem, tornando a se
entreolhar, como se planejassem algo. Fazendo um gesto de
afirmação com a cabeça, a fitaram novamente e, ao mesmo tempo
Petrus simulou tristeza, o irmão fingiu surpresa.
Observando que demonstravam reações que há muito haviam
combinado, pode revisar seu último comentário, percebendo que
havia exagerado levemente, tornado a situação séria por demais,
ficando chateada consigo mesma por ter cometido tal erro.
Verificando que havia terminado como pretendiam, cuidaram para
que tal momento fosse esquecido.

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— Não seja mal-humorada, isso é só um obstáculo de nada para
incríveis e poderosos combatentes — respondeu o irmão.
— É verdade. Isso não é nada para nós — completou o garoto.
— Certo. Mostrem-me suas grandes habilidades, poderosos
combatentes — ironizou.
— Que aura ruim. Você deveria aprender a sorrir mais, irmã —
afirmou o menino com um semblante de seriedade.
Instantaneamente começaram a rir de Marcus, pois ele era
sempre muito irônico e moderadamente obscuro, sendo assim
raramente esboçava um sorriso normais.
— Por que estão rindo? — percebeu a gozação.
— Vamos parar com a brincadeira e pensar em um meio de
passar por esta armadilha. — Colocou a irmã enquanto apontava
para a longa linha de pedregulhos no chão.
— Deixem isso comigo. Já pensei no que fazer — indicou Petrus.
— Aproximem-se de mim que eu irei pegá-los e saltar por essas
pedras irritantes.
Após trocarem olhares, consentindo com a ideia, executaram
dois passos, se aproximando do irmão que, abrindo os braços e se
agachando, os agarrou com firmeza.
— Tome cuidado comigo. Sou uma dama — pediu antes do
braço forte envolvê-la.
— Pó deixar! — respondeu simplesmente.
Ao apanhá-los, se levantou, levou seu pé direito levemente para
trás e começou a contar em ordem crescente, até três, para que os
irmãos realizassem pequeno impulso, a fim de livrarem-se
temporariamente de seus pesos, facilitando deveras.
Com um salto simples, porém eficiente, o intento inicial fora
alcançado, levando o trio ao outro lado da lagoa de pedras,
aterrissando levemente afastado em relação à borda.
Ao verificar que havia conseguido, abriu seus braços,
libertando-os, vendo-os se afastaram dois passos para o lado
involuntariamente. Após recuperar seu fôlego com um longo

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suspiro, procurou o olhar de ambos para que pudesse cantar sua
vitória.
— Eu não falei que seria fácil? — disse orgulhoso ao estufar o
peito.
Contudo, ao executar o passo seguinte com seu pé direito e a sola
de sua bota se encontrar com o solo, por este estar ligeiramente
molhado e, principalmente, por sua falta de atenção, a marcha mal
executada resultou em leve escorregão para frente.
Instantes antes, havia percebido o prenúncio do desastre,
empreendendo em sua face, de orgulho pela vitória, o
desmanchasse em um borrão de preocupação e desespero,
liberando assim uma interjeição de raiva.
Percebendo seu abrupto movimento, os irmãos anteviram a
situação que sucederia, vendo-se incapazes de deixarem de
imprimir leve expressão de decepção, antes de começarem,
definitivamente, a desfrutar de tal imprudência.
Felizmente, antes que terminasse de escorregar, conseguiu
mover agilmente seu pé esquerdo para frente, evitando uma
queda, porém isso, em uma superfície inclinada, o impediu de
cessar seus movimentos, instaurando ritmo de acelerada corrida
em poucos segundos.
— Lá foi ele! — disse simplesmente o menino, transparecendo
naturalidade, assim se imaginando que o incidente seria
costumeiro.
— Vamos atrás dele antes que nos cause problemas — indicou
com uma feição mista de zanga e diversão.
Apesar de o espaço restante ser relativamente curto, sua corrida
alcançou níveis impressionantes, inclusive por as pedras que tanto
foram presentes durante o trajeto haverem desaparecido
completamente.

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Coincidentemente, ou não, no momento em que se achava
correndo loucamente pela ladeira, nos pisos abaixo, se encontrava
a passear uma mulher que aparentava estar patrulhando o
movimento nulo dos arredores.
— Por aqui também está seguro — informava a si própria com
ar de seriedade.
A mulher se tratava de uma membro da guarda de segurança
acadêmica, mais especificamente, sua chefe. Estava ali para vigiar
os arredores da academia, enquanto não era iniciado seu
cronograma de atividades.
Pele branca e lisa, cabelo castanho escuro, médio e liso, olhos
azuis escuros e altura de um metro e oitenta. Seus membros
maiores evidenciavam a força que guardava dentro de si, sem
sequer arranhar sua feminilidade.
Trajava o uniforme que, perspicazmente, adivinhou ser o
padrão que as estudantes utilizavam. Camiseta branca e saia verde
escuro, ambas curtas, e uma sapatilha preta.
— Nada de anormal acontecendo... Como sempre... Acho que as
meninas tinham razão ao dizer para não me preocupar — curvava
a cabeça ao se recordar da discussão que travara.
Há alguns dias fora realizado um conselho da guarda para se
discutir sobre o cronograma a ser montado para o início das aulas.
Como era imaginado, a capitã expôs sobre a necessidade de se
realizarem patrulhas ao entorno da instituição.
Somente três alunas estavam presentes, pois eram as únicas
membros da guarda. A primeira era Belatriz, a imponente líder,
acompanhada de suas fiéis e únicas amigas, Rafaela Rynseht, e Tycia
Bryn.
Rafaela possuía pele branca, cabelo ruivo, médio e liso, olhos azuis
claros e altura em torno de um metro e sessenta e cinco centímetros
Tycia tinha sardas a marcar a pele branca, cabelo comprido, liso
e ruivo, olhos verdes, altura de um metro e sessenta e, assim como as
duas companheiras, usava seu uniforme.

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— Acredito que não seria necessário organizar rondas logo no
começo do período letivo, pois é muito cedo para que qualquer fato
ocorra — declarou Rynseht.
— Não podemos relegar o dever a nós confiado.
— Não acredito que as veteranas causarão problemas e as
novatas não terão coragem ou vontade de sair logo nos primeiros
dias — argumentou Bryn.
— Mesmo assim, ainda devemos nos manter preparadas para as
adversidades — bradou.
Após as amigas relutarem razoavelmente, cederam à pressão e
aceitaram participar da vigilância, porém conseguiram convencê-la
a manter apenas a tarefa do dia anterior ao início do ano letivo.
— Fazer a ronda debaixo desse sol é uma tarefa cansativa —
suspirou enquanto parava para enxugar o suor.
Repentinamente ouviu um som, que se tornava cada vez mais
alto, que reconheceu perfeitamente se tratar de um homem
realizando um grito de guerra antes de seu ataque. Produzindo
uma lança em suas mãos e incitando seu corpo a entrar em modo
de defesa, checou as laterais, sem saber exatamente onde se
encontrava seu alvo.
Alguns passos antes do final o caminho se tornava plano,
formando uma pequena rampa que se encontrava a poucos palmos
do chão, porém era o suficiente para que, devido à alta velocidade,
necessitasse pular.
— Cuidado! — tentou gritar ao percebê-la.
Pouco atrás se encontravam os irmãos a caminhar
tranquilamente, conversando sobre a queda que sofreria
presenciaram-no levantar voo, sustando, assim, suas lembranças e
movimento instantaneamente para apreciar a visão.
— Uuóóóó! — murmuraram boquiabertos em consonância.
Ao conferir sua retaguarda era tarde, pois Petrus se encontrava
a poucos segundos do impacto, não lhe restando alternativa
alguma além de se preparar para o impacto.

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Este, por sua vez, não conseguiu alterar a sua trajetória um
centímetro sequer, pois, se assim o fizesse, correria o risco imenso
de tropeçar, tornando a situação deveras pior, então, ao saltar,
apenas cerrou os olhos.
Observando o desengonçado salto, o seguiram com o olhar até
seu impacto com o chão, congelando ao verificarem que havia
pousado sob uma jovem mulher. Ao se recuperarem se apressaram
ao local para auxiliá-los.
— Vixi, essa deve ter doído — exclamou com expressão de quem
sentira a dor em sua própria pele — Mas foi maneiro.
— Deve ter doido muito mais para a garota — ponderou Amira,
demonstrando piedade em seu olhar. — Espero que aquele bruto
não a tenha matado.
Dentro de poucos instantes alcançaram seu destino, iniciando
uma ligeira varredura, a fim de se informarem sobre as nuances da
queda, sendo surpreendidos pela calma do irmão, que nem sequer
se importou com o fato da moça estar sob o seu pesado corpo.
— Olá irmão, gostosa a almofada? — perguntou o menino com
extremo sarcasmo.
— Calma! Estou um pouco atordoado ainda.
— Não é à toa, pois você estava em grande velocidade —
explicou a irmã, não prestando a mínima atenção à brincadeira
entre irmãos. — Por que você não se segurou?
— Esqueci — encarou a face incrédula da irmã com um sorriso
torto.
Ao se livrar do atordoamento se levantou vagarosamente,
parando ao se ajoelhar de forma a manter a vítima entre as suas
pernas.
— Opa, opa. O que vejo? — sorriu estranhamente. — Seios
médios bons para se apertar.
— Ah não, odeio quando você dá esses sorrisinhos —
preocupou-se a irmã.

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— Não posso perder essa deixa que aquele chato deu —
retrucou enquanto levava suas mãos ao destino desejado.
— Eu concordo com você — apoiou o menino. — Vai fundo cara.
Tais palavras foram sucedidas da conclusão do ato vil,
estampando no seu rosto um enorme sorriso, levando os irmãos a
esboçarem certa surpresa.
— Que canalhice a sua tomar o controle para fazer isso. E que
irresponsabilidade a sua o apoiar — repreendeu, alternando seu
olhar entre ambos.
— Eu só falo isso porque sei que ele irá ser jurado de morte
quando ela acordar. E isso será bom para começar nossas vidas
neste lugar.
Ao ouvir tal argumento, a irmã esboçou largo sorriso,
principalmente ao perceber a vítima começar a abrir os olhos
paulatinamente. Ao sentir o peso do jovem se recordou
imediatamente dos acontecimentos anteriores, arregalando seus
olhos.
Antes que recobrasse os sentidos, recuaram alguns passos, de
modo a concederem maior espaço para o espetáculo que ocorreria,
enquanto Petrus se preparava física e moralmente para conceder
uma desculpa razoável para a situação.
— Não fique assustada, sou apenas uma ilusão — foi o melhor
que conseguiu pensar.
Sem que percebesse, porém não sendo negligenciado pelos
irmãos, que riam sobremaneira da situação, as amigas da
assediada apareceram em ambas as laterais da escola, devido ao
barulho que a confusão rendera.
Ao presenciarem a cena iniciaram veloz corrida, intentando
auxiliá-la. Por sorte os cruzamentos se encontravam demasiado
distantes do meio, onde se encontravam, além de estar de frente
para a construção, podendo observá-las facilmente.
Ouvindo a caída produzir incógnito ruído, voltou sua atenção a
tempo de vê-la corar intensamente, misturando a seus
sentimentos singelo pavor, levando-o a levantar-se em um salto,

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em claro reflexo. Atentando-se para os passos cada vez mais
próximos, desesperou-se.
Instantes antes da chefe da guarda gritar, foi capaz de ouvir, em
sua mente, os dizeres, “Estaremos lhe esperando, não morra, hein”,
o permitindo pressentir a magnânima face de satisfação do irmão.
Encontrando-se distraído, não percebeu o momento em que a
mulher principiou um brado tão agudo que seria capaz de destruir
milhares de vidraças, tão vibrante que faria qualquer ser humano
sentir suas fibras balançarem como um cata-vento em meio ao
vendaval e tão profundo que poderia ser percebido até por um
surdo.
Percebendo-o disparar em direção ao pátio, visando o portão
oeste, Tycia criou sua espada de cor vermelho vivo e a atirou,
vendo-a passar distante do alvo por não ter mirado corretamente.
Deixando-o de lado se apressou ao socorro da atacada. Se
posicionaram em ambas as laterais, a fim de apoiá-la para se
levantar.
— O que foi que aquele maníaco te vez? — questionou a da
direita.
— Quem era aquele vândalo? — foi a vez de Rafaela.
Devido às suas pernas acharem-se bambas, ergueu-se
duramente com o amparo prestado, respirando fundo e
balançando a cabeça levemente, retomando assim o controle de
seus pensamentos e seu corpo.
Apontou o dedo para onde seu algoz havia a pouco escapado,
ordenando que apanhassem o mais novo inimigo da escola e das
mulheres. “O Grande Pervertido”.
Antes mesmo de escutarem a denominação concedida ao alvo,
partiram em apressada marcha, adentrando a academia. Se
esquecendo do ataque a pouco sofrido, colocou-se a segui-las em
velocidade semelhante.
Após pouco, avistaram seu alvo caminhando normalmente, por
pensar que haviam desistido de persegui-lo. Ao simples contato
visual, os olhos da líder brilharam como chama ardente,

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aumentando, assim, sua aceleração incrivelmente, incutindo
enorme desespero em sua presa ao avistá-la.
— Como são insistentes. Você me arrumou um problemão —
pensou consigo mesmo, abrindo um sorriso descarado. — Terei
que usar minhas técnicas secretas.
Das perseguidoras, apenas a chefe se atentou ao sorriso,
pensando na finalidade de tal gestual, porém afastou tais ideias,
acreditando que não havia motivos para tentar compreender um
mero pervertido.
A cada passo que realizavam alargava seu sorriso, intentado
distrai-las, apanhou algo de seu bolso direito e, levando a mão à
nuca, atraiu as atenções para onde desejava, desfazendo-as com o
uso de palavras selecionadas.
— Super técnica. Desaparecimento do covarde — gritou antes
de jogar algumas bolinhas com força no chão.
Devido à velocidade em que se encontravam, foi impossível
deter-se ao verem a fumaça sendo expelida pelas esferas, se
confundindo, perdendo o caminho e tossindo fortemente. Com isso
conseguiu escapar pela encruzilhada acima, dobrando à direita.
Após a cortina de fumaça se dissolver no ar, se encontravam
lado a lado, razoavelmente aturdidas, refletindo em como havia
escapado com um truque tão ridículo de “Físicos”.
— Para onde aquele maldito foi? — urrou a chefe.
— Eu não consegui vê-lo depois da fumaça aparecer —
informou Bryn.
— Eu também não. Ele é muito rápido — pontuou.
Estava tão irritada que não aguentou escutar um mero adjetivo
pronunciado inocentemente, dirigindo fuziladora expressão à
amiga que se sentiu constrangida.
— Ele está fugindo! Para onde iremos agora? — retirou os
infrutíferos pensamentos de ambas as companheiras.
Ele teria que sair da escola cedo ou tarde, então ordenou que o
procurassem pelo corredor enquanto se dirigia a uma das

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entradas. O ideal seria que todos os quatro portões fossem
vigiados, porém não dispunham de maior efetivo.

Adiante o jovem virava por outro corredor, se apressando ao


localizar seu destino. Era a sala da diretora, onde poderia tratar do
que realmente importava, além de achar-se a salvo de suas
implacáveis caçadoras.
Havia três salas de semelhantes dimensões e tamanho da porta
dupla, sendo até suas posições na exata metade da parede. Eram
cópias idênticas que poderiam lhe confundir facilmente, contudo
sentira que era a do centro sua procurada.
Ao entrar, fechou rapidamente a grande porta dupla, sem deixar
de observar a diretora em sua pose imperiosa no fundo da sala,
sentada em sua mesa, de frente para a porta, com uma janela atrás
de si.
Se tratava de uma mulher que exalava imensa sabedoria e
poder, mesclados com seu ar de seriedade e sua altura de um
metro e sessenta e três.
Branca, cabelo liso, médio e negro, olhos verdes escuros e
estrutura óssea mais avolumada. Trajava um simples vestido curto
rosa, com mangas curtas e gola alta, uma faixa bege, na cintura e
sandálias de salto da mesma cor.
Ambos permaneceram parados, observando-se por alguns
segundos, como se não acreditassem no que seus olhos lhes
mostravam. Repentinamente o jovem relaxou o corpo e a diretora
se levantou.
— Há quanto tempo tia — exclamou enquanto caminhava em
sua direção para abraçá-la.

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2. Oportuna missão

— Não me chame de tia, moleque — cessou seu gesto similar. —


Me faz parecer velha.
Surpreendido pelo veloz movimento de rejeição, abaixou seus
braços como reflexo, concedendo-a a oportunidade perfeita de
alcançar sua cabeça e forçá-la para baixo, apoiando-a em seu peito,
como se fizesse a uma criança.
— Que bom que você está aqui querido — murmurou
acariciando seus negros cabelos.
Permaneceram por longos momentos na íntima posição.
Achando melhor interromper o reencontro para tratar do
estritamente necessário no momento, o sobrinho fitou acima com
o canto dos olhos, encontrando o olhar típico de uma mãe.
— Seu peito continua quente e aconchegante como sempre.
Percebendo sua intenção, levantou-lhe e o abraçou uma última
vez, como se estivesse se despedindo de um filho, lançando-lhe um
olhar significativo de carinho ao libertá-lo. Deixando-o se virou
para esconder lágrimas que insistiam em brotar-lhe.
— Quando recebi a sua mensagem fiquei incrivelmente
surpresa — começou pausadamente, não querendo que sua voz se
alterasse.
— Eu esperava que você ficasse feliz — brincou.
Volveu-se rapidamente para respondê-lo, porém se lembrou de
que os vestígios das poucas lágrimas ainda não haviam lhe deixado
por completo, retomando sua posição original com a mesma
velocidade.
— Claro que fiquei, mas me surpreendi mais por você sempre
ter odiado esse tipo de lugares e preferir o estilo, “lobo solitário”.
— Não se preocupe, pois, até eu mesmo fiquei surpreso —
revelou rindo.

18
— O que você fará aqui?
— Bem direta. Como sempre.
Nesse momento o silêncio se instaurou no ambiente por breves
instantes, os quais se apresentaram com ambos encarando-se,
conversando em pensamentos. Por fim quebrou o próprio
mutismo que iniciou.
— Além do que foi dito mais nada. Admirar belas obras da
natureza e, talvez, testar seus “potenciais” — riu sutilmente. —
Arrumar uma namorada seria um bônus incrível. E talvez eu esteja
mesmo precisando.
Seu encerramento demostrara quantidades inimagináveis de
dor, tristeza e angústia, fazendo-a alterar seu semblante e ser
acometida por irrefreável instinto de abraçá-lo, o confortando.
Antevendo seu gesto esticou a mão aberta, encerrando suas
intenções.
— Elas pioraram? — murmurou com extrema cautela.
Reparando o que causara, tentou desconversar, porém não
obteve mínimo sucesso contra o sentido aguçado da tia. Esboçando
sombrio sorriso encerrou o assunto.
— Há coisas que não devo contar nem para você.
Silêncio assombroso se deu novamente, levando ambos a
desviarem seus olhares, a fim de não evidenciarem suas feições.
Sentiu que deveria mudar o rumo dos acontecimentos, assim
modificando sua face para estampar um sorriso no recinto.
— Temos mais duas pendências, tia — frisou a última palavra. —
A primeira é para você não ficar espalhando nada sobre minha pessoa
ou minha condição, pois eu não quero que fiquem me olhando
estranhamente. Isso seria horrível para os negócios.
— Como já disse antes, eu não revelarei nada, senhor estranho
— respondeu, claramente recuperada do episódio anterior, abriu
um leve sorriso.

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— Ótimo. Segunda. Onde vai ser o meu quarto? — perguntou ao
esfregar as mãos. — Quero conhecer minhas belas vizinhas antes
de ir para qualquer aula chata.
Ao pronunciar da primeira sentença a diretora se encolheu e
mordeu a língua, aproveitando-se do fato de prosseguir
dialogando para dirigir-se à sua mesa e apanhar quaisquer papéis,
fingindo estar os checando, porém suas táticas nunca foram
efetivas.
— Seu quarto... Vejamos. Ele está...
Hora fingia ler, hora mirava acima da folha, esclarecendo
completamente a situação e impelindo-o a levantar
instintivamente a sobrancelha direita. Constatando o movimento
do rapaz, organizou novamente os papéis e se entregou.
— Há um enorme problema com os dormitórios — informou
após longo suspiro.
— Qual tipo de problema? — se preparou para o pior.
Instantes antes de revelar a verdade, lembrou de uma questão
que não fora resolvida e que estaria a cargo da guarda acadêmica.
Oportunidade perfeita para obter algum tempo.
— Meu querido Petrus, tenho aqui comigo uma questão simples
de ser resolvida, porém demorada. Que tal se resolvesse para mim?
— sorriu, esperançosa de que aceitasse.
— Fazer o que né? — respondeu enquanto coçava a cabeça. —
Qual é o negócio dessa vez?
Não se surpreendera, pois imaginava de antemão que
encontraria algo para afastá-lo, com a intenção de resolver seu
problema. A dúvida era apenas quanto demoraria para lhe delegar
aleatória atividade.
— Uma maga de fogo novata ainda não chegou e nós temos que
procurá-la.
— Explique melhor — pediu.
— Nós abrimos a instituição para abrigar as alunas há uma
semana e instruímos para permanecerem em nossas

20
dependências, porém uma aluna não seguiu nosso conselho e
adentrou a floresta.
— E ela ainda não voltou. Correto? — presumiu o término da
história.
— Exato.
— Isso já faz quanto tempo?
— Desde hoje de manhã.
— Considerando que estamos no meio da tarde, o corpo ainda
deve estar reconhecível — brincou.
— Meu Deus. Não diga uma coisa dessas.
— Só digo isso porque sei que essas nobres não aguentam
condições adversas àquelas em que foram criadas — resmungou.
Silenciosamente atirou um olhar de reprovação para si, como se
dissesse “Você terá que conviver com essas nobres fracas por
bastante tempo”, sendo respondida prontamente, com uma face
que expressava tanto o fato de não se importar com o que dizia,
quanto expectativas intensas.
— Então vá completar sua missão logo — disse simplesmente,
com notável ar de desapontamento.
— Sim senhora! — esboçava um sorriso contido.
Sabendo que odiava tal denominação, colocou-se rumo a porta
antes mesmo de terminar sua provocação. Sua previsão estava
certa, pois, ao soar de suas palavras, gritos coléricos foram
emitidos.
— Senhora é o demônio, seu moleque.
Agilmente passou pela porta, trancando-a instantes depois de
terminada a reclamação, porém esta atitude provocou ruidoso
estampido. Seu descuido não permitiu que percebesse as membros
da guarda virando o corredor atrás de si.
Aproximaram-se cuidadosamente de seu alvo, o qual ainda ria
perto da porta e, ao se postarem a uma pequena distância, criaram

21
suas espadas e posicionaram-se para atacá-lo. Nesse instante
percebeu que, novamente, cometera um grave erro.
— Vocês não estariam interessadas em ouvir uma boa história
sobre uma grande confusão que se iniciou devido a um engano? —
imprimiu um sorriso de desespero antes de se virar.
— E o que iríamos querer ouvir de um pervertido? —
perguntaram em uníssono.
— Humm, interessante! — adquiriu fisionomia séria. — Vocês
devem ser as subordinadas da outra garota.
Confusas entreolharam-se, empenhando-se em descobrir o que
poderia querer e como havia descoberto suas posições na
hierarquia. Rynseht não se aguentou sequer por breves momentos,
revelando o nome da líder acidentalmente.
— Como você sabe que somos subordinadas da Belatriz?
— É porque vocês têm peitos muito menores que os dela.
Começaram a ferver de raiva, principalmente por ter dito algo
assim tão naturalmente. Repararam que ainda estava em posição
pensativa, então concederam-no tempo para terminar. Ledo
engano
— Os dela tinham um bom tamanho e eram gostosos de apertar.
Agora os de vocês são pequenos que eu quase nem vejo. Para ser
sincero ela é uma perfeita tábua — comentou, apontando para
Bryn.
Repentinamente o ar se mostrou deveras pesado e ambas
começaram a transbordar chamas em seu entorno, além de suas
armas principiarem forte brilho, percebendo o quanto seu amigo
havia piorado a situação.
— Não foi isso que eu quis dizer. Peitos pequenos também são
bons — tentou desesperadamente consertar seu erro.
Suas palavras funcionaram apenas para irritá-las mais,
concebendo chamas na palma de suas mãos e atirando-as sobre
seu alvo sem, contudo, deixarem de controlar seu poder. Não
queriam matá-lo, não tão rápido, pelo menos.

22
— Eu tenho que ir agora garotas, depois nos falamos — pôs-se
a correr o mais rápido que conseguia após, com rápidos
movimentos, se esquivar dos meteoritos.
— Você não irá a lugar algum — afirmou Rafaela.
— Você irá morrer aqui, seu maldito — foi mais enfática.
Em intensa perseguição se livraram de suas armas visando
estarem aptas a criarem chamas em ambas as mãos, obtendo assim
mais poder de longo alcance, pois suas velocidades eram
semelhantes à do perseguido.
Ao conferir a retaguarda rapidamente fora surpreendido por
um projetil passando a milímetros de seus olhos, junto de outros
três voando perto de sua pessoa e causando pequenas explosões
ao entrarem em contato com as paredes e o teto.
— Suas loucas. Querem destruir a escola? — gritou
desesperado.
Momentos após gritar, constatou outra bola de fogo roçar-lhe o
topo da cabeça, efetivando a queima de poucos fios, exalando um
leve odor característico, fato que, serviu de combustível para suas
atacantes.
Após curto espaço de tempo se desviando de vários ataques
descontrolados, pode enxergar a saída, porém, para sua
infelicidade, estava sendo protegida pela bela capitã.
— Eu estava certa em premeditar que você viria por aqui —
exibiu sua vitória.
Identificando os vários buracos nas estruturas, causados pelos
contínuos golpes, alarmou-se, principalmente pelo fato de quase
ser atingida duas vezes.
— Vocês duas! — berrou. — Cessem seus ataques.
Inferindo suas parcas chances, destacou uma ideia bem ousada,
porém que poderia ser agradavelmente efetiva, além de sua única
escapatória. Sem pensar duas vezes e a cerca de vinte metros da
colisão, esboçou um sorriso galanteador.
— Vamos repetir aquela posição, gracinha?

23
Em imediata resposta a seu ato, a moça relaxou seu corpo,
abaixando sua arma e abrindo levemente a boca, para reclamar
dele. Era o momento por que esperava.
— Super técnica, Pinote do Covarde! — gritou, pronunciando a
última palavra no ar.
Se abaixando rapidamente até se encontrar na posição de um
sapo, reservou enorme força em suas pernas e saltou em posição
levemente curvada. Diferente da primeira vez, seu grito serviu
apenas para alertá-la
Levantou sua lança rapidamente, a fim de atingi-lo na perna,
porém, por suas pernas estarem totalmente esticadas para os
lados, se assemelhando a um “T” invertido, a afiada lâmina quase
lhe atingiu um órgão demasiadamente importante.
Pareceram anos se esvaindo desde o salto até a aterrisagem
atrás de si. Pode presenciar, tanto a técnica utilizada para retirar
totalmente as pernas de seu alcance, como a maneira que
aterrissou, pondo-se em imediata corrida, além disso pode
observar certa característica masculina antes de desabar com a
face fervendo.
— E aí irmão, se divertiu muito? — perguntou com um sorriso
maléfico.
— Parece que as coisas ficaram ainda mais divertidas —
ironizou a irmã ao reparar na confusão que trazia consigo.
Desprovido do luxo de parar, abriu os braços e apanhou os
irmãos pelo colarinho, desviando do início da estrada e se
dirigindo floresta adentro, com a pretensão de despistar suas
perseguidoras e cumprir sua tarefa.
— Onde você pensa que vai seu covarde? — gritou Tycia
novamente.
Ao observar que nenhuma delas iria conter-se, a capitã se
apresou em dar um pique, conseguindo puxá-las para trás pela
gola da camisa, as derrubando de costas a cerca de dez metros de
entrarem na mata.
— Onde vocês pensam que vão? — perguntou impaciente.

24
Encontravam-se confusas por sua chefe, a principal afetada pelo
pervertido, as impedir de dar curso a sua caçada. Entreolhando-se,
requisitaram o motivo de sua atitude.
— Estávamos indo pegá-lo — explicou-se Rafaela.
— E como vocês pretendiam pegá-lo? — questionou
novamente.
— Como assim, Bela? — perguntou Bryn sem entender.
— Olhem para ele — ordenou, apontando com a cabeça antes
que desaparecesse entre as árvores. — Você, Rafaela, é muito
desastrada, portanto não conseguiria andar direito naquele
terreno. Já você é muito irritada, Bryn, iria destruir a primeira
árvore que aparecesse na sua frente e o esqueceria.
— Além do mais — continuou —, aquele homem é muito
habilidoso na floresta. Está claro que aquela é sua área.
— Então o que faremos? — perguntou ao demonstrar seu
grande bico por ter sido chamada de irritadiça, sem hesitação, pela
chefe.
— Vamos relatar o caso para a diretora — demonstrava sérias
expressões de derrota.
— Falando nisso, quando nós o pegamos lá atrás ele estava
perto da sala da diretora — lembrou Rafaela.
Automaticamente começou a pensar no motivo do estranho ter
pretendido se esconder nos aposentos da maior autoridade da
instituição, além de ser uma maga muito poderosa. Seu agressor
era tudo, menos idiota.
— Ela deve saber de algo. Vamos lá! — fervia de curiosidade.

A bons metros de distância da entrada da floresta encontravam-


se as crianças, em ambas as laterais do irmão, a admirá-lo
desabado no solo, incrivelmente ofegante.

25
— Vejo que a brincadeira foi um sucesso — vangloriou-se
Marcus.
— Eu adoro as suas ideias irmão, são todas muito legais —
pontuou a menina.
— Legais porque não são vocês que sofrem — reclamou entre
arfadas.
Olhando para o alto, de fôlego recuperado, pensou em como fora
parar no lugar que tanto evitou e como a vida andava por caminhos
tortuosos. Seu cronograma estava adiantado, mas ainda faltava
algo essencial que iria obter na academia.
— Tá sonhando irmão? — questionou Amira posicionando seu
rosto acima do dele e o observando com um olhar delicado.
Seus olhos passaram a observar a irmã e, ao pressenti-la
terminar, se voltaram para o céu, junto das copas das árvores que
o tapavam parcialmente, pensando em outros assuntos,
diminuindo seu sorriso com o tempo.
— Como se isso fosse possível — murmurou a si mesmo.
Olhando para o alto novamente decidiu que era hora de voltar a
seu roteiro. Levantou-se, balançou a cabeça, piscou os olhos
rapidamente e iniciou sua caminhada.
— Vamos. Temos que encontrar a esquentadinha logo.
— Esquentadinha? — interrogaram em uníssono.
Munido de uma face de confusão, abaixou levemente a cabeça,
levantando-a novamente, como se estivesse observando-os por
completo. Ao final, apenas deu de ombros.
— Eu não contei?
— Claro que não! — gritaram novamente em conjunto.
— A tia esqueceu de preparar nosso quarto, aí para nos tirar da
escola até resolver tudo ela decidiu nos dar um de seus trabalhos
— resumiu. — Vamos procurar uma perdida.
— Que maneira de falar mais peculiar? — ironizou a menina.

26
— Não sei por que você reclama, ele poupou nosso tempo — o
defendeu, colocando-se em caminhada ao seu lado. — Eu entendi
tudo.
— É claro que sim! — gritou exasperada. — Os homens
entendem seus códigos.
Iniciando a caminhada atrasada, admirou como eram próximos,
estampando leve sorriso. Ao fim de poucos segundos caminhando
involuntariamente, percebeu um furo na breve explicação
concedida.
— Espere, você esqueceu uma parte. Porque o “esquentadinha”?
— Ué, você não entende nada não? — ironizou, o irmão. — É
claro que é uma mulher raivosa.
— Se tratando de nobres, qualquer um é raivoso, e sem o
mínimo motivo — explicou Petrus sem nem sequer parar sua
caminhada.
Começaram a rir do resumo sobre a nobreza, fazendo-a
interromper a caminhada para observar perplexa seus irmãos.
Inchando suas bochechas e atraindo a atenção, forjou uma faceta
de inconformação.
— Só isso? — levou as costas de suas mãos à cintura.
— Como você é chata, Amira — reclamou Marcus. —
Provavelmente a menina tem preferência por fogo.
— Corretíssimo! — exclamou ao jogar seus braços para o alto,
comemorando uma vitória, gerando no irmão uma explosão de
risadas.
Novamente admirou como eram próximos, tendo certeza que
suas mentes eram interligadas, liberando longo suspiro antes de
perguntar se sabiam onde ela se achava.
— Claro que sim, minha maninha — respondeu Petrus de jeito
a se vangloriar. — Pense. Se uma mulher se perdesse em uma
floresta onde há cinco fontes termais, o que ela faria?

27
Levantando as palmas das mãos para o céu, a menina os dirigiu
significativo olhar de dúvida, vendo-os imitarem seu gesto pouco
depois de encerrá-lo.
— Tá difícil! — surpreendeu-se o menino. — A resposta está na
nossa cara.
— Exato! — continuou Petrus. — É óbvio que a nobre iria se
banhar em uma das lagoas.
Irritada ao constatar que estavam de fato se comunicando
telepaticamente, explodiu em protesto, os surpreendendo. O mais
incrível foi reagirem à situação com ruidosas risadas.
— Então me digam, ó adivinhadores. Em qual das três lagoas
está nosso alvo? — ironizou.
— Não entendeu? — encararam a irmã. — Ela é uma nobre. Só
poderia estar na do meio.
— E o que tem isso a ver com ela ser uma nobre? — perguntou
sem paciência.
— Sinceramente irmã, ainda não descobriu? — decepcionou-se
Marcus.
— Com certeza ela ouviu sobre a lagoa, saiu da estrada no ponto
que lhe indicaram e usou sua magia para criar termas. Nobres não
conhecem nem suas casas, quanto mais a floresta adjacente à
escola — explicou Petrus como se estivesse em uma aula.
— Segundo essa teoria, ela não estaria perdida, pois a lagoa está
perto da estrada.
— Errado! — retrucou, Marcus. — Você esqueceu de levar em
consideração o nariz empinado, o qual impede que a nobre veja o
caminho, impossibilitando-o de retornar.
— Penso que estão subestimando as nobres, assim como
fizeram com todos. — Disse com enorme birra.
— Você vai ficar muito decepcionada com a realidade — o
menino riu.
Continuaram por alguns metros, até depararem com uma das
muitas clareiras da floresta. Afrente da lagoa, recostada em uma

28
árvore, a mulher que a diretora detalhara se encontrava de olhos
fechados.
Apenas uma toalha cobria seu saudável corpo. Pele branca,
longos cabelos castanhos avermelhados e ondulados, belíssimos
olhos claros cor âmbar, nariz levemente mais volumoso, lábios
carnudos e coxas ligeiramente mais grosas, além de uma altura
de um metro e setenta e oito.
— Vocês estavam errados.
Amira saltitou para a vanguarda do trio e os dirigiu uma face
matreira, com um grande sorriso, contente por não ter se
enganado quanto a garota.
— Tem certeza, irmã? — apontou para a lagoa. — A água ainda
está quente, então ela acabou de sair e adormecer.
Sem se importarem com a face de derrota que imprimira,
revelando que reconhecera a derrota, se posicionaram levemente
avançados.
— Eu acho que são um pouco maiores que médios — exclamou
o irmão.
— Realmente são grandes, mas não tanto — concordou Marcus.
Ao perceber acerca de qual medição os recém-chegados
tratavam, viu-se obrigada a delatar-se, abandonando seu falso
estado vulnerável e erguendo-se.
— Eu irei acabar com a sua raça, seu imundo.
Eles continuaram a lhe encarar, como se nada houvesse
acontecido. A única movimentação se deu pela menina, que deixou
a retaguarda para se postar ao lado do maior.
— Quando acabar, você não passará de cinzas — ameaçou
novamente.
Inicialmente pensou que se tratasse de um ser débil, sentindo
tênue pena, porém se lembrou de conversas sensíveis de suas
amigas e começou a avermelhar-se de irritação e vergonha ou,
talvez, da humilhação que uma maga bem-nascida, como ela,
estava sofrendo.

29
— Desapareça, seu físico depravado — gritou, marcando o
início de sua ofensiva.
Pouco após erguer sua mão direita e iniciar leve brilho, abafou
novo grito. Seu braço fora imobilizado pela destra do ofensor,
cessando sua fagulha mágica.
— Quanto mais escuto a denominação, “Físico”, mais gosto dela.
— Mas esse povinho é muito ruim em criar nomes — opinou
Marcus.
— Realmente, sem criatividade — concordou a menina.
Estava completamente estática e boquiaberta. Os motivos eram
inúmeros: A rápida aproximação do Físico, a eficácia em deter seu
ímpeto, sua excelente forma física ou até sua nada importante
proximidade.
Apesar do que parecia, a situação não lhe soar muito
inconveniente, principalmente pela certeza de que sua imensa
capacidade não poderia ser vencida por truques baratos.
Estava na hora de decidir o futuro da conversa e de seus
assediadores, afinal, não poderia deixar qualquer um vê-la com o
atual e diminuto traje
— Me largue imediatamente! — criou uma adaga.
Sua espinha se arrepiou por inteira ao sentir o leve ardor da
arma flamejante, roçando-lhe singelamente a pele, abaixo de sua
última costela.
A fisionomia da nobre transformara-se completamente, de uma
metida prepotente para uma mulher firme e disposta a lograr o que
fosse necessário.
Ao contemplar a ponta da lâmina, que ameaçava o irmão, Amira
levantou-se velozmente, com visível zanga em sua fronte e atirou
sua mão para a frente.
— Nem pense nisso! — deduziu sua intenção, encarando Petrus,
sem alterar sua expressão.
— Acalmem-se vocês duas — a vítima pediu.

30
Acenando que nada faria, a libertou vagarosamente. Apartando-
se do homem, transmutou a adaga em uma espada curta, a
apontando para seu coração.
— O que você pretende me tocando? Quem são essas duas
crianças? — ameaçou, aproximando a ponta.
— Eles são meus irmãos — respondeu prontamente — E apenas
reagi à sua ameaça.
Era verdade. Se mostrou, desde o princípio, demasiada hostil,
porém não poderia admitir seu erro, além do mais, o erro dele fora
muitíssimo maior.
Havia internalizado a ideia de que ambos se exaltaram,
incrementando sua simpatia para com o estranho e abaixando
lentamente sua espada por consequência. Lembrando-se de sua
honra, cessou o movimento na região do pulmão direito.
— Te ameacei por estar me encarando.
— Tem razão! Deveria ter lhe chamado. Não nos conhecemos e
fiz parecer algo que nunca tive pretensão. Perdoe-me!
Sabia que a razão não lhe pertencia e, sua posição, não admitia
vacilos. Pelo menos, a belíssima imagem da mulher, evaporava a
tensão que lhe seria natural.
— Ótimo que tenha compreendido — evaporou sua espada. —
Quem é você?
Admitira uma pose altiva e gestuais razoavelmente soberbos.
Não concedendo demasiada importância a ela, suspirou
profundamente e a encarou.
— A diretora me enviou para te encontrar.
— Isso não esclarece muito — estampou certa zanga.
— Mas é tudo que posso dizer no momento. Desculpe-me.
Antes de girar e dirigir-se para trás de um conjunto de árvores
e arbustos estratégicos, que ocultariam sua silhueta, convocou a
menina, para descobrir mais sobre o grandalhão.

31
Verdade fosse dita, mais do que vestir-se, pretendia omitir seu
contentamento por verificar que o homem era bem diferente do
que pensara.
Além de admitir sua culpa, elogiara-a sinceramente. Poderia ter
sido apenas um subterfúgio, mas lhe agradou, assim como o olhar
fixo que lhe acompanhava os movimentos.
— Olá, meu nome é Amira — cumprimentou ao alcançá-la.
Conferindo se realmente estavam protegidas de olhares
curiosos, procurou sua mala e pensou em como falar com a
pequena.
— Como uma menininha como você pode estar com um... —
percebeu que deveria abrandar suas palavras. — Bandido desses.
— Ele é um pouco grosso e estranho, mas é a melhor pessoa que
eu já conheci — informou.
Com calma e delicadeza, apanhou seu vestido curto, vermelho e
esvoaçante, do arbusto em que o pendurou e balançou, para retirar
a poeira.
— Aquele ogro é a melhor pessoa que já conheceu? —
perguntou boquiaberta. — Me preocupo por onde você andou.
— Você diz isso agora, mas reparei um clima — elogiou.
Abatida por ter sido lida tão facilmente, virou, ainda segurando
o vestido contra si e, a olhando diretamente, tentou convencê-la do
contrário, porém era evidente que havia dispensado atenção
exacerbada para o rapaz.
Seu físico não era dos mais desenvolvidos, no entanto, se
posicionava a milhas de um mero recruta.
Com certeza cursara a academia militar de forma formidável,
porém a abandonara pela metade. Uma pena, entretanto, não teria
de andar ao lado de um ogro.
O que faltava era mudar sua face nada amistosa, pois, mesmo que
lhe soasse máscula, não seria agradável a sua apresentação. O bom
era que poderia transmutá-la facilmente.

32
Fato era que deveria selar matrimonio ao terminar os estudos
e, com total certeza, seria infinitamente mais favorável desposá-lo
aos miseráveis pretendentes que lhe aguardavam o retorno e nada
lhe acrescentavam.
— Admito que achei uma graça ele ter admitido a culpa —
ruborizou. — A maioria dos homens são brutos, porém muitos
poucos aceitam isso.
— Até mulheres podem ser brutas — sorriu maliciosamente.
— É verdade! — gargalhou. — Que horrível!
Terminada a tarefa de se vestir, alisou a roupa, para retirar as
últimas dobras e voltou por onde vieram. Antes que ela saísse,
resolveu intervir.
— Pense rápido em como se sente e descubra se as qualidades
dele são maiores que seus defeitos — a garota aconselhou.
— Não se preocupe, terei muito tempo para pensar nisso. Se ele
me esperar até as férias de fim de ano, talvez eu marque de o
encontrar na cidade.
Não reparara na aparição de enorme sorriso nos lábios de
Amira, que imaginou a surpresa que lhe acometeria no dia seguinte
e a face abobalhada que formaria.

Do outro lado da cortina natural, os irmãos travavam entretida


conversa sobre o assunto do momento. Permaneceram na mesma
posição de quando se separaram.
— Eu sempre digo que nenhuma nobre presta — cuspiu.
— Pode até ser, mas gostei dessa — ruborizou.
Completamente pasmo, observou com atenção e com incrível
desgosto, o irmão modificar seu semblante, mesmo que
brevemente.

33
Seus olhos se distanciaram, como se fosse capaz de alcançar a
nobre de outrora, sua voz se afinou, ligeiramente, após suave
suspiro, seus lábios formaram doce sorriso e sua face se
desmanchou.
Era a segunda vez que isso ocorria, sendo a primeira, por causa
de uma miserável camponesa. Nunca pensou que teria que aturar
sua postura embasbacada novamente.
— Você está louco? Lembra do que o Lucer disse? Todas as
nobres são mesquinhas, cruéis e só pensam em si próprias?
Lembre-se de que ele viveu por séculos.
— Vocês estão enganados! — Sentiu pena. — E nossa estadia
nessa escola irá provar-lhes
Compreendia plenamente o motivo de seu ressentimento, pois
havia provado uma pequena parcela desse veneno, mas sabia eu
esse ódio não poderia prevalecer.
— Ela está te manipulando, assim como te manipulou há pouco
— Pontuou indignado. — E estaremos perto quando ela te
apunhalar, para te lembrar que te avisamos.
Dando o futuro como certo, esboçou maléfico sorriso.
Internalizou que o acontecimento serviria para demonstrar a
hipocrisia da alta casta, assassinando qualquer parecer impróprio
que tomasse o irmão.
Avistando as garotas, se apressou a seu encontro, cuidando de
pedir ao irmão que não mais tratasse do assunto. Ela estava linda
no simplório vestido.
Acercando-se da ex-desaparecida, questionou-a quanto ao seu
nome, justificando que a confusão que se iniciou sobrepôs-se à
importante demanda. Acertou novamente.
— Hangdis! — acabou por desmanchar sua postura séria. —
Meu nome é Lucena Hangdis.
— Lucena — como um cavalheiro, tomou sua mão e beijou-a. —
Que belo nome.

34
Apontou para o caminho que levava à estrada com a mão aberta
e a palma para cima, sem tirar os olhos da dama, oferecendo-a a
dianteira.
Delicadamente, se posicionou ao seu lado e, utilizando-se de
simplicidade e seu toque feminino, indicou que deveriam
permanecer assim até seu destino.
Ao sentir a delicada mão tocar suavemente seu braço nu, seus
hormônios explodiram, o inundando com uma sensação
inebriante. Respirando fundo afastou sua inquietação, portando-se
como imaginava ser o correto.
Enquanto Amira sorria gostosamente, por acreditar que, o
melhor remédio para o irmão, era o sentimento que
experimentava, Marcus se contorcia em um turbilhão de
sentimentos e memórias negativas.
— Irmão, nos apresente — a menina prestou-lhe ligeiro
empurrão.
— Certo! — acordou para a realidade. — Essa é a Amira, o
nanico é o Marcus e eu sou o Petrus.
Se preocupava com as crianças, inclusive porque, conquistar a
lealdade dos irmãos, ganharia seu coração facilmente, entretanto,
devido ao tempo que possuía ser curto, não o gastaria com meros
coadjuvantes.
— Essa mocinha esperta eu já conheço, mas esse garotinho
ainda não — se agachou para observá-los. — Espero que possamos
nos dar muito bem no futuro.
“Já te conheço, vagabunda!”, pensou Marcus, furioso com a
petulância monstruosa da mulher.
Estava para transmitir sonoramente seus pensamentos, porém
foi impedido pelo cutucão que levou da irmã, sendo seguido por
um “Calado” ao pé do ouvido.
Devido à proximidade, chegaram rapidamente à estrada. Sem
desperdiçar seu precioso tempo, executou um plano para atrair a
atenção dele para suas palavras, pois ao seu físico, obtivera há
muito.

35
— O que te traz a nossa escola? — sorriu timidamente.
— Assuntos pessoais — pontuou agressivamente, Marcus.
Suas palavras efetivaram-se como grande talho, interrompendo
a contemplação do irmão. Lançando olhar significativo para a
irmã, observou-a erguer as palmas e arquear os ombros.
Astutamente, não permitiu transparecer a compreensão do
recado recebido. Ao contrário, se aproximou mais do par e admitiu
a inocência na face, despertando mais ainda as chamas masculinas
dentro dele.
— O pessoal não diz respeito somente a mim, então... — sentiu-
se obrigado a dar-lhe uma melhor justificativa.
— Não lhe diz respeito! — o garoto completou.
Sua vontade era de dar um tapa na cara do irritante menino,
porém teria de ser mais sutil. Tinha de se impor desde agora ou
não os conseguiria dominar.
— Ainda não! — Lucena virou a face levemente, o observando
de canto de olho.
Sorriu ao perceber o irmão furioso, pois realmente estava
desagradável. Pelo menos, seu chilique fez com que fosse alvo de
empolgante proposta.
Outro ponto que o deixou extremamente impressionado, e até
maravilhado, foi a postura da esbelta mulher, pois nunca imaginou
que reagiria tão bem às provocações.
Percebendo que teria tempo para uma última tática, cortou a
intensão do jovem de desculpar-se e forjou um ar de guia, a fim de
ocultar seu desejo por ele.
—Aquela é a cidade acadêmica. Ela serve para que as alunas
tenham contato com o mundo externo e possam comprar, de tudo.
— Nobres tem bastante dinheiro né.
Se cansando de suas infantis agressões, os irmãos sustaram a
caminhada e o fixaram com imensa reprova. Apenas os ignorou,
mantendo o olhar em seu alvo.

36
Após curto período, soube que não iria conseguir um pedido de
desculpa e voltou-se para sua acompanhante, que, por sua vez,
havia formulado um contra-ataque.
— Perdoe-o! — pediu Petrus — Ele está muito rebelde hoje.
— Eu entendo. É normal as crianças quererem testar as
escolhidas do irmão.
Mulher insolente! Não só posara de coitada e inocente, como se
insinuou incrivelmente.
Amira admirou como transpôs a situação de maneira tão hábil,
porém o irmão não compartilhou deste sentimento, sendo
obrigada a mudar de assunto.
— Por que comprar se são obrigadas a utilizar uniformes?
— A diretora decidiu implementar os uniformes há apenas
alguns anos — suspirou profundamente. — No passado essa era
uma grande cidade, porém abusaram da liberdade e a declaração
oficial veio, condenando as roupas inapropriadas e a batalha de
tecidos, como ficou conhecida. O resultado foi visível.
— Mas alguns comerciantes permanecem e é bom fazer umas
comprinhas de vez em quando — amenizou sua declaração.
Ao deter seu ímpeto de prosear, encontrava-se a poucos passos
da entrada da academia. Ficou decepcionada consigo mesma por
desperdiçar seu tempo.
— Agora está muito tarde e preciso me retirar, mas, se souber
me pedir direito, amanhã irei te arrumar um emprego na cidade —
demonstrou seu poder. — Garanto que estão procurando alguém
como você.
Durante sua última investida, fez questão de carregar suas
expressões e sorrisos de ternura, sentimentalismo, delicadeza e,
claro, insinuação.
Finalmente entrou, desfilando e desejando que seu estratagema
funcionasse, pois seria infinitamente mais fácil controlá-lo se o
tivesse por perto.

37
3. Primeiras confusões

Os últimos raios de sol declaravam sua tímida presença,


anunciando o fim do período vespertino. Calmamente se dirigiram
à sala da diretora para, além de informar sobre o sucesso de sua
missão, descobrir o que fora resolvido sobre seu quarto.
Os corredores se encontravam completamente desertos, com
exceção das crepitantes chamas que as numerosas lamparinas
forjavam. As alunas situavam-se em suas câmaras no presente
momento, fornecendo-os trâmite seguro.
Ao aproximar-se de seu objetivo com parcimônia, vozes foram
ouvidas, alertando os irmãos para ficarem em silêncio, ouvindo
assim uma conversa. Se aproximando da porta, identificou
claramente suas donas.
— Eu vou dizer mais uma vez diretora. Você está sendo iludida
por aquele salafrário — afirmou a capitã.
— É, diretora, aquele homem é perigoso — confirmou Rafaela.
— Aquilo não é um homem. É um demônio! — exagerou a
terceira.
Desde que escapara pela floresta o trio a assediou com
questionamentos diversos, devido ao fato óbvio, a obrigando a
utilizar-se de diversos artifícios para despistá-las.
Sabia que a culpa do ocorrido não era de seu sobrinho, mas as
confusões oriundas de tal iriam perdurar até que auferissem
respostas. Não poderia contê-las muito mais.
— Meninas, entendam a situação — pediu desesperadamente.
— Entender o que diretora? Isso é uma situação de vida ou
morte — exagerou Tycia.
— Todas as alunas vão ser expostas ao perigo desnecessário —
argumentou a apalpada.

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— Imagino o que um pervertido desses poderia fazer na escola
— pontuou a desastrada.
Petrus foi levado a pensar novamente sobre o que poderia fazer
na academia e como poderia, se distraindo levemente. Percebendo
que se achava divagando, balançou a cabeça rapidamente,
voltando seu foco para a conversa.
— Meninas, entendam, ele pode ser bastante estranho, mas é
uma boa pessoa — insistiu.
A oração servira para que o aludido liberasse uma expressão de
indignação em tom suficiente para atrair a atenção das acusadoras,
despertando em Belatriz o ímpeto de voar na porta, a fim de
surpreender a pessoa que as espiava.
Por preverem o que aconteceria afastaram-se da porta
momentos antes de presenciarem o irmão ser arremessado
violentamente e apanhado no pescoço como um animal.
Sua carrasca agilmente o empurrou, levantando-o à medida que
avançava até atritá-lo contra a parede. Concebendo sua lança em
sua mão direita rugiu furiosamente.
Rapidamente as parceiras da atacante e a diretora saíram para
assistir o que aconteceria, reunindo-se às crianças, os quais
galhofavam há muito. Começando a suar, lançou um olhar de
piedade para seus observadores.
— Mas... Você não quer fazer isso na frente da diretora, não é?
— Não se preocupe comigo — insistiu Joana.
— Eu te odeio — disse instintivamente, lançando-lhe uma
expressão assassina.
— Já esqueceu de sua situação.
Enquanto aplicava impulso máximo com o braço direito para
desferir o ataque mortal, o presenciou admitir sua incapacidade e
aceitar silenciosamente sua pena.
Durante seu prolongado gozo fora surpreendida com o leve
erguer da barra de sua saia, instintivamente libertando-o para
ajeitá-la, assim como queria.

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Percebendo sua estratégia empunhou a lança com ambas as
mãos e dispensou violenta estocada, porém era tarde. Agilmente
escorregou por baixo do poderoso ataque.
Tencionando ser capaz de se refugiar na sala da diretora, se viu
forçado a aplicar-lhe leve tapa na nádega esquerda, compelindo-a
a realizar pequeno salto para a frente sem, no entanto, largara
arma, quase trespassando a parede de pedra
Seu rosto tingiu-se de vermelho por inteiro, inundando-a por
pura raiva, apagando os pensamentos racionais remanescentes,
impelindo-a a persegui-lo como uma bárbara.
— Eu vou te matar seu demônio! — vociferou.
— Você não vai querer destruir a sala da diretora junto. Vai? —
implorou por ajuda, se escondendo atrás da mesa que
transformara em barricada.
Sem enxergar nada além de seu alvo, jurado de morte pela
eternidade, preparou feitiço estupidamente desproporcional,
tendo em vista eliminá-lo da face da terra, porém foi impedida a
centímetros de cumprir seu intento.
— Pare Belatriz, não quero minha sala envolvida em sua briga.
E se você destruir algum papel importante vou ter novamente que
tratar com aqueles malditos burocratas.
— Obrigado Deus! — agradeceu ao enxergar a ponta brilhante
na sua diagonal curta.
Torcendo a cabeça para verificar se não poderia prosseguir,
abandonou sua pose de ataque e evaporou sua lança ao receber a
negativa. Devido à proximidade o ergueu pelo colarinho,
arremessando-o de costas no chão, com grande violência.
— Ainda não terminamos! — imprimiu tom imensamente
assassino.
Observaram-na deixar a sala pisando duro, sendo cercada pelas
amigas até desaparecerem no corredor à esquerda. Enquanto os
pequenos cerravam a porta agradecia o sobrinho por ter arrumado
sua mesa.

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Não possuía muitos itens na sua mesa, se tratando apenas de
uma lamparina, uma pequena coruja entalhada na madeira, que
servia como peso de papéis, uma caneta de pena e um vidro de
tinta. Todos retornaram ao exato ponto em que descansavam.
— Aii! — gemeu. — Como uma maga pode ser tão forte quanto
um subtenente?
— Você tem muita sorte — ironizou Joana. — Primeiro dia e já
foi digno de receber o ódio de uma das alunas mais fortes dessa
academia.
— Quer dizer que ela é o nível mais alto dessa escola? Que
decepção! — disse Petrus balançando a cabeça e abaixando o olhar,
deixando-a furiosa.
— Eu disse que ela é uma das melhores e não que é a melhor.
— E quem é a melhor?
— Elena Castronavoc! — falou com orgulho.
— Aquela que desapareceu há alguns anos? — ironizou.
— Ela está construindo carreira sigilosa — explicou, com
enorme bico.
Notando o olhar irônico do trio sob sua pessoa, tratou de
executar leve sequência de tossidas ritmadas, a fim de começar um
novo assunto menos danoso.
— Você não tinha um assunto mais importante para tratar
comigo?
— Verdade! — lembrou. — Já arrumaram nosso quarto?
— Então... Essa instituição é só para mulheres, justamente
porque só mulheres nascem com capacidade mágica.
— Eu sei — tomou fôlego para declamar a enorme história. —
Há quinhentos anos o primeiro homem a poder controlar a mana
nasceu em uma vila pobre e se revoltou por somente as mulheres
poderem controlá-la e pelas magas, em sua grande maioria,
preferirem ficar desfrutando do estado de nobreza, relegando o
povo ao próprio azar.

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— Ele começou a estudar com os poucos recursos que tinha,
entretanto, seu nível gigantesco de mana o permitiu se
desenvolver rapidamente. Depois de completar seu treinamento e
assumir a liderança de grande grupo de demônios, começou seu
plano de vingança contra a nobreza, devastando várias famílias de
renome, inclusive as que apenas ascenderam por suas mulheres se
revelarem magas.
— Em certo ponto, vários nobres decidiram pedir perdão por
seus erros, mas o homem os destroçou mesmo assim. Um dia,
várias vilas do subúrbio se reuniram, decidindo que suas ações
eram demasiadas injustas, formando uma aliança para treinar
vários soldados para ajudarem as magas a lutarem contra o Rei
Demônio, como ficou conhecido.
— Lado a lado, as tropas e as magas derrotaram o Rei Demônio
e, desde essa época, dizem que sempre que a nobreza se distancia
do povo um novo homem nasce para cumprir o dever do Rei
Demônio — tomou goles de ar, com o intuito de se recompor.
— Na verdade o homem tinha um belo ideal, mas ele foi
dominado pelo ódio contra as mulheres que, somente por terem
capacidade mágica, se aproveitavam do povo e sucumbiu —
opinou o irmão.
— Incrível que você pense assim — exclamou a diretora
surpresa.
— Eu também penso que o propósito do Rei Demônio é
excelente, o problema está na humanidade precisar que surja um
matador para se unir — pontuou a irmã.
— Nesse ponto eu sou obrigada a concordar — admitiu Joana.
Percebendo que a conversa se estendera e que continuaria
andando na contramão do que realmente importava tomou a
iniciativa de os interromper, afinal tinha pressa.
— Essa escola não possuí nenhuma ala para homens e nem está
em posição de fácil adaptação para esses — revelou finalmente.
— Então? — apresou.
— Então não há quartos para vocês — concluiu.

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— Esse é o tratamento que você dará para nós que escolhemos
justo você em vez do concorrente? — perguntou desanimado.
— É claro que não, por isso que pensei em te colocar como um
tutelado — ponderou.
Instantaneamente arregalou os olhos, demonstrando sua
imensa surpresa que, aliada à sua face indescritível, lhe geraram
espesso sorriso. Em instantes abraçava-a.
— Eu te amo, Joana.
— Será que a amará se ela te colocar junto daquela general? —
cutucou o irmão.
— Desde que ela goste da ideia de incrementar um homicídio
aos anais da instituição...
Certificando-se de que não havia mais assuntos pertinentes a
serem tratados decidiu levá-los para o quarto, assim poderiam
conhecer sua companheira e descansar, afinal era a diretora e,
como tal, havia de preservar os horários.
— Vamos! — permaneceu a frente para indicar o caminho.
Dobraram à direita e depois à esquerda, se encaminhando
velozmente à extremidade oeste, visualizando após pouco tempo
uma escadaria em “U” com corrimão de madeira maciça. Todos os
lances de escadas que levavam aos andares acima iniciavam e
findavam na extremidade superior esquerda.
No piso ascendente dormitavam as salas que os professores
utilizavam para ministrarem suas disciplinas. Devido ao horário
avançado não se dispôs em repará-las.
Os dois andares superiores eram quase idênticos, comportando
os cento e cinquenta dormitórios existentes. A diferença se dava
no primeiro piso, onde a ala próxima à escada possuía dez
dormitórios com o dobro do tamanho, dirigidos à alta nobreza.
Subindo novamente foi possível ver longo corredor à frente,
localizando três fileiras de dormitórios; duas delas nas paredes
norte e sul e, a última, ao centro, contendo vinte quartos em ambos
os lados, mesmo número das demais.

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Ao atingirem o terceiro andar, reparou algumas portas se
entreabrirem para examiná-lo de relance, fechando ao perceberem
a diretora. Ao afugentar a sétima aluna, cansou-se da brincadeira,
alertando mentalmente que expulsaria a próxima que girasse a
maçaneta.
— Você já está conhecido — comentou o irmão.
— É, parece que a rede de informações desse lugar é boa —
concordou.
— Mulheres são fontes de informação mais completas do que
qualquer espião — afirmou.
— Você quer dizer fonte de fofoca, não é irmã? — corrigiu o
menino.
— Depende da perspectiva — devolveu.
Admirando-os com o canto dos olhos, apenas sorriu, refletindo
em quão boa era a relação entre os três e como haviam passado
por tantas batalhas ferrenhas. Juntamente com o pensamento
alegre, uma nuvem mais pesada a abateu, lembrando-a do futuro.
— Quem sou eu para pensar que sei o que acontecerá, afinal,
tenho certeza de que não sei nem da metade — murmurou,
mantendo-se no caminho correto por puro instinto.
Lendo seus pensamentos se aproximou e, em tom
imperceptível, pronunciou em seus ouvidos: “Não se preocupe, não
preciso que carregue esse peso”.
Involuntário pensamento lhe ocorreu. Realmente seria
responsável de sua parte ignorar a terrível hecatombe, porém,
antes que se perdesse sobremaneira, sentiu a mão de Petrus tocar
seu ombro, compreendendo que deveria ter mais fé.
— Quando vamos chegar? — questionou o sobrinho,
impaciente.
— Não reclamem. Estamos indo apenas para o último quarto da
primeira fileira.
— Essa quantidade não é um exagero? — perguntou o menino
— É sim, mas nobres adoram exageros — rechaçou Petrus.

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— Chegamos.
Ao dizer isso bateu na porta e esperou, continuando a ouvir o
sobrinho tagarelar, mesmo com os passos se aproximando.
Discretamente tentou, sem sucesso, calá-lo.
— Tomara que ela não seja tão difícil de desmimar e... — parou
ao ver sua anfitriã.
Possuía longos cachos loiros, olhos verdes, pele branca, cintura
fina, ombros pequenos, busto mediano e altura de um metro e
sessenta.
Usava um longo vestido azul claro, em tecido fluido, de alças
finas, drapeado no busto e em uma espécie de cinto, formado com
o próprio traje. Um simples bordado branco envolvia o busto,
terminando em um fino laço de igual cor, ao final do decote V.
-... Já falei que eu te amo, Joana? — agradeceu aos ouvidos.
Se segurando para não perder a posse, tossiu levemente antes
aceitar o convite e entrar. Rapidamente os apresentou, recordando
as condições e limites, além de frisar que ela poderia desistir a
qualquer momento e que poderia tratá-lo como bem entendesse.
O dormitório era imenso, tendo um total de cinco cômodos, uma
sala, uma cozinha, um quarto, um banheiro e um pequeno espaço
que se assemelhava a um quarto de estudos. Era uma casa! A sala
fazia divisa com a cozinha à direita e com o quarto ao norte, o qual
fazia divisa com o banheiro à direita e com o quarto de estudos ao
norte, possuindo até uma pequena varanda à sua diagonal
esquerda.
A sala era enorme. A leste, perto da cozinha, estava uma mesa
próxima à parede norte, onde eram servidas as refeições.
Encostados a parede sul estavam dois pequenos armários de vidro,
um com pratos e talheres e outro com taças.
Na parede oeste se encontrava um espaçoso sofá principal,
junto de um criado mudo com uma lamparina em cima em cada um
de seus lados, outro a alguns passos à frente e duas poltronas a sul,
uma ao lado da outra, formando um triângulo obtusângulo.
Encostadas na parede norte, estavam duas estantes.

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Para terminar havia um tapete vermelho, fino e comprido, que
tinha seu centro na posição da porta do quarto e se estendia
igualmente entre a parte leste e oeste, além de um grande relógio
de pêndulo ao lado esquerdo da porta de entrada.
— E... porque eu teria que aceitar esse... — refletiu antes de
dizer algo. — Homem?
— Verá que Petrus pode ser de grande utilidade... — foi
interrompida pelo próprio.
— Ó, minha senhorita, estou pasmo com sua beleza e seu fino
trato, seus olhos transbordam a confiança que há de ter para
aceitar minha humilde presença. Entendendo a situação
extraordinária a que fomos expostos e, visando à rara
oportunidade que ambos teremos ao desfrutar nossos melhores
atributos, coloco-me a tua disposição — declamou com todo
charme e encanto possíveis, ajoelhando-se perante a garota.
Respondeu à posição que esboçara, sendo surpreendida com
seu gesto de apanhar sua mão delicadamente. Fitou o jovem que
continuava ajoelhado e, demonstrando em seu semblante razoável
satisfação, decidiu-se.
— Está bem, aceitarei sua permanência neste recinto —
recolheu sua mão.
— Bem, vou deixá-los — aproveitou a oportunidade.
Ao cerrar da porta se ergueu, agradeceu Marina pela
hospitalidade e, após um abraço rápido, porém suficiente para
corá-la, pôs-se a iniciar a exploração de sua nova residência.
Pensou ser melhor permanecer para conversar com as crianças
— Olá pequeninos, qual o nome de vocês? — perguntou
delicadamente, agachando-se.
— Eu sou Amira e esse é meu irmão Marcus — adiantou-se.
— Amira e Marcus. Por que vocês estão aqui? — quis saber.
— Não é óbvio? — perguntou o menino como se devesse saber
tal informação. — Estamos acompanhando nosso irmão.

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Levantou-se em sobressalto devido à surpresa da revelação,
recuando levemente de forma cambaleante. Ao se estabilizar
buscou a direção em que Petrus havia desaparecido, retornando às
crianças.
— Então aquele homem é seu irmão? — perguntou não
acreditando.
— Que foi, não gostou dele? — questionou Marcus, causando-a
novo recuo.
Do quarto apenas gritou que encontrou ligeira bagunça,
facultando nas garotas dois tipos diferentes de vergonha.
Enquanto ficou encabulada por ter olvidado sua tarefa de
organização, Amira sentiu vontade de o ofender.
— Ele tem um jeito um pouco diferente, mas é uma boa pessoa
— conteve-se
— Eu acredito nisso — disfarçou com um sorriso falso.
— Mentirosa! — sentenciou o garoto.
Estafara-se do joguete que se tornara para o moleque,
ordenando irem conversar com seu irmão, a fim de dormirem logo,
pois o dia seguinte seria o primeiro do calendário escolar.
Antes de se moverem, Amira promoveu o irmão, informando
que ele era muito bondoso, amistoso, companheiro, e, é claro, que
estava solteiro.
— E o que me interessa saber disso? — perguntou, corando
levemente.
— Eu conheço muito bem as mulheres de sua idade — avisou.
— Meu irmão é um ótimo partido para qualquer uma.
— E eu lá sou qualquer uma? — justificou. — Falta muito para
que ele chegue ao meu nível.
— Você vai ver como meu irmão pode ser legal — defendeu
Ao adentrarem o quarto, admiraram-no estirado na cama,
dormindo pesadamente sem a mínima preocupação com o fato de
serem convidados. Marina deu um leve grito enquanto a irmã
correu para acordá-lo.

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A grande cama possuía uma saia rosa em tom médio com
babado pouco volumoso, lençol da mesma cor, porém em tom mais
claro, e edredom amarelo opaco. A cabeceira encostada na parede
norte, levemente a oeste, possuindo, ao lado direito, um tapete que
abarcava sua extensão, junto de um criado mudo com uma
lamparina em cima, também encostado na parede.
Próxima à parede leste ficava a entrada do quarto de estudos e,
abaixo, o banheiro, calculadamente no centro da parede e na
extremidade esquerda da parede em que o leito repousava,
achava-se a porta que levava a uma pequena varanda, além de um
armário na mesma linha do banheiro.
— Muito legal — ironizou
— Ai irmão, eu te defendo e você faz isso?
— Levante-o logo da minha cama. Suas roupas a estão sujando
— surtava.
Cansada de assisti-lo relutando desviou o olhar, apreciando a
acomodação livre de qualquer zorra, inferindo que havia a
organizado. De tão pasma, sequer matutou que teria distribuído a
sua sujeira por onde passou.
— Ele odeia baderna — revelou Marcus sem retirar sua atenção
do dorminhoco.
— Irmã... Acabei dormindo. Desculpe! — desculpou-se ainda
meio atordoado. — É que arrumei umas coisas aqui perto e me
deitei sem perceber. Essa cama é muito macia e cheirosa.
— O que foi isso? — corou instantaneamente.
“Parece que ele não é mesmo uma pessoa ruim”, pensou aliviada
ao contemplar o rosto sonolento e isento de qualquer traço de
malícia, então prometendo a si mesma ser mais legal para com os
três, até porque viveriam juntos por algum tempo.
— Enquanto preparo seus colchões na sala vocês vão se limpar
— informou dirigindo-se à gaveta. — Depois comeremos.

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Finalmente se levantando, conversou com os irmãos e se
encaminharam ao banheiro, recebendo as toalhas ao chegar na
porta, assim agradecendo-a a oportunidade.
Corou levemente ao sentir a gentileza de seus novos hóspedes,
tornando a tarefa de arrumar seus leitos mais prazerosa. Colocou-
os lado a lado, em frente ao sofá principal.
Após o trio terminar de se banhar, juntaram-se a moça e
absorveram alguns pães e frutas. Ao terminar as crianças
ajudaram-na a limpar a mesa, evitando que Petrus se aproximasse
da fina louça que possuía.
Trancou a porta de seu quarto ao vê-los se dirigirem ao
descanso, retirando delicadamente suas roupas e as dobrando
sobre o colchão. O banho sempre era a última tarefa de seu dia
visando poder refletir tudo que acontecera e, graças as três
grandes novidades, fora compelida a meditar por muito.
Como estava acostumada a conviver com pessoas que apenas a
bajulavam para obter alguma vantagem, ficou comovida com as
expressões simples e corriqueiras vivenciadas naquela noite. Pena
que iriam descobrir quem era verdadeiramente.
Buscando seu pijama percebeu que derramava lágrimas. “Eu
não estou triste, então porque estou chorando?” pensava, pois
sempre aprendera que as pessoas choravam quando estavam
tristes. Se sentia de um jeito tão estranho que não sabia dizer o que
seria.

Passos apressados se fizeram perceptíveis, alertando-o da


necessidade de abrir seus olhos, mesmo contra sua vontade. Se
restabelecendo de seu torpor, identificou os irmãos encostados na
parede perto do relógio.
— O que é esse barulho todo? — se espreguiçou ao perguntar.
— Estamos atrasados! — exclamou ao vê-lo desperto
— Quanto tempo falta? — esticou-se.

49
— Quarenta minutos — respondeu apressada.
— Você está toda apressada por quarenta minutos? —
assombrou-se Petrus. — Sei que a pontualidade é uma boa
qualidade, mas isso já é ridículo.
— Deixá-los juntos será realmente benéfico. Um é
extremamente adiantado, outro, atrasado — ponderou o menino.
— Quem sabe não conseguimos uma pontualidade.
— Eu não sou extremamente adiantada.
— Eu não sou extremamente atrasado.
Ao perceberem que emitiram suas vozes em uníssono,
entreolharam-se, admitindo que os pequenos tinham certa razão,
por isso virando os rostos e corando levemente. Antes que
persistissem no erro, precipitou-se.
— Posso te esperar comer um pão, mas vá rápido.
— Bem... Se você quer sair agora, você pode me mostrar os
lugares deste monumento.
Após ambos relevarem, encaminhou-se à mesa e abocanhou o
pão que mais rápido alcançou, ouvindo-a informar que assentara
na cama um uniforme pela diretora enviado.
Se tratava de uma camisa branca, bem melhor costurada que a
sua, uma calça verde escura e um par de sapatos pretos. Ao trajar
seu uniforme enfiou suas roupas antigas na sacola que trouxera e
dirigiu-se novamente à sala.
— Está lindíssimo irmão — assobiou Amira.
— Bem melhor do que antes — concordou Marcus.
Realmente estava muito bonito, mas se conteve, demostrando
apenas leve vermelhidão. Se aproveitando de sua indecisão,
avançou à porta e manteve-a aberta para que a colega passasse.
Fechando-a realizou leve gesto convidativo, incentivando-a a
caminhar a frente, porém certo déjà-vu o atentou para que
mantivesse seu passo ao ritmo da dama.
— Não seria melhor levar seus irmãos? — perguntou a fim de
disfarçar seu rosto corado por percebê-lo a seu lado.

50
— Eles não se importam.
— São crianças bem-comportadas — elogiou.
— São sim — sorriu divertidamente.
Por um momento se calaram, sem saber como deveriam iniciar
uma conversa, pois eram tão diferentes que, não fosse as
circunstâncias especiais, seus mundos nunca se cruzariam.
— Você poderia me mostrar as instalações — sugeriu.
— Nós não estamos passeando, estamos nos dirigindo ao local
do pronunciamento.
— Não precisamos ir agora se não quiser — assustou-se com a
enfática negativa.
Tal bruta cortada na conversa foi suficiente para mantê-los em
silêncio pelo resto do trajeto. Ignorando categoricamente sua
vontade, continuou em frente ao descerem para o segundo andar,
se surpreendendo por tamanha simplicidade, pois, ao alcançar o
limite sul, presenciou seis salas em cada lateral de um grande e
largo corredor, terminando com um banheiro ao final da fileira à
frente.
A porta do banheiro era pequena como nos quartos normais e,
as das salas, possuíam o dobro do tamanho, sendo todas no
extremo leste de cada câmara.
— O que pensa que está fazendo? — não gostava de ser
ignorada.
— Verificando.
— Então termine isso depois, senão iremos nos atrasar — deu
de costas.
— Claro, estou indo — seguiu-a.
Tranquilamente acompanhou a garota, se contendo ao atingir o
piso final da escada, pois fora assaltado por uma sensação de
perigo, porém a ignorou e continuou reto. Ao aproximarem-se da
lateral da enfermaria, enxergou um brilho vindo da esquerda à alta
velocidade em sua direção, tomando a atitude de abraçá-la antes
de se atirar ao chão.

51
Nada viu, porém sentiu uma enorme onda de choque seguida de
um impacto com o muro da instituição que se assemelhava a uma
explosão. Felizmente conseguiu se virar antes de aterrissar no
chão, fazendo com que Marina permanecesse em segurança
absoluta.
Recuperando-se do abruto susto abriu vagarosamente seus
olhos, percebendo que estava deitada sobre o rapaz, fato que
tornou sua face completamente vermelha, a ponto de paralisá-la
de vergonha.
— Não é que eu não goste da posição, mas não é o melhor
momento — quebrou sua imobilidade, vendo-a explodir.
Com pressa de deixar sua embaraçosa posição, acabou
demonstrando movimentos desengonçados. Após se acalmar um
pouco, voltou-se para a parede atingida, à frente da escada, a fim
de analisá-la.
— Essa lança é da chefe da guarda — preocupou-se.
— Meu tormento — lamentou.
Antes que conseguisse terminar seu lamento, a chefe da guarda,
junto de suas fiéis companheiras, deram a graça. O fato de só as
amigas se acharem ligeiramente arfantes o indicava que estavam
muito longe, o impressionando pelo poderoso lançamento e por
sua grande capacidade física.
— O que você está fazendo com esse demônio, sua inválida? —
inquiriu rispidamente, desfazendo sua arma da parede.
Percebendo que sua anfitriã ficara cabisbaixa com a declaração
da arrogante líder, resolveu auxiliá-la. Apesar de sua percepção, foi
a companheira que tomou a iniciativa.
— Isso é apenas da nossa conta — tentou se reerguer.
— Claro que não é, princesa do zero — devolveu Tycia.
— É assunto da guarda acadêmica tudo o que coloca em risco a
vida e a integridade física e moral das estudantes e da própria
academia — informou a chefe.
— Exatamente! — grunhiu a desastrada.

52
— E eu que sou um risco? — perguntou Petrus, adentrando a
conversa.
— Isso! — respondeu Belatriz.
— Então, quer dizer que já causei algum dano à estrutura da
instituição? — perguntou levantando o cenho direito.
— Não, mas significa que há uma boa chance de que venha a
causar — titubeou levemente.
— Mas causar um dano ao patrimônio escolar é mais grave do
que ter grande probabilidade de realizar tal feito?
— É claro que é.
— Então, neste caso, vocês três que deveriam ser caçadas e não
eu — concluiu.
A conclusão apresentada gerou ligeira vacilação em todas,
tamanha a surpresa, calando assim as agressoras. Após um
pequeno espaço de tempo, Rafaela, encontrou forças para
questionar tal proposição.
— Você está louco?
— É claro que não, só tirei uma conclusão óbvia a partir das
afirmações obtidas — explicou com um largo sorriso.
Devido ao silêncio que se fizera, resolveu continuar com seu
plano de despistá-las, além de, é claro, dar uma lição na arrogante
mulher, pois não poderia colocar-se acima dos demais humanos a
seu bel-prazer.
— Primeiramente ela me disse que eu era um risco, depois que
risco era diferente da ação e, por fim, que cometer o ato era pior
que ter chances de. Juntando tudo isso, mais os fatos de vocês já
terem causado buracos em pontos diferentes da escola, concluiu-
se o óbvio.
O trio estava pasmo com sua petulância e lógica irretocável,
enquanto Marina achava-se extasiada e rindo discretamente da
situação. Finalmente deixando seu estado paralítico, Belatriz ouviu
as risadas da garota e viu a face de vitória de seu adversário, se
enfurecendo com a evidente derrota.

