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COSTA, Matheus Oliva da.

Divulgação do taoísmo no Brasil: apontamentos a partir da


tradução do daodejing por Wu Jyh Cherng. In: Simpósio Regional Sudeste / Simpósio
Internacional da ABHR, 2013, São Paulo. Anais do Simpósio Regional Sudeste / Simpósio
Internacional da ABHR, 2013. p.2049-2059. Disponível em:
http://www.sudesteabhr.net.br/anais/

DIVULGAÇÃO DO TAOÍSMO NO BRASIL:


apontamentos a partir da tradução do Daodejing por Wu Jyh Cherng

Matheus Oliva da Costa1

1. Encontrando o caminho - Introdução


O presente trabalho é o começo de uma pesquisa de amplitude maior sobre a transplantação
de uma linhagem taoísta no Brasil, institucionalizada como Sociedade Taoísta do Brasil.
Pesquisas sobre taoísmo no Brasil são escassas, e pesquisas que estudaram pessoas taoístas,
que estudaram a tradição viva, são ainda mais raras. Destaco os trabalhos acadêmicos do
brasileiro o caso de José Bizerril (2007), antropólogo pioneiro no estudo empírico sobre a
tradição taoísta em nosso país, especificamente a linhagem do mestre Liu Pai Lin. Há também
os trabalhos do cientista da religião canadense Daniel Murray (2010) que estudou um grupo
da linhagem Zhengyi, a Sociedade Taoista do Brasil.

Esse último grupo, a linhagem taoísta do sacerdote Wu Jyh Cherng (1958-2004) e fundador
da Sociedade Taoísta do Brasil, também está sendo estudado aqui. Em nosso estado atual de
pesquisa, observamos no site dessa instituição e em obras do mestre/sacerdote Cherng
descobrimos que da Sociedade Taoísta do Brasil (STB) havia dado uma importância
significativa a traduções de textos sagrados taoístas e a materiais escritos em português sobre
taoísmo.

Assim, como um primeiro passo em nossa pesquisa sobre a STB, vamos analisar um dos
primeiros textos publicados por Cherng: a tradução do Daodejing (Tao Te Ching). Faremos
isso não como uma exegese, até por que essa função é uma demanda interna da tradição.
Vamos ler os contornos dessa obra taoísta numa perspectiva interpretativa, objetivando
encontrar pistas sobre os modos de divulgação do taoísmo em seu processo de transplantação
ao Brasil – nosso objeto de estudo – e tecer alguns apontamentos sobre a temática. Trata-se de
uma leitura sociocultural da divulgação da tradição taoísta no Brasil, e por isso, buscamos
responder: quais foram os recursos usados por Cherng para divulgação do taoísmo? Quais
meios ele utilizou? Qual o objetivo da sua retórica? Por que ele teria traduzido essa obra?

1
Graduado em Ciências da Religião (Unimontes). Mestrando em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisador
bolsista do CNPq e membro do CERAL. Orientador: Frank Usarski. Email: matheusskt@hotmail.com
2. Observando o caminho – contextualizando a pesquisa e a tradição

Isabelle Robinet (1997) em Taoism: Growth a religion estudou a tradição taoísta por fontes
empíricas e documentais. Sob esta perspectiva, ela buscou a história e a definição do taoísmo,
e em sua proposta ela nos atinou para uma importante pista que inspirou essa comunicação:
“Um caminho para definir os seus limites é por meio do Canon Taoísta (Daozang)” 2
(ROBINET, 1997, p.2). A autora alerta que os textos sagrados taoístas são somente uma parte
dessa tradição. Entretanto, ela mostra em seu livro como o canon taoísta expressa de forma
significativa, ao mesmo tempo, a rica complexidade cultural dessa tradição e também como o
taoísmo é um todo coerente, um sistema.