53
— Mas, ainda assim, você é um perigo para as alunas, sendo
assim você ainda é nosso assunto — tentou desesperadamente
reverter o placar.
— Vamos lá novamente — aceitou o desafio. — Você afirma que
eu sou um perigo, não?
— Sim!
— E eu preciso ser aluno para que a guarda acadêmica entre em
ação?
— Claro que não! — respondeu rapidamente com um brilho no
olhar. — A guarda acadêmica deve proteger as alunas de qualquer
perigo.
Nessa hora as comparsas compreenderam o ocorrido e
sorriram, cantando vitória ao pensarem que sua capitã havia
dominado a rodada, transmudando a faceta de Marina.
— Então qualquer elemento perigoso que se refugie na escola
deve ser perseguido?
— Claro que sim! — aumentou seu sorriso exponencialmente.
— Mas... — frisou. — E se esse elemento se inscrever e for aceito
como um aluno logo após esse incidente ocorrer?
— Como assim?
Não poderiam saber que era um aluno, porque tal fato não havia
sido divulgado. Na verdade, ainda matutava como lidaria com as
reclamações e contestações que adviriam da bombástica
revelação.
Mesmo assim, presenciou a empolgação desaparecer do
semblante das ofensoras, levando-o a crer que Joana havia, ao
menos, lhe extinguido este fardo. Deveras aliviado pode desfrutar
do belo sorriso da companheira.
— Ele se tornaria um protegido — respondeu, forçada pela sua
honra.
— E como protegido posso desfrutar de minha liberdade em paz
— suspirou.

54
— Mas suas ações anteriores não serão perdoadas — bradou
Bryn reavivando a amiga.
Sentindo que logo as alunas se ausentariam de suas habitações
resolveu que era chegada a hora de findar a discussão, pois
pretendia manter-se oculto até sua chegada à sala de aula, assim
sendo capaz de trabalhar sua presença aos poucos.
— Façamos uma troca. Minha liberdade condicional e não conto
que estão a atormentar uma aluna, descumprindo assim seu dever.
Engoliram seco ao ouvir a ameaça, antevendo as consequências
de serem condenadas por negligência. Melhor seria cederem para
manterem suas fichas intactas.
— Isso não irá ficar assim, seu Demônio.
Ao passarem entre os dois retomaram a tarefa há muito
interrompida, dirigindo-se às escadas a passos largos e pesados,
pronta para matar a primeira que lhe dirigisse um olhar torto,
prontamente seguida pelas amigas, em silêncio.

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4. Primeiro dia

— Muito obrigada por me defender — dirigiu-lhe delicado


olhar.
— Entendo pelo que você passa.
Presumindo que seria agradável lhe dar uma justificativa para,
como imaginava ter percebido, seu desprezo e afastamento
demasiados se esforçou para abrir seu coração, afinal há muito
tempo não a tratavam tão bem.
Caso permanecessem parados por mais tempo seriam vistos e
sua estratégia se findaria, portanto cuidou de incitá-la a
prosseguir, a cortando categoricamente.
Estranhou sua abrupta mudança, pois reclamava de sua pressa
há pouco. Relevando que protagonizara belo embate com sua
algoz, devolvendo-lhe paz, não se ofendeu.
— Me encontrei com ela há muito tempo, mas nunca convivi
consigo — lembrou-se de sua primeira conversa. — Quando
finalmente a conheci, há um mês, me surpreendi.
— Você não parece ser alguém que saberia, mas a Belatriz foi
escolhida como chefe da guarda por causa da influência do nome
de sua família, além do mais, a irmã mais velha praticamente
ordenou à diretora a fazê-lo, assim poderia testá-la — continuou.
— Mas porque ela é tão arrogante assim? — Perguntou curioso.
— A culpa é da irmã, ela sempre foi e ainda é a melhor da escola
e a Belatriz foi treinada pela própria para sucedê-la.
— E a irmã é uma crápula — terminou.
Seu questionamento quanto ao fato de conhecer o resto da
história o alegrou tanto que teve que disfarçar sua risada. Admirado,
pensou no quão bom era ainda existir inocência no mundo; por
sorte poderia desfrutar bastante da beleza de tal virtude.
— Você não faz ideia de como isso é comum mundo afora.

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— Dizem que a irmã a tortura se ela comete algum erro —
comentou assustada.
— É muito complicado atender às expectativas de seus pares.
— Às vezes tenho pena dela, sabe? — questionou
involuntariamente.
— Sei sim, afinal você é uma boa pessoa. Alguém que se
preocupa com os outros.
Sua resposta involuntária lhe rendeu vários pontos, tornando-
se merecedor de seu olhar carinhoso. Ignorando o gesto
espontâneo, apontou para uma enorme construção.
O auditório era um espaço retangular recostado nas paredes
norte e leste, poucos metros acima do portão leste. A sua frente,
podiam ver uma de suas largas portas duplas folhas, levemente à
esquerda, encontrando a segunda ao contorná-la à direita.
Finalmente se viu capaz de apreciar o ambiente iluminado e
com calma. Abaixo da sala de audiências localizavam-se as três
últimas salas anexadas ao muro leste, a sala dos professores,
diretoria e secretaria. À frente da secretaria se abria o portão sul.
Logo em seguida a um corredor que desembocava no portão sul,
se encontrava um grande almoxarifado e, diretamente ao lado, um
ginásio com o dobro do tamanho. Após alguns passos se via o muro
oeste, este com seu portão ao final, estendendo pequena parede à
esquerda, formando um “L” espelhado para comportar a
enfermaria.
Na curta diagonal direita o banheiro das alunas se achava entre
a escada e uma biblioteca ligeiramente ampla. O portão norte se
localizava na metade do caminho até o setor financeiro e, ao lado,
o banheiro dos funcionários, estes dois possuindo as mesmas
dimensões dos anteriores. Por fim restava apenas um corredor
antes do auditório.
Todas as câmaras possuíam portas duplas no mesmo tamanho,
exatamente no centro de suas paredes e opostas aos muros em que
se encontravam. As exceções eram os banheiros, por terem metade
da largura padrão e o almoxarifado, possuindo uma segunda e

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maior porta ao lado esquerdo da principal, para passagem
facilitada de itens diferenciados.
No mais, a porta da enfermaria havia sido deslocada
ligeiramente à direita, enquanto as duas do ginásio achavam-se à
esquerda e direita do ponto central.
Repentinamente avançou, gerando uma instintiva exclamação
por parte da garota, admirando-o com estranheza. Ao aproximar-
se da porta abriu pequena fresta e conferiu seu interior, atiçando
sua curiosidade.
“Considerando seu raciocínio é normal que possua uma ou
outra esquisitice”, relevou. Ao questioná-lo sobre tal procedimento
o percebeu checar o corredor afobado.
Ao constatar seu sumiço se apressou, localizando-o na aresta
superior direita após pequena observação. Permanecia ereto em
meio às trevas, despertando a misericórdia de seu instinto
materno, alcançando-o em um piscar.
A sala era bem simples, se constituindo em um palanque de
madeira acoplado à parede da metade de sua extensão e várias
fileiras de cadeiras, partindo da extremidade direita à extremidade
esquerda, possuindo um curto corredor que marcava a metade da
sala. No mínimo havia, em assentos, o dobro do número de alunas.
— Você está se escondendo? — demostrou delicado sorriso.
— Pode rir o quanto quiser, mas não quero arrumar confusão
logo no primeiro dia.
Seu proceder lhe era tão familiar que não conseguira deixar de
se enxergar, encolhida nas sombras. Animando-se o tomou a mão
e tentou puxá-lo, claro que sem sucesso.
— Vamos lá na frente — percebeu sua hesitação. — Não se
preocupe. Qualquer um que for visto ao lado da princesa não será
incomodado, por pior que seja.
— Você é a princesa do reino? Da família Sterniot? — arregalou
os olhos.

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Sua reação delatou o total desconhecimento de sua dinastia,
exprimindo seu exato valor, pois a defendera gratuitamente. Após
magnânima persistência conseguiu que se sentasse na cadeira logo
ao seu lado, considerando grande evolução comparando-o a si
mesma.
Instantes após as alunas entraram pela porta aberta,
obviamente a maioria os notando, porém, poucas os fixando por
mais que um segundo. O quanto ela era odiada? E por quê?
A cada instante esvaído sua face murchava em ritmo de uma
progressão geométrica, porém esboçou repentino e expressivo
sorriso. Acompanhando sua linha de visão, cruzou olhares com a
garota por quem tanto se derretera, há considerável distância.
— Não! — exclamou em um misto de surpresa e zanga.
Mantendo-se plenamente focada em seu alvo, para que não
fosse capaz de se ocultar, iniciou desenfreada corrida. A três
fileiras de ser cruelmente interrogado foi salvo pelo ressoar da voz
da diretora, vendo-a, com alívio, retornar ao seu assento.
— Vocês se conhecem? — estranhou.
— Longa história. Agora vamos ouvi-la — disfarçou.
Ao possuir certo silêncio iniciou, se apresentando às
primeiranistas e incentivando as demais, assim ganhando tempo
para que pudesse localizar o sobrinho e transmiti-lo a informação
de que não o citaria. Por algum motivo Joana estava sozinha no
palco.
— Primeiramente apresentarei as regras que não devem ser
quebradas em hipótese alguma — informou com veemência.
— Primeira e mais importante. É estritamente proibido utilizar
magias ofensivas sem a prévia aprovação de responsável, exceto
para as membros da guarda acadêmica. Caso aconteça algum fato
extraordinário, poderá ser utilizada magia em legítima defesa.
— Segunda. A decisão dos professores é magnânima.
— Não serão toleradas alunas que não se esforçarem. Caso uma
aluna reprove duas vezes na mesma disciplina será rejeitada.

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— Desavenças entre alunas, qualquer que sejam, deverão ser
trazidas à um superior, podendo ser a própria guarda. Isso é, caso
as envolvidas não resolvam a situação.
— Toque de recolher estará vigente, durante os dias letivos, às
nove da noite. Depois deste horário só será permitida a circulação
das alunas pelos andares dos dormitórios.
— Às dez da noite estão proibidos quaisquer ruídos que possam
trespassar seus quartos.
— Sétima. A entrada na floresta é proibida, exceto por
acompanhante responsável.
— As demais normas são sobre tópicos menos perigosos e
possuem punições mais brandas, então ficará a seus encargos.
Seguindo... Irei lhes transmitir indicações acerca das instalações da
academia. Para mais informações se encaminhem à secretaria.
Sem que esperasse Petrus adormeceu, mergulhando em
lembranças e sonhos. Sua mente foi às alturas, se lembrando de sua
caminhada, do quão irônico e difícil foi mandar a mensagem para
Joana e o que estaria o aguardando em seu futuro.
Subitamente acordado olhou para os lados, atordoado,
percebendo a companheira a seu lado dizendo algo. Finalmente
deu-se conta de que o pronunciamento encerrara, levando as
alunas a erguerem-se para sair.
— Desculpa Marina, eu não ouvi. O que me disse?
Inicialmente observou com desgosto sua desatenção, alterando-
se ao lembrar que fora gentil em dizer a verdade, mesmo
enxergando a possibilidade de que disto não gostasse.
— Eu perguntei o que você achou de tudo isso que foi exposto
hoje — repetiu.
— Para ser sincero, apaguei depois que ela falou das regras —
respondeu com um sorriso de desculpa no rosto.
— Ora essa hein. Você deveria ser mais atento — pontuou.
Ao serem liberados, viu como Lucena disparou em direção aos
colegas com sangue nos olhos, pronta a inquirir o motivo de não

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ter partido como dissera. Antevendo a situação ergueu-se,
induzindo-a a imita-lo.
— Não acredito que você mentiu para mim — exasperou-se.
Claro que a espalhafatosa manifestação atraíra curiosos olhares,
mas deveria tomar cuidado, pois, se reagisse erroneamente,
conseguiria apenas fideliza-los.
— Vocês se conhecem? — a princesa sentiu-se excluída.
— É difícil! — Articularam conjuntamente.
Com o tempo mais espectadoras eram atraídas, tornando a
situação potencialmente destruidora. Apesar de não precisar se
alarmar, teria de resolver a ocorrência.
— Você saiu tão rápido que nem consegui dizer nada — explicou
tranquilamente. — Eu não mentiria para você, acredite.
Estava chateada por ter crido que sua relação com o homem
seria como todas as outras, contudo procurava justamente por um
parceiro diferente. A verdade é que resistia instintivamente à
mudança.
— O que está fazendo aqui? — se acalmou instantaneamente.
— Você não sabia amiga? Ele é o novo aluno — acabou elevando
sua voz.
— Um mago? Homem? — gritou surpresa.
Reparando no volume emitido pela colega se preocupou,
virando para conferir o estrago causado. As alunas detiveram-se e
cochichavam, porém nem perto do que imaginava.
Voltando o presenciou tranquilo, confundindo-se
sobremaneira, pois, a poucos minutos, lutava para convencê-lo a
não se manter escondido. Rapidamente o questionou sobre.
— Fui prevenido e criei uma pequena ilusão — informou calmo,
como se comum fosse.
— Você está enganando nossas colegas? — gritaram
consternadas.

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— Acho melhor vocês pararem. Metade delas as estão vendo
brigarem com uma pobre garotinha e metade está tentando
descobrir quem é essa nobre.
Ouvindo-o atentamente sentiu toda sua inquietude emergir,
abalando seu âmago e a apresentando ordinários
questionamentos. Titubeou momentaneamente por não acreditar
sê-lo capaz, porém seus instintos soaram mais altos.
— Também me iludiu?
— Não diga isso — sentiu-se afetar.
— Acho que mereço saber se tudo o que aconteceu foi apenas
um jogo para você — agitou-se exponencialmente.
Utilizando-se de sua velocidade e a brecha que lhe oferecia,
Petrus enlaçou-a firmemente, sentindo sua brava resistência de
dois segundos, antes de retribuir-lhe o gesto, sem, contudo, se
emocionar.
— Aproveitei cada segundo de nosso encontro — pronunciou-
lhe ao pé do ouvido.
— Acho melhor vocês pararem — gaguejava deveras.
Soltando-se perceberam que as poucas alunas restantes haviam
chamado suas amigas, amontoando-se na porta para admirar a
cena. Não se importava minimamente, diferente das garotas que
obtiveram ligeira vermelhidão.
— Pensei que isso não seria tão incomum aqui — provocou.
— Calado ou estrago seu disfarce — reagiu Lucena.
— Mas você já não o desfez? — tentou acalmar-se, sem sucesso
— Você disse garotinha, então não poderia abraçá-la direito.
— Bela observação, porém se esqueceu que eu não posso mudar
minhas proporções.
Lançou repentinamente uma expressão contida de dor,
assombrando as companheiras, principalmente por enxergarem
pequenino corte se abrindo abaixo de seu ombro esquerdo, sendo
seguido de escassa quantidade de sangue.

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Dirigiu seu olhar para a porta esquerda do salão, presenciando
o semblante extasiado de Belatriz que, por mísera fresta, disparou
afiada lâmina de vento. Ao perceberem-na, as amigas
desvendaram todo o ocorrido.
— Como ela sabia? — interrogou realmente abismado.
Congelou ao inferir que o ataque havia interrompido sua magia,
desesperando-se por não possuir uma contramedida, afinal nunca
supôs que houvesse aluna apta a desvendá-lo.
Confusas sentiram sua falta após repentino clarão, reparando
que as demais estudantes deixavam o recinto desconfiadas.
Lembravam de sua presença por estarem em sua companhia há
muito, mas as colegas somente supunham terem-no visto de
relance.
Pensaram que havia se tornado invisível, porém, ao verem sua
agressora partindo nervosa, compreenderam o que ali havia
passado. De alguma forma conseguira sumir.
Colocaram-se rapidamente a caminho de sua primeira aula do
ano, iniciando acalorada conversa. Deixaram o auditório pela porta
lateral, visando o não enfrentamento do bolo de alunas, dobraram
à direita ao atingir o corredor principal e seguiram reto até a
escada.
Ao alcançarem o primeiro andar avistaram, ao final do corredor,
pequeno grupo acumulado na porta de entrada. Contornando-as
entraram, vislumbrando o jovem ao lado, encostado na parede.
— Qual seu plano? — questionou Marina.
— Vocês verão. Agora saiam daqui antes que pensem que nos
conhecemos.
— Verdade! — ironizou Lucena. — Podemos prejudicar sua
fama.
— Pelo contrário! — percebeu que havia se excedido. — Eu que
posso fazer isso a vocês.
— Vamos lá Lu — aceitou suas palavras.

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A classe, assim como suas pares, se constituía em grande mesa
e uma cadeira, destinadas às professoras, no vértice ao lado da
entrada e, à frente, cinco alas horizontais, cada uma contendo dez
cadeiras e em níveis superiores, sobre um tablado. Na metade da
extensão das alas se fazia pequeno corredor para circulação,
terminando por se alargar ao fim, onde se achava um degrau sem
cadeiras.
As janelas se localizavam na parede ao fundo, uma na metade do
comprimento de cada fileira e à direita, uma entre a primeira e
segunda fileiras e outra entre a quarta e quinta.
Vagarosamente subiram os degraus, sentando-se nas últimas
carteiras da quarta fileira da direita, observando as colegas
alterarem suas facetas ao verem Petrus, lançando mão de vários
questionamentos.
Apesar de serem acometidas por incrível sensação de déjà-vu,
nenhuma o inquiriu sobre, sendo obrigado a explicar-se apenas à
professora, antes sequer desta entrar. Sem deixar sua posse séria,
comunicou-a, através de pensamentos, sobre sua estratégia.
Cabelo loiro escuro, liso e curto, olhos azuis claros e pele bastante
alva. Era acentuadamente magra e sua altura chegava a um metro e
sessenta.
Trajava um lindo e comprido vestido verde claro, com diversos
bordados florais estampando-o, sandália nude e um par de luvas
brancas.
Congelou a milímetros da porta, respirando profundamente
para não apavorar as alunas com suas feições, adentrando
finalmente. Antes de sentir-se pressionada pelos olhares, dirigiu-
se a sua mesa, o observando de relance.
Ao verem-no segui-la de perto, ambos parando ao lado da mesa,
uma das alunas, a qual Petrus apenas observou ser pequena e
magricela, cabelo curto e negro, com dois círculos pretos como
olhos, tomou a iniciativa de perguntar

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— Professora Dias, o que esse homem faz aqui? Por acaso ele é
seu ajudante? — perguntou com uma face entre o espanto e a
curiosidade.
—Não, Mio. Ele não é — explicou.
— Por que ele está aqui?
— Isso não importa, Maiara — tentou controlar suas alunas. —
O que importa é o que ele fará.
Não conseguiu deixar de se interessar pela última
questionadora, pois essa possuía muita personalidade, começando
pelos laços vermelhos que enfeitavam cada uma de suas duas
tranças curtas.
Longo cabelo loiro escuro, olhos azuis esverdeados, que
evidenciavam enorme energia, pele morena clara e porte atlético,
completavam o visual.
— Deixe que me apresente. Sou Petrus, seu colega — percebeu
as faces de espanto. — Como a fessora disse, o motivo de eu estar
aqui é sigiloso, mas podem saber que, já que sou o único, prestarei
integral atenção à todas.
Como poderia um homem se tornar aluno em uma instituição
que leciona magia? Sabiam que homens não nasciam com
capacidades mágicas, exatamente por isso, não ocupavam posições
de muita importância.
— Está disponível qual horário? — Maiara deu prosseguimento
à brincadeira, saltando do assento.
— Para tão belas mulheres, qualquer — sentiu-se aliviado com
a colaboração da colega.
Devido a espontaneidade da conversa o assunto anterior se viu
completamente desbaratado, dividindo as alunas. Algumas
contiveram as risadas, outras se sentiram envergonhadas e,
poucas, apenas se surpreenderam.
— Ótimo, coloque-me na agenda.

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A cada segundo, a matreira demonstrava, com maior
intensidade, que não se deteria, acabando por agravar as reações
das colegas e gerar pequeno tumulto.
— Deixe de ser indecente — ordenou Belatriz, levantando-se.
— Você diz isso porque não sabe como é bom — ela sorriu,
maliciosamente.
Se instaurou silêncio absoluto por parte das próximas da capitã,
pois tinham plena consciência de que as palavras seriam tratadas
como ofensa.
Percebendo que a situação se complicara demasiadamente, a
professora teve de ser incisiva. Aproveitando, indicou para que o
novato se sentasse.
— Pare de provocar, Maiara ou não deixará essa sala tão cedo.
Assentou-se atrás das amigas, recebendo ligeiro cumprimento
por parte da princesa e vendo Lucena dirigir olhar reprovador às
colegas.
Após ouvir sobre o estilo de avaliação, rigor exigido e a natureza
da disciplina “técnicas de defesa”, foi surpreendido por uma
exclamação de dor.
Levantou-se e desceu rapidamente, sendo observado com
estranheza por todas. Ao aproximar-se da porta foi interrompido
pela docente indignada com tamanha ousadia.
— Desculpe, não sabia que devia avisar-lhe — mostrou-se
constrangido. — Na academia militar é diferente.
Importante informação foi revelada, se bem que seu físico
confirmara isso há muito, acendendo a chama do interesse nas
alunas, por perceberem-no relevante o suficiente para se ter à
disposição.
— Perdoarei desta vez — admirou-o sair tranquilamente,
disparando ao fugir aos olhares.

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Ao trespassar o portão oeste reduziu subitamente sua
velocidade, aguçando seus sentidos para descobrir qual o próximo
passo, não sendo necessário, pois duas garotas apareceram no
cruzamento sul correndo.
Se surpreenderam ao topar consigo, congelando a centímetros
de distância. Uma estava com o cabelo bagunçado e parte dele
cortado irregularmente, enquanto seu reflexo apresentava
somente leves repiques e possuía um pequeno hematoma em cada
braço.
Ambas eram brancas, de cabelos pretos, lisos e curtos, olhos
também pretos, faces infantis e vestiam seus uniformes. A única
diferença era a altura, poucos centímetros maior, da de cabelo
cortado.
Repentinamente três novas personagens surgiram correndo
pelo mesmo cruzamento, tentando imediatamente fingirem
despretensão ao, surpresas, vê-lo. No momento em que as gêmeas
se viraram e as viram, se refugiaram atrás de si, postando-se a com
o cabelo repicado à sua direita e a outra à esquerda, entregues.
— Elas nos enganaram e nos isolaram — choramingou a da
direita.
— Esperava que alguma maga nos ouvisse, mas você serve —
falou a irmã.
— Podem me dizer seus nomes?
— Eu sou Lola — confirmou a da esquerda.
— E eu, Lala — acompanhou a irmã.
— Quem é você? — gritou nervosa uma das atacantes nervosa.
À sua frente postava-se a líder do grupo e dona do grito. Branca,
cabelo ruivo, comprido e liso, olhos azuis claros e um metro e
cinquenta e oito centímetros.
Atrás dela chegaram suas comparsas, postando-se em ambas as
diagonais. Duas garotas, de cabelo preto, curto e liso, ambas

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vestindo o uniforme escolar, como a líder e levemente mais altas
que ela — como se fosse muito difícil.
O questionamento ressoou alto o suficiente para que Lucena
ouvisse, olhando assim para baixo. Surpresa com a situação
chamou a amiga, acabando por atrair a atenção de Belatriz,
justamente por essa estar na primeira cadeira da última fileira à
esquerda.
— O que realmente importa é quem são vocês e porque estão
com cabelo nas mãos.
— Ela é Adelle, à sua direita Polaca e a outra Naia — esclareceu
a garota à sua esquerda.
— Não temos que nos explicar para um maldito físico — gritou
Naia.
— Adoro essa palavra — ironizou consigo. — Não preferem
tentar?
Percebendo que teriam que dançar segundo os passos do
estranho, caso não quisessem enfrentar Belatriz, relaxou sua
postura e entreolhou as parceiras.
— Nós estávamos lhe atribuindo uma medida corretiva por
serem novatas.
— Medida corretiva? O que é isso? — perguntou claramente
sem ideia de seu significado.
— Os veteranos costumam chamar isso de “trote” — explicou a
da esquerda, enquanto a irmã balançava a cabeça concordando.
— Bem, se entendi direito, esse tal trote é uma punição pela
pessoa ter se matriculado em determinada instituição. Certo? —
resumiu.
— Não é isso. É uma “Boas-Vindas” dos veteranos aos novatos
— explicou Polaca.
Mostrando os danos causados às protegidas e processando as
novas informações com desgosto tornou a observá-las com pena,
afinal não eram as maiores culpadas.

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— As boas-vindas da diretora foram bem monótonas, mas
informativas como deveriam ser. Acredito que boas-vindas de
veteranos deveriam ser divertidas e dinâmicas — concedeu uma
breve pausa intencional. — Elas parecem estar felizes com o
tratamento?
Acabou! Não estava mais disposto a ser enrolado e nem o trio
em desperdiçar seu tempo tentando convencê-lo, o problema era
ser o único a ansiar por uma resolução pacífica.
— Prestarão contas à diretora.
— Nesse caso não temos escolha — proferiu Adelle, formando
sua espada flamejante.
Observando as comparsas repetirem o ato, Belatriz
compreendeu imediatamente a situação, enquanto as amigas
liberaram fraca expressão, alertando as demais de que algo
ocorria. Agilmente ordenou que as companheiras a seguissem e
deixou a sala.
Instantaneamente as colegas se levantaram, exigindo pulso
firme da professora, a qual controlou a situação com maestria.
Apurando seus sentidos através de sua magia de vento conseguiu
ouvir a líder momentos antes de consumarem o ataque.
Aproximaram-se rapidamente, forçando-o a repeli-las com uma
rajada de ar, lançando-as novamente à vista das amigas. Na classe as
estudantes não se aguentavam mais, acabando por ignorar os apelos
de Dias, a qual se dirigiu à janela igualmente.
Observou, surpresa, a chefe do trio atirar a espada com violência
em um alvo oculto, achando-se confusa, assim como as alunas,
mesmo se recordando dos últimos acontecimentos. “Porque estão
o atacando?”.
Novamente ele produziu forte corrente de ar, cravando a espada
a poucos centímetros de si. Recuperando-se rapidamente ambas o
fixaram com espanto, não pela magia utilizada, mas pelo fato de
reagir.
— Quem diabos é você? — questionou, Polaca.

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— Isso não importa! — impediu-o de responder a líder. —
Assim como todos os homens, ele é um idiota e perecerá
rapidamente.
Percebera o erro que cometera protegendo-os instantes antes
da espada ao seu lado se explodir, levantando poeira no processo.
Somente ouvindo a explosão as observadoras se assustaram,
desejando que ninguém se machucasse.
— Terminou! — comemorou Adelle.
Aproveitando que as gêmeas estavam momentaneamente
encobertas pela nuvem, realizou veloz salto, as atacando com uma
rajada de ar. Como apenas a líder a defendeu conseguiu se livrar
de suas subordinadas.
Assim que tocou o solo foi recebido pelo punho que a adversária
envolveu em chamas rumando ao seu peito, porém deteve-lhe com
a mão esquerda e, com a direita, aplicou forte soco em seu
estômago, apreciando-a se revirar na terra.
Ao dispersar da nuvem de poeira a nada doce figura da capitã
da guarda, e suas comparsas, se fez presente, a franzir o cenho.
Apavorada a líder se levantou desengonçada e debandou
instintivamente, motivando as parceiras a lhe imitarem.
Após ordenar que as capturassem, Belatriz respirou
profundamente e, ao carregar o braço, socou o ar, produzindo forte
rajada no nível do chão, lançando as pernas das três ao alto, assim
as derrubando de costas.
Observaram com alívio o momento em que suas agressoras
foram içadas pelo colarinho, sendo enfim capazes de relaxar. Na
sala as colegas comemoravam e se abraçavam.
Rapidamente as gêmeas foram ao seu encontro para agradecê-
lo, além de parabenizá-lo. Passando a seu lado a chefe parou ao
constatar seu gesto singular para breve acerto.
— Irei levá-las para a enfermaria e te encontro na sala da
diretora.
— Tanto faz — respondeu secamente.

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Petrus se dirigiu à enfermaria, postando-se cada uma de um
lado e as membros da guarda à diretoria, mantendo ambas as mãos
das meliantes cruzadas em suas costas, as escutando blasfemar
contra seu algoz.
Estava ciente do que, e o porquê aconteceria, além de que seus
argumentos não alterariam a decisão proferida, por isso
permaneceu muda, aparentando certa tranquilidade, porém as
amigas não tinham tal consciência, mantendo-se agitadas.
— O que acontecerá conosco? — perguntaram.
— Não é óbvio? Vocês serão punidas rigorosamente.
Ao ressoar de tais palavras em seus tímpanos, começaram a se
contorcer novamente, imaginando quais seriam suas punições.
Desejando que civilizadas fossem, as carcereiras ficaram
decepcionadas com tal atitude, em silêncio.

Chegando ao destino, Belatriz bateu levemente e, após receber


confirmação, abriu a porta. Adentrando deixaram libertas suas
prisioneiras por ser certo que não fugiriam.
Observando a face tão conhecida, Joana voltou seus olhos ao
assunto que tratava, levantando novamente a cabeça ao perceber
que possuíam acompanhantes, se assustando ao perceber as
secundaristas.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou.
— Essas três foram pegas cometendo trote — explicou a chefe
em posição de continência.
— Entendo — pensava sobre o assunto — Meus parabéns, logo
nos primeiros dias e a guarda já apanhou suas primeiras
delinquentes.
— Correção, foi aquele homem que nos pegou — a líder
intentou subtrair-lhes a glória.
— Há, há. Aquele moleque é demais — divertiu-se.

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— Elas também o atacaram — devolveu o favor. — Sorte que
pegaram leve por ser homem.
Tremeram diante da informação temendo uma reação
exasperada da juíza, fazendo a líder se culpar internamente por tê-
las sentenciado. Em que diabos estaria a pensar?
— Essa eu queria ter visto — sorriu levemente.
— Diretora, isso é um caso bem grave. Comporte-se! — perdeu
a pose.
— Tudo bem.
Soltando o papel de sua mão e deixando a caneta dentro do
vidro de tinta suspirou longamente, afinal não gostava da decisão
que seria obrigada a tomar. Fitando-as séria inquiriu em tom firme
se tinham algo a dizer em sua defesa.
Sabendo que nada funcionaria tomou a dianteira e respondeu
um sonoro “Não”, satisfazendo-a pela situação se tornar
infinitamente mais civilizada. Levantando-se para proferir o
veredicto final admirou as facetas de derrota das rés.
— A partir de agora vocês três estão expulsas da Academia de
Magia Laetus.
Abalaram-se extremamente com a condenação, pois as
consequências seriam catastróficas para si e sua família, afinal não
seriam aceitas por nenhuma outra instituição e, não se formando,
seriam arremessadas no lamaçal da miséria.
A líder foi a mais abalada, caindo de joelhos em pranto copioso,
pois nunca imaginou tal nível de rigidez. Não suportou ser
responsável pela derrocada de si e suas amigas, afogando-se seus
pensamentos angustiosos e lamúrias
Abrindo a porta com delicadeza, atraiu os olhares para si,
percebendo variadas emoções. Em especial as condenadas
levantaram externando seu ódio, prontas para atacá-lo
novamente, sendo detidas por Adelle.
— Parabéns pela apreensão — parabenizou Joana.
— Você não está pegando muito pesado?

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— Pegando pesado com o que? — surpreendeu-se.
— Eu digo com a punição.
— Como assim? Está defendendo esta escória? — indignou-se a
chefe da guarda.
Atentou-se para as expressões de desaprovação das guardas,
após isso se dirigiu à tia tentando atingir seu coração e terminou
por se fixar demoradamente nas rés.
— Também acho que o ato cometido é uma selvageria, mas não
é necessária uma expulsão — expôs veementemente.
— Deixei muito claro há alguns anos que essa prática não seria
mais permitida. Meu erro foi ter deixado de lembrá-las da
proibição — exasperou. — Voltarei a ser dura.
— Eu compreendo, mas o problema vem desde há muito tempo.
— Onde pretende chegar? — perguntou Rafaela confusa.
— As gêmeas devem ter sido suas primeiras vítimas. Seria justo
jogar em cima delas toda a culpa de milhares de magas já
formadas? — encerrou sua argumentação.
Com poucas palavras a calou, clareando suas ideias, pois
pensava da mesma forma, estando apenas nervosa por nunca
prevenir tal patifaria. Concordando viu retornar às condenadas o
brilho dos olhos, porém não poderia deixar o ato sem punição.
— Mas isso irá para suas fichas curriculares.
Qualquer punição ocorreria independentemente do desenrolar,
porém o homem, que supunham ser seu carrasco, concedeu-lhes
enorme redução de pena em minutos. Estavam em êxtase total, ao
mesmo tempo, rindo, lacrimejando e agradecendo.
Situação resolvida decidiu ausentar-se, porém Adelle, curiosa
sobre o porquê de tê-las ajudado, realizou pequeno impulso,
agarrando a manga de sua camisa no momento em que abria a
porta, alarmando as presentes, que tentaram a impedir.
— Por que você nos ajudou? — perguntou confusa.
— Eu apenas fiz o que era justo — respondeu de costas.

73
— Mas nós te atacamos. Você não guarda rancor? — não se
convenceu com a resposta.
— Minha cara, a vida é muito curta para se desperdiçar com
rancor, ódio e sentimentos similares — respondeu com enorme
seriedade, encarando a interpelante.
Silenciando o liberou para, finalmente, deixar o recinto. Ao
constatarem a porta fechar as destinatárias de sua última frase
caíram de joelhos e choraram silenciosamente, sendo assaltadas
por diversos sentimentos abruptos, misturados e até conflitantes.
Ignorando a situação ocorrida, colocou-se a caminhar sem
preocupações, postando-se diante de sua sala em poucos minutos.
Averiguando que o findar da aula havia se dado, percebeu que as
gêmeas não se encontravam.
Entrando rapidamente, ouviu as reclamações das amigas por
ser tão louco a ponto de enfrentar alunas do segundo ano, e logo
três consecutivamente, deixando-o feliz, pois haviam ficado
preocupadas.
— Como vocês sabiam que era eu? — questionou curioso.
— Não nos subestime, por favor — pediu Lucena. — Nós o
vimos.
— Sem contar que a luta, coincidentemente, iniciou ao você sair
— completou a princesa.
Pensava no porquê de tanta demora por parte das gêmeas.
Aproveitando que teria em torno de cinco a dez minutos antes da
próxima aula resolveu checar o que acontecera.
— Estou indo verificar umas coisas, daqui a pouco estarei de
volta — informou.
— Não demore, pois nossa próxima aula será lá fora — avisou
Marina.
— Você fica tão bonita quando está preocupada — disse em tom
galanteador.
— O que foi isso? — abaixou o rosto ao sentir-se corando.

74
Devido a se retirar da sala apressado, a fim de não se atrasar
para a próxima aula, quase topou com as membros da guarda ao
sair, ouvindo-as praguejarem contra si. Rapidamente transpôs o
espaço, abrindo as portas da enfermaria.
Era uma construção quadrangular dividida em duas partes.
Próxima à parede à frente da entrada estava a mesa da enfermeira
e, abaixo desta, um armário longo, grande e raso, ocupando a maior
parte da parede sul.
Ao norte um corredor separava duas fileiras de três macas cada,
uma acima da outra. Levemente na vertical se encontravam vigas
de madeira roliças, por elas desenrolando cortinas que visavam o
confinamento dos leitos, preservando assim a intimidade de seus
ocupantes. Não havia necessidade de comentar sobre a simetria
dos itens.
Identificando-as próximas à última maca da esquerda
aproximou-se para questioná-las sobre o motivo de não
retornarem, sendo surpreendido por interromperem sua conversa
e postarem-se apreensivamente ao vê-lo. Estranhando resolveu
questioná-las.
— Você é um mago homem! — exclamou Lola.
— Que isso irmã? Deixe-o em paz! — a repreendeu. — Ele nos
salvou.
— E agradeço, mas não posso ignorar isso — ponderou.
Antevendo o resultado do embate, devido a ser uma atitude
comum, além de compreensível, retirou-se tranquilo ao conferir
que a enfermeira fizera excelente trabalho escondendo as marcas
das agressões. Nervosa fitou a irmã.
— Você não pode lhe dar uma chance? — perguntou
inconformada.
— Você sabe muito bem o que aconteceu com aqueles que lhe
deram uma chance.
— Eu nunca gostei daquela lenda idiota — menosprezou.

75
— Lendas não são idiotices — explicou. — Elas são as histórias
de nossos antepassados.
— Deveríamos abandonar o passado e começar a viver o
presente.
Deixou a irmã boquiaberta, pasma com o grau de rebeldia que
demonstrava e deteve o jovem momentos antes dele sair. Ao
revolver-se pode contemplar a face alegre da garota próxima a si.
— Vamos para a aula juntos... Colega? — tentou o animar.
— Vamos sim, amiga — aceitou.
Vendo saírem alegres, os seguiu, observando como caminhavam
radiantes. Após um momento pensou que poderiam possuir o
mesmo problema, portando ignorando sua periculosidade. “Minha
mana tem razão, ele parece ser alguém bom” Pensou aliviada.
Atravessando o portão oeste e virando à esquerda, continuaram
pelo muro até alcançarem o palco montado perto do portão sul.
Enxergaram, a distância, o grupo de alunas disperso, aliviados pela
professora ter se atrasado.
Aproximando-se viu Belatriz vindo em sua direção, imaginando
o que poderia ser dessa vez. Despediu-se das acompanhantes
rapidamente para que não se envolvessem.
— Queria saber o porquê de você não ter nos alertado —
interrogou seriamente.
— Sobre o que? — mostrou-se confuso.
— Sobre o acontecimento de mais cedo — explicou Rynseht.
— Nós somos a guarda, não você — praguejou Tycia.
Até o presente momento supunha tê-las auxiliado, visto que não
era prudente interromper a aula por um mero ruído que lhe
incomodou, além de ter combatido as agressoras quase
inteiramente sozinho. Pacientemente explicou seu ponto de vista.
— Você deve comunicar qualquer acontecimento à guarda —
bradou Bryn.
— Não seja imprudente! — colocou Rafaela.

76
— Ou será que foi planejado? — teorizou Belatriz.
Tal interrogatório o aborrecia sobremaneira, pois fora iniciado
apenas para lhe criticar, o forçando a abaixar a cabeça para se
controlar. Prestes a destruir seus esforços, pode ver, ao erguer a
cabeça, Lucena a tocar o ombro da capitã das carrascas.
— Sua tarefa não é importunar nossos colegas.
— Então ficará do lado dele? — a capitã questionou sem se
mover.
— Claro que sim.
— Então ficará contra nós! — desafiou Tycia.
— Como se me importasse — provocou.
Impressionado admirou como a moça conseguira irritar a
nervosinha do trio em uma frase mais do que suas peripécias
somadas. Prevendo a ofensiva da amiga a líder ordenou que se
retirassem, evitando inútil derramamento de sangue.
— Estou te devendo uma — agradeceu ao vê-la se aproximar.
— Que bom! — sorriu. — Quero que você vá ao meu quarto hoje
à noite... às sete.
— Um convite não conta — lembrou animado.
— Então deixe na minha conta — pronunciou delicadamente.
Sua voz delicada, seu belo sorriso e tal manifesta insinuação
foram o suficiente para que tremesse. Estava tão contente que, se
não fosse pela chegada da professora, titubearia.
Era idosa, cabelos cacheados, curtos e grisalhos, pele branca,
olhos verdes escuros. Se valia de um vestido longo marrom e de
gola alta, com mangas e gola brancas, um colar de prata e sabe-se
lá o que nos pés.
— Sou a professora Vernécia e lecionarei introdução aos
espíritos — anunciou.
Colocando-se atrás das quatro fileiras horizontais que se
formaram, observou Lucena ao lado da amiga, bem à sua frente.

77
Estava completamente alheio às explicações da educadora,
percebendo apenas quando abriu breve sessão de perguntas.
— Por que nossos espíritos têm a forma de animais? —
perguntou uma.
— Boa questão! — exclamou. — A forma que os espíritos se
apresentam evolui ao mesmo passo que o poder de sua portadora.
Revoltado com a explicação pobre se aproximou das colegas
atentas e iniciou silenciosa explicação, capturando suas atenções
prontamente, visando salvar duas ao menos.
— Na verdade os espíritos se mostram como a forma de vida
que mais se adequará aos gostos das companheiras, visando maior
empatia e certo apelo emocional.
— Além disso os espíritos podem alterar sua forma o momento
que desejarem, não possuindo nenhuma relação com a evolução do
usuário — prosseguiu.
Estranharam a informação que transmitia, pois significaria
acreditar em um aluno ao invés da professora, porém acreditavam
em suas palavras por possuírem muito mais lógica, isso sem contar
sua personalidade conhecida.
— Os espíritos são a fonte de nossa mana? — perguntou outra.
— Nossa mana é totalmente nossa — inquiriu. — Os espíritos
apenas facilitam seu fluxo.
— Dessa vez acertou em partes. O potencial de mana é dividido
por ambos, sem contar que, além de facilitar o fluxo, eles regulam
as magias.
— Os espíritos são necessários?
— Ótima questão! — agradeceu. — Para magos poderosos,
espíritos não são úteis.
Sentiu-se envergonhado por estar ouvindo gigantesco absurdo,
imaginando como sua tia a contratou. Percebendo que deveria
explicar o correto descuidou-se ligeiramente.
— Nem preciso comentar o quanto essa resposta está errada.
Sem um espírito um grande mago pode acabar explodindo-se

78
acidentalmente, no pior dos casos. Sem contar que são ótimas
companhias para se refletir.
Nervosa ao notar que o aluno a desmerecia, acreditando-o fazer
pouco da oportunidade de estudar junto à alta classe de magas.
Sentiu-se na incumbência de recordá-lo.
— Você! — disse apontando o dedo. — Suba aqui.
Percebendo que nada poderia fazer para escapar de tal infeliz
situação, colocou-se a caminho, sendo duramente criticado pelos
olhares de que era alvo durante seu trajeto. Não poderia reclamar,
afinal suas amigas alertaram-lhe.
— Petrus, não? — prosseguindo ao perceber uma confirmação
muda. — Imagino que você interrompeu a aula por ter algo mais
importante a dizer. Estou correta?
Durante algum tempo gaguejou perante a intimidadora plateia,
captando focos de discretos risos, porém foi inundado por uma
repentina coragem ao observar a face incentivadora que Lucena
lhe dirigia.
— Queria te advertir sobre seu erro — surpreendeu a todas.
— De qual erro estaríamos falando? — disfarçou sua irritação.
Rapidamente discursou as exatas palavras que havia tratado
com suas amigas, obtendo atenção geral, exceto pela educadora,
que o fuzilava mentalmente a cada palavra que supunha
pronunciar.
— Com qual embasamento teórico sua tese se sustenta? — não
fazia mais questão de esconder sua irritação.
— A teoria nada ensina — afirmou veementemente.
As ouvintes sentiram-se abalarem com tal inesperada e
impetuosa afirmação, principalmente Vernécia que, como boa
acadêmica, tomou suas palavras como grave e imperdoável ofensa.
— Qual o motivo para tal alegação ridícula? — perguntou
indignada.
— Porque aprendi em meus anos de peregrinações que a prática
é muito diferente da teoria.

79
Devido ao alvo de suas palavras nunca ter realizado um mísero
passo fora dos domínios acadêmicos, pode contemplar sua
magnânima expressão cética.
— Então invoque seu espírito e mostre-nos sua prática.
Esquecera de se atentar ao final inevitável que seus atos
levariam, observando sem graça os olhares a si dirigidos
incessantemente. Admitindo as consequências de seus atos ficou
fácil de traçar uma desenvoltura benéfica.
— Vai dar não fessora.
— Por qual motivo?
— Eu não estou acompanhado por um espírito — expos
rapidamente.
O silêncio se fez imperioso em pouco tempo, trazendo de volta
os focos de risos como a desmerecer as explicações anteriores.
Transcorrido breve momento de vergonha sofrida sabia ser
necessária a continuação.
— Mas posso tomar o seu emprestado, caso necessário.
Observaram-lhe completamente pasmas por escandaloso
impropério, o qual demonstrava sua desfaçatez e
desconhecimento. Sua semente foi plantada com sucesso.
— Garoto tolo, está claro que tu não tens a mínima ideia sobre o
que estais falando. É impossível se furtar um espírito.
Sua insistência em humilhá-lo advinha de sua falta de
conhecimento e seu excessivo orgulho, o incentivando a continuar
firme. Sua teimosia lhe gerava fervoroso ódio, porém percebeu que
não era o alvo dos olhares de desdém e zombaria, concluindo que
poderia dar continuidade à situação e deixá-lo se queimar o quanto
quisesse.
— Tudo bem, empresto-lhe meu espírito, mas somente se ele
assim quiser — ironizou.
Gradualmente uma figura se apresentava, revelando seus
contornos graças a luminosidade que produzia. Completamente
estupefatas, puderam presenciar um espírito se materializando na

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forma de um macaco de médio porte com o pelo ralo e todo
marrom, exceto a barriga que possuía um tom de cinza, o qual se
postou ao lado do rapaz.
— Elno! — murmurou confusa.
Inflexível, não aceitou o fenômeno que presenciava lançando
um olhar de ódio para o garoto, que estava, segundo sua visão,
humilhando-a perante as alunas.
— O que você fez para roubar meu espírito, seu farsante inculto
— gritou.
— Somente estou demonstrando como é possível um espírito
trocar de assistido — explicou calmamente. — Serei por ele
auxiliado até onde ele decidir.
— Isso é impossível! — não queria aceitar.
— Isso é algo normal.
— Explique-se logo, patife.
No instante em que a ouviu soube que estava aberta à mudança,
indicando-lhe que suas palavras seriam melhor recebidas por ela
e, consequentemente, pelas alunas.
— Espíritos não são apenas ferramentas. Eles são a pura
manifestação da alma humana e, como tal, possuem raciocínio e
vontade. Eles se ligam aos seus “mestres” por afinidade, assim
possuem desejos e pensamentos similares, assim como, senso de
justiça, princípios, ética e até sentimentos, porém nada os impede
de compartilharem seu poder com outros.
— O fato de espíritos se unirem a determinadas magas é porque
possuem certas expetativas, assim como elas também as possuem,
mas nada os impede que se desconectem por vontade própria ou
“se emprestem” para outras por achá-las em sintonia.
Ao expor tais expressões da verdade pode ouvir um leve
murmúrio interrogativo, sem alvo específico, por parte da
presunçosa professora, o qual sabia exatamente responder.
— Porque ele imaginou ser o melhor para você.

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Compreendendo as palavras a si dirigidas fez um gesto para que
Elno retornasse a seu lado, sendo imediatamente atendida. Vendo-
o desaparecer e se recuperando dirigiu-se às alunas, anunciando o
final da aula.
— Beleza, intervalo antecipado! Que ótimo primeiro dia! —
festejou alegremente o rapaz.

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5. A primeira conquista
Virou retirando-se lentamente pela entrada próxima,
relegando-as a ruminarem as informações que captaram nos
últimos minutos. Seu nome surgiu como um alimento para o
orgulho da educadora, porém serviu para um propósito
completamente diverso.
À medida que acabavam de absorver todos os fatos, acalmando
suas fibras foram debandando. Perdurando no palco utilizou seu
tempo de silêncio para refletir, pois fora intensamente afetada.
Sua intenção era alcançar o grande corredor horizontal para que
pudesse tomar o caminho do portão oeste. Repentinamente se
lembrou de algo importante, por que raios estava dando a volta ao
invés de simplesmente seguir pelo caminho normal?
— Bem, já foi — murmurou para si como um consolo.
Cruzando velozmente se surpreendeu ao ver Joana caminhando
na direção contrária, modificou seu semblante ao perceber que não
conseguiria frear. Jogando o corpo para o lado conseguiu desviar
da colisão iminente.
— Um dia sua pressa lhe causará problemas — esbravejou.
— Foi mal tia.
— O que você faz aqui durante sua aula — sabia que seus
esforços seriam inúteis.
— É que a fessora nos liberou mais cedo — contou alegremente.
— Estranho, isso não é uma atitude do feitio da Vernécia —
surpreendeu-se.
— Mas as pessoas mudam.
— Isso é verdade.

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Sem nada mais a discutir se despediu e partiu, deixando a diretora
a observá-lo correr em alta velocidade. Esboçando leve sorriso voltou
a percorrer seu trajeto original.
— Esse moleque deve sugar energia do ar.
Atravessando o portão enxergou seus irmãos ao lado das belas
silhuetas das amigas que, com certeza, iriam comentar sobre sua
demora. Merecia ser chamado de burro por cruzar metade da
escola em vez de executar alguns poucos passos.
— Demorou irmão — reclamou a menina.
— Será que estava fazendo algo interessante? — provocou o
irmão.
— Não. Ele deu a volta na escola — explicou Lucena.
— Não ousem tirar sarro de mim — avisou em tom divertido.
— E por que faríamos isso? — perguntou a princesa.
Estava contente por ver como os irmãos pareciam tê-las
aceitado facilmente, inclusive com relação à sua anfitriã. Ela
mudou tanto em tão pouco tempo que não mais reconhecia suas
atitudes como condizentes à sua antiga melancolia.
— Vamos! Você precisa conhecer a cidade acadêmica — Lucena
tomou a iniciativa.
Aceitando o convite se postou à sua direita e iniciaram tranquila
caminhada, evitando, naturalmente, o contato visual e físico.
Vendo-os partirem na dianteira, Marina se apressou a colocar-se
no lado disponível do rapaz, intentando permanecer à vista.
Ao transporem o portal vislumbrou o que conhecia como uma
pequena vila, que se dividia, basicamente, em três espaços, sendo
dois deles perfeitamente visíveis devido ao alto nível de
organização: alimentação, vestuário em geral e residencial.
A área de alimentação e vestuário compartilhavam a maior
parte do espaço. Virando à direita, logo após a entrada, podia se
avistar um grande salão de festas, à esquerda, onde seu centro
marcava a linha divisória horizontal das áreas.

84
Por fim observou que o padrão dos comércios de alimentação
era possuírem mesas redondas apenas no exterior e com bancos
largos que comportavam duas pessoas. As residências dos
trabalhadores, além de estalagens para os viajantes, se localizavam
no fundo, por toda a extensão das zonas anteriores.
Cansando de sua timidez resolveu apostar em um novo
movimento e apanhou seu braço delicadamente, forçando-o a
olhar para si e exibir desconcertado sorriso. A amiga, não obstante,
contemplou a cena chocada por tamanha coragem demonstrada.
Marcus e Amira admiravam o desenrolar com bons olhos,
concordando que sua primeira impressão era sempre ruim, porém
sabia como consertar. A fim de não interromper mantiveram certa
distância.
— Diga Petrus, de que tipo de comida você gosta? — Perguntou
se utilizando de acentuado tom amoroso e suave.
— O que é isso Lu? — interferiu imediatamente a amiga.
— Eu irei preparar-lhe um belo jantar hoje à noite. — Manteve
o tom, provocando-a.
Tamanha foi a estupefação da garota que petrificou
instantaneamente, obrigando-os a esperá-la pacientemente. Não
esperava tal informação, por isso, a surpresa, obrigando-se a
decidir sobre seus sentimentos em segundos.
— Você o convidou para seu dormitório à noite?
— Ela entendeu rápido.
— Seria estranho se não entendesse — pontuou.
— Eu nunca teria adivinhado — tornou.
— Mas você é homem né.
Levantou a mão e apontou o dedo indicador para a colega,
franzindo o cenho e abrindo a boca, porém sem emitir som algum.
Após segundos, relaxou e, e balançou discretamente a cabeça,
apertando os lábios em um sorriso e elevando a sobrancelha
direita.

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A conversa dos companheiros lhe rendeu tempo para meditar,
impedindo que tropeçasse nas palavras. Lucena foi sua primeira
amiga, não só na escola, mas desde o fatídico dia e estava contente
por ela, mas sentia algo por si incompreendido.
— Você sabe cozinhar? — não sabia o que dizer.
— Claro que sei! E muito bem — vangloriou-se.
— Que maravilhoso, já faz anos que ninguém cozinha nada para
mim — antegozava.
Girando levemente, a fim de abraçar o braço do rapaz, aproximou-
se de seu ouvido e, com uma baixa voz murmurou “Uma boa mulher
tem que saber cozinhar para seu homem”. Atordoado pela situação
esqueceu de submeter sua resposta à crivo razoável.
— Eu estou acostumado a comer de tudo, não se preocupe.
— Eu não esperava isso — murmurou decepcionada, largando
o braço.
— Desculpe-me, não quis ofender. É que faz tanto tempo que eu
como qualquer coisa, por falta de opções, que até esqueci como é
pedir por algo — tentou arrumar sua gafe, porém acabou citando
algo que não pretendia.
— Como assim “por falta de opção”? — tornou a perguntar sem
realmente entender.
— É que, quando se vive na floresta e lugares mais ermos, não
se pode escolher o cardápio. O que aparecer tem que ser
aproveitado.
— A quanto tempo você vive dessa maneira, sem poder escolher
o que comer? — perguntou carinhosamente Marina.
— Bem... — não sabia o que dizer.
Nesse momento a irmã, calada durante toda a viagem, resolveu
ir ao seu auxílio para, além de resolver a situação, construir uma
imagem mais favorável.
— Nós nascemos sem uma casa, jogados na rua e, desde que me
lembro, nosso irmão sempre fez tudo para cuidar de nós. Como não
desfrutávamos de nenhum bem material, ele era obrigado a caçar

86
enquanto cuidava de duas crianças, então nunca conseguia muita
coisa — utilizou-se de sua mais refinada faceta de criança
abandonada.
Ao ressoar do comentário ambas o abraçaram fortemente,
refletindo sobre a história e imaginando o que tivera de enfrentar
em seu tortuoso passado.
— Vamos tratar disso depois — pretendia impedir o desenrolar
do assunto.
Respeitando sua decisão ambas enxugaram as tenras lágrimas
e, simulando normalidade, tornaram ao estágio anterior onde o
conduziam à sua doçaria preferida.
Era a primeira loja após o portal e a mais próxima ao salão de
festas, se constituindo na mais nobre dentre as dez que ali se
localizavam, segundo o padrão que observara, sendo o mesmo
para a área acima.
Uma casa de madeira com faixas chamativas e um balcão de cada
lado, contendo uma vidraça a lhe proteger do exterior, posicionando
suas variedades em exposição. Grande balcão em posição horizontal
nos fundos guardava a maior parte dos produtos.
— Está bem, farei desse um jantar inesquecível — disse
sorridente.
Postaram-se ao lado da mais afastada mesa presenciando as
crianças avançarem com extrema gana, garantindo o banco virado
para a academia. Observando-os felizes sentiu-se mal por saber
que teria que relembrá-los da realidade.
— Vamos com calma, afinal estamos duros — manteve o sorriso.
— Isso por causa que você quis gastar com aquele seu livro —
murchou, o irmão.
— Não se preocupem, eu irei pagar suas despesas — avisou
rapidamente.
— Ei Lucena, eles vão ficar no meu quarto, então é meu dever
pagar suas despesas.

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As ouvindo, porém, não decodificando suas palavras, pensou
que realmente se tratava de um empréstimo. Em pouco tempo foi
invadido por sentimento de desespero.
— Parem com isso meninas, eu não tenho como recompensá-
las.
— Eu disponho de várias ideias de como nos recompensará —
disse Lucena com um olhar dúbio.
— Eu, por outro lado, nem vou cobrar qualquer compensação
— apressou-se em colocar, mostrando a língua para a amiga.
— Nesse caso princesa, você perdeu — fracassou em esconder
ligeira animação.
— Não quero nem entender — corou levemente.
Finalmente sentaram-se, Marina na diagonal esquerda das
crianças e os pombinhos à sua frente. Curiosa a garota ao seu lado
inquiriu sobre o motivo de ter decidido vir justamente para a
academia Laetus.
— Vamos dizer que, eu precisava passar por tal experiência
para continuar meu caminho — explicou enigmaticamente. —
Aliado a isso esteve o fato de já conhecer a diretora.
Concordaram que a resposta concedida fora emocionante,
porém desprovida de maiores informações, porém, ao verem o
garçom se aproximar com um pequeno cardápio, esqueceram
momentaneamente tais pensamentos.
— Quer dizer que você conhece a diretora? — perguntou a
princesa ao dispensar o homem.
— Claro que conheço a Joana — respondeu sorridente. — E de
longas datas.
— Como você a conheceu? — foi a vez da amiga.
Verificou por seu olhar que se descuidara, revelando algo que
não deveria. Se sentia relaxado pela primeira vez em muito,
entretanto não poderia se dar ao luxo de relegar a frequente vigília
sobre suas palavras.
— Isso já não sei se posso contar.

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— Não vale você não responder minhas perguntas — reclamou.
— Desculpe, mas há fatos que eu não posso revelar por
determinados motivos.
— Não poderemos saber mais sobre você? — insistiu.
Novamente seu semblante lhe indicou que seria pior caso
percebessem que lhes mantinha intencional mistério, optando por
omitir certas informações. Aproveitou-se da chegada do garçom
para realizar breve pausa.
— Claro que sim, contudo com moderação
— Certo — disse pensativa. — Então me diga como você sabe
tanto.
— Se você tivesse que cuidar desses dois iria entender minha
situação — desviou.
— Estou dizendo que você sabe demais para um primeiranista.
Como é possível?
— Aprendi muito nas diversas viagens que fiz.
— Então você é um viajante. Na minha terra eu adorava os
viajantes que lá aportavam com suas bagagens cheias de novidades
— provocou Lucena.
— Minha bagagem tem um espaço reservado para você —
realizou semelhante gesto.
Começou a ficar preocupada com a situação, pois não desejava
continuar presenciando a troca de flertes e não sabia como os
interrompê-los. Antes de perder por completo as esperanças, viu
as gêmeas de sua classe se aproximarem.
— O que vocês querem? — vislumbrou sua oportunidade.
— Sentar-nos com vocês — respondeu Lala.
— Por quê? — tornou a questionar.
— Ele ainda não contou sobre nós? — inquiriu a irmã.
— Ainda não. Estava garantindo minha felicidade — brincou,
causando espanto geral.

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— Sua felicidade não depende de uma mulher só.
Se contivera por tanto tempo para deixar escapar seus
sentimentos devido a banal brincadeira. Sua vergonha foi
superposta por sua irritação consigo mesma, porém restituiu-se
após observar o olhar acolhedor que Petrus lhe endereçava.
Sem paciência, Lola explicou os acontecimentos a que foram
expostas em sua integridade, surpreendendo-as de tal forma que
sequer perceberam o funcionário regressando com seus pedidos.
Ao pedirem por dois pratos sentarem-se.
Continuaram a conversar animadamente até o momento em
que travaram contato visual com as membros da guarda,
alarmando as presentes por saberem que seriam penalizadas.
— Vão embora, depressa! — disse rapidamente aos irmãos.
— Ah droga! — reclamaram.
— Vejam só, esse lugar está sendo frequentado por
desqualificados — comentou a capitã.
— A mesa dos perdedores — continuou Rafaela.
— A princesa do zero, o homem das selvas, as duas espancadas
e a foguinho falho — terminou a terceira.
— Retire o que disse, esquentadinha! — Lucena não deixou
barato para a ofensora.
Haviam se posicionado na costumeira formação triangular,
onde as subordinadas permaneciam atrás dispensando olhares
irônicos. Rafaela, ao ouvi-la retrucar, passou à frente das amigas,
mantendo-se a um palmo da dita cuja, em posição agressiva e
criando fogo em sua mão direita, incentivando a desafiada a imitar
seu gesto.
Se divertia muito com o confronto e não tinha a mínima intenção
de impedi-lo, porém, observando o significativo olhar da princesa,
recuperou-se, realizando leve assopro que produziu uma rajada
forte o suficiente para apagar o fogo gerado por ambas, levando as
três que estavam de frente para si a protegerem os olhos.
— O que você está fazendo seu animal? — surpreendeu a capitã.

90
— Não se preocupe, Bela, estou aqui para apagar o fogo de todas
— sorriu.
Provocou em suas colegas fluidas galhofas, contemplando as
oponentes se contorcerem de raiva, porém, para espanto das
amigas, uma das comparsas ria discretamente.
— Rafaela, o que você está fazendo? — gritou a chefe
exasperada.
— Essa foi muito boa — parou ao percebê-las. — O vento...
Apagar seu fogo... Esquece.
— Não se inflame tanto, Bela — aconselhou, Lucena, ao
conseguir deter seu riso.
— Ou podem causar uma grande explosão — pontuou Petrus,
intensificando a diversão.
Adquirindo controle sobre si percebeu as ocupantes das outras
mesas a se divertir com seu escárnio. Irritada retirou-se a passos
pesados, sendo seguida pelas amigas.
— Espere Bela, por favor! — se levantou.
— O que você quer, seu animal! — parou, contudo sem se virar.
— Eu só quero ficar em paz contigo — disse diretamente.
— Paz? — repetiu incrivelmente surpresa, se reestabelecendo
após girar para o observar — Suas ações traem seu propósito.
— Esqueça tudo que ocorreu entre nós até agora e vamos
recomeçar — pediu.
— Mas como posso esquecer daquelas... Perversões? — corou
levemente.
Não cometera erros consigo, além de impedi-la de consumar
abusos, porém sabia que não o contivera em seu primeiro
encontro. Seu espírito era rijo como o de um guerreiro, mas pode
ter sido o agente de sua piora.
— Eu pedirei desculpas por tudo, mas você tem que entender
meu lado assim como eu entendo o seu — pediu com uma boa dose
de eloquência.

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— Como assim entender seu lado?
— O de que eu acabei cedendo a extintos primitivos. Infelizmente
não estou isento destes erros históricos — expos claramente,
ouvindo em resposta uníssono “É justo”.
— E como saberei que tais palavras são verdadeiras? —
perguntou desconfiada.
— Eu juro. Às vezes farei algumas brincadeirinhas, mas nada
que machuque — ponderou sabiamente.
Ao terminar de expor o que desejava ofereceu-lhe a mão para
selar o acordo, resolvendo um de seus muitos problemas. A jovem,
por sua vez, ainda lutava entre sua vontade de aceitar a proposta e
a ofensa sofrida.
— Nunca! — deu um tapa na mão que lhe era oferecida.
A atitude fora tomada como ofensa por suas amigas, as quais
levantaram-se e tentaram avançar, sendo impedidas por um leve
gesto de sua mão.
— O que posso fazer para que você me perdoe e possamos viver
em paz? — perguntou sinceramente.
— Como assim? — perguntaram as presentes em uníssono.
— Escolha qualquer coisa que deseja de minha pessoa para que
possamos nos entender — tentava outra estratégia.
— Você está louco? — gritaram as amigas.
— Nem um pouco — se sentou.
Comia tranquilamente enquanto observavam-no incrédulas.
Por sua vez pensava com cuidado em uma forma de retratação
suficiente para que se arrependesse de sua atitude, afinal teria que
manter-se em paz devido a sua promessa.
— Um duelo! — vociferou em alto tom.
Surpreendera as alunas que há muito retornaram à privacidade
de suas mesas e o garçom com o repentino anúncio, dirigindo seus
olhares para o desafiado que, calmamente, terminou seu segundo
prato antes de dirigir-lhe a atenção.

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— Tem certeza de que prefere um duelo? Não quer ir junto
dessas duas? Não ligo se assim o desejar — sua audácia fora
tamanha que gerou grande furor por parte da plateia.
— Está insinuando que não sou capaz de vencer por mim
mesma? — perguntou indignada.
— Não é isso. O fato é que estou bem mais acostumado com lutas
e sou homem, o que me faz um alvo duas ou três vezes mais
resistente do que qualquer outra maga que já tenha enfrentado.
Além disso, eu comi essa torta especial — respondeu com um
sorriso, empenhado em dissipar o ar pesado que insistia em pairar.
“Ele está certo sobre isso, mas se eu aceitar três contra um vou
levar a fama de covarde. O que eu faço?” pensava diversas vezes
em um único segundo, ao que foi amparada pelas amigas,
inconscientemente.
— Deixe-nos entrar nessa disputa para chutá-lo — pediu Bryn.
— Isso mesmo, nos deixe esmagá-lo — concordou Rafaela.
Como se estivesse espantada com tais exortações, simulou
repreender as companheiras, trocando olhares com o rival.
Manteve-se em silêncio em sequência, esperançosa de que
aceitasse por si, retirando, assim, sua culpa.
— Viu. Suas amigas também desejam assim — atentou-se. — Eu
desafio você, Belatriz, e suas duas capangas para uma batalha.
A audiência adquiriu notável palidez, não sabendo para quem
direcionar sua atenção. Quão idiota poderia ser o rapaz e em que
momento perceberia o erro que cometera.
— Vamos decidir as regras — adiantou-se a desafiada.
— Vou deixar você decidir tudo. Mas faça isso para agora, por
favor.
Com isso o trio encaminhou-se a resolver toda a burocracia para
que a batalha ocorresse. Calmo pediu ao dono do estabelecimento,
que havia se aproximado para ouvir mais claramente, um último
pedaço de torta para um pobre “condenado”.

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— Se você conseguir sobreviver vou te dar quantas tortas quiser
— ironizou, pegando o prato de sua mão e repassando ao garçom.
— Isso é interessante. Façamos uma aposta. Se eu ganhar
poderei comer aqui quantas vezes quiser, sem custo algum e pelo
resto da minha vida escolar. Se perder serei seu funcionário pelo
mesmo período. Aceita? — propôs seriamente.
— Está falando sério? — não acreditava no que ouvia.
— Mas é claro.
— Ótimo, então pode pegar esse seu último pedaço, cortesia da
Don’s Confeitaria e lembre-se de chegar às sete da manhã para o
início de nossas atividades.
Retornou à loja rindo e cantando vitória, acabando a informar
às espectadoras o que haviam tratado em particular. O silêncio na
mesa foi pleno sendo quebrado pelo garçom que prontamente
trouxe o requisitado.
— Você está maluco! — exasperou Marina. — Agora você está
propondo que não só irá sobreviver à luta contra a temível Belatriz
como irá ganhar?
— Resumiu muito bem Ma — brincou antes de começar a
comer.
— Sei que você é forte, mas ela é a famosa Belatriz — concordou
Lala.
— E tem mais duas com ela que parecem boas — completou
Lola.
— Pelo menos isso é bem ousado — elogiou Lucena.
— Vejam só, vocês não podem ser como a Lu, que vê sempre o
lado bom das coisas?
— Isso não é brincadeira Petrus, você vai lutar contra aquela
mesma mulher que foi treinada pela irmã, uma das melhores do
colégio — ressaltou desesperada.
Largou os talheres sobre o prato e saltou da cadeira
estimulando-as a seguirem-no para a academia. Percebendo que a

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princesa se recusava a prosseguir, Lucena a amparou e, em
segundos, emparelhavam-se ao grupo.
— Está decidido, irei lhes contar meu grande trunfo — anunciou
ao vê-las.
— Então você já havia pensado em uma estratégia? —
perguntou Marina.
— Claro que sim.
— Então nos conte logo — pediram as gêmeas.
— Vejam só minha grande estratégia. Irei me aproveitar do fato
de estarem me subestimando — explicou cheio de si.
— E como isso vai te livrar dessa enrascada — gritou a princesa
furiosa.
— Estando a me subestimar estão, inconscientemente,
esperando que eu não cause nenhum problema. É aí o ponto em
que irei derrubá-las — exemplificou.
— Entendi. — Disse Lucena repentinamente — irá pegá-las
desprevenidas pelo fato de não acreditarem que você é capaz?
— Certo. Para ser mais exato, poderei pegá-las desprevenidas a
qualquer momento que desejar, pois não sabem nada sobre minha
pessoa e minhas habilidades — completou.
— Que demais! — Marina animou-se. — Então há chances de
você vencer.
Ao adentrarem a área da escola visualizaram razoável número
de garotas a encarar-lhes, em especial Petrus, deixando-o
ligeiramente sem graça por angariar tamanha atenção.
— A notícia já deve ter se espalhado — comentou
discretamente.
— Nunca me senti tão observada — tremia Lala.
— Nem eu! — concordaram as colegas em uníssono.
Se perguntava como pôde tamanha multidão se formar em tão
curto espaço de tempo, impressionando-se deveras ao transpor o

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portão. Como era possível todas as alunas estarem ali, afinal os
dois últimos anos estavam em horário de aula?
Ao adentrarem o ginásio pode ver sua algozes próximas à
dimensão mágica. Se tratava de um aparelho simples, porém com
a engenhosidade de Joana, formado por uma mesa de pedra
comum sustentando um grande vidro oval que absorvia a mana
dos participantes e criava uma dimensão paralela onde, por ser
sustentada por esses, os expulsava ao cair de seus níveis de mana
ou se assim o desejassem.
Tal pedaço de vidro reservava uma pequena parcela de mana
das espectadoras para lhes criar uma grande tela de projeção
astral diretamente acima do espelho, a qual permitia que a batalha
fosse presenciada através da projeção de reflexos de seu interior.
— Elas parecem assustadoras — afirmaram as gêmeas.
— Mas é claro! — concordou Marina.
Ao percebê-los parados conversando na porta se irritaram,
gesticulando violentamente para que se apressassem espantando
inclusive Lucena, fato que o levou a repensar o termo “presença
apavorante”.
Ao olhar para o lado se viu assaltado por fugaz sentimento de
satisfação ao descobrir algo que lhe soou ideal. Pedindo para que
as colegas se adiantassem cuidou de resolver o assunto de forma
rápida, afinal não pretendia descobrir o limite da paciência da
capitã.
— Você, venha cá — pediu apontando para a garota que o
ajudara na sala.
— Eu? — questionou instintivamente apontando para si.
— Isso mesmo — confirmou. — Maiara, não é? Quantos estão
apostando em mim?
Inicialmente pensou em negar ou desviar do assunto, porém
havia descoberto sua trama tão facilmente que acreditava não ser
capaz de ludibriá-lo. Dispensou as alunas que consigo
conversavam para prestar-lhe esclarecimentos

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— Você é esperto! — elogiou. — No momento somente três.
— Só isso? — desanimou. — Bem, essas três irão obter uma
bolada bem alta.
— Eu sei disso, pois sou uma dessas três — convenceu-se sem
deixar de elogiá-lo.
— Quero que você acrescente quatro apostadoras nessa lista.
Admirou-o por ir direto ao ponto, afinal julgava ser uma
habilidade essencial para um negociador e, principalmente, para
um homem, fato o qual a animou.
— Quais?
— Marina, Lucena, Lola e Lala.
— O lance mínimo é dez moedas de prata — informou
calmamente.
— Meu deus! A grana vai ser imensa — exclamou surpreso.
— Maior do que você imagina — confirmou com olhos de quem
aguarda por seu lucro.
— Melhor assim.
Encaminhou-se ao ponto de encontro ouvindo vários
murmúrios de que não teria chances. Passando pelas amigas,
reunidas a poucos passos, recebeu o irritado olhar do trio.
— O que estava conversando com a papa grana? — reclamou a
chefe.
— Resolvendo assuntos urgentes — respondeu sorridente.
— Como o horário de seu funeral? — ironizou Bryn.
— Ou o preço de seu túmulo — imitou Rafaela.
Resolvendo que era chegada a hora de colocar seu plano em
ação liberou imperceptível suspiro antes de acionar seu lado
irônico, a fim de rebater as provocações sofridas.
— Vocês duas são boas na hora de falar, mas na hora de fazer...
— O que ele está fazendo? — murmurou a princesa se
mordendo de nervosismo.

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— É claro que ele está as provocando para que percam a cabeça
e o ataquem com tudo — explicou Lucena.
— E isso é bom? — não compreendia.
— É sim, porém é arriscado. O bom é que elas vão se cansar mais
rápido e terão menor precisão — explicou.
— Ele é muito imprudente — comentou Lola, recebendo a
forçosa aprovação da irmã.
As subordinadas se estremeceram de raiva, avançando um
passo antes de se conterem. Com certeza não o deixariam impune
e era exatamente com isso que contava, além de ainda
acreditarem-no incapaz.
— Vamos logo com isso? — perguntou friamente Belatriz,
virando-se para o equipamento.
— Concordo, mas não se esqueça de sua promessa.
Com leve sorriso a chefe da guarda posicionou sua mão
esquerda sobre o espelho. Rapidamente a uma magia se expandiu
até envolver os participantes.
Ao expelir a magia em seu interior, produziu rápido flash, assim
transportando os quatro para a dimensão mágica. Ao término,
presenciaram o reflexo do campo de batalha criado.
— Uou, que lugar maneiro! — admirou Petrus.
O ambiente era simples, se tratando de um amplo campo
circular de terra envolvido completamente por densa e diversa
selva. Gostaria de contemplá-lo com calma, porém era convocado
para a realidade.
— Esse é o lugar onde acabaremos com você — comentou
prazerosamente a chefe.
— Vejo que a tia conseguiu o que queria — olvidou a situação.
— O que você disse? — perguntou Rafaela.
Percebendo que havia se perdido em seus pensamentos e
mencionara o que não devia, desconversou. Quase entregara de
bandeja informação importantíssima.

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— Esqueça.
— Não o escutem, apenas o ataquem — ordenou.
Entreolhando-se e concordando com discreto gesto com a
cabeça, dispararam fazendo suas espadas aparecerem. Atacaram
lateralmente o tronco do adversário ao mesmo tempo, deixando as
espadas lado a lado, aparentando serem de um mesmo atacante.
A plateia ficou boquiaberta ao vislumbrarem tal movimento no
início da batalha, pois significava que acabaria rapidamente. Não
havia chance de reagir ao ataque combinado em um espaço de
tempo tão curto, colocando suas quatro torcedoras a se
contorcerem e rezarem por um milagre.
Com um simples gesto, saltou sobre as atacantes, pousando a
pouco mais de um metro, levando a plateia ao delírio. Notando que
haviam falhado, giraram velozmente, arremessando duas bolas de
fogo que se combinaram.
Estendendo a mão esquerda absorveu a magia facilmente, as
espantando, junto às espectadoras, por se esquecerem de
importante fato, o qual Belatriz jamais olvidou.
— Ótimos ataques em conjunto. Isso fará com que vocês sempre
tenham um resultado bem mais forte do que com um ataque único
— admirou.
Após segundos de extremo silêncio em ambas as dimensões,
decidiram acabar com sua posse de superioridade e correram
cegamente, a fim de aplicar-lhe poderosa estocada.
Vendo-as aproximarem-se se atirou para sua esquerda e, com
poderosa rajada, atirou-as para dentro da floresta. Rapidamente se
recuperou e, com excessiva calma, se voltou contente para seu
último obstáculo.
— Agora estamos a sós.
— Não espere que eu seja tão fácil quanto aquelas duas —
esboçou leve sorriso.
Dito isso, sacou sua lança e realizou rápido pique, atacando
agilmente ambos os lados, quatro vezes seguidas, encerrando com

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forte estocada no centro. Naturalmente desviou-se dos ataques,
realizando leve salto para trás ao final do último.
Não conseguiam acreditar no que presenciavam, pois o homem
havia escapado de uma sequência estendida de golpes com
facilidade. Era certo que não se aproximara de seu potencial,
porém nunca precisara de muito.
— Ele está lutando de igual para igual com a arrogante —
comemoraram as gêmeas.
— Que incrível! — admirou Lucena.
— Ele é mesmo incrível — concordou Marina.
Após se esquivar de mais um ataque de vento a longa distância
e perceber que Belatriz começava a demonstrar mínimas marcas
de cansaço, resolveu que era hora de conversar.
— O seu erro está em seus movimentos rígidos — avisou.
— O que você está dizendo? — perguntou enquanto descansava
discretamente.
— A maga deve estar em sintonia com seu elemento, ou seja,
quanto mais você se assemelhar ao vento, mais poderosos seus
ataques serão — explicou.
— Não seja idiota. Todos os golpes devem ser realizados
perfeitamente e de forma padronizada — repetiu duramente o que
havia aprendido desde tenra idade.
— Você estaria certa se seu elemento fosse terra, mas vento é o
elemento oposto — insistiu.
— Do que você está falando, seu tolo? — gritou exasperada.
-Vento é o elemento da liberdade, da leveza e da criatividade,
portanto deve-se ter tais princípios em mente ao utilizá-lo. Veja só
quão poucas habilidades você consegue utilizar. — Disse
calmamente.
— E está sugerindo que eu as faça de qualquer jeito? —
ironizou-o.

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— Não de qualquer jeito, mas de forma fluída e solta —
percebeu o sorriso sarcástico que lhe era endereçado, decidindo
tomar outro rumo. — Só tente fazer exatamente o oposto do que
você está fazendo.
Por breves instantes permaneceu inflexível, porém desfez a
pose dura, imprimindo-lhe tenra faceta de curiosidade. Será que
suas palavras eram tão absurdas que nem sequer mereciam uma
chance, pesou consigo.
— Apenas pense em qualquer coisa que gostaria que o vento
fizesse e mecha sua mão como se fosse o próprio a fazê-lo —
explicou.
A plateia presenciou, com grande espanto, o momento em que a
orgulhosa garota dissolveu sua arma e fechou os olhos. Sentiu sua
aura pulsar e mentalizou a forma de uma lança simples, movendo
sua mão, como se tateasse a arma real.
Empunhou-a como se carregasse para arremessá-la e, ao abrir
de seus olhos, efetivou a ação com enorme força, a fazendo
descrever uma linha reta até seu alvo, acertando-o na bochecha de
raspão, acarretando fina lasca de mana jorrar ao contato.
— Parabéns, você conseguiu um ataque realmente poderoso
logo na primeira tentativa — parabenizou com contido clamor e
leve aplauso.
Ao observar seu gesto e ferimento compreendeu que havia
excedido seus limites, se felicitando. A plateia, como há muito,
externava grande admiração e perplexidade.
Extasiada imaginou o que mais conseguia fazer, começando a
mover a mão rapidamente para diversos lados, gerando várias
lâminas de vento. Apesar de algumas falharem as que foram
conjuradas o renderam certo trabalho para se esquivar.
Devido à alta quantidade de magias lançadas em curto espaço
de tempo, caiu exausta. Aproximando-se, estendeu a mão para
ajudá-la no exato momento em que suas companheiras surgiam
pela mata.

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Ao testemunharem o gesto se apressaram em apoiá-la, porém
observaram-na aceitar sua oferta, decretando, perante a imensa
plateia, o fim da batalha.
— Aceito sua vitória — disse finalmente.
Apertando as mãos, ambos começaram a sorrir, contaminando
as companheiras dentro e fora da dimensão, antecedendo o início
do mesmo processo que acontecera para a entrada.
Ao voltarem suas torcedoras o rodearam, abarrotando-o com
congratulações, além de cumprimentarem as adversarias. Mais
tranquilo se abeirou de Maiara.
— Não pude lhe agradecer por ajudar a quebrar o clima na
primeira aula — sorriu.
— Nem precisa, acabou de me recompensar — demonstrou-se
eufórica. — Obrigado por me fazer ganhar muito dinheiro.
Graças à sua espontaneidade gerou semelhantes sentimentos
em todas, pois nunca imaginaram que a colega seria tão ruim com
contato humano. Petrus não sabia o que pensar sobre, por isso
simplesmente a ignorou.
— Vamos para a próxima aula? — desviou.
— Claro! — aceitaram prontamente.

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6. Surpresas e provocações
Acercando-se da mesma sala em que tiveram aula com a Dias
perceberam serem os últimos, afinal a batalha havia dispendido
muito tempo. Antes de entrarem procuraram a professora
temerosos.
Era Jean, lecionando técnicas de suporte. Branca, de olhos
castanho escuros e cabelo liso, ondulado e azul marinho, devido à
sua afinidade com a água.
Trajava um curto vestido azul escuro, que não cobria quase
nada de seus um metro e setenta de altura e um par de sandálias
azuis celeste. O generoso decote ressaltava seus seios, apesar de
serem pequenos.
— Queria saber o porquê de estarem tão atrasadas —
pressentiu-os sondarem-na.
— Perdoe nossa falta, preceptora. Isso não se repetirá —
lamentou-se Belatriz pelo grupo.
Cumprindo seu dever de autoridade e de amaciar seu ego
sentiu-se satisfeita, permitindo que adentrassem seu domínio.
Observando-as entrarem calmamente surpreendeu-se pelo último
membro, cuidando de reforçar sua autoridade.
— Permitirei por ser o primeiro dia e por, obviamente, não
estarem acostumadas com a realidade, porém que fique claro,
incompetências não serão aturadas.
Aceitando a bronca simplesmente abaixaram a cabeça e
dirigiram-se aos assentos disponíveis, não antes da princesa tocar
no ombro de Lucena, impedindo-a de retrucar.
— Quero ter uma palavrinha com você, meu caro — o impediu
de prosseguir.

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A repentina convocação surpreendeu as companheiras, porém,
considerando que ninguém mais partilhava de suas preocupações,
prosseguiram em seu trajeto.
Ao vê-lo acercar-se tocou suavemente seu ombro e conduziu-o
para perto da parede, a fim de que as alunas não os ouvissem e nem
lessem seus lábios.
— Eu estive observando suas habilidades Petrus — admitiu
uma pose mais “feminina”.
Ficou pasmo com sua instantânea transformação tanto quanto
o fato de interromper a aula para tratar sobre um assunto sem a
menor urgência e que estava longe de o compreender.
— Se você sabe ser amável, por que fingiu prepotência? —
aproveitou o silêncio da dama.
— Ahm! Que fofo, dizer que me ama assim tão diretamente —
simulou extrema fofura.
Agora estava certo de sua própria incompreensão. Por mais que
tentasse não assimilava o motivo de sua conduta, demonstrando à
interlocutora tal posição.
— Vou ser direta com você. Já obtive muito reconhecimento e
possuo grande fama pelo mundo, principalmente na capital, porém
me falta casar com um homem tão forte e gentil quanto eu.
Acredito que seja perfeito para a tarefa — imprimiu ar romântico.
Os dizeres foram sucedidos do transporte de sua mão do ombro
para seu peito, roçando-lhe carinhosamente enquanto se curvava
levemente. Emoções maiores lhe fizeram esquecer completamente
os absurdos dizeres e se concentrar em outros assuntos.
— Vejo que a senhorita possui excelentíssimos atributos, mas
eu ainda sou muito jovem para casar — disse sem pestanejar.
— Entendo! — esboçou largo sorriso — Você quer passar
primeiro o período de diversões?
— Aqui não Jean — desesperou-se.
Inconformada com o fato do jovem não se encontrar tomado por
seus encantos, zangou-se, adquirindo novamente sua postura

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ereta. Feito isso notou o que deixara passar, incentivando-a a
provocá-lo uma vez mais.
— Vamos guardar o champanhe para depois então. Não sejamos
tão apressados — sussurrou em seus ouvidos.
Ao ser dispensado, respirou profundamente três vezes
seguidas, antes de se retirar para sua cadeira em caminhada
rápida, trançando as pernas. A professora gargalhava em
pensamentos, tornando impossível a tarefa de recuperar-se antes
de encarar as alunas.
Lucena reparou no sorrisinho final da educadora, além dos
passos desengonçados de Petrus, descobriu o que acontecera,
enfurecendo-se deveras, acabando por alertar a parceira.
Sem nada entender, mesmo após apreciar as contidas
reclamações, Marina questionou mais afundo, decepcionando-se
ao compreender. Sentia-se traída por algum motivo.
Durante o resto da aula, a professora lhe dirigiu olhares e
discretas menções, porém percebeu que o jovem tentava negar o
fato de ter sua atenção furtada por suas investidas, irritando-a.
Como tinha coragem de rejeitar-lhe?
— Estou queimando de calor — decidiu executar a última
cartada antes do final da aula.
Conjurou fino esguicho de água por dentro de sua roupa,
afetando pontos menos picantes e avançando gradualmente. O fato
das alunas não se importarem tanto com o vestido tornando-se
transparente demonstrou-lhe que a atitude não era tida como tão
incomum, embora suas amigas não se sentissem tão confortáveis.
Assisti-la realçando sua anatomia feminina sem demonstrar
nenhum tipo de reação mostrava-se uma tarefa impossível, vendo-
se no limiar de descontrolar-se novamente. Igualmente inquieta a
princesa olhou acima dos ombros para conferi-lo.
Percebendo seus olhos esbugalhados e sua perna inquieta foi
assaltada por completo branco na mente e, antes que percebesse o
que realizava, levantou repentinamente gritando uma enfática
interjeição; “pare”.

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Seu grito assustou as colegas, as quais intentaram lhe encarar,
porém uma segunda interjeição salvou-a. Encontraram Jean a
admirar estupefata cacos de gelo espalhados, provindos de um
bloco que se formara acima de si e por pouco não a acertou.
Com os olhos faiscantes fixou a plateia, procurando atônita pela
culpada. Ao vislumbrar seu largo sorriso, Petrus soube que teria de
focalizar os olhares para si, aproveitando de sua posição para pedir
sumária absolvição.
— Nossa! Como isso foi acontecer? — levantou-se
abruptamente.
Olhando com desgosto para a situação, olvidou a ideia de tomar
providências em relação ao ataque sofrido. Rapidamente traçou
uma estratégia para penalizá-la sem, contudo, posicionar-se contra
a vontade de seu escolhido.
— Liberadas.
Marina, que nada havia percebido, preparou-se para sair
correndo, porém, a colega segurou seu braço, compelindo-a a
sentar em silêncio. Ao fazê-lo a questionou da necessidade de tal
atitude, aguardando pacientemente ao não obter uma resposta.
Ao final restaram apenas o grupo de amigos e a professora irada.
Percebendo que estavam só, Petrus se levantou e, com um gesto,
convidou a princesa a descer consigo, sendo seguidos de perto
pelas demais.
— Quero saber qual será a sua desculpa? — questionou ao
alcançarem o último degrau.
— Mas eu não consigo conjurar magias — explicou cabisbaixa.
— Não adianta menina, você não pode me enganar — urrou.
Não sabia o que fazer ou dizer. Achava-se deveras nervosa,
buscando desesperada por qualquer auxílio. Tocando levemente
em seu ombro, Petrus balançava a cabeça.
— Existe uma espécie de linha que marca o trajeto das magias.
E a linha que sai desse gelo vai diretamente para você — apontava
para a cena do crime.

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Nem desconfiavam que tal recurso existia, estampando em suas
faces um misto de surpresa com dúvida, adicionando uma dose de
pavor à acusada. Estava claro que seria entregue e punida.
— Entregue-se logo! — ordenou sem paciência.
— Eu não sei o que dizer — não acreditava no ocorrido.
— Mas eu sei! — afirmou o rapaz — Isso foi um acidente.
— Eu não creio em acidentes — informou contrafeita.
— Por favor, Jean, seja compreensiva — pediu.
Manteve-se por pouco mais transmitindo sua zanga,
amplificando os sentimentos dos envolvidos, alterando para um
semblante de afeto e consideração ao sentir-se satisfeita com a
penitência da garota.
— Tudo bem, mas só porque é você.
Sentindo que deveria se desculpar, apesar de não ter
compreendido o que fizera, deixou seu orgulho de lado e mirou
firme a vítima. A situação caminhava como pretendido, vendo-se
em posição privilegiada para o golpe final.
— Desculpe-me professora Jean.
— Não quero e nem preciso de nada que venha de você — disse
com o tom mais frio e assassino que encontrou.
Ao receber a dura recusa abandonou a sala ligeira. Viu as amigas
se adiantarem ao ser impedido de segui-la, pois foi abordado por
Jean a lhe murmurar: “Espero te encontrar na sala das professoras
mais tarde”.
Se preocupou com o convite, porém se retirou ao lembrar que
um problema mais complexo exigia sua atenção. Ao descer as
escadas viu as amigas o aguardando.
— Agora você vai me explicar isso de linha que marca o trajeto
da magia — ordenou Marina, furiosa.
— Eu também estou curiosa para saber — concordou Lucena.
— Já ouvi algo sobre, mas não tenho certeza — informou
Belatriz.

107
Rapidamente pensou na melhor maneira de explicar-lhes,
sendo impedido por estar preocupado com o que teria de fazer em
breve. Sentindo-se pressionado falou da forma mais simples que
conhecia.
— Para lançar magias é necessário gastar certa quantidade de
mana. Essa mana permanece por certo tempo no ambiente até ser
sugada de volta pelo planeta e isso é o que chamam de trajetória
do disparo.
— Então a mana pode ser vista antes de ser absorvida pelo
planeta? — a princesa quis confirmar.
— Exato. Pode ser vista e/ou sentida.
— Então por que nós não conseguimos ver a mana? — inquiriu
Bryn.
— Porque são muito fracas! — disse como se fosse algo óbvio.
Queria matá-lo por não lhe responder adequadamente, então,
ao cerrar seu punho e carregá-lo, avançou em sua direção para
acertá-lo, porém foi impedida pela chefe, a qual perguntou
convicta.
— Quão forte precisamos ser para poder ver ou sentir a mana?
— Isso varia muito de pessoa para pessoa, mas posso dizer que
você já deveria conseguir.
Discutiam animadamente antes de serem brutalmente
interrompidos pela companheira. Mesmo com a interessante
informação, ainda não descobrira a resposta que procurava.
— E como consegui conjurar uma magia? — perguntou
impaciente.
— É mesmo, pensamos que ela era inútil — deixou escapar
Rafaela, pedindo perdão ao perceber o deslize.
Pressentindo que chegara o momento encostou suas costas na
parede e fechou os olhos, como se quisesse refletir. Após razoável
tempo em silêncio, estranharam seu mutismo.
— Você me ouviu Petrus? — perguntou carinhosamente.

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— Pare de me importunar, sua menina chata. Livrei sua cara e
ainda está a me importunar. Deveria ser como a Jean, que faz um
favor mesmo crendo o contrário — respondeu em tom
assustadoramente rude e frio.
Paralisaram com sua atitude inesperada e incompreensível,
demorando um pouco para acreditarem em sua atuação, fosse pelo
tom estrondoso ou pelas palavras ácidas.
Ao notar que manteve a postura, Marina aceitou o que disse
como verdade e postou-se de joelhos. No mesmo instante em que
enfiou as mãos em sua face e começou a derramar lágrimas, vários
cristais de gelo se formaram no ar e começaram a cair como chuva.
No início os cristais se desmanchavam onde tocavam, se
assemelhando ao leve toque da neve, porém aumentavam a dor do
impacto e sua quantidade à medida que a garota continuava a
chorar, tornando-se verdadeiras estalactites.
Chorava como se seu mundo tivesse desmoronado. Havia sido o
primeiro a entendê-la e respeitá-la, mesmo não conseguindo usar
magia, e agora tudo havia se esvaído.
Juntamente com Lucena, se constituía em importante amigo,
sem contar que ela só passou a agir de forma tão vivaz a poucos
dias. Conseguira alterar seu mundo em dois dias, inclusive a
integrou a um grupo.
Ao sentir um toque caloroso em seus ombros adivinhou a quem
pertencia, tentando se acalmar, fato que fez coincidiu com o cessar
da chuva de cristais. Suas amigas ficaram aliviadas por não mais
ter que desviar dos projéteis.
A sensação era reconfortante, causando o desaparecimento de
suas lágrimas sem necessitar de explicações. Se apoiou na mão
oferecida e ergueu-se delicadamente, buscando uma resposta nos
olhos do rapaz.
— Desculpe Marina, eu não estava falando sério. Só queria
comprovar algo, então tive que fazer você se entristecer.
Ouvindo suas palavras, quase retornou ao pranto por
experimentar alta dose de alívio, percebendo que seus temores se

109
mostraram infundados. Demonstrando força e maturidade acenou
com a cabeça que o perdoara.
— Vamos que a aula já está começando — lembrou Belatriz.
O lembrete servira seu propósito, colocando-os em marcha
acelerada rumo à última sala ao sul, ao lado do banheiro. Durante
o trajeto tratou de elucidar sua intenção com o teatro.
— A mana é muito influenciada pelos sentimentos de seu
usuário, por isso ela pode ser liberada em um momento em que o
seu sentimental for abalado. No caso, a sua magia foi liberada
devido a sua antipatia com a professora, por isso citei o nome dela.
As observadoras trocaram olhares entre si, que variavam entre
a malícia e a diversão, em seguida observando ambos e pensando
consigo se estava a ironizar ou era idiota mesmo.
— Então sua brilhante dedução é que ela é antipática? — Lucena
ironizou.
— Que idiota! — comentaram entre si as gêmeas.
— Você se perguntou por que ela não gosta da professora? —
foi a vez de Tycia ironizar.
— Que isso meninas, ele está certo. Eu não fui mesmo com a cara
dela — gaguejou.
Observou-as confuso, tentando compreender por que o
criticavam, respondendo assim à questão inicial. Mais preocupada
com a informação do que com a brincadeira, Belatriz cortou o clima
para capcioso inquérito.
— Mas como ela pode liberar aquela magia se eu sequer a vi
mexer a mão?
— É possível conjurar magias apenas com o pensamento, mas é
algo extremamente complicado e só pode ser feito por magas
muito poderosas — enfatizou a última palavra.
— Você diz sem mover o corpo? — questionou Bryn.
— E nem falar as palavras mágicas? — questionou Rynseht.

110
— O motivo é pelo fato de que a mana é mais facilmente liberada
pelos polos corporais, ou seja, pelas mãos, enquanto, gritar certas
palavras antes da magia ser liberada, auxilia na concentração,
porém é uma técnica meramente psicológica.
O que dizia era algo tão básico e presumível e que, mesmo assim,
não conheciam, que ficaram maravilhadas. Apesar de necessitarem
de tempo para reverem os conceitos intrínsecos desde tenra idade
a capitã da guarda os devorava vorazmente.
— O quão poderosas?
— Em questão a mexer o corpo, milhares de vezes mais do que
é necessário para ver um simples rastro de mana. Agora, para
deixar de gritar a magia, é necessário apenas treino.
Ficaram impressionadas por ligarem os fatos e deduzir o óbvio.
Poderiam ter acabado de descobrir, além de boas referências para
suas respectivas evoluções, o real potencial da princesa do zero?
— O que isso significa? — perguntou a princesa, negando a
realidade.
— Significa que você é uma maga poderosa — concluiu.
Belatriz e suas subordinadas riram levemente por terem ouvido
algo que a pouco seria ridículo. Reconhecendo o ato falho se
desculparam, porém já havia encolhido, não tanto pela reação das
colegas, mas, principalmente, por sua ausente autoconfiança.
— Eu agradeço que você queira me animar, mas pare com isso,
dói me lembrar que sou uma das únicas nessa idade que ainda não
sabe usar a magia — pediu cabisbaixa.
Ficou comovido com a atitude submissa e desesperançada, no
entanto não seria necessária se agraciada fosse com um
aconselhamento descente e firme. Apanhando seu queixo delicado,
forçou-lhe a levantar a cabeça.
— Você tem muito mais potencial do que imagina — afirmou,
olhando em seus olhos.
— É verdade? — perguntou, o fitando timidamente.
— O que eu ganharia mentindo para você?

111
Suas palavras finalmente haviam quebrado suas defesas, graças
a confiança que dispensava por onde passava. O desafio agora era
a compelir a recuperar seu atraso sem que desistisse novamente.
— Mas como? — ansiava por respostas.
— Isso irei ajudar-lhe a descobrir. Prometo!
— Mas como você pode saber de algo assim? — questionou a
capitã.
— Pode-se perceber o potencial das pessoas muito através do
contato físico.
Terminou a frase um segundo antes de verem a professora.
Tinha a pele lisa e exageradamente branca, chegando a quase se
tornar transparente, cabelo loiro claríssimo, liso e mediano e olhos
azuis.
Trajava um vestido azul que quase cobria seus um metro e
sessenta e sandálias bege. Utilizava duas pulseiras em cada braço,
trabalhadas em madeira.
Era Carla, que iria palestrar, pelos próximos meses, sobre a
mana, assunto tratado pelo grupo, causando concordata geral de
que sua aula seria proveitosa.
— Ahhh, meus olhos — brincou em voz baixa.
— Muito engraçadinho, como me fora advertido — o ouviu.
— Vejo que o sistema de informações é muito bom por aqui.
Dirigiram-se calmamente aos seus lugares costumeiros, a
irritando sobremaneira. Apenas não foram punidos graças ao
tratamento honroso prestado pelas membros da guarda.
— Muito bem alunos, alguém aqui consegue enxergar a mana?
— iniciou.
As ouvintes mantiveram-se em completo silêncio e olhares de
espanto se fizeram presentes. Podia-se constatar, pela expressão
da mestra, que a reação era esperada, tendo em vista sua vasta
experiência com turmas anteriores.

112
Marina, observando a abstenção de seu colega, levantou a mão,
a fim de obter fala para que revelasse seu conhecimento.
Percebendo o movimento se desesperou.
— Pare com isso — sussurrou Petrus.
Tomando-lhe o braço o forçou para baixo rapidamente, porém
não o suficiente para que os olhos treinados da educadora
deixassem de captar o gesto.
— Por quê? — dirigiu-lhe confuso olhar.
— Depois eu conto, invente qualquer coisa.
Sua demora começou a irritar a professora e divertir as demais
alunas que assistiam atentas. Rapidamente balbuciou quaisquer
palavras para dar prosseguimento.
— Não é que eu consiga ver a mana, mas eu sei sobre isso.
— Interessante! — não colocou fé. — O que você sabe?
— Toda a magia que é conjurada é feita através da liberação da
mana que nós temos. Essa mana liberada fica por um tempo no
ambiente antes de ser absorvida pelo planeta.
— Impressionante! — Elogiou — Você é a primeira em anos a
responder essa pergunta.
— Obrigada! — agradeceu meio sem jeito.
— Vejo que você tem muito potencial garota — complementou
antes de voltar à aula.
— Desculpe discordar de você professora, mas nunca que a
princesa do zero teria potencial para algo — zombou uma aluna
sentada em sua diagonal direita.
Bastou sua fala para as gargalhadas se instaurarem, levando a
atacada a ficar cabisbaixa e envergonhada, enquanto a garota
chamava aplausos para si.
Obviamente não poderia deixar a situação impune, ainda mais
se tratando do apreço que nutria pela afetada. Disfarçadamente
criou pequena agulha de gelo e a atirou na orelha da ofensora, a
qual realizou enorme grito de surpresa ao sentir o impacto.

113
— Gelo! — exclamou ao levar a mão ao ouvido, enfurecendo-se.
— Foi você, não foi?
— Como poderia ter sido se você acabou de dizer que ela não
era capaz de nada? — interveio o autor do disparo, com gosto.
As estudantes esqueceram do acontecimento anterior e
puseram-se a galhofar da agressora, inclusive a própria educadora.
Não conseguiria descrever o ódio que sentia.
— Incrível, ele conseguiu cercá-la apenas com uma frase —
admirou Belatriz.
Após amaldiçoá-lo infinitas vezes, sentou-se rapidamente,
fazendo questão de não encarar nenhum dos olhares que lhe eram
endereçados. No final a professora apenas continuou a aula sem
nada comentar.

Terminando o período, não perderam tempo e dirigiram-se à


saída oeste, encontrando ali, encostada na parede do ginásio, em
frente ao portão, a agressora que deixara a sala pouco antes de
serem liberados.
— Alto! Ela pretende agir a respeito do acontecido — alertou a
capitã tomando a dianteira.
— E até quando você espera que nos escondamos? — perguntou
secamente.
Percebendo que havia sido rude, parou e a dirigiu olhar
significativo, acenando com a mão para que continuassem a
caminhada e cuidando de logo complementar.
— Desculpe Bela, mas fugir dos problemas não faz meu estilo.
— Eu deveria saber bem disso — lembrou de quando aceitara o
duelo.
— Finalmente vocês chegaram — observou impaciente.

114
Virou-se e colocou-se em posição nada amigável ao observá-los
aproximando. Não se preocupava com a guarda, a própria vítima
ou as amigas, seu único objetivo era disciplinar seu carrasco.
— Não tínhamos outro compromisso, além de assistir à aula.
— Eu vou acabar com você seu intrometido — avançou nervosa.
— Não são permitidas brigas em todo o campus — informou
enfaticamente Belatriz.
— Mas duelos são permitidos não são? — o desafiou de
antemão.
— São sim, mas apenas se o desafiado concordar — informou
calmamente Petrus.
Transmitiu as mais variadas informações através de seu
semblante, desde seu ódio e frustação por não conseguir o que
desejava até um estranho alívio por não ter de deixar sua zona de
conforto.
— E você não vai aceitar? Covarde! — provocou.
— Claro que não, pois de nada isso resolveria — explicou o
motivo de sua recusa. — Mas eu aceito oferecer minha amizade
— E por que eu iria querer isso? — ironizou.
— Porque é disso que você precisa. De afeto — manteve a calma.
— Do que você está falando? — questionou contrariada.
— Não tenha vergonha, todos temos necessidade de afeto —
demonstrou humildade.
Por um instante manteve-se em silêncio, pensando que havia a
convencido a, ao menos, deixá-los em paz, porém tornou a
resmungar impropérios, demonstrando sua rigidez.
— Eu só preciso acabar com você — afirmou.
— Pense bem, se você estiver do meu lado eu a protegerei,
porém, se você não estiver...
— E quem precisa de sua ajuda? — grasnou após muito hesitar.
— Ótimo, então até mais.

115
Simplesmente virou de costas e partiu, sendo prontamente
seguido. Imediatamente a garota avançou intentando resolver a
situação a força, limpando assim sua honra.
— Pode parar, nós vamos nos acertar aqui e agora — rugiu.
— Se você insiste — falou com evidente desanimo.
Levantando o dedo e o movendo rapidamente, como se lançasse
uma negativa, desenhou um quadrado no ar, aproveitando do fato
de se encontrarem a sós.
A centímetros de o tocar eis que foi interrompida por colidir
com uma parede invisível. Prendera-a dentro de uma gaiola de
ventos especiais, impedindo-a de andar e conjurar magias,
permanecendo a gritar para o ar como se fosse uma louca.
Ao passar pelo portal da cidade realizou leve estalar de dedos,
levando-as a questionarem o porquê do gesto inesperado.
Tranquilamente respondeu que cancelara sua magia, pois
esperava que desistisse de persegui-los.
Sequer terminou sua frase quando escutou o grito da citada,
suspirando intimamente. Pensando em uma brilhante ideia para
acabar com tal chateação, instruiu as amigas a seguirem em frente.
Claro que não conseguiram se manter indiferentes, virando a
tempo de vê-lo alcançá-la em milésimos, na divisa da escola,
aplicando-lhe forte soco no estômago. Boquiabertas admiraram-na
voar alguns metros, pousando com violência próxima aos bancos.
Conseguindo se recuperar do impacto recebido, o viu
caminhando em sua direção com intencional marcha lenta,
juntando cristais de gelo em ambas as mãos com o tempo.
Levantou-se rapidamente e se preparou para lançar um ataque,
porém sentiu-se paralisada. Ao conferir enxergou uma grosa
camada de gelo envolvendo seus pés.
Nervosa voltou-se para seu adversário a tempo de avistar os
cristais dispararem em sua direção, como se vida própria
possuíssem, acarretando que erguesse uma parede de pedra para
se defender. Atônita percebeu como desviam de sua muralha e
acertavam suas mãos e braços, atirando-a de volta ao chão.

116
Deitada e debilitada restou-lhe assistir sua chegada,
desesperando-se ao presenciá-lo agachar ao seu lado e pousar o
dedo entre seus seios. Seu olhar assassino, aliado à sua íris preta e
pupila vermelha, deram um contorno especial ao pavor
transmitido.
— Se você fizer algum mal para qualquer uma delas irei te fazer
desejar a morte — afirmou com voz extremamente grave.
Entretidas com o espetáculo, não comentaram nenhum de seus
movimentos, apenas se deliciando com a desgraça da garota.
Presumindo que o confronto houvesse findado, Belatriz lembrou
de algo importante.
— Vamos? — esticou lateralmente ambas as mãos
— Para onde? — questionou.
— Sair antes que ele se vire, né Lu — explicou à amiga.
— Não penso ser necessário — reafirmou sua postura.
— Quem disse que me importo com o que você acha? — colocou
a capitã.
No primeiro momento se ofendera com tamanha ofensa, porém
compreendeu o senso de urgência da amiga e, juntamente com as
demais, segurou no braço oferecido. Sem demoras utilizou o
impulso do vento em seus pés para avançar quase
instantaneamente.
Sentindo que atingira o limite da irritante perseguidora virou e
partiu em rápida corrida, abandonando-a colada ao chão em um
terror incontrolável. O gelo derreteria em minutos, entretanto sua
sanidade demoraria pouco mais para ser recuperada.

— Vocês não acham que temos que comer algo diferente de


bolos? De preferência salgado? — questionou aproximando-se da
mesa.
— Isso é algo do mais alto refino, meu caro — exclamou a capitã.

117
— Maldita questão social.
— Não reclame que já fiz seu pedido — informou alegremente
Lucena.
Intentava agradecer ou talvez dar prosseguimento à
brincadeira, inclusive abrindo a boca, porém algo o fez fechá-la tão
rápido quanto arregalou os olhos. Instantes depois colocou a mão
no coração e curvou-se na mesa como se forte objeto o acertasse.
Assombraram-se com a cena, cobrindo-o de atenções, mas não
antes de liberarem algumas exclamações de pânico. Ao
contemplarem sua mão levantando, pararam e repararam estarem
a atrair demasiados olhares.
Após alguns segundos, e longo suspiro, retomou sua posição,
aparentemente recuperado. Percebeu que o observavam
atentamente com facetas de extrema preocupação.
— Foi só fome. Não se preocupem.
— Isso não pareceu só fome — afirmaram em conjunto.
— Pode deixar que é só fome — agradecia intimamente pelo
aparecimento do garçom.
Não acreditando em suas negações, as amigas continuaram a
conversar normalmente, perdoando sua mentira por tê-las
ajudado sempre que precisaram, porém também não conseguiram
o enganar.
Permaneceram o observando cuidadosamente por muito até
que, não aguentando mais, se delataram, levantando várias
questões. Esquivara-se como nunca, preocupando-as
exponencialmente.
Enquanto a aula de controle mágico, com a professora Tina, não
se iniciava, procurou manter certa distância das companheiras.
Naturalmente a aula fora um tédio, dispendendo a maior parte
do tempo tentando segurar a causa de suas pulsações dolorosas.
Ao saber qual era a próxima, animou-se subitamente.

118
— Muito bem bando de menininhas frouxas, vamos deixar as
coisas claras — rosnava. — Essa aula é para se mexer e, se não
fizerem isso, vou ter o maior prazer de prendê-las por mais tempo
do que o necessário.
Quem gritava era o professor Vampeto, um homem de físico
muito desenvolvido e um sorriso sempre presente em sua face.
Moreno escuro, cabelo preto, crespo e curto, olhos cinza e um
metro e noventa e cinco centímetros.
Trajava uma simples camisa branca e bermuda marrom que,
mesmo com seus largos ombros, peitoral e pernas, ainda
mantinham certa folga. Complementando o conjunto, usava um par
de botas de couro.
A sua frente foram formadas oito fileiras, cada uma com cinco
alunas. Petrus se encontrava na última posição da oitava fileira,
tendo a princesa a seu lado. A frente Lucena e a capitã faziam-se
presentes, estando suas subordinadas e as gêmeas ao lado.
— Ahh, como estou adorando isso. Educação Física, deve ser a
melhor disciplina de todas — exclamou Petrus totalmente aliviado.
— Só se for para você — discordou a princesa.
— Não seja molenga! — ordenou Belatriz
— Pois é Ma, pelo menos podemos colocar uma roupa que
valorize mais nosso corpo — ponderou Lucena.
As primeiranistas utilizavam um collant de manga curta e uma
bermuda. As que sentissem frio, tinham a opção de incrementar as
peças com mais tecido.
— E como valoriza! — enfatizou.
Antes que pudessem começar a reclamar dos olhos gordos que
lhe eram endereçados, o professor iniciava mais uma frase de
advertência sendo levemente mais ríspido e irônico do que
anteriormente.

119
— Se alguma de vocês for burra o suficiente para pedir para os
seus pais virem reclamar, saibam que quem fizer isso vai ter o peso
dessa aula dobrado.
Tencionando inspecionar suas novas presas de relance iniciou
lenta caminhada à frente dos grupos, cessando seu movimento ao
enxergar o jovem. Apontando para ele e gesticulando com o dedo
o compeliu a se apresentar diante de si.
— Então é você o homem que virou mago? — questionou o
analisando.
— Ainda não sou nada — desconversou.
Precisou apenas dessa resposta para examiná-lo. Seu jeito
fugidio demonstrou certa humildade, aliado ao seu porte
respeitoso, remontou a si a boa e velha academia militar,
imprimindo-lhe um sorriso tosco.
— Finalmente mais um homem para colocar jeito nessas
riquinhas.
— Prometo que farei todas se tornarem mulheres — brincou,
retribuindo o sorriso.
— Você tem muita sorte garoto, está vivendo o sonho de todo
bom varão. Tive que encarar suor de macho por anos para só
depois procurar a diversão pelas ruas da cidade — relatou sem
delongas.
Por um tempo permaneceu em silêncio, olhar profundo e mente
distante, recordando-se de sua tenra juventude. Acordando e
percebendo o acontecido tossiu duas vezes.
— Vamos começar! — declarou meio sem jeito.
Repentinamente reparou algo que, pessoalmente, não imputava
a mínima importância, porém, como era exigência da academia,
deveria prestar a fazê-lo.
— Desculpe-me camarada, mas terei que pedir para que você
coloque seu uniforme de educação física.
— É que eu não tenho — disse simplesmente.

120
— Então tire sua camisa e aproveite a vantagem de ser homem
— se entusiasmou.
Por razoável período demostrou no olhar grande preocupação,
agradecendo por apenas o professor poder vê-lo. Percebendo que
logo iniciariam comentários relacionados à sua demora, escreveu
em seus lábios um rouco “Não”.
— Esqueça o que eu disse — desabou a mão em seu ombro.
Vampeto não ansiava por discrição, como ele, quase levando seu
temor à exposição pública. Por sorte apenas Belatriz compreendeu
que escondia algo.
Expôs as costas ao jovem e à classe, como intentasse se
esconder, causando-lhes confusão. Sem que esperassem virou,
aplicando poderoso e veloz soco, contra Petrus, o qual só teve
tempo para erguer sua mão, falhando em absorver o dano em sua
totalidade e, portanto, sendo empurrado poucos centímetros.
— O que é isso professor? — foi a primeira a questionar, Lucena.
— Você parece um de meus subordinados no exército —
afirmou calmo. — Vou testá-lo.
Mal encerrara seu discurso quando relampejou novo soco na
transversal, dessa vez conseguindo se esquivar. Logo em seguida
lançou seu punho esquerdo à direita do rapaz, esse desviando o
golpe também com a esquerda.
A garota que tão rapidamente protestara alcançou a dianteira
do grupo feminino a tempo de presenciar Petrus se desviando de
um poderoso uppercut, deslizando agilmente para acertar um jab
com a direita no peito do oponente, aliviando-a.
Devido ao instrutor sequer se abalar novo golpe foi desferido,
dessa vez com a esquerda, porém, antes de completá-lo, foi forçado
a bloquear uma marretada.
A surpresa foi geral ao vê-lo ser obrigado a cruzar as mãos para
suportar, com grande dificuldade, apenas o punho esquerdo do
professor.

121
Ao perceber o uppercut do adversário esse se encontrava
parado a milímetros de seu queixo. O embate havia terminado e,
consequentemente, as partes relaxaram seus corpos.
— Parece que estou enferrujado — gerou belas gargalhadas ao
vencedor.
— Belatriz, isso foi...
— Uma derrota completa — respondeu a pergunta da princesa
antes de formulada.
— É isso aí moleque, vejo que será um ótimo assistente —
exclamou o professor.
— Como assim? — gritou inconformada, Lucena.
Dessa vez não só ela e suas amigas demonstraram confusão,
como todas as presentes. Entendendo o que se passava, Vampeto
cuidou de esclarecer.
— Ele não pode estar nessa aula e, já que também não pode ser
liberado... — deixou o resto da explicação no ar.
— Certo — aceitou sem delongas. — Como formaremos as
equipes?
— Claro que com algumas disputas físicas.
— Irá colocá-las para duelar? — questionou ligeiramente
animado.
— Por provas físicas digo polichinelo, levantamento em barra,
flexões e uma corrida — divertiu-se. — Mas não é uma má ideia.

Aportando em seu quarto e abrindo a porta, de qualquer jeito, a


fim de descansar um pouco, esquecendo até de alertar Petrus para
fechar a porta.
— Nossa, estou morta.

122
Chegando em seu dormitório dirigiu-se imediatamente ao sofá,
derramando-se de costas sem preocupações. Observando-a
curioso lembrou que deveria se preocupar consigo.
— Eu estou cansada, vá fazer algo para mim — ordenou.
— Lembre-se que já tenho um jantar para ir — refrescou sua
memória.
— Então já conquistou as costumeiras pretendentes? — dirigiu-
se a anfitriã.
Era Marcus que, junto da irmã, aportava no recinto munido de
sua malícia inerente, conseguindo a atenção instantânea da
interpelada. O irmão apontou o dedo para ambos e murmurou
“Não encham”.
— Como assim costumeiras? — lançou gélido olhar para o
jovem.
— Nosso irmão é bonitão e boa pinta — Amira concedeu pausa
intencional. — e isso lhe rende mulheres por onde passa.
— Bem... Estou indo — não desejava ali permanecer.
Disparou como uma flecha, não se olvidando de trancar a porta
com excessivo cuidado. Ao se achar a sós se trancafiou em
profundos pensamentos, até o momento em que o menino decidiu
a despertar para lhe assustar.
— Ele costuma dar essa desculpa de jantar e acaba passando a
noite junto delas.
Concluindo sua intenção com sucesso a viu começar a apertar o
peito contra as mãos, desejando que nada acontecesse. Não
desejava roubá-lo da amiga, no entanto também não desejava ser
abandonada.
— Meu irmão, por maior que seja seu comprometimento com
uma dama, mantém suas relações periféricas vivas, porém ele não
tem paciência em resgatar quem não deseja.
Arrumando-se da maneira mais confortável no sofá, a princesa
utilizou a advertência para aplacar seu nervosismo e iniciar
produtiva reflexão.

123
Não conseguia retirá-lo da mente, principalmente após
declarado o final das aulas, momento em que começou a ansiar por
tão esplendorosa oportunidade. Esperava que sua companhia
estivesse tão animada quanto ela.
Ao soar da leve batida na porta, soube quem era, antegozando o
momento, não obstante, a surpresa se fez presente por ter chegado
tão cedo. Por sorte havia escolhido seu vestido com antecedência,
deixando-o a esperar enquanto se vestia.
— Olá Petrus! — colocou a cabeça para fora.
— Demorou — observou. — Está ocupada?
— Você se cansou? — preocupou-se, abrindo a porta.
— Nem um pouco! — exclamou antes de vê-la.
Assim que pode verificá-la estupeficou-se, não com a
grandiosidade do vestuário, mas a grandiosidade que o trajava.
Lucena usava um vestido curto vermelho, sandálias de salto baixo
cor nude e brincos de ouro cravejados de esmeralda.
— Você está magnífica.
— Ora, você é mesmo um galanteador — ruborizou.
Visando retirar seu estado de petrificação adentrou a residência
como se em ovos pisasse, evidenciando seu caráter atônito,
levando-a a abaixar sua cabeça contente. Tencionando espantar o
silêncio mencionou o primeiro objeto que vislumbrou.
— Vejo que você é quase totalmente organizada.
— Quase?
Seguiu o olhar de seu convidado até o quarto, onde, prestando
maior nível de atenção, percebeu um amontoado de roupas sobre
a cama.
— Desculpe por isso — pediu envergonhada enquanto corria
para fechá-lo.

124
— Não se preocupe — a acalmou — É minha culpa por chegar
tão cedo.
— Você é muito compreensivo — elogiou.
— Só porque eu faria pior — sorriu.
Antevendo que a conversa não teria fim, diferente de seu
limitado tempo, anunciou sua ida ao fogão, pois não pretendia
desperdiçar sua oportunidade. Graciosamente pediu para que
aguardasse, afinal era dever de uma mulher cozinhar
satisfatoriamente.
— Mas você deve estar cansada da última aula.
— Isso não é nada.
— Então deixe-me lhe dar um presente.
Dirigia-se à cozinha quando ouviu a declaração, atendendo ao
chamado e se virando. Encontrando suas faces tão próximas
detiveram-se, por breves momentos, apenas a trocar olhares,
vendo-o tomar a iniciativa de roubar-lhe um beijo.
Durante eternos segundos permaneceram em êxtase, de olhos
fechados em um abraço apertado. Suas mentes mantiveram-se em
branco, conservando apenas a fixação no momento mágico que
partilhavam, findando-o pelo mero capricho de seus fôlegos.
— Se quiser pode ajudar — sorriu imensamente. — Mas espere
um instante.
Gozando deveras da situação, desfrutou da efetividade de sua
estratégia, a admirando afastar-se vacilante. Com a respiração e o
coração igualmente acelerados, não cometeu o erro de tentar se
deslocar, aproveitando para finalmente reparar no espaço.
O apartamento era semelhante ao de Marina, justamente por
terem de manter o arquétipo, porém havia disposto alguns
detalhes para diferenciar seu espírito.
O tradicional triângulo, agora, era formado por um conjunto de
almofadas à oeste, duas poltronas ao sul e um grande sofá à direita,
os três em cor marrom e poucas mantas rosas claras cobrindo-os.

125
Movendo-se, sorrateiramente, entrou no quarto, sem que fosse
percebido, aproveitando-se da imersão de sua dona em doces
pensamentos. Percebeu que, como sempre, mantinham o padrão,
com exceção da cama.
A de Lucena tinha uma saia azul bastante opaca, lençol do
mesmo tom com poucas listras em vermelho escuro e edredom
inteiramente no mesmo tom de vermelho das listras.
— Querido, onde você está? — cantarolava suavemente.
Era evidente que a parceira atingira a felicidade plena,
aliviando-o sobremaneira por saber estar agradando. Atentando-
se ao chamado, partiu rapidamente, encontrando-a na cozinha, de
costas para si, flutuando em seus pensamentos.
Acercando-se na surdina levou as mãos à bela cintura da moça,
causando ligeira interjeição de surpresa, seguida de ataque de
risos, contaminando-o instantaneamente e fazendo com que
prosseguisse as investidas. Durante a extensão do processo
conservaram o ambiente em perfeitas condições, divertindo-se
sobremodo com banal atividade.
Terminado o preparo da refeição sentou-se na cadeira
subsequente à da ponta, onde ela descansou, ao terminar de servir
os pratos. Durante o jantar conversaram muito sobre diversos
assuntos, principalmente suas histórias pessoais.
Escondeu propositalmente muitas nuances e cenas de sua
trajetória, porém, como fora verdadeiro nos demais, a viu aceitar
facilmente alguns fatos, como desconhecer a origem de seus
poderes e não ser tão forte quanto imaginava, sobrepujando as
colegas devido a seu treinamento duro e vasta experiência, além
de outras mentiras.
Chegada sua vez, revelou que veio de uma família nobre e muito
importante, sendo sempre cortejada e mimada por pessoas que
nem sequer conhecia, por isso que se interessava por quem ia
contra sua vontade. Também mencionou que o achara espetacular
em diversos quesitos.

126
Após o ambiente organizado, despediu-se com um grande
abraço e inevitável beijo, dirigindo-se à porta. Repentinamente
Lucena lhe requisitou que a acompanhasse.
Prontamente a seguiu até o quarto, parando na porta ao
observá-la perto da cama. Percebendo sua hesitação o compeliu a
aproximar-se, o abraçando agressivamente para aplicar-lhe um
beijo acalorado.
Não percebeu quando a presa alterou sua fisionomia, atirando-
a sobre a cama, segundos antes de pousar com os joelhos e as
palmas das mãos sobre o edredom, tendo a dama entre si.
Estranhando a repentina mudança observou seu olhar voraz.
— Nossa, você está começando a se sol... — foi interrompida por
violento beijo.
Durante o ato o rapaz começou a retirar seu vestido com
rapidez, ultrapassando a área de seus belos seios em segundos,
revelando seu sutiã. Simplesmente aguardando o desenrolar
antegozou o acontecimento que havia sonhado por tão pouco
tempo.
Estando totalmente fora de si, não foi capaz de presenciar o
momento em que executou violenta recuada, alterando seu olhar e
começando a suar compulsoriamente.
— Não posso! — murmurou.
— Como não? Mulheres foram feitas para essas horas.
Ao ouvir a voz extremamente grave e levemente rouca, acordou
do transe, enxergando Petrus a se contorcer, como se lutasse
consigo próprio, obviamente a alarmando deveras.
— É claro que não.
— Deixe de ser frouxo e a abocanhe.
— Isso não está certo.
— Claro que está. Até ela espera que você faça isso.
— Não posso e não farei.

127
Dito isso cambaleou e desmaiou na cama, surpreendendo-a
imensamente. Admirando o corpo inerte e ensopado de suor,
desistiu de compreender o que havia ocorrido.
Ao transcorrer de demorados minutos, nos quais reduziu sua
adrenalina e ruminou demoradamente suas ideias, decidiu ser
hora de arrumar a bagunça para o dia seguinte.

128
7. Confrontos inesperados

Ao despertar, com máxima velocidade, arrumou- se e dirigiu-se


ao quarto da amiga sem nem se alimentar, torcendo ardentemente
para que não houvesse acontecido nada.
Ao mesmo tempo em que deixava seu apartamento, Petrus
acordava confuso, recordando- se aos poucos da noite passada. Ao
estabilizar a visão reparou na colega próxima à cama a dispensar-
lhe um olhar afetuoso.
— Bom dia dorminhoco — foi agraciado por suas doces
palavras.
Ainda atordoado desesperou-se ao não se lembrar dos fatos
sucessivos à sua briga consigo, então conferiu seu estado,
percebendo que as suas vestes haviam sumido.
— Por que estou nu? — perguntou assustado.
— Hmm, o que devo responder? — provocou, virando-se
enquanto distanciava-se realizando dois passos.
— A verdade! — excedeu-se.
— Ai! — surpreendeu-se. — Não precisa ser tão chato.
Percebendo o erro tentou se acalmar, lembrando que não
deveria descontar nos outros a raiva que sentia de si por ter
causado tal situação imprópria.
— Você não está entendendo a gravidade! — explicou com
evidente preocupação.
— O que foi? Não sou boa o bastante para você? — perguntou
com um leve biquinho.
— Você é uma excelente mulher, inteligente, adorável e muito
provocativa, o que adoro, mas estou preocupado com o que
poderia acontecer com você.

129
— E o que poderia acontecer comigo? — questionou com olhar
inquisidor.
Cerrou os olhos e esmagou os lábios ao perceber que lhe
insinuara estar escondendo algo. Não era um segredo, porém não
desejava comentá-lo.
Rapidamente começou a matutar uma desculpa aceitável para
despistar as suspeitas sobre si, porém estava cansado de se
esconder, principalmente de uma mulher tão compreensível e que
lhe fizera tão bem.
— Tudo bem! — disse derrotado — Irei revelar a verdade para
você no primeiro intervalo, o mais demorado deles. Lá na floresta.
— Está certo, vou te contar o que aconteceu bem a fundo —
realizou gigantesca pausa.
— Já disse para não brincar com isso — irritou-se, além de
constranger-se — Diga logo!
— Te falo depois que você revelar seu segredo — mostrou a
língua.
— Você não se cansa de me provocar não?
— Nem um pouco.
Nesse instante puderam ouvir batidas apresadas na porta e com
ampliado vigor, impulsionando a jovem a correr para atender
quem quer que fosse. Razoavelmente angustiado a seguiu,
mantendo-se oculto atrás da porta.
— Oi Ma. Tudo bem?
— Ela não parece bem, deixe-a entrar — era possível ouvir seu
arfar incessante.
— Quieto! Já iria fazer isso.
— Vocês já estão até íntimos — murmurou tristemente.
Pretendendo resolver o mal-entendido deixou seu esconderijo
rapidamente, impossibilitando que sua parceira o impedisse de
cometer um grande erro.

130
Ao vê-lo desmanchou-se em lágrimas, afinal acabara de
confirmar o que mais temia. Sentiu que deveria adiantar- se antes
que o amado piorasse a situação.
— Não é o que você está pensando amiga.
— Não? Então por que não o deixa falar? — irritou-se.
— Não aconteceu nada — revelou após hesitar.
Rezou várias vezes, durante o tempo em que reinou o silêncio,
para que reparasse na situação e medisse suas palavras,
agradecendo por nada de mais revelar.
— E... por que está enrolado nesse pano? — suas lágrimas
insistiam em cair.
— Não é um pano, é o edredom da cama. Ela tirou a minha roupa
para secar o suor.
Assim como a amiga, nada conseguiu além de permanecer
estática, embora soubesse necessária sua intervenção para
impedir a detonação da bomba que seu amado – não
intencionalmente – armara. Imaginava o verdadeiro turbilhão de
emoções pelo qual ela passava
Ao decorrer de vários segundos em que as observou sem a
mínima ideia do cataclismo que transcorria em seus mundos
particulares, presenciou o engrossamento do pranto da garota e
seu veloz partir.
— O que houve? — quebrou o silêncio.
— Adivinha — correu para o quarto.
Revisando suas palavras abriu a boca como se fosse protestar,
apertando os olhos em seguida. Parou na porta do quarto
observando como a colega apanhava seu uniforme e, com um único
movimento, retirava a camisola.
Expondo-se apenas de roupas intimas gerou um assovio em
seus lábios, impressionado com o corpo escultural. Nervosa pelo
acontecido largou a saia e atirou a camisola nos olhos gordos que
lhe espreitavam.

131
— Não quis nada comigo ontem, então não precisa olhar. Fora!
— ordenou em alto tom.
— Desculpe, foi mais forte que eu — afastou-se imediatamente.
— Percebo que não estava mentindo quando mencionou que
não era tão forte quando imaginávamos — gritava irônica.
— Entendi, você está nervosa.
— Seria bom se você tivesse entendido antes de piorar tudo —
apareceu na porta.
Ao ver a face decepcionada da parceira percebeu ser essencial
que consertasse seu erro antes de sua saída. Ouvindo o girar da
maçaneta rezou para atingir o efeito desejado.
— Me desculpe, mas não sou um especialista. Seria bom se me
treinasse.
Por extensos milésimos manteve-se inerte sorrindo, porém não
poderia livrá-lo do peso de sua falha. Estampando considerável
expressão de concordata o fitou com a mão na testa, como se
tentasse aplacar desgraçada dor.
— Certo, então arrume a cama, coma, se troque e vá para a aula
— suspirou.
— Me perdoa? — quis garantir.
— Sim, sim — confirmou antes de fechar a porta.
Ao se ver só comemorou a investida, cantarolando alegremente
até o quarto, permitindo que o edredom caísse pelo caminho.
“Quem previne a derrocada de um castelo, não se importa com
algumas horas de preparação”.

Acercando-se da porta verificou que estava destrancada, devido


a chegar em cega corrida e, ao ouvi-la choramingar se dirigiu ao
quarto, a encontrando deitada enterrada com a face no travesseiro.
Entrando vagarosamente, sentou-se ao seu lado.

132
— Por que você está chorando amiga? — perguntou
delicadamente.
— Eu não sei — raciocinou durante muito.
— Como não sabe? — simulou surpresa.
É claro que sabia a resposta, porém deveria a estimular para que
a descobrisse por si só, pois nada se resolveria se assim não
acontecesse, a compelindo a se virar para encará-la.
— Eu me sinto estranhamente abatida e ainda não entendo o
porquê.
—Talvez por não ter dormido ontem o esperando — revelou
Marcus.
Pretendia refutá-lo, entretanto, ao observar o semblante de
preocupação da colega, temeu ser afligida por imperioso sermão,
assim dispensando suas energias para evitá-lo.
— Ela está completamente apaixonada — foi a vez de Amira,
extinguindo suas lágrimas.
— Do que vocês estão falando? Eu não estou apaixonada — não
hesitou.
— Então por que ficou tão sentida por ele ter passado a noite
comigo?
— Porque eu... — finalmente entendeu — Não queria perdê-los.
A endereçando carinhoso olhar de compreensão a abraçou com
força, a consolando e congratulando por abrir seus olhos. No final
tudo se resumia ao seu abandono.
— Você é nossa amiga — foi enfática — Não te deixaremos e
você sabe.
— Eu sei, mas foi tão difícil o que passei.
— Você tem que esquecer aquela época e se concentrar no agora
— apertou sua mão. — Se você quer manter seus relacionamentos
os retribua adequadamente.
— Como assim? — entendeu, porém desejava ouvir a amiga.

133
— Um amigo deve respeitar os problemas do outro e ajudá-los
sempre que possível, pois ninguém é perfeito. Uma esposa, porém,
deve apoiá-lo em sua evolução, relevando suas qualidades em
detrimento aos seus poucos defeitos. Afinal ninguém é perfeito.
No início da segunda parte de sua reflexão reduziu o tom de voz,
o decrescendo a cada palavra, sendo um reles murmúrio ao final.
Sem ouvir suas palavras questionou-a sobre.
— Apenas lembrei que, quando se ajuda alguém, o maior
beneficiado é você próprio.
Não era perfeita e, provavelmente, o demonstrara isso mais
cedo do que pretendia, porém não o ouviu listar suas faltas,
diferente de si que o crucificou por um erro pequeno. Fora muito
injusta, pois, independente do dano causado, sua reação se
mostrou muitíssimo exagerada, quase ignorando seu pedido de
desculpas.
— Não aconteceu nada — levantou-se de sobressalto, se pondo
à sua frente. — Ele apenas desmaiou e eu cuidei dele.
Sem que percebesse, toda sua irritação e descontrole
irracionais, foram embora com os ventos do esclarecimento,
estampando em seu semblante vívida alegria. Repentinamente
percebeu que deixara passar importante informação.
— Por que ele desmaiou? — preocupou-se
— Ele irá me contar hoje na floresta.
Não fez a mínima questão de esconder o dilema pelo qual ele
tanto presara, retirando-se do quarto alegre pela lembrança.
Curiosa a seguiu prontamente, questionando-a logo que a
oportunidade surgiu.
— Por que a floresta?
— Não sei, mas deve ser algo muito secreto — empolgou-se.
— Então posso ir também, certo? — ansiava pela confirmação.
Lembrando-se das palavras do amado foi assaltada pela
vontade de recusar o pedido sumariamente. Tomou fôlego para
apresentar a negativa, porém se comoveu com seu semblante e

134
lembrou que deveria demonstrar, na prática, o que defendera a
pouco.
— Certo, pode vir conosco.
Ao presenciar sua silenciosa comemoração aliada ao abraço e o
agradecimento lhe dispensados animou-se, pois a amiga esquecera
completamente seus temores de ser novamente abandonada.
Devido ao horário avançado aguardaram o início da segunda
aula, o encontrando, obviamente preocupado com ambas.
Terminada a entediante palestra de Vernécia, desceram
apressados as escadas, sem que se atentasse ao motivo da
presença da princesa, apercebendo-a ao se deparar com a
orgulhosa amiga, os aguardando, sentada perto da entrada.
— O que elas fazem aqui Lu? — perguntou assustado.
— Eu convidei a Marina, mas ela eu não sei. Está bravo? —
reparou sua alteração.
O vendo coçar a cabeça incessantemente e a observar de
relance, Belatriz presumiu que discutiam sobre sua presença,
colocando-se de pé e caminhando tranquilamente com um sorriso
de vitória. Por sorte ela estava só.
— Muito. Era só você — irritou-se.
— Desculpe, não sabia que atrapalhava — utilizou de ironia.
— Não é isso Ma — não conseguiu se acalmar. — É que você não
está pronta.
— Ela está e eu não? — ofendeu-se.
A parceira o questionando sobre sua sanidade, ela não
querendo ouvir, a outra se aproximando para apresentar-lhe
novos problemas, a situação se depreciando.
— Sim! — afirmou categórico.
— Estranhei que elas não vieram na aula, então investiguei e
sabe o que descobri? —A orgulhosa capitã arquitetou sua retórica
ao abeirar-se.

135
— Quem disse que me importo? — cuspiu secamente,
afastando-se.
Sua súbita e radical mudança as assustou sobremaneira,
causando repulsa e compelindo-as a afastarem-se. Antes que isso
ocorresse, Lucena, a única que desvendara a causa de sua explosão,
adiantou-se e pousou a destra sobre seu ombro.
— Calma Petrus, somos todas grandinhas e podemos aceitar o
que quer que você diga — o abraçou ao ver como se virava para si.
Retribuiu o abraço, a tremulou levemente com seus pesares,
silenciando-se. Manteve o olhar baixo ao afastá-la, levantando
apenas quando deu de costas.
— Vamos logo que já estamos atrasados.
Suas palavras foram recebidas com animação pelas amigas,
sendo, pela companheira, compreendidas em seu real sentido,
causando-lhe ligeira aflição. Repentinamente pressentiram as
crianças chegarem pela lateral, como se fantasmas fossem.
— Não acha melhor nós irmos? — perguntou Amira.
— Precisa não, eu consigo segurar sozinho — confirmou sem se
virar.
“Segurar o que?” Foi a primeira questão que se formou na mente
das três, atraindo diversas outras para lhes rondar a mente. Apesar
de sua curiosidade aquecendo sabiam que não poderiam apressá-
lo.
— Pense melhor se vale a pena contá-las — colocou Marcus
apreensivo.
— Uma hora ou outra elas descobririam — retrucou.
— Você sabe o que essa decisão imprevidente nos pode causar?
— esbravejou o irmão.
— Não mais do que você já está causando.
— Nossa, que mistério — Marina não se aguentava de
curiosidade.

136
A simples frase que deixara escapar competiu para findar a
breve discussão. Vendo o irmão partir nervoso Amira o seguiu,
facultando-os novamente o silêncio.
Sem demoras o grupo rumou à floresta. Petrus as conduzia cada
vez mais afundo, tencionando adquirir distância adequada,
enquanto o seguiam em entretida conversa.
Em certo momento, as garotas atrasaram seus passos, de modo
a manter distância suficiente para que Lucena pudesse relatar os
acontecimentos da noite anterior em detalhes, apreciando as
respostas e comentários das amigas.
Incomodaram-se ao escutá-lo rindo, tendo certeza de que havia
feito algo ao dirigir-lhes efêmero sorriso por sobre o ombro.
Informou prestimosamente que o vento carregava sons e cheiros
por quilômetros e poderia captá-los sempre que desejasse.
— E você nos escutou? — se avermelharam levemente.
— No momento em que ouvi seus cochichos — dispensou-lhes
novo sorriso.
Ao terminar estavam completamente envergonhadas por serem
tão descuidadas a ponto de debaterem fatos íntimos sem
imaginarem que seria capaz de as escutar. Por sorte alcançaram
seu objetivo.
Ao aportarem na clareira, com seriedade estampada no
semblante, caminhou até o centro e as lançou significativo olhar,
nunca esboçado.
— Antes de começar quero dizer que ficará tudo bem não
importa o que aconteça.
— Por que você diz isso? — questionou Lucena.
— Porque isso pode assustá-las um pouco — alertou.
— Qual é, pensa que somos o que? — praguejou a capitã.
Hesitou, buscando pelas palavras certas a se utilizar, visado o
menor impacto possível, não as encontrando por acreditá-lo irreal.
A amada, com o olhar, o motivou a continuar firme.

137
— Vou direto ao assunto, tem outra pessoa que reside no
mesmo corpo que eu.
Não detectou compreensão nenhuma em seus olhares, ouvindo
o ressoar de uma longa interrogação que perdurou por vários
segundos. Novamente se apoiando na garota, recuperou o fôlego.
— Em meu corpo residem duas almas, a minha e a de Lucer —
achou melhor separar suas frases. — Partilhamos o controle desse
corpo.
— O que? — gritaram em incompreensão.
— Você ficou louco? — exasperou a orgulhosa.
Pressagiando a histeria coletiva que sua revelação causaria
decidiu conduzi-las longe de olhos curiosos para lhes demostrar,
afinal explicar teoricamente era uma tarefa realmente difícil para
si. Queria somente confirmar que não seriam pegas de surpresa.
— Naturalmente, em alguns momentos, não sou eu a controlar
meus movimentos.
— Como assim? — perguntou Marina abismada.
— Ele pode influenciar minhas ações, além de adquirir controle.
— Então ontem era ele? — a amada ligou os pontos.
— Isso. Sem contar que ele é tão poderoso que, as vezes, não
consigo controlá-lo.
Eram informações demais para suas mentes, por mais que
soubessem sobre o que falava. A lenda nunca fora detalhada,
justamente porque não havia questionamentos sobre sua
veracidade, acabando por não educar ninguém sobre, focando
somente no medo.
— Explique-se melhor! — ordenou a capitã.
— Quando ele ou eu liberamos muita energia sua personalidade
piora e adquiri um poder devastador, se tornando muito perigoso.
— Ainda não entendi — revelou a princesa.
— Ô mulher burra — exclamou com uma voz grossa e
levemente rouca.

138
Se surpreenderam com tal mudança súbita e olharam para o
orador, só para constatar que seus olhos haviam alterado
radicalmente de cor. Sua íris ficara preta e sua pupila vermelha,
deixando claro que deveriam se preocupar.
— Eu sou muito forte e se meu poder se descontrolar eu mato
todos. Tendeu?
— E por que você não consegue controlar seu poder? —
questionou Lucena.
— Porque ninguém consegue controlar o poder da escuridão —
disse como se fosse óbvio.
— Mas você não é poderoso? — retrucou a membro da guarda.
— Cuidado com a língua — ameaçou. — Ele me atormenta para
não me exceder, mas ainda sou o velho rei demônio.
Essa informação era de domínio público, porém, por algum
motivo desconhecido, lhes fora apresentado como fatal ataque ao
âmago. Presenciando-as em choque sorriu maliciosamente,
antegozando o pavor que sentiriam após seu próximo ato.
— Então continuam a duvidar. Veja isso então.
Juntando as palmas das mãos produziu raios, multiplicando-os
enquanto as abaixava lentamente até a cintura. Após os exibir por
um instante atirou as mãos para o alto, os lançando aos céus para
que deslizassem pelos ares, desfazendo-se em pouco tempo.
Foram abatias pelo sopro da desesperança, enxergando, à sua
frente, a devastação por ele provocada a décadas atrás. Marina
reluzia em sua face nada mais além do extremo terror, afinal,
diferente da maioria, era a princesa, portanto não poderia relegar
o extenso aprendizado sobre o lorde demônio a que foi submetida
desde a infância.
Ao final da exibição viu a orgulhosa amiga ausentar-se, levando
a princesa a segui-la desesperada. Lucena aguentou firme, apesar
de sua respiração e coração acelerados.

139
— Sabia que essas covardes não iriam aguentar — comentou ao
perdê-las de vista. — Pelo menos sobrou uma otária para me
divertir.
Dito isso seus olhos retornaram ao normal, pouco antes de cair
de joelhos, compelindo-a a arrancar, sem que conseguisse alcançá-
lo a tempo. Sentando-se na rala grama e erguendo a cabeça para
fixá-la, sorriu temerosamente.
— Chocante não?
— Diria que é mais do que chocante — não soube o que
responder.
A sentindo ainda muito tensa sentiu que deveria confortá-la de
algum jeito, embora não se encontrasse propenso para. Queria lhe
retribuir por ainda estar consigo.
— Pelo visto estava certo em imaginar que você era a única
pronta.
— Não podemos culpá-las, pois até eu, que não tive muitas
experiências ruins com o rei demônio de há alguns anos, estou um
pouco trêmula — disse ao sentar-se à sua frente.
Nesse momento espantou-se com sua repentina explosão em
escandalosas gargalhadas, levando-a a buscar por um pouco mais
de coragem em seu âmago.
— Desculpe. Como disse ele influencia minhas reações de vez
em quando — apressou em esclarecer. —Esse de quem você fala
nunca foi um rei demônio.
— Não ouviu falar sobre o rei demônio antes de você? —
imaginou ter esquecido.
— Ouvi, mas era apenas um homem comum líder de um grupo
de rebeldes.
A explicação o petrificou, pois não possuía conhecimento algum
a respeito do mencionado, mesmo acreditando pertencer a família
nobre de alto padrão. Percebendo seu conflito resolveu prosseguir.
— Só existiram dois. O primeiro surgiu há quinhentos anos e o
segundo, há duzentos.

140
— E você é o terceiro — balbuciou.
— Exato. Rei demônio é uma entidade que causa grandes danos
à sociedade. O problema é que a igreja transformou qualquer
opositor em rei demônio para castrar seus adeptos.
Ao sentir sua voz tornar-se pesada, indicando leve irritação,
interpretou como verdadeiras suas palavras. Cientificando-se de
sua doutrinação prometeu a si mesma, a partir dessa data,
questionar tudo.
— Já que não terá mais um teto, gostaria de morar comigo? —
encerrou o assunto.
Ao ouvir a pergunta que lhe era dirigida se esqueceu do
acontecido e de suas aflições, retornado ao seu estado original.
Estava radiante por saber que a amada não só o aceitou, como o
ofereceu seu próprio retiro.
Tentou falar por diversas vezes, em vão, pois sua voz há muito
havia o abandonado, cedendo espaço a dolorosas lágrimas que
fracassou em suprimir. Sem que esperasse a bela mulher abraçou-
lhe fortemente.
Foi a gota d’água para que se desmanchasse em puro pranto,
afundando sua face no ombro ofertado e o encharcando sem
remorsos. Era humano afinal.
Em silêncio o conseguiu consolar, aos poucos, sentindo seu
coração palpitar mais forte ao vê-lo se recuperar e se erguer,
oferecendo-lhe apoio. Segurando sua mão se içou rapidamente, o
abraçando no mesmo movimento.
— Vamos voltar então. Juntos! — disse delicadamente ao fitá-lo
no fundo dos olhos.
Retornaram calmamente para a academia, conversando
descontraída e alegremente sobre o novo cenário e as dificuldades
que enfrentariam. Estava tão feliz que nem se importava se seria
temporário.
Alcançando a pequena estrada que antecedia o portão da escola,
puderam pressentir alguém os observando com um olhar

141
assassino. Se aproximando perceberam se tratar de Belatriz
vendo-a avançar rapidamente, como se atacasse a pressa.
— Não estou nem um pouco interessado nisso que dirá —
avisou jogando a palma da mão para a frente. — Só saiba que
tenho algo importantíssima a revelar que diz respeito à guarda
acadêmica, então me procure quando decidir conversar.
Como se estivesse resolvido, saiu do caminho, se apressando
pela lateral da escola. Observando-a sumir continuaram seu trajeto
rumo à diretoria.
Chegando ao seu destino bateu na porta e, ao receber sinal
sonoro, tomou a dianteira, carregando Lucena pela mão. Ao
entrarem Joana estava em sua cadeira de costas para a porta,
lançando um cumprimento informal ao enxergar o sobrinho de
relance.
Espantada percebeu passos adicionais, empenhando-se em
contornar seu erro ao virar e enxergar a acompanhante. Estranhou
a reação da diretora, porém nada disse.
— Não se preocupe, essa é Lucena, minha... — hesitou, pela
insegurança ainda presente.
— Namorada! — demonstrou, novamente, que estava ao seu
lado.
Congelou ao ouvir sua afirmação, dedicando-se a desvendar o
que seu sobrinho idiota aprontara. Constatando a calma do
acusado, concebeu que era imaturo realmente.
— Essa é Lucena, minha esplêndida namorada — apresentou-a
corretamente.
— Obrigado amor, mas eu já conheço nossa diretora.
— Lucena, essa é minha tia — disse sem pestanejar.
Uma bomba estourou no ambiente, contemplando-as
boquiabertas. Por não esperar pela notícia, emudeceu-se,
enquanto Joana temeu por sua identidade.

142
Verificando-as por demais chocadas a se encararem inertes,
decidiu separá-las, a fim de provocar uma melhor reflexão da
amada, enquanto conversava a sós com a tia.
— Lu, vá para a aula que preciso acertar minha transferência.
— Certo. Tchau! — conseguiu murmurar finalmente.
O silêncio foi-se imperioso durante a lenta retirada da garota.
Deixando de sentir sua presença lhe dirigiu um olhar neutro,
tomando fôlego ao raciocinar sobre.
— Está tudo bem para você revelar isso?
— Eu tinha. Senti por ela algo que a tanto tempo não sinto —
alegrou-se ao relatar.
— Em apenas três dias? — desconfiou.
— Também não esperava.
Sentindo seu olhar a lhe cutucar a apressou quanto à aprovação
de sua mudança. Graças a seu discreto suspiro pesaroso a
informou que havia algo mais grave.
Ao constatar seriedade em sua voz, desfrutou súbito aumento
de seu ritmo cardíaco, aguardando por apontamento bombástico,
embora deduzisse parcialmente o motivo.
— Você contou a mais quem? — se preparou.
— Marina e Belatriz.
— Está louco? — explodiu inconformada. — Você não se lembra
do quanto a família real te odeia? E Belatriz foi treinada pela
grande matadora de demônios, a “Destruidora Impiedosa”, que,
inclusive, é uma das melhores magas formadas por essa academia.
Arregalou os olhos aterrorizado, pois ainda não havia
contabilizado seu prejuízo, devido a transitar por muito no limiar
de emoções extremas. Se bem conhecia essa “Destruidora” ela
irradiara seu ódio à irmã.
— Droga! Mal cheguei e já acontece isso. E eu que pensei que
teria algum tempo de folga.

143
— O caminho que você escolheu não lhe permite isso —
lembrou.
— Eu sei, mas uma folguinha faria bem — retrucou bem-
humorado.
Terminando o assunto se despediram e retirou-se rapidamente,
percebendo Belatriz o vigiando à distância, ao abrir a porta. Nada
esboçou ou pronunciou, apenas sorriu.
Chegando na classe, pediu licença para a professora Jean e
entrou, não antes de captar sua fugidia mensagem em uma
indireta, irritando levemente a parceira.
Assim que se sentou, Lucena agarrou seu braço, dirigindo à
professora olhar desafiador que quase a desestruturou. Segundos
após a chefe da guarda rompeu muda e extremamente rígida como
era típico.
Obviamente Marina não compareceu à aula, o preocupando
deveras. Ao final comentou o fato com a amada enquanto
caminhavam de mãos dadas.

— Acha que alguma delas vai me perdoar? — perguntou


esperançoso.
— Sinceramente eu não sei. Ambas têm famílias que odiaram os
demônios por gerações e presenciaram seus atos cruéis — expôs
com seriedade no olhar.
— E você, o que acha disso tudo? — ansiava por sua opinião.
— Bem. — Escolheu as palavras sabiamente — estou no grupo
das pessoas que não gostam dos demônios, mas mantenho a mente
sempre aberta.
— Mente aberta?
— Quem disse que os demônios são os vilões? Talvez eles só
estejam se defendendo, talvez estejam dando o troco, assim como os
humanos fizeram diversas vezes.

144
Deslumbrou-se com a visão de mundo da parceira que,
justamente por não conhecer muito, se posicionava humildemente,
mesmo sendo iludida. Dava-se por satisfeito, porém foi compelido
a prosseguir.
— Aonde você quer chegar?
— A questão é: Quem atacou primeiro, os demônios ou os
homens?
— Nossa, faz muitos anos que não vejo ninguém tão “mente
aberta” assim.
Rememorando antigas lembranças estampou alegria genuína
em seu semblante, escapando esquiva lágrima a lhe queimar por
onde passava. Uma lágrima indicava tristeza, entretanto seu rosto
demonstrava um sublime sentimento.
— O que foi Petrus?
— Só lembranças de tempos que nunca voltarão — disse com
uma angústia pesando em seu coração.
— Nós vamos construir memórias tão boas quanto essas, assim
você não precisará viver no passado — colocou-se à sua frente,
tentando animá-lo.
— Você é incrível, sabia.
Fixando fundo em seus olhos, vendo-a corar levemente,
acariciou delicadamente sua face e, em seguida, lhe dispendeu um
beijo amoroso, contendo todo seu contentamento por tentar
aliviar seu fardo.
Após descolar seus rostos notou a professora cruzar seu
caminho, desconfortável, e entrar, se vendo forçado a arrastar a
parceira até a porta para não perderem a aula, afinal se achava
estática de felicidade. Ignorou completamente a oradora para
contemplá-la as feições durante o curto tempo disponível.
Repentinamente foi assaltado por uma mensagem telepática
clara e precisa que o demonstrou, em parcas palavras, não haver
margens para recusa, exigindo rápida ação.
— O que foi Pe? — apercebeu ligeiro distúrbio.

145
— Tenho que sair — disse se levantando.
Requisitando permissão iniciou seu caminho antes de obter
uma resposta, afinal seus passos requeriam urgência. Ao retirar-se
forjou grande curiosidade nas colegas e raiva na educadora por
percebê-lo a ignorando.
Descendo as escadas apressado virou e se dirigiu à sala das
professoras, parando na frente e se arrumando para não
transparecer que correra. Pronto, abriu a porta e adentrou
rapidamente, enxergando a professora sentada à sua frente.
— Você pediu à Carla?
O recinto possuía apenas uma grande e larga mesa retangular
no centro, onde se podia contar quatro bancos em cada ponta, sete
nas laterais e um longo armário à direita.
— Quem disse que preciso? — dirigiu-se sensualmente ao
convidado.
Engolindo em seco ao assisti-la caminhando lentamente em sua
direção, pode sentir que seu charme começara a fazer efeito pouco
após vê-la. Era uma tentação que deveria resistir, pelo bem de seu
relacionamento.
— O que você quer, Jean.
— Curto e grosso. Meu preferido — o provocou em voz baixa.
— Por favor, deixe de brincadeiras — fechou os olhos, a fim de
quebrar o contato visual.
— Quis dizer meu tipo preferido de homem. O que pensou que
fosse? — esfregou os dedos em seu queixo.
Se envergonhava por ter sido enganado tão facilmente, mas não
era sua culpa, afinal sua cabeça fervilhava. Com ágil movimento se
deslocou poucos passos, visando esconder sua provável erupção.
— Diga logo por que queria que eu viesse aqui — foi mais duro.
— Você foi um menino muito mal — acentuou a provocação. —
Por que não foi me ver ontem para nos divertirmos?

146
— Porque estava com a Lucena — concentrava-se a duras
penas. — Vá direto ao ponto.
— Aquela... — desfez seu semblante.
Nervosa por perder a posse avançou vorazmente, o encostando
contra a parede e, ao roçar seus corpos, apoiando suas mãos nos
espessos ombros, lhe aplicou poderoso beijo.
Suas pupilas se elevaram ao máximo antes de fechar seus olhos,
seus lábios dançaram em perfeita sincronia, seus braços a
envolveram firmemente e seu corpo que dantes rijo se
apresentava, maleável se tornou, enfim, suas últimas defesas
ruíram em instantes.
— Parece que não preciso da minha magia para lhe fazer ficar
molhado — constatou sorridente o suor em sua testa.
— Não. — Conseguiu livrar-se do feitiço, afastando-a — estou
com a Lucena.
— Então a abandone! — manteve a calma. — Ela nunca saberá
brincar como adulta.
Desceu as mãos vagarosamente por seu abdômen, terminando
nas pernas onde as descansou. Ao percebê-la prosseguir com seu
tentador convite implorou pela assistência dos irmãos,
agradecendo por limparem sua mente.
— Escute de uma vez — aumentou parcamente o tom. — Eu
quero ficar com a Lucena. Ponto.
Cansado se dirigiu para a porta, abrindo-a momentos antes de
ouvir Jean emitir imperceptíveis ruídos. Captando seu gesto
cuidou de trancá-la e voltar-se para a mulher.
— Se não será pelo amor, será pela dor.
Transmutou radicalmente seu semblante e postura para algo
próximo à líder de um grupo de bandoleiros, avançando venenosa.
Imprimindo sádico sorriso continuou.
— Lembre-se que você é o terrível rei demônio.
— Está me ameaçando?