Na esteira de Robinet (1997), escolhemos trilhar nossa pesquisa inicialmente pela


interpretação sociocultural do Canon Taoísta em português presente no Brasil. O motivo
dessa escolha é pautado também por uma observação empírica do grupo com quem fazemos
nossa pesquisa: a linhagem trazida de Taiwan pelo mestre Wu Jyh Cherng ao Brasil, ligada a
tradição Zheng Yi (Ordem Ortodoxa Unitária) e institucionalizada como Sociedade Taoísta do
Brasil em 1990, foi o primeiro grupo a investir na publicação de diversos textos taoístas.
Dessa forma, assim como Robinet (1997), temos o Canon Taoísta como um primeiro critério
para delimitar nosso objeto de pesquisa. Mas neste paper a análise interpretativa desse Canon
também será uma ferramenta para nos ajudar a compreender o processo de acomodação do
universo taoísta da Sociedade Taoísta do Brasil.

O pioneiro na pesquisa do taoísmo como tradição viva no Brasil, José Bizerril (2007, p.187),
chama a atenção também para a forma como essa tradição é transmitida ao público brasileiro:
“para compreender como práticas baseadas em conceitos tão estranhos [...] às formas
hegemônicas de cultura brasileira, é preciso prestar atenção à maneira como é feito o
aprendizado”. Ou seja, dentro do processo de transplantação ou transnacionalização, como as
pessoas que difundiram a tradição o fizeram? Antes de responder a indagação, esclarecemos
aqui o que entendemos com o termo transplantação: em poucas palavras, trata-se de um
processo de difusão e divulgação de uma tradição a um local geograficamente distinto.

O mestre Cherng tem uma lista relativamente extensa de publicações sobre teorias e artes
taoizantes. Ainda vivo publicou três livros de sua autoria, Tai Chi Chuan – Alquimia do

2
Na versão traduzida para o inglês: “One way to define its boundaries is by means of the Taoist Canon
(Daozang)” (ROBINET, 1997, p.2).
movimento (1989), I Ching – A Alquimia dos Números (1993. Ambos pela editora Objetiva) e
Iniciação ao Taoismo (2000, pela editora Mauad, que posteriormente editou também os dois
primeiros). Também traduziu diretamente do mandarim (chinês) uma das mais importantes e
mais conhecidas obras do taoísmo: o Daodejing (grafado como Tao Te Ching, em 1998 pela
editora Mauad), além de outras publicações escritas (jornal Tao do Taoismo ou entrevistas,
por exemplo). Houveram também cinco livros publicados após seu falecimento em 2004,
compilados e editados por discípulos e discípulas3. No momento, é interessante trazer à tona
especialmente a versão comentada pelo mestre Cherng do Daodejing, publicada em 2011
também pela Mauad. Na apresentação dessa versão, sua discípula Marcia Coelho de Souza
(SOUZA, 2011, p.15) comenta:

Na juventude, quando abraçou o Caminho Espiritual Taoista, Wu Jyh Cherng fez um Voto
de difundir o Taoismo no Brasil. Para iniciar sua trajetória de vida devocional aplicada à
doação do conhecimento que se preparava para fazer ao mundo, escolheu, por orientação
dos seus mestres chineses que viviam em Taiwan, o Dáo Dè Jing, o Livro do Caminho e da
Virtude, como o texto base de divulgação daqueles ensinamentos.

Podemos perguntar: a citação acima já não deixa explicito que havia um projeto de
divulgação do taoísmo no Brasil? Há pouco tempo tentamos mostrar 4 como a situação
econômica internacional é propícia a esse intercâmbio cultural entre o Brasil, a República
Popular da China (China comunista) e a República da China (Taiwan), devido a aproximações
econômicas e políticas entre estes países nas ultimas décadas. Mas pensar sobre como se dá
esse projeto de divulgação dentro de todo este quadro sociocultural cria ainda mais
indagações. Como um exemplo empírico de uma ferramenta usada para a divulgação da
tradição, vamos agora interpretar a tradução do Daodejing feita por Cherng (1998).