147
— Só estou dizendo que é meu dever alertar as autoridades —
esboçou inocente faceta. — E não costumam ser clementes com
quem acoberta os inimigos da coroa.
Era o que bastava para perder a cabeça, pois acabara de
ameaçar tanto sua tia quanto sua amada, sem contar que Marina e
Belatriz poderiam também ser pegas no fogo cruzado.
— Pretende chegar tão longe por algo tão banal? Envolverá
tantos em suas futilidades?
— Pode ter certeza! — sorriu imensamente.
Cerrou os dentes compreendendo ser um baixo preço a se pagar
para preservar suas vidas. Relaxou suas fibras e começou a se
preparar para seu estupro, quando teve sua mente novamente
tomada por providencial abordagem.
“Acorde seu idiota, se você se submeter a isso ficará preso pelo
resto da vida. Volte a pensar”. Retomando o controle e, lendo seus
trejeitos, visualizou o que por tanto ignorou.
— Você não cumprirá a ameaça.
Ficou mordida de raiva por ter seu blefe, tão bem arquitetado,
desvendado. A aparição de pensamentos sobre como libertara sua
mente, mesmo não reavendo por completo seu físico, decretaram
a derrocada de seus esforços
— Quer apostar! — urrou.
— Você é venenosa, mas não idiota — apontou, antes de deixá-
la sozinha.
Ao encontrar-se do lado de fora quis conferir se realmente a
redondeza estava deserta, assim olhando em volta. Ao se dirigir à
direita nada viu, efetuando rápida parábola para, ao final, ser
imensamente surpreendido.
Era Joana a lhe oferecer zangada expressão, ligeiramente
curvada com o propósito de enfatizá-la. Devido ao susto se atirou
para trás e esbarrou na porta, gerando leve ruído.
— Por que você estava gritando? — trovejou.
— Não quis dizer “com quem”? — tentou enrolar.

148
— Ainda não quero ter que te matar — decifrou sua técnica. —
Agora desembucha.
— Digamos que fui acometido por um acidente de percurso. Um
mero contratempo.
Parecia ter aceitado a resposta ou, simplesmente, previu que de
nada adiantaria sua insistência. Do outro lado, a rejeitada se
mantinha em silêncio, ouvindo tudo.
— Verá do que esse contratempo é capaz — sussurrou.

Ao encerrar da aula, Lucena disparou ao pátio, se


decepcionando por não estar lá como imaginara. Os locais para o
procurar eram ilimitados, portanto, decidiu o aguardar
pacientemente, pois se lembraria de si ao concluir seus deveres.
Ao olhar para o lado localizou a querida amiga refletindo sobre
o acontecido, em seu passado e a herança das antigas gerações a
respeito da guerra entre humanos e demônios.
— Eu gosto tanto dele, mas não posso ignorar o fato de ser um
demônio. E pior ainda, o rei deles — falava para si, a fim de
raciocinar melhor. — Será que só fui usada?
Sua cabeça queimava com o impasse. De um lado sua afeição ao
rapaz, de outro seu ódio pelos demônios e suas ações, além do
maldito senso comum. Rogava a uma entidade que iluminasse seus
pensamentos.
— Não precisa discutir com o vento quando me tem à
disposição.
— Ele é meu fiel companheiro há anos — entrou na brincadeira.
Vendo-a levantou-se e a abraçou demoradamente, aliviando em
sua presença a carga suportada por seu conflito. Sentindo a
necessidade de imprescindível questão a afastou.
— Onde ele está?

149
— Estou o esperando — compreendeu o motivo de sua
apreensão.
— Como você pode ainda estar com aquele monstro, Lu? —
perguntou indignada.
— E não é só isso. Nós estamos namorando firme — a provocou.
Ao ouvir a confirmação do que temia, não conseguiu mais se
conter e despejou sua mágoa, frustração e confusão na prestimosa
amiga, que continuava auxiliando-a, independentemente de sua
teimosia e ingratidão.
— Então é isso que você fará por todos aqueles que morreram?
— descontrolou-se. — Irá ficar com o causador de tanta dor e
destruição como se nada tivesse acontecido? Você simplesmente
irá caminhar sobre os cadáveres de seus antepassados?
Com muita calma e paciência se manteve firme contemplando a
tola princesa com piedade. Conhecendo sua posição e seus
compromissos, além de seu passado e fragilidade, tentou lhe
esclarecer da melhor forma.
— Petrus é o terceiro rei demônio da história. Ele não pode ser
incriminado pelos atos cruéis e sórdidos de seus antepassados.
— Que absurdo é esse? — se espantou. — Esqueceu que sempre
que um morre outro nasce?
— Isso é o que eles contam nas escolas.
— Entendi! — riu levemente — Ele te enganou mais uma vez.
Sentiu-se incomodada com a atitude da amiga de içar-se em um
pedestal e acreditar todos que discordassem de si ignorantes.
Claro que sabia o motivo desta postura.
— A grande questão aqui é se você irá confiar no que te
contaram ou em seus olhos — concluiu calmamente. — Eu preferi
acreditar em minha convivência.
A resposta fora tão clara e espontânea que testemunhou o
abandono de sua fala por sentir-se incapaz de a contradisser. Com
grande esforço conseguiu vencer sua limitação.

150
— Mas ainda há a responsabilidade pela destruição daquela
cidade há dez anos.
— E quem nunca errou? — perguntou firmemente.
Era verdade que todos erram em proporções semelhantes ao
seu poder, mas ainda restava a pior das dúvidas: Estaria a
manipulando para obter fácil acesso à linhagem real.
— Sei o que você está pensando. Que ele poderia estar sendo
bondoso para tentar manipular a todas, mas como poderia a
diretora também ser manipulada se ela é tão poderosa?
Isso também era verdade, afinal nunca imaginaria essa
possibilidade. Mas ainda tinha cometido muitas atrocidades, e isso
não poderia ser ignorado.
— Vou ser sincera, ele não me contou sobre isso, mas não
preciso perguntar, pois, desde que chegou, ele esteve ajudando
todas as garotas e isso não pode ser atitude de alguém que
pretende praticar o mal. Por que você não o dá a oportunidade de
explicar seu lado?
Se achava impulsionada a acatar a ideia da amiga, afinal estava
coberta pelo manto da razão, porém, no último segundo, sua
posição e seus deveres lhe falaram mais alto.
Seria forte o suficiente para vencer esta tentação, afinal ele
parecia sempre ter algo planejado. Talvez tenha se matriculado na
academia apenas para conquistar as garotas e usá-las para seus
propósitos malignos.
Repentinamente, o alvo de sua discussão foi captado pelo radar
da amada. Ao repará-lo estendeu a destra e a abanou, atiçando a
curiosidade da colega, que logo o buscou.
— Pense com carinho sobre o que conversamos — pronunciou
ao seu ouvido.
No momento em que terminara, se acercava das colegas,
tocando no ombro da amada, antes de cumprimentá-la. Sem
demoras, relatou que havia ido à floresta para se lavar, sendo
advertido a, na próxima vez, encaminhar-se ao seu dormitório.

151
Mesmo evitando ao máximo contato físico em sua saudação,
sentiu o imenso incomodo que provocava, permitindo-se
encabular. Com rápidas palavras se despediram da princesa,
contudo viram-se bruscamente interrompidos.
— Petrus, tenho que lhe perguntar sobre a cidade há dez anos
— venceu seu medo.
Retornando ao passado escureceu o semblante e atirou o olhar
para baixo, como um condenado que é forçado a relembrar de seus
crimes. Apesar do que disse, sentiu-se tão angustiada pelo
sofrimento provocado, quanto a amiga.
— Esse é meu pecado — respondeu com uma voz tenebrosa
Virou-se e se afastou a passos largos, sendo seguido de imediato
pela parceira. Preocupou-se imensamente ao constatar seu
semblante sombrio, tendo que aplacar seu ímpeto de acalentá-lo,
pois deveria permitir que o assunto morresse.

Ao chegarem na cidade se dirigiram a um lugar qualquer, onde


se sentaram em uma mesa afastada, de modo a manterem a
discrição. Não sabia como abordá-lo e o que diria.
Repentinamente ouviu, duas garotas conversando sobre uma
inocente brincadeira para com as novatas, captando de imediato
do que se tratava, o fazendo suspirar longamente e reclamar
“dessas malditas”.
— O que foi Pe?
— Mais duas tentando praticar o bendito trote — praguejou. —
E justo no almoço.
Percebendo que se utilizou de uma situação estressante para
demonstrar falsa recuperação com o intuito de aliviá-la, sorriu
largamente, porém não se eximindo de ligeira decepção por não
ter logrado semelhante apoio.
— Pode ir salvá-las, vou guardar seu lanche.

152
— Por isso que te amo — disse se levantando e correndo para
onde não o vissem.
Ficou petrificada com o que ouvira, por ser muito rápido e
repentino, dispendendo alguns segundos para se recuperar.
Pousando a mão em seu peito, intentando escutar seu coração em
disparada, se animou e lançou um murmúrio de satisfação.
Chegando ao pátio verificou que estava a sós e, após suspirar
aliviado pela princesa haver se ausentado, concentrou o ar em seus
pés e saltou até a janela da sala, imaginando o quão absurda fora a
ideia do local.
Adentrando rapidamente a sala, em posição de combate, sondou
o ambiente, encontrando as cativas encostadas à parede, –
próximas à mesa da professora – amordaçadas e com as mãos e
pernas amarradas.
Tratava-se das gêmeas, de Maiara e uma quarta aluna que não
reconheceu de pronto, pequeno esforço, se lembrou ser a
magricela da primeira aula, a famosa Mio.
Não detectando ameaças tratou de dirigir-se ao local para
libertá-las, recebendo vários gemidos em resposta. Após a retirada
das mordaças veio o alerta de Maiara, era uma armadilha.
Segundos após o aviso, cinco veteranas irromperem no local.
Em questão de segundos começaram a alvejá-lo
incessantemente com suas magias básicas, destruindo grande área
no processo. Ficaram muito assustadas e tiveram suas faces
moldadas pelo terror, cerrando seus olhos instintivamente.
As três que estavam em posição mais ofensiva atiravam pedras,
raios e bolas de fogo e as duas mais afastadas, em posição
defensiva, dardos de água.
Em questão de segundos destruíram parte de duas paredes e até
o piso, dispersando muita poeira no ar. Sem nada conseguirem
enxergar se viram incapazes de aliviar a tensão de suas fibras,
apesar de presumirem o óbvio.
Por vários instantes aguardaram angustiadas a poeira abaixar,
para que fosse confirmado o resultado de sua empreitada. Se fazia

153
presente no rosto das agressoras apetitoso sorriso, evidenciando
o prazer do momento.
— E se tivermos matado elas? — perguntou uma das magas de
água temerosa.
Com o excesso de adrenalina acabaram por olvidar a
possibilidade fatídica, temendo internamente até que a maga do
fogo tomasse voz para suavizar a carga.
— Então serão mártires.
Foram espancadas pela perplexidade quando visualizaram, ao
assentar da poeira, seu alvo e as novatas intactas, as quais lhes
dirigiam olhares de completa desaprovação. Aproveitando a
oportunidade cortou as cordas da delatora com rápido movimento
de mão, por sua vez, libertando as demais.
— Como isso é possível? — perguntou pasma a conjuradora de
terra.
— Essa, minhas caras, é uma habilidade muito legal chamada
escudo da alma — ironizou.
O silêncio tomou conta de todo o ambiente, ressoando o som de
algumas pedras solitárias se desprendendo das paredes
quebradas. Ao perceberem leves risadas por parte das vítimas,
antegozando sua derrocada, resolveram agir.
— Ataquem novamente esse desgraçado — gritou as em
posição de ataque.
Com isso voltaram a atacar em semelhante frenesi, causando
maior destruição. Entediado, se mantinha seguro com as colegas
atrás do escudo novamente erguido.
— Não tem problema aguentar todas essas magias? —
perguntou Maiara preocupada.
— Não há problema nenhum enquanto... — pareceu sofrer
violento baque.
Caíra de joelhos para, logo em seguida, se jogar para frente
apoiando suas mãos no chão e ouvindo exclamações de surpresa
das protegidas. Por sorte sua barreira não se desfez.

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Se acercaram e se abaixaram para descobrir o que acontecera,
além de tentar auxiliá-lo no que fosse possível. Murmurava algo
incessantemente, apesar de incompreensível.
— O que foi Petrus? — gritavam desesperadas.
— Se afastem... — murmurou gaguejando. — Rápido.
Permaneceram a observá-lo confusas, com exceção de Mio, a
qual advertiu Maiara e puxou as gêmeas pelo colarinho, auferindo
grande distância rapidamente.
Poucos segundos após se afastarem Lucer surgiu,
transparecendo certa rigidez ao tencionar seus músculos.
Esboçando sádico sorriso alçou-se em uma piscada e aplicou um
tapa para frente, deslocando violentamente o escudo que os
defendia.
Sem nenhuma chance de escaparem, as agressoras foram
atingidas e, antes que conseguissem impacto, viram-no levantar
sua mão com a palma para cima, as arremessando ao alto como se
fossem folhas de papel.
Ergueu levemente a perna e aplicou enorme força em sua
pisada, elevando cinco espessas colunas de pedra e as prensando
com magnânima potência contra o teto.
Observando a cena horrorizadas, pois permanecia a esmagá-las
com brutalidade, alimentando-se de seus gritos de dor e clamores,
imploravam para que as libertasse.
— Vocês acham que essa escória aprenderia algo sem o
sofrimento intenso? — perguntou com ignorância.
Ficaram apavoradas com sua reação, tão diferente da
personalidade que haviam conhecido, recuando até atingirem
novamente a parede. Repentinamente se sentiu abater por
misteriosa tontura, vacilando e tendo sua vista embaçava.
Ao se recuperar constatou um pentágono mágico abaixo de si a
produzir delgados fios de raio, que se entrelaçaram em seus pés,
cobrindo seu corpo por inteiro em um segundo e aplicando-lhe um
choque de proporções gigantescas.

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Gritos de dor dissolveram sua concentração e, por tabela, sua
magia. Joana, a qual viera com presa buscar a origem de tamanha
balbúrdia, pode testemunhar pasma seu sofrimento, correndo em
seu auxílio ao findar da tortura.
Alcançou o jovem a tempo de segurá-lo impedindo que se
chocasse com o chão, conferindo desesperada o reduzir de seus
batimentos. As colegas assistiram, petrificadas pelo medo, a
diretora erguê-lo e disparar razoavelmente perturbada e inquieta.

Leve dor o trouxe de volta à realidade, embora ainda bastante


confuso. Com razoável esforço abriu seus olhos vagarosamente,
antevendo a luz que o cegaria.
— Ele está acordando.
— Você está bem?
— Acho que sim — respondeu sem saber para quem. — Ainda
muito tonto, mas bem.
Passando as mãos nos olhos conseguiu, aos poucos, afastar sua
turva visão, constatando a presença de, além das assistidas, Joana,
a enfermeira e a amada.
Nayde Promnson era a responsável pela enfermaria da
academia Laetus. Morena, cabelos pretos, curtos e crespos, olhos
castanho claros, um metro e sessenta centímetros, curto uniforme
de enfermeira, branco e marrom e sapatilhas bege.
Não mais aguentando seus nervos a tremerem, Lucena se atirou
em cima do acamado, sem se importar com seu estado, nem se
havia se estabilizado.
— Petrus. Por que você fez isso? — indagou entre seus soluços.
Aproveitando que havia se recostado na parede a abraçou com
força, deixando sua cabeça repousar em seu ombro. Por muito
tempo falhou em aplacar seu pranto, fosse de alegria, por ter
acordado, fosse por extravasar o medo que comportava.

156
— Você próprio se eletrocutou. Seu completo idiota! — gritou
Joana.
— Ai droga! — recobrou a memória.
— Se lembrou, né? — continuou a diretora, nervosa.
— O que aconteceu com aquelas cinco? — perguntou inquieto.
— Aquelas que te atacaram? — inconformou-se, Joana. — Elas
estão nas outras camas.
Sua interrogação fora tomada como grave afronta por Lucena, a
qual se endireitou e o largou, mantendo-se em silêncio.
Observando-o com incompreensão, aplicou-lhe um tapa na cara,
vontade compartilhada por cada presente.
— Suas colegas e você foram covardemente atacados, você
acabou sendo brutalmente eletrocutado e ainda se preocupa com
aqueles monstros? — expressou sua raiva.
Admirando a doce mulher que, desde o princípio, lhe aceitara,
refletiu em sua visão. Não eram obrigadas a aguentar vê-lo sofrer,
como estava acostumado.
Sem contar que não havia citado o mais importante, que era o
quanto se descuidara dos sentimentos de sua amada. Era,
claramente, a que mais sofrera e, em momento algum dispensou
palavras de conforto para acalmar seu coração.
Mirando-a no fundo de seus olhos abraçou-a delicadamente,
permanecendo em silêncio por intermináveis minutos, sentindo-a
segurar forte em sua camisa, retribuindo o gesto com tanta gana
quanto o fluxo de suas lágrimas.
— Desculpe fazê-la chorar por quem não merece suas lágrimas
— disse finalmente.
— Por que você adora se punir? — não compreendia. — É como
a Mio disse, você mesmo lançou aqueles raios.
— Meninas, saiam, por favor — pediu Petrus gentilmente,
sentindo-se emocionar.

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Lendo a situação se retiraram sem demoras e sem reclamações,
inclusive a enfermeira que acabara de conferir as demais
pacientes. A sós a encarou munido de doloroso olhar
— Me desculpe por te deixar tão aflita, mas o Lucer iria torturá-
las e não sabia quais eram seus limites, por isso me preocupei com
elas — explicou firme.
— Então aquele choque... — levantou o olhar.
— Fui forçado a conjurá-lo — assentiu com a cabeça.
Ouvindo a confirmação colocou-se sentada, mergulhando em seu
olhar e enxugando suas lágrimas. Respirando profundamente alterou
sua postura, reconfortando-o.
— Mas por quê?
— Porque eu tinha que o retirar do controle.
— Mas Mio disse que o choque foi muito maior do que um
humano pode aguentar. E você ficou desacordado por três horas!
Por que você teve que fazer algo tão perigoso? — perguntava
impaciente.
— Primeiro que essa menina exagerou em sua análise. Segundo
que eu tinha que conjurar uma magia forte, pois demônios são
mais resistentes do que humanos.
Nesse momento raciocinou e percebeu que fora a melhor opção,
mas não queria admitir, pois preocupava-se verdadeiramente com
o amado. Seu coração sofria ainda mais por saber que continuaria
a se arriscar.
— Mesmo assim, por que você tem que passar por isso? —
gritou irracionalmente.
— Porque esse é meu dever como o amaldiçoado.
— Não. Seu dever não é sofrer — não se atentou para o final da
frase.
Contemplando-a com extremo carinho, verificou, no fundo de
seus olhos, o que se esforçava para ocultar, principalmente de
quem gostava; era frágil, assim como a maioria das mulheres.

158
— Lu, situações como essa continuarão a se repetir, então acho
que seria melhor terminarmos nossa relação para que você não se
machuque.
Não desejava realizar tal propositura, porém imaginou ser o
mais acertado. Como esperava seu choque foi instantâneo, se
aquietando até o momento em que percebeu que precisaria ser
forte para ficar com seu escolhido.
— Só me dê um pouco mais de tempo e irei me adequar a você.
Ao vê-la tentar endurecer suas feições, portando-se como si,
percebeu que soara cruel e tratou de se corrigir, não antes de se
martirizar por seu erro. Abraçando-a fortemente, disse com uma
voz calma ao pé do ouvido, a arrepiando.
— Não quero que se adeque a mim, perdendo seu encanto.
Prometo que serei paciente.
Livrou-se de seu abraço para evidenciar seu intenso sorriso o
induzindo a esboçar semelhante aceno, se beijando
demoradamente após breve admiração.
Ao descolar de seus rostos e nova exibição de seus sorrisos
levantou-se, compelindo-o a, após ligeira insistência, segui-la. Ao
acalmar as colegas colocaram-se em direção ao dormitório
encerrando as últimas tarefas.

Seus pertences haviam sido trazidos do quarto de Marina pela


parceira enquanto ainda estava desacordado. Montando a cama
das crianças, começou a se lembrar da conversa travada antes de
ir para a enfermaria.
— Olá Lucena. — cumprimentou desconfiada.
Permitindo que entrasse pode notar sua evidente preocupação,
seus passos pesados e postura rija, totalmente diferente de seu
natural. Com certeza algo muito grave sucedera.
— O que foi Lu?

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Olhando para os lados, como se certificasse de ninguém a estar
vigiando, caiu em prantos, sendo prestimosamente acolhida pelos
braços carinhosos da princesa.
— Pediram para não espalhar essa informação, mas eu preciso
desabafar.
— O que foi amiga?
— O Petrus está inconsciente — gaguejou.
Odiava sua existência, mas Lucena era sua melhor amiga e,
momentaneamente, o amava. Não poderia destratá-la, pois sabia
que ela estava sendo iludida, tampouco ignorar a oportunidade de
lhe abrir os olhos.
— Mas por quê? — perguntou demonstrando afeto.
— Um grupo de alunas do segundo ano o atacou — a duras penas
conseguiu falar.
Um terço chocada, outro terço agradecida e o último, confusa,
experimentou um turbilhão de sentimentos antagônicos atingi-la
como um raio, deixando-a mais debilitada do que quem apoiando.
Tristeza e alegria, alívio e dor, raiva e apreço, eram alguns dos
sentimentos que se compunham seu imenso mistifório. Rapidamente
encheu a amiga tristonha de perguntas, acabando por afugentar sua
tristeza e a si própria.
— Calma Ma, não fique tão apavorada — apercebeu o estado da
amiga.
Cedera à pressão de sua mente, demonstrando o violento conflito
travado internamente. Envergonhada por ter sucumbido intentou
atirar uma lona para escondê-los novamente.
— Pouco me importa o que acontece com aquele demônio.
Sua estratégia acarretou efeito contrário, zangando a colega, não
por insistir em ignorar seus sentimentos, mas por continuar o
criticando para satisfazer seu orgulho e ego.
Fechou o semblante e enrijeceu o corpo, como se estivesse pronta
para travar um duelo. Respirando mais forte, visando adquirir fôlego

160
para confrontar verdades de que necessitava, a dispensou olhar
significativo.
— Você tem que deixar de ser tão criança. Decida-se quais são
seus sentimentos em vez de ficar de um lado para outro sem a
mínima discriminação.
— O Petrus sempre nos tratou bem e você o adorava, agora
passou a odiá-lo só porque ele revelou a verdade. Verdade essa que
você já sabia há muito. Por que não chiou antes?
— Se ele realmente veio para a escola para nos manipular e tudo
o mais, porque ele iria contar a verdade justo para você, alguém que
ele já sabia que não iria aceitá-lo? E para a irmã da maior caçadora
de demônios do reino? Nunca lhe passou pela cabeça que ele tenha
confiado em nós?
— Você acha realmente que a maior força maligna de toda a
história passou pela supervisão direta da diretora sem sequer deixar
rastros? Por que você não experimenta perguntar para a Joana se
ela não sabia disso?
Cessando o destrutivo sermão se encontrava arfante e sem saber
se havia dito algo que não deveria. Observando os olhos desfocados
e a face pálida da interlocutora, sentiu que concluíra seu intento, se
desfazendo de quaisquer temores.
Tornando a encará-la, nervosa com o destrato de seu amado,
porém em partes aliviada, se lembrou de que não a havia respondido,
então tratou de arrematar a seu sermão.
— Ele foi pego junto com quatro colegas nossas, então teve que se
manter na defensiva para protegê-las. Devido à grande quantidade
de mana gasta o Lucer tomou controle e acabou atacando
fortemente as adversárias, então conjurou uma corrente elétrica
mais forte do que um humano pode aguentar para não as ferir.
— E por causa disso ele está desmaiado na enfermaria a mais de
uma hora — se controlou para não voltar a derramar lágrimas.
Apanhou os pertences de Petrus e abandonou o apartamento
agilmente, a fim de aportar em seu quarto antes de se encaminhar à

161
enfermaria. Marina dependia apenas de si para decidir seu rumo,
pois fizera mais que o necessário.
— Vamos nos deitar Lu? — a trouxe de volta à realidade.

162
8. Perigos iminentes

— No que você está pensando? — perguntou observando a


inquietação da parceira.
— Em como foram agitados esses dias — escondeu suas
memórias.
— Pois é, nunca vi tanto acontecer em tão pouco tempo —
imprimiu um sorriso. — Isso foi acima de qualquer expectativa
minha.
Não tinha a menor dúvida quanto a ele possuir expectativas,
afinal era comum às pessoas, no entanto, a situação se mostrava
perfeita para descobrir um pouco mais sobre seu querido.
— Quais expectativas?
Percebendo sua falta abriu os olhos e exigiu de seu cérebro
rápido, porém pequeno, esforço para se esquivar à mais uma
tentativa. Apesar de saber ser necessária sua proximidade
constante com a penumbra, não se importava em revelar um mais
pouco.
— Quando cheguei nessa academia já tinha noção de que minha
vida seria agitada, mas nunca imaginei que seria tanto — imprimiu
pausa intencional. — E tão boa.
Dirigiu-lhe um olhar de espanto e incompreensão, pois se focava
nas situações ruins dos últimos dias e, contemplando por sua ótica,
ela tinha razão, entretanto se importava apenas com os pontos
positivos. Ou se preocupava tão pouco com os ruins que era
imperceptível.
— Muitas coisas boas ocorreram — respondeu com um enorme
sorriso. — Conheci vocês, pude ajudar Belatriz, mesmo que por
pouco tempo, salvei sete colegas e, é claro, pude atar um
esplendoroso namoro em tempo recorde.

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Aplicando certo gracejo seguido do depoimento emocional, se
viu livre de inquéritos a si prejudiciais. Estampado seu
característico semblante amoroso, retribuiu o elogio.
— Tenho sorte do primeiro homem da escola ser também o
melhor — se aproximou.
Entreolharam-se com expressões semelhantes, abraçando-se e
se beijando após curto tempo, olvidando os problemas que os
perseguiam. Ao se descolarem aproveitou para tocar em sensível
assunto.
— Irei dormir no sofá.
— Mas, por quê? — hesitou deveras.
— Porque somos só namorados. Isso não é certo.
— Mas nenhuma mulher descente deixa o namorado dormir no
sofá — arguiu.
— Nenhum casal vive junto desde o primeiro dia — retrucou.
Aceitando a argumentação pesarosa o indicou onde guardava as
cobertas, adentrando o banheiro ao se despedir. Apesar de sua
decepção se encontrava feliz, pois sabia que estava sendo
respeitoso.
Nunca em sua vida imaginou dias tão atípicos, inclusive aferindo
esperada reviravolta. Talvez fosse culpa das características
igualmente atípicas que possuía, mas quem poderia dizer ao certo?

Nada de anormal transcorreu durante o resto da semana letiva,


o gratificando, dentro do possível, com imprescindível descanso.
Isso até o fim dela, quando descobriu algo que dividiria seus
sentimentos.
— Por que estamos aqui mesmo? — perguntou o rapaz.
Haviam transpassado o portal da academia e se dirigido à
direita, parando ao ultrapassar o salão de festas. Se virando à

164
esquerda contemplaram seu destino; a área comercial da cidade
acadêmica.
Se constituía de vários estabelecimentos semelhantes,
construídos à base de madeira, adobe e camadas de verniz a expor
algumas gôndolas à frente das lojas, onde se encontravam as mais
diversas mercadorias disponíveis ao arcabouço feminino. Ademais
poucos bancos estrategicamente posicionados providenciavam
oportuno descanso.
O movimento lhe parecia intenso, pois captava a presença de,
pelo menos, nove dezenas de consumidoras, no entanto imaginava
se tratar de situação banal, afinal era o único passatempo conferido
às alunas.
— Porque meus pais chegarão hoje e devo aprontar-me
adequadamente para a ocasião.
— Tudo bem, mas não acho necessário — cedeu.
— São meus pais, eu faria o mesmo pelos seus — o dirigiu
delicado olhar.
Terminando a frase pode observar seu semblante transmutar
radicalmente e, embora tenha retornado ao original em menos de
um segundo, fora o suficiente para lhe arrancar o sorriso do rosto.
Contemplando-o empregar qualquer exclamação e avançar
imaginou que se equivocara, prosseguindo tranquila. Novamente
se viu arriscar seus planos de modo involuntário.
Parecia uma menininha a se divertir entre as diversas gôndolas,
aliviando seu coração das preocupações advindas do cenário
anterior. Como consequência acabou obrigado a equilibrar uns
cestos, porém parecia não se incomodar.
— Ainda não acabamos? — reclamou.
— Claro que não Pe — chateou-se com sua insistência.
— Não acho que você precise se enfeitar para ficar bonita.
Acabara de acumular muitos pontos consigo, além de uma
revisão em seu cronograma. Havia comprovado que realmente não

165
gostava de compras, assim como a maioria dos homens, mas era
um amor de pessoa.
Depois do excepcional elogio se sentiu no dever de encerrar as
compras, porém não acreditava ser proveitosa uma renúncia
instantânea. Reparando em sua amiga dentro de uma loja uniu o
útil ao agradável.
— Tem certeza? — perguntou ao detectar sua intenção.
— É claro. E, também, quero dar uma conferida naquela loja.
Entrando na loja de roupas se dirigiu diretamente ao seu alvo,
tocando levemente em seus ombros e a abraçando ao se virar.
Como era de se esperar, seu amado preferira manter distância por
enquanto.
— Que surpresa te ver por aqui amiga. Já superou aquelas
coisas.
— Não muito, mas tenho que sair, para representar a família
real — respondeu incerta.
— Esse já é um bom começo — a soltou.
— É, né — respondeu automaticamente, olhando para os lados.
Nem precisou se atentar para o comportamento estranho da
princesa para descortinar o motivo por detrás do gesto.
Ligeiramente decepcionada e extremamente irritada a dirigiu
significativo olhar.
— O que você está procurando Marina?
— Você está com... — não conseguiu continuar.
— É claro que sim Ma. Namorados ficam juntos — chamou-o
com discreto aceno.
Devido à sua inicial incerteza pensou que, assim como fazia,
estava evitando-a. Surpresa por percebê-lo lhe dispensar um
cumprimento básico acabou por pronunciar qualquer frase,
devido à vergonha de compreender-se imatura.
— Olá, o que você está fazendo aqui com a Lucena? —
perguntou desengonçada.

166
— O padre não faz o casal jurar permanecer juntos nas horas
boas e nas ruins? — questionou, as confundindo. — Nessa última
ele se refere a ir às compras.
— Quer dizer que você está pronto para ir ao altar comigo? —
perguntou astutamente.
— Acalme-se Lu — concebeu que foi gozado.
— Tenho que gravar esse momento para a posteridade.
Percebendo que Marina estava desconfortável na atual posição
de observadora a concedeu mais atenção, porém não o suficiente
para que permanecesse. A assistiu se retirar triste, sendo
confortada por caloroso abraço do parceiro.
Chegando em seu quarto dedicou-se a separar os bens
adquiridos em ordem, em tipos; acessórios, calçados e roupas.
Findada a tarefa ainda os discerniu em subtipo; saias, blusas, calças
e outras.
Rapidamente apanhou as roupas do companheiro e seus irmãos
e pediu para que se vestissem. Antes mesmo que pudessem tomá-
las de suas mãos estava a transmitir novas instruções,
demonstrando seu nervosismo.
— Não se preocupe Lu, tudo dará certo.
Ao acordar de seu transe, percebeu que se portava desesperada
por demasia, admirando contente o olhar oferecido. Não era
necessário tanto trabalho; poderia se tranquilizar.
— Você tem razão querido, estou complicando tudo.
— Ótimo. Agora que você está de volta posso sair — avisou.
— O que você fará? — ficou curiosa.
— Você verá! — disse enigmático. — Deite-se e descanse até
meu retorno.
Dito isso apanhou seu pequeno saco e saltou pela varanda. Ao
vê-lo se ausentar dirigiu-se às crianças com uma face confusa
pretendendo, além de externar seus sentimentos, incrementar seu
nível de empatia consigo.

167
— Eu não consigo entender o irmão de vocês.
— Insignificantes mortais não são capazes de compreender a
genialidade de um ser superior — provocou o menino.
— E se você não consegue entendê-lo está fadada a perdê-lo —
Amira completou.
Ficara pasma com suas reações inesperadas que, em questão de
segundos, a deixaram deveras apavorada. Branca como um
fantasma ficou a observá-los se retirarem calmamente, não antes
de se virarem para dar um último golpe.
— Será que você realmente é digna de nosso irmão? — começou
a menina.
— Se não o entender e não conseguir segui-lo ficará para trás —
terminou Marcus, com tom extremamente maligno.
Alcançado o objetivo, desapareceram pela porta,
constrangendo-a a balançar a cabeça para se livrar do pavor lhe
incutido. Optou por deitar-se como lhe sugerira.
Decorrida uma hora surgiu novamente na varanda, carregando
um vestido longo e belo. Abriu o vidro vagarosamente com a
intenção de lhe orquestrar uma surpresa.
A espiando deitada suspirou aliviado por imaginar que seria
simples. Cantando seu nome a viu fitá-lo no exato momento em que
estendia o presente à sua frente.
No mesmo instante em que viu o longo vestido em decote
princesa se apaixonou, fosse pelo tipo de costura, pelo acabamento
ou por sua atitude generosa e carinhosa.
Podia ver e sentir sua beleza exuberante em cada traço que o
categorizava, principalmente em seu reluzente vermelho alizarina,
perfeito para quem adorava vestir peças coloridas, mas relutava
em aparentar excessiva.
Os fios da linha, usada para pespontar a esfuziante peça, eram
dourados, que reluzia tanto quanto o próprio e estavam
propositalmente à mostra. A parte do busto era rebordada por
duas fileiras de folhas amarelas ouro, com pequeninas lascas de

168
rubi polvilhadas e a parte inferior fora confeccionada em uma saia
esvoaçante. Para completar, o modelo era drapeado entre as folhas
e o babado, combinando perfeitamente com seus longos cabelos e
seus belos olhos.
— Que vestido lindo é esse? — perguntou se levantando.
— Gostou? Ele é seu — respondeu sorridente.
Ficara maravilhada com a revelação, liberando rápida
interjeição e lacrimejando levemente. Ficou deveras feliz por, ao
abraçá-lo, ser imediatamente retribuída, internalizando em sua
memória o dia de seu primeiro regalo.
— Esse vestido é maravilhoso — disse encantada ao separar-se.
— Fico contente por saber disso.
— Ahhhh! — gritou como se tivesse descoberto algo
importante. — Então você esteve o procurando durante toda a
tarde.
— Quase. O vestido esteve guardado em minha mala por
bastante tempo, então estava levemente impróprio para uso, por
isso fui perguntar à minha tia como fazia para retorná-lo ao estado
original.
— Mas você gostou mesmo dele? — se mantinha incerto.
— Esse foi o presente mais bonito que eu já recebi — respondeu
animadamente.
Olhando para o vestido, a fim de admirá-lo mais uma vez e
voltando a encarar o parceiro avançou calmamente e o beijou. Nem
sequer se preocupava em investigar o motivo de ter o obtido antes
de conhecê-la.
— Agora vá se vestir que está quase na hora de ir para a festa —
hesitou. — E troque aqueles moleques também.
— Por acaso você se desentendeu com meus irmãos? —
Perguntou só para provocar.
A presenciou ficar sem graça e incrivelmente envergonhada,
pois, de um jeito ou de outro, havia reclamado de seus

169
irmãozinhos. Como mostraria ser uma boa mulher se não
conseguia nem aquentar duas crianças.
— Não se preocupe, sei exatamente o que aconteceu — riu
divertidamente.
— Sabe? — não sabia o que dizer.
— Claro que sim, e digo que estava demorando para acontecer
— colocou despreocupado.
Ficou chocada ao proferir de tal afirmação com tremenda calma,
pois sabia bem o que sentira e não achara graça nenhuma. Ao
reparar em sua face, se intrigou com sua reação.
— Como assim? Você trata isso como algo normal?
— É o trabalho de todo irmão se implicar com a namorada do
outro.
Agora que mencionara, percebeu que realmente assim se dava,
mas ainda não entendia a calma excessiva do parceiro e nem como
meras crianças poderiam ser tão afiadas.
— Eu nunca deixei que treinassem golpes físicos, então
aprenderam a realizar uma verdadeira guerra verbal — respondeu
seus sentimentos externados.
Percebendo que ansiava pela mudança do assunto vigente
prendeu seu olhar fugitivo, a fazendo engolir em seco e se arrepiar.
Alterando completamente sua faceta, alertou:
— Acho bom você tentar agradá-los, pois eles não irão te deixar
em paz.
Se retirou em um caminhar lento e sombrio, trancando a porta
do quarto, propositalmente com um ruído agudo. Novamente
branca de pavor confirmou de quem haviam herdado tal distinta
habilidade.

170
— Como você pode estar tão despreocupado, irmão? —
perguntou a menina.
Se encontrava sentado em uma das poltronas com os braços
largados sobre seu encosto, o irmão na vizinha apoiando-se em
seus braços e a garota em pé a frente deles.
— Ora minha irmã, o que posso fazer além de esperar? —
perguntou sem abrir os olhos.
— Concordo. É a mulher ali que está demorando — concordou
Marcus.
— Calma, vocês estão muito apresados — disse Lucena abrindo
a porta do quarto.
Ao ressoar de sua voz os irmãos lhe buscaram curiosos, apenas
Petrus permanecendo de olhos cerrados. Devido ao silêncio
instaurado sentiu-se compelido a quebrá-lo.
— É isso que estou tentando dizer para eles — Marcus o
cutucou.
Despertando atento ao aviso silencioso assumiu estado
catatônico. Extremamente boquiabertos contemplaram-na
estacionar à frente do quarto, como para ser admirada.
— Eu quero! — sussurrou o menino.
— Olha a sua idade para cobiçar minha mulher.
— Se quiser eu posso envelhecer — comentou com um
sorrisinho maldoso.
— Eu te mato se fizer isso.
Erguendo-se razoavelmente desnorteado se aproximou
endereçando-lhe gracioso elogio e, ficando de joelhos e tomando-
lhe a destra, beijou sua mão em um aceno respeitoso.
Ao vê-lo ajoelhado se lembrou dos tempos de nobreza e o
cortejo enfadonho dos riquinhos sem sal, concluindo que se
encontrava milhares de vezes mais feliz com o rei demônio, tão
desleixado como era.

171
Emocionada por haver encontrado seu prometido, o homem de
quem sua mãe sempre lhe contara histórias, se emocionou. Se
conteve para que lágrimas não escorressem, sendo prontamente
amparada pelo jovem a lhe conduzir porta afora.
— Não seria melhor trazer seus irmãos? — perguntou após
alcançar as escadarias.
— Você vai apresentar um homem a seus pais. Acho que já basta
de emoções.
— Tem razão! — riu divertidamente.
Trespassaram o portão sul no exato momento em que a
carruagem dobrava a estrada. A poucos metros reparou a parceira
inquieta, porém não se incomodou, pois, além de lhe soar uma
atitude normal, achava a si próprio com semelhante problema.
Ao cocheiro abrir a porta da carruagem presenciou os
orgulhosos pais de Lucena descerem. Notou que, apesar de buscar
por seus olhos, foi completamente ignorado, pois, obviamente,
ainda se encontrava aparte da família.
O homem trajava um casaco marrom claro, com detalhes em
dourado, uma fina camisa vermelha, com bordados em ouro, por
baixo e calça marrom, finalizando com um básico e brilhante
sapato de couro.
Sua aparência era extremamente convidativa, exibindo um belo
sorriso e uma face lavada, sobrancelhas finas e curtas e a ausência
de marcas de idade, assim como acontecia com sua esposa, em
menor nível.
Moreno, cabelo castanho claro, curto e liso, os belos olhos âmbar
que sua amada carregava e alguns centímetros a menos que a
parceira.
Ela demonstrava seu orgulho por portar o fogo como seu
elemento, assim como era o costume entre as magas do império.
Trajava um vestido longo, tomara-que-caia, vermelho
carmesim, com decote coração, confeccionado em renda
rebordada com cristais e saia sereia com fenda dupla.

172
Ademais utilizava brincos com pequenos rubis, presos por
correntes de ouro branco, um bracelete de ouro branco, em cada
braço, com um grande rubi no centro e sandálias de salto alto,
prateadas.
Se diferenciava da filha pelo cabelo ruivo, os olhos negros, seu
físico proporcionalmente enxuto, busto ligeiramente maior e,
claro, certas vantagens que a idade lhe brindava.
— Pai, mãe — hesitou por algum motivo. — Bem-vindos à
minha escola.
Antes que expusesse algo seu cônjuge avançou e abraçou a filha
com força, a erguendo por poucos segundos. Decepcionada com
sua atitude costumeira se dirigiu ao estranho.
— Ora, ora — esboçou sorriso maléfico. — O que temos aqui?
Se dirigiu imediatamente para interrogar seu alvo, o qual não
fazia a menor ideia do que lhe aguardava, porém a amada sabia
muito bem. Trocando específico olhar com o pai se viu liberta para
acudi-lo.
— Essa é minha mãe, Lilian e meu pai, Arthur.
— Esse é Petrus — congelou diante do olhar materno. — Meu
namorado.
— Hmm. Interessante!
A mulher começou a rodeá-lo lentamente, aplicando delicados
toques esporadicamente, o causando imensa estranheza. Ao
alcançar sua retaguarda, lhe apalpou os glúteos, causando-lhe o
reflexo de saltar alguns passos à frente.
Pai e filha entreolharam-se surpresos com a vulgar e inesperada
atitude. Enquanto foi ao auxílio da esposa, admirando a resistência
do rapaz, preferiu se resguardar em silêncio.
— Boa tarde, senhora — tomou a iniciativa antes que fosse
novamente atacado — Sou o assistente do professor Vampeto.
Relatou a história que haviam previamente combinado, porém
a matrona, astutamente percebeu o que se passava, obtendo uma
mera indiferença ao buscar o olhar do cônjuge.

173
Enlaçando o braço do rapaz e o comprimindo contra seu corpo
o pediu, de forma inocente, para conduzi-la aos aposentos de sua
filha. Novamente estupefatos os seguiram.
— Você sabe por que a mamãe está fazendo isso? — sussurrou.
— Imagino — respondeu pensativo.
— Diga então — ansiava por respostas.
— Apenas confie em sua mãe — pontuou sabiamente.
Ao constatar que começara a falar, intentando obter
informações privilegiadas de seu amado, calou-se, aguçando sua
audição. Era inevitável ceder às suas artimanhas, acabando por
revelar alguns fatos que não imaginava serem importantes.
Ao se acercarem do quarto adiantou-se e, como um cavalheiro,
abriu a porta para Lilian, entrando após. Flagrou-se a sentir
ciúmes, afinal deveria sê-la sua acompanhante.
Ao atravessarem a porta constataram-nos sentados no grande
sofá, incendiando suas pupilas. Virando de frente aos dois
constatou claramente que a mãe o prendia.
— Mãe, o que é isso? — estava abismada.
— Não te interessa — tentava esconder sua irritação.
— Lilian! — repreendeu.
Conhecia a esposa o suficiente para desvendar o que havia
sucedido antes de visualizar seu semblante. Demonstrando seu
descontentamento o liberou, admirando-o buscar
instantaneamente por seu porto seguro.
— Agora que tudo está resolvido vamos começar — anunciou o
senhor.
Sentando-se ao lado da esposa e indicando para que tomassem
as poltronas iniciaram a esperada conversa do motivo de estar
junto de sua filha, pois era comum físicos se aproveitarem da
inocência das magas, propositalmente preservada como solene
valor, para casarem consigo e assim “ganharem a vida”.

174
Obviamente sofreram dura reprimenda por parte da progênita,
porém, compreendendo a conjuntura, os concedeu razão,
ganhando muitos pontos com os sogros.
Haviam obtido a primeira prova de que necessitavam no
momento em que não sucumbiu ao charme da genitora e a segunda
puderam constatar em seu relato.
O inquérito se tornou mais crível ao captarem a face de
estupefação da rebenta ao ouvi-lo declamar sua história completa,
trocando, obviamente “aluno” por “assistente”.
Ao encerrar os progenitores se calaram e, após se entreolharem
por poucos segundos, iniciaram repentina conversação sobre os
acontecimentos do mundo afora, algo enfadonho a si por tratar de
assuntos de “nobres”.
— Lucena! — chamou Lilian ao se levantar. — Prepare-se.
— Não acredito nisso, mãe! — exclamou irritada.
— Você sabia que isso ocorreria mais cedo ou mais tarde, filha.
Dirigiu-se à porta como se nada mais houvesse, expelindo no ar
o letal veneno do orgulho. “Agora acabou”, pensava, se preparando
para a guerra que se seguiria, transmutando-se em um fantasma
ao observá-la a seguir.
— O que? — escapuliu.
Durante os intermináveis minutos em que permaneceu em tal
estado, Arthur esteve rindo de sua desgraça. Finalmente em
condições o explicou calma e pausadamente.
— Lilian adora disputar com a filha.
Não era isso que queria saber, porém foi o que obteve antes de
vê-lo levantar e partir. Esfregando os olhos e balançando a cabeça,
se recuperou do inesperado baque, seguindo-o sem demoras.
Em silêncio se dirigiram ao ginásio, encontrando-o vazio. Logo
ao pisarem no ambiente a imagem refletida pelo espelho se fez,
atraindo-os como insetos pela luz, a tempo de contemplarem
Lucena caindo de joelhos.
— Qual o problema delas? — questionou abismado.

175
Contou que, há alguns anos, decidiu contratar uma instrutora de
magia para a filha, convencendo a esposa que teimava em treiná-la
pessoalmente, porém teve que concordar em serem por ela
aprovadas.
Após meses de procura e várias respostas negativas, se viu
obrigado a aceitar seu desejo. Devido às instruções preencherem
grande parte do tempo de ambas, acostumaram-se a tratar de
assuntos pessoais durante esses períodos.
Narrou inclusive momentos em que humilhou candidatas
crentes de que aceitaria sermões em plena quietude, descobrindo
a duras penas que sua personalidade não as deixaria desfrutar de
paz até que se retirassem por conta própria.
Enquanto isso a batalha se desenrolava quente, contabilizando
as várias magias conjuradas por Lucena, em geral, facilmente
absorvidas pela adversária, que, apesar de certo esforço, conduzia
a situação com tranquilidade.
— Então ela é uma maga que guarda o poder para si e não auxilia
o reino?
— Primeiro que não há motivo para ajudar um reino há muito
perdido. Segundo, como você sabe que ela nunca saiu a campo?
Por se envolver em demasia no animado relato se descuidou
incrivelmente, se pondo em situação desconfortável por nada. O
silêncio persistente atestava-lhe o fato do jovem o ignorar, assim,
somado ao ajoelhar da filha, o irritando deveras.
— Minha mulher sempre foi muito politizada e discutiu com a
coroa sempre que possível, porém, há alguns anos, o rei se trancou
em sua fortaleza e escolheu se cegar — avançou ligeiramente. — E,
se até eu percebi sua aura maligna, que dirá a Lilian.
Fora completamente acuado em segundos pelo que imaginava
ser o menos capaz; e pior, não sabia como poderia contorná-lo. Por
sorte Lucena atraiu a atenção fraterna.
— Está ficando mais lenta! Será que é por causa daquele físico?
— provocou.
— O Petrus não fez nada de errado — defendeu prontamente.

176
— E você? — a observou maliciosamente.
Compreendeu o intuito de suas perguntas, enraivecendo-se por
rememorar de como fora afligida pela tática durante sua vida, mas
havia mudado e revelaria, convicta, à mãe.
— Quer realmente saber? Sim, porque gosto dele.
Sentindo-se imensamente ofendida levantou dois dedos para o
alto, observando a filha se esquivar do pilar de fogo que se formou
em sua posição. Antes de retomar sua postura atirou uma grande
bola de fogo, antevendo que não faria efeito.
Sem demoras levantou sua mão e, de sua palma, conjurou uma
rajada de chamas para a frente, atingindo-a em cheio. Surpresa a
contemplou avançar lenta e penosamente, porém suportando sua
magia, enquanto tentava dizer algo.
— Por que você sempre questiona minhas escolhas?
— Não mereço sua confiança? Não mereço seu apoio?
Prevendo que não desistiria e, por isso, acabaria consigo
própria, interrompeu sua magia, causando o repentino
desaparecimento da força que lutava contra, precipitando-se ao
chão pouco depois da metade do trajeto.
Ao vê-la se espatifar seu instinto materno gritou, a fazendo
correr e, ao alcançá-la, se atirar para apoiar sua cabeça em seu colo.
A contemplando com tenro olhar e acariciando seu cabelo
suavemente exprimiu.
— Questiono suas escolhas para me certificar de que você tem
confiança em si, afinal sou sua mãe — chorava levemente.
— Obrigada, mãe! — incrivelmente se encontrava de olhos
secos.
Foram suas últimas palavras antes de desmaiar por exaustão
nos braços de sua genitora, sendo cuidadosamente apoiada, como
se fosse uma criança. Tão logo a dimensão se desfez e ambas
retornaram Arthur pareceu teletransportar para junto da família.

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Prestimosamente tomou a rebenta nos braços e a estendeu a
mão. Travando acalorado debate com o cônjuge através de olhares,
tomou imprescindível decisão.
— Garoto, venha cá! — chamou com voz grossa.
Com certo temor do homem que a pouco lhe encurralou,
caminhou de forma calma e respeitosa, captando com exatidão a
sintomática faceta que a mulher lhe endereçava.
— Cuide muito bem de nossa filha — entonou sentimental.
— Caso contrário morrerá — o entregou a filha adormecida.
— Claro! — respondeu cortês após engolir em seco.
Apanhou a garota em seus braços e, após se despedir
educadamente, colocou-se a caminho de sua morada. Antes que se
distanciasse ouviu um sinal sonoro e virou-se.
— Antes de oferecer falsas expectativas à minha filha, resolva
suas pendências.
— Do que está falando senhora? — disfarçou.
— Você pode se enganar, mas nossa filha não existe para te
servir — Arthur completou.
Liberado se viu assaltado pela angústia de desaparecer em
instantes, porém se conteve. Observando-o se afastar calmamente
sentiu a necessidade de conversar com o parceiro.
— Será que agi corretamente?
— Claro que sim querida — apoiou.
— Então por que continuo com um que de dúvida?
— Porque você sabe que ele terá um complicado futuro e pode
prejudicar nossa filha propositalmente, mas ele não é esse tipo de
homem — tentou, inutilmente, acalmá-la.
— E qual tipo de homem ele é?
Permaneceu em silêncio por não saber responder, afinal não
pretendia deixar sua garotinha nas mãos de um demônio, porém
se viu obrigado a obedecer às vontades de sua esposa, que, apesar

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de permanecer incerta, constatou a felicidade da filha. Quem sabe,
pelo menos por agora, se tornasse bálsamo para a vida que tanto
desprezou?

Terminando de subir o primeiro lance de escadas reparou que


a companheira acordava e, aos poucos, recuperava a consciência.
Ao perceber que era carregada pelo amado deitou a cabeça mais
confortavelmente.
— O que houve? — perguntou tranquilamente.
— Você desmaiou por pouco tempo, devido ao seu excessivo
esforço.
Instantaneamente se recordou do acontecido, inclusive das
palavras trocadas antes disso e das reações de si própria. Não
conseguiu também se isentar do pesar de ter permitido ficar a sós
com seu pai e, com certeza, sofrer incômodo golpe.
— O que meu pai te disse?
Estava temerosa, pois tinha pleno conhecimento de quanto o
genitor poderia ser incisivo, a amedrontando. De um jeito ou de
outro sempre descobria os segredos de seus pretendentes, e isso
não poderia acontecer.
— Não se preocupe, seu pai não disse nada que já não esperasse.
— Você sabe que não consigo fazer isso.
Claro que sua gentileza não a permitiria ignorar sua situação,
porém deveria dissuadi-la para que não se exaurisse com
inutilidades, além de mantê-la afastada da verdade.
— Onde seus pais irão dormir?
— Não se preocupe, eles irão voltar para a capital — revelou.
— Mas, por que não dormirão no seu quarto? — estranhou.

179
Nesse momento, lembrou-se da conversa com sua mãe,
tornando sua face em um mar vermelho e forçando sua descida, a
fim de escondê-la de uma análise mais apurada.
— Isso não importa.
Chegando no apartamento foram se preparar, com a promessa
de que não mais tocariam no assunto, afinal, ambos tinham algo ao
qual esconder. Agradeceu à resolução alcançada, pois não queria
lhe incutir grande temor logo de início.
Claro que não conseguiram a cumprir, pois, logo que o dia raiou,
começou a criticar prolongadamente a mãe. Vendo-se no dever de
fazer o contraponto, a elogiou, induzindo-a a parar as reclamações.
A grande questão é que não desejava assisti-lo defendendo
outra mulher, principalmente uma que ansiava por enumerar os
defeitos. Para disfarçar começou a erguer, em magnânima pilastra,
o pai.
Percebendo seus sentimentos, retornou à discussão anterior,
concordando com a garota quanto ao endeusamento para que não
pudesse utilizá-lo novamente para escapar.
No transcorrer dos minutos verificava maior desconforto em
seu âmago, atingindo, em determinado momento, o ponto de gritar
para que cessasse sua comedida, pois entendera. Constatando sua
sinceridade convidou-a para passear pela floresta, encerrando
verdadeiramente o tumultuado tópico.
Acercando-se de seu destino, iniciaram uma tranquila
caminhada, aproveitando ao máximo a paisagem. Em tal recôndito,
fechado pela natureza, a calma era algo natural, deixando os
pensamentos fluírem além dos limites imagináveis.
Permaneceram de mãos entrelaçadas e em silêncio até
atingirem cerca de metade da extensão do souto, onde decidiram
ancorar. Ao se deitarem na relva foram atacados pela sonolência
característica da área.
Ao se levantarem, perceberam que se encontravam quase ao
final da tarde, então sugeriu que fizessem alguns exercícios
básicos. Naturalmente a parceira recusou, porém cedeu ao

180
mencionar que detinha grande potencial e precisava fortalecer seu
corpo.
Ao findar da sessão, Lucena decidiu se lavar na lagoa mais
próxima para não ter de entrar em seu apartamento no estado em
que se encontrava. Prontamente o jovem se incumbiu de retornar
ao lar para acertar os preparativos para sua chegada.

— Ela está muito atrasada.


Andava em círculos freneticamente, preocupado com o
paradeiro da amada. Há horas repetia o mesmo ritual de, a cada
minuto, conferir, impaciente, o relógio, como se fosse viajar ao
exato momento em que decidisse dar as graças.
— Vai ver ela está com outro cara — provocou Marcus.
Aplicando um instintivo movimento de cabeça fechou o
semblante e começou a olhar para cima, como se a resposta
estivesse no teto, voltando-se ao perceber a alfinetada.
— Se você quer me fazer ficar com ciúmes, desista.
— E se ela foi pega por alguém? — questionou Amira.
— Mas só há eu de homem aqui — pensou que também tentava
fazê-lo se enciumar.
— E você não tem nenhuma inimiga mulher, né? — ironizou o
irmão.
Parando para pensar enxergou que estavam com a razão, pois
as magas odiavam os demônios e tinha certeza de que nenhuma
acreditava ser um homem comum, além de saber, com
antecedência, que nem todas engoliriam sua história.
— Meu Deus! Que situação complicada — respirou
profundamente.
Imediatamente se acercou do portão sul, dirigindo-se à floresta
sem pensar duas vezes. Antes que alcançasse a metade do caminho

181
sentiu uma sensação que não poderia ser explicada, freando
violentamente.
— Eu sei que você está me espionando, apareça — virou-se e
gritou para cima.
— Nossa, que espetacular! — uma mulher apareceu no telhado
bem à sua frente. — Parece que os comentários sobre você eram
verdadeiros.
Ao gesticular com a mão eis que surgem duas capangas, uma
maga de fogo à esquerda e à direita uma de terra, como poderia
observar segundo suas cores características. Além disso se atentou
apenas para suas roupas práticas para uma ação física e um sorriso
maligno a lhes permear.
— Parece que a chefona veio me desafiar — disse sorrindo.
— Infelizmente nossa chefe é muito ocupada — disse a recém-
chegada da esquerda.
— É difícil demais sustentar o título de melhor da sala —
continuou a outra.
— Então irei pular logo para a parte em que eu te venço —
terminou a líder.
Ao oscilar o dedo uma terceira apareceu carregando Lucena
desacordada, rudemente sustentada pelo colarinho e arrastada
com enorme desprezo. Ao entregá-la à superior postou-se ao lado
da amiga de vermelho.
— Deixem a Lucena em paz, ou vão sofrer as consequências —
gritou realmente furioso.
— Está esquecendo de quem tem o poder de dar as cartas aqui?
— disse a recém-chegada.
Nesse momento a garota começou a acordar, abrindo seus olhos
vagarosamente, por causa da pancada que levara. Ainda atordoada
e de mente enevoada ouvia apenas murmúrios.
— Se não se entregar, sua namoradinha irá passar para o outro
mundo — ameaçou a líder.

182
— Seu plano funcionou direitinho, não é? — questionou
nervoso.
— Perfeitamente — disse satisfeita.
Sua vontade era de arrancar-lhes o sorriso podre no instante em
que as viu, porém sabia ser necessário se controlar e permitir que
prosseguissem com sua auto adoração para que aplicasse seu
plano.
— No momento em que o descobrimos, nós soubemos do que se
tratava — começou a da direita.
— E seus atos impensados te colocaram em evidência —
observou a maga da água
— Principalmente aquele na sala de conferências — continuou
a terceira.
— Então tive a ideia de ser a primeira a te derrotar — terminou
a líder.
Mais um pouco e seria capaz de concluir seu propósito. Só
precisava prolongar seu tormento por poucos segundos e sabia
exatamente como dar profícuo empurrãozinho.
— Mas sabia que não era capaz para mim.
— Todas já ouvimos a lenda e apenas um exército seria capaz
— lembrou a de marrom.
— Mas você ainda é um aprendiz — disse a da esquerda.
— E, com isso, quatro excelentes veteranas podem dar conta —
concluiu a maga do fogo.
— Então você capturou essa mulher para usá-la contra mim. Já
pensou na possibilidade de sua estratégia não funcionar, afinal ela
não é importante para mim.
— Por favor né — sabia que havia executado o xeque-mate. —
Agora seja esperto e se entregue, para receber sua punição e não
iremos lhe estragar muito.
Por vários instantes submergiu em sepulcral silêncio, grato por
não desconfiarem nem um segundo de sua simplista trama.

183
Restava ser iluminado com uma mirabolante forma de se safar da
complicada situação.
— Do mesmo jeito que eu deixei o poder subir à minha cabeça e
imaginei não existir ninguém capaz de combater-me, você está
fazendo o mesmo.
— Do que você está falando seu demônio? — enfureceu-se.
— Estou falando do fato de você nem ter percebido meu escudo
protegendo a refém — respondeu sorridente.
Posicionando Lucena de costas para si e a forçando a ajoelhar,
dirigiu uma lâmina à sua garganta, sendo detida pela barreira a
milímetros, porém não antes de fazê-la desmaiar. Procurando-o
instintivamente com os olhos, lançou-lhe um sorriso torto.
— Você pode ter feito com que não possamos matá-la
magicamente, porém uma queda dessa altura poderia resolver o
caso.
Apanhando com violência sua presa atirou o corpo desfalecido
do telhado sem cerimonias, incutindo-lhe imenso pavor. Vendo-a
despencar sua mente esvaneceu, focalizando um único
pensamento.
Alocando grande quantidade de vento em seus pés atingiu
altíssima velocidade, porém saltou ao perceber que não chegaria a
tempo. Por pouco a apanhou instantes antes do impacto.
Devido à proximidade se chocou violentamente com a parede,
liberando um leve gemido, o qual a fez despertar novamente. Ao
recobrar a consciência, percebeu Petrus a lhe balançar e gritar seu
nome repetidamente.
— O que houve? — perguntou ainda confusa.
— Depois lhe explicarei — levantou-se apressado. — Agora saia
daqui! Já!
— Peguem-no, garotas! — ordenou a líder.
Retornando ao exterior pôde vê-las de relance antes de ser
atingido por uma simples lufada de ar que pretendia ocultar as

184
cinco bolas de fogo que seguiam atrás da agressora. Utilizando-a
para se afastar defendeu o fogo com a mão direita.
Repentinamente foi acertado em sua retaguarda por um chicote
de água, não percebendo, devido sua reação automática a enorme
rocha lançada à sua frente, sendo empurrado ligeiramente pelo
impacto.
Em seguida foi surpreendido por nova rajada de ar nas costas,
mantendo o equilíbrio por pouco, porém não conseguiu escapar do
soco que a chefe lhe aplicou que, apesar de ter sido fraco, estava
carregado com a força do vento, levando-o ao encontro do chão.
Veloz e potente coluna de pedra se ergueu abaixo de seu peito
para o virar forçosamente. Ao tocar o solo, teve suas mãos e pés
atados por uma corda de água.
De longe, Lucena assistia à difícil luta que travava, determinada
a seguir seu desejo e não se revelar. Após vê-lo incapacitado,
assistiu, horrorizada, um grande punho de pedra atingi-lo, não se
contendo e partindo em cega corrida.
— Pegue-a! — ordenou à maga de fogo.
Com extrema facilidade a apanhou, se irritando sobremaneira
ao ouvi-la preocupada com o amado, a derrubando violentamente.
Observando desesperado a cena, suplicou:
— Soltem ela, vocês já me têm — gritou.
Começaram a rir em altíssimo tom assustando por demais a
capturada, que levantou a cabeça para buscar conforto em sua
figura, porém sabia exatamente o que se passava.
— Por que nós te escutaríamos? — disse a da água.
— Traidoras não merecem piedade — pisoteou Lucena, com
força.
Sofrendo incrivelmente por testemunhar a aflição da
companheira, não conseguiu evitar sonoro lamento. Reparando
que conseguira a atenção das agressoras lançou último apelo:
— Você prometeu que seria só eu.

185
— Eu não prometi nada, lembra? — abaixou o tom. — E, além
do mais, iremos lhe matar de qualquer jeito.
— Você e todas suas companheiras — finalizou a maga de fogo.
Ouvindo tais palavras esbugalhou os olhos e relembrou seu
passado. Em dado momento suas lembranças se aceleraram e
tomaram vida própria, dialogando consigo.
Permaneceram envolvidas em entretidas gargalhadas, não
percebendo, a drástica mudança que ocorria com a fisionomia do
prisioneiro, mesmo que diante de seus olhos.
Em silêncio observou o amado começar a suar frio, esmigalhar
os dentes e tremer levemente, transformando seu olhar ao final do
processo. Imensa escuridão se apoderou de seu braço enquanto
sua aura se mergulhou em imensurável instinto assassino.
Rompeu a magia que o segurava e se alçou ferozmente,
aplicando um rugido com a máxima potência de seus pulmões,
completamente alterado. Assustadas recuaram, ao passo que
Lucena, agora liberta, se apressou ao seu encontro para convencê-
lo a parar.
— Vocês me conhecem? Isso é ótimo, pois não precisarei me
segurar — se revelou, Lucer.
Antes que compreendessem o que dissera realizou uma magia
de vento, atirando Lucena a vários passos de sua retaguarda. Em
seguida um círculo de chamas foi elevado ao céu, semelhante a
uma grande e larga muralha, delimitando o campo de batalha.
— Com qual devo começar? — deliciava-se com o medo de suas
presas.
Por longos instantes se encararam, tentando prever o
movimento de seu adversário, enquanto discutiam, através de
olhares, um plano razoável. Com enorme velocidade o atacaram
conjuntamente, contemplando, pasmas, a fácil dissolução dos
feitiços.
— Que ataque amador — cuspiu com enorme desprezo.

186
Dito isso atirou a mão para cima e quatro chicotes de água foram
criados próximos à muralha, acompanhando sua extensão e
grossura. Rapidamente foram atiradas lâminas de vento para
suprimi-las, porém sequer conseguiram arranhar seus alvos.
— Acho que não — abriu imenso sorriso.
Pretendendo torturá-las abaixou a mão calmamente, se
satisfazendo, ao final, com o impiedoso ataque desferido. As
tentativas de se defenderem e esquivarem apresentaram parco
resultado, aterrorizando-se com a quebra de suas resistências,
assim recebendo, como consequência, a doce melodia dos altos e
longos gritos de aguda dor.
Com um estalar de dedos os chicotes se tornaram um
conglomerado de gotas de água, despencando sobre as vítimas
como um bloco, as privando de ar momentaneamente.
Estendidas no chão, de faces ao céu e se revirando de dor, não
repararam o que a espectadora, aterrorizada, a muito presenciou.
O agressor gozava exageradamente do suplício aplicado, exibindo
expressões exageradas e, por que não, tenebrosas.
— Agora, o segundo elemento — disse em tom psicopata.
Começou a realizar movimentos com a mão, partindo para
passos desengonçados e um rodopio. “Ele lança enormes feitiços
apenas por balançar a mão, então a próxima magia deve ser
medonha” Pensaram conjuntamente.
Terminados mais alguns itens decorativos, finalmente aplicou
carregado soco, realizando uma posse bem elaborada e fazendo
com que se encolhessem, aguardando o pior.
— Brincadeirinha! — gargalhou escandalosamente.
Ao perceberem que nada acontecera abriram seus olhos,
somente para observá-lo, ainda na posição enfeitada, apontar seu
dedo para cima, elevando enormes colunas de pedra.
Sentindo seus ossos estalarem urraram, se vendo arremessadas
cruelmente. Ao atingirem certa metragem, observaram como
jogava sua mão aberta para baixo, executando forte rajada de
vento que as atirou de volta com força descomunal.

187
Fizera questão de posicioná-las com o olhar voltado às estrelas,
para que pudessem presenciar seus últimos segundos. Ao
contemplá-las sofrendo, sentiu-se revigorado e pronto para o
aguardado desfecho.
— Parece que vocês quebraram alguns ossos — gargalhava
deliciosamente.
— Por favor, poupe-nos — pediram, chorando de dor.
— Por que eu deveria mantê-las vivas? — demonstrou
interesse.
— Perdão. Deixaremos vocês em paz — responderam
conjuntamente.
— É um bom argumento — falsificou uma aceitação, gritando
com imensa potência em seguida. — Mas será que vocês teriam
aceitado o perdão de minhas companheiras?
Percebendo a que se referia relaxaram seus corpos, aceitando
as palavras e entregando-se ao letargo que insistia em arrebatar-
lhes. Enfim, desfaleceram.
— Ou será que se socializar com um demônio é algo tão horrível
que não mereça o perdão dos humanos? — desperdiçava a ira de
seus pulmões com o invisível.
Dito isso esticou sua mão direita para o lado e iniciou a
formação, milímetros acima de sua palma, de uma bola de fogo que
aumentava de tamanho a cada segundo que se passava, tornando-
se imensa em questão de instantes.
Percebendo que era o momento final se levantou com
dificuldade, intentando intervir antes que ocorresse uma tragédia.
Abrindo uma passagem no pilar de fogo e se aproximando se jogou
em seu braço esquerdo.
— Pare Lucer, por favor.
— Você não entende o que elas pretendiam, mulher? — a fitou
com repulsa. — Elas pretendiam matar você junto de todas que
mantiveram contato com o Petrus.
— Eu sei, mas poupe-as! — pediu desesperada.

188
— Elas são da mesma laia que os malditos que destroem
milhares de vidas. Da mesma laia que os malditos que mudaram a
vida dele para esse inferno. Como posso poupá-las?
— Perdoando-as!
Como poderia dizer algo assim tão incólume? Será que era
incrivelmente inocente ou apenas uma idiota? Não se importava,
pois iria tragar de uma vez a vida das quatro almas insolentes que
jaziam inconscientes.
— Não há perdão para o que fizeram — se preparou para
arremessar o projétil.
— Se você as matar não terá sido melhor do que elas — disse
em tom firme.
Suas palavras atingiram-no em cheio, substituindo o puro ódio
em sua face para bendita compreensão. Em um suspiro esfacelou
por completo as magias conjuradas e se virou.
— Isso é o que ele sempre me diz.
— Obrigado por não as matar — agradeceu sinceramente.
— Você é igualzinha àquele idiota. Sempre priorizando os
outros.
Sua percepção sobre o tão temido rei demônio mudara
novamente, adentrando de leve uma região positiva. Por sua vez
admirou como seu parceiro havia encontrado o que por tanto
desejara, mesmo que nos últimos minutos.
— Você não é mau, apenas foi criado assim.
— Só não fale. Mulheres são como peixes, a maioria morre pela
boca. Não faça o mesmo com ele ou não aguentarei — voltou ao seu
costumeiro semblante tosco.
— Pode deixar, cuidarei bem de seu parceiro — ignorou a
provocação.
Despedindo-se uma última vez o percebeu se esquivar de seu
olhar e dar lugar ao companheiro sem mais delongas. Ao vê-lo cair
de joelhos o apoiou em sua cintura, agradecendo por sua rápida
recuperação.

189
— Ainda bem que você interveio, Lu — a abraçou.
Se demoraram no gesto que simbolizava seu reencontro,
liberando, ambos, suas tensões e temores. Ao suspirarem aliviados
se lembrou das agressoras, as cedendo breve olhar de preocupação
e interrogando-o se estavam mortas.
— Claro que não! — respondeu sem se mover.
— Como você pode saber, Petrus? — tentou induzi-lo a, ao
menos, conferi-las.
— Porque eu já vi vários cadáveres — justificou secamente.
Chocada com a resposta obtida empalideceu extremamente,
mas, ao mesmo tempo, fomentou sua ânsia de descobrir as
sombras do passado de seu escolhido.
Repentinamente lhe veio uma questão pertinente à mente. Não
se atentara antes, mas como ninguém foi conferir o motivo de tanto
estardalhaço que a luta provocara?
— Tenho os meus truques — respondeu com um sorriso.
— Então vamos levá-las rapidamente para a enfermaria — disse
depois de um suspiro.
— Eu e você cuidaremos disso. Ele, dos estragos — disse Joana,
surgindo pelo portão.
Assustou-se ao ver a diretora, fosse pela surpresa ou por ter
visto a situação e poder culpá-los. Procurando por seu olhar
constatou tranquilidade, porém, apesar de se acalmar, a
automaticidade foi mais forte.
— De onde você veio?
— Eu a chamei — disse caminhando em direção à tia.
— Como você fez isso? — perguntou curiosa.
— Telepatia.
— Então você também consegue usar telepatia?

190
— Todas as magas são capazes de utilizar telepatia, afinal é uma
habilidade da magia psíquica, sendo esta inerente à própria mana
— afirmou Joana.
Encerrando a conversa a apressou para que os consertos
necessários fossem encerrados antes que amanhecesse. Levantou
com dificuldade a líder, passando seu braço por baixo do dela,
enquanto a diretora simplesmente levitou uma placa de terra
contendo as restantes.
— Esperem um pouco.
Abeirando-se estendeu as mãos e produziu uma luz fraca,
impressionando a parceira por saber sobre o que se tratava, mas
manteve-se calada.

Depois de o deixarem, voltou a se agitar, sendo vencida por seu


caráter. Não conseguia mais preservar-se em silêncio.
— Isso foi tão impressionante assim? — acostumara-se com a
estranheza do sobrinho.
— O representante supremo de toda a maldade do mundo
utilizando a magia sagrada criada pela igreja? Muito! — explicou
sua visão.
— Inocente! — a olhou de relance.
— Foi só uma ironia — pensou não ter entendido.
— E quem disse que estava falando disso?
Sentiu-se ligeiramente irritada por não a compreender, mas
ignorou o acontecido ao se verem perante a enfermaria.
Logicamente Nayde se estupefez no momento em que captou as
injuriadas, mas Joana lhe convenceu com uma história
mirabolante.
Logo que se despediram da doutora resolveu interrogá-la, a fim
de obter respostas que tanto lhe faziam falta. Cuidou de ser direta
para que pudesse espremê-la o máximo possível antes de
encontrá-lo novamente.

191
— Ele se descontrolou depois de ouvi-las dizendo que mataria
suas companheiras. Você sabe o que isso pode significar?
— Você ainda não está pronta para tomar conhecimento sobre
tais fatos.
Devido à rápida e ríspida resposta se chateou, imaginando o
motivo de sempre duvidarem de sua capacidade, porém percebeu
que não tentou lhe enganar nem por um segundo, significando que
entendia sua necessidade. De ânimo renovado continuou.
— Não adianta ser indelicada comigo, pois continuarei
insistindo.
— Desculpe-me se assim pareceu, só lhe dei um alerta —
explicou secamente.
— Qual alerta? — preocupou-se.
— Você não está pronta para conhecer o passado de Petrus —
admitiu tom tenebroso.
— Sou a noiva dele, se não estiver pronta, ficarei.
— Com certeza não! — riu discretamente. — Primeiro reflita
sobre o que você descobriu até agora e tente absorver isso.
Pensando bem, em pouco tempo se surpreendera demais com
os fatos descobertos, necessitando de tempo para refletir, então
era óbvio que as revelações sequentes exigissem mais desse
esforço.
— Se vai ficar com ele por mais tempo tem que aceitar que ele
não irá lhe contar muito — sentiu que deveria adverti-la.
— Isso não é nada reconfortante.
— E quem disse que algo com aquele moleque é?
— Nossa, você não é uma tia nada tradicional.
Permaneceram rindo durante o resto do trajeto, embora
estivesse triste por não obter revelação alguma.
Atravessando o portão se surpreenderam, pois havia terminado
todo o trabalho no pequeno tempo em que se ausentaram.

192
— O trabalho ainda não terminou — revelou subitamente. — Vá
para casa e não me espere.
Vendo-o partir foi acometida por um aperto no coração e, ao
buscar olhar de Joana, se recordou do que dissera. Deveria ter se
preparado desde o momento em que foi alertada.
Silenciosamente se aproximou da porta de uma casa que sequer
enxergava, batendo com força. Ao percebê-la abrir impeliu pela
pequena fresta. A surpresa gerada em sua dona fora tão vigorosa
quanto o empurrão sofrido.
O cômodo em que penetrou se mostrava ser uma sala de estar
cheia de móveis que, sinceramente, não relevou minimamente,
assim como a simples camisola rosa e pantufas brancas que
trajava.
— Então você seguiu meu doce aroma — identificou a situação
de imediato.
— Sem gracinhas! — tentava não gritar tanto.
Devido a se encontrar afligida por enorme peso na consciência
começou a se remexer estranhamente e simulou uma voz muito
deslocada dos acontecimentos, acabando por, inconscientemente,
entregar-se.
— Parece agitado. O que foi?
— Sabe o que você fez? — continha-se para não se precipitar. —
Elas quase a mataram.
— Meu Deus! — reagiu instintivamente — Ela está bem?
Dirigindo-lhe significativo olhar e liberando imperceptível
gemido, falou com os olhos. Embora o esforço titânico fosse, sabia
que deveria se acalmar para uma melhor resolução, pois estava
certo de que não queria provocar o que se passou.
— Eu não queria! — começou a chorar. — Desculpe-me.
Assim como acontece com os homens, quase em sua totalidade,
se permitiu ser afetado pelas lágrimas de Jean, abraçando-a
delicadamente, pedindo por calma, enquanto realizava
movimentos circulares em sua coluna torácica.

193
— Quando você saiu de minha sala estava muito zangada — não
conseguiu prosseguir.
— Entendi.
Nada mais precisaria ser dito para que fosse assaltado pelos
exatos passos de sua trama. Identificando-a necessitada em maior
grau do que si próprio, manteve seu abraço ativo até que cessasse
suas lágrimas.
Finalmente entendera que não conseguiria nada do jovem o
atacando. Por mais que detestasse admitir somente o ganharia
caso não mais desejasse a pirralha de sua aluna.
— Poderia me contar o que aconteceu com aquelas quatro?
À medida que declamava os fatos sua perplexidade
incrementava, levando suas mãos à boca ao ouvir o complicado
encerramento, originado ao atingir o limite de seus nervos, o que
não era uma total mentira.
Apesar de confirmar que haviam sobrevivido e iniciado
imediato tratamento não se tranquilizou, afinal, a troco de nada,
fora responsável direta pela ação.
Queria dispensá-lo quanto antes para não a lembrar mais de sua
inferioridade moral, porém não se perdoaria por perder sua última
oportunidade. Com a desculpa de estar novamente necessitada o
abraçou firmemente, o fitando nos olhos.
— Ativei minha magia naquele lugar depois de sentir sua
vigorosa magia de terra.
— O que? — se postou extremamente aturdido.
— Brincadeirinha! — o liberou rapidamente.
Divertiu-se com seu ziguezaguear até a porta, se renovando ao
vê-lo balançar a cabeça antes de se fundir com a escuridão. Sua
fidelidade era o único empecilho a se entregar aos prazeres
consigo, então estaria atenta ao seu desvanecer.

194
9. Acontecimentos... Estranhos

Estava quebrado, devido ao pouco tempo de sono, mas ainda se


mantinha em pé por estar acostumado com esse tipo de situação,
porém parecia que Lucena não havia sentido nenhuma parcela de
seus efeitos
Estava mais viva do que nunca, pois sentia que o acontecimento
da última noite, apesar de muito “intenso”, os aproximara. Poderia
não ser o ideal, mas fora o suficiente.
Combinaram de manter segredo, porém sua felicidade era tão
evidente que não conseguiu a impedir de revelar o motivo para as
mais próximas.
— Agora compreendeu o que se ganha ficando ao lado dele? —
arguiu vitoriosa.
— O que, Bela? Proteção? — revoltou-se.
— Tenho certeza de que você entendeu.
— Entendi que você tem um ódio cego por ele e não consegue
pensar por si só.
Tamanho foi o grau destrutivo das verdades expostas que a
compeliu a se retirar, refugiando-se junto de suas fiéis parceiras.
Concordando com a fugitiva arrematou.
— A Bela está muito transtornada, mas ela tem razão quanto a
você estar em risco.
— Pode até ser verdade amiga, mas serei franca. Se esperar que
todas as condições estejam perfeitas e você não precise se esforçar
ou se arriscar nem um pouco, então ficará sozinha o resto de sua
vida.
Após isso se dirigiu ao lado do amado, deixando Marina a
observá-los alegres e sorridentes. Não cometera, até a presente
data, nenhum deslize, então por que deveria atacá-lo e,
principalmente, sua amiga?

195
No sábado houve uma movimentação por parte de Petrus, que,
logo pela manhã, deixou o dormitório sem sequer desfrutar do
desjejum direito, apenas avisando a parceira que iria passar o dia
inteiro fora e pedindo para que não o procurasse.
Logo que passou pela porta, se trocou e se ausentou, se
dirigindo ao quarto da princesa para nova investida. Chegando lá
sugeriu irem conversar na parte externa da escola, ao que
concordou de pronto.
Caminharam lado a lado até atravessarem o portão. Sentando-
se em um banco iniciaram um divertido debate sobre assuntos não
inerentes à escola.
Após conversarem tranquilas durante um curto período foram
surpreendidas pela orgulhosa amiga, a qual tentava as localizar
desde que deixara sua habitação.
— Onde está aquele demônio? — perguntou abruptamente.
Não sabendo se ficavam impressionadas ou não com seu
aparecimento repentino e sua imensa deselegância, esboçaram
faces de um misto de indignação e indagação.
— Você não vê que estamos conversando? — perguntou, pasma
com o atrevimento.
— E ele disse que não queria ser incomodado — respondeu com
raiva.
— Muito conveniente não acha? — provocou.
— Eu não tenho motivos para desconfiar dele.
— Tem certeza? — insistiu. — Ele é mulherengo e pervertido.
Pode ser que algo aconteça.
Após instantes observando sua pose impotente, aguardando
ansiosamente por uma explosão de ciúmes, se entreolharam.
Impaciente, Lucena tornou a encará-la.
— Explique logo qual o seu intuito aqui.
— Estou incumbida de ficar de olho naquela criatura — revelou.

196
— Perdeu o seu tempo, pois não sei onde ele foi e nem estou
interessada — irritou-se.
Dizendo isso, se virou novamente para a amiga, decidida a
continuar sua conversa, ignorando a intrusa. Não disposta a ceder
expôs em voz alta um pensamento que lhe ocorrera, a fim de
conseguir atraí-las.
— Ele deve estar na floresta.
Revirando os olhos, puderam perceber quando ensaiou uma
retirada despreocupada, se apresando e se levantando para
seguirem-na, com intenções de mostrar-lhe exatamente o oposto.
Pelo menos assim pretendia Lucena.

— Onde esse demônio está? — se mordia de raiva.


O trio caminhava pela floresta há horas, atravessando árvores,
arbustos, grama alta, galhos e raízes expostas, além de vários
mosquitos. Marina havia atingido há muito seu limite de paciência
e cansaço.
— Vamos embora, está claro que ele não está por aqui — parou
um pouco para descansar, evidenciando seu estado deplorável.
— Eu disse isso desde o começo — sentiu-se vitoriosa.
Olhando para ambas decepcionada, a chefe da guarda balançou
a cabeça, não acreditando que estava errada, porém um barulho
fez suas esperanças se renovarem.
— Vamos checar.
Fitando acima, como a pedir forças a Deus, se puseram
novamente a caminhar lentamente atrás da orgulhosa garota. Qual
não foi sua surpresa quando encontraram Petrus colocando com
violência a última pedra que completava uma espécie de círculo.
Sem percebê-las posicionou-se de costas para as três e
emudeceu-se por completo.

197
Após alguns instantes em plena paralisia, simulando meditar,
moveu seus braços, erguendo uma grande e larga árvore.
— Que tipo de ritual aquele demônio está realizando? —
especulava Belatriz.
— Você desconfia muito dele — reclamou Lucena.
— Vocês duas, silêncio! — pediu ao captar que começara a falar
em tom audível.
— Mais uma vez estou aqui, no mesmo dia do acontecido para
prestar meu respeito.
— Do que ele está falando? — apressou-se Marina.
— Não seja apressada e escute — disse a amiga, sem tirar os
olhos da cena.
— Prometo utilizar muito bem minha vida, que seus sacrifícios
pouparam — continuou cada vez com voz mais embargada.
— O que? — murmuraram surpresas as três.
Seguindo os procedimentos que adotara nos anos anteriores, se
preparou para começar a contar a mesma história de sempre, claro
que não antes de chorar discretamente.
— Desde meu nascimento uma seita rondou minha casa e de
outros cinquenta meninos, devido a uma previsão de um oráculo
deles que disse que o próximo rei demônio nasceria naquela vila.
— Eu conheço essa seita de que ele fala — disse Lucena ao
perceber que se calara, — Os cultuadores dela adoravam o rei
demônio e pretendiam ser seus aliados.
— Um dia os membros dessa seita promoveram uma invasão
nas casas vigiadas e levaram os filhos homens, matando a todos os
outros.
— Eu e mais cinquenta crianças de apenas cinco anos fomos
levados à base subterrânea deles e trancados em uma grande cela.
— Diariamente sofríamos os mais diversos tipos de castigos
físicos e mentais muito mais intensos que a idade nos permitia

198
aguentar. No primeiro ano vinte e cinco de nós morreram, no
segundo ano foram mais doze e no terceiro, seis.
— Durante esses três anos fomos obrigados a trabalhar em
minas para coletar pedras preciosas. Todos choraram, muitos
imploraram, mas ninguém tinha coragem de enfrentá-los, nem que
minimamente.
— Havíamos acabado de receber a notícia do quinto morto
naquele quarto ano, durante uma intensa sessão de chicotadas.
Meu melhor amigo.
Sua voz parou de fluir, totalmente embargada por lágrimas,
causando extrema impressão nas expectadoras e calando os
comentários que insistiam em ocorrer. Com um enorme esforço,
prosseguiu.
— Ele havia desafiado um oficial para me proteger de ir para a
sala de torturas de novo. E conseguiu — voltou a chorar
intensamente.
— Eu era um idiota, não entendia nada, era muito lento, fraco e
chorava por qualquer motivo, enquanto ele era o melhor;
inteligente, perspicaz e ágil, além de ser muito forte, física e
mentalmente. Sempre estava sorrindo para esconder dos outros
suas próprias dores, enquanto eu ficava atrapalhando-o com
minhas lamúrias.
— Nunca soube por que ele escolheu a pior pessoa para ser seu
melhor amigo. Talvez fosse por ser muito bondoso e ter um forte
senso de justiça.
— Lembro-me de suas últimas palavras antes de ser levado.
“Não é porque estou me separando de você que o deixarei.”. Tudo
isso com aquele enorme sorriso característico.
Nessa hora não conseguiu se controlar e caiu em pranto
contínuo e ininterrupto, deixando a tarefa de suas espiãs de ocultar
suas presenças titânica. Foram afligidas por indescritível
sentimento de culpa.

199
— Naquele momento eu me descontrolei e acabei liberando
uma forte energia, gerando um ligeiro terremoto — se engasgou
diversas vezes. — Foi o início do fim.
— Pretendendo despertar rapidamente o demônio, eles me
prenderam em um tronco e foram matando meus sete
companheiros restantes.
— Eu tentava convencê-los a parar, porém eles prosseguiram e,
faltando três em pé, justamente os que observaram serem de
maior estima para mim, ele despertou.
— Não estavam convencidos de que o despertar havia ocorrido.
Me juraram que os três seriam libertos caso eu ficasse. Concordei
de pronto, mesmo diante do acalorado protesto de meus amigos, e
comecei a me acalmar ao vê-los cumprindo sua promessa.
— Antes que pudessem ir ao meu encontro todos foram mortos
ao mesmo tempo, a poucos centímetros de mim, me cobrindo com
seu sangue.
Novamente sua voz desapareceu, concedendo espaço a uma
forte lamentação, as impedindo de ouvirem algo que murmurava
entre um e outro sorvo de ar.
— Naquele momento enlouqueci e criei uma esfera de energia,
comigo no centro, tão gigantesca que, quando a fiz explodir, toda a
vila e a base subterrânea foram automaticamente evaporadas,
juntamente com os corpos, e eu caí no chão desmaiado.
— Então foi assim que aquele incidente ocorreu? — murmurou
consigo mesma, Marina.
— Por muito tempo foi-se dito que aquilo fora um ato de desafio
feito aos governantes da época e à humanidade — comentou
Belatriz sem acreditar no que acabara de ouvir.
— Alvez, meu grande amigo! — continuou. — Venho aqui mais
uma vez para pedir suas forças para sorrir todos os dias, para que
ninguém possa sentir minhas dores.
A cena que se desenrolava à sua frente as entreteve de tal modo,
revelando-lhes fatos desconhecidos que nem sequer perceberam a

200
aproximação das crianças. Sem que esperassem se fizeram visíveis
em ambos seus lados, as vendo se atirarem para trás.
— Vocês não deveriam estar aqui — disse Marcus em um tom
ameaçador.
Se recuperando do susto olharam atenciosas para as faces das
crianças e, encontrando diversos resquícios de animosidade,
começaram a gaguejar frases ininteligíveis.
— Você principalmente, deveria saber que nosso irmão lhe
pediu um tempo só — Amira pisava na consciência de Lucena.
— Agora deixem de desculpas e vão embora daqui — ordenou
autoritário, o menino.
Sem pensarem em discutir, as espiãs retiveram grande fôlego e
correram o mais rápido possível de volta, sem olharem para trás.
Após percorrerem muitos metros, imaginando suficientes para
desaparecerem do radar dos pequenos, pararam para se
recuperar, física e mentalmente. Ao se recuperarem lembraram de
repassar o assistido.
— Aquilo pode ter sido uma mera encenação — insistiu a capitã.
— Você realmente acredita nisso? — perguntou indignada.
— Se ele estava atuando desde que chegou, por que não poderia
nos enganar agora?
— Com base no que você faz essa acusação?
— Ele sempre percebeu tudo que acontecia ao seu redor e agora
não foi assim — explicou.
Por causas naturais ambas emudeceram, dando margens para
que a orgulhosa colega imaginasse tê-las conseguido convencer.
Novamente aptas cuidaram de esclarecê-la.
— Ele somente percebe o que se passa ao redor caso esteja
controlando o ar — explicou.
— E como você pode não acreditar naquelas lágrimas? —
concluiu Marina.

201
Se entreolharam e, com a confirmação de que a insistente e
orgulhosa oficial entendera, fizeram um pacto silencioso de
permanecerem assim até retornarem.

O esperou até o início da tarde para vê-lo sair da floresta e, sem


mais delongas, sentar-se ao seu lado. Durante muito tentou
explicar a ocorrência, gaguejando muito e tropeçando nas
palavras.
Abriu um sorriso e dispensou leves risadas, enquanto
observava a confusão da amada, a qual não tinha ideia do que se
passava. Ao explicar que seus irmãos haviam lhe contado,
observou a dúvida se instaurar em sua face.
— Mas você não está bravo por eu ter desrespeitado seu
pedido?
— De maneira alguma. Até porque você não foi com intensão de
espionar, mas sim de controlar aquela turrona, estou errado?
— É verdade, mas isso não foi certo — insistiu.
— Não se preocupe Lu, sua intenção é a que mais vale. Além do
mais vocês iriam descobrir meu passado uma hora ou outra —
respondeu sorridente.
Se lembrou do ouvido pouco antes das crianças aparecerem,
admitindo posição incrivelmente desagradável por imaginar
quanto sofrimento seu sorriso escondia, porém sentiu que não era
hora de tocar nessas feridas.
— Tudo bem, então me conte detalhadamente sobre essa parte
de seu passado.
Por longas horas permaneceram conversando, sem perceberem
ninguém à sua volta, presos em seu mundo particular. Após longo
período uma garota se aproximou e tocou no ombro de Petrus,
cansada de gritar em vão.
— A diretora pediu que você fosse a sala dela com urgência.

202
Agradecendo a mensageira despediu-se de Lucena, combinando
de encontrá-la em sua moradia, afinal o dia havia se findado.
Caminhou velozmente ao destino, encontrando Jean e Joana a lhe
encarar com seriedade em suas faces.
— Olá diretora, o que queria? — tratou com naturalidade.
— A professora aqui me contou uma intrigante história e queria
saber seu parecer.
Perante a demonstração de zanga se encolheu, captando
instantaneamente o que se passara antes de sua chegada.
Compreendendo a ausência de escapatória suspirou e confirmou
sua ciência sobre os fatos.
— Como você pode esconder algo tão grave? — tomou o vidro
de tinta de sua mesa e esfacelou-o no chão.
— A culpada sou eu, não ele — o defendeu.
— Cuidarei para que você nunca mais lecione na sua vida —
avançou com o dedo em sua face. — E você irá sofrer também.
— Calma Joana! — empenhou-se. — Eu...
— Pare de palhaçada e admita seus erros como um homem —
esgoelava-se.
Sua fúria era realmente imensa e não ouviria nenhuma palavra
que não fosse o tinido de uma severa punição. Suas esperanças
morreram muito antes de reparar o processo de Jean para se
recompor, assim se mostrando capaz de combatê-la.
— Calada! — os surpreendeu deveras. — A culpa foi
inteiramente minha e, se ele deve ser culpado de algo, é de ser um
exímio cavalheiro.
— Mas essa foi uma ofensa gravíssima — tentou recuperar o
controle da discussão.
— Tenho certeza de que sim, por isso assumo a
responsabilidade por meus atos, mas peço para que não o puna por
ser essa pessoa tão maravilhosa.
O modo com que encarou a diretora sem perder a compostura,
imprimindo uma das primeiras derrotas que sofrera nesse tipo de

203
embate o encantou. Vendo-a se sentar em sua mesa de olhos
fechados pressentiu que havia se rendido.
— Você será expulsa com desonra e nunca mais poderá se
aproximar dessa instituição, mas não irei revelar sua contravenção
— suspirou longamente. — Agora sumam.
Sem ousar questioná-la ambos se retiraram. Ao trancarem as
portas respiraram aliviados, agradecendo mentalmente a rápida
resolução. Apesar de considerar um duro fardo, a expulsão se
revelou sendo sua liberdade.
— Nunca agradecerei suficiente por toda sua preocupação, pois,
em vez de me entregar como seria o natural, você velou por mim
até o último instante.
— Isso não foi nada.
— Não seja modesto — impediu que prosseguisse. — Você foi o
único homem que não quis me possuir e fiquei possessa,
maquinando como te fazer ajoelhar. Agora percebo o que minha
cegueira me impedia de enxergar. Muito obrigada.
Percebendo que havia se decidido sorriu, contente pela mulher
que acordara e se levantara para encarar a vida. Seu rosto,
refletindo o divino bálsamo que lhe embebera o espírito, delatava
o quanto apetecia pela continuidade da prosa.
— O que você fará agora?
— O que deveria ter feito há muito. Reconstruir minha vida.
— Boa sorte.
— Antes de ir gostaria de pedir um favor.
Nada mais normal, um último pedido, porém não conseguiu
deixar de modificar, mesmo que por milissegundos, sua expressão.
Prevendo a ocorrência se explicou.
— Não sou e nunca voltarei a ser aquela mulher. Quero um
abraço, se concordar.
Novamente sorriu, dessa vez contente por virar mais uma página.
Jean havia se transformado e estava radiante, exibindo seu belo

204
sorriso aos ventos que delicadamente lhe acariciavam, o
emocionando ao vê-la partir apenas com uma pequena sacola.

— Petrus, se concentre mais na aula — pediu a professora.


Era Carla que o chamava, pois estava deitado na relva
relembrando do acontecido de dias atrás em plena aula. A
professora os levara para uma aula de campo para ensinar e
praticar alguns pontos básicos sobre a mana.
— Não se preocupe, eu já sei sobre tudo isso — respondeu sem
nem a dirigir o olhar.
— Então me mostre o que consegue fazer — desafiou.
Cometera um erro, pois estava cansado e esquecera de tomar
cuidado para não irritar os professores e não transparecer
indiferença. Para compensar teria que se mostrar solicito.
— Certo — disse levantando-se — Vou ajudar.
— Isso que eu esperava ouvir.
Ao observá-las, distribuídas igualmente em três fileiras
horizontais, chocou-se ao se atentar às gêmeas, pois contemplou
uma visão magnífica, porém incrivelmente anormal. Presumira
que algo dessa natureza ocorreria, porém nunca vira o fenômeno
com seus próprios olhos.
— Minha nossa! Olhe para aquilo professora! — apontou para
ambas.
— O que? — perguntou antes de virar.
— Bem ali. É fraco, mas visível.
Reparando na estranha formação a professora não demonstrou
reações por segundos, porém se recordou de ter lido um estudo
pouco aprofundado sobre o que via.
— Sensacional! — exclamou empolgada. — Elas compartilham
um único corpo de mana.

205
Tranquilamente se dirigiu à frente das fileiras juntamente da
professora e, capturando o olhar de ambas, as chamou com o dedo.
Ao se aproximarem pediu para que fizessem uma magia básica de
natureza.
Empreendendo certo esforço cada uma conseguiu elevar uma
árvore aos poucos, porém pararam ao verem sua boca abrir e seu
semblante assumir uma caricatura de espanto, o que causou risadas
por parte da plateia e seu consequente demérito.
— Desculpa, mas somos ruins com magia.
— Claro que são! — não percebeu a situação.
Inevitavelmente a galhofa inicial aumentou e se alastrou em
grandes proporções, ampliando em níveis alarmantes seu
constrangimento e as levando a se perguntarem o porquê de seu
amigo necessitar ser tão malvado.
— Permitam-me explicar. Vocês dividem sua mana entre si,
assim compartilhando do mesmo corpo de mana.
— E o que é um corpo de mana? — questionaram em uníssono.
— Corpo de mana é o reservatório de mana que cada maga
possuí — explicou Carla.
— E o que isso quer dizer? — perguntou Lala.
— Quer dizer que cada uma de vocês pode utilizar a mesma
mana, possuindo infinitas possibilidades de uso, afinal seu ataque
e defesa são combinados por natureza. Além disso, por estarem em
um laço de mana, vocês podem recuperá-la mais rapidamente.
Com a explicação de Carla as risadas e gozações cederam espaço
às exclamações diversas, estampando o espanto com a revelação
inédita e a admiração pela novidade.
— Então não somos fracas? — perguntou Lala em busca de um
resumo.
— Vocês são portadoras de um poder incrivelmente raro —
enfatizou a professora.
— Essa aura é muito poderosa, porém é péssima no começo, por
isso que vocês são ruins.

206
Interromperam a comemoração e observaram-no intrigadas
com sua falta de delicadeza. Por algum motivo se prepararam para
uma declaração que lhes causasse mal-estar.
— Poderia explicar melhor? — sussurrou Lola.
— Quando não se sabe usar esse poder uma pode esgotar a
mana da outra. Outra possibilidade é a de que vocês estejam
travando sua ligação, impedindo a mana de fluir.
— Isso explica muita coisa — comentou Lala.
— Então, vamos voltar à aula? — pediu a professora.
Ordenando às gêmeas que retornassem aos seus lugares, Carla
mencionou discretamente ao jovem que havia descoberto no que
ele poderia a auxiliar. Realizando três passos para o lado olhou
para as alunas e se preparou.
— Você parece saber muito, então diga-me; conhece a
massagem Yent?
Palavras perigosas retumbaram em seus ouvidos, ativando um
alerta para prosseguir cuidadosamente. “Provavelmente ela ainda
se lembra de ontem”, pensou temeroso.
— O básico apenas — imaginou que não deveria negar
completamente.
Afirmando que lhe demonstraria o movimento que aplicaria nas
alunas pediu por uma voluntária, recebendo instantânea resposta
de Belatriz. Se soubesse o que aconteceria.
Acercando-se da retaguarda da garota pousou as mãos em seus
ombros e a massageou normalmente, indicando o motivo de aliviá-
la para, após relaxar sua tensão, envolveu seu braço com as mãos
e deslizou-as até o final, repetindo o processo no outro.
— Entendeu? Essa técnica é utilizada para relaxamento e para
ativar o corpo de mana.
— Você quer que eu faça isso com elas? — não acreditava no
que ouvia.
— São muitas e você poderia me ajudar.

207
— Deixe-me ajudar também professora — interveio a
voluntária.
Sequer raciocinou sobre suas palavras, somente pressentiu que
deveria dizer algo o mais rápido possível. As ouvintes nada
estranharam na oferta, porém Carla a analisou lentamente e, por
sua conhecida fama, avaliou:
— Não acredito que você conseguirá.
— Realmente Bela, se você chegar por trás de mim eu vou ficar
dura como uma pedra — Maiara não se conteve.
Pensou na possibilidade de recorrer da decisão, impedindo-a de
cometer o erro de permiti-lo aliciar as colegas, porém o berro de
Maiara a derrubara, além de forjar uma situação a qual seria
impossível requerer seriedade. Derrotada, retirou-se de fininho.
— Vamos antes que a aula acabe.
Para compensar o tempo perdido apressaram os trabalhos, não
dispensando mais do que o necessário. Lucena quase não aguentou
vê-lo se esfregar em tantas mulheres, mesmo que por pouquíssimo
tempo, devido a não ter que relaxá-las antes do procedimento.
Marina esboçava um misto de vergonha e temor, as gêmeas
eram pura confusão e Belatriz teve de se segurar para não o matar
perante testemunhas. Carla, por sua vez, encontrava-se
maravilhada consigo por sua brilhante ideia, pois conseguiu
executar efetivo aquecimento da sala inteira sem muito esforço,
sorte que descobrira essa técnica
Após o encerramento das atividades jazia caído no gramado
esgotado, física e mentalmente. Se aproximando, deitou-se ao seu
lado, direcionando seu olhar para o rosto masculino.
— Eu gostei de ver você hoje.
De tão absurda que fora a frase, até para si, modificou seu
semblante, delatando seus próximos dizeres claramente. Não
poderia esconder que sua reação a agradara.

208
— Apesar de você ter tocado em todas na aula da Carla, não se
aproveitou da situação — ponderou. — Na verdade, nem as
percebeu o provocarem.
Realmente não percebera e, mesmo buscando em suas
memórias, continuava sem saber. Havia se tornado o assistente do
professor e, como tal, se concentrava em seu trabalho, porém não
podia admitir isso.
— Eu sei que você fica com ciúmes, mas eu não consigo me
conter ao ver um monte de mulheres lindas em um mesmo espaço
— disse sinceramente. — É instinto.
— Não é não, porque na aula que elas estavam em roupa até
mais apertada e se exibindo aos montes você não fez nada —
retrucou.
Observando o amado se ater apenas às suas atividades
essenciais, entendeu que não iria obter retorno. Analisando-o
atentamente percebeu o que desejava ocultar, matutando uma
frase contundente para lançar mão.
— Então esses seus ataques de galã não passam de uma válvula
de escape.
O clima mudou repentinamente para Petrus e não sabia como
agir, afinal nunca havia imaginado a hipótese que acontecia. Após
longa permanência em silêncio decidiu se entregar e deixar a vida
correr.
— Como você consegue ser tão inteligente?
Vieram-lhe à mente suas palavras quando o trio o espionou na
floresta, a lembrando de que não era a única a sofrer. Antes que
percebesse, fugidias e tênues lágrimas lhe banhavam a fronte, se
esforçando para não as transparecer em sua voz.
— Eu preciso ser, né? Porque, sabe como dizem. Ao lado de um
grande homem sempre há uma grande mulher.
Prevendo seu movimento para observá-la precipitou-se e
afundou a face em seu confortável ombro, evitando entregar seu
estado, preocupando-o inutilmente.

209
No dia seguinte se viu intensamente caçado pelos olhares, não
somente de suas colegas, como pelas demais estudantes, o
incomodando deveras. De tão insistentes, suas perseguidoras o
levaram a optar por um refúgio.
Nunca seria capaz de imaginar que essa situação seria
constante, forjando em si santificada conduta de ignorá-las, assim
como outros aspectos que aprendera durante sua trajetória.
Com o transcorrer de poucas semanas logrou sua antiga
posição, alegrando-se pelo retorno de sua paz. Infelizmente não
pode desfrutá-la adequadamente, pois, em pouco tempo, foram
alertados a respeito de um evento surpreendente.

210
10. Do amor ao ódio

Ao se acercarem da sala de Joana, o casal quantificou o tamanho


do problema que se encaminhava. Inquietos visualizaram a imensa
possibilidade de complicações, tanto em seus planos pessoais
quanto em relação à instituição em geral.
— O que você disse? — gritou a garota.
— A terceira princesa decidiu vir nos visitar.
Apesar de aparentar tranquilidade no presente momento se
encontrava atônita em seu íntimo. Por apresentar semelhante
condição à tia necessitou falar para se conter.
— Bem, pelo menos é só a terceira.
— Você está louco Petrus? — não se incomodava em exibir seu
desespero — Se a família real descobrir você nem imagino do que
seriam capazes.
— É só eu não aparecer na frente dela nem de seus guardas.
— E rezar para que nenhuma estudante comente acerca de ti —
completou a diretora.
Em suas mentes se trancaram, cada um racionalizando uma
estratégia diferente, instaurando silêncio sepulcral. Lucena foi a
primeira a libertar-se, graças à sua ansiedade, vencendo a condição
dominante do ambiente.
— O que eles farão se descobrirem-no?
— Sério que você não faz a mínima ideia? — ironizou a diretora.
Foi assaltada por várias imagens em seu inconsciente, pois sabia
muito bem o que fariam, só não desejava recordar fatos deveras
impróprios. Buscou consolo em um forte abraço no amado ao se
amedrontar com seus próprios pensamentos,
— Vamos ser cautelosos então — sugeriu, tentando se acalmar.

211
— Mas é impossível fazermos as estudantes ficarem quietas —
lembrou Petrus.
Depois de um tempo pensando, Joana levantou a cabeça
violentamente, observando o teto com a boca entreaberta em um
meio sorriso.
— Só precisamos que ninguém se aproxime.
Conseguira despertar-lhes grande interesse os vendo estampar
belos sorrisos de esperança ao encerrar sua exposição. Integraria
a comitiva que a recepcionaria na entrada da floresta.

Chegado o grande dia, nas primeiras horas, Joana, Marina,


Belatriz e duas voluntárias, se dirigiram ao ponto de encontro.
Petrus, aproveitando-se de seu vasto conhecimento em relação ao
terreno, se esgueirava à frente, se atentando a diversos detalhes.
Durante o trajeto localizou e desarmou diminutas armadilhas,
assim como investigara a existência de espreitadores. Ao avistar a
carruagem da princesa, se escondeu, a fim de guardar a convidada,
invisível.
O transporte se assimilava a uma espécie de charrete,
desprovida de adereços e indicações claras de pertencer à família
real. A princesa trajava curto, liso e simples vestido azul claro,
idêntico ao de suas acompanhantes, que se valiam das cores, da
esquerda para a direita, vermelho ardente, azul escuro e marrom.
Sua guarda se constituía por seis cavaleiros pesadamente
equipados com armaduras de placas bem polidas e posicionados,
em duplas de um lanceiro e um espadachim, na vanguarda e ambas
as laterais. Apenas o líder da esquadra não portava um elmo, mas
um cavalo protegido por uma bela catafracta.
Detendo-se a poucos metros foram liberadas após rápida
confirmação. Belatriz se posicionou junto aos guardas da dianteira,
as estranhas se dirigiram para cada uma das laterais e Marina e

212
Joana subiram a bordo, sucessivamente na ponta esquerda, ao lado
da irmã, e na direita.
— Olá irmã, como tem passado? — cumprimentou com uma
face estranha.
— Estou muito bem Tresa. Quem são essas? — retribuiu o
cumprimento.
Se diferenciava pelo cabelo ser liso, comprido e loiro claro, a cor
dos olhos sendo azuis, ser levemente mais larga, entre cinco e sete
centímetros mais baixa e, algo importante que percebera, seu
busto era deveras menor que o da irmã.
— Verdade, esqueci que você não vive no mundo real há muito.
Rindo brevemente, as apresentou em ordem. Calissa tinha
longos cabelos lisos e olhos, ambos castanhos escuro; Reina
apresentava fios finos, lisos e pretos, seus olhos eram verdes;
Winss possuía curta cabeleira loira e olhos azuis.
— E como vai sua magia? Ainda é uma inútil? — Tresa
perguntou maldosamente.
Imediatamente as companheiras a seguiram na troça, a levando
a assumir posição mais cabisbaixa do que naturalmente.
Reparando em seu estado e prevendo que fosse aceitar os insultos
calada, como sempre, tornou a atormentá-la.
— Sabia. Você continua a mesma inútil que era quando o papai
te mandou para uma escola preparatória.
— Como assim escola preparatória? — questionou a dona do
vestido azul.
— Essa academia possui um rigoroso teste de admissão e meu
pai sabia que minha inútil irmã não conseguiria passar, então
procurou uma escola para prepará-la para o exame.
— Nossa, que inútil! — observou a maga do fogo.
— Ainda tem mais! — continuou jocosamente. — Ela só passou
por causa de suas notas teóricas.
Revelado tal fato, se desmancharam em gargalhadas, a
rebaixando a um ponto em que quase não conseguia conter sua

213
tristeza. Obviamente seus amigos se encontravam irritados, porém
desconfiou da necessidade de ofendê-la.
Se aproveitando da falta de atenção geral a voluntária da
esquerda realizou imperceptível desaceleração, se posicionando
atrás da condução. Sacando uma faca, aplicou precisa estocada
contra a princesa visitante, gritando enlouquecidamente.
Como estavam distraídos, não repararam o instinto assassino
presente, exceto por um segundo antes de puxar a faca, quando foi
percebida por seu radar, porém não teria tempo de avisar a tia,
como o combinado.
Sem pensar colocou uma grande quantidade de vento em seus
pés e realizou impulso monstruoso, parando a mão da agressora a
milímetros de concretizar seu intento. Com eficaz movimento
jogou a arma para longe, porém perdeu o controle sobre a
agressora.
No exato momento em que sua algoz lançava-lhe pontiaguda
estaca de pedra, Tresa se virou para conferir a balburdia,
contemplando as garras da morte, sem sequer conseguir gritar. O
mesmo ocorreu com seus guardas, que apenas esboçaram uma
tímida reação.
Poucos instantes antes de ser empalada viu um braço segurar
fortemente a estaca, sendo seguido pela assistência de Joana que,
com um mero olhar, a derrubou inconsciente. Sem demoras largou
a pedra, se vendo duramente abordado pela escolta, parte
admirando sua ação, parte cumprindo com seus deveres.
— Você... — gaguejou petrificada de medo. — Você me salvou.
— Quem é ele, diretora? — perguntou um dos guardas.
Complexa e tensa situação transcorrera diante de sua vista e
exigira ágil decisão por sua parte, deixando-a extenuada. Embora
estivesse com as palavras prontas, vacilou.
— É um guarda da escola.
— E por que estava escondido? — perguntou Winss.

214
— Porque eu estava mantendo a vantagem do elemento
surpresa. — explicou-se.
Deduziu pelas expressões de concordância que encontrara uma
bela escapatória, porém as acompanhantes não se satisfizeram.
Após concordarem a maga de fogo inquiriu.
— Mas havia necessidade nisso?
— Meu instinto me fez crer que poderia haver um infiltrado.
Ninguém pensou em discutir o mérito de sua resposta, afinal o
instinto de um homem era inquestionável. A terceira princesa foi a
primeira a vencer o silêncio instaurado.
— Como esperado do meu futuro marido.
Ao proferir tais palavras causou grande choque, tanto em seus
guardas que se apavoraram, quanto na comitiva, que assumiu
completa confusão.
— Como assim irmã? — uniu-se as várias vozes.
— No momento em que me salvou, ganhou o direito à minha
mão — proferiu.
— Há, pelo menos, dois probleminhas com isso — respondeu
divertidamente.
— Não há nada que a princesa não possa resolver — declarou
expulsando a irmã e chamando-o para seu lugar.
Buscando a sabedoria da tia alertou que precisava seguir a pé
para que pudesse protegê-la caso algo mais ocorresse. Enquanto
falava, Belatriz prendeu a traidora.
— Como é preocupado comigo. Que lindo! — disse o abraçando.
Seu estado de alerta não permitiu perceber sua nova
pretendente trocar de lugar com a irmã para ficar ao seu lado e
segurar sua mão, pois captava cada mínimo sinal, procurando
pelos próximos bandidos.
Ouvindo um farfalhar de folhas suspeito decidiu que deveria
rondar o ambiente com sua habilidade de vento, sem que

215
percebessem o uso da mesma. Ao descobrir o que os aguardava
quase deixou escapar leve grito.
Rapidamente tratou de avisar, ao pé do ouvido do guarda à sua
frente, que pressentia que, dentro de alguns segundos, seriam
emboscados pelas quatro direções. Em poucos passos a
informação rodou a carruagem
De início os subordinados permaneceram céticos, porém se
lembraram de sua coragem, então mereceria um voto de confiança.
Em pouco tempo três homens pularam das árvores, em cada
direção.
Petrus instruiu para que o líder deixasse a proteção oferecida
pela capitã da guarda e auxiliasse o lado esquerdo enquanto girava
velozmente para defender a traseira. Devido á reduzida distância,
iniciaram as batalhas das laterais primeiro.
Na esquerda os lanceiros apenas os mantinham à distância,
permitindo que o comandante lutasse corpo a corpo com mais
facilidade. Na direita a maga, com o auxílio do cavaleiro para lhe
proteger, prendeu rapidamente um dos agressores em uma raiz
fortificada.
Sem conceder a mínima chance para que o acompanhassem,
desferiu pesado gancho de direita no atacante central, conectando-
o a um jab no da direita, no mesmo impulso. Abaixando a cabeça
para se esquivar do corte aplicado pelo último executou uma
rasteira, girando agilmente para acertá-lo, ainda no ar, no
estômago.
Ao verificar percebeu que jaziam no solo os bandoleiros em sua
totalidade retornando calmamente a carruagem, confirmando o
perfeito estado das passageiras e a prestimosidade do cocheiro em
acalmar os cavalos.
— Vocês acham que acabou? — gritou o preso nas raízes.
Retirou do cinto uma bomba arredondada, riscando-a em um
acendedor acoplado em sua perna e a atirando contra a carruagem,
milímetros atrás dos passageiros. Por mais que não parecesse
muito potente, causaria enormes estragos numa curta distância.

216
Novamente sem pensar a alcançou pouco antes da borda direita
de seu objetivo, estabelecendo breve contato visual com as
ocupantes e sentindo como se a cena se transmitisse em câmera
lenta. Momentos após se decidir a bomba explodiu em suas mãos.
Com exceção de Joana ficaram horrorizados ao serem cegadas
pelo brilho imenso, esse seguido de ensurdecedor som, se
protegendo instintivamente de ambos com os braços.
Desesperadas gritaram negações diversas, mentalizando o
resultado de sua empreitada, fato que ocasionou o surgimento de
lágrimas.
Ao findar o longo período de espera se voltaram para a direção
do último suspiro do finado, recebendo inesperado sobressalto. A
princesa e os guardas se confundiam com fantasmas ao se
depararem com seu maior temor.
Continha a explosão, que mais se assemelhava a uma esfera de
chamas, como se a segurasse fortemente e a esmagasse, mas, na
verdade, lançava rajadas de vento extremamente fortes em
direções opostas, comprimido o espaço aos poucos e impedindo
que a explosão se alastrasse.
— Você é um mago do ar — gaguejou Tresa.
— Um mago homem! — completaram as amigas.
Como se sua indignação fosse ordem magna os guardas
cercaram-no com suas armas apontadas e prontas para
dilacerarem-no, aguardando apenas por uma confirmação.
— Você é o rei demônio! — murmurou munida com as lágrimas
de outrora.
— Epa, espere aí. Mesmo te salvando ainda me chama de
demônio? — simulou-se ofendido, acentuando seus trejeitos.
Os cavaleiros reais consideravam a honra acima de tudo, por
isso teriam de engolir o orgulho, pois não poderiam deixar de
devolver, não um, mas dois favores a alguém, principalmente
relacionado a seu trabalho direto.

217
Prontamente o alvoroço foi encerrado e seus integrantes
seguiram caminho mudos, criando um clima pesado, que nem
mesmo os foras da lei suportaram.
Intensa conversação se estabeleceu entre tia e sobrinho, através
de suas habilidades psíquicas, onde, para seu desespero, captou
como último contato. a frase: “Já que o problema já foi criado não
me importo em aumentá-lo”.
— Me diga princesa, como pode ir do amor ao ódio em tão pouco
tempo? — provocou.
— Porque você é um demônio — sequer o dirigiu o olhar.
— Como você pode ter tanta certeza?
— Porque você é o único homem que pode utilizar magia.
— Quem disse isso?
“Quanta ousadia esse patife ainda tem guardada?”, pensou
instantaneamente antes de pular de raiva no assento. Sua intenção
de provocá-la era tão clara quanto a água, porém não toleraria tal
petulância.
— Meus guardas, o serviço de inteligência e toda a população do
mundo.
— E essa sua rede de informações está observando o mundo
todo, ou você só considera nosso país como o mundo todo? — se
satisfez ao saborear seu intento se concretizando.
— Os outros países vizinhos também confirmaram que não
existe mais nenhum homem capaz de utilizar magia.
— E você considera que não exista vida fora do nosso belo país
e seus vizinhos aliados? –Grifou a última palavra.
Era impossível quantificar o ódio que acumulava pelo tratante,
desejando olvidar sua dívida e ordenar que o executassem. Em
razão de seu deboche esgotara sua paciência.
— Espera que eu conheça a todos?
— Então você reconhece não estar certa de que eu seja o único
homem capaz de utilizar magia, não é?

218
Tamanha era sua irritação que estava certa de que poderia
esfaqueá-lo sem sentir remorso algum e sem se preocupar com o
julgo de terceiros, porém, por puro orgulho, se dignou a respondê-
lo.
— Está escrito na profecia que o único homem capaz de utilizar
magia se tornaria o próximo rei demônio e destruiria o mundo.
Curvou-se para a frente, posicionando seu rosto a milímetros, a
fim de lhe sussurrar e carregar suas palavras de emoções, acessando
sua alma e forçando-a a refletir.
— E você acredita que a vida de uma pessoa possa estar escrita
em um velho papel? Não podemos viver por nós mesmos? Apenas
devemos seguir o que nos traçaram?
— A igreja não mente — sentiu-se afetar.
— E se relatassem uma profecia que diz que você matará seu
próprio pai? Você seguiria a profecia? — executou sua vontade.
Se portou apática até a chegada à academia, quase não sorrindo
para o público que a aguardava, decidindo se encaminhar
diretamente ao quarto da irmã, alegando exaustão.

Aportando no dormitório, Marina respirou aliviada e se largou


no sofá sem perceber a aparente impaciência da irmã. Ao abrir os
olhos a viu estendida à sua frente questionando acerca de sua
opinião sobre o demônio.
Emudecera pelo espanto de presenciá-la lhe pedindo por uma
opinião, pois somente zombava do que fazia e pensava. Hesitou por
muito, decidindo contar-lhe a verdade após seu senso de dever
soar.
Sentindo que deveria buscar a imparcialidade ao máximo
revelou todas suas peripécias. Seus atos heroicos, gostos
estranhos, tato flexível para as situações, atitudes inconsequentes
e o curto relato que havia ouvido ao acaso.

219
Ouvindo-a se surpreendeu incrivelmente, pois imaginava que
detinha, ao menos, índole agressiva. Meditou por longo período,
desativando suas demais funções, porém faltava importante
aspecto a se tomar conhecimento para correta conclusão.
— Quais suas impressões dele? Quais são seus sentimentos?
Tais palavras soaram como plena condenação para seus pobres
ouvidos, forçando-a a revelar seus sentimentos, os quais não eram
claros nem para si própria.
Tentou resumir racionalmente seus sentimentos por ordem
cronológica, tropeçando diversas vezes. Visando esclarecer
terrível dúvida provocada pelas histórias que ouvia desde que era
pequena, incentivava-a a prosseguir
Rapidamente equacionou as informações despejadas pela mais
velha e formou sua conclusão preliminar, ansiando por encontrá-
lo novamente para fortalecer sua visão.

Não muito distante transcorria paralela discussão onde assunto


se assemelhava, porém em ótica ligeiramente mais grave. Com
dificuldade de pensarem corretamente não se descolaram do
gramado à frente da entrada, aguardando as espectadoras
debandarem.
— Como assim você se revelou? — externava sua zanga.
— Não tive culpa Lu, ele jogou uma bomba de curto pavio e tive
que agir — explicou.
— E você não poderia só jogá-la para longe?
— Não tinha certeza.
Em pouco tempo aprendera tanto sobre seu amado que
compreendia perfeitamente seu instinto ser tão forte que, reações
como essa não passavam de meros reflexos, mas não podia aceitar
a situação, mesmo que não conseguisse contestá-lo.
— Seu idiota.

220
— Isso já foi, agora deite-se aqui e vamos esperar — sugeriu
calmamente.
Após longo suspiro cedeu à proposta e se deitou ao seu lado,
decidindo aguardar pelos próximos acontecimentos e se
flagelando por imaginar se seriam ruins ou péssimos.

Ao despertarem demoradamente pressentiram as princesas se


aproximarem, içando-se a tempo de admirar Tresa vociferar
impropérios à sua pessoa. Sem se importar com o que cuspia a
abordou munido de um trejeito assustadoramente natural.
— E aí, já decidiu o que fará a seguir, princesa?
— Claro que sim! — respondeu confiante. — Uma luta.
Embora aparentasse tranquilidade fora assaltado por
semelhante, porém diminuto, assombro. Sem entender o porquê,
intrigante ideia lhe arremeteu a mente.
— Então deixe-me fazer uma proposta. Não gosto da ideia de
travar um duelo com uma mulher que não me interessa nem um
pouco... — se preocupou minimamente.
— Como assim não te interesso?
— Você até tem uma carinha bonita, mas não tem peitos, assim
como a Tycia, mas admito, suas pernas são admiráveis.
Como presumira elevou drasticamente sua irritação com a
audácia, contemplando seus olhos lhe fuzilarem. Provocação bem-
sucedida, adiantou-se para não ser interrompido.
— Como dizia, proponho que você e sua trupe lutem contra nós
dois.
— Quem nós dois? — surpreendeu-se.
— Eu e sua irmã. É claro.
Marina sentiu tanto pânico que imaginou que sonhava,
contrastando perfeitamente com Tresa, que não exigira nem um

221
segundo sequer para percebê-lo a forçar a lutar contra sua
amadora irmã. Não seria uma luta, mas um massacre.
— Mas, se você pode muito bem dar conta de nós quatro, por
que quer minha irmã?
— Eu serei quase um enfeite, não farei magia alguma —
enfatizou.
Não permitiria que sua pretensão se concretizasse, afinal
ofendê-la com palavras poderia ser ruim, porém atacá-la
fisicamente, ciente de suas limitações, se configuraria em ato vil.
— Por quê? — perguntou confusa.
— Porque será a sua irmã a derrotar vocês quatro.
Em questão de segundos gargalhou o mais alto e
descontroladamente o possível, levando a pobre princesa a se
rebaixar até chegar ao tamanho de uma formiga.
— Você está falando sério? — enxugava as lágrimas.
— Está com medo?
Com tão pequenina provocação a abateu tão fortemente como
se a afligisse um belo tapa de luva de pelica. Tal grave ofensa exigia
uma rápida atitude.
— Ótimo, então derrotarei minha irmã e você será obrigado a se
entregar — decretou.
— Em duas semanas então — disse estendendo a mão.
— Feito! — concordou aceitando a mão.
Despedindo-se maliciosamente se retirou bufando em um misto
de ódio e competitividade. Ao se encontrarem sozinhos buscou
alento em sua figura, sentindo o calor de suas mãos juntas.
— Aonde vamos? — perguntou após pequena caminhada.
— Treinar, ué! — respondeu como se fosse algo óbvio.

222
11. Rotina árdua

Há poucos passos de distância de adentrar a floresta, pode ouvir


os chamados da amada instantes antes de se abeirar e questioná-
lo. Sem tempo algum para desperdiçar a encarou fixa e
profundamente, intentando ser o mais claro o possível.
— No momento não precisamos de você. Não se preocupe.
Seguiu o seu caminho sem se importar em largá-la aflita por
desconhecer o motivo das suas ações. Devido à urgência inerente
proferiu palavras extremamente rudes e cruéis.
Ao acercar-se de uma clareira próxima à academia instruiu a
tímida companheira sobre o treinamento, suas regras e objetivos,
a posicionando à curta distância de um alvo. Logo ao mencionar
que utilizaria um arco criado a partir de sua magia, interveio.
— Mas você não deveria me ensinar como controlar a minha
magia?
Compreendendo a necessidade de explicar-lhe detalhadamente
respirou fundo. Poderia ficar confusa e isso atrapalhar o processo
de criação, então não fez cerimônias.
— Existem dois tipos de magos. Ou magas. combatentes e
conjuradoras.
— Magas combatentes utilizam sua mana para criar armas,
assim como utilizar certos poderes, podendo obter um melhor
resultado se combinar a mana de seu espírito para criar sua arma
e sua própria para atacar. Magas conjuradoras utilizam sua mana
unicamente para realizar magias, enquanto seu espírito cuida de
fornecer-lhe um estoque de mana, porém nada impede que se
utilizem de outros recursos.
Após vários segundos em pleno silêncio, em que refletiu sobre
as ideias explanadas sentiu que havia entendido. Impaciente
ansiava por iniciar o quanto antes.

223
— Então eu sou uma combatente? — perguntou, querendo
confirmar sua dedução.
— Exato. Vamos começar. De início você irá criar um arco.
Primeiro imagine um arco em sua mente. Feche os olhos para
facilitar.
— Pronto! — indicou.
— Agora imagine que você está o manejando, segure a linha com
sua mão mais coordenada e, com a outra, o apoie.
Após quatro tentativas infrutíferas se atirou de joelhos,
sentando-se em suas pernas e cobrindo seus olhos com as mãos.
Seguido de estridente grito desatou persistente pranto, o
comovendo deveras.
Sua sabedoria de causa lhe indicou ampará-la, a escutando em
silêncio e permitindo descarregar sua tensão e lágrimas.
Pressentindo o momento pediu para se acalmar.
— Eu não consigo nem fazer algo tão simples — gritava
desesperada.
— Não se culpe, você possui um grave bloqueio.
Apesar das palavras em total dissonância, o ouvia claramente,
portanto, sendo abatida no mesmo instante. Forçando-se a serenar
seu estado o observou confusa, gaguejando o que pode.
— Como assim um bloqueio?
— Uma espécie de trauma que faz com que você não consiga
utilizar sua mana — explicou com seriedade.
Seus dizeres atingiram seu sofrido coração como abençoado
bálsamo a lhe revitalizar as forças, a devolvendo, após enxugar
seus olhos, ao esforço de se superar. Ainda ajoelhado demonstrou
em seu olhar a consideração indescritível que nutria.
— Quero que você feche os olhos e mantenha sua mente e corpo
vazios.
Sem motivos para questioná-lo se submeteu ao pedido,
permitindo seu corpo se relaxar a um ponto que apenas a

224
sustentasse de pé. Com concentração e silêncio foi capaz de admitir
o estado desejado.
Ao constatá-la assim se posicionou em suas costas e,
repentinamente, lhe abraçou fortemente. Imensamente assustada
arregalou os olhos e esboçou certo furor, trazendo milhares de
imagens à sua mente e, com isso, resistindo.
Com o transcorrer do tempo suas fibras cederam e seus
neurônios interromperam suas atividades esvaziando sua mente.
Totalmente entregue à conjuntura não notou sua prisão ser
desfeita, o indicando a viabilidade de prosseguir com o planejado.
Içou seu braço esquerdo para a frente e selecionou o dedo
médio e o anelar da mão direita, formando uma pinça com o dedão.
Lentamente puxou seu braço, formando ambos arco e flecha de
gelo.
Se afastando a permitiu recobrar o controle, presenciando-a
explodir em felicidade e atirar a flecha cegamente, desejando
agradecê-lo, evidenciando seu crescente ânimo. Hesitou devido à
compreensível vergonha, porém sucumbiu ao seu sentimento.
— Eu consegui. Muito obrigada.
— Sinto-me menos demoníaco agora — ironizou.
As palavras martelaram fundo no seu coração, lembrando-a dos
pensamentos deploráveis que insistiam em permanecer
espreitando sua mente. Encabulada entendeu que teria que revisar
os seus sentimentos.
Liberto tratou de ordenar que realizasse várias vezes o processo
que aprendera. Ao final da sessão permitiu que fizesse uma pausa,
informando-a sobre a última etapa antes do encerramento do
treinamento diário.
— Agora você irá atirar na árvore até não se aguentar em pé.
Boquiaberta com sua espontânea delicadeza exigiu
esclarecimentos sobre o exercício antes de se mover. Sua vontade
atendida, esboçou claro sorriso de satisfação e iniciou os trabalhos.

225
Ao decorrer de uma hora atingiu completa exaustão, desabando
de face para o céu, cerrando os olhos. Ao vê-la diminuir seu arfar
se ajoelhou ao seu lado, balançando seu corpo.
— Eu sei que você não atingiu seu limite.
— O que há Petrus? — gritou irritada, sentando-se e o
encarando — Já estou há muito tempo nessa repetição inútil,
mereço descansar.
— Não merece não! — levantou-se.
— Por que você está sendo tão rígido?
— Porque você ainda não acertou nenhuma flecha em cerca de
uma hora! — respondeu apontando para o alvo.
Deduziu que o cansaço externava sua irritação e raiva
acumulados, pois estava certo, mas não era novidade sua falta de
destreza. Adivinhando que perderia o ânimo para seu derrotismo,
resolveu conceder último empurrão.
— Você só descansará quando conseguir acertar uma flecha
naquela árvore.
Com um longo suspiro ergueu-se e, portando força surreal
tracionou o arco e atirou, vendo a flecha acertar a parte inferior do
tronco. Dirigindo-lhe um olhar de superioridade sentou-se
novamente para descansar.
— Trate de recuperar-se rapidamente, pois precisamos
continuar o treino.
— Não brinque com isso.
— Você não atingiu nem cinco por cento do treinamento! Caso
fossem exatos cinco, demoraria vinte dias para você estar pronta,
porém nosso tempo é de treze dias, pois, no último, é
imprescindível que você descanse.
Estava certo, pois acertara apenas uma no alvo e por muito
pouco, frente às trinta que errara, porém não poderia alterar seu
estado. Resolvendo auxiliá-la ocultou seus movimentos para que
não detectasse sua magia regenerativa.

226
Admirada com a velocidade com que recuperou seu vigor físico
comentou, com ligeira estranheza, que seus músculos não se
achavam mais doloridos. Contente com o resultado cessou o
tratamento, instruindo-a quanto aos pontos de melhora.
Ao avistar o sol poente, exibindo seu tom alaranjado a
trespassar a folhagem das árvores, alertando-os do horário
avançado, se adiantou.
— Não conte sobre aquilo para Lucena — pediu.
— Por que quer esconder um simples abraço dela? —
quantificou a inocência remanescente em seu ser.
— Você sabe como ela é melhor do que eu.
Repentinamente uma onda de tristeza encobriu seu semblante,
induzindo-a a adentrar seu modo depressivo. Consciente da
modificação de seu estado a tocou, obtendo sua atenção.
— Você está bem?
— Sim, estou sim. — respondeu automaticamente
Ao ver seu amado abriu enorme sorriso disparando em sua
direção. Ao se aproximar saltou sobre ele sentindo seu abraço forte
e carinhoso, trocando um beijo de reencontro.
— Estava preocupada — disse ao se afastar.
— Não precisava, eu avisei que seria só um treinamento.
Presenciando a amável cena transitou da repulsa à tristeza,
sentindo, inconscientemente, lágrimas brotarem em seus olhos. A
fim de não lhes mostrar sua reação inesperada, pois torcia
diariamente para a amiga, intentou fugir.
— Deem-me licença.
Rapidamente ganhou velocidade e desapareceu de suas vistas,
intrigando-a deveras com o súbito drible sofrido. Percebendo seu
questionamento intrínseco, respondeu que a amiga estava
cansada, devido ao grande esforço dispensado.

227
Acercou-se do dormitório da pupila no alvorecer da manhã,
acompanhado da namorada, e a marretou levemente. Ao
constatarem que demorava insistiu, obtendo como resposta o
barulho de uma chave girando.
Contemplaram a figura da segunda princesa desconexa e
disforme. Contabilizaram os cabelos desgrenhados, olhos
semiabertos e entorpecidos, face sonolenta e, além de não se
encontrar calçada, utilizava uma camisola invisível.
— Quem é? — sequer enxergava através de seu torpor.
— Sou eu.
— Porque você está aqui tão cedo, Petrus? — tentava acordar
para a realidade.
— Temos que ser rápidos, pois não há muito tempo —
intrometeu-se.
Em tempo recorde leu a expressão da amiga, constatando o
porquê de estar atônita, inclusive desvendando, ao se observar, o
motivo da face do instrutor se alterar subitamente. Dentro de sua
coleção de camisolas, escolhera a mais transparente.
Em menos de um segundo seu semblante avermelhou-se por
completo e liberou potente efeito sonoro, tornando ao refúgio de
seu lar ao espancar sua porta no batente.
— Não seja tímida! Se quiser, eu deixo você ir para o treino
assim — provocou.
— Está a fim de dormir sob o relento? — ameaçou.
Deixando-o boquiaberto, porém sorridente, chamou a amiga e,
ao constatar mínima fresta, adentrou, antes que desse conta da
movimentação.
— Por que só você entrou? — chateou-se por ser excluído.
— Porque isso é assunto de mulher — simplificou.
— Mas, por que eu não posso entrar? — insistiu.
— É assunto de mulher! — frisou.

228
Ao saírem puderam vê-lo se espreguiçar muito antes de as dar
ouvidos, fato que as incomodou tanto que mantiveram distância
até saírem da instituição.
Assim que pode, explanou o roteiro para o segundo dia.
— Como assim aprender a manejar o arco e flecha
corretamente? — perguntou Marina.
— A potência que se lança a flecha, sua força e seu tamanho são
controlados pela mente, como é feito com as magias.
— Quer dizer que eu estava me esforçando à toa? — se irritou
incrivelmente.
Perseguiu o ser desprezível que a conduzira ao seu limite para
nada, sem se preocupar em ouvi-lo. Mesmo que estivesse se
divertindo, atendeu ao seu dever de ensiná-la.
— Ainda assim a precisão, a direção, o ângulo, e a mira
requerem as capacidades físicas do usuário, além do dano ser
separado em mágico e físico.
— Significa que equipamentos mágicos são mais fortes do que
magias? — Lucena perguntou.
— Se for utilizado esforço físico, sim, mas se não, é uma enorme
perda de tempo.
Aceitando seu argumento cessou a caçada e se despediram da
companheira. Com poucas palavras, Lucena exteriorizou sua
frustração por ser relegada ao esquecimento, obtendo uma mera
consolação de que poderia conversar com sua tia.
Observando-os adentrar a floresta sentiu um aperto no coração
por não poder segui-los. Compreendendo que só pioraria os
aguardando quieta se dirigiu ao destino sugerido.

229
— Olá Lucena — cumprimentou.
— Oi tia.
Identificando seu tom estremeceu, pois, conhecendo seu
sobrinho, fora ignorada e aspirava por conselhos. Nunca havia
pensado se gostava ou não de lhe requisitarem.
— Do que precisa?
— Nada. Os dois foram treinar e eu pensei em conversar um
pouco — demonstrou-se aborrecida.
— Estou toda ouvidos.
— Eu gostaria de saber mais sobre ele.
Sua espinha congelou ao perceber que a hora que há muito
discutiram chegara. Por não estar pronta para o interrogatório e
pelo furioso ímpeto da garota se desconsertou.
— O que gostaria você sobre ele saber?
— É que é muito estranho. Ele me contou sobre sua infância e
disse que toda sua família fora assassinada, então como é capaz
dele ainda ter uma tia?
Pasma com o fato de a procurar com o raciocínio formulado se
postou estática até o momento em que reparou seu olhar
insistente. Escolheu rapidamente as palavras, pois demorava em
demasia e isso aumentaria suas suspeitas.
— Nessa época eu morava em outra cidade, por isso que não
estava com ele.
— Também pensei nisso, mas os irmãos com certeza estariam
lá. Como nunca os citou?
Se lembrou do que lhe dissera antes de ali chegar, “Não precisa
se preocupar, pois nada que você sabe poderá acabar com meus
planos, então pode contar a verdade, se pressionada, e deixe que
eu manipulo o resto”.
— Os irmãos dele não são de sangue. Ele os encontrou
abandonados em algum lugar.

230
— E você não sabe onde foram encontrados? — perguntou
astutamente.
“Fui eu quem fiz besteira agora”, reparou que se esquecera de
remodelar sua frase para que encaixasse no inquérito. Concluindo
que nada adiantaria se torturar mentalmente superou seu erro.
— Eu não me lembro, já faz cinco anos.
— Há cinco anos? — perguntou, como em um interrogatório. —
Como pode se eles aparentam, no mínimo, dez anos e afirmaram
estarem juntos desde pequenininhos?
“Sorte que ela não é uma espiã do reino” pensou ao presenciá-la
desvendar a farsa apenas conflitando as poucas informações de
que dispunha. Teria de encará-la.
— Certo, você venceu. Eu não sou a tia de Petrus.
Presumira que assim o fosse, devido aos fatos ali elucidados e
seus sentidos femininos especiais, a questão era quando ganharia.
Pensou em articular um pedido, porém previu a decisão da
diretora e aguardou.
— A verdade é que eu o conheci há nove anos, durante uma
viagem, ou, poderia dizer, uma peregrinação.
— Há muito tempo eu era uma acadêmica de primeiro grau, a
melhor. Concluí diversas pesquisas que contribuíram, em muito,
para me destacar, porém meu gênio só piorava.
— Era extremamente orgulhosa, encrenqueira, grosseira e
arrogante. Meus colegas não aguentavam nem olhar para mim, só
me mantinham a vista por eu ser a melhor e isso elevar o nível da
academia.
— Um dia chegaram ao limite e fiquei a um passo de ser
demitida, então, sabendo disso, organizei uma falsa pesquisa para
ter um bom argumento para minha ausência e que os
impossibilitasse de tirar-me até retornar.
— Organizei uma viagem bastante longa, para que meus colegas
esfriassem a cabeça. Por isso passei por várias cidades e coletei
diversos dados.

231
— Até que soube de alguns livros raros na vila que havia sido
devastada por ele, Rentia. Percebendo que nada encontraria parti
para a cidade vizinha sem sentir nada ao presenciar aquele enorme
buraco. Mantive-me insensível, como sempre.
— Ao me aproximar da cidade um demônio humanoide me
interceptou. Era uma criatura grande e de aspecto rudimentar que
somente me causou tédio com sua mediocridade.
— Virando o rosto, em um gesto de desprezo, conjurei uma
magia que poderia derrotá-lo, porém coloquei pouca força por
subestimá-lo e ele esquivou-se.
— Se aproximou rapidamente e carregou o braço para me
atingir. Se fosse uma situação normal eu teria o vaporizado com
facilidade, porém minha arrogância fez com que eu abaixasse a
guarda, restando apenas esperar pela morte.
— Repentinamente algo me empurrou e consegui escapar do
ataque da fera, ilesa. Recuperando-me percebi que, em meus
braços, jazia uma criança a gemer de dor, pois se jogara na frente
das terríveis garras assassinas.
— Lembro que me desesperei pela primeira vez em minha vida,
pois não estava pronta para vê-lo morrer. Não o consideraria digno
de sequer limpar meus pés, porém suas palavras irracionais e
toscas me tocaram. Foi o primeiro a me confortar em anos.
— “Pode ficar tranquila que eu irei te proteger, agora afaste-se,
para sua segurança” Ouvir isso, ao mesmo tempo em que via seu
sangue escorrer, mesmo que o ferimento não fosse profundo, me
fez sentir um turbilhão de emoções que não sabia descrever.
— Retirou uma pequenina espada da bainha e se transformou.
Além de uma estranha intenção assassina, que me fez gelar, nada
mais se fazia presente.
— Com velocidade assombrosa se aproximou do alvo,
esquivando-se para sua retaguarda ao perceber a contração de seu
braço e, com ágil movimento, perfurou abaixo da nuca. Quando
percebi que usara magia de vento já havia terminado e despedia-
se.

232
— Depois que cuidei de seu ferimento o segui, dizendo que
queria conversar, ao que comemorou, dizendo que não tinha
ninguém para conversar. Ainda hoje não entendo como isso me
abalou, pois meu orgulho permanecia rígido.
— Percebi que não estávamos indo para a cidade, mas entrando
na floresta ao lado. Desconfiada perguntei aonde iríamos, ao que
me respondeu com uma leve risada.
— Confesso que, no momento, tive receios de estar tramando
algo, mas o fato de ter me salvado e de ser apenas uma criança, bem
inferior a mim, me fizeram continuar o seguindo. Entrando em
uma clareira vi uma rede de dormir e alguns tecidos presos acima,
formando uma espécie de proteção.
— Quando ele disse que havíamos chegado à sua casa eu senti
asco, primeiramente, porém senti pena ao passar do tempo. Ainda
admirando o covil, perguntei por que ele não morava na cidade, me
respondendo que era para ele não machucar as pessoas e que se
sentiriam melhor com a distância.
— Ao questioná-lo me abalei novamente. “É que eu fiz algo ruim
e ouvi que sou um tipo de demônio e posso machucar as pessoas”.
Como era possível uma criança manter a calma e seu sorriso diante
de tais circunstâncias? Não acreditei que aquele era o prometido
rei demônio e sequer constatei o mínimo resquício de maldade em
seu ser.
— Por curiosidade perguntei o porquê dele defender pessoas,
como eu, que o ignoravam, e minha admiração pelo pequeno se
concretizou. “Eu ajudo as pessoas porque alguém precisa ajudá-las.
Nunca pensei em um motivo. Alguns nascem com conhecimento
para dividi-lo com o mundo e outros nascem com músculos para
proteger a todos. E você não me ignorou, tanto que está aqui me
fazendo companhia”.
— O golpe crítico despedaçou meu orgulho e fez-me abraçá-lo
em pranto convulsivo. O pequeno nada sabia, mas, em uma única
conversa, destruíra todos meus demônios, me tornando uma nova
mulher. Eu havia descoberto a resposta que tanto procurara.

233
— O rei demônio nunca abandonou o povo. Foi abandonado
pelo povo.
O impacto da afirmação fora tremendo, produzindo efeitos
imediatos no coração da ouvinte. A esperando se recuperar
aproveitou para controlar sua respiração.
— Ao me recuperar perguntei se poderia arrumar outra rede.
Com uma resposta positiva adentrou a floresta para pegar
madeira, me pedindo para ir à cidade coletar alguns panos. Foi
lindo o esplendor que pude contemplar ao retornar com uma
dezena de tecidos, maiores, de melhor qualidade e variadas cores.
Entendi que estava enganada, pois somente aceitava o luxo e
desprezava todo o resto.
— Daquele dia em diante me concentrei em ensiná-lo tudo o que
sabia e treiná-lo em magia, em troca obtive o conforto que tanto
necessitava, inclusive foi dele a ideia de construir essa academia.
Ele dizia que eu tinha jeito para ensinar.
— Depois de cerca de quatro meses me avisou que estava
partindo para outra cidade, pois outros careciam de sua ajuda,
então, quando eu pedi para ir consigo, recebi uma recusa.
— Mas por quê? — perguntou, entretida com a narrativa.
— Ele disse que aquela não era a minha vida e que eu deveria
voltar de onde vim para poder consertar tudo e recomeçar. Ao
insistir recebi um abraço caloroso que correspondi prontamente.
Quando nos soltamos me disse que admirava minha boa vontade,
mas não se consertaria o mundo colocando todas as pessoas em
uma mesma função, mas sim os separando conforme sua
especialidade.
— Depois disso foi embora e apareceu somente agora. Essa foi
a pior e a mais emocionante despedida da minha vida, mesmo
sabendo que nos veríamos novamente.
— Como você sabia que se veriam novamente? — perguntou
emocionada.
— Porque ele me prometeu! — lembrou com lágrimas nos
olhos.

234
Tentou prosseguir com sua narrativa, porém as lembranças e o
fato de seu falso sobrinho ter cumprido sua promessa provocaram-
lhe doces lágrimas que embargaram sua voz. Ao se controlar,
continuou, estampando sincero sorriso.
— Peguei todos de surpresa, causando enorme alvoroço por não
ter demorado nem um quarto do tempo que propusera
inicialmente, porém ficaram muito contentes por ali encontrarem
a oportunidade perfeita para mandar-me embora o mais rápido
possível.
— Cheguei primeiro na sala da reunião e, assim que meus
colegas sentaram, levantei e os pedi perdão por todos os anos em
que me empenhei em humilhá-los e tudo o mais. No revelei meu
plano de construir uma academia para ensinar as artes mágicas e
me despedi, retirando um enorme peso de minha consciência.
— Petrus influenciou minha vida totalmente, alterando minha
visão e quebrando a carapaça formada em minha infância. Na
escola, insistiam em me ver sofrer, em minha própria casa, meus
pais nunca concordaram com nada.
— No fim até o nome da escola foi culpa dele — recordou-se das
emoções ao escrever o primeiro letreiro e as revivendo em todo
seu esplendor.
— Como assim? — não compreendeu.
— Academia de Magia é a própria instituição, além da
denominação de seu objeto de ensino, e Laetus era o nome do lar
daquele garotinho. “Um mundo onde só há alegria, mortes de
inocentes não são aceitas e local de descanso dos heróis”.
Imediatamente ao fim da narração começou a folhear a torrente
de informações descobertas, intentando ser capaz de absorvê-las
antes da volta do amado.
Seus pensamentos lhe entretinham de tamanha forma que nem
perceberam a porta entreaberta. Belatriz espionava Lucena,
acabando por ouvir a história do início ao fim.
Primeiramente a culpou por ter cometido gravíssima falta,
mudando de opinião ao final. Segurando as lágrimas ao máximo,

235
pois não desejava ser descoberta e nem quebrar seu orgulho,
decidiu ser hora de repensar seus conceitos.

— Você é muito ruim! — disse calmamente.


Estendida na relva e a olhar para o céu arfava pesadamente,
imaginando que, mais uma vez, se desgastava sobremaneira, pois
cada milímetro de seu corpo estava dolorido. O tempo não parava
e não evoluía o necessário, o deixando sem ideias.
Repentinamente foi acometido pela brilhante ideia de levá-la
até o outro lado da floresta e a deixar a sós, repetindo o processo
até que se tornasse ágil no percurso. Ao restaurar seu vigor
ordenou que se erguesse e conjurou uma magia psíquica para
adormecê-la.
Abrindo os olhos vagarosamente se surpreendeu com o olhar do
rapaz sobre si. Ao passar de seu torpor lembrou do acontecido,
recuando instintivamente.
— Acalme-se, fiz aquilo para você não ver o caminho —
levantou-se.
— Onde estamos? — perguntou ainda confusa.
— Do outro lado da floresta.
Completamente chocada enrijeceu, inclusive cessando o piscar
de seus olhos por vários instantes, durante os quais permaneceu
em plena elucubração. Ao passar de pequeno período sentiu ser
capaz de articular precisa interrogação.
— E por que você me trouxe aqui?
— Para a próxima etapa de seu treinamento. Você terá que
encontrar o caminho da academia sozinha.
— Você só pode estar de brincadeira! — gritou após nova
reflexão.

236
— Sua parte física está em estado deplorável e sua habilidade
mental está molenga, então temos que fazer isso se quisermos
ganhar delas — disse com sinceridade.
— Você está maluco? — gritou.
— Não tenho culpa que você foi mimada excessivamente.
Irada, não sabia se gritava interna ou externamente, suas
certezas e razões lhe abandonaram ao ponto em que a
irracionalidade pura reinou. Esbugalhando os olhos e
avermelhando-os, passou a alisar seu cabelo convulsivamente.
— Tudo isso porque você quis dar uma de bonzão e, ao invés de
lutar, me ensinar.
Com bastante calma e resignação aproximou-se e procurou
tocar-lhe levemente, sendo ferozmente recusado. Enfrentou seu
olhar selvagem com seriedade e firmeza.
— Tenho certeza de que sou capaz de enfrentar qualquer
desafio que surja. E você?
Rapidamente abandonou a princesa a pensar sobre o que tinha
dito. Batendo a poeira de suas roupas decidiu prosseguir com o
exercício, além de tantos outros que se seguiriam.
Logo no início vislumbrou seu primeiro desafio, pois duas
árvores se encontravam e, entre elas, um arbusto. Após muito
trabalho para atravessar o arbusto, gerando vários rasgos em seu
vestido, percebeu que não era obrigada a seguir os passos do
amigo.
À frente, após tropeçar em várias raízes e pedras, se deparou
com uma ligeira depressão, então segurou um galho e intentou
esticar a perna cuidadosamente, porém ele quebrou. Como
consequência caiu e rolou, sendo obrigada a descansar até a dor
sumir.
Enquanto ziguezagueava pelas árvores sofreu várias
intempéries, como enroscar seu cabelo, ocasionais cutucões e
rasgos em suas roupas, enorme dificuldade para se manter em pé,
devido ao péssimo terreno, e duas quase torções por calçar um
tamanco.

237
Por horas permaneceu andando em círculos, pois nunca esteve
certa sobre a direção a ser tomada, deduzindo que chegaria a
algum lugar simplesmente por seguir em frente. Durante sua
aventura surgiram variadas barreiras naturais que testaram seus
brios.
Uma hora sua valentia se esvaiu e se cansou, sentando-se no
chão e iniciando copioso pranto. Era cristalino para si que nunca
seria alguém, nunca alcançaria suas irmãs e nunca seria uma maga
minimamente digna, assim como nunca conseguira nenhuma
realização por si só e até as magias que Petrus disse ter feito foram
por mero acaso.
Por muito chorou o mais forte que conseguiu, até o momento
em que acordou para a realidade de que era, sempre foi e sempre
seria uma fracassada. Dali em diante permaneceu sentada
esperando que o cavalheiro viesse ao seu resgate.
Com o passar das horas voltou a pensar e refletiu em tudo que
externara, aceitando que poderia ter exagerado. Reconhecido seu
erro o caminho para sua liberdade mental clarificara-se,
absorvendo por completo a ideia de que deveria ser ela a principal
interessada em sua mudança, içando-se em um salto.
Despreocupada em se limpar iniciou consciente caminhada,
atentando-se a detalhes que a permitissem assumir a direção
correta. No céu os raios alaranjados a indicavam a necessidade de
se apressar para sobrar-lhe tempo para descansar para o dia
seguinte.

Vislumbrando seu amado, imaginou onde a amiga poderia estar,


além do motivo de haverem terminado o treino tão cedo.
Cumprimentando-o se sentou ao seu lado, entregando-lhe seu
almoço.
— Onde está Marina?
— Treinando — não esboçou reações.

238
— Não entendi.
— Irei te explicar.
Como prometido lhe revelou tudo que acontecera não permitindo
escapar os mínimos detalhes. Ao final reagiu exatamente como a
amiga, não diferindo do previsto.
— Está enganado. Ela não suportará as duras provas que você a
impõem — se controlou.
— Todos que a olham que estão enganados, pois sua capacidade
é muito maior do que supõem — pontuou tranquilamente.
— Você não sabe sobre a história dela e o quanto sofreu?
— O passado nada me interessa, tudo que me interessa é o
futuro.
“Ele acertou muitas vezes já, então porque não mereceria uma
chance?”, foi o pensamento que desencadeou seu apoio silencioso.
Ao nascer da noite se apavorou pelo dia estar em seu findar e
não enxergar vestígios da amiga. Irritada por externar a mais plena
calma cuidou de se controlar para o abordar.
— Marina está demorando, não acha melhor irmos procurá-la?
— Agora que ela está quase chegando? — sequer abriu os olhos.
Em ato reflexo virou para observar a chegada da amiga,
suspirando por ter sido enganada por seu subconsciente. Como
nada aconteceu em trinta segundos, voltou a encará-lo.
— Chega dessa brincadeira Petrus. Vá buscá-la agora mesmo —
ordenou em alto tom, ajoelhando para sacudi-lo.
— Acalme-se, se eu for buscá-la agora irá interferir na melhor
parte do treino.
— Eu não me importo com isso, só quero a minha amiga em
segurança.
— Estar sempre em segurança significa não viver.
Com suas palavras a viu imergir em suas próprias memórias,
relembrando seus bons tempos. Estava certo, pois, quem está

239
protegido, sempre é quem não sai de seu mundinho e, assim sendo,
não experimenta a vida.
— Mas... E se ela se machucar? — aceitou o argumento, porém
ainda se preocupava.
— Nós a consolaremos.
Devido à discussão, por pouco não captaram Marina a admirar
seu lar, lacrimejante. Por segundos apenas observaram o estado
deplorável da garota.
Não mais capazes de se controlarem correram de braços
abertos. Ao se encontrarem abraçaram-se fortemente e abriram o
berreiro, consolando-se uma a outra.
— Volte ao seu quarto e descanse bem que amanhã você
dobrará a meta.
— Acabei de voltar e já quer me mandar de volta? — questionou
inconformada.
— Seja mais delicado, Petrus! — gritou a parceira igualmente
inconformada.
— Ela está muito abaixo do nível ideal e não será delicadeza,
muito menos descanso, que a ajudarão — demonstrou-se
insensível.
— Mas estou no meu limite.
— Isso é óbvio. O nível abaixo sempre será menor, então se você
quiser subir tem que aprimorar seu limite — disse como se fosse
uma lógica simples de se obter.
Estava muito extenuada, tanto que acreditava ser necessário um
dia inteiro para se recuperar razoavelmente. Decidira que se
superaria, porém não possuía certeza absoluta de que isso era o
melhor, portanto, carecia de um empurrãozinho.
— Tudo bem, então vou cancelar o duelo, mas não poderá
reclamar de ser motivo de chacota, não ser ouvida, ter sua vida
controlada, enfim, ser mais uma na multidão.
Conseguiu entrar fundo em sua mente, causando imenso
estrago por recordá-la de seu passado próximo. Antes que se

240
distanciasse por demais, destruiu sua necessidade de amparo por
si própria, lhe chamando a atenção.
— Como você pode ser irritantemente convincente?
— Estando sempre do lado da verdade — respondeu reluzindo
largo sorriso.
Com isso apoiou a pobre vítima e avançaram, exibindo ao
máximo a insatisfação com suas atitudes rudes e frias. Percebendo,
manteve-se na retaguarda, aguardando a maturação de suas
tolerâncias, que se deu somente ao se acercarem de seu
dormitório.
— Amanhã chegarei no mesmo horário que hoje, esteja pronta.
— Está louco? Ainda preciso me arrumar, preparar o jantar e
descansar — exasperou.
— Então seja rápida.
— Não acha que está sendo um pouco duro? — perguntou a
parceira.
— Nem um pouco, pois poderá descansar o quanto quiser após
o combate.
Se surpreendeu com a rigidez que apresentava, exprimindo
certa fúria por prever sua consequência. Por sua vez, não pode
frear o surgimento de lágrimas, batendo a porta por não desejar
exibi-las.
— Parabéns! — acertou-o no braço. — Você a fez chorar.
Não compreendendo a reação da realeza, tampouco a
reclamação de sua parceira, deu de ombros. Por minutos perdurou
recostada em sua porta chorando de felicidade, pois era o primeiro
a não sentir pena de sua condição.