3. Trilhando o caminho – processos culturais da divulgação taoísta

3.1 Tradução como divulgação da memória da tradição

O Daodejing, ou Tao Te Ching como é normalmente grafado no Brasil, já é conhecido pelos


leitores brasileiros a um bom tempo. Um dos seus primeiros tradutores, Humberto Rohden

3
Estes títulos podem ser vistos em uma pagina no site da STB: http://sociedadetaoista.com.br/blog/sociedade-
taoista/livros-e-publicacoes/.
4
Ao dia 7/06/2013 apresentamos uma comunicação intitulada Taoísmo no Brasil: presença e modalidades de
sua transplantação no século XX no II Encontro de Pesquisa em História da UFMG - EPHIS, realizado entre os
dias 04 e 07 de junho de 2013 UFMG (Belo Horizonte-MG). Os anais do evento ainda não estão disponíveis.
(2003, p.12), afirma que “essa obra imortal recebeu várias traduções” no Brasil, tendo início
já nos anos 1970. Seus primeiros tradutores foram: um monge budista (!), tradutores
anônimos de grupos macrobióticos, e o próprio Rohden, que traduziu acrescentando
comentários filosóficos e ilustrações. Existiram outras traduções, algumas bilíngues na década
de 1980, e várias que traduziam somente trechos. Rohden ainda afirma que “todas estas
edições [...] se encontram à disposição dos leitores nas livrarias brasileiras” (ROHDEN, 2003,
p.13), fato que pode ser facilmente comprovado em uma busca na internet.

Interessante perceber que foi exatamente nos anos de 1970 que dois mestres taoístas chineses
chegaram ao Brasil: Liu Pai Lin, que veio visitar uma filha em 1975 e acabou morando em
São Paulo (BIZERRIL, 2007); e Wu Jyh Cherng, que nasceu em Taiwan em 1958 e em 1973
mudou-se com seus pais para o Brasil, onde foi viver no Rio de Janeiro. É filho do também
mestre de taijiquan Wu Chao Hsiang, este último vindo da China continental mudou-se para
Taiwan na metade do século XX. Posteriormente, em 1987 Cherng tornou-se sacerdote
Taoísta em Taiwan, voltando ao Brasil logo em seguida, onde fundou a organização
denominada Sociedade Taoísta do Brasil ligada à tradição Zheng Yi (Ordem Ortodoxa
Unitária). Assim, se já existiam traduções do Daodejing no Brasil antes mesmo da chegada de
Cherng, porque ele desejou realizar esta tradução? Vamos ao próprio Cherng para descobrir.

Na sua versão do Daodejing, Cherng (1998) já na contracapa afirma que se trata de uma
tradução “diretamente do chinês para o português”. Esta qualidade parece ser um motivo
especial para que este autor não só a use como recuso de marketing, mas também como
autopromoção da própria tradição, pois acredita que assim “resgata a tradição taoísta e oferece
a decifração necessária de conceitos fundamentais,
respeitando a estrutura original do texto em chinês clássico
em detrimento de frases mais convencionais em língua
portuguesa”. Notem que a expressão resgata a tradição
parece, justamente, querer contrapor a outras traduções que,
talvez, não fizeram jus à tradição tal como deveria ter sido.

No que concerne à capa (imagem à esquerda 5 ) temos


considerações que valem para todo o texto: 1) o “chinês
clássico”, como disse Cherng, usa de ideogramas, e não
letras. Dessa forma, o tradutor escolheu o sistema chamado
de Wade-Giles para transcrição fonética. Acreditamos que possivelmente isso ocorreu por
5
Imagem retirada no site: http://sociedadetaoista.com.br/blog/sociedade-taoista/livros-e-publicacoes/.
Cherng e sua família serem de Taiwan. Neste país o sistema pinyin de transliteração criado da
China continental ainda não era muito usado, pelo menos até a época desta tradução. O
próprio nome “Cherng” é uma forma de grafia “livre”, em pinyin seria Chéng;

Além disso, 2) tanto o uso do sistema Wade-Giles, que fez o título 道 德 经 (chinês
simplificado) ser transliterado como “Tao Te Ching”, como a tradução “O Livro do Caminho
e da Virtude” não se difere de outras tentativas de tradução presentes no Brasil, com exceção
de traduções um tanto distantes do sentido original. Por outro lado, como veremos, existem
características singulares a esta edição do Daodejing. Ainda sobre a capa, acreditamos que o
uso de ideogramas já na capa é também uma forma de legitimação, no sentido de mostrar um
elemento tradicional chinês para o(a) leitor(a).