241
No dia seguinte a rotina foi religiosamente seguida pelo casal
que se dirigiu ao quarto da amiga pontualmente, descobrindo que
sua rotina de atraso também se mantinha.
— Acorde logo, dorminhoca! — gritou Petrus.
— Mas você nem sabe se ela ainda está dormindo — lembrou.
— Para estar demorando tanto assim?
Ao completar do terceiro chamamento viu a porta abrir
velozmente revelando a bela figura da garota, com roupas
apropriadas para a trilha entre as árvores, além de uma bota
resistente, pronta para o terreno acidentado.
— Vamos começar o treino? — perguntou decidida.
Observaram pasmos que sacrificara suas roupas esvoaçantes
por uma simples camisa e calças brancas, colete marrom, botas de
couro e um laço prendendo o cabelo. Apesar de ainda transparecer
sua jovial beleza, devido aos delicados itens, havia se esforçado.
Petrificaram por longos instantes com o vislumbre surreal da
princesa, não acreditando se tratar da verdadeira. Rindo por
compreender seu espanto os acordou do transe.
— Adorei a mudança, agora posso enxergar uma luz no fim do
túnel.
— O que é isso amiga? Sua aura está diferente.
— Já estava na hora de quebrar aquela casca e mudar, afinal
nada aconteceria se eu não permitisse — sentiu-se liberta.
Percebendo ambos começarem a bater palmas para si,
inicialmente lentas e aumentando à medida que o tempo se esvaia,
encabulou-se por completo.
— Não teria dito melhor, amiga. Será sempre sua a palavra final
referente a sua postura.
Mantiveram-se em silêncio completo, ruminando a súbita
mudança e observando-a devolver seus olhares com um sorriso
confiante. Ao deixar a instituição para trás, resolveu interrogar
sobre o andamento do treinamento.

242
— Agora ela ficará apenas no trajeto de ontem para, quando
atingir a marca de quatro horas, passarmos para o treino com o
arco e, nessa hora, você poderá auxiliar-nos.
— Então vamos logo para que eu termine isso ainda hoje —
disse motivada.
Voltaram a observá-la com estranheza, imaginando o que
acontecera para tão radical transformação, chegando ao ponto de
reclamar por se recusar a desacordá-la.
— Posso entender vocês, pois sei o quão ridícula era —
pretendeu finalizar o evento.
— Agora não é mais necessário esconder o caminho de ti —
compreendeu.
Com agilidade a ergueu, apoiando sua cabeça em um braço e,
com o outro, laçou seus joelhos. Sentindo o peso do olhar da pupila
a lhe encarar compenetradamente, foi induzido a retribuí-la,
divertindo-a por quase se chocar com uma árvore.
Descendo-a delicadamente e desejando boa sorte adentrou a
floresta, imaginando que seria uma excelente surpresa se
conseguisse segui-lo. Não tentou segui-lo, ao contrário do que
desejava, buscando por um caminho diferente; seu próprio
caminho.
Utilizando de sua elasticidade nata, uma vantagem das
mulheres, conseguiu atravessar as diversas armadilhas naturais,
desafiando a todas, a fim de passar da fase do treinamento com
louvor, aproveitando ao máximo seus benefícios.
Ao voltar se deparou com Petrus e a companheira deitados na
relva dormindo. Nunca supôs que sua pupila terminasse o trajeto
em tão curto espaço de tempo.
Se agachando a seu lado, tocou-lhe levemente o ombro e o
chamou. Abrindo sonolentamente seus olhos encontrou a bela
imagem flutuando acima de si, lançando, inconscientemente,
maravilhoso gracejo que a fez corar intensamente.
— Acorde logo, seu paspalhão! — deu um tapa em seu rosto.

243
Como consequência de seu golpe para apartar sua vergonha o
viu se contorcer repentinamente, causando seu reflexo de se
erguer e o despertar da terceira devido ao esbarrão. Após se
espreguiçar tranquilamente observou-os.
— O que foi isso amor?
— Estou ficando mais forte — sorriu ao levantar o braço para
exibi-lo.
— Que nada! — redarguiu rapidamente. — Apenas me pegou de
surpresa.
O fitaram divertidamente, em consonância, e forjaram largo
sorriso, o imprimindo leve ardência na face. Por desgostar deveras
da situação tratou de fugir pela tangente.
— Não te esperava tão cedo.
— Você foi muito rápida! — exclamou Lucena sobrepujando sua
voz.
— Parabéns por sua evolução! — levantou e estendeu-lhe a
mão. — Agora vá comer logo para não perder tempo.
Por apenas um momento pode desfrutar de imperioso sorriso
em sua face, o vendo se tornar pó ao se recordar de sua costumeira
delicadeza. Virando-se em segundos para cumprir a ordem, deixou
de ver a amiga o acertando no braço, novamente.
Terminada sua digestão retornou à floresta e repetiu a travessia
mais duas vezes, antes da noite se apresentar com maior força.
Obteve uma redução de, cerca de vinte minutos à tarde e dez
minutos na última trilha.
Destruída, por passar o dia em excursões pela floresta, começou
a raciocinar como chegaria a seus aposentos. Sendo surpreendida
pela oferta do rapaz de carregá-la até seu destino buscou a amiga
com o olhar, se estupeficando por constatar sua aprovação.
Em segundos se aproximou e, com um único movimento,
alcançou suas pernas e a ergueu, apoiando sua cabeça com o braço.
— Por que desse jeito? — perguntou automaticamente.
— Não quer que te deixe esfregar nele, né amiga?

244
Tão rápida quanto a ação do rapaz foi o surgimento dos efeitos
de sua vergonha. Após demorada preparação gaguejou quaisquer
palavras, a fim de iniciar uma conversa, espantando parte de seu
imensurável sentimento.
— Como você acha que fui?
— Você foi muito bem, reduziu seu tempo em ambas as vezes.
— Mas não fui bem na última — replicou em clara busca de um
elogio.
— A maioria das pessoas se perde na floresta, pouco depois do
entardecer. Você não só manteve seu caminho como se adiantou
levemente.
Com potente injeção de ânimo seu cansaço desapareceu, como
poeira ao vento, nem sequer o ouvindo dizer que poderiam iniciar
a próxima fase do treinamento e diminuir as caminhadas.
— Trate de descansar bastante essa noite para poder se esforçar
em seu quarto dia de treino — avisou enquanto a colocava no chão,
em frente à sua porta.
— Não exagere, Mô! — advertiu.
— Você acha que ela foi liberada das aulas até o combate de
graça? — brincou.
— Obrigado por sua preocupação, Lu, mas o que ele diz é
verdade, pois o tempo é curto e tenho que evoluir muito ainda.
Aproveitou sua declaração e se despediu, exteriorizando toda
sua felicidade e animação ao adentrar seu covil, mantendo suas
emoções em secreto.

— Iniciaremos com um simples treino de pontaria, lembre-se de


utilizar do jeito correto, conforme lhe foi explanado.
Logo que alcançaram a clareira, que fora escolhida como local
de treino, ordenou que a assistida realizasse breve aquecimento,

245
lembrando-a de não se desconcentrar com a presença da amiga,
que a observava atentamente.
Após a décima flecha que se dirigiu à árvore indicada, apesar de
ligeiramente torta e sem força, dirigiu um olhar para o mestre, que
tentava sintetizar seus sentimentos, por recordar que, há pouco
tempo, a prática era mais difícil e cansativa.
— Quando se sabe o jeito certo, as coisas se tornam mais fluidas.
— Isso é verdade, mas você ainda está muito mal — golpeou
inadvertidamente.
— Pensa que isso é fácil? Venha aqui fazer! — praguejou furiosa.
— Se estou te ensinando é porque já realizei muitos disparos —
disse com resignação.
— Isso é a mais pura verdade, amiga — entrou na discussão.
Percebendo que suas reclamações não eram cabíveis e que
estava em desvantagem numérica, resolveu calar-se e voltar à
dinâmica. Ao formar seu arco, Petrus a interrompeu e pediu para
que a espectadora se dirigisse ao seu lado.
— Por favor, Lucena, crie uma parede de fogo entre nós.
Após elogiar a parceira pela magia se postou próximo à pupila e
apanhou o projétil, aproximando sua ponta do fogo, tendo como
resposta seu imediato derretimento.
— Está vendo como sua flecha derreteu rápido? Isso não pode
acontecer.
— Mas é normal gelo derreter no fogo — retrucou.
— Na magia, não é nada normal! — observou suas faces de
confusão — É simples, um fogo mais forte derrete um gelo mais
fraco, porém demora a fazê-lo com um mais forte.
Criando uma pequena espiral de gelo e colocando sua ponta no
fogo percebeu esboçarem extrema surpresa e dúvida ao
constatarem que derretia muito lentamente.
— Então o único fator relevante é o poder da conjuradora? —
perguntou Marina.

246
— Claro que não, o poder de ambos é muito relevante, porém há
dois grandes pontos fracos do fogo que poderá aproveitar. O
primeiro são as variações desse, conseguindo até congelá-lo, caso
acerte o ponto correto; o segundo é o fato de um projétil de gelo
poder atravessar qualquer parede crepitante, inutilizando-a.
Como a explicação fora longa, demorou a absorvê-la, causando-
lhe algumas centelhas de ligações neurais. Quando parecia ter
formulado uma conclusão lançou-lhe um olhar inquiridor.
— Minhas flechas terão então que aguentar apenas alguns
segundos no fogo?
— Exato! A menos que seja uma rajada de fogo, é possível.
— Resumindo, é muito complicado uma maga de gelo enfrentar
uma de fogo — concluiu Lucena sorridente.
— Depende. Por exemplo, as defesas de gelo resistem ataques
de fogo razoavelmente.
— Então eu poderia derrotar a Lu?
— Sem chances. Isso nunca aconteceria.
A certeza, implícita em suas palavras, teve um grande impacto,
imprimindo, em uma, ar de decepção e na outra de superioridade.
Cansando-se da situação exigiu que a aluna retornasse à prática de
tiro para que treinassem a permanência do arco posteriormente.
— Como assim permanência do arco? — perguntou intrigada.
— O normal desse arco é permanecer até desejar desfazê-lo.
— Isso seria de grande ajuda — comentou.
— Então inicie logo seus tiros.
Continuou a observar o treino em silêncio, pensativa e inquieta
com o que acabara de ouvir até o momento em que não conseguiu
conter sua necessidade de questionar-lhe.
— E quais pontos fracos as magas de fogo podem aproveitar?
— A principal é o fato das magas de gelo, por mais velozes,
possuem um tempo de passagem entre o modo de defesa e de
ataque em que ficam vulneráveis.

247
— Podemos pegá-las desprevenidas utilizando a agilidade?
— Exato.
Ao percebê-la irritando-se por estarem conversando em suas
costas levianamente enquanto tentava praticar se aproximou e
colocou a mão em seu ombro.
— Descanse um pouco
Como se fosse uma ordem se atirou ao chão, deitando-se e
cerrando seus olhos em seguida, o que facilitou em muito seu
trabalho de recuperá-la. Tendo executado seu plano com sucesso
introduziu o novo treino.
— Para formar um arco e uma flecha é necessário selecionar
certa quantidade de mana para cada um desses objetos e
interpretá-los como se suas existências fossem diferenciadas. O
que você está fazendo é criar a flecha através da transferência
direta de energia de seu arco e, ao atirá-la, toda a energia é
combinada ao projétil.
— Utilizar a forma que estou fazendo atualmente é errado?
— Não exatamente. Desse jeito a flechada é executada com mais
força e do dito correto a velocidade é maior e o gasto de mana
menor, portanto é possível executar diversos combos e
movimentos elaborados.
Indicando que compreendera a explicação com um aceno de
cabeça pediu por presa no aprendizado o surpreendendo, porém
não o suficiente para o impedi-lo de prosseguir.
— Para utilizar o método correto é necessário separar o arco da
flecha e atirar somente o projétil. Para conseguir esse intento você
treinará conjurar somente a flecha e, após isto, irá formar o arco e
atirá-la sem mexer com a mana do arco.
Testemunhando-a falhar várias vezes, sempre focalizando a
energia na flecha ou dispersando-a por afrouxar demais, imaginou
como montaria uma exemplificação prática para que visualizasse
com mais precisão o cenário.

248
— Imagine como se eu e você fossemos o arco e a flecha. Ambos
possuem suas próprias vidas e utilidades, mas só quando juntos
demonstram seu verdadeiro potencial.
A aprendiz ficou maravilhada com a comparação, porém sua
amiga formulou um pensamento diferente, acabando por
exteriorizar sua face vermelha. Após muita insistência resolveu
revelar o que lhe incapacitara por tanto.
— Ma... Imagine a flecha e o arco separados e depois os junte.
Em milésimos de segundos sua face se avermelhou
inteiramente e enorme ardor se iniciou, a impedindo de liberar
nem um suspiro sequer. Lucena, por outro lado, se mantinha em
extrema irritação por ter tratado tal assunto perante outra mulher.
— Petrus, por acaso você está se insinuando para a Marina? —
começara a faiscar.
— Não sei por que pensa que eu seria capaz de algo assim —
compreendeu o ocorrido
— Por que será? — provocou.
— Tudo o que fiz foi para nossa amiga cumprir seu intento.
Ainda extremamente envergonhada se forçou muito e, a duras
penas, encontrou a dignidade da realeza obtida em seus árduos
treinos, reestabelecendo o controle.
— Mas é agora que não vou conseguir mesmo.
— Achei esse exemplo muito bom. Pelo menos tente — pediu
encarecidamente.
— Você tem noção do que acaba de me pedir? — indignou-se.
Por longos segundos permaneceu imóvel e cataléptica, até que
bateu em seu rosto com ambas as mãos e decidiu tentar.
Sem se esforçar muito ergueu a mão e seu arco apareceu, assim
como a flecha em sua destra. Após longo período concentrando-se
atirou o projetil e acertou o alvo melhor que nas tentativas
anteriores, desfazendo o arco ao final e se desmanchando no chão.

249
— Eu não disse que meu exemplo ajudaria? — sorriu. — Agora
só resta você conectar sua arma ao seu espírito.
— Parabéns, amiga! Você conseguiu! — não sabia o que dizer.
— Preferiria nunca ter conseguido
Durante os dias restantes antes do duelo sua frase se manteve
no ar, desencadeando semelhantes brincadeiras e pegadinhas de
igual teor, dessa vez com participação de Lucena, afinal demoraria
para perder sua timidez para tais questões.
Vários exercícios foram passados por seu treinador e várias
repetições atormentaram-na ao longo de mais de uma semana,
porém, o que mais lhe incomodou, foram as insinuações dos
amantes a que fora obrigada a suportar.

250
12. Importante dia

Enfim chegaram as confusões e agitações típicas da magnitude


de tal evento. O duelo da terceira princesa e seu trio de guerreiras
contra sua irmã mais velha e o misterioso aluno, deixaram a cidade
em polvorosa como nunca.
Assim como lhe fora sugerido por seu mestre se levantou mais
tarde que o normal, dirigindo-se sem demoras ao encontro do casal
no pátio exterior.
Ao passar por sua porta com pressa, começou a pensar em como
sua vida havia mudado, os amigos que fizera, as situações que
vivera, os poderes que desenvolvera, surpreendendo,
principalmente, a si própria e os sonhos que descobrira possuir.
Tal reflexão perdurou até o momento em que captou a presença,
sentados em um banco, dos amigos, acompanhados pelos irmãos
de Petrus. Ao estabelecer contato visual saudaram-se e seguiram
caminho até a famosa Don’s Confeitaria.
Após sentarem se atentaram para o imenso movimento e os
olhares dirigidos ao grupo. Toda e qualquer alma viva existente
nas instalações da academia havia comparecido
— Seria melhor que poucas pessoas soubessem dessa batalha
— exclamou Petrus.
— Isso seria impossível. Tresa é a mais popular de minhas irmãs
— esclareceu.
— Que coisa — surpreendeu-se — Não sabia.
— Onde você esteve todo esse tempo, querido?
Como estavam se distanciando incrivelmente da finalidade do
treino descontinuou o assunto de pronto, lançando sério olhar
para sua parceira de batalha.
— Lembre-se que você não deve temer atirar em mim.
— Eu sei disso.

251
Automaticamente foi remetida ao dia em que Petrus apresentou
a novidade, concebendo a problemática de outrora em sua cabeça
em poucos segundos. Em consequência teve liberado os
sentimentos e sensações experimentados na ocasião.
— Como assim aprender a acertá-lo? — exprimiu seu espanto.
— Deixe-me explicar melhor — começou calmamente. — Você
terá que aprender a atirar em mim sem temer as consequências.
— Endoidou de vez? — questionou impassível.
— Também não estou entendendo, querido — pronunciou-se.
— Isso faz parte de nossa principal estratégia para o duelo —
respondeu sorridente. — Irei encobrir a visão de nossas oponentes e
você irá atirar sem que elas vejam, fazendo com que, ao desviar-me
das flechas, as chances de acerto sejam quase certas.
Durante algum tempo o grupo permaneceu em silêncio,
raciocinando sobre o plano, seus pontos positivos, negativos e riscos
iminentes, concluindo o mesmo.
— Mas como você verá minha flecha se estiver de costas?
— Quando se avança até certo nível, o mago se torna capaz de
sentir a mana ao seu redor. E eu posso senti-la a grandes distâncias.
— Nossa que diferença entre nossos níveis — murmurou Lucena,
impressionada. — Eu nem sequer sinto a minha própria mana.
— Pare de puxar o saco dele amiga — reclamou.
— Até parece que você não sabe quem ele é — retrucou.
Prevendo onde a conversa chegaria, fez questão de intervir
rapidamente. Todos saberem de algo e permanecerem calados era
totalmente diferente do pensamento esvair e permanecer nas
conversas por duradouro período e não cometeria esse erro.
— Voltando ao assunto, apenas dispare em pontos que não
permitam fuga, pois, se você utilizar aquela sua técnica, mesmo se
não atingir um ponto crítico as adversárias ficarão quase
incapacitadas.
— Quanto a isso, não se preocupe — colocou simplesmente.

252
— Claro que meu irmão deve se preocupar — intrometeu-se
Amira.
— Afinal o futuro dele depende de você — completou o irmão.
— O que vocês querem dizer com isso? — perguntou nervosa.
Consciente do que os irmãos pretendiam, decidiu silenciá-los
rapidamente, a fim de que não causassem a confusão de sua colega,
porém escaparam ao bloqueio imposto.
— Pode ser algo bom ou ruim — iniciou a menina.
— Só depende da carapuça que você deseja vestir — terminou
Marcus.
Seu nível de irritação se elevou. Desejava enforcar ambos por
trazerem à tona lembranças nada positivas de tempos antigos em
que ainda moravam em seu dormitório.
— Porque você os trouxe, Petrus?
— Porque eles estavam entediados. E a Lu os acha legais —
inventou.
Em hipótese alguma poderia deixá-las descobrirem que ambos
vieram por saber que a princesa passaria por um turbilhão de
emoções, por isso testariam sua fibra.
— Estou começando a desconfiar de seus gostos, amiga.
— Eles são tão fofos e tem umas ideias tão diferentes que acabo
me divertindo.
— Isso porque você conhece a língua deles.
— Vamos parar com essa discussão e começar logo o treino de
hoje. — Interveio.
Muitas tentativas foram realizadas, sempre com o mesmo
resultado negativo. Sua perspectiva inicial era para que conseguisse
atingi-lo após trinta minutos, porém foram necessárias horas para
que o resultado aparecesse.
— Certo, Marina? — questionou o rapaz, nem percebendo que
estava mergulhada em lembranças.

253
— O que foi? — acordou para a realidade.
— Você não estava me ouvindo?
— Não foi de propósito — desculpou-se animadamente.
Agora fez-se atenta ao plano que iriam seguir durante o duelo;
as correções a serem aplicadas, as habilidades a serem utilizadas e
demais detalhes importantes.
Encerrando seu último assunto pertinente, Maiara os avistou e
correu em sua direção, os chamando ao se aproximar, assim os
alertando de sua evidente animação.
— Souberam do grande evento financeiro de hoje?
— Uma aposta de quem será o vencedor? — deduziu o rapaz.
— Como adivinhou?
— Porque será, né? — ironizou Lucena.
Sem paciência nem tempo para encarar a conversa que se
anunciava tratou de apressá-la para que pudessem se encontrar a
sós novamente, instalando um clima de concentração.
— A quantos está nossa equipe?
— Ninguém.
— Nem sequer você?
— Se você fosse lutar até apostaria, mas não irei me arriscar
com essa negativa.
Uma sensação de explodir em gritos com a intrusa lhe bateu
forte, porém se lembrou de sua realeza e se segurou, tratando da
situação com um pouco mais de maturidade.
— Quem você está chamando de negativa, papa grana?
— Você, que nem sabe lançar um feitiço sequer — irritou-se.
— Ora, sua papa grana, saiba que eu... — sentiu um leve chute.
— Vou quebrar sua cara.
— Isso eu pago para ver, princesa do zero — descarregou sua
raiva.

254
— Verdade?
Com uma única palavra conseguiu estremecer a inconveniente
colega, que conhecia seu potencial, e estampar largo sorriso em
suas parceiras, pois sabiam o que faria.
— Vamos fazer nossa aposta particular. Se a Marina ganhar,
você terá que pedir perdão para ela e entregar oitenta por cento de
seu lucro.
Tal proposta ressoava como algo absurdo a ser colocado e
colocou seu cérebro a se remoer para encontrar motivos para a
repentina sugestão.
— Como você me pede uma coisa dessas?
— Não foi você que acabou de dizer que ela não é capaz de nada?
— provocou.
— Muito confiante, heim? — elogiou animada. — Mas dessa vez
está enganado.
Indignada por vê-la desconfiar tanto de seu amado não
conseguiu segurar a revelação que, apesar de não ser segredo, o
mestre não desejava que fosse alardeada.
— Pois saiba você que foi meu Petrus que a treinou durante esse
tempo todo.
— Nem que ele estivesse a treinado por meses seria possível.
Antevendo que a discussão continuaria eternamente, resolveu
encerrá-la e, ao mesmo tempo, dispensar a intrusa, a fim de
continuar sua concentração para o duelo.
— Então até mais Maiara e não se esqueça de incluir meu nome
e o das duas nessa aposta.
Rapidamente retirou um bloco e fez as anotações necessárias,
porém, antes que pudesse guardá-lo, as adversárias os abordaram
e Winss o furtou.
— Veja só chefe, eles apostaram em si próprios.
— Será que eles estão pensando que podem ganhar? — ironizou
a maga da água.

255
— Logo enfrentarão a dura realidade — colocou Reina.
— Não o subestimem garotas, vocês já viram do que ele é capaz
— advertiu.
— Mas ele não vai fazer nada, tudo dependerá de sua irmãzinha
— lembrou Calissa.
— Verdade, tinha me esquecido deste detalhe.
Após a pequena conversa começaram a gargalhar, o obrigando
a impedir o impulso de Lucena de confrontá-las, pois sabia que a
melhor forma de resolver o impasse seria vencendo a batalha e
pretendia manter a vantagem que tinham.
— Vamos garotas, a etiqueta diz que devemos chegar cedo ao
local onde nossos inimigos perecerão — indicou Tresa sem
vontade de provocar alguém impassível.
— Não podemos permitir nos afetarem — alertou ao perceber
que se encontravam a sós.
— Então avise isso a ela! — Apontou para o lado.
Observou estupefato Marina encolhida, tremendo de medo. Isso
pelo fato de passar sua vida sendo obrigada a aceitar os
comentários negativos sobre si e pelo grande temor de falhar
novamente, magoando aos que nela acreditaram.
— Ah não, Marina! Depois de tudo você vai se sentir insegura
logo agora?
Se sentiu extremamente envergonhada e não conseguiu encará-
lo nem por um segundo, afinal não encontrava explicação razoável
para sua atitude.
— Você não entende o que é todos te ignorarem — deixou
escapar.
Sua reclamação provocou intensa desaprovação por parte dos
ouvintes, seguida de gestos de incompreensão do casal e evidente
ironia das crianças.
— Não acredito que você disse isso amiga.

256
— Você acha que é a única a sofrer a desaprovação da
sociedade? — questionou Marcus.
— Nosso irmão foi, por anos, caçado como um animal, enquanto
tentava defender as pessoas — lembrou Amira.
Ao perceber que fora injusta seu nível de vergonha e
constrangimento cresceu exponencialmente, sendo afligida por
imensa vontade de submergir em sua velha casca. Ao sentir o leve
toque de lágrimas em sua face se desesperou.
Rapidamente abraçou a princesa, lentamente a acalmando.
Instantaneamente se recordou o que a falta de um apoio lhe fez ao
enfrentar semelhante situação.
— Todos temos nossas provações e delas não podemos fugir ou
ficaremos presos em nossa própria mediocridade eternamente.
Enquanto enxugava suas lágrimas compreendeu o quão egoísta
havia sido por considerar que suas dificuldades e dores eram
maiores. Talvez isso fosse um resquício de sua velha
personalidade, que não desejava lhe libertar.
— Vamos? — sugeriu Lucena, a fim de aplacar os ânimos.
— Vamos! — concordou o rapaz. — E Marina, não se esqueça de
começar atacando a de vermelho. Aproveite quando ela estiver se
apresentando.
— Certo! — murmurou automaticamente.
Adentrando o ginásio puderam enxergar o quarteto de magas
que enfrentariam se exibindo para a plateia. Ao se aproximarem
receberam nova chuva de ríspidos elogios por parte de suas
adversárias, controlando-se para não os devolverem.
Rapidamente sondou o local e percebeu as conhecidas de
Marina espalhadas pelo fundo, não desejando serem identificadas
e sofrerem reprimendas junto da condenada. Pretendendo
prosseguir com a batalha ativou rapidamente o aparelho.
Chegando na dimensão mágica pode ver as adversárias sacarem
suas armas, sendo um machado enorme para a maga da terra e
adagas gêmeas para a de fogo.

257
— Vocês poderiam fazer o favor de me dizerem seus nomes? —
perguntou ao se colocar a um palmo de distância.
— Por que temos que fazer o que você manda? — grasnou
Reina.
— É costume se dizer o nome para quem irá eliminar —
informou a princesa. — À minha direita você tem Winss, ao lado
dela Calissa e Reina à esquerda.
Percebendo-se esquecida formou seu arco discretamente e,
conforme lhe advertira, carregou o disparo com um único suspiro,
acertando o alvo combinado ao vê-la levantar os braços para fazer
uma pose de apresentação.
Em um piscar de olhos a flecha penetrou o abdômen de sua
adversária, originando uma camada de gelo que, desde o ponto de
perfuração, envolveu todo seu corpo.
Lentamente o mago se dirigiu até a congelada e, com a ponta do
dedo, empurrou-a com satisfação, a assistindo despedaçar ao
entrar em contato com o solo.
Instantaneamente apareceu deitada e desorientada ao lado do
aparelho, causando enorme impacto nos espectadores e tornando
Marina o principal assunto.
— E então, o que achou da magia de congelamento de sua irmã?
— Não era para ela jorrar sangue ao ser atingida? — perguntou
a si mesma, Lucena.
— Não seja tola! — exclamou Belatriz. — Isso é uma dimensão
criada a partir da mana, então somente seu corpo de mana é
afetado, não seu real.
Assustou-se com o aparecimento repentino da capitã ao seu
lado, imaginando o motivo de ter retornado a seu círculo, além do
quão raro era retroceder sua própria decisão, porém, se lembrou
que tinha se tornado amiga de Petrus logo depois de tentar matá-
lo.
— Se está aqui presumo que já admitiu considerá-lo um
humano, não é?

258
— Ainda ficarei atenta às ações dele e agirei caso detecte algo
de errado.
Compreendera precisamente o que se passava consigo. Não
aguentava mais sua antiga vida cinzenta, porém seu orgulho não a
permitiria avançar rapidamente.
— Como você fez isso? — gritou furiosa, Calissa.
— Não fui eu! — pousou à sua frente e lançou-lhe discreto
sorriso
Repentinamente, escorregou para o lado, a fim de que a flecha
atrás de si atingisse seu alvo, porém a garota desconfiara de sua
aproximação, estando pronta para derrubar o projétil, com um
esguicho de água.
— Muito bem amiga, agora acabem com minha irmã — ordenou.
Iniciaram veloz corrida em direção à oponente, o induzindo a
gritar para que tentasse novamente. Alcançando-a rapidamente se
colocou em posição levemente avançada, voltando a obstruir a
passagem de Calissa.
— Você realmente acha que vou cair no mesmo truque? —
questionou irritada.
Agindo segundo o roteiro deslizou para a esquerda, gerando a
reação de criar uma barreira de água. Posicionando-se à frente de
Winss a viu brandir seu machado para jogá-lo de volta e, assim,
fosse atingido em fogo amigo.
Sem que percebessem dançaram a música que escolhera, pois,
por estarem excessivamente atentas a seus passos, as ações da
arqueira passaram despercebidas.
O disparo roçou delicadamente por suas costas antes de atingir
a maga da terra caprichosamente, fato que estremeceu a própria
aliada.
Por sua proteção ser maior a flecha não alcançou sequer a
metade de seu eixo, porém foi o suficiente para que a congelasse
levemente e, embora fosse capaz de se libertar em pouco tempo,
uma precisa lufada de ar colocou abaixo a segunda guerreira.

259
Agilmente arremessou sua barreira de água no rapaz,
devolvendo-o ao lado da parceira. Ao se levantar e cuspir um
pouco de água, sentiu a confiança crescente da garota.
— Agora está um pouco menos difícil — pontuou para se
acalmar.
— Concentre-se em isolar sua irmã.
— Certo.
Como combinaram levantou a sua mão, deixando-a despencar
após evidente esforço. Percebendo que tentava algo, atirou dois
dardos de água, vendo-a se esquivar com dificuldade para, na
terceira, a desequilibrar.
Ao preparar-se para atirar uma esfera de água, sentiu frio
cortante, porém ignorou-o para completar seu golpe fatal. O
quanto não se surpreendeu ao ver sua magia congelando.
— O que você fez? — rugiu.
— Abaixei a temperatura em toda a área — respondeu,
orgulhosa de si.
— Eu gosto de chamar essa habilidade de zero graus — colocou
animado.
— Saia de onde você está imediatamente — gritou Tresa.
Em sua retirada acabou por pisar em falso no piso congelado e
despencar de cara no chão, por sorte escapando do traiçoeiro tiro
que seguia em seu encalço.
Ao se virar admirou uma chuva de flechas sobre si, gritando
apavorada, obstante ao esforço da líder em formar rapidamente
uma parede de gelo para protegê-la.
Raciocinando rápido deslizou velozmente através de uma fina
camada de gelo formada abaixo de seus pés e endereçou duas
flechas simultaneamente à Tresa que, ao perceber, desviou
tranquilamente, porém teve de desfazer seu bloqueio.
Sem se perceber indefesa, Calissa, ao se levantar com
dificuldade, viu três disparos perfurarem seu abdômen, findando
seu estoque de mana e a expulsando de forma tão abrupta que só

260
pode terminar de amaldiçoá-la ao aparecer ao lado das
companheiras.
Parou para descansar, admirando sua vitória sobre as
adversárias. Observou o olhar perplexo de sua irmã, a qual, com o
tempo, endireitou-se e aplaudiu-os.
— Incrível, nunca pensei que seria capaz de eliminar minhas
parceiras.
— Eu treinei muito para essa batalha, irmã — demonstrava
extremo respeito.
— Devo lhe elogiar por trazê-la a esse ponto, seu homem
imundo — provocou.
— Antes de se tornar uma pérola é necessário ser um grão de
areia.
Não havia como sua frase não causar uma vermelhidão
repentina no rosto da elogiada e grande baque de surpresa em
Tresa, as desestabilizando momentaneamente.
— É bom ver que vocês têm um relacionamento tão bom, mas
está na hora de terminar com a brincadeira — esboçou um sorriso
de felicidade.
Dito isso avançou velozmente contra a irmã, pronta para aplicar
poderoso golpe. Sem muito pensar, pulou à frente do imenso bloco
de gelo lançado, concedendo a parceira tempo suficiente para se
afastar.
Ao sofrer o impacto foi lançado para muito longe, causando
grande euforia nas espectadoras, pois acreditavam, ser inatingível,
extrema preocupação em sua namorada e certo fascínio em
Belatriz que percebeu o sorriso que a atacante tentou ocultar.
— Tudo bem, Petrus? — perguntou a parceira preocupada.
— Ótimo! — ainda deitado levantou a mão e a abanou. — Agora
o resto é contigo.
— Não me abandone jamais — se apavorou.
— Lembre-se do treinamento e confie em si mesma.

261
Sem paciência para a conversa, a adversária atirou três lanças
de gelo, passando sem acertar seu alvo, concedendo tempo para
que pensasse em um jeito de escapar.
Em resposta gritou “nevasca” antes de cria-la em uma área
razoável, a fim de manter a distância, pois não era afetada pela
redução da visibilidade e, em seguida, criou uma chuva de granizo
pouco depois de anunciá-la.
Como constatara que seu alvo havia desaparecido, encerrou a
nevasca levianamente, pois, ao virar seu olhar casualmente, fora
surpreendida por uma flecha de gelo tão próxima a si que
conseguiu apenas se proteger com seu braço direito.
Gemeu razoavelmente alto, arrepiando Petrus, impressionando
suas conhecidas, levando sua melhor amiga ao puro desespero e as
derrotadas a uma explosão de êxtase. Sem compreender Lucena
buscou a capitã novamente.
— Por que ela está gritando se seu corpo não foi atingido?
— Ela é fraca às poucas sensações que o cérebro continua a
receber — colocou seca.
Se acercando da ferida, pediu para que se acalmasse, pois sua
sensação era mais por ver a estaca fincada em seu braço, do que
dor propriamente dita. Sem avisar, arrancou o pedaço de gelo.
Se contorceu e ganiu ligeiramente, socando o peito do parceiro.
percebendo o que se recusava a ver, se apaziguou e o dirigiu
singelo pedido de desculpa.
Sem se importar com a adorável cena, a adversária realizou
grande impulso, sendo percebida em todo o esplendor de sua fúria
ao golpear Petrus com seu punho envolvido por uma luva de gelo,
o derrubando há alguns metros.
— Pelo visto seu forte é o combate à distância, então me
concentrarei no corpo a corpo — revelou ao assumir uma postura
ereta e pomposa, admirando a irmã.
Antes que piscasse, desferiu uma poderosa munhecada no peito
de Marina, quebrando seu improvisado escudo de gelo e a
empurrando ligeiramente com o impacto.

262
Desesperada criou uma pequena barreira de gelo ao mesmo
tempo em que realizou sua manobra evasiva e, apesar de sua irmã
quebrá-lo facilmente, teve tempo suficiente para formar um
grande e expeço muro de gelo à sua frente
Em segundos presenciou a primeira rachadura surgir, a
remetendo à lembrança das palavras de Petrus: “Sempre se
aproveite da presunção de seu adversário”.
Retornando para o presente com sua visão alterada continuou
recuando sempre que um golpe era desferido, simulando extremo
pavor, como era comum de seu ser.
Observando que sua barreira se quebraria a desfez no momento
em que a irmã atacou, aproveitando para avançar com o ombro
esquerdo e derrubá-la.
Sem demoras recuou, a vendo se erguer pouco depois em um
pulo e se dirigir furiosa em sua direção, a forçando a criar
pequenas barreiras pelo caminho para atrasá-la.
Ao alcançar uma distância razoável saltou para a esquerda com
força, ajeitou uma flecha, concentrando seu poder nela e, antes de
liberá-la, bradou “Explosão congelante”.
Pouco antes de atirá-la a flecha foi envolvida por uma aura azul, a
distraindo por milissegundos, porém o suficiente para forçá-la a se
defender com um escudo de mana.
Ao desaparecer da névoa gerada pela explosão do projétil Tresa
pode ser vista tomando goles de ar, certamente pelo repentino e
alto gasto de mana. Ao se reestabelecer dirigiu satisfeito olhar para
a irmã e balançou as mãos.
— Finalmente você voltou.
Sem a conceder tempo para se pronunciar declarou sua
desistência, findando a batalha e retornando para o ginásio. O
espanto que encontraram no olhar das espectadoras não poderia
ser maior, pois pensavam que a segunda princesa sequer
conjurasse feitiços.

263
A primeira a ousar aplaudir a vitoriosa foi Belatriz, que, junto de
sua acompanhante, estimulou as demais presentes a seguirem-nas,
tornando o ambiente ensurdecedor.
Um de seus grandes pesadelos se concretizaria com a história
de superação da segunda princesa do reino sendo amplamente
difundida... Sua existência seria revelada.
— Parabéns para você, amiga! — elogiou Lucena abraçando
ambos.
— Não ficou muito angustiada, não é Lu? — demonstrou
preocupação.
— Até fiquei um pouco, mas me acalmei depois que a Bela
chegou.
— A Belatriz veio? — perguntaram surpresos.
— Sim, porém te cumprimentar é um passo grande demais para
ela.
Atendendo um pedido de suas antigas adversárias se dirigiram
ao quarto da vencedora para conversarem com calma e
privacidade. Chegando lá as quatro se desfizeram nos sofás e
poltronas da sala sem se preocuparem com os donos a lhes
admirarem
— O que você deseja Tresa? — inquiriu, a princesa.
— Decidiu contar a verdade para sua pobre irmã?
Sua revelação causou confusão geral nas presentes, as
induzindo ao silêncio necessário para a reflexão de suas palavras,
até que sua namorada decidiu lhe questionar.
— Essa princesinha estava te testando, por todo esse tempo.
— Isso é verdade irmã?
Quando o ouviu ficou envergonhada, entretanto só esquivou o
olhar ao ouvi-la, afinal não desejava se expor na situação de ter de
reconhecer o acerto do demônio.
— Quando foi que descobriu? — perguntou interessada.

264
— Quando entramos no duelo e percebi que eu era seu alvo,
desde o início.
— Acabei fraquejando no fim das contas — esboçou certa
decepção.
— Por que você fez isso? — perguntou incrédula.
Durante certo período o silêncio foi imperioso, sendo
amplamente aderido, substituído pela curiosidade após se
entreolharem. Cedendo às pressões se levantou séria.
— Queria entender o porquê de você não o ter denunciado —
fitou a irmã.
— E descobriu sua resposta? — se interessou, Lucena.
— Sim. Assim como todas as outras não percebo malícia nele —
como observou o olhar de Petrus, resolveu complementar. —
Homens não são difíceis de se ler.
Ao constatarem o entardecer, decidiram por convocar os
soldados da comitiva real para seu retorno ao castelo, assim como,
o transporte dos prisioneiros, os quais se encontravam
acomodados em uma carroça que adquiriram na cidade.
Em sua partida, misturadas às despedidas, algumas promessas
foram acertadas, sendo que, uma delas fora que Petrus visitasse o
castelo imperial. Admitindo não ter de cumprir sua promessa,
aceitou sem relutar.
— Finalmente ela se foi — comemorou ao entrar na escola. —
Agora posso descansar.

265
13. Uma grande tempestade

O interior da academia se encontrava deserto, devido às alunas


estarem saudando a princesa em sua partida, mesmo se tratando
do horário de encerramento das aulas.
— Você parece alegre — colocou Marina.
— É que acabei de pensar que, se a Lu quiser vir comigo,
podemos nos divertir antes de descansarmos — imprimiu tom de
malícia.
— Hummm! — seguiu a deixa. — Vou aceitar a sugestão.
— Vocês dois, parem! — Pediu quase explodindo de vergonha.
— Qual o problema, Ma, você não sabe brincar como adulto? Ou
não quer?
— Parem! — Belatriz não aguentou se manter oculta. — Essa
não é hora para brincadeiras.
Surpreenderam-se com seu repentino aparecimento,
imaginando a quanto tempo estava ali. Sem muito se importar com
a reflexão, Lucena tratou provocá-la ainda mais.
— Você quer entrar na brincadeira, Bela?
Ficou tão envergonhada que emudeceu, restando apenas exibir
a vermelhidão em seu rosto e sua evidente hesitação. Sem
paciência, resolveu aplicar o golpe final.
— Não precisa se preocupar, que dou conta das duas.
— Não é com isso que estou preocupada, seu maldito pervertido
— finalmente explodiu. — Minha irmã está vindo.
Com a sentença ambas as amigas começaram a tremer e viram-
no formar uma face de assombro, perdendo, assim, toda a
expressividade que outrora se encontrava presente.
— Que bom para você.

266
— Amor, você não sabe quem é a imã de Belatriz? — questionou
preocupada.
— Alguém famosa?
— Incrivelmente! — murmurou Marina ainda apreensiva.
— Minha irmã é a maior matadora de demônios de todo reino e
uma das melhores magas guerreiras da AML desde sua fundação.
Permaneceram em silêncio atentas para suas reações e se
lembraria de algo, porém se decepcionaram ao constatarem breve
e fugidio sorriso após demorada apatia.
— Ahh, está falando da Destruidora Impiedosa? — levantou a
sobrancelha direita.
— Essa mesma — confirmou a irmã.
Muitos segundos se passaram em plena ausência de
movimentos e palavras, onde diversos pensamentos lhe
rodopiavam e saltitavam na mente.
— Tô nem aí! — balançou antes a cabeça. — Vou dormir.
— Você não está entendendo a gravidade? — exasperou a
informante.
— Estou mais cansado do que preocupado, então até mais.
Pasmas o observaram se afastar rápida e tranquilamente após
breve despedida, levando a palma da mão dominante à testa e
suspirando em seguida à profunda respiração.
— Não sei como ele consegue ser tão despreocupado —
adiantou-se a capitã.
— Garanto que ele já está pensando em cada detalhe do que
poderá acontecer — entrou em sua defesa, Lucena. — Ele sempre
soube muito mais do que qualquer uma de nós.
— Não acredito que aquele troglodita tenha qualquer coisa em
sua mente — rebateu.
Como não suportava mais tais insultos sem motivo algum pediu
licença e se retirou furiosa. Ao vê-la se afastar dirigiu gélido olhar

267
à orgulhosa amiga, sentenciando, antes de se retirar, que ficaria só
caso continuasse a destratar seus companheiros.

Chegando ao dormitório encontrou-o vestido para dormir e


encostado na porta do quarto, aguardando-a. Após exibir
grandioso sorriso se apressou em colocar a fina camisola.
Instantes depois cerrou os olhos, demonstrando que se
encontrava deveras cansado e, justamente por isso, acabou
murmurando importantes palavras.
— Isso está andando rápido demais. Não quero envolvê-la.
Obviamente se preocupou, porém resolveu deixá-lo descansar e
lançaria esta pauta na manhã seguinte sutilmente. Tolo
pensamento, afinal nunca alcançaria sua meta.
No dia seguinte Lucena foi a primeira a despertar, regozijando-
se ao constatar que ainda era abraçada pelo amado, cuidando de
acordá-lo como uma verdadeira esposa.
Se arrumaram rapidamente e partiram em busca de Belatriz
para se informar melhor sobre a vinda de sua irmã e criar uma
estratégia para que se conservasse vivo.

— Minha irmã chegará em três dias e pretende te matar


independentemente de como, por você ser uma ameaça sem
precedentes. — Contou ao se acomodarem em um banco.
— Disso eu já sabia! — revelou despreocupadamente — O que
mais?
Observando o céu se lembrou de informações valiosas,
juntamente do fato de sua irmã lhe pedir discrição. De toda forma
havia decidido, outrora, do lado de quem atuaria.
— Ela virá em um de três balões, seguida de seus guerreiros.

268
Tais palavras ressoaram nos ouvidos do casal e fizeram suas
espinhas congelarem de pavor ao imaginar a cena que se
desenrolaria com a chegada de tal exército, porém se mantiveram
inteiros, por hora.
— Você sabe quantos guerreiros virão, exatamente? —
questionou a amiga.
— Exatamente não, mas cada balão suporta cinco pessoas.
— Tirando um operador em cada são dois de quatro e um de
três — raciocinou o rapaz.
— Isso não é nada bom — comentou a amada tremendo.
Enquanto gastavam seus neurônios com cada nuance reservada
ao futuro a princesa se aproximava com uma face de esgotamento,
certamente originária da maratona a que fora submetida.
Repentinamente pediu licença para refletir em um lugar mais
calmo e deixou-as, caminhando tranquilamente com a mente a
quilômetros de distância. Ao desaparecer de suas vistas, Lucena
invocou outro assunto, enterrando o anterior eficientemente.
Cuidou de alertar sua tia sobre o acontecimento e pedir, não
antes de aturar seus gritos de desespero e recomendações, para
que fizesse o máximo possível para manter as alunas em seus
quartos, visto que seria a única contramedida possível.

Transcorrido apenas dois dias, no começo da tarde, algumas


alunas avistaram os balões pertencentes à grande Renema
Hildrew. Claro que o alvoroço se instaurou em segundos.
Assim que as personagens conhecedoras de sua chegada se
aproximaram, puderam ver as cestas tocarem o chão, sendo
impossível dispersar a plateia sem prejudicá-las. Rapidamente se
focaram em protegê-las e impedir novas espectadoras de
surgirem.

269
O que mais temiam se realizara ao constatarem as cestas
guarnecidas com o máximo de soldados, a acompanharem a feroz
caçadora de demônios e sua gigante espada.
As irmãs eram tão parecidas, que se viu compelido a esfregar os
olhos. As únicas diferenças eram, sua pele, muito mais bronzeada,
o cabelo preto e cortado em estilo militar e seus cinco centímetros
de altura adicionais.
A última característica diferencial, custou muita energia
masculina para ser percebida, pois suas roupas militares
escondiam seus seios menores.
Com um poderoso urro, a líder da incursão ordenou que
abrissem caminho, colocando-se a caminhar pesadamente até
encontrar sua familiar, que se dirigira para saudá-la, esculpindo
um sorriso dissimulado em sua grosseira face.
— Se não é minha tola irmãzinha? — ironizou.
— Bem-vinda, irmã.
— Era de se esperar que você não conseguisse deter o temido
rei demônio. Pelo menos você prestou para me alertar.
Observou as jovens verificando que se encontravam sossegadas
e que o clima, em geral, era de animação, ocasionando a explosão
de seu ser em puro ódio e ira.
— O que estão fazendo? — rugiu. — Estamos com uma
emergência de estado e é assim que as futuras magas dessa nação
se comportam?
Sem discernirem o que mencionava imaginaram, claro, que
estava as criticando, o que fez com que recuassem alguns passos e,
as mais exaltadas, começarem a vaiá-la.
— Se farão de cegas para o fato do pior inimigo da humanidade
habitar esta academia?
Seu urro medonho as acometeu ao que tomaram ciência no
primeiro dia em que o novo estudante ingressou na instituição.
Como olvidaram tal fato tão levianamente?

270
Era simples. Primeiro por ele ter alterado sua rotina tão
cansativa e abarrotada de exigências e, segundo, por não terem
contato prévio com a desgraça dos demônios.
Percebendo que a maioria se encontrava incerta em relação a
seus sentimentos, aplicou a estratégia de confundi-las para
arrebanha-las, assim como aconteceu com Marina.
— Eu entendo como vocês se sentem, afinal os demônios são
mestres em ludibriar as pessoas, principalmente nós, que somos
mais sensíveis — demonstrou complacência.
— Já me cansei de suas palavras — interveio. — Pare de
envenená-las.
Ao buscar a origem da voz que a desafiara seus nervos
explodiram em raiva ao contemplar um jovem homem, logo o
identificando como seu alvo.
— Então é você o abominável senhor das trevas?
— Claro que não. Sou apenas um homem procurando a
felicidade ao lado das quais me aceitaram como companheiro —
utilizou de graciosidade fonética.
Com seu discurso readquiriu o controle da plateia, sendo
agraciado por ovações e pela raiva inconsequente da rival, que o
considerava a tradução da mais pura maldade.
— Calem-se ignorantes, não veem que ele as está manipulando?
— Eu queria perguntar, porque você me considera esse tal rei
demônio — instigou-a
— Está claro que você é o senhor das trevas somente por ser um
homem.
— Mas isso quem diz é a lenda. Dê-me seu próprio motivo —
desafiou.
“Quero ver como você enfrentará esse breve jogo mental... Será
sua primeira derrota”, pensava Belatriz a observando
atenciosamente e exibindo majestoso sorriso.

271
— Se assim deseja eu tenho vários — continuou com seu tom
arrogante — Como o fato de você controlar os quatro elementos e
ser mais poderoso do que a maioria das estudantes.
— Isso tudo também é dito pela lenda — abriu um enorme
sorriso.
Estava irada por seu atrevimento, amaldiçoando sua existência
e alimentando o ódio que nutria, porém manteve-se firme para não
o executar perante as expectadoras.
— Não me importo com algo tão trivial assim — imaginou que
fosse calá-lo.
— Então você vive para obedecer a terceiros, inclusive aqueles
que já se foram?
— Calado, você não sabe do que está falando — vociferou.
— Então me diga, por que você veio? — sorriu pacificamente.
— Te matarei antes que blasfemes mais — gritou tomada pela
fúria.
Ao admirar a espada imensa que desembainhara de suas costas,
com sua lâmina dentada do começo ao fim, seu sangue congelou e
pode sentir um forte arrepio na espinha, porém não poderia
exteriorizar seu medo no momento ou causaria pânico.
Agilmente sua desafiante saltou sobre si, brandindo sua arma
em um movimento pesado e estranhamente simples de ser
esquivado, nem sequer requisitando a utilização de magia.
— Pelo menos você não é um amador — zombou.
— E porque eu seria, já que me intitula rei dos demônios?
— Porque você não tem espírito! — finalmente encontrou algo
para atormentá-lo.
— Não precisei de espírito nenhum para te derrotar na batalha
de Valis. lembrou.
— Então era você? — petrificou. — Irei acabar com sua
existência

272
Cega pela cólera sacudiu sua espada violentamente, cortando,
sem piedade, o ar à sua volta e observando o maldito se esquivar
com facilidade, enquanto as estudantes se chocaram imensamente
com a agressividade e ignorância apresentadas pela ofensora.
— Afastem-se todas! — gritou Joana desesperada.
As amigas e outras conhecidas que se mantiveram afastadas até
o momento, auxiliaram na evacuação das colegas, porém muitas
permaneceram estáticas, recusando-se a se moverem devido ao
maior interesse na luta do que em suas vidas.
Sendo contemplado por emergencial ideia simulou apanhar
pedaços de ar e agrupá-los próximo ao seu corpo, esticando ambas
as mãos em seguida. O gestual gerou uma onda circular de vento
que empurrou as expectadoras e os balões para longe, porém
apenas derrubando os guerreiros e obrigando a caçadora a curvar-
se e abaixar a espada.
— Está na hora de utilizar um pouco de magia — esboçou um
sorriso assassino
Realizou rápida e numerosa sequência de golpes, exigindo
muito mais de si para se desviar. Em um piscar de olhos aumentou
sua periculosidade exponencialmente
— Me esqueci da história de Valis. Qual foi mesmo? —
perguntou Marina à amiga.
— Valis era uma pequena vila que fora construída acima de um
depósito de ouro. Quando o rei descobriu ordenou destruir a vila e
erguer uma área de extração, então isso foi feito e a vila foi
reconstruída em torno dessa área. Como o rei temia que o povo se
revoltasse enviou tropas para protegerem o ouro — narrou Belatriz.
— Um dia apareceu um viajante que conversou com o chefe da
vila e expulsou os guardas do reino, indicando que os residentes
deveriam aceitar os trabalhadores da mina, que eram, em sua
maioria, escravos, como parte da tribo.
— Ao receber a notícia das ações do jovem mago que tanto lhe
causara problemas, o rei ficou furioso e mandou seus melhores

273
soldados, liderados pela grande maga guerreira Renema, para
liquidar, não só o mago intrometido, como os aldeões revoltosos.
— Quando minha irmã estava a poucos minutos de chegar em seu
destino ela ordenou aos soldados arrumarem o acampamento, pois
iriam atacar no raiar do dia seguinte.
— Durante o final da tarde, Petrus se infiltrou no acampamento
e espalhou boatos dos mais variados entre os soldados, com o
objetivo de semear a discórdia.
— No dia seguinte a situação estava um caos e a moral dela como
comandante caiu tanto, que alguns soldados abandonaram o
acampamento e juntaram-se ao povo de Valis.
— Ao voltar para a capital, foi destituída de seu cargo de prestígio
no exército humilhada perante a alta sociedade e recusada pelos que
nela confiavam, alimentando, seu ódio e montando seu próprio
grupo de extermínio.
— Entendi! — murmurou a princesa. — Tudo isso é por
vingança.
— E é por essa mesma vingança que ela se endureceu e forçou a
todos ao seu redor a endurecerem igualmente — suspirou com
tristeza.
Enquanto conversavam, se mantinha fatiando o ar ensandecida,
vendo seu alvo evitar revidá-la. Percebendo que a batalha não
estava cumprindo seu real intento, recuou.
— Por que não me ataca? — grunhiu.
— Porque não sou quem você pensa.
— Estou tentando te matar, então seu dever é me matar
também.
— Mas isso não me interessa em nada.
— Como não? — questionou incrédula. — Como você pode não
querer o poder que todos almejam? Pare de se esconder nesse
disfarce de bonzinho, igual naquela vez.

274
O real motivo por detrás da disputa fora descortinado para
grande parte das magas. O admirava por ter vencido sem lutar,
porém odiava-se por isso.
— Ah, já entendi! — gritou, fora de si.
Ergueu sua espada e executou um corte horizontal originando
uma grande e larga onda de poder. Sem opções conjurou uma
parede de pedra para interceptar o golpe.
Ao encerrar sua magia contemplou um sorriso vitorioso nos
lábios da adversária, indicando que sacrificaria as próprias
compatriotas para derrotá-lo. A única forma de protegê-las seria
se a atacasse, mantendo sua atenção sobre si.
Rapidamente realizou veloz impulso, saltando para evitar seu
golpe e, durante o voo, acertando-a em cheio no peito, forçando-a
a recuar devido ao impacto.
— Assim está melhor — sorriu.
Investindo em sua direção, realizou uma forte estocada, vendo-
o esquivar com um simples passo para a direita, emendando com
uma rajada de fogo. O imitando deslizou para a direita, postando-
se ao seu lado e executando forte talho.
Ao se desviar da última ofensiva criou colunas de pedra para
deter os próximos ataques desferidos. Ao iniciar da nova bateria,
assistiu passivo a fácil dissolução das defesas.
Decidindo atacar com um pouco mais de intensidade começou a
revezar seus ataques normais com sua onda de poder, forçando-o
a ampliar suas resistências.
Ao perceber que a sequência fora superada, girou a espada três
vezes e a chocou violentamente contra o solo, exibindo sinistro
sorriso ao encerrar o ritual.
Conjurara um “tornado de lâminas” a centímetros de sua
espada, produzindo ventos tão fortes que sugavam os alvos em
torno de uma pequena área e tão afiados que se assemelhavam a
finas lâminas.

275
Como algumas alunas se seguravam para não serem puxadas
resolveu extinguir o tornado brevemente, para isso o comprimindo
com uma barreira de ar até desaparecer.
O pouco que demorou para cumprir seu intento se mostrou
suficiente para que concentrasse energia suficiente e, ao
desaparecer de sua magia, fincou a espada no chão e, a partir dela,
uma esfera de ar imensa foi criada.
Detinha uma amplitude grande o suficiente para afetar às
expectadoras que permaneceram ali, causando cortes que
facilmente se tornariam graves devido à altíssima velocidade dos
ventos dentro da abóboda. Teria de ser rápido.
— Ótima técnica essa. Poderia me ensinar?
Ao perceber que o motivo de estar olhando incessantemente
para ao redor era o fato das roupas das garotas estarem se torando
frangalhos se compadeceu das vítimas, desconcentrando-se e, com
isso, cancelando sua magia.
— Seu demônio nojento, nunca irei te ensinar nada — rugiu.
— Há, você caiu na minha armadilha — se vangloriou. — Já sei
fazer essa magia.
— Pensei que você queria ajudar nossas colegas — esbravejou
a namorada.
— Mas é claro que essa foi minha intenção, Lu — riu. — O que
você pensou?
— Deixa pra lá! — murmurou.
Sem sequer respirar disparou na direção de seu alvo, brandindo
sua espada com fúria e sangue nos olhos, produzindo ondas de
choque poderosíssimas a cada golpe desferido.
Com o tempo os ataques perderam a força e a velocidade,
facilitando para que os repelisse. Ao perceber a exaustão da
oponente a atirou com uma simples rajada.
Ajoelhada, apoiando-se em sua espada que fincara no chão e
arfando, relembrou-se da batalha de Valis e sua sensação de

276
impotência perante a situação que lhe impusera. “Não”, rugiu
mentalmente, “Não irei deixá-lo ganhar novamente”.
Com dificuldade içou-se, estampando um olhar de puro ódio.
Inclinando a arma para trás, a fim de obter grande impulso, mirou
ligeiramente à esquerda de seu alvo.
— Se você vai insistir em não lutar, dar-te-ei um bom motivo —
sorriu maligna.
Aviso concedido arremessou a espada com toda sua força
remanescente. De tão rápida mal conseguiu vê-la, apenas anteviu
o trajeto e tomou as providências que conseguiu pensar no
momento de desespero.
Sem hesitar entrou na trajetória do projétil e se empenhou ao
máximo em reduzir sua velocidade, conjurando poderosa rajada
de vento, porém não foi o suficiente para impedir que seu abdômen
fosse perfurado.
No estado de pânico em que se encontravam, muitas das
presentes se afastaram, porém algumas o rodearam, com
expressões de preocupação, tristeza e até desespero.
— Por que você nos protegeu? — perguntou uma garota.
— Porque é isso que os colegas fazem — resmungou.
No segundo seguinte seu corpo começou a tossir
desesperadamente o sangue que lhe invadia o sistema
respiratório, espalhando no ar a silenciosa notícia de que fora dado
como morto, banhando o olhar das alunas com ardentes lágrimas
de sofrimento.
Joana apenas pode contemplar Marina, Lucena e a chefe da
guarda se precipitarem ao encontro do ferido, sendo impedida
pelas crianças, que a alertaram para não se arriscar a desfazer sua
magia, revelando a existência da batalha e atraindo mais vítimas.
Ao chegarem se desesperaram com seu estado deplorável, porém
somente a princesa e sua companheira se atiraram de joelhos
perante a figura pálida que tentava as consolar com um singelo
sorriso manchado pelo sangue e a decepção por ter falhado.

277
Enquanto o leve e triste cântico mortuário era entoado, para
registrar a recente perda nos corações abalados pelo movimento
inorgânico da insípida vida, as três amigas lhe banhavam as feridas
com suas dolosas lágrimas de adeus, comovendo as demais.
— Belatriz...
Pela rouquidão e fraqueza, sua voz foi tomada como pequeno
barulho descartável, porém o alvo de seus apelos recebeu um
mínimo estímulo, talvez por força maior.
Em sua segunda tentativa percebeu uma melhor reação por
parte da orgulhosa amiga sendo rapidamente atendido com toda a
presteza que suas últimas palavras mereciam.
— Tire essa espada de mim.
— Mas isso irá fazê-lo sofrer ainda mais, Petrus.
— Só a tire.
Sua voz fraca e desfalecida inspirou sua amada a se recordar de
importante fato, que a tristeza e angústia a forçaram a olvidar. Se
voltando à amiga, simplesmente lhe acenou.
Ao tocar na espada e ouvir o gemido surdo emitido, ficou incerta,
porém, ao encará-lo nos olhos, encontrou forças para retirar a arma
ceifadora em um único impulso.
A poça vermelha no chão aumentou exponencialmente, junto de
seus gritos de sofrimento. Ao voltarem a si, a vítima havia fechado
os olhos e não mais se movia, causando forte comoção geral.
O cenário era desolador, onde sua namorada chorava
desesperada e enlouquecidamente, enquanto as colegas
procuravam a consolar. Inclusive Joana se mantinha firme para
não se descontrolar, obstante o fato de Amira brilhar intensamente
ao seu lado.
Repentinamente a garota, que permanecia com o ouvido colado
no peito do amado se assustou ao perceber que seu coração não
havia parado de bater e nem sua respiração, cessado. Observando
melhor, reparou que o corpo havia se reconstruído.

278
Ao presenciar o maravilhoso fato, olvidando seu
desconhecimento, exteriorizou plenamente sua alegria, alertando
o mundo sobre o sucedido e causando nova comoção.
Em segundos o ferimento fatal fora completamente tapado,
eximindo-se da permanência de uma cicatriz. A primeira reação a
ser percebida foi o choro de extrema felicidade e sucessivo
agradecimento aos superiores por parte da parceira.
— Como é possível? Uma cura dessas somente pode ser usada
por grandes sacerdotes.
Renema aparentava extrema palidez, sem crer no que seus
olhos lhe revelavam e no fato de ver a vitória escapando de suas
mãos novamente. Percebendo interveio.
— Para seu desgosto meu querido manipula o sagrado com
muita facilidade.
Sem compreender o que acontecia ou puramente rejeitando a
verdade, por livre arbítrio ou por mera alienação, gritou.
Rapidamente, Lucena complementou com algo que Petrus lhe
ensinara.
— A luz e a escuridão podem até ser divergentes, porém
residem no mesmo invólucro.
— Isso não importa, o levarei e jogar-lhe-ei aos pés do rei — se
recusou a pensar.
Ao externar seus pensamentos e gargalhadas ergueu seu braço
pare que cinco guardas se prontificassem a cumprir sua ordem.
Imediatamente ao avanço dos soldados recuaram apreensivas, se
conservando apenas as afetadas diretamente por suas ações.
As três amigas, Rafaela, Tycia, Lola, Lala, Mio e Maiara
permaneceram para defendê-lo enquanto inconsciente.
Novamente Amira alertou à tia que não poderia desfazer sua magia
e nem intervir, ou causaria um problema político.
— Saiam da frente suas magas fracas — gritou um dos guardas.

279
— Nós podemos ser fracas fisicamente, mas nosso intelecto
supera o de homens que apenas balançam suas armas — colocou
Mio.
— O que você disse, sua bastarda? — desafiou o guarda, irritado.
— Exatamente o que você ouviu seu animal — retrucou Rafaela.
— Não machucarão ninguém com suas pequenas espadinhas —
complementou Bryn, destilando ironia.
— Saiam da nossa frente, seus estorvos! — gritou um segundo.
— Não iremos deixar vocês o levarem! — interviram as gêmeas
em uníssono.
Haviam alcançado o limite de suas paciências, começando a
rugir que as puniriam severamente, sendo calados pela presença
imperiosa de Belatriz. Como um bônus recobrou a estima do grupo
rebelde.
— Não sairei do lado de meu amor! — anunciou Lucena.
— Façam o que desejarem, pois nunca deixaremos que
prossigam. — Declarou a princesa.
Lançando seu braço acima da cabeça e executando um sonoro
estalar de dedos, convocou os membros restantes para se
alinharem à sua esquerda.
— Lu e Bela, vocês são mais fortes, então se concentrem nela —
coordenou Mio.
— Como assim elas são as mais fortes? — intrigou-se Marina.
— É isso aí, você não tem autoconfiança? — irritou-se Rafaela.
— O suficiente para aceitar que sou uma pensadora e não uma
combatente.
Proferindo a ordem de ataque, saltou para o lado para enfrentar
suas rivais com tranquilidade, deixando seus guardas se
divertirem com as restantes. Devido às táticas dos oponentes se
viram obrigadas a se separarem e imprimirem uma distância
mínima.

280
Prontamente Joana resgatou as alunas restantes e enviou-as de
volta à segurança da instituição, claro que não antes de as retirar
as últimas lembranças da mente.
— Vocês duas criem uma parede de fogo em cada um dos lados
para forçá-los a virem pelo centro, porém alarguem a abertura —
instruiu Mio.
Ao vê-las concretizando seus planos partiu para a próxima fase,
indicando às gêmeas para que dificultem o avanço das feras ou os
detivessem, se possível.
— Vamos lá irmã! — convocou Lola, enganchando suas mãos. —
Praga espinhenta.
Vários espinheiros surgiram com a intenção de obstruir a
passagem de seus opoentes, porém foram rapidamente podados e
ignorados as levando ao desespero ao constatarem as afiadas
espadas prontas para lhes injuriar.
— Isso não será o suficiente! — gritou assustada Mio.
Afligidas por indescritível pavor em seus corações acabaram
por cessar suas magias, não reparando na ação da companheira de
congelar o chão, fazendo-os deslizar.
— Terremoto!
Somente acordaram quando Maiara aterrissou entre as partes
fazendo a terra tremer, derrubando e atordoando os guardas.
Sendo agraciadas com uma ideia, criaram cipós para prender
minimamente seus inimigos.
— Obrigada as duas — agradeceu a estrategista. — Agora
poderemos acabar com eles.
— Então faça isso logo! — alertou a recém-chegada, ao percebê-
los se livrando da prisão.
— Vamos lá alteza.
Ao murmurar “Dilúvio” conjurou uma quantidade rala de água
sobre os agressores, sendo seguida pelo frio produzido por Marina,
os congelando por completo.

281
Paralelamente a essa batalha as amigas lutavam contra Renema,
mantendo distância para não serem alvos da espada e atirando
lanças de vento e bolas de fogo, vendo-os serem facilmente
defendidos ou ignorados com sucesso.
— Assim não conseguiremos nada, temos que atacar em
conjunto — sugeriu Belatriz.
— Certo.
— Vocês estão pensando que podem comigo? Tolas! — gritou,
brandindo sua espada.
A imensa onda de poder que criou as dividiu tempo suficiente
para que atingisse a maga de fogo com poderoso murro no
estomago, a arremessando a longínqua distância.
Sem concedê-la tempo sequer para admirar a amiga
incapacitada, deslizou para o lado e iniciou feroz sequência com a
espada a assistindo, contidamente alegre, defender todos os golpes
com sua lança. Por fim aplicou forte talho, a pressionando sem
misericórdia.
— Só falta você.
Agilmente carregou seu braço esquerdo e a atingiu com forte
ventania. Para impedir que fosse duramente lançada, Belatriz
liberou uma carga de vento para trás com ambas as mãos em suas
costas, deixando-a vulnerável ao avanço eloquente da irmã.
Seus pensamentos foram invadidos pela certeza de que estava
liquidada, e o pior, as amigas seriam facilmente derrotadas, mesmo
que se combinassem, acusadas de traição e Petrus levado. Somente
após ouvir um grito que se atentou para a realidade.
Era a amiga a lhe chamar para a realidade, a alertando acerca da
parede de fogo que criara e da distração que criara por obrigar a
caçadora a fechar os olhos. Não desperdiçaria a magnânima e única
oportunidade que lhe fora ofertada.
Rapidamente direcionou ar abaixo da irmã e, antes que
pousasse, a atirou aos céus. Se impulsionando e alcançando a
altura ideal carregou seu punho ao máximo, para devolver o último
golpe sofrido com pequeno acréscimo.

282
Antes de se levantar admirou atentamente a demonstração do
poder da famosa amiga. Após o lançamento e queda de sua
carrasca como se fosse um meteorito a abordou satisfeita,
constatando que a satisfação da executora era imensamente maior.
— Como você cresceu, irmãzinha.
Ao assentar da poeira a caçadora se revelou ereta e aparentando
boas condições, apesar das leves luxações, não as impressionando,
porém sim às vencedoras da batalha ao lado.
— Aprendi com a pior! — respondeu.
— É verdade...
Estava exausta e pretendia alertar a parceira. Sua irmã nunca
deixaria seu fiel montante largado, significando que necessitava se
resguardar ao máximo para readquirir poder.
— Agora! — gritou ao perceber que finalmente lhe
compreendera.
Agilmente atirou duas bolas de fogo, a forçando a defendê-las,
se abrindo aos fracos, porém incessantes, golpes de seu punho,
terminando por atirá-la com forte rajada ao perceber que
revidaria.
Antes que conseguisse recuperar sua guarda Lucena lhe enviou
uma grande bola de fogo explosiva para destruir suas últimas
defesas, permitindo à irmã lhe aplicar três socos na face e, ao
retornar de seu movimento, agarrá-la pela camisa, com ambas as
mãos, a arremessando violentamente para o alto.
Para finalizar, Lucena conjurou um pilar de fogo poucos
segundos antes do impacto da algoz para queimá-la e erguê-la
novamente, mesmo que poucos centímetros.
Ao observarem a queda da déspota comemoraram
grandiosamente, pois seus problemas haviam se encerrado e
finalmente poderiam descansar tranquilas consigo mesmo.
— Vocês pensam que é fácil assim me derrotar? — se colocou
de barriga para cima.

283
Sob olhares supressos e amedrontados se ergueu lentamente e
com muita dificuldade. Ao terminar da tarefa e se sentir com uma
mínima estabilidade, utilizou suas últimas forças para urrar de
forma imponente.
— Já chega irmã, você está somente se envergonhando.
— Não, eu não perderei mais!
— Pare com isso e admita sua derrota — foi a vez de Lucena.
— Nunca.
Repentinamente um homem transpôs o portal da cidade
acadêmica em alta velocidade e, ao alcançar uma distância
razoável, atirou um cone para a chefe. Ao vê-la exibir enorme e
maligno sorriso se retirou tão rápido quanto surgiu.
— Agora recuperarei a minha mana às suas custas — exibiu o
objeto brilhante.
“Se Renema utilizar o aparelho de transferência de mana irá
restaurar suas forças. As garotas não irão aguentar e eu já estou
muito fatigada”, pensava a diretora.
Quebrando o cilindro de vidro aos seus pés respirou
profundamente enquanto a mana roubada lhe permeava os poros.
Não constatava nenhuma intenção de lhe impedir a regeneração,
talvez pela rapidez com que os fatos se concretizavam ou por puro
medo.
— Só recuperei quarenta por cento de meu poder, mas já é o
suficiente.
Em um piscar de olhos alcançou seu montante e o apanhou,
causando extremo espanto nas adversárias. Sorrindo o embainhou
e, em outro instante, alcançou a irmã.
Com um poderoso soco, carregado com o poder do ar, enviou
Belatriz para junto das rebeldes, atirando Lucena, com grande
satisfação, à uma curta distância.
— Agora vou me acertar contigo — exibia pungente psicopatia.
— É irmão, você terá que salvá-la — comentou Amira.

284
— Certeza de que preciso? — apelou. — Que saco!
Intentando descarregar seu ódio por tê-la derrotado, justificou
suas ações com a máxima traição por ela cometida, ao se unir com
o rei demônio e atirou fortemente sua espada, acabando por parar
o tempo na região, pois a forçou a recordar todas as nuances de sua
vida em instantes, assim como às espectadoras.
Ao alcançar poucos centímetros de decapitar seu alvo a espada
parou e, após ser admirada a planar e causar espanto geral, foi
lançada para longe por força estranha.
Os que sabiam que o acontecido se tratava de uma magia
psíquica de alto nível, procuraram a diretora, percebendo ligeira
negativa.
Sem demoras, a transformação de Petrus e seu levitar foram
percebidas por suas protetoras, assim como Renema, que atraiu a
atenção por exteriorizar imensurável pavor.
— Você foi longe demais. Irei lhe fazer sofrer por todos seus
crimes — condenou Lucer, em tom extremamente ameaçador e
coberto por uma aura assassina.
— Digo o mesmo. Se curve perante a lei — gritou, imponente.
Apesar de algumas desconhecerem a história por trás de sua
transformação, compreenderam astutamente o motivo de sua
alteração súbita.
Volitando ao encontro da garota salva, admirando-a agarrar-se
a si, chorosa, quantificando seu medo e imaginando ser semelhante
ao que seu companheiro de corpo enfrentou.
Com uma investida incrivelmente veloz se aproximou e
executou potente soco para baixo, causando forte lufada para
desestabilizá-lo e para cima, intentando levantá-lo.
Observou-o espantada sem esboçar qualquer reação, saltando
para trás involuntariamente e procurando seus parceiros.
Sorrindo por estarem de pé, urrou.
— Guerreiros, esse é nosso verdadeiro objetivo, o rei demônio.
Ataquem-no com tudo.

285
— Rei não — esboçou maléfico sorriso. — Para você é
Majestade.
Rapidamente os soldados arremessaram suas armas e a líder as
potencializou, aumentando sua velocidade com uma forte rajada
de vento. Inutilmente.
Levantando a palma da mão na direção dos projéteis os
imobilizou e, sob seu olhar de indiferença, fechou seu punho e os
tornou pó, se impondo moralmente.
Sob forte expectativa geral realizou três socos sequenciados,
convocando enormes punhos de pedra a golpear os guerreiros,
sendo ovacionado por pensarem que tal castigo era devido a seus
algozes
Restando apenas sua adversária iniciou lenta caminhada em sua
direção, se deliciando com seu recuar, sua confusão e impagável
assombro, desintegrando as lâminas de vento que atirava
impassível, como se fossem meros assopros.
— Percebe que você não pode fazer nada para escapar? — se
deliciava com o pânico de sua presa. — Percebe que você não é
capaz e nunca foi?
— Pare Petrus, não a machuque — colocou-se entre ambos para
salvar a irmã.
— Eu até iria contestar, mas levarei seu pedido em
consideração, como agradecimento ao outro cara — respondeu
com um sorriso duvidoso.
Dirigindo-se à adversária prometeu que a manteria ilesa se
pedisse desculpas às presentes, cuidando de pedir perdão
especialmente para Lucena.
A irmã virou para a estimular a cumprir a árdua tarefa. Com
esforço aceitou e se virou para as rebeldes, porém ao encará-las,
seu antigo companheiro retornou, o orgulho.
— Nunca! — esgoelou-se, produzindo fortes ventos que
lançaram a irmã.

286
— Certo — agradeceu internamente sua decisão. — Então,
vamos continuar?
Com isso executou um soco tão rápido que somente viram
quando fora lançada ao alto devido a um punho de pedra que
surgiu debaixo de seus pés.
— Pare Petrus, eu imploro! — pediu a irmã, ajoelhada.
— Já disse que não sou aquele paspalho — grunhiu. — E já lhe
dei uma chance.
Dando a conversa por encerrada saltou rapidamente até seu
alvo e aplicou-lhe dezenas de socos invisíveis. Por fim a atirou com
força no chão, não causando o estrago que pretendia, por Belatriz
proteger a cabeça da irmã, assim como fizera anteriormente.
Percebendo que ainda vivia levitou a arma, a apanhou com a
mão direita e se dirigiu ao alvo, congelando o sangue das
espectadoras por acreditarem estar se excedendo.
— Pare! Ela é minha irmã — implorou, demonstrando real
agonia.
A voz chorosa lhe afetou tanto que desistiu de suas intenções,
embora contrariado. Deixando a arma sob o efeito da gravidade se
dirigiu calmamente à suplicante, sendo abraçado por Lucena antes
sequer de pisar no chão.
— Saiba que não parei por minha vontade, então não me
agradeça — esquivava o olhar. — Para mim ela merecia alguns
ossos quebrados.
— Muito obrigada! — agradeceu o abraçando.
— Nhá, ele me disse que era bom receber um “obrigado”, mas
não é bem assim.
Rapidamente se afastaram dos olhares, voltando ao seu
dormitório. Antes de desmaiar em seus braços lembrou que Petrus
retornaria inconsciente, pois a dor do impacto e da reconstrução
da magia haviam sido demais para que aguentasse.

287
14. Na toca dos lobos

Depois de algumas horas, na cama de seu apartamento, Petrus


despertou completamente atordoado e dolorido, sem saber,
naquele momento, o porquê de tamanho abalo.
Reparando que, tanto a amada quanto a princesa, dormiam
sentadas em cadeiras recostadas à parede, lado a lado se levantou
silenciosamente, evitando até respirar em excesso, porém quase
destruindo sua estratégia por ser surpreendido pelos irmãos.
Gesticulando para que permanecessem quietos deixaram o
cômodo como pretendia, porém, ao alcançarem a porta, baixou a
guarda, acordando, assim, a companheira.
Chamando pela amiga e tapando sua boca ao vê-la tentar se
espreguiçar, a alertou para os surpreenderem. Ao se aproximar da
porta pode ouvir leves sussurros, levando o dedo aos lábios para
pedir silêncio à amiga novamente.
— Nem preciso comentar dessa sua imprudência, não é irmão?
— irritava-se Amira.
— Mas eu tinha que fazer algo para ajudá-las — justificava-se.
— Então você deveria ter anulado aquela orgulhosa de uma vez
— enraiveceu o irmão.
— Eu queria mostrar-lhe que não era necessário que
duelássemos.
— Você não pode continuar assim ou prejudicará seu plano —
aumentou o tom, a menina.
Esboçando gestual para pedir silêncio, pois poderiam acordar
as amigas, se viu obedecido imediatamente. Ao constatarem a
ausência de sons no quarto a discussão prosseguiu.
— Você se planejou por tanto tempo e rigor para brincar agora?
— perguntou nervoso.
— Vocês estão certos, mas eu não poderia ignorar a situação.

288
— Eu sei que é chato deixar os outros na mão, mas é necessário
para realizar o bem maior — compadeceu-se, a irmã.
— Deixará que as intenções que têm desde pequeno sejam
destruídas por uma qualquer?
“Não é tão fácil quanto parece”, pensou simplesmente, como se
fosse uma resposta aceitável, porém recebeu duras reprimendas
de ambos, deletando suas ideias.
— Isso não pode mais acontecer ou irá comprometer por
demais seu estoque de mana.
— Você acredita que esse tolo não cometerá outro erro? —
Marcus imprimiu leve sorriso irônico e nervoso. — Não esqueça de
que só você pode cumprir essa tarefa.
— Fiquem tranquilos, sei qual é o meu destino, afinal concordei
com isso — encerrou.
Estavam quase explodindo de curiosidade, mas sabiam que não
poderiam irromper o ambiente se pretendessem esclarecer as
questões que possuíam, como o porquê de tratar deste assunto
com seus irmãos e o porquê de tanto mistério.
— Você ainda não me prometeu parar de ser tão imprudente —
insistiu a irmã.
— Por que tenho que fazer isso?
— Porque você é tão idiota que nos impede de trabalhar —
explicou Marcus.
— Se você não nos permitir não poderemos cumprir nosso
papel — concordou a menina.
— Mas não preciso que vocês façam nada — disse calmamente.
— Isso é, se você utilizasse seu poder melhor. Não sei mais se
você quer conservar sua mana ou apenas impressionar aquelas
riquinhas mimadas — irritou-se o irmão.
— Entenda, esse é nosso dever como seus...

289
Agilmente tratou de silenciar a irmã e encerrar a discussão, pois
sabia o rumo que se tomaria caso prosseguissem em seu discurso
e não queria ser afligido por mais sermões.
Após o silêncio imperar esperaram um pouco para se
recuperarem da surpresa da inesperada conversa, juntando-se aos
interlocutores para alimentarem a mentira de que acabaram de
despertar, portando nada testemunhando.

Um mês se passou desde o acontecimento impactante do pedido


de perdão de Renema ao homem que tanto odiara por seus atos
egoístas e opressivos. Naturalmente sua reflexão fora causada por
uma conversa com Joana e a irmã.
Seu pedido foi imensamente doloroso e desonroso em um
primeiro momento, porém a proporcionou vários benefícios,
como, principalmente, ter a oportunidade de esclarecer o passado,
ainda tão conturbado para sua pessoa.
Aberta às palavras que fluíam da boca do responsável por sua
desgraça finalmente compreendeu que a estratégia utilizada na
batalha de Valis não fora selecionada para destroçar sua honra
perante a sociedade, e sim para preservar certo caráter pacífico.
Outro benefício intrínseco foi estender seu repertório de magias
e combos possíveis e inesperados, que muito lhe auxiliariam em
larga gama de situações.
Enquanto recordava os acontecimentos e assistia uma corrida
passada pelo professor de educação física para as colegas de classe,
Marina o procurou agitada e aparentando grande preocupação.
Havia comparecido à diretoria pouco antes da aula iniciar, sob
pretexto de se tratar de assunto da mais alta relevância e urgência.
— Petrus, tenho que falar com você em particular.
— Precisa mesmo atrapalhar meu momento de descanso?

290
— Meu pai exigiu a sua presença no palácio — sequer aguardou
sua permissão para descarregar tal informação.
Por longo período se manteve em silêncio, tornando-se
imperiosos os gemidos de cansaço das garotas ao fundo. Sem lhe
buscar com o olhar e nem tratar sobre o assunto formulou uma
resposta típica de evasão.
— Em vez de nos atrapalhar se apresse e faça parte do belo
espetáculo da natureza.
— Não me canso nunca de admirar como essas jovens são
saudáveis — Vampeto seguiu o parceiro, piorando a situação.
Completamente enfurecida por ser categoricamente ignorada
por ambos, além de compreender o motivo de sempre as dirigirem
olhares fixos, conjurou dois blocos de gelo sobre suas cabeças,
retirando-se a passos pesados ao constatá-los impassíveis à
agressão.

Após o término do horário escolar, se dirigiu ao quarto de


Marina, acompanhado pela namorada, sendo recebido pela
ansiedade em pessoa. Estava arfante, desarrumada e descabelada
o indicando claramente o que sentira.
— Até que enfim vocês chegaram.
— Acalme-se.
— Acalmar-me? — gritou indignada.
Não identificando o assunto debatido, Lucena irritou-se por não
a terem inteirado sobre e reclamou com ambos. Rapidamente a
amiga lhe revelou o trágico acontecimento, elevando seus níveis de
estresse.
— Quer dizer que sua irmã mimada não aguentou a derrota e
destilou todo seu veneno?
— Ela não faria isso — defendeu.

291
— Claro que não! — concordou Petrus. — Ela só deve ter dito
que eu sou o seu namorado e seu pai quer conversar comigo. Uma
revanche.
Admitindo sua explicação como satisfatória cessaram a
discussão e formularam suas reações. Marina riu brevemente por
se recordar da irmã e Lucena se pintou de vermelho de tanta raiva,
jurando a terceira princesa de morte, enquanto as observava
contente.
— Não está minimamente preocupado, querido? — perguntou
a título de confirmação.
— Claro que não. Será fácil me disfarçar como um guerreiro,
pois já fui um.
— Então vá praticar sua atuação, pois nosso transporte chega
amanhã de manhã.
— Que ótimo! Queria mesmo uma aventura — colocou antes de
sair.

Mais tarde dirigiu-se ao quarto de Belatriz para poder conversar


consigo em paz, pois não desejava que o assunto gerasse caos,
embora não se tratasse de um segredo.
— Olá, Petrus. Entre.
Estranhou o fato de se achar desconcertada, porém lembrou que
sua presença não era comum, decidindo ignorar e entrar
tranquilamente. Percebeu ainda que seu recanto não estava
milimetricamente padronizado e arrumado como imaginava que
seria.
— O que queria falar comigo?
— Tenho a sensação de que algo venha a ocorrer.
— Humm, uma premonição? — refletiu.

292
— Não que algo ruim possa realmente acontecer no tempo que
estou fora, mas, como já disse, tive essa sensação — amenizou a
situação.
— Em todo caso não custa nada dobrar a patrulha por esses
dias.
— Isso mesmo, mas não espere nada.
Continuou a pensar seriamente sobre o assunto, mesmo após
sua saída, afinal seu sexto sentido era surreal e quase sempre
estava caprichosamente correto.

No dia da viagem um grande balão foi avistado se aproximando


da instituição, alertando Marina para que iniciasse seu preparo,
claro que em pleno desespero.
— Onde está aquele homem inútil? — murmurava.
O estupendo aeróstato da coroa havia aportado há tempo
suficiente para a princesa se apresentar e os preparativos para
levantar voo serem concluídos, restando apenas a chegada do
último passageiro, para desespero da princesa, que rodeava um
pequeno espaço, blasfemando contra o animal que inventara de
desaparecer na floresta.
Para o aguardado dia escolhera um vestido longo, verde-água,
em tecido encorpado, saia com leve rodado na parte de baixo,
corpo todo bordado em pedrarias, com detalhe no centro em
brilhantes e decote canoa, com os ombros à mostra e sandálias cor
ouro velho.
Atravessando a floresta com calma se fez presente o aguardado
ser. Ao lhe perceberem seus queixos caíram, seus olhos se
esbugalharam e engoliram em seco.
Trajava uma calça com proteções de ferro até o joelho, camisa
sem manga com pequena proteção, também de ferro, no peitoral e
um par de grossas botas, sendo as três peças de couro. O cabelo
desgrenhado completava o visual.

293
Utilizava um cinto de couro, ao qual embainhara uma espada
curta, na lateral direita, e uma faca de caça na esquerda, assim
como um arco curto na metade direita de suas costas e uma aljava
de flechas na esquerda.
— Ele não é tão musculoso, mas você tem que admitir que o ver
assim é muito sedutor — murmurou Lucena ao cutucar a amiga
com o braço esquerdo.
Graças à amiga implodiu em vergonha, avermelhando sua face e
abaixando seu atento olhar. Por sorte o recém-chegado impediu
que a analisassem minimamente.
— Você deve ser o Sir Petrus — dirigiu-se educadamente o líder
da comitiva.
— Estou admirado com a perspicácia dos guardiões da realeza.
— Aguardávamos por seu retorno — desconcertou-se. —
Partiremos imediatamente.
Caminhando em direção às duas, que permaneciam
cochichando, as encarou sério. Após se esconder dos olhares
curiosos estampou um sorriso e abriu os braços para se exibir.
— O que acharam de minha caracterização?
— Você ficou muito gostosão com essas vestes de guerreiro —
Lucena mordeu os lábios.
— Era o mínimo que deveria fazer — escondeu sua face.
Caminhando apressada apoiou sua mão no braço do rapaz,
como se realmente fossem amantes e compareceram à presença
dos oficiais que os aguardavam pacientemente.
Rapidamente embarcaram e levantaram voo. Observando se
distanciarem da academia com leves lágrimas a lhe marcarem o
rosto, iniciou prece silenciosa, afinal seu amado adentraria perigoso
covil de serpentes e teria de medir seus passos precisamente.

294
Desde o momento em que levantaram voo não se viu capaz de
cessar seus pensamentos acerca dos últimos acontecimentos e do
futuro, sequer percebendo quando a abraçou.
Seu contato funcionou para recordá-la que enfrentaria os
perigos do porvir ao seu lado, a acalmando. De quebra ainda
destruiu as dúvidas que restavam sobre sua relação.
Preso em sua real encenação quase não percebeu sobrevoarem
a cidade em torno do castelo. Ancorando próximos aos grandes
portões principais se viram libertos para prosseguir em sua
jornada.
O castelo era imenso, ultrapassando a altura de trinta metros,
enquanto sua largura era impossível de ser estimada em uma
rápida contemplação. Possuía também onze torres, sendo oito
próximas aos muros e três em torno do castelo.
A construção era circundada por um extenso muro de pedra, de
dezesseis metros de altura, onde se localizavam, em seu perímetro,
quatro grandes portões de madeira. Dentro havia algumas
edificações comuns ao local, porém não se preocupou em observá-
las.
Após trespassarem os grandes portões, foram recebidos por
uma grande comitiva, a aguardar-lhes impacientemente,
abandonando os guardas que os escoltavam.
A segunda comitiva não era muito importante, sendo
constituída apenas de empregadas e mordomos, porém tinham um
forte significado para a companheira, pois tremeu de ansiedade e
encolheu os ombros após verificar suas personalidades.
Com um leve toque em seu ombro, concedeu carta branca para
disparar e abraçar as pessoas tão caras para si.
Independentemente de sua classe, eram seus velhos amigos.
Enquanto transbordava em lágrimas, abraçando e gritando o
nome de cada um, revelava aos seus olhos a mulher sensível,
carinhosa e companheira que sempre enxergou.

295
As moças conversavam com a princesa como se fossem meninas
a tratar de assuntos juvenis, sendo o principal, o grande e
musculoso homem que trouxera consigo.
Ao alcançar o divertido grupo se viu obrigado a responder
alguns questionamentos, se esquivando das indagações mais
perigosas. Forçando uma interrupção da conversa abandonaram
os servos e atravessaram o portão de acesso ao castelo.
Ficou boquiaberto com os vitrais cuidadosamente trabalhados
que lhe saltaram aos olhos, bandeiras penduradas em sucessivas
pilastras pelo corredor à frente tendo, com isso, a sensação de
profundidade, um tapete mais extenso que sua visão, magníficos
candelabros de ouro de um metro de altura e lustres de ouro
adornados com pedras preciosas.
Logo à frente encontraram o rei entre as duas filhas. Apenas
Tresa não se mordia de curiosidade para desvendar os mistérios
do convidado inesperado.
Tresa trajava um vestido curto, rosa, em tecido pesado, decote
alto e cruzado, recortes verticais ao longo do busto e da saia e
bordado seguindo os recortes no busto, saia evasê e costas
levemente decotadas e sandálias nude.
O rei possuía míseros dois metros e cinco centímetros de altura
e, seu largo esqueleto, aliado aos músculos remanescentes da
juventude, concediam-no um físico avantajado, principalmente se
considerasse que se aposentara há anos.
Seu cabelo era liso, curto e grisalho, sua pele, muito bronzeada,
devido à alta exposição aos raios solares, seus olhos azuis e linhas
de expressão bem visíveis. Um robe azul e branco o vestia,
adornado com adereços em ouro.
A primeira princesa aparentava grande altivez e possuía a
palavra poder gravada em seu olhar, contrastando com sua
aparência delicada.
Possuía cabelo negro, longo e liso, olhos azuis, pele branca,
corpo delgado, era dez centímetros mais alta que Marina e seu
farto busto invejava qualquer dama.

296
Trajava um vestido longo, azul, em tecido transparente,
bordado e rebordado em cristais, alças largas com detalhes
bordados, decote princesa, V profundo nas costas e saia sereia com
fenda.
Ao se aproximar, endureceu o corpo e permaneceu estática
observando o pai, apenas rompendo o silêncio e desabando-se a
chorar ao vê-lo abrindo os braços para recebê-la.
Afundando-se nas pomposas vestes reais balbuciou palavras
desconexas, tentando demonstrar sua felicidade em reencontrá-lo.
Rapidamente as irmãs envolveram-na num grande abraço em
família, acalentando-a e trocando elogios.
Ao se encerrar da cena direcionaram-se ao rapaz, o qual
permanecera ereto e calmo desde o início, aguardando seu novo
inquérito, agora mais acirrado e sem possibilidades de escapatória,
aliado ao conteúdo elaborado por certa mente fértil.
Intimamente tinha uma ideia do que havia dito, mas, o que
revelara exatamente, era uma pergunta que desejava por demais
que fosse claramente elucidada.
Enquanto conversavam fizeram uma excursão para que o
convidado conhecesse o ambiente do castelo, assim como se
familiarizasse com suas regras, seu desenho e sua rotina, visando
obter o máximo conforto possível.
— Diga-me Sir Petrus. É verdade que você já foi um guarda de
nossa querida capital? — questionou o rei.
— Com muita honra digo que sou um veterano de guerra.
— Mas como, se eu nunca te encontrei? — inquiriu, em tom de
desconfiança, a mais velha.
Ao olhar para o lado se deparou com sua companheira,
visivelmente tremula por acreditar que a irmã desvendaria a farsa.
Rapidamente cuidou de atrair as atenções.
— E quem disse que você tem de conhecer todos os soldados
— Claro que conheço. Estou procurando um homem digno de
minha mão há muito tempo.

297
Virando-se para buscar respostas na face da parceira a viu ainda
amedrontada com a hipótese formulada, o incentivando a
modificar seu semblante e aceitar a missão.
— Marina me informou que você tem vinte anos, certo?
— Precisamente! — respondeu automaticamente.
— Você é, então, dois anos mais velha do que eu — concluiu
antes de continuar. — Cheguei ao exército aos onze anos e
permaneci até os treze, quando fui para a academia Laetus para ser
o assistente do professor Vampeto.
— Ou seja, você esteve aqui dos treze aos quinze anos de minha
irmã — resumiu Tresa, ansiando por uma continuidade.
— Exato, mas como ela nem me percebeu se, quando me retirei
do exército, havia chegado à um alto posto? — inquiriu
pertinentemente.
A companheira havia abandonado sua posição de proteção,
Tresa saltava de alegria por alguém se dispor a combater a irmã, a
própria já estava irritada e o rei não parou de sorrir desde o
princípio. Havia conseguido seu intento inicial.
— Sempre fui deixado com os piores soldados e aumentei minha
popularidade dentro do círculo militar rapidamente, então a
notícia ainda não havia se espalhado. Você nunca me encontrou
porque seus olhos só apreciavam a fileira dos mais famosos.
Em questão de segundos despiu a princesa perante seus
particulares, atingindo sua alma em cheio e causando a satisfação
geral, embora em diferentes níveis.
— Nunca pensei que minha filha, que mal aprendeu a usar
magia, conseguiria encontrar alguém tão fantástico — comentou
alegremente, após longas gargalhadas.
— Como? — reagiu instantaneamente. — Meu senhor, sua filha
é uma grande maga.
— Não precisa ficar tentando engrandecê-la para mim, estou
contente só por ela ser capaz de aguentar os ataques da irmã.

298
Compreendendo o que acontecera encarou Tresa penosamente,
a fazendo corar e abaixar o olhar, assumindo a culpa. Prestimoso
iniciou os devidos esclarecimentos.
— O que foi que ela contou para vocês?
— Que, apesar de lutar bravamente, Marina não teve chances —
relatou a mais velha.
— Então vocês foram ludibriados — informou com calma.
— Como assim? — urrou o rei, nervoso.
— Sua filha enfrentou sozinha a irmã, junto de mais três amigas
e ganhou.
A estupefação fora tão imensa que caíram em assombroso
silêncio. Com novo olhar, Milena buscou a irmã, constatando a
veracidade da informação e alertando o pai.
— Então minha filha finalmente despertou sua verdadeira
força? — emocionou-se.
— Sim! — respondeu simplesmente.
— Não acredito que você caiu para essa perdedora — provocou
após gargalhar.
— Pelo menos ela “era” perdedora, enquanto você “é” orgulhosa
— retrucou Petrus, irritado com a atitude arrogante.
Como se antevisse o escândalo que a filha faria, tentou acalmar
seus ânimos, reservando a tarefa de controlar o rapaz à sua
pretendente, entretanto seus esforços foram em vão.
— Parece que minha irmã encontrou alguém tão irritante
quanto ela — provocou.
— Parece que Marina tem uma irmã muito arrogante —
devolveu a provocação.
Após a troca de farpas posicionou-se ereto e, com um
cumprimento formal, despediu-se levando a falsa namorada pelo
braço aos seus aposentos. Ao bater à porta do quarto a livrou,
percebendo sua inconformação estampada em sua face.
— O que aconteceu com você? Estava agindo como uma criança.

299
— Mas era exatamente o que planejei — revelou.
— Como assim?
— Um soldado é ensinado, desde pequeno, a proteger sua honra
a todo custo e foi o que fiz. — Explicou como se fosse uma lógica
simples.
— Então eles estavam lhe testando?
— Provavelmente não foi intencional, mas, com certeza,
estavam atentos.
Pensando sobre percebeu que estava certo, pois a nobreza
sempre inspeciona e avalia os que se aproximam de seu círculo
através de todo e qualquer ato cometido por estes.
— Nossa, eu nunca teria chegado a esse ponto — exclamou
admirada.
— Certo, então pode começar a me contar como é esse baile que
acontecerá à noite.
Voltando a conversar se perderam no tempo com diversas
discussões. Quando perceberam, a tarde havia findado e tiveram
de se arrumar com agilidade.

Ao chegarem admirou-se com os vários nobres que moravam no


enorme castelo e a grandeza de sua cozinha, visto que o salão de
festas estava repleto de comidas.
Cada mulher nobre que ali estava possuía joias e vestidos
repletos de pedras brilhantes, tão reluzentes que parecia que
focalizavam milhares de refletores em sua face.
Já os homens se encontravam com semelhante robe masculino,
se diferenciando apenas pelos brasões de suas famílias bordados
em ouro e alguns poucos acessórios.

300
Marina representava fielmente a melhor das acompanhantes;
reservada, companheira, deslumbrante e bem arrumada, ao
contrário do pai que se mantinha igual sempre.
Utilizava um colar prateado com um pingente em gota de
diamante, sandálias prata e um vestido longo, azul claro, em seda
com leve transparência, decote V finalizado com um detalhe de nó
transpassado no busto, uma pala na cintura, saia esvoaçante e
mangas com aberturas nas laterais, complementadas com um laço
no punho.
Milena desfilava com um vestido longo, azul, em tecido
transparente, bordado e rebordado em cristais, seguindo padrão
em arabesco, decote V na frente, U profundo nas costas, alças
médias e saia sereia com fenda e um colar de safiras e brilhantes
descendo pelo decote.
Tresa, uma gargantilha de diamante, sandálias prata e vestido
curto preto, decote V profundo até a cintura, frente e verso, todo
bordado em pedrarias seguindo padrão em arabesco continuado
até as costas, terminando em detalhe em linhas curvas na saia.
Por sorte, apenas teve de trajar uma farda militar, apropriada
para a ocasião, coberta com detalhes em ouro e o brasão dos
Sterniot.
Como lhe antecipara os homens nobres viriam conversar
consigo enquanto as mulheres se direcionariam a si. Sempre que
um homem se aproximasse a mulher deveria dar as costas até o
fim da conversa, sem que pudesse se afastar de seu noivo.
Por não gostar e não concordar com tais normas ridículas
ignorou-as, instruindo-a a acompanhar-lhe. Com um grande
sorriso o seguiu, pois as desprezava igualmente.
A ousada atitude desagradou à maioria dos nobres, além do
próprio monarca, mesmo que levemente, mas, por serem os
anfitriões, nada poderiam fazer ou reclamar. O que mais lhe
reconfortou foi o silencioso apoio das irmãs, orgulhosas por sua
coragem.

301
Não contente tratou de quebrar o protocolo por completo e
conversar com as mulheres, sendo imensamente reprovado.
Aproveitando-se do fato de não os recusarem para manterem as
aparências, o casal, progressivamente, rendeu-as ao seu ar
convidativo.
Em poucos minutos a pomposa e formal festa da nobreza fora
substituída pela descontração e casualidade características de um
festejo popular, relegando a uma minoria lhe maldizer, para
amenizar seu extremo desconforto.
O único a se abster de participar de ambas, alegria e cólera, fora
o rei. Impressionado admirava quão variadas eram as habilidades
do sujeito que conquistara sua filha.
No ápice da festividade, momento em que, de tão alegres se
esqueceram de seus papeis, um grito agudo ressoou no salão,
anunciando que os tempos de paz haviam se findado.
Automaticamente todos, convidados e criados, buscaram a
origem do som, avistando, por uma das sacadas, três grandes
balões em rota de colisão com o salão de festas.
Esqueceram-se de suas posições ostentadas e correram, não se
importando ao lado de quem e nem em quem se esbarravam.
Enfim, um verdadeiro caos se instalara.
Antevendo a confusão envolveu a acompanhante em um forte
abraço e saltou para onde Handal estava, puxando
despreocupadamente Tresa, com o vento e assistindo a irmã
restante forjar seu próprio caminho gelado.
Ao se acharem a sós, agilmente esticou seus membros, para se
mover melhor e partiu, causando intensa preocupação na parceira
e grande confusão nos demais.
— O que você... — tentou gritar o monarca.
— Agora não tenho tempo para explicar, velho, pois aqueles três
dirigíveis estão se aproximando vagarosamente, mas eles devem
estar ocultando bombas o suficiente para derrubar uma parte do
castelo e matar muitas pessoas — explicou correndo à sacada.

302
Estavam perto de atingir seu destino, não o concedendo muito
tempo para pensar, sem contar que não poderia os atirar para
longe, pois cairiam na cidade. Se virando para observar os donos
da majestosa residência decidiu tomar a única atitude possível.
Em segundos expeliu uma sinistra aura negra assaltando o rei
com uma amarga certeza. A fúria o invadiu e desejou gritar, porém
nenhuma palavra libertou-se de seus pulmões.
— Faz tempo que não faço isso. Vai ser complicado — começou
a flutuar.
Alcançando a altura dos alvos juntou as mãos e, conforme
pronunciava o encantamento “Outra dimensão”, admitia a posição
de cruz, terminando por invocar gigantesco buraco negro, sugando
os balões e seus passageiros.
Apesar de nutrirem certa admiração e empolgação,
contemplando suas ações, não conseguiam abandonar o medo e
apreensão, cultivados em larga escala pelo patrono.
Terminando de engolir os aeróstatos, desmaiou, entrando em
queda livre e compelindo as garotas a se dirigirem à varanda.
Acordou instantes ante de se impactar com o solo, pousando
deitado com delicadeza após simples magia.
Já com sua aparência natural admirou o céu estrelado,
aguardando pacientemente a presença do monarca, anunciada por
um grupo de soldados que lhe apontavam lanças.
Após muito esperar finalmente o viu chegar, seguido por três
guardas e bufando como um javali prestes a atacar. Rosnando
ordens apontou enlouquecido em sua direção.
— Não se deixem enganar, aquele ser desprezível é o rei
demônio. Matem-no.
Contemplar o movimento dos soldados, fez os olhos do velho
rival brilharem intensamente. Finalmente destruiria a besta que
tanto atormentara seu reinado, vingando-se pelas inúmeras falhas
que lhe foram atribuídas.

303
Instantes após ouviram as duas princesas mais jovens lhes
ordenarem que parassem, os causando grande confusão e, com
isso, cessando suas ações para reflexão.
Gerando gelo em seus pés se aproximaram rapidamente,
saltando à frente da formação dos soldados, ordenando para que
se afastassem e causando imensa raiva no pai.
— O que vocês estão fazendo, filhas ignorantes! — rugiu.
— Você não pode matar o Petrus — repetiram.
— Vocês sabem de tudo que ele fez contra nossa família? —
esbugalhou seus olhos.
— Nada do que sabíamos sobre ele é verdade — adiantou-se
Marina.
Levantando-se com dificuldade avançou lentamente até suas
salvadoras, mantendo-se entre as duas, repousando os braços
sobre seus ombros, cansado.
— Ouça suas filhas, senhor Handal. Proponho uma trégua
momentânea.
Irado com a ideia de perder para a besta novamente, ordenou
cegamente aos soldados que atacassem. Apesar de nutrirem
sentimentos pelas jovens princesas se viram obrigados a
obedeceram, graças ao duro treinamento a que foram expostos
desde tenra idade.
Sem pensar duas vezes dispendeu seu tempo de reação
atirando-as para trás, admitindo-se, assim, completamente
vulnerável. A milímetros dos cavaleiros atingirem sua meta, os viu,
em total perplexidade, congelaram sem aviso.
Atentando-se ao longo rastro de gelo no solo percebeu que a
primeira princesa havia conjurado uma magnífica rajada
congelante para acertar os lacaios, demonstrando, assim, ser uma
ótima maga, por sua rapidez, precisão e a qualidade dos cristais
formados.
— O que foi que você fez, Milena? — gritou incrédulo.
— Impedi você de iniciar outra guerra — dirigiu-se às vítimas.

304
— Igualzinho sua mãe.
Instantaneamente atraiu a atenção e despertou sentimentos
diversificados e contraditórios nos quatro, sendo apenas o
monarca a não participar do coro.
— Você conhece nossa mãe?
— O que eu deveria dizer em uma situação dessas? — provocou.
— Diga a verdade, criatura imunda! — explodiu Handal.
— Peça com jeitinho, você consegue.
A frase tomou um rumo antagônico ao costumeiro e impactou
seu alvo de uma maneira imprevisível. Como as mais novas não
foram atingidas pela carga emocional, repreenderam-no.
— Não o provoque, Petrus — As duas conhecidas princesas o
fuzilaram.
— Não é isso, irmãs — alertou a mais velha.
— Essa é uma frase que sua mãe utilizava — confessou o pai
sensibilizado.
Impressionadas por serem informadas de um costume de sua
mãe que não conheciam, descobrindo-o, justamente, através da
pessoa mais improvável o possível, fez com que não conseguissem
expressar o tamanho de sua estupefação.
— Poderia me escutar, Handi — completou.
— Maldito! Onde você ouviu isso?
— Eu conheci sua esposa, a dona Minia, há muito tempo.
— Não use o nome de minha mulher em vão, sua besta —
rosnou.
— Pare de rosnar, Handi, ou as pessoas se afastarão de ti.
Após o soar da última oração foi como se houvessem injetado
uma droga relaxante no gigante, silenciando-o, além de conquistar
sua rebentas.
— Então isso realmente funcionou — sensibilizou-se. — Agora
podemos entrar?

305
— Quem disse que irei aceitá-lo em meu lar? — gritou.
— Que bom que ele não falou com o senhor — impôs-se Milena.
— Vamos garotas?
Ao dizer tais palavras extremamente inflamáveis, retornou ao
portão de entrada, sendo seguida pelos demais enfurecendo, assim,
o patriarca. Desaparecendo de sua vista cuidou de descongelar os
pobres guardas da prisão por ela mesma imposta.
Vendo que perdera o controle da situação e ignoravam-no
completamente seguiu o grupo, fosse para se manter de olho no
demônio ou para descobrir sua ligação com a esposa.

Adentrando uma sala, pode observar uma grande mesa em


formato oval onde se sentou na ponta inferior direita, a primeira
princesa à sua frente e a irmã e Tresa ao seu lado,
consecutivamente. Handal permaneceu em pé recostado à porta.
— Um dia, quando estava indo para casa à noite pude ver, em
uma viela escura, um homem assediando uma mulher. Aproximei-
me na surdina e desacordei o bandido.
— Ela usava um simples e belo vestido longo, azul, com apenas
um detalhe bordado em volta do busto e um decote não tão
profundo.
— E, por acaso essa era nossa mãe? — deduziu a primeira
princesa.
— Exatamente.
— Espere aí seu animal, como minha esposa poderia estar no
subúrbio numa hora dessas? — questionou indignado.
Instintivamente lançaram um olhar de reprova para a figura
paterna, seguido de suas vozes firmes, porém fez um sinal para que
não se preocupassem, pois estava acostumado a ouvir tais
impropérios e, por isso, não mais sentia-se atingido.

306
— Assim que a identifiquei ofereci escoltá-la de volta ao castelo
e ela aceitou com uma face duvidosa. Percebendo isso a levei para
o morro próximo ao castelo.
— Você é idêntica a ela, Marina — lançou ao se lembrar melhor,
calando o pai, que bem sabia sobre o que falava.
Neste momento sua mente regressou ao passado, recordando
seus sentimentos, pensamentos e sensações de outrora, tornando,
assim, suas palavras mais fluidas.
— Você não me levaria ao castelo? — perguntou.
— Eu pude perceber que você se sentiu mal com a menção de
retornar, então lhe trouxe aqui para ver se você revela o que há
contigo.
— E porque me abriria com um mero guarda.
Como ambos sabíamos que a frase adveio de um duro
treinamento da nobreza, bastou um sorriso para que ela refletisse
seu ato e relaxasse, sentando-se sobre a grama macia.
— Muito bem! Acho que posso me abrir com alguém tão especial.
— Mal me conhece e já me chama de especial? — disse em tom
admirado.
Parando para observar-me percebeu que eu estava um pouco
mais agitado, como se fosse uma criança a esconder um doce. Rindo
levemente gesticulou para que me acalmasse.
— Sei que você é especial. Só não sei ainda como.
— Deixe sua sagacidade de lado e diga agora o que lhe aflige.
— Meu marido e minhas três filhas não sabem viver sem mim —
informou tristemente.
Ao ouvir tais palavras nunca imaginei que poderia ser algo ruim,
porém não acreditava que ela poderia estar mentindo, temendo algo
sem motivos ou fútil, então pensei bastante sobre o assunto, porém
nada me veio.
— Mas isso não é algo bom?
— Seria se eu fosse continuar viva.

307
Levantei-me em um salto e entrei em estado de alerta, tomando a
afirmativa como se fosse um aviso de perigo, passível de ser anulado
com minha intervenção física.
— Quem está lhe ameaçando? Diga e acabarei com ele.
— Não é uma pessoa e sim uma doença — ergueu-se irritada.
Fiquei pasmo. Não sabia como reagir, pois em um mundo onde a
medicina nada evoluíra, ter uma doença significava morrer.
— Qual é essa doença? — perguntei na hipótese de ser algo pouco
grave.
— Os médicos dizem que há algo de errado em minha respiração,
mas não podem fazer nada.
Então era por isso que tossia tanto. Pensando melhor, eu sabia um
pouco sobre o assunto, pois a Jo... — quase revelou seu nome sem
perceber — a velha de alguns anos me falou e poderia ajudar, afinal,
por que não tentar se nada mais funcionava?
— Acho que posso lhe ajudar.
— Por acaso você é algum médico revolucionário? — não tinha
mais esperanças.
— Não, mas sou, como você disse, especial.
— Tudo bem, afinal tenho, no máximo, mais cinco semanas de
vida, presumo.
Tinha uma ideia do que fazer, só precisava ser cuidadoso, pois,
como me disse a moça, “Se o corpo é sensível por fora, por dentro é
muito mais”.
— Deite-se e relaxe.
Aproximando-me dela ajoelhei e levei minha mão à sua face,
percebendo que, com razão, sentia-se incomodada. Sussurrei para
que se acalmasse, pois não iria fazer nada.
Decidindo confiar em mim, ou apenas desistindo de proteger um
corpo com os dias contados, abaixou a guarda completamente,
achando-se à mercê de qualquer atitude que tomasse, afinal não
tencionava nenhum músculo.

308
Delicadamente depositei a palma de minha mão próxima ao seu
nariz e, com cuidado, introduzi diminuta rajada de ar em suas
narinas durante pouco tempo, pedindo para que o segurasse e
expirasse somente ao fim do processo.
Vendo como liberava todo o ar que havia impulsionado repeti a
tarefa. Pedi para que se levantasse, inserindo pequenas esferas de ar
para lhe fornecerem um estoque contínuo.
Ao completar meu trabalho percebi enorme sorriso em seu rosto,
sendo sucedido por uma exclamação, demonstrando-se
verdadeiramente surpresa e impressionada.
— O que você fez?
— Não sei o que você tem, mas imaginei que fosse um problema
na caixa de respiração... — foi interrompido.
— Caixa de respiração? — intrigou-se por nunca ter ouvido tal
termo.
— Conheci uma doutora que me disse que dentro de nosso corpo
existe uma caixa de respiração e deixei uma reserva de ar na sua
para que seja mais rápido para respirar, afinal não terá que retirar
o ar do ambiente e esperá-lo percorrer todo o caminho.
— Muito interessante! — exclamou admirada. — Sabia que você
era especial, mas nunca imaginei um homem mago.
Por um momento me senti parar no tempo, pois havia revelado
meu segredo tão facilmente sem pensar nas consequências de expor
minha identidade, porém, ao lembrar que poderia salvá-la ou, ao
menos, prolongar sua vida, não dei muita importância.
— Você poderia guardar segredo?
— Mas é claro! É o mínimo que posso fazer por meu salvador —
abriu um sorriso.
— Só para te avisar, terei que realizar esse processo mais vezes.
— Então eu não estou salva?
— Não tem como saber, afinal não consigo olhar o seu interior.

309
Triste pela notícia emudeceu-se e abaixou a cabeça, lamentando
por não recuperar sua vida, porém lhe veio um pensamento de que
poderia continuar suas atividades sem sofrer tanto. Se isso não fosse
viver, o que mais seria?
— Isso é mais que suficiente.
Como prometemos ao nos despedir nossos encontros tornaram-se
rotineiros. Após alguns dias, um assunto muito desagradável surgiu,
e pior, por minha própria boca.
— Você acredita na superstição?
— Aquela que diz que você irá destruir a tudo e a todos? —
perguntou só para confirmar. — Não, não acredito que você seja
capaz de fazer algo de ruim contra algo ou alguém.
— Mas eu já destruí uma vila inteira, sabia?
Por que estava tentando afastá-la? Talvez porque tenha
aprendido que ninguém ao meu lado alcançaria a felicidade e queria
adverti-la.
— Então é realmente verdade aquela história que o Handi me
contou? — tentava se lembrar dos detalhes. — Em todo caso
acredito que ele estava exagerando.
— Tem certeza? Sou perigoso.
Não estava sendo sincero, por isso, temendo confessar-me através
de meu olhar, o escondi. Sentindo ser capaz de dissimular novamente
minhas emoções, tornei a encará-la, sendo surpreendido por
confortável abraço.
— É preciso parar de viver pelo que dizem sobre você e começar
a formular seus próprios pareceres, não apenas das situações que o
envolvem, mas também sobre si.
Apoiado em seu seio materno, fui inundado por sentimentos de
amor e carinho de alguém que parecia me conhecer tanto, apesar de
tão pouco tempo. Não consegui conter as lágrimas dolorosas, porém
confortáveis, entregando-me aos cuidados de tal alma iluminada.
— Não se faça pequeno em uma sociedade que teima em não
crescer, não abaixe a cabeça para os que usam sua submissão para

310
se sentirem completos. Pessoas como você são gigantes em terra de
anões. Não se contenha com visões míopes enquanto tem o poder de
mudar o próprio futuro, poder esse que advém de uma imensa força
de vontade e senso de justiça em um mundo que premia os porcos.
Por muitíssimo tempo permanecemos abraçados, trocando
lágrimas e pesares, consolando e sendo consolados, abrindo nossos
corações e expondo-os até a última grama. Suas palavras surtiram o
efeito destrutivo tão necessário em mim.
Para não haver desconfianças, encontrávamo-nos sem uma
regularidade combinada, além de alterarmos nossos caminhos
eventualmente.
Nunca fomos flagrados juntos, por isso pudemos discutir
amplamente sobre diversos assuntos, sendo um deles, o fato de eu
não ver mais motivo para a guerra.
Meu segundo ano na capital mal iniciou e já era muito requisitado
para diversas batalhas devido à minha “vantagem”, porém a ideia de
entrar para o exército, a fim de consertar o que pudesse, o mais
rápido possível, me corroía.
A cada vila destruída, muitas vezes, com minha participação
direta, revelava a meu inocente julgamento a barbaridade cometida
pelo império e por nós, cegos súditos.
Por que era necessário matar inocentes e suas famílias? Por que
era imperioso que impuséssemos nossa presença perante os
desgraçados? Por que o número de escravos aumentava se o rei
havia prometido transformá-los em homens livres?
Mencionei à minha parceira de noites que tendia a abandonar tal
modo de vida, porém não me encontrava completamente
convencido, principalmente porque, se me declarasse inimigo do rei,
não poderia retornar para auxiliá-la.
— Infelizmente concordo com você. Meu marido parece ter sido
possuído, pois não se parece nem um pouco com o rei misericordioso
que era — revelou triste.
— O que eu faço? — segurava o choro.

311
— Eu deveria estar enterrada há muito tempo — falava ao
tomar-me em seus braços. — Graças a você pude ver minhas filhas
crescerem e tornarem-se boas mulheres.
— Mas você está ficando mais fraca a cada dia que passa —
começou a soluçar. — Seu tratamento está expirando cada vez mais
rápido.
Repentinamente me apertou com todas suas forças e começou a
lacrimejar, obrigando-me a imitá-la ao ouvir o que sussurrara em
meu ouvido. Com o coração apertado, o rosto fortemente
avermelhado e soluçando sem parar finalmente aceitei suas
palavras.
— Estou pronta para morrer.
No dia seguinte, fui convocado para a que seria minha última
campanha, uma incursão em um vilarejo rebelde. Nossa missão era
dizimar as famílias dos combatentes que se ausentaram para lutar
contra o rei. Percebi enfim que nada adiantaria permanecer no
exército.
Ao descobrir nossa tarefa, não me pude controlar e, após
conversar com os moradores do vilarejo, ergui uma parede de pedra
enorme por todo o perímetro. Encerrado meu dever retornei o mais
rápido possível à capital, antes que meus feitos fossem relatados.
Constatei a estranheza dos guardiões dos portões ao verem-me
guiando o cavalo sozinho e com tanta pressa. Significava que nosso
exército fora subjugado, total ou parcialmente, algo impossível
considerando o nível dos cavaleiros enviados.
Aproximando-me do castelo tentei contatá-la telepaticamente
para pedir que me encontrasse no morro de sempre, pois algo me
preocupava sobremaneira. Com um pouco de dificuldade conseguiu
responder positivamente ao meu pedido.
Ao encontrarmo-nos compreendi que, fosse por seu estado físico,
fosse pela forte tosse ou pela dificuldade para respirar, o fim
derradeiro se aproximava.
Após a reabastecer com uma nova reserva de ar contei o que
acontecera. Chegamos à conclusão de que, dentro de poucos dias,

312
minha passagem pela capital se encerraria também, então
conversamos para que ambos nos decidíssemos acerca do futuro.
Por três longos dias tracei a trajetória que seguiria para não mais
desvirtuar minhas reais intenções, quando, na manhã do quarto dia,
o exército chegou, após um galope feroz. Estavam esgotados.
Pressentindo ser questão de tempo até que me atribuíssem a
responsabilidade pelos equívocos e desvios morais do maldito
monarca, abandonei minha morada e escondi-me, pretendendo
executar um plano que tivera na noite passada.
Ao confirmar que os guardas haviam chegado ao bairro em que
residia, subi no telhado de minha casa e simulei uma fuga, atraindo-
os até um canto isolado do reino.
Ao encurralarem-me ao pé de um grande muro emitiram fortes
gargalhadas. Esboçando um gesto de adeus concentrei o ar em meus
pés e saltei para longe.
Alcançando o castelo velozmente saltei para dentro de seu
entorno ignorei os guardiões, os quais berraram advertências
enquanto me perseguirem e abri uma porta improvisada em meio às
pedras, os despistando.
Dentro, fiz questão de correr pelos corredores para atrair a maior
quantidade de atenção. Ao dar-me por satisfeito, me dirigi aos
aposentos da rainha, explodi a porta e a substitui por uma parede de
pedra, deixando o panaca do rei desesperado por acreditar que fosse
me vingar.
Encontramo-nos pela última vez, onde utilizei meu curto espaço
de tempo para me despedir pela última vez e arriscar lhe conceder
esferas maiores do que de costume, porém que seriam suficientes
para, no máximo, alguns dias de vida sem tanto sofrer.
— Você verá, ainda conversará normalmente com minhas filhas.
— Já está delirando, Minia? Elas nunca sequer me verão.
— Nunca duvide da ironia da vida, meu filho.

313
Despedi-me lacrimoso, porém sorridente, saindo pelo lado oposto,
sorrateiramente. Me dirigi ao primeiro dos cinco casarões onde
mantinham os escravos enjaulados.
Libertei a todos, e juntando os cinco grupos, instrui que se
dirigissem rapidamente ao portão principal. Chegando lá foram
encurralados pelos lanceiros.
Saltando entre os dois grupos lancei os guardas com o vento e
conjurei um punho de pedra para puxar a alavanca da ponte
levadiça. Ao verem-na aberta, a imensa população de escravos
disparou, esvaziando o local em segundos.
A informação de que um novo rei demônio surgira existia há anos,
porém caíra em esquecimento. A partir de minhas ações entrei
definitivamente no campo de batalha.
Rapidamente conversei com os líderes dos escravos, tinha mais
uma tarefa para cumprir e pedi que me aguardassem escondidos na
floresta vizinha.
Atravessando a cidade com facilidade, pois há muito fora
relegada à própria sorte, não possuindo sequer uma resistência,
alcancei o castelo e, pulando sobre a muralha, amplifiquei minha
voz, alcançando todos os nobres da região.
— Prestem muita atenção, pois lhes darei um último aviso. Não
esperem que seu magnânimo castelo, possa resistir à sucessivos
ataques se não proteger sua cidade.
— A nobreza ignorou o povo tempo demais! Eu voltei para trazer
a libertação! Respeitem-nos e não tentem nos impedir, pois não
desejamos ultrapassar a linha da civilidade.
Após o recado, desapareci junto dos fugitivos, encontramos um
bom lugar para fundar uma aldeia. Auxiliei na construção e
proteção dela, mantendo os olhares curiosos afastados e iniciei
minha jornada ao percebê-los autossuficientes.
Interrompendo sua fala para enxugar as lágrimas originadas
pela lembrança de Minia, percebeu que o observavam ávidos pelo
final da história, até mesmo o orgulhoso monarca, o qual se

314
rendera, apesar de ter tomado a cadeira no extremo oposto ao
grupo, ficando pasmo ao constatar a veracidade do relato.
— Acabou? — perguntou a mais nova ansiosa.
— Você não estava aqui quando nossa mãe morreu? —
questionou objetiva, Milena.
— Claro. Cheguei à cidade disfarçado, o mais rápido possível.
Como percebeu atenção total em si, não pode deixar de sentir o
ímpeto de finalizar a narração. Antes, porém, se mexeu
calmamente na cadeira, a fim de trocar de posição, para que seu
corpo não urrasse.
— Subi no morro em que nos encontrávamos e, quando vi que
fechariam a cova, fiz as flores que consegui reunir dançassem
sobre seu túmulo antes de descansarem consigo.
— Então, aquele lindo espetáculo no funeral de nossa mãe, foi
você que fez? — inquiriram em conjunto, recordando o doloroso
dia e, consequentemente, sensibilizando-se.
Aproveitando o momento, revelou não ser o noivo de sua filha e
sim de outra mulher, causando grande confusão e comprometendo
a integridade da informante. Para encerrar a noite puderam
assistir à dura repreensão do pai pela transmissão da falsa notícia.
Ao acordarem, na manhã seguinte, alertou a amiga acerca da
necessidade de partirem, pois a estranha sensação que sentia não
lhe abandonara, obtendo uma resposta positiva.
Durante o generoso desjejum oferecido anunciou aos familiares
que necessitariam partir brevemente, requerendo que o
transporte outrora utilizado fosse providenciado.
Apesar da presa do amigo cedeu aos pedidos encarecidos e
permaneceram até depois da refeição principal, partindo pouco
após o meio do dia, mesmo com sua insistência.

315
15. Retorno conturbado

A viagem transcorreu plenamente pacata em vários


parâmetros, demonstrando que seu pressentimento não passava
de excesso de preocupação. Tudo estava calmo.
Alcançando o terceiro quinto do caminho, recebeu um chamado
telepático de seu irmão confirmando seus maus presságios.
Abismado o ouviu informar que sentira enorme quantidade de
magia negra se aproximando velozmente.
Sua agitação e a alteração de seu tom vocal foram suficientes
para incutir na acompanhante grande pânico. Rapidamente lhe
alertou que um portal se abriria nas proximidades da academia
revelando um exército das trevas.
— Temos de ir! — encerrou.
Percebendo-a mais apavorada do que antes a segurou firme e,
fixando fundo em seus olhos, a chacoalhou, falando-lhe em
particular. Como em um passe de mágica se transformou,
buscando o oficial do imponentemente aeróstato.
— Volte e traga metade dos cavaleiros e dos grupos de apoio
para a Academia Laetus, imediatamente — utilizou um tom jamais
antes visto.
As palavras afetaram o oficial tanto quanto imaginara, lhe
demonstrando a autoridade e respeito que a garota transmitia,
muito embora fosse abandonar tal pose mais tarde.
— Entendido!
A segurando firme saltou do veículo real e deixou-se sofrer o
efeito da gravidade para chegar ao chão em instantes,
amortecendo a queda com uma potente rajada de ar.
Ao libertá-la recebeu um contato telepático de sua tia.
Desesperada lhe relatou que vários demônios iniciaram uma
ofensiva, causando grande destruição.

316
Indicando que estavam a caminho, içou a companheira
rapidamente e disparou. Reparando em seu espanto a informou
sobre a situação e pediu para que se preparasse.

Alcançando certa distância de seu destino constataram


alarmados, mesmo devido à pouca iluminação característica do
início de noite, a grande quantidade de fumaça a tomar os últimos
raios de sol e lhes impregnar as narinas. Enquanto Marina deu ares
a lamentos de tristeza, esmigalhou os dentes e imprimiu a mais
pura expressão de ódio.
Abandonando a floresta presenciaram um verdadeiro caos.
Poucos pontos da academia se encontravam destruídos, como se
rochas houvessem sido atiradas, bem diferente da cidade
acadêmica que possuía vários focos de incêndio
Seus corações se inundaram de aflição ao apreciarem os corpos
de algumas alunas que jaziam estendidos no chão, completamente
inertes. Por estar acostumado com a visão não se surpreendeu,
mas a amiga se desesperou e se fragilizou imensamente.
A poucos metros do ponto onde se localizavam, à direita da
instituição, enxergaram um grupo de garotas enfrentando doze
demônios alados, semelhantes a um grupo de gárgulas.
Devido a estarem entretidos em se encararem não os
repararam, concedendo oportunidade perfeita para atacar;
sozinho, pois a parceira se encontrava cataléptica.
Ao avançar da portadora do imenso machado, percebeu a
movimentação dos demônios lhe fornecer a oportunidade perfeita.
Rapidamente atingiu dois inimigos com potente rajada congelante,
esmagando seus corpos contra o solo com uma rajada de ar.
Obtendo sua atenção e as indicando que fechassem os olhos,
criou forte foco de luz para iluminar o ambiente e os confundir, a
permitindo saltar e fatiar um demônio com sua brutal arma, sendo
outros três derrotados pelas magas de terra, água, fogo e raio.

317
Os últimos foram presos dentro da área que seu “Aumento da
gravidade” gerou e perfurados por uma dezena de grossas estacas
de pedra. Quis contemplar seus antigos inimigos empalados por
mais tempo, mas o que menos precisavam era de mais terror.
Com o clarão a lhe cegar e os vários sons a lhe perturbarem, a
princesa acordou assustada e, observando a horrível cena, se
aproximou afobada.
— Vocês estão bem, garotas?
— Graças a ele, sim! — a guerreira esbofeteou o orgulho de
Marina.
Admitindo sua culpa percebeu que não era momento de perder
tempo com infantilidades, então a perguntou o que havia
acontecido.
Brevemente lhe explanou que a maioria das colegas se
mantiveram escondidas na academia e, as poucas que reforçaram
as defesas, necessitaram ser divididas para abarcar as três frentes
atacadas.
Rapidamente o garoto a contatou para localizá-la, correndo com
todas suas forças ao descobri-la. A companheira, diferente de si,
admirou o campo de batalha que atravessava; a destruição, as
áreas chamuscadas e as equipes de resgate a recolher os corpos.
Joana se encontrava à frente de três fileiras de dez alunas,
evidentemente exausta por ter de utilizar seu elemento principal,
que fora relegado por anos, para defendê-las.
Após vê-la levantar uma muralha de pedra originou forte círculo
luminoso no céu, os confundindo, em seguida os prendendo com
um furacão e, ao comando da tia, dez magas de fogo dispararam,
fundindo suas magias para formar imenso redemoinho ardente.
Percebendo que enfim estavam em segurança, se permitiu cair
de joelhos, desesperando as estudantes que dependiam
diretamente de sua autoridade psicológica.
Indo em seu auxílio a inferiu demasiadamente instável,
assombrando-se por nunca a ter presenciado em tal postura. Ao
sentir seu toque iniciou uma série de lamúrias.

318
— Não pude defender o fruto de meu árduo trabalho, os
cidadãos de minha cidade, nem minhas estimadas pupilas —
abaixou o olhar. — Como posso me chamar de responsável?
Desejava muito ampará-la neste momento de dor, mas não se
via capaz de alcançá-la, restando apenas se abaixar e tentar
sustentá-la moralmente. Se aproximando com calma e admitindo
posição semelhante, Marina lhe tocou, ganhando sua atenção.
— Seu dever, assim como de sua geração, é nos ensinar e
transmitir sua experiência, cabendo a nós nos proteger, nem que
seja de nós mesmos. Posso dizer que você cumpriu seu papel com
maestria.
— O problema — continuou —, é que nossa geração
internalizou que a nós os céus foram reservados e, já que não
trabalhamos para merecê-los, obrigamos os anjos a nos darem
suas asas, mesmo que caiam, ao invés de aprendermos com eles a
criar nossas bênçãos.
Suas palavras foram tão tocantes que, não só Joana a abraçou e
levantou com um sorriso e as forças renovadas, como se sentiu
mais preparada para o que se seguiria.
Gritando atônita, Lucena deixou o grupo em alta velocidade e se
jogou no amado, abraçando-o tão forte quanto seus soluços.
Acariciando sua cabeça, sentiu o calor de suas lágrimas a indicarem
seu alívio por recobrar suas esperanças.
— Não sabia se sobreviveria. Não sabia se lhe veria novamente
— gaguejava.
— Aguente só mais um pouco, Lu.
Com o apoio recebido largou-o e enxugou seu rosto, dirigindo-
se de volta à sua posição, a fim de animar as colegas. Contente com
o compromisso da parceira, se voltou à tia.
— Como está a situação?
— Nada boa! Mesmo com o aviso não conseguimos fazer muito
— continuou ao vê-lo indicar que sabia sobre — Eles atacaram os
professores de forma absurda e estão barrando-os de virem para
cá, mas, pelo menos, não precisamos dividir mais as garotas.

319
Repentinamente gritou pelos irmãos, repetindo a dose por não
o obedecerem. Ao acercarem-se de si em alta velocidade foram
surpreendidos por um violento tapa.
— O que estavam pensando ao não fazerem nada? — berrou
com selvageria.
— Se fizéssemos isso seríamos descobertos — murmurou
Marcus rispidamente.
— Não me importo! — espumava. — Façam o que for
necessário.
— Abaixe o tom Petrus — implorou a irmã. — Ou quer piorar a
situação?
Observando que algumas estudantes se mostravam
interessadas pela conversa perigosa, Joana tentou acalmar o
sobrinho, porém encontrou resistências em sua postura bestial.
Durante o teatro tragicômico se surpreenderam com o
surgimento de uma voz muito alta e grave que se fez imperiosa
como se falasse através de algum amplificador.
— Como nosso convidado principal chegou, poderemos nos
divertir um pouco.
— O que ele quer dizer com isso? — perguntavam as alunas
tremendo de medo.
Há dois metros à frente do grupo e um acima um enorme portal
se abriu, revelando demônios com aparências humanoides,
grandes asas, pele e carapaças negras, semelhantes a brilhantes
armaduras, por diversas partes do corpo.
Durante sua imponente e demorada descida de apresentação
foram identificados pelo rapaz e seus parentes como sendo os
quatro demônios mais poderosos.
— Diga Petrus, esses não seriam aqueles quatro? — Joana se
impressionou.
— Chame os professores de volta imediatamente e ajude as
alunas a se abrigarem na escola que darei um jeito. Vocês sumam
depressa — a instruiu.

320
Antes de avançarem sobre a primeira barreira do grupo de
resistência apagaram a orbe de luz que incomodava suas visões e
admiraram o cenário por inteiro; o pavor das garotas, suas reações,
suas faces, seus pensamentos e diversas outras peculiaridades.
— Ora, ora, ora. Quem encontramos novamente? — se adiantou
um deles.
— Se não é nosso companheiro de muitas batalhas — comentou
um segundo.
— Quem diria! — comentou um terceiro, derramando seu
evidente melindre. — O tão orgulhoso rei no meio desses malditos
vermes.
Ao tentar retrucar, alegando desconhecê-los, recebeu o grito
furioso de um quarto demônio para que não os dirigisse a palavra.
Prontamente o primeiro a falar os apresentou.
Ele era o líder orgulhoso, Kronos, antecedendo-o se pronunciou
o nervoso Kratos e antes Krest, o ressentido. A seu lado se
encontrava Krant, o invejoso.
Reparando que a vagarosa retirada das colegas era
acompanhada de perto pensou em uma estratégia para atrair suas
atenções, as protegendo e o concedendo terreno limpo para
permitir que Lucer se exaltasse como bem entendesse.
— Bem, agora que sei o nome dos quatro patetas, deixe que eu
me apresente — provocou intensamente. — Meu nome é Petrus, o
humano que os humilhará perante o mudo.
Como presumira sua frase funcionou graciosamente os
incutindo um estado de cegueira devido ao extremo ódio a que se
acometeram. Era chegada a hora de seu desafio.
— Eu não sei o que pretendiam, mas tomarei medidas drásticas
caso não se retirem.
— Vejo que você é bom com as palavras, humano, mas será que
é com os punhos? — provocou o líder, aproximando-se
instantaneamente do desafiante.

321
Por um bom tempo permaneceram trocando faíscas,
encarando-se intensamente. Ao se analisarem o suficiente
cerraram seus pulsos e prepararam-se, porém foram
interrompidos por algo que irrompeu repentinamente com imensa
força e velocidade.
Devido a se encontrarem absorvidos em sua guerra fria
particular perceberam a lança a um palmo de atingir seu alvo.
Saltando para trás agilmente observou pasmo seu oponente
buscar furioso pelo dono da lança enquanto o sangue lhe escorria
por ligeira ferida aberta.
Ao se virar avistou Belatriz sobre o telhado da instituição em
pose imponente. Antes que pudesse chamá-la a viu pousando ao
seu lado, aliviada por constatar que as alunas sobreviventes
estavam protegidas e só restavam os conhecedores de seu segredo.
— Como você ousa começar uma luta com a elite antes que eu
voltasse? — gritou.
— Foi você quem se atrasou.
— Não tive culpa dela me mandar cuidar do setor norte...
Sozinha! — apontou para Joana.
Não estava tão surpreso, pois conhecia sua força e
determinação, mas questionou a sanidade da tia por não sentir
remorso de cometer tal descarado abuso... Ou talvez, não.
— Onde está toda aquela valentia? — gritou Kronos colérico,
tentando ignorar as gargalhadas dos parceiros por ter sido
atingido por uma garota.
— Poderia esperar mais três segundos?
Atingindo o limite de sua curta paciência, investiu velozmente
contra o jovem, carregando um potente soco. Percebendo que seu
alvo se esquivara, emendou um chute em sua algoz.
Mesmo se valendo de diminuta força o golpe a lançou longe,
causando grande preocupação aos aliados que, ao verem-na se
levantar, a interrogaram.
— Não é um simples golpe que me derrubará — sorriu

322
— Queria matar aquela caçadora primeiro, mas sua irmã serve
— urrou Kratos.
Em segundos criou uma esfera de fogo gigantesca e a atirou
contra a caída. Se virando para desviar o ataque não pode se
defender do líder demônio, o vendo segurar seus braços e
sussurrar em seus ouvidos que assistiria incapaz a morte de sua
amiga.
— Não estão esquecendo de que estamos aqui? — Marina e
Joana criaram uma barreira de gelo e de terra.
— Na verdade não — comentou Krest desfazendo as magias em
um estalar de dedos.
Observando apenas o lento caminhar da esfera da morte, não
perceberam Lucena se colocar à frente da amiga, conjurando uma
bola de fogo igualmente enorme.
No começo conseguiu deter o ataque, porém o demônio o
aumentou de tamanho e ardor, empurrando a magia de volta para
sua concorrente e a derrubando.
— Parece que outra mosca queria ser a primeira — Kratos
esboçou um sorriso assassino.
— Seu maldito! — gritou. — Não era para você matar três.
— Calado Krant! — exigiu o líder. — Irá sobrar a princesinha
para você.
— Isso é, se ele conseguir matar a altezinha — provocou Krest,
divertindo a todos.
Desesperado com a dor de sua amada gritou por seus irmãos,
ignorando sua missão de se manterem ocultos por completo dos
demônios e, com isso, se passando por louco.
“Cale a boca e se concentre”, foram as palavras que o fizeram
abrir os olhos. renovado e, com uma sonora negação, empurrou
seu carcereiro para trás com uma energia invisível e recriou a
luminosidade de outrora com o dobro de brilho.
Com rápido movimento de mãos fez uma grande nuvem branca
tapar completamente a visão do entorno da disputa de magias,

323
deixando inimigos e aliados a aguardarem ansiosamente pela
dissipação da névoa para se expressarem.
Ao retornar da visibilidade contemplaram espantados uma
espécie de cristal envolver ambas as bolas de fogo, aparentando
ser um planeta vermelho a orbitar o sol.
— Não sabia que ele podia fazer isso — murmurou Marina à
diretora.
— Você não sabe de muita coisa, princesa.
Virando-se, dirigiu um olhar frio ao oponente alcançando-o
instantaneamente, executando vários socos e chutes carregados
com o vento. Embora fossem defendidos sem um empenho tão
elevado, serviram para o desestabilizar.
— Oh! Seu poder se equipara ao meu, mesmo guardando parte
dele. — Elogiou de maneira duvidosa — não poderia esperar nada
menos de nosso líder.
— E você permanece o mesmo idiota de sempre. Sempre
tentando tomar meu trono.
Permitindo-se abater pela súbita aparição do personagem que
tanto procuravam não teve reação contra um imenso punho de
pedra que surgiu abaixo de si para arremessá-lo.
Atingindo grande altura se viu afligido por inúmeras lâminas de
ar. Ao formar grande espada da escuridão saltou e, instantes após
a última lâmina cumprir sua meta, trespassou a arma por seu alvo,
a desmanchando para juntar as mãos e marretá-lo.
Com a imensa potência imprimida pelo poder do vento, como se
um grande martelo o devolve-se ao solo, sentiu grande falta de ar
ao aterrissar, gerando profunda cratera.
— Você está de volta Lucer! — exclamou, com dificuldade.
— Eu nunca me fui, seu patife — respondeu com a rispidez que
lhe era esperada. — Ou está insinuando que eu deixaria um reles
humano me controlar?
— Então... Por quê? — conseguiu finalmente pronunciar.

324
Descendo lentamente e em silêncio lhe observava com uma
ideia em mente. Este, por sua vez tentava antecipar o que viria do
monarca e porque tanto mistério.
— Eu pretendo montar um exército feminino.
— Por que você precisa fazer isso? — perguntou.
— Se você não sabe, então o problema não está em mim —
lançou-lhe olhar significativo.
Compreendendo seu intuito e até concordando que seria bom
carne fresca para inflamar os ânimos dos camaradas culpou-se
imensamente por seu raciocínio lento.
— Mil perdões, meu rei — começou a levantar-se. — Iremos nos
retirar imediatamente.
— Não, seu idiota! — empurrou-o de volta com o pé. —
Devemos dar-lhes um bom motivo para isso, caso contrário minha
manipulação estará arruinada.
— Então, sua alteza deve me atacar para que possamos recuar
mediante minha contusão.
Chegado o momento que tanto aguardara esboçou um sorriso
tenebroso, o atirando ao céu com novo punho de pedra e
conjurando imenso furacão ao sair de seu raio de ação.
Rapidamente adicionou enorme pilar de fogo e outro de trevas em
seu centro.
Ao fim da demonstração de poder o orgulhoso demônio se
encontrava a se contorcer no chão, ferido e queimado, deixando
seus companheiros estupefatos.
Após rápida discussão criaram um portal no mesmo lugar de
antes e desapareceram apressados, os deixando a admirar a
destruição causada e os ranger de dentes.
Instantes após os professores chegaram exaustos e afobados,
correndo em direção às sobreviventes para auxiliá-las. O intrigante
que, como constatara a diretora, apenas, o grupo que via era muito
pequeno e sabia exatamente o porquê.

325
Como se aguardasse por novo acontecimento o rapaz
permaneceu observando o local por onde os inimigos recuaram,
sem reparar na movimentação típica de fim de batalha.
— Acabou! — a princesa se aproximou e tocou seu ombro. —
Vamos descansar.
— Vá você — suspirou profundamente. — Ainda tenho trabalho
a fazer.
Enquanto a tia o acompanhou para dentro da cidade, os
professores se dividiram, poucos adentrando a academia para
amparar as alunas e a maioria se encaminhado ao árduo trabalho
de salvar os sobreviventes e apagar os incêndios restantes da vila.
— Pelo menos a escola ganhou uma escultura grandiosa —
Vampeto admirava.
— Não seja idiota! — Carla se irritou. — Isso é apenas gelo
muito bem formado.
— Mas não parece uma bela obra do universo?
Com cinco rápidos cortes de água retalhou a obra, não o
permitindo buscar consolo e não desejando que algo simbolizasse
a noite tão fatídica que viveram.
— Pare de enrolar e vamos reerguer a cidade.
Se aproximando do final da noite seis carroças guarnecidas de
soldados, trabalhadores e suprimentos aportaram na cidade,
permitindo que os trabalhadores descansassem.

326
16. Prelúdio da batalha

Ao dia seguinte houve muitas novidades, como a desistência


formal de várias das alunas, a insubordinação e consequente
retirada de várias das professoras, o esvaziamento de boa parte da
cidade acadêmica e vários corpos em suas mãos.
Inegavelmente os cadáveres originaram-se em sua propriedade
e a responsabilidade pelos enterros era sua, porém o infortúnio de
inaugurar um cemitério não faria parte de seu itinerário.
Infelizmente lhe sobrou a tarefa de arcar com as inúmeras críticas.
— Eles entendem que os demônios, que pensavam estarem
extintos nos atacaram?
Fora organizada uma reunião com as professoras restantes, a
diretora, a capitã da guarda acadêmica e Petrus para discutirem os
recentes eventos e o futuro.
— Quem disse que se importam com isso — pigarreou Vampeto.
— São nobres.
Naturalmente sua reclamação gerara concordatas pelos
presentes, porém a diretora cuidou para que a importante reunião
não se tornasse uma conversa de comadres.
— Convoquei essa reunião para discutir a necessidade de as
alunas terem aulas especiais de combate para estarem prontas
caso eles retornem.
Automaticamente várias professoras lembraram que a
instituição se tratava de uma escola normal e não uma academia
militar, portanto não poderiam e nem saberiam ensinar
estratégias de guerra.
— As pessoas que têm algum poder, ignoraram a desgraça de
sermos escolhidas como a primeira defesa da humanidade.
Mostremos que somos mais fortes do que qualquer um imagina e
subjuguemos os demônios — Joana motivou.

327
— Nada disso aconteceria se ele não estivesse aqui — uma delas
exaltou-se.
— Se as quisesse mortas já estariam há várias luas — colocou
simples.
Obviamente se irritaram com seu jeito bronco de falar, podendo
gerar uma confusão muito maior, porém sua espontaneidade
clarificou sua sinceridade, as satisfazendo.
Aproveitando os instantes de pura reflexão, Belatriz resolveu
romper o silêncio forjado pela atitude precipitada para fortalecer
sua imagem e indicá-lo como ideal ao cargo.
— Quem melhor para treinar nossas garotas do que o rei
demônio em pessoa, além dele já ter sido o maior soldado do reino?
Vendo-as concordarem explicou sua ideia. Basicamente
montaria uma única turma e aplicaria as aulas essenciais,
fiscalizando constantemente as evoluções, enquanto as
professoras cuidariam das mais atrasadas e controlariam os
ânimos das demais.
A seleção das candidatas seria através de rigoroso teste que
avaliaria seu nível de poder, suas forças e fraquezas e se teriam o
necessário para resistir aos demônios.
Reunião findada, Joana providenciou para que seu plano fosse
iniciado o mais breve possível, encaminhando as potenciais
candidatas à uma pré-seleção e, após, ao pátio.
Aguardando que se distraírem saltou do telhado, gerando um
forte choque contra o solo, assustando imensamente o grupo e,
consequentemente, perdendo completamente o sentido de ordem
e seriedade que mantinham até o momento.
— Olá, eu sou Petrus, seu instrutor — apresentou-se, embora o
conhecessem. — Bem-vindas ao grande teste para escolher as
guerreiras que irão defender nossa escola.
Respondendo uma pergunta sobre o conteúdo do teste indicou
que seria dividido em três etapas, onde verificaria três principais
aspectos; ataque, defesa e resistência. Caso passassem em alguma
etapa poderiam integrar o grupo para treinamento.

328
— Irei separá-las em duas categorias, sendo ataque e defesa,
então, ao serem aprovadas, dividam-se conforme classificadas.
— Vamos começar com a resistência. Sendo você atacante ou
defensora a resistência é muito importante, embora seja mais
necessária para a vanguarda.
Antes de prosseguir silenciou, tornando o ambiente propício
para suas reflexões, não as entupindo de carga emocional,
causando mais estresse do que o necessário.
— Maldição é uma magia das trevas que, apesar de não causar
danos, interfere diretamente com a estrutura mental, podendo
levar à loucura. Dizem que essa magia possui quatro níveis de
intensidade e é a mais básica entre os demônios — o instrutor
concedeu breve, explicação.
— Por ser a magia mais básica devem ser capazes de suportá-la.
Boa sorte.
Ao encerrar estalou os dedos rapidamente, envolvendo cada
uma das alunas em uma fina fumaça de tom levemente arroxeado.
Era seu primeiro contato com uma maldição.
Com isso começaram a contorcerem em uma silenciosa dor, o
surpreendendo por não serem tão afetadas quanto imaginava, se
livrando em pouquíssimos minutos.
— Vocês foram incríveis, vocês todas, mas essa foi só a primeira.
Rapidamente explanou as próximas duas etapas, iniciando-as
antes que tivessem tempo de prepararem-se, obtendo resultados
mais precisos. Novamente não houve baixas.
A única estranheza foi a escolha de sua amada. Em particular lhe
revelou que não desejava se submeter ao mal anunciado.
Como conhecia seu grande potencial, presumiu que não faria
mal se ficasse de fora dessa etapa. Além disso, seu estado de humor
era algo que lhe afetava diretamente.

329
— Sabia que você seria complacente demais, por isso fui
rigorosa — explicou Joana.
No horário em que as estudantes se colocaram na cama, os
velhos amigos encontraram-se na cobertura da instituição para
conversarem em paz.
— Estou curiosa para saber como se livrou de um verdadeiro
linchamento.
— Por que a pergunta? — gargalhou fortemente.
— Porque não acho que seria livre por tê-las feito sofrer por
nada.
— Disse apenas que foi para descobrir seu nível atual — revelou
após longa pausa.
Por muito permaneceram deitados sob o luar em silêncio, até
que virou para o lado e presenciou o grande sorriso de seu suposto
sobrinho, rindo delicadamente.
— Essas garotas acreditam em qualquer coisa.
Debaixo do céu estrelado concediam um breve descanso para
suas mentes e corações, pois o futuro apresentava-se cada vez mais
exigente para ambos, porém não poderiam se manter aquém do
mundo por tanto. Lamentando, levantou-se calmamente.
— Está na hora de retornar, senão aquela mulher abusada irá
nos pegar.
Vendo-o retirar-se calmamente foi tomada por um mal-estar
por se sentir obrigada a questioná-lo se continuaria com seu plano
detestável. Sem se virar partiu seu coração com uma seca
afirmação, a compelindo a novo inquérito.
— Já contou a ela?
— Isso é assunto meu.
Longe de sua resposta revelar sua amargura ou insensibilidade,
clarificou-lhe os sentimentos da doce criança a travar penosa
guerra contra seu responsável adulto.

330
Quando traçou seus esboços futuros olvidou muitas variáveis
por puro desconhecimento. Conseguiria abandonar o amor que
tanto lutou para encontrar?

No dia seguinte, encontrava dificuldades para despertar seu


amado. Em resposta às suas insistentes tentativas, recebia simples
monossílabos em resposta.
— Por que está me chamando tão cedo? — resmungou
finalmente.
— Porque está na hora da sua aula, professor.
Levantando-se subitamente questionou-a, pois pensava ter dito
que a aula seria mais tarde, recebendo a grandiosa informação de
que a diretora alertou que, visando o melhor treinamento da
atenção, deveriam comparecer antes do sol nascer. “Maldita”.
De longe observou suas aprendizes dispersas, conversando
entre si, assumindo seus postos ao repararem-no. Sem enrolação
informou que tratariam sobre o inimigo.
— Qual é a coisa mais importante em uma guerra?
— Soldados bem treinados? — disseram algumas.
— Informação! — gritou Belatriz, como se integrasse um grupo
militar.
— Exato. Do que adianta possuirmos guerreiros formidáveis se
não soubermos o que nos aguarda e como derrotar o inimigo?
Contente em ter uma grande guerreira no grupo para transmitir
sua experiência as concedeu um tempo para refletirem sobre e
abandonarem suas ideias tradicionalistas.
— Não trataremos a informação por si só, mas sim durante o
combate. Sabem o porquê?
— Porque a informação é algo imaterial, obtido através de
observação ou qualquer outro meio de comunicação, não podendo

331
ser utilizada para o combate físico, então temos de transformá-la
para utilizá-la de maneira eficiente — colocou Mio.
— Ótimo. Agora quem poderia traduzir? — a irritou
sobremaneira.
— A informação é apenas um conhecimento, sendo necessário
aprimorar nossas habilidades físicas com base nas informações
sobre o inimigo para lutarmos eficientemente — exemplificou
Belatriz.
— Exatamente como ela disse — exclamou impressionado.
Visto que ninguém se pronunciara, comentou novamente sobre
a maldição dos demônios, porém incluindo algumas informações
no meio da explicação para ver se estavam atentas e conseguiriam
identificar a diferença das informações.
Mencionou que os demônios de alto nível possuíam a magia
como uma aura, afetando a todos em um pequeno raio, além de que
a magia induz à desistência do combate, evocando seus maiores
temores, a descrença em si e debochando de seus sentimentos.
Por fim pontuou que os efeitos seriam mais variados e a
tentação maior a cada nível que se passasse, portanto precisariam
se manter firmes em suas convicções.
Observando que apenas metade da turma se atentara para o que
desejava imaginou que seria mais rápido caso prosseguisse direto,
então infligiu uma maldição de grau dois.
Esperando uma demora muito maior do que da primeira,
deitou-se, sendo pego por uma sensacional surpresa ao observar
que Mio havia quebrado as correntes de seu encanto mais rápido
ainda, ignorando completamente o aumento significativo da
dificuldade.
— Incrível, você passou pelo segundo estágio com extrema
facilidade.
— Isso é porque minha mente controla completamente meu
corpo.

332
Após vencerem a maldição com sucesso, as liberou para que
descansassem antes da próxima etapa do treinamento, que
consistia em aperfeiçoar suas habilidades. Nessa etapa as
professoras o auxiliariam no ensino das diversas magias
elementais.
Por fim a educação física encerrou o dia, como era de costume,
pois o aprimoramento físico era essencial para a melhor
estabilidade e controle mágico.

No dia seguinte, a diretora seguiu ao local onde o grupo de


Petrus treinava e o chamou, insistindo que o assunto era de
extrema urgência.
Partindo rapidamente, sem conceder detalhes acabou por
irritar as três que acreditavam que deveriam saber de sua vida,
portanto, em máximo silêncio, trataram de segui-lo.
Devido ao grupo encontrar-se treinando na parte de trás da
instituição o trabalho das perseguidoras de manterem-se ocultas
mostrou ser um desafio intenso.
Vendo-os ultrapassarem a sala da diretora as duas novatas nas
artes furtivas acabaram por entregar sua localização, não obstante
a rápida ação de Belatriz.
— Por que vocês estão nos seguindo? — inquiriu a diretora.
— Queríamos saber o que estava acontecendo — revelaram-se.
— Eu fui até lá para chamar o Petrus. Que pretensão é essa de
acreditar que vocês têm que saber de tudo? — colocou em um
único fôlego. — Voltem imediatamente.
— Não façam mais isso. Já fui perseguido demais e não quero
reviver tais sentimentos.
Estavam prontas a partirem em alta velocidade quando a carga
emocional do rapaz comprimiu seus corações, as congelando por
instantes. As vendo partir continuaram.

333
Em determinado momento conferiu a situação em sua
retaguarda e, ao constatar que foram esquecidas, viu-se surpresa
com a negação das amigas para seu comando.
Rapidamente argumentou que não poderiam existir segredos
para a noiva e que suas amigas deveriam apoiá-la, porém apenas a
princesa se dispôs a seguir-lhe.
— Vocês podem ir, mas eu não cometerei tamanha
insubordinação — despediu-se.
Se dirigiram apressadas até enxergarem o portão entreaberto.
Aproximando-se com muita calma buscaram os dois,
tranquilizando-se ao verem-nos de costas.
Do lado de fora vislumbraram uma carruagem fechada, simples
e preta. Ao seu lado encontrava-se um cocheiro muito bem-vestido
e uma nobre de aparência hipnotizadora.
Era levemente menor que Marina, possuía um razoável peitoral,
fartos seios e lisa pele morena clara, perfeita para destacar seus
belos olhos cor de mel e seu longo, negro e brilhante cabelo.
Trajava um vestido curto, amarelo, fenda na saia, tomara que
caia, manga longa, decote princesa, leve drapeado no busto e couro
texturizado, marrom amarelado, o contornando e descendo, no
centro do corpo, até o cinto, feito do mesmo couro. Se valia de
sapatilhas douradas e dois braceletes, brincos e gargantilha de
ouro.
— É você que se chama Petrus?
Surpreso por seu nome ter sido pronunciando permaneceu em
silencio, imaginando de onde lhe conhecia. Desesperada com sua
demora adiantou-se para acordá-lo.
— Cumprimente-a seu paspalho — sussurrou.
— Calma né.
Se dirigindo à recém-chegada admirou um largo sorriso em seus
lábios, ficando alegre por deduzir que seria uma amiga do passado.
O problema é que nunca teve amigos

334
Estendendo a mão para saudá-la e pronunciando um comum
cumprimento foi surpreendido pelo repentino avanço da moça,
aplicando-lhe um beijo.
Um beijo profundo, demorado, libertador e recheado de
sentimentos, principalmente para ela, pois o rapaz não sabia
exatamente o que lhe atingia, apesar de ser forte.
Claro que adquiriu um ódio mortal nos primeiros dois segundos
assistidos, desejando matá-la após o longo minuto transcorrido.
Por sorte insistira em levar Marina.
— Parece que, minha senhora, estava com saudades de seu
noivo — comentou seu servo.
A última palavra a ser pronunciada fora suficiente para atingir
com força sua tia e as espiãs, causando a explosão de suas
curiosidades. Alheios ao mundo permaneciam colados, encarando-
se como se realmente fossem amantes.
Lutava contra sua memória para recuperar suas mais profundas
recordações “Eu deveria saber quem é ela?”. “Porque não consigo
me acalmar mesmo sem nada lembrar?”.
— Já se esqueceu de quatro anos atrás?
Finalmente conseguira. Finalmente evocara sua memória
integralmente, mesmo que, inocentemente, imaginasse tê-la
atirado no limbo do esquecimento eterno.
— Poderia ser.... Ca... — emudeceu-se. — Caroline?
— Olá querido! — estampando grandioso e resplandecente
sorriso.
Instantaneamente sentiu os músculos de suas pernas
amolecerem, o derrubando de joelhos. Desesperado por conforto e
por desejar que não desaparecesse de sua vida novamente a
abraçou com força, sentindo-a retribuir-lhe o gesto sem hesitação.
Seus olhos verteram lágrimas e suas narinas entupiram-se em
segundos, o forçando a anunciar em alto tom seus desajeitados
goles de ar. Misturado às ocasionais repetições parciais de seu
nome, pode-se ouvir um tímido e reduzido choramingo.