Na dedicatória do livro observamos um agradecimento ao seu mestre “Maa Ho Yang”.


Novamente, aparece um elemento legitimador: a menção a um mestre espiritual. Sem duvidar
da sua sinceridade, acrescentamos também que uma possível motivação para a existência
desse agradecimento ao mestre é deixar claro ao leitor ou leitora que essa tradução (assim
como outros títulos publicados por Cherng) faz parte de uma linhagem espiritual, de uma
tradição. Nesse momento nos vem imediatamente à mente a noção de religião alicerçada pela
socióloga Danièle Hervieu-Léger (2008). Essa autora diz que a religião busca sua
“legitimidade na invocação à autoridade de uma tradição. [...]” e assim, “a crença se designa
como ‘religiosa’ quando o crente coloca diante de si a lógica de desenvolvimento que hoje o
leva a crer naquilo que crê” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.26).

Seguindo essa lógica Hervieu-Léger (2008, p.27) afirma que “a linhagem dos que creem
funciona como referência legitimadora de crença. Ela é, igualmente, um princípio de
identificação social”. A religião é uma forma de pertencimento a um grupo, e é uma forma de
tradição, e a tradição, por sua vez é uma memória autorizada. Conectando esta perspectiva
teórica com a tradução que estamos estudando, após a dedicatória ao mestre aparece nos
agradecimentos a brasileiros que revisaram o texto. Se a tradição segue uma linhagem, além
de raízes, existem também seus ramos, a continuação da linhagem. Então já na dedicatória e
agradecimentos encontramos o registro da linhagem transplantada ao Brasil por Wu Jyh
Cherng com suas transformações e inovações do taoísmo longe da sua terra natal.

Observamos após os agradecimentos a imagem6 de Laozi (ver figura abaixo), o personagem


que historicamente é atribuída a autoria do Daodejing. Repetindo a lógica presente na capa,

6
Imagem presente nas primeiras páginas da tradução do Daodejing de Wu Jyh Cherng (LAO TSE, 1998, p.7).
há ideogramas chineses, um desenho tradicional que
lembra a lenda de Laozi saindo do Reino do Meio (China)
montado em um búfalo, e a transliteração está em Wade-
Giles: Lao Tse. Temos novamente a expressão
iconográfica da tradição, sendo também um atrativo ao
leitor tanto como elemento étnico como elemento
artístico.

Interessante notar que os ideogramas da imagem (老君)


não são os ideogramas exatos de Laozi (老子). Nesse
caso, tratar-se-ia da denominação Tai Shang Lao Jun (太
上 老 君 ), título mítico/religioso relacionado ao
personagem Laozi:

Outra transfiguração dominante de Laozi é uma personificação antropomórfica do Tao


inefável e misterioso. Nessa versão divinizada, Laozi aparece como uma divindade
poderosa, conhecida como o Altíssimo Senhor Lao (Taishang Laojun), membro da trindade
dos maiores deuses do panteão taoista. (POCESKI, 2013, p.99)

Essa transfiguração de Laozi pode ser vista nos altares taoistas de muitas linhagens, mas não
necessariamente como a imagem acima. O cientista da religião da Universidade da Flórida
Mario Poceski (2013, p.99) chega a dizer que “o Laozi divinizado continua a ser adorado até
hoje”. Inclusive na própria STB do Rio de Janeiro e de São Paulo podemos encontrar imagens
dessa figura tão cara a tradição taoísta (MURRAY, 2010). Nesse sentido, Poceski (2013,
p.100) explica que essa divinização do Laozi tem uma relação direta com a “transformação do
Tao te Ching num texto sagrado”. O que talvez explique a presença dessa imagem e desse
ideograma (老君) nesta tradução.