335
— Vejo que temos muito o que conversar.
O choque de verem o homem que se mostrava sempre tão
impassível e imerso em sua própria realidade tornar ao mundo
humano e exprimir reações naturais de um nativo foi tamanho que
tentaram negar a própria existência do fato para preservar sua
fantasia.
Para as espreitadoras fora a gota d’água, retirando-se com presa
para qualquer dormitório que conseguissem irromper.
Após a cena, a qual perdurou por minutos inalterada,
recolheram-se ao quarto da recém-chegada e permaneceram
conversando por horas, sem descanso, despedindo-se, a muito
custo, apenas pelo horário avançado. Ao chegar percebeu que
dormiria só.
Durante sua longa ausência, Marina se manteve consolando a
amiga em seu quarto, observando que, surpreendentemente,
embora sua decepção e alta carga emocional e hormonal, não lhe
dispendeu sequer um gotejo de lágrimas.

No dia seguinte acordou com imensa moleza e demorou muito


para se dirigir ao serviço. Por estar distraído, pensando em como
estava de ressaca sem ter bebido uma gota, percebeu que o
alvoroço do grupo era devido ao abeirar-se da nova estudante.
— Você chegou cedo. — chamou sua atenção.
— Você que chegou tarde! — retrucou.
A visão do instrutor rindo junto da novata antes de abraçá-la
causou grande estranhamento nas presentes, inclusive dirigindo
os olhares para sua namorada oficial.
— Essa é a nossa nova inimiga Bela — informou a traída.
— Certo! — indicou rapidamente.

336
Rapidamente e sem muita pompa apresentou a nova aluna e sua
nova colega de combate, mas nem necessitaria, afinal já sabiam até
que manipulava o divino.
— Tenho certeza de que juntas venceremos essa situação
complicada.
Durante sua caminhada ao final do grupo, pois desejava
demonstrar respeito pelas veteranas, foi parada por Belatriz que
lhe informou, rudemente, que não foi cortês.
— Perdoe-me capitã, mas não tenho experiência com
apresentações. Pensei em falar mais, entretanto poderia ser
interpretado como um discurso e as ofender, então optei por algo
mais rápido. Conversarei com as garotas em particular e
consertarei meu erro.
— Não se preocupe tanto — desculpou-se constrangida. — Seja
muito bem-vinda.
— Agradeço capitã.
Vendo como se afastava libertou o sorriso que mantinha em
cativeiro, exibindo à amiga que havia perdido uma importante
aliada. Nervosa com a astúcia da adversaria redarguiu.
— Se vendeu por uma palavra, Bela?
— Um pouco de respeito é muito bem-vindo.
— Pensei que fosse mais forte.
— Ahh Lucena, deixe de tanto mau humor.
Sem que pudesse se atentar ao crescente ódio da amada
continuava a discursar tranquilamente. Remoía os acontecimentos
anteriores quando ouviu ser chamada.
— E agora uma pequena demonstração de habilidades com uma
das melhores atacantes.
O grandioso elogio nem sequer arranhou a névoa de sua ira,
apesar de causar-lhe um sorriso, por poder penalizá-lo pelo que a
obrigou a suportar, mesmo que não fosse seu plano.

337
Graças a isso puderam apreciar uma luta genial, onde Petrus,
viu-se forçado a atacar, pois não aguentava mais apenas se
defender dos rápidos e poderosos golpes.
Muitas vezes fora surpreendido por sua grande agilidade,
seguida de poderosos ataques, não realizando nenhum movimento
desnecessário, levando-o a gastar muita mana.
Não demorou para compreender que havia algo errado,
atirando-se na direção da oponente e abraçando-a, para conter seu
ímpeto assassino.
Missão concluída, dispensou a turma para o intervalo,
pontuando que o nível demonstrado seria seu objetivo.
— Não sei o que há com você, mas peço que pare — murmurou
aos seus ouvidos.
Ao fim dessas palavras, para si inofensivas, saiu em disparada,
sem rumo definido, deixando as amigas imensamente
preocupadas e, por isso, lhes seguindo apressadas.
Enfim a encontraram em um canto escuro da sala de
conferências, lamentando-se sobre suas próprias atitudes
errôneas e precipitadas. Como o julgara culpado antes de ouvi-lo?
Com o tempo conseguiram convencerem-na de que seu
companheiro não iria se importar com o ocorrido, pelo contrário,
se preocuparia quando dissesse o motivo de seu descontrole.
Insensível, porém inspirada, Belatriz decidiu ser mais incisiva.
— Seja compreensiva, pois parece que ela foi uma confidente
muito importante para ele. No passado, onde ele era diferente.
Mais tranquila, embora ligeiramente assustada, enxugou suas
lágrimas e esperou a vermelhidão de seu rosto se esvair para se
dirigir de volta à rotina atual.
Durante o restante do tempo esforçou-se para não exprimir
uma antipatia exacerbada pela dita cuja e para sinalizar para o
amado que não havia nada com que se preocupar.

338
Encerrada a aula grudou em seu braço e o conduziu
amorosamente até seu lar. Vendo-o trancar a porta respirou
profundamente e concentrou-se em seu objetivo.
— Petrus me desculpe. Hoje eu te causei problemas.
— Imagina. Você tem todo o direito de não estar alegre e
sorridente todos os dias.
— Deixe-me pedir desculpas! — irritou-se. — Ver aquela sua
cena me deixou muito irritada e acabei descontando em você.
Perdoe-me.
Imediatamente vislumbrou a cena a que se referia, lamentando-
se imensamente por ter que revelar a verdade e, possivelmente,
despedir-se da amada no pior momento possível.
— Vamos começar da forma certa. Quem é aquela mulher, Amor.
Apesar de ser permitido expor mais uma parte de seu passado,
deixando de sustentar o peso de escondê-lo, não desejava que isso
ocorresse em um momento tão crítico. Suspirando
profundamente, chateado, a conduziu à uma cadeira e começou a
recordar.
“Logo após minha saída da capital real, nos primeiros dias de meu
décimo quarto aniversário, cheguei a uma pequena vila, com vastas
áreas de plantio e grande diversidade, porém mergulhada em uma
alta taxa de criminalidade.”
“Os soldados que eram responsáveis pela segurança da cidade,
sendo apenas os da coroa, eram incrivelmente corruptos, cobrando
taxas dos bandidos para não os prender e taxas maiores ainda dos
moradores para mantê-los vivos.”
“Por causa dessa comunhão entre os criminosos, o único juiz da
vila também havia entrado no sistema de corrupção, o qual continha
os maiores comerciantes da região.”
“Devido à situação a vida dos habitantes era caótica. A única
instituição que se mantinha limpa era a prefeitura, que, juntamente
com o mercado público da cidade, eram administrados pelo chefe da
vila, Senhor Jericó.”

339
“Moreno, cabelo preto, curto e liso, olhos pretos, corpo normal,
nem alto e nem baixo. Sempre usava uma camisa quadriculada e
calça marrom.”
“Um homem que não se destacava por seu físico, mas pela
persistência no bem e pela vontade de trabalhar.”
“Seu passatempo predileto era acordar cedo e dirigir-se ao seu
escritório para trabalhar duro na companhia de sua querida filha,
Caroline.”
“Caroline era uma bela e comportada garota de quatorze anos
que, apesar da idade e de ter perdido a mãe muito cedo, sempre
colaborou com seu pai e não demonstrava nenhum tipo de revolta,
além de outras típicas características.”
“Nunca imaginei que o buraco fosse tão fundo em uma vila tão
pequena. Diria ao único interessado que estava decidido a ajudar seu
povo.”
“Quando eu apareci na casa do prefeito ele logo me ofereceu
estadia. Por vários dias discutimos nosso planejamento mestre, além
dos mínimos detalhes.”
“Apesar do trabalho que necessitava ser feito eu era, perante a
visão da garota, um estranho que chegara para roubar a atenção de
seu amado pai, por isso ela me repudiou e fez o inferno para me
atingir, no primeiro momento.”
“Sem demoras colocamos em prática o combinado, dividindo os
trabalhos entre eu, que fiquei com a parte física e os dois que ficaram
com a gestão e a política”.
“Rapidamente aniquilei a presença da guarda real enquanto
continuaram com o trabalho costumeiro e formularam uma petição
para a criação de uma guarda própria.”
“Ao final dos expedientes nos reuníamos em sua casa para
apresentarmos, durante o jantar, nossa evolução, problemas atuais
e/ou futuros e demais tópicos pertinentes, algo que incomodou em
demasia a garota, pois esse era o horário que mais conversavam.”
“Percebendo seu descontentamento conversei com Jericó e nossa
reunião foi alterada para após a ceia, porém as palavras não

340
surgiram, devido à mudança brusca da pauta. Pelo menos até meu
toque sutil.”
— O que foi que você fez?
— Sabendo que a comida era feita por ela eu somente disse que
estava boa.
— Bem pensado.
“Tornamo-nos bons amigos e, por gostar de receber elogios, ela
passou a preparar meu almoço com empenho, melhorando
drasticamente a eficiência em meu trabalho, pois não precisava mais
perseguir meu almoço. Sentia-me muito feliz”.
Por breves instantes deleitou-se com a visão do passado,
imprimindo um olhar distante e vago que impressionou a
namorada antes de balançar a cabeça para afugentá-lo.
“Minha próxima tarefa fora treinar os novos membros da guarda,
pois, junto com um miserável professor, era o único com alguma
qualificação para tal.”
“Também estava encarregado da fazer a ronda da cidade até que
houvesse guardas treinados, a fim de garantir a segurança da
população, enquanto Jericó cuidava de reascender a economia. Por
isso acabei estendendo meus turnos de trabalho.”
“Houve um tempo em que eu deixava a reunião após o jantar e
voltava tarde da noite, isso quando não acabava por varar a noite,
devido a alguns bandidos persistentes. Como consequência dessa
mudança, Caroline começou a ser mais gentil e carinhosa comigo.”
“Retornando, ao final de minha cansativa rotina, a encontrei no
íngreme telhado, próxima à janela de seu quarto, me chamando para
seu lado por um momento. Sentando-me ao seu lado contemplei seu
olhar alterar-se significativamente.”
— Te admiro muito por estar ajudando tanto o povo da vila,
mesmo sendo um estrangeiro.
“Por um bom tempo fiquei em pleno silêncio, pois não esperava
por sua revelação, além de ter gostado muito de ouvir suas palavras
e de também pretender me revelar a ela.”

341
— Não me lembro de meus pais. De nada sobre eles.
“Imediatamente me dirigiu um olhar assustado, porém sua
decisão por manter sua atenção total, em minhas palavras, era tão
forte quanto a minha de prosseguir.”
— Como assim?
— Nunca tive um lar e, os poucos lugares em que me senti melhor,
me expulsaram.
— Por que eles te expulsaram?
— Isso é algo que eu contei a seu pai, porém ele escolheu te
manter longe de problemas e permaneceu em silêncio, mas você
merece saber e quero que saiba.
“Quando tomou ciência de minha verdadeira identidade silenciou,
parecendo que desfalecera. Torci ardentemente para que estivesse
apenas ruminando as informações.”
— Esse foi o único lugar que, verdadeiramente, me aceitou —
prosseguiu apesar de seu silêncio. — Então irei trabalhar duro pelo
meu lar.
“Contente por lhe esclarecer a verdade e verificar que eu era
realmente tão bom quanto imaginava, agradeceu minha sinceridade
antes de retornar para seu quarto.”
“Em poucos dias nos tornamos muito próximos e, em uma noite de
lua cheia, cessamos nossas defesas do corpo e da alma e nos
aproximamos, vagarosamente, com um objetivo em comum.
Finalmente consumamos nosso primeiro beijo.”
“Desse dia em diante estava habilitado a gritar aos quatro ventos
que tinha uma namorada, me alegrando imensuravelmente por isso.
Antes que pudéssemos perceber, o que começara como sendo um
inocente primeiro namoro, evoluiu tão rapidamente que, em poucos
meses, estávamos dormindo juntos.”
“Quando decidimos contar sobre nosso amor para seu pai ele
apenas riu, dizendo que havia previsto nossa união há muito e que
eu seria um excelente genro.”

342
“Com os guardas da cidade razoavelmente treinados, as rondas
diurnas e noturnas poderiam ser realizadas naturalmente, restando
prepará-los para futuros combates.”
“Apesar de minhas funções principais terem sido extintas
permaneci ocupado, para meu deleite. Auxiliar no plantio dos
campos, manter a ordem no mercado, garantir o fluxo das pessoas e
outras tarefas pertinentes ao apoio à economia.”
“Tais dias tranquilos irradiavam tanta felicidade que marcamos
de completar o ritual de nosso amor nos casando e realizando uma
festa para a cidade inteira deleitasse-se.”
“Mas, como sempre, quando uma calmaria permanece por muito
tempo, a tempestade que se segue é proporcionalmente forte e
abrasadora.”
“Foi um presente de meu velho amigo, o rei. Ele enviou uma tropa
enorme para a cidade à minha procura, onde se encontravam
familiares de nobres que expulsei.”
“Os soldados de ambos os lados se odiavam tanto que, ao verem-
se frente a frente, iniciaram a troca de carícias, entrando em um
estado que, bastava uma faísca para que a situação explodisse,
podendo causar a destruição da cidade.”
“Jericó não sabia mais o que fazer, pois os soldados pouco
aceitavam suas decisões, o deixando sem possibilidades, além de
rodear a mesa de sua casa.”
“Em certo momento minha mente foi assaltada pela solução mais
óbvia o possível, porém que ninguém queria admitir, principalmente
eu.”
“Rapidamente transmiti minha decisão de deixar a cidade,
ouvindo demonstrações exasperadas de discordância de minha nova
família. Embora triste fiquei feliz.”
“Por muito permaneceram a gritar desesperadamente motivos
repetidos, acometendo-se por um dilúvio de lágrimas ao perceberem
a razão em minhas palavras.”

343
“Percebendo que meus olhos começavam a marejar, mesmo
perante minha reprovação, ditei os próximos passos que Jericó
deveria seguir para reaver a paz dos cidadãos.”
“Finalmente percebendo o extremo esforço que fazia, me
sacrificando a favor do que construímos juntos, seus protestos
calaram-se em respeito à minha decisão.”
“O mesmo não poderia ser dito de Carol, pois esteve a
choramingar minha partida, apelando para o lado emocional de
nossa relação, durante toda minha permanência.”
“Não estava pronta para terminar nossa história, lançando-se à
luta com qualquer arma que tivesse à disposição para não perder o
sentimento especial que tínhamos.”
“Chegando à porta Jericó apareceu com uma quantidade
assustadora de comida, embalada em uma grande sacola. Estava
incrivelmente triste, mas se mantinha sóbrio.”
“Ao sair assumi direção oposta aos guardas e não olhei para trás,
por isso nada mais soube sobre o que aconteceu naquele dia, porém
sei que Jericó seguiu o combinado.”
“Já que fui taxado como criminoso, ou pior, não pude retornar à
cidade. Após o ocorrido me ocupei pesadamente, esquecendo por
anos de visitá-los.”
Conforme a história se desenrolava empalidecia cada vez mais
por ouvir tais impressionantes fatos. No final a pobre moça estava
tão atordoada que não sabia qual reação adotar, restando apenas
se isolar para refletir sobre.
Não desejando impor que ela se ausentasse de sua própria
residência fez questão de retirar-se, alertando que deveria
convocá-lo quando estivesse pronta.
Se vendo só, se sentou em uma poltrona e lá permaneceu por
muito, quase se esquecendo de respirar. Seu olhar se manteve
distante e desfocado, durante todas as horas que se esvaíram sem
que percebesse, tornando-a a perfeita refém de si mesma.

344
Repentinamente acordara com o som da porta. Reconhecendo o
ambiente aos poucos, lembrou-se dos acontecimentos anteriores e
que havia dormido de alguma forma.
— Lucena venha. Vamos nos atrasar.
Completamente desorientada e embriagada conseguiu, após
titânico esforço, alcançar a maçaneta. Em tantos meses de
instrução nunca se atentou em como era dura e pesada.
— Oi Ma.
— Deixe-me adivinhar! Você chegou, desculpou-se e foram
amar-se — animou-se.
Para sua surpresa, ao entrar, reparou que apenas a amiga se
achava em estado deplorável. “Parece que até os brutos podem ser
delicados nessas horas”, pensou.
Para ajudá-la a recuperar-se da ressaca apressou-se à cozinha e
coou um café fortíssimo, divertindo-se com sua reação ao
bebericá-lo. Parecia que não apreciava a bebida.
— Na verdade ele se expulsou de casa — tentava retirar o sabor
amargo da boca.
Observando seu olhar de extrema incompreensão dispôs-se a,
prontamente, relatá-la o ocorrido. De forma resumida e pacífica
expôs o que tanto lhe afetou, deixando-a igualmente perplexa com
o triste passado do rapaz.
— Por que você o deixou ir? — gritou eufórica. — Não pode
culpá-lo pelo passado.
— E tem mais — demonstrou-se envergonhada. — Me esqueci
de chamá-lo de volta.
Por um momento a observou silenciosamente, pensando no que
lhe contara e admirando a confusão, e consequente inanição,
provocada por seu sangue quente.
— Corra atrás dele, então — incentivou.
— E com que cara vou enfrentá-lo?

345
— Prefere não ter de enfrentá-lo mais?
Compreendendo a indireta levantou-se em um salto e, com o
sangue fervendo, aprontou-se velozmente, partindo com a amiga à
caça em tempo recorde.

Ao abeirarem o quarto da novata recuaram assustadas com o


violento movimento da porta. Sem que ninguém aparecesse
começaram a ouvir claramente uma discussão.
— Vamos logo Carol, estamos atrasados.
— Quem mandou você dormir até tarde? Agora tenho que
arrumar minha cama.
Tais palavras se chocaram em cheio contra as amigas como uma
lufada de ventos traiçoeiros. Confusas por não estarem preparadas,
não tinham certeza do que pensar.
— Mas você está demorando demais.
— Ontem você estava impossível! Entrou de uma vez, foi rude...
— foi interrompida.
— Isso pode até ser verdade, mas depois eu pedi desculpas e fui
mais gentil.
— Além disso você se remexeu e gemeu demais, não me deixou
dormir a noite inteira. Você acabou comigo! Apesar de tudo fiquei
satisfeita, pois fazia muito tempo que não fazíamos isso.
“O que fora aquela conversa?”, era a pergunta que se faziam. Por
mais que não quisessem admitir parecia ser verdade que o pior
acontecera.
Finalmente saindo as percebeu, estáticas e incrivelmente
pálidas. Após admirá-las por infinitos instantes compreendeu o
ocorrido, questionando na cara de pau se o ouviram.

346
Ao ver a amiga desaparecer do local em frações de segundos
abordou o asqueroso homem com um forte tapa na cara,
pontuando seus infindáveis defeitos.
— Isso não é o que vocês estão pensando.
— Como não é, seu traste! — aplicou-lhe outro tapa.
Percebendo a confusão na porta de seu dormitório apressou-se
a verificar o que ocorria. Chegando a tempo de vê-lo receber outro
bofetão, indignou-se.
— Se bater de novo no meu homem conhecerá o significado da
palavra “dor”.
— Cale-se meretriz. Como você pôde correr para essa... Na
primeira oportunidade?
— Se você parasse de latir, como a cadela que é, talvez ele
conseguisse te esclarecer.
Admitindo que, talvez, tivesse razão deixou que confessasse
perante seu olhar incriminador, cruzando os braços para que não
investisse contra ele de ímpeto.
Rapidamente a revelou a verdade, a imprimindo uma faceta de
extremo espanto por perceber que a situação não era meramente
parecida com a imaginada, a substituindo por igualmente potente
expressão de horror ao constatar a poluição de suas mentes.
Por fim ambos os sumariamente ofendidos foram agraciados
com um caloroso e envergonhado pedido de desculpas. Sem
paciência para formalidades despediu-se.
— Não vai conversar com ela? Você não se preocupa com ela?
— Claro que sim, porém hoje é um dia especial. Tenho que
caprichar nas instruções.
— Especial? — questionou curiosa. — Especial por quê?
— Não seja ansiosa princesa. Por enquanto fale com ela.
— Certo.

347
Rastreou sua presença até encontrá-la à beira do lago onde
conheceu Petrus. De tão absolta que se achava sequer percebeu a
aproximação ruidosa da amiga.
— Por que você veio para cá?
Em uma fração de segundos, se sentou ao lado da amiga e, se
contorcendo, a abraçou as costas, prezando por momentâneo
silêncio.
— Você não pode ficar assim a cada vez que encontrar um
cascalho no caminho.
— Você ouviu a conversa deles? — questionou entre soluços.
— Eu estava lá — realizou pequena pausa. — Mas você não pode
se deixar iludir.
Contemplando-a exprimir enorme interrogação, cessando seu
pranto momentaneamente, preparou-se para repassar a estranha
explicação que lhe fora transmitida.
— Por ele dormir até tarde ela teve de preparar tudo sozinha,
deixando sua cama de lado.
— Quando ele chegou ele disse qualquer coisa e, ao convidá-lo
ele irrompeu no dormitório desajeitado. Por isso o rude.
— Depois ele pediu desculpas, a cumprimentou, arrumou seu
canto e tudo o mais.
— Por fim ele se remexeu e gemeu porque dormiu muito mal,
provavelmente preocupado com sua aprovação — cutucou a
amiga. — E, apesar de não ter sido uma noite muito boa, ela ficou
satisfeita, pois fazia muito tempo que não ficavam debaixo do
mesmo teto.
Não conseguindo acreditar na mirabolante história, a
questionando sobre o motivo de não procurar outra, como a
Belatriz, recebendo como resposta uma face irônica.
— Verdade, um deles poderia perder a vida antes do alvorecer.

348
Muitos risos antecederam sua rápida caminhada até o local do
treinamento, recompondo o grupo de fininho, o felicitando
imensamente ao descobri-las.

Terminada a primeira metade do treino apressou-se a acercar


da amada, surpreendendo-se por sua boa vontade em lhe atender
ao chamado e sua expressão leve.
— Eu queria me desculpar, Lu.
— Sobre o que? — fez-se de inocente.
— Sobre hoje mais cedo.
Como se nada soubesse permaneceu calada, estampando uma
face angelical, desestabilizando o rapaz. Sem perceber começou a
gaguejar e confundir-se.
Animada com os tropeços infantis que cometia ao tentar
formular uma frase, o que lhe soava, na determinada situação,
como algo fofo, começou a rir delicadamente.
— Eu acredito em você. Se você diz que nada aconteceu, então
nada aconteceu.
Seu coração transbordou de felicidade por presenciar a maior e
melhor mudança que sua sã consciência poderia imaginar.
Aliviado, comentou baixinho sobre a presente noite.
Como presumira sua surpresa, e sucessiva alegria foram
imensos, abrindo enorme sorriso contaminante e afastando
parcialmente seu leve tom sepulcral.

Após o findar das atividades trancou-se no banheiro do quarto,


ansiando por afastar as forças que o compeliam a um destino
diferente do que há muito planejara. Exibia uma faceta sombria,
nunca contemplada, refletindo seu temor com o futuro.

349
Se trocando rapidamente e dirigindo-se à mesa, sentiu seus
olhos dançarem ao deslumbrar uma refeição bastante atípica.
Após deixá-lo saborear a refeição por meros segundos, seu
entusiasmo não mais conseguiu se segurar, o forçando a abrir um
sorriso malicioso e fixar-lhe o olhar.
— Não prefere deixar a surpresa para daqui a pouco?
Em um piscar de olhos encerrou seu jantar e iniciou a
arrumação da casa para antes de adormecer, deixando poucas
tarefas, intencionalmente para trás, a fim de banhar-se e trocar
antes que o parceiro alcançasse seu ninho do amor.
Pasmo de surpresa a viu deitada, somente de camisola, de uma
forma a mostrar-lhe seus melhores atributos. Gradualmente
sentiu, desesperado, seu controle se rompendo.
— Assim você dificulta minha partida.
De tão súbito que fora a levou a desmoronar seu apoio,
afundando-se na cama e em um profundo desespero. Ao se
recuperar minimamente ergueu-se em um salto.
— O que você está dizendo
Sentindo seus olhos começarem a marejar colocou-se em pleno
silêncio, meditando rapidamente para conseguir suportar um dos
piores momentos de sua vida.
— Na verdade essa é a surpresa de que estava falando.
— Eu pensei que seria algo emocionante e você me vem com
essas bobeiras.
Após sua frase de negação, vestiu um roupão que havia
pendurado na cabeceira da cama, o assistindo tomar o caminho da
varanda, indiferente.
— Eu dei tal insinuação às minhas palavras justamente para
você não fazer um escândalo.
Tentando impedi-lo com a tática de uma criança o apresentou
suas costas, simulando-se emburrada. O que não percebeu é que
apenas o deixou mais melancólico.

350
— Hoje é o dia em que partirei para terminar meu plano e
pensei que poderia, pelo menos, contar para ti, aliviando assim um
pouco desse peso que permanece em minha cabeça.
Percebendo que de nada adiantaria continuar com sua postura
de recusa, resolveu conversar normalmente para compreender
seu lado e tentar recuperá-lo.
— Mas, por que você precisa ir?
— Você sabe o porquê.
— Por causa de pessoas que nunca te aceitaram? — irritou-se.
— Por que você insiste em proteger quem te renega?
— Porque seria extremamente egoísta se simplesmente
renegasse quem não me agrada.
Sentiu-se fortemente tocada, quantificando a dignidade que o
interlocutor possuía, justamente o que mais a atraía. Embora assim
se sentisse não poderia se deixar abater.
— Como você pode dizer isso?
— Porque é o certo — sorriu levemente.
Com essa última tentativa de fazê-lo recuar, destruída, decidiu
encerrar suas tentativas para abraçá-lo. No auge de suas emoções
formulou uma última questão avassaladora.
— Você irá voltar?
Permanecendo por muito em silêncio pela dificuldade de
respondê-la acabou por a assustar, principalmente quando a
largou e saltou sobre o parapeito da sacada.
— Sim, irei voltar, porém como um inimigo.
Após permanecer calada por breves instantes devido à incrível
surpresa o sufocou com dezenas de perguntas. Sem se incomodar
indicou que seus irmãos esclarecer-lhe-iam.
Como se algo importantíssimo houvesse ocorrido reparou na
mudança repentina do olhar da parceira sendo capaz de encontrar
certo grau de apoio.
— Irei sempre te apoiar, querido — entoou carinhosa.

351
— Obrigado Lu. Eu nunca me esquecerei de você — respondeu
realmente contente. — Nem das valiosas garotas com quem estive.
— Como você pode falar das outras enquanto se despede de
mim? — resmungou.
— Você é perfeita mesmo. Tá comprovado! — sorria
alegremente.
Dizendo isso deixou-se cair lentamente e, após admirar o troféu
que permitiria vazar por entre os dedos, apressou-se à floresta,
sumindo de sua vista em segundos.
Observando sua partida com o olhar enuviado, debruçada sobre
o parapeito, começou a refletir suas últimas palavras. Enquanto
fitava a lua minguante, entorpecida, seus lábios sussurravam,
quase inconscientemente, pedidos para que retornasse a salvo.
— Não adianta o chamar... ele não voltará — colocou Marcus.
— Isso é certo, melhor você ir dormir — sugeriu a menina.
Saltando para verificar quem a flagrara encontrou, surpresa, o
olhar atento das crianças. Fragilizada foi assaltada por intensa
necessidade de relatar precisamente o acontecido, imaginando
que, obviamente, de nada sabiam.
— Seu irmão foi...
— Já sabemos disso faz tempo — interrompeu o menino.
— Como é possível? — estranhou.
— Amanhã nós lhe contaremos tudo que está acontecendo —
colocou Amira, delicadamente. — Por hora, vá descansar.
Mesmo que sua consciência soubesse que o melhor seria relaxar
como indicavam, seus lábios se mexeram sozinhos, acabando por
antecipar seus anseios.
— Mas eu quero saber agora.
— Como assim, “eu quero”? —revoltou-se. — Se você não for
com as belas e calmas palavras de minha irmã irá do meu jeito.

352
De alguma maneira seu olhar sério causou-lhe misterioso
calafrio. Repreendendo-se imensamente por estar com medo de
uma singela criança, elevou-se.
— Olha como fala garoto! O que um pequenino como você
poderia fazer?
Nervoso por lhe ter contradito e, principalmente, dado as
costas, avançou enfurecido contra a insolente mulher, sendo
interrompido pela mão da irmã em seu peito.
— Seja mais sutil — sussurrou a irmã.
Repentinamente a maga caiu dura na cama, permitindo-os
ocuparem-se com suas próprias tarefas. Por algum motivo
desconhecido, a irmã estampara um discreto sorriso.

Passava do horário ideal e seu instrutor ainda não chegara,


causando estranheza geral por nunca se atrasar. O fato de Lucena
também não se encontrar gerou certas especulações.
Ao verem, porém, a diretora aproximando-se a passos pesados,
deram asas à imaginação, teorizando os motivos da demora. Antes
que iniciasse seu discurso, as amigas que foram buscar a atrasada
companheira abeiraram-se do grupo.
— Quero, com imenso pesar, informar que seu professor
retornou ao mundo das trevas.
Como imaginou sua frase causou grande pânico entre as alunas
levantando questionamentos acerca do motivo de tê-las
abandonado. Aguardou o silêncio para retomar o comunicado.
— Creio que saibam que ele é o rei dos demônios, então não há
nada de anormal em ele voltar para seu verdadeiro lar.
Ao esboçar intensão de defesa em favor do acusado, Marina foi
rapidamente interrompida pela amiga, e alertada que não deveria
interferir.

353
— Eu sei que isso parece muito estranho, porém, por mais que
odeie admitir, ele nos fez de idiotas, disfarçando suas reais
intenções.
— Que eram quais? — perguntou a plateia.
— Quem sabe. Talvez só quisesse brincar conosco.
Obviamente o grupo se viu acometido por súbito e ardente ódio,
detestando o momento em que chegou à academia, acabando com
sua paz.
Terminada a primeira parte do discurso, descreveu como fora
cruelmente traída e que não era hora para ceder, finalizando com
uma grande motivação para as presentes.
Cuidou de exibir feições de extrema decepção e raiva, além de
pisar duro, exatamente como chegara, relaxando os músculos ao
ultrapassar o portão. Ao perceber as garotas seguirem-na não se
preocupou nem um pouco em disfarçar, chamando-as para perto.
— Tudo o que ele me disse foi para fazer o maior número de
garotas odiá-lo.
— Bem típico dele! — comentou Caroline, involuntariamente,
atraindo a atenção das colegas.
Nesse momento trocaram olhares de confusão e iniciaram breve
discussão, permitindo à pobre Joana retirar-se de fininho. Ao
longe, pontuou uma última informação.
— Bem, não é comigo que vocês irão obter suas respostas.
— O que ela quis dizer com isso? — perguntou a princesa
impaciente.
Sabendo aonde deveriam ir, Lucena as guiou até os irmãos,
encontrando-os no telhado. Chegando lá ambos as analisaram
minuciosamente em poucos segundos.

354
— Bem, parece que essas três vieram atrás de nosso irmão —
comentou a garota.
— Bem-feito para ele! — revidou rispidamente.
— Não seja tão rude Marcus.
— Ele apenas está colhendo o que plantou — atirou as mãos ao
alto e encolheu os ombros.
Percebendo que as ignoravam completamente chamaram a
atenção dos dois, demonstrando, nitidamente, sua ânsia de
obterem respostas.
— Nosso irmão precisa que as pessoas o odeiem — iniciou
Marcus.
— Isso já entendemos, mas qual o motivo dele — irritou-se
Lucena.
— Se você é tão esperta, como ainda não sabe a resposta?
Antes de sequer respirarem reprovaram o temperamento
explosivo do pequeno, porém, após curto período, a capitã se
recordou de algo que, em outra época, nunca olvidaria.
— É possível que ele vá liderar um ataque — murmurou
chocada.
— Finalmente! — ironizou novamente.
— Como assim, Bela? — questionou confusa Marina.
— Quanto mais ódio os soldados sentirem do exército
adversário, mais força irão dispensar para conseguir a vitória. Se
isso for canalizado corretamente é uma excelente estratégia.
— E o que é pior para uma mulher do que uma inigualável
traição? — brincou Amira.
Ouvindo a explicação descobriu a resposta para o porquê de seu
companheiro ficar tão íntimo do grupo de contenção nos últimos
tempos.
— Mas isso não é tudo, não é? — perguntou Caroline
desconfiada.

355
— Você realmente é esperta e sabe ler a situação — elogiou.
— Por isso digo que, se é inevitável, ele deve ficar com a
primeira e largar essa sem graça.
— O que você disse, pirralho? — gritou a ofendida.
Apesar de ter adorado a revelação a seu favor, além da irritação
de sua concorrente, estava mais interessada em confirmar o que
tinha certeza de estarem escondendo.
— Todas as pessoas do mundo possuem ódio em seus corações.
Alguns muito, outros pouco, criando e fortalecendo os demônios
— começou a irmã.
— Resumindo, os demônios são sombras do ódio dos humanos
— esclareceu Marcus.
— E nosso irmão pretende absorver todo esse ódio e acabar
com os demônios — revelou a menina.
Rapidamente entenderam perfeitamente a explicação, porém
ainda lhes restava a dúvida de como isso seria feito. Sem perder
tempo formularam a pergunta.
Despreocupadamente narraram um verdadeiro conto de fadas
omitindo, obviamente, pontos que causariam extremo alvoroço
nas ouvintes.
Com o passar dos dias verificaram o efeito direto de seus atos,
como a integração voluntárias das dissidentes que não deixaram a
AML, ao grupo, fortalecendo-o deveras. Também foi constatada
rápida evolução das mais atrasadas, equalizando seus poderes.

Após algum tempo encontrou-se com os pequenos no mesmo


local em que descobrira os planos do amado. Sob sua cabeça
observou as estrelas banhadas pelo luar.
— Por que me chamaram aqui? — indagou.

356
— Temos uma mensagem do Petrus — foi direto ao ponto,
Marcus.
— Uma mensagem para mim? Como ele mantem contato se
vocês disseram que...
— “Cara Lucena Hangdis, eu agradeço por todo seu tempo
perdido comigo, porém isso deve acabar agora. Tudo não passou
de uma mentira, incluindo meus irmãos, que, na verdade, são meus
espíritos. Esqueça-me!” — declamou a menina.
Não saberia quantificar o quão destrutivas eram suas dúvidas,
somente sentindo-as chocarem-se, originando uma grande
explosão em sua mente. Tendo caracterizado tantas emoções que
mais nenhuma restou esboçar, questionou-os, abismada, se não
eram humanos.
— Não fisicamente vivos — respondeu o irmão.
— Eu posso criar o Escudo Divino e ele a Espada Demoníaca —
informou Amira.
— Agora é Espada Divisora! — corrigiu, irritado.
— Porque, “agora”? — perguntou confusa.
— Porque ele não nasceu mal. Por mais que seja difícil acreditar,
a índole dele se tornou má após alguns acontecimentos.
— E quais acontecimentos foram esses? — questionou curiosa.
— Vamos parar com a putaria! — irritou-se sobremaneira. — O
assunto não sou eu.
Como se duas amigas fossem, trocaram olhares e riram
levemente, perdurando intacta a cena até que se recordou que
deveria focar sua atenção em informações mais relevantes.
— Por que ele disse que devemos acabar?
— Você é idiota ou só se faz de? — ironizou o menino.
— Não podemos deixar uma mentirinha arruinar o que
sentimos um pelo outro. — Ponderou.

357
— Não entendeu ainda? — indignou-se. — Não somos a única
mentira! Ele só se matriculou na academia para prosseguir com
seus planos, modelando tudo e todas a seu bel-prazer.
— Mas ele deve ter um bom motivo! — insistiu.
Sentindo compaixão por sua esperança cega, misturada com
grande dose de inocência, a contou a verdade, mesmo diante dos
protestos exasperados do irmão.
Sem saber qual reação expressar nem qual sensação
experimentar entrou em um estado de puro desespero, não
ouvindo absolutamente nada e, portanto, desprezando por
completo os apelos de Amira.
Determinado a interromper o barulho, Marcus saltou sobre a
moça, que ziguezagueava em círculos, acertando sua nuca e
derrubando-a de bruços no chão, paralisada.
Se viu forçada a ouvir o restante da explicação, acalmando-se e
deixando de resistir. Não obstante à sua colaboração terminou o
serviço e a pôs para dormir.

No dia seguinte, acordou disposta a concretizar uma brilhante


ideia que lhe viera à mente, não se importando em como a faria. Se
acabasse com o ódio que Petrus cultivara, não existiriam mais
condições de prosseguir com seu plano, forçando-o a voltar para
seu colo.
Joana, alertada com antecedência, acercou-se dela e apanhou-a
pelo braço antes que conseguisse se encontrar com alguém que
espalhasse suas palavras.
Chegando em sua sala explicou os motivos pelo qual deveria
desistir de suas intenções de sabotar os planos de Petrus,
recebendo várias contra argumentações para o que dizia.
— Tudo o que conseguirá é fazê-lo ter de alterar seu plano
inicial, porém ele nunca irá desistir. E, qualquer alteração, pode
trazer graves consequências.

358
Tal argumento atingiu-lhe fortemente, ferindo seu orgulho por
clarificar o quão imprudente e mimada mostrava-se, porém não
admitia a ideia de manter-se parada.
— Meu sobrinho lhe considera mais do que a própria vida,
porém, o melhor a se fazer agora, é procurar outra distração e
deixá-lo em paz.
— Como você pode não fazer nada? — insistiu.
— Quem te disse que não tentei milhares de vezes e outras
milhares?
Não sabia, mas transparecia fortes emoções, as quais poderiam
ser indicadas como contraditórias, em sua fala e, principalmente,
em sua face, a induzindo a se retirar com seus sentimentos
conflitantes, restando-lhe refletir sobre a situação do amado.

359
17. Batalha final – Revelações indeléveis

Finalmente chegara o grande dia em que os demônios fariam a


sua grande entrada em uma guerra sem precedentes contra a
humanidade dizimando-os de uma vez por todas.
Petrus havia alertado Joana o local e o momento aproximado,
mas não sabiam como a diretora obtivera tão valiosa informação.
No entanto, não se importavam minimamente.
De um lado, os demônios, orgulhosos demais para admitir que
necessitavam de proteção, se equipavam apenas com suas peças
favoritas e, do outro, cientes do poderio adversário, as
combatentes se equipavam com roupas de lã ou algodão com
graúda proteção mágica, com exceção de Belatriz, que insistia em
trajar sua meia armadura.
Como foi informada, apenas os demônios mais poderosos não
irromperiam ao campo de batalha. Visto que eram a fonte de
sustentação dos menores, seus escravos, como gostavam de
chamá-los, se os derrotassem eliminariam a cadeia inteira.
Como nem tudo pode ser antecipado, as professoras se
dispuseram a patrulhar o entorno da academia em busca do portal,
permitindo ao grupo manter-se concentrado.
Finalmente se fazendo presente o tão preludiado portal, no
mesmo local da fatídica noite, permaneceu incólume, cuspindo
vários demônios somente após a chegada das magas.
Ao destruir a ponte para a outra dimensão, com a desculpa de
que não seria necessário maior esforço para conquistar sua nova
base de operações, o líder se dirigiu ao ponto mais alto do
alinhamento cônico de seu exército. Lá de cima, pode ouvir
diversas vaias e juras de ódio.
— Veja como estão animadas com sua presença — comentou
Krest.

360
— O que posso dizer? — questionou ironicamente Lucer. — Eu
brinquei demais com elas.
Sentindo ser sua última oportunidade de trazê-lo de volta à
razão, Lucena se dirigiu à frente do grupo, levemente recuadas em
relação ao cordão de isolamento organizado pelas responsáveis
restantes e colocou-se a gritar desesperada.
Após pouquíssimas palavras o alvo de suas súplicas atirou uma
esfera de ar a centímetros de si, originando uma onda de choque
que a empurrou com violência.
— Calada mulher, já me cansei de ti! — vociferou. — Todos
meus movimentos são cuidadosamente calculados e minha
decisão, irredutível, então coloque-se em seu lugar.
Se conscientizando finalmente conteve suas palavras, porém
não suas lágrimas. A cena comovedora serviu como uma injeção de
ânimo para as aprendizes amedrontadas.
— Estou cansado disso, ataquem — ordenou o rei.
Antes que suas ordens fossem compreendidas altos brados de
guerra retumbaram. Instantes após um grande exército se revelou
por toda a extensão da floresta.
Contemplando a legião, com ensaiado desprezo, admirou o
movimento da tia, pois nada havia mencionado sobre reforços,
mas, agora que os via, percebia que seriam essenciais.
— Será que vocês quatro darão conta daqueles humanos? —
provocou-lhes.
— Está louco? Eles não passam de meros físicos — grasnou
Kratos.
— Olha como você fala, seu idiota — corrigiu-o, Krest. —
Perdoe-o, vossa alteza.
— Por mais que eu odeie, concordo com esse cabeça quente.
Nós, a elite, não devemos combater esses seres inferiores —
comentou Kronos.
Não poderia permitir que enfrentassem as magas, pois, por mais
que estivessem fortemente equipadas e possuíssem as professoras

361
ao seu lado, não seriam tão eficientes quanto as armas e os
números dos guerreiros.
— Então estão com medo deles? — esboçou enorme sorriso
irônico.
— Permita-me que tome a frente desses inúteis — esboçou um
sorriso de vitória, Krant.
Ao observar que começavam a dizimar os soldados ordenou que
os restantes fossem atacar as magas, obviamente tendo de
enfrentar a dura marcação das professoras.
Por serem mais poderosas e experientes, cada grupo de dez
professoras foram cercadas por dois dos ferozes e sedentos
demônios, porém desorganizados em seu avanço.
Dos poucos que passaram pela barreira humana, dirigindo-se
diretamente ao grupo das alunas, cinco se acercaram da diretora,
a fim de enfrentar a maior ameaça à invasão.
O fato de estar constantemente preocupada com as estudantes
a impedia de lutar adequadamente sendo facilmente presa no
centro do círculo formado pelos inimigos.
Sem se importarem com sua preocupação a atacaram
cruelmente ao mesmo tempo, a forçando a dispensar grande
esforço para se defender, acabando por ter sua guarda quebrada
após uma curta imensidão de segundos.
Ao demônio restante estender sua mão para o ataque fatal,
paralisou. Boquiabertos admiraram-no desmanchar-se no ar antes
de exibir o talho que sofrera completamente.
Ao repararem que o responsável fora um mero físico com uma
imensa espada, se enfureceram, olvidando a presença da diretora
tempo suficiente para que entrasse em suas mentes e os
confundisse. Sem perder tempo se aproximou do parceiro.
— O que você está fazendo Joana? — questionou em alto tom,
devido à adrenalina.
— Graças a Deus você chegou, Vampeto — se tranquilizou. —
Você pulou da janela?

362
— Tive que cortar caminho, afinal se esqueceram que eu não
recebo mensagens psíquicas.
Percebendo que os adversários se recuperavam deram as costas
e, com poucas palavras, conseguiu fazê-la se concentrar na batalha,
indicando seus próximos movimentos.
Com os obstáculos superados alcançaram o grupo de
resistência. Antes de atacarem com força máxima as observaram
com desdém, ignorando o fato de seus números serem de apenas
um quarto das adversárias, cerca de dez.
Prevendo essa situação começaram a preparar uma forte
barreira desde o início do avanço do inimigo, sendo capazes de
anularem a ofensiva completamente, porém ao custo de muita de
sua mana, o que limitou seu contra-ataque.
Com poucos danos infligidos à sua formação aprontaram, com
tranquilidade, um poderoso ataque em conjunto, enviando um
sombrio corvo em alta velocidade.
Sem tempo para erguer uma defesa suficiente se prepararam
emocionalmente para o fim de muitas companheiras. Gritando
desesperadas, quase não perceberam a magia se chocar contra um
escudo transparente.
— Vocês devem prestar muita atenção, pois, a maioria das
batalhas, são decididas em poucos detalhes — alertou-as Amira,
abaixando a mão que sustentava o escudo.
— São idiotas em desperdiçarem grande quantidade de mana
de uma vez — gritou o menino. — Não ouviram a Carla ensinando
que isso causa um trauma no fluxo de mana?
Abobalhadas por ainda pensarem se tratar de crianças normais
não se atentaram à nova investida, tendo de serem salvas pela
menina mais uma vez.
— Não podemos revelar nossos poderes ainda, ignorantes —
atirou Marcus.
Observando o disparo atravessar um inimigo distraído e
sentindo sua mana se normalizar, foram estimuladas a se livrarem
do medo e aplicarem o aprendido.

363
Como primeira atitude Caroline conjurou uma magia divina
para enfraquecer os adversários e outra para embutir dano
sagrado ao ataque das colegas.
Após isso Belatriz criou um enorme furacão para impedir sua
visão e, antes que atacassem, aproveitaram sua vantagem
numérica para saturar o ambiente com suas magias e, portanto,
impedindo novos ataques e os pressionando.
Aproveitando a confusão, as quatro mais poderosas se
afastaram do bolo, mantendo-se momentaneamente ocultas.
Graças a isso Lucena se recordou dos ensinamentos de Petrus
quanto à combinação de magias.
— Você está louca? — exasperou a capitã. — Nós não treinamos
muito esse tipo de conjuração e, se falharmos, poderemos causar
dano a nós mesmas.
— Não! — Caroline pontuou, repentinamente. — Pela primeira
vez ela está dizendo algo útil.
Sem saber como responder às dúbias palavras simplesmente
acenou, indicando que ouvira, dando prosseguimento à execução
de seu ousado plano.
Fechando os olhos e se concentrando, em silêncio, puderam
sentir seu fluxo de mana, até o momento em que começaram a
conjurar suas magias básicas, unindo-as lentamente até se
tornarem uma imensa esfera brilhante.
Apesar de perceberem a magia voando em sua direção
aceitaram serem atingidos por desdenharem as magas ao extremo,
se arrependendo amargamente por tal insanidade.
Ao se aproximar, a esfera eclodiu, revelando, conjuntamente, o
clarão sagrado a enfraquecê-los infinitamente mais aliado a um
razoável dano, a onda congelante, os impossibilitando de qualquer
reação, a rajada de vento, os infligindo profundas feridas e os
expondo ao dano crítico do sopro ardente que coroava o final.
Graças a terem anulado completamente suas defesas o ataque
causou severos danos ao grupo, terminando por derrubar dois
demônios, além de deixar outros dois debilitados.

364
Consequentemente ao excelente resultado obtido se viram
cruelmente atacadas, tendo de serem defendidas pelo escudo de
suas colegas por não terem tempo para tal.
Em virtude do sucesso anterior e da confiança que Caroline
adquirira, intercedendo pontualmente diversas vezes, iniciaram
intensa barragem. Antes do findar de suas forças conseguiram,
após intensa troca de ofensas, derrubar os dois lânguidos.
Apesar de tanto conseguirem ainda restavam cinco agressores
que, ao contrário de si, se encontravam em perfeitas condições.
Além disso estavam atentos aos mínimos movimentos e com os
olhos mais vermelhos do que nunca.
Observando que as professoras conseguiram dar cabo da
maioria de seus algozes e algumas se dirigiam ao auxílio das
alunas, executou a próxima etapa de seu plano.
— Voltem meus irmãos. Hora de apreciar o espetáculo — fez sua
voz ressoar.
Não obstante protestos, retornaram para suas posições abaixo
do mandatário, trocando olhares por perceberem que um dos
superiores não retornara.
— Porque nos chamou de volta, senhor? — perguntou Kronos.
— Antes disso. Onde está o Krest?
— Aquele idiota morreu nas mãos dos míseros humanos — se
exaltou Kratos
— Mas isso não é importante, meu rei — colocou Krant de forma
maliciosa. — Afinal, ele invejava tua posição.
— Que bom — virou a cara, ignorando o ocorrido.
Ao respirar profundamente fez surgir uma esfera vermelha
reluzente na palma de sua mão, expandindo-a até atingir vinte
vezes seu tamanho original, em segundos.
— Testemunhem nossa ascensão, humanos tolos — bradou com
máxima potência.

365
Em pose triunfal disparou o imenso meteoro, levando seus
companheiros ao delírio, rindo dos que ousaram lhes desafiar.
Sequer piscavam diante do êxtase experienciado.
Instantes antes da explosão ocorrer, Lucer alertou as magas
para fecharem seus olhos, tendo seu contato interceptado por ser
transmitido via magia psíquica. Apesar de tomarem conhecimento
de tal, era tarde, sendo cegados por, cerca de vinte segundos
Extremamente confusas, as estudantes e professoras,
presenciaram curiosas os três generais interpelarem-no, ao
recuperarem a visão e repararem a ira dos demais.
— O que você fez, vossa alteza? — adiantou-se o líder.
— Você não viu? — indagou com inocência. — Foi uma magia
simples.
— Não é isso que estamos perguntando, seu idio...
Instantaneamente o líder do agora trio aplicou um violento soco
em Kratos, calando-o antes que terminasse a ofensa, porém não
rápido o suficiente. Esticando o ouvido, como se desejasse
confirmar o rosnado, forçou o orgulhoso general a se rebaixar.
— Ele quis dizer que queremos saber qual a finalidade de seu
ato — disse mansamente.
— Ainda não descobriu?
Com o desafio lançado Petrus assumiu o controle, desfazendo
seu disfarce. Ignorando a alteração repararam que um escudo os
separava dos humanos.
— Você deixou que erguessem uma barreira para nos treinar?
— questionou Krest.
— Ótima ideia, vossa alteza — colocou Kratos.
Dispararam em direção às presas, porém, ao se aproximarem da
barreira perceberam o mesmo que lhes revelou sua sinistra risada.
— Como podem ser tão cegos?
— Foi você que criou esse escudo, não é? — Kronos abaixou a
cabeça.

366
— Finalmente você descobriu. Ó grande líder! — ironizou.
— Por quê? — tornou a questionar.
— Acho que posso lhes contar agora que meu plano foi
concluído — anunciou em alto tom. — Minha intenção é acabar
com o poder dos demônios.
Nenhuma alma sequer não ficou pasma com seu anúncio, sendo
refletido na face de todos a mais pura confusão, afinal era
conhecimento geral do que representava.
— Idiota! — exasperou-se Kratos. — Você é a própria fonte de
nossos poderes.
Por longo tempo gargalhou escandalosamente, cultivando o
temor no coração dos aliados e a incerteza para os vermes alados.
Cansado decidiu revelar o óbvio.
— Exato. Estou pronto para me sacrificar para acabar com seu
reinado de terror.
— Você perdeu o juízo, meu rei? — explodiu Kronos.
— Primeiro, não me chame de rei, pois não sou um de vocês.
Em virtude de suas palavras continuarem a sofrer amplificação e
poucos conhecerem sua real história, guerreiros, magas e demônios
se perguntaram o mesmo. “Ele não é o rei demônio?”.
— Entendo — refletiu Krant. — Ele é um impostor!
— Não! — rosnou Kronos. — Ele emana os poderes de nosso rei.
Eu tenho certeza.
— Você não está inteiramente equivocado, meu fiel servo —
acalentou Lucer.
Atingira seu objetivo com primor, confundindo-os
completamente, principalmente o líder general, que admirava a
figura em sua frente identificando a voz do monarca.
— Eu compartilho o corpo com um humano. Normalmente ele
deveria ceder ao meu poder e retornar ao mundo dos espíritos,
porém, devido à sua enorme força de vontade, ele conseguiu me
subjugar tempo suficiente para que eu enxergasse a verdade.

367
— Verdade? — balbuciou Kronos, digerindo o que presenciava.
— A verdade de que, por pior que os fatos pareçam, ainda assim
a vida é bela e prazerosa.
— O que você está dizendo, meu rei? — continuou balbuciando.
— Você não vê, meu amigo? — assumiu um tom carinhoso. —
Nós somos apenas sombras dos humanos que já fomos, meras
almas que insistem no erro, assim como nossos subordinados são
apenas os sentimentos negativos deles, demônios do próprio
homem. Nós devemos retornar ao caminho que há muito nos
desviamos.
O orgulhoso líder se mostrava quase em prantos, afinal essa era
sua vontade, porém seus sentimentos malignos o arrebanharam
novamente. Levantando a cabeça subitamente disparou uma seta
negra em sua direção, obviamente não o acertando.
— Amigo? Você quase nem me chama pelo nome. Quem é você?
— Estou dizendo, vi de uma perspectiva diferente e percebi o
quanto estava enganado.
— Você não é nosso rei e, para que nossa raça possa prosperar,
iremos acabar com sua miserável existência — prenunciou
finalmente.
Novamente trocando para Petrus que, antes que iniciassem seu
avanço, indicou com a mão para que parassem e perguntou.se
desejavam interromper o nascimento de seus camaradas.
Percebendo suas inibições continuou.
— O lado sombrio do homem é mais facilmente revelado com o
poder à sua disposição.
— O que isso quer dizer? — gritou Kratos enfurecido.
— Olhem ali — apontou para seus espíritos.
Automaticamente os demônios se viraram e observaram as
crianças para quem apontava, percebendo uma linha quase
invisível que os unia.
— Não é possível! — gritaram os generais atônitos. — Você é o
Sagrado.

368
— Sagrado? O que é isso? — questionou Lucena.
— Assim como existe o rei dos demônios, seu oposto também
— informou Marcus.
— Se acredita que, assim como existe uma entidade que acolhe
os pensamentos e atos negativos, também existe uma entidade que
que se cuida dos bons. Ele não está abaixo de ninguém e preserva
o livre arbítrio como lei pétrea — explicou a irmã.
— É muita informação para mim — disse a princesa,
percebendo seu mundo girar.
Rapidamente Caroline as cientificou que havia uma história que
era muito difundida na igreja, onde esteve por anos. Segundo ela
existe uma entidade opositora ao rei demônio que protege os
humanos do mal, mantendo-o no subsolo.
Há quinhentos anos um religioso escreveu que o Sagrado não
influencia diretamente nosso mundo, mas concede poder e instiga
seus subordinados a nos oferecerem poder limitado, através do
ensinamento das leis divinas.
— Quem são esses subordinados? — interrompeu Lucena.
— Se me permitir terminar — repreendeu. — Eles se dividem
quanto ao seu poder, escolhendo uma maga que possua afinidade
espiritual para lhe concederem parte de seus estoques de mana ou
atuar na aplicação das leis divinas, exigindo nossa cooperação.
Surpresas com a história desconhecida que lhes contava
resumidamente, vislumbraram, parte da real dimensão dos
acontecimentos. Porém estavam confusas.
— Não me lembro dessa versão — revelou Belatriz.
— É porque a igreja a ocultou, para deturpá-la em paz, desde a
troca de palavras, como “cooperação” para “obediência”, até o
sepultamento dos escritos que indicavam que o Sagrado e o Rei
Demônio compartilham o mesmo corpo. Por isso eu os abandonei.
— Mas como você diz que é uma criação da igreja? —
questionou a princesa.

369
— Obtive os originais com um professor... “Rebelde” — escolheu
sabiamente a palavra.
Enquanto conversavam em terra, no céu a situação parecia ter
se desenvolvido, apresentando aos espectadores a simples
resolução de Kronos jurar o rei de morte.
— É válido, afinal os usei para transbordar meus níveis de mana.
Ensurdecedor brado de guerra impulsionou seus irmãos a
atacarem, claro que se focando em golpes físicos. Por saberem ser
impossível o atingirem magicamente apelariam para sua fraqueza
humana.
Percebendo que o momento chegara, as professoras, suas
colegas e sua falsa tia foram acometidas pela conhecida voz. Se
tratava de uma rápida mensagem de despedida.
“Sejam fortes e auxiliem os feridos e demais necessitados. Não
se preocupem com o que acontecerá, pois isso é necessário para
que o sol possa brilhar mais intensamente”.
Por fim, para suas companheiras mais próximas, preparou um
complemento emocionante, tremulando sua voz e causando o
surgimento de discreta lágrima em Lucer.
“Nesse momento minha vida terminará e sei que ficarão
imensamente decepcionadas, apesar de não mais do que eu
próprio. Vocês foram as mulheres com quem mais me afeiçoei,
portanto, anseio que compreendam que, após anos de intensa
busca, essa foi a única solução que encontrei.”
“Sou imensamente grato por me permitirem pronunciar
tranquilamente que posso morrer sem ressentimentos. Obrigado
por tudo que me fizeram, nunca as esquecerei”.
— Não desista Petrus! — gritou Lucena, desesperada. —
Podemos encontrar outra opção.
— Desculpe! — conseguiu sussurrar para si, entregando-a
silêncio.
— Você me deve uma, lembra? — lembrou-se de cobrar a dívida.

370
— Quem foi o idiota que te disse que eu nunca mentiria? —
sorriu, cegando os agressores com forte luz.
Percebendo que chegara o momento Marcus pousou a destra
sobre o ombro da irmã, compartilhando mais intensamente sua
mana. Instantaneamente formou uma película negra a se fundir
com a proteção luminosa, fortalecendo o escudo.
Vendo-os se recuperarem e imprimirem grande ira em seus
olhares, iniciou rapidamente a conjuração de várias camadas que
seriam compostas pelos oito elementos.
— Você acha que isso irá nos deter? — gritou Kratos furioso.
— A magia que está conjurando é muito demorada —
concordou Krest.
— Iremos acabar com você, traidor! — Kronos gritou com raiva.
Como nenhum de seus camaradas iniciou o ataque virou-se para
inspecionar. Chocado admirou-os presos pelos fortes e grossos
galhos de uma gigantesca árvore.
Vento, água, terra, fogo, trovão, gelo, trevas e luz formavam, de
dentro para fora, as oito camadas que compunham a estrutura. Se
assemelhavam a camadas de puro poder.
— Acabou, meu amigo! — disse Lucer em voz humilde.
— Você está errado! — começou a gaguejar. — Irei acabar com
você sozinho.
Se vendo livre de seu cárcere acometeu contra Lucer
desengonçado, evidenciando sua indecisão e o dando certeza de
sua próxima atitude. Com rápido bote, abraçou o amigo.
Mantendo-o em seus braços por meros segundos antes que
desfizesse suas defesas e despencasse em prantos, implorando por
perdão a cada soluço.
Segundos após pronunciar um poderoso “Obrigado”, marcando
o início do alçar de sua alma a patamares de onde declinara há
muito, uma grande implosão se deflagrou.

371
Uma a uma as camadas de poder se explodiram, preenchendo o
espaço delimitado pela próxima camada por completo até explodi-
la, repetindo o ciclo.
Para os observadores a enorme construção se traduziu em
intermináveis minutos de um espetáculo colorido onde a
tonalidade do elemento liberado se misturava ao elemento
posterior e, juntos, refletiam através das camadas restantes,
terminando pela escuridão absorver todos os raios e o sagrado
refletir as camadas como um diamante.
Para coroar a exibição de cores as reações ocorridas dentro da
esfera desencadearam uma devastadora explosão, que, sem a
proteção auferida, dizimaria uma enorme área.

Assustada, abriu os olhos e enxergou as nuvens a dançar,


reparando a imensa dor que sentia em sua cabeça. Prestando
maior esforço consegui focalizar Joana a lhe sacudir.
Recuperando a sanidade aos poucos se recordou dos momentos
anteriores ao seu desmaio. Parte da onda de choque escapou da
redoma e as atingiu violentamente.
— Onde estão aqueles pestinhas? — perguntou Lucena se
levantando.
Simplesmente balançou a cabeça em clara negativa e se virou
para amparar as alunas restantes. Nada disse, afinal sabia melhor
do que ninguém o que acontecera.
Acabou caindo por se levantar subitamente devido a ainda não
ter se recuperado, porém esqueceu suas fraquezas e se arrastou a
procura das pestes que tanto lhe perturbaram.
Percebendo a agitação de Lucena, suas amigas se aproximaram
e tentaram confortá-la, porém sem sucesso. Alcançando a diretora
lhe encarou profundamente e refez sua questão, que mais se
assemelhava a uma súplica, com grossas lágrimas lhe escorrendo.

372
Seu estado era de puro desespero; olhos arregalados e
avermelhados, respiração irregular, pele derretendo com seu sangue
crepitante e coração extremamente acelerado.
— Os espíritos necessitam da mana dos magos para
permanecerem visíveis — respondeu Belatriz, percebendo a
limitação da mentora.
— Aquele idiota! — finalmente Joana conseguiu murmurar,
mesmo com sua voz embargada.
Imediatamente se jogou de joelhos e chorou, tão alto e
profundamente que atingiu em cheio o coração das magas
presentes, as contagiando com suas emoções.
Até Vampeto fincou sua espada no chão, oferecendo-a em
tributo ao guerreiro caído, e executando uma oração de batalha,
que há muito aprendera.
Não tão distante os cavaleiros reais, que nada sabiam sobre,
murmuravam algo entre si. Com o passar do tempo um comentário
se espalhou no ambiente a atingindo em cheio.
— Ele está vivo.
A frase entrou em seu coração como uma faísca em uma forte
penumbra. Içando-se apressada acabou tropeçando em seu
próprio pé exausto e duro.
Não se importando minimamente, correu com todas suas forças,
sendo auxiliada pelo vento de Belatriz. Se debruçando perante o
corpo inerte verificou com os soldados que ainda estava quente e
possuía uma respiração, mesmo que fraca.
— Não é possível! — Gritou a tia atônita. — Seu corpo deveria
ter desintegrado.
Colocando a mão delicadamente em seu ombro, o professor a
dirigiu significativo olhar, indicando que não deveria prosseguir.
Não precisavam ser lembradas do óbvio.
— Ele precisa ser tratado imediatamente — disse um dos
generais, se aproximando.
— Levem-no rapidamente à enfermaria — bradou a diretora.

373
Automaticamente os soldados foram assaltados pelo ímpeto de
obedecer à ordem, porém se lembraram da hierarquia e
aguardaram o consentimento do general. Cuidadosamente o
ergueram e levaram-no, sendo seguidos de perto por Caroline, que
tratava dos parcos primeiros socorros, e das magas mais próximas.
O restante do dia foi reservado apenas para os cuidados aos
feridos, improvisando um grande centro de cuidados na cidade
acadêmica com o apoio dos residentes e a vinda de mais médicos e
enfermeiras das cidades vizinhas e da capital.
Além disso o cemitério, que só não foi inaugurado porque todos os
corpos das alunas tombadas na noite fatídica foram reavidos pelas
famílias, recebeu seus primeiros clientes, devido à grande maioria
serem plebeus e não terem como custear a viagem.

No dia seguinte foram iniciados os trabalhos para reconstrução


das intermediações, surpreendendo Joana pela quantidade de
óbolos enviados. Mais tarde perceberiam que, ao serem divulgados
os relatos do general, seu apoio se tornaria maior que nunca.
Gradualmente pode-se avaliar uma melhora no quadro de
Petrus, regularizando sua respiração, batimentos cardíacos e
demais aspectos fisiológicos, porém, somente quando seus
espíritos voltaram a aparecer, que se tranquilizaram ligeiramente.
Questionados do porquê demorarem tanto para reaparecerem
informaram que era por não conseguirem contato com a mana de
seu portador para se materializarem.
— O que está acontecendo com ele? — insistia a namorada.
— Não sabemos, pois ele deveria ter morrido junto dos
demônios — informou Amira.
— Porém seu grande poder das trevas e da luz sumiu —
completou o irmão.
— Minha cura não está fazendo efeito — adicionou Caroline. —
O que houve afinal?

374
“A mana dele voltou a fluir, mesmo que fraca, portanto, agora só
resta aguardá-lo acordar.” Foi o que Nayde disse, entretanto não
suportavam mais se sentirem prepotentes diante da angústia
sofrida no último mês.
Na primeira oportunidade encontrada as princesas
abandonaram seu pai a resolver o caos social provocado pelo
ataque, levando a melhor médica da corte consigo.
— Não há absolutamente nada de errado com este rapaz.
— Por que ele está inconsciente então? — insistiu Tresa.
— Não há motivos — o analisou novamente. — Fisicamente e
espiritualmente ele está perfeito e a mana dele não está fluindo
lenta o suficiente para mantê-lo em coma.
— Certo — Milena se mostrava à altura de sua posição. — Pelo
menos ele está seguro?
— Não tenho certeza, afinal nunca observei essa condição antes.
Satisfeitas, se retiraram, autorizando as médicas a discutirem
seus assuntos clínicos. Ao findar de uma semana retornaram para
o castelo com os corações nas mãos.

Ao transcorrer de mais cinco meses a rotina escolar retornou ao


habitual, sendo esquecido pela maioria das residentes, o que ainda
causava certa repulsa em Lucena, que cuidava dele com maior
esmero, apesar de compreender que esse era o natural.
— Ainda nada? — perguntava Lucena.
— Não precisa vir aqui todos os dias — avisou, Nayde. —
Quando algo mudar te avisarei.
Como se a enfermeira houvesse cometido o maior dos insultos
seu sangue começou a ferver, percebendo que estava
acompanhada ao pousar de uma mão em seu ombro.

375
— Ela está certa amiga — acalentou, Marina. — Você precisa
relaxar.
Desenfeitiçada balançou a cabeça, colocando as ideias em
ordem. Sentindo-se envergonhada por ter sido tão mesquinha se
desculpou prontamente.
— Não se preocupe — aceitou o pedido da garota. — Eu te
entendo.
— Vamos lá Lu, temos que conversar com a diretora — lembrou
a princesa.
— Vou acompanhá-las.
— Mas e os pacientes? — questionou instantaneamente.
Adivinhando que sua preocupação era com um paciente em
específico, além da forma inocente de velar suas verdadeiras
intenções, não conseguiu conter sua ironia.
— Os pacientes “está” em ótimas condições. Só resta acordar.
— Foi você quem pediu por isso amiga — não conseguiu conter
a gargalhada.
Ao se verem sozinhas, as crianças, iniciaram entretido diálogo
sobre os últimos acontecimentos e as reclamações que tanto
guardaram para si, afinal não mais possuíam seu confidente. Por
fim tentaram dizer algo, porém as lágrimas lhes embargaram a voz.
— Finalmente deu o ar de sua graça — Marcus disse.

Abrindo a porta da sala da diretora com leveza se viram


confrontadas pelos afiados olhares das amigas que as aguardavam
a certo tempo, conscientes de que os mereciam.
— Vocês demoraram! — reclamou a capitã da guarda.
— Com certeza ela estava na enfermaria — a atacou.
— Qual o problema de se preocupar? — lançou um olhar
fuzilante para a rival.

376
— Eu respeito o tempo dele, diferente de você, que é uma
mulher insegura.
O olhar de desdém recebido a encheu de raiva, se acometendo
por mordaz instinto de esbofetear o rostinho pretencioso da
boneca. Prevendo nova guerra a diretora interveio.
— Podemos começar nossa reunião? — externou rápido sermão
com o olhar. — Como estão todos os pacientes?
— Todos estão completamente curados, apenas repousando —
respondeu Caroline.
— Com o desmanche do centro médico da cidade nossos
materiais ou acabaram ou estão a ponto de. A necessidade de um
local maior se faz urgente — completou Nayde.
Com isso a enfermeira lhe entregou uma folha que informava as
compras e quantidades devidas. Após conferir o documento
gesticulou para que continuassem.
— O campus está reconstruído e monitorado por rondas
regulares — informou a capitã.
— E a cidade acadêmica?
— Está quase totalmente reconstruindo, porém, devido ao
enorme prejuízo físico e humano, a vida demorará a se estabilizar.
Seus anos de experiência a diziam que, por mais que demorasse,
os humanos se reergueriam, portanto simplesmente pediu que
prosseguisse, agilizando a reunião.
— A realeza e todos da capital já se recuperaram do evento,
embora ainda seja muito comentado e algumas sequelas ainda
sejam sentidas.
Percebendo que a situação se fazia perfeita para outra
alfinetada apontou para sua rival e, simulando uma faceta para
menosprezar a pequenez dela, provocou.
— Todos se recuperaram menos ela, que nem sequer sabe que
ele voltará.

377
A raiva que sentia havia chegado ao ponto de cegá-la, admitindo
seu corpo em guarda e sua aura em modo de combate.
Contemplando o decrépito cenário se impôs.
— Se querem se matar, façam isso longe da minha sala.
— Desculpe minha colega mal-educada — provocou mais um
pouco.
Presumindo que não poderia permitir que o ódio se alastrasse
por seu corpo, heroicamente apartou seu instinto assassino para
que vencesse dessa vez.
— As alunas se recuperaram psicologicamente e as aulas
voltaram a ser como antigamente. Isso é, antes dele chegar, claro.
— Nós estamos cientes da falta que ele faz — Joana teve de
conter seus sentimentos.
Permaneceram em silêncio, recolhidas em suas cascas de
tristeza, até Marina ser assaltada por simples, porém complexa,
revelação.
— Lembram de quando os irmãos dele... — lembrou-se de que
isso era apenas um disfarce. — Disseram que os demônios eram
sombras do ódio das pessoas.
— Porém Petrus não é e nunca foi uma sombra — completou
seu raciocínio, Lucena.
Agora que mencionara tal fato visualizaram algo que estava
embaixo de seus narizes tão facilmente que não compreenderam
como o deixaram passar desapercebido.
— E ele era a fonte de poder dos dois reinos — lembrou Carol.
— Porém o poder das pessoas permanece — completou Joana.
— E, se os demônios se alimentam de ódio... — começou
Belatriz.
— O oposto também ocorre — completou uma voz atrás da
porta.

378
Obviamente sabiam de quem era a voz, porém o senso de
cavaleira se antecipou, fazendo-a correr para surpreender quem
ali se encontrava, mesmo perante protestos.
Ao chutá-la, abrindo-a violentamente, se deparou com a figura
que menos esperava, se surpreendendo de tal maneira que sua
mente se tornou completamente alva.
— Dessa vez me preveni e me mantive afastado — exibiu um
sorriso fraco.
Era uma fração do varão que conheceram, afinal, além da
extenuante guerra, enfrentara meses deitado em uma única
posição, sofrendo várias micro lesões, disfarçadas de testes.
Possuía dificuldades de se manter ereto, fazendo suas pernas
tremerem por sustentá-lo; seu rosto exibia todo o desgaste físico e
emocional suportado; seus braços pareciam largados no ar e suas
mãos não demonstravam ter força. Estava vivo.
Apesar de sua proximidade, foi Marina que se abeirou primeiro
com os olhos anuviados, se recordando do tempo em que esteve
com ele e das situações vivenciadas.
Ignorando seu estado pulou em cima do coitado, fazendo-o
gemer levemente apesar de não ir ao chão graças ao pulso firme e
a grande agilidade da capitã.
— Cuidado com ele, Marina. Ele está debilitado.
Sem se importar com o aviso se desfez em lágrimas, gaguejando
seus temores e fatos que aconteceram enquanto estava
desacordado. Logo que se acalmou foi expulsa.
Após libertá-lo e dar uma bronca na amiga o tomou nos braços
e lhe esmagou em um bem executado abraço de urso rodopiando
três vezes antes de largá-lo, torto.
— Minha coluna quebrou, dessa vez — ansiava por uma parede
para se encostar.
Durante sua busca desesperada, pode captar o furtivo
movimento da velha conhecida, o que o levou a esboçar gesto
defensivo, temeroso.

379
— Você é mesmo muito bobo — mordendo o lábio, o admirou,
incrédula.
Sua estratégia para desarmá-lo foi um sucesso, pois, no
momento em que abriu a guarda para responder, o abraçou
fortemente. Sem lhe conceder tempo para pensar o conduziu para
se apoiar na parede, lhe aplicando emotivo beijo.
Exprimiu seus temores, angústias e saudades por completo no
contato que, apesar de breve, irritou demais a namorada por se
tratar de um período de tempo maior que zero
Se irritando arremessou a rival para trás com força e, tomando
o rosto do amado delicadamente, lhe endereçou significativo olhar
antes de beijá-lo. Os fatos se deram tão rapidamente que Caroline
mal se recuperou do bote antes de vê-la agarrá-lo.
Agraciado por súbito incremento em suas forças, a abraçou,
unindo seus corpos como se fossem um só ser e retribuindo a
carícia por intermináveis minutos sem tréguas.
Atingindo seu limite, devolveu seu gesto e a puxou pelas roupas
iniciando nova discussão, se esquecendo do rapaz, que foi afligido
por abrupta fraqueza. Por sorte a capitã o amparou centímetros
antes do tombo, lhe pousando com esmero.
Apesar de sua face evidenciar extrema felicidade, pois fora
muito bem recebido em seu retorno, as amigas fora da briga
ficaram atônitas por imaginá-lo desfalecendo
— Parem de serem egoístas! — Belatriz elevou o tom. —
Respeitem-no em sua fraqueza.
— Olha quem fala! — ironizaram as três.
Com a ocorrência, foram acometidas por contundentes risadas
e se concederam uma trégua que, de tão momentânea, logo
voltaram a se atracar, tendo de ser mais incisiva desta vez. Após
um repentino urro expôs à luz algo claríssimo para si.
— Parem de se digladiar. Não percebem que ele voltou a ser um
homem normal?

380
Instantaneamente pararam até de respirar, devido a tamanha
surpresa. Como não conceberam o óbvio? Talvez porque se
acostumaram com seu poder incomum.
— Do que estão falando? — levantou a cabeça.
— Petrus, se seu parceiro foi embora, então você não tem mais
poder — colocou Marina.
— Eu admito que, setenta e cinco por cento de meu poder, era
graças ao Lucer e ao outro que nunca me disse o nome, porém eu
ainda tenho minha mana e meus músculos.
Assaltadas por incrível pena tentaram consolá-lo, constatando,
admiradas, que até sua racionalidade possuía limites. Observando
que não acreditavam em si, dispensou suas forças remanescentes
para criar uma pequena e fraca chama em sua palma.
— Homens também podem fazer magia — não conseguiu
continuar falando.
Em razão de ainda não estar pronto para qualquer movimento,
inclusive não se recuperando do percurso extenuante e dos quatro
ataques sofridos, sua magia se extinguiu em cinco segundos e
voltou a apoiar a cabeça.
A demonstração lhes apresentou a prova cabal de que, não só
manipulava a mana, como um elemento diferente de sua
preferência. Ele mantivera o controle sobre os elementos.
Enquanto a confusão se estendia as parceiras a apreciavam de
dentro da sala. Embora ambas se encontrassem rindo
sobremaneira se mantinham com lágrimas nos olhos.
— Você não vai lá também? — perguntou a enfermeira.
— Deixe-as se divertirem — comentou animada.
As ouvindo virou o rosto e enxergou em Nayde sua possível
salvação, afinal não aguentava mais. Aproveitando o silêncio
repentino das garotas investiu:
— Você deveria me levar de volta à enfermaria.
— Eu não. Você saiu de lá sozinho, pode voltar sozinho.

381
— Maldita Joana, te ensinou direitinho.
Se compadecendo da situação se dispôs a carregá-lo, para isso
levando seu braço esquerdo à nuca do rapaz e o direito à parte de
trás do joelho.
— Espero que esse não seja um prelúdio de meu futuro —
brincou.
— Está muito fácil te matar agora. Quer? — revidou Belatriz.
Momentos após a ameaça, adormeceu em seus braços, para
deleite das garotas que os acompanhavam, passando a mimá-lo,
como se fosse um recém-nascido.
Rapidamente chegaram na enfermaria e colocaram-no para
descansar, relegando-o ao silêncio.
Contentes por terem sido ignorados, comemoraram o retorno
de sua paz, pelo menos durante os vários meses de sua
recuperação. Após longo suspiro, fecharam as cortinas.

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