3.2. Acomodação do taoísmo: uma leitura das trocas culturais

A partir de agora, pontuamos algumas questões relevantes à divulgação e construção da


identidade taoísta presentes na Introdução. Para tanto invocamos Peter Burke (2003), com seu
debate sobre as múltiplas possibilidades presentes nas trocas culturais numa perspectiva da
historia cultural. Em sua obra intitulada Hibridismo cultural este historiador da cultura
apresenta diversas formas de objetos, terminologias, situações, reações e resultados das trocas
culturais. Servimo-nos aqui de alguns dos seus conceitos e reflexões para lançar luz a nossa
leitura da tradução do Daodejing do mestre Cherng.

Na primeira página da introdução, Cherng (1998, p.9, grifo nosso) usa um termo no mínimo
curioso para descrever a profundidade do Daodejing: “a profundidade é o próprio caminho do
mistério, a experiência do sagrado que corresponde à vivencia espiritual”. Acreditamos que
qualquer cientista da religião que acompanha os últimos debates dessa área deve-se perguntar
o porquê do uso dos termos experiência e sagrado. Como esclarecimento para o leitor e
leitora: em uma das principais palestras do XII Simpósio Nacional da ABHR em Juiz de Fora
- MG, com o cientista da religião canadense Steven Engler, este teórico fez duras criticas ao
conceito de experiência nos estudos das religiões, inclusive convidando os ouvintes a não usa-
lo. Interessante é que experiência religiosa era justamente o tema desde evento; Sobre o
termo sagrado, Frank Usarski (2006, p.32) em seu livro Constituintes da Ciência da Religião
também tece criticas ao que ele afirmou ser “o uso inflacionário ou mesmo aleatório da
palavra sagrado” para designar algo que “tem (mais ou menos) a ver com religião”.

Essas são críticas acadêmicas, mas, de certa forma, também são registros históricos do uso
desses termos para se falar em religião no Brasil. Curiosamente, o “uso inflacionário” do
termo sagrado foi confirmado no trecho mostrado acima. Mas aplicado ao nosso objeto de
estudo, o mestre Cherng usou de termos próprios dos meios cristãos (e, por que não, dos
meios esotéricos) para se referir à religiosidade taoísta. Para quem vive no Brasil ou em outro
país de maioria cristã, certamente os termos santo, santíssimo, sacro ou sagrado já foi ouvido
alguma vez, todos em um mesmo parentesco semântico. Sendo assim, podemos dizer que
Cherng realizou um processo de acomodação religiosa, ou seja, há uma utilização de termos
nativos para abordar uma mensagem estrangeira (BURKE, 2003, p.46). Nesse processo tanto
o emissor como o receptor da mensagem são influenciados, de forma que a mudança cultural
acontece “por acréscimo e não por substituição” (BURKE, 2003, p.47).

O processo de acomodação que com certeza está acontecendo em outros locais de expansão
taoísta é, talvez, inédito para essa tradição. Segundo Robinet (1997) a tradição taoísta se
desenvolveu tomando de empréstimo elementos de outras tradições, como o budismo,
adaptando-os aos próprios eixos e conectando-os em seu sistema de sentido. Mas o que
estamos observando aqui é exatamente o movimento contrário: não se trata de adaptar
elementos estrangeiros ao próprio sistema dentro da cultura de origem, trata-se sim da
mudança de discurso para que o outro possa compreender em seus próprios termos o meu
sistema cultural religioso.
O próximo ponto a ser destacado usa de uma retórica relativamente famosa do taoísmo.
Cherng (1998, p.9, grifado no original) escreveu que “a leitura do Tao Te Ching implica um
desafio: esvaziar-se e ser natural como a água que flui no vale”. Logo após usar termos
próprios do ambiente brasileiro e cristão (experiência do sagrado), Cherng retorna aos
recursos retóricos taoistas e convida o leitor a vivenciar uma leitura sem julgamentos prévios.
Isso, obviamente, também está fazendo menção à carga cultural que o leitor traz consigo e que
poderia talvez bloquear a leitura dessa obra. Poderíamos arriscar aqui que se trata de esforço
por proselitismo taoísta? Talvez sim.

Mas voltemos à questão do “esvaziar-se”. Na passagem de página Cherng (1998, p.9 e 10)
chega a afirmar que se o texto não parecer claro por quem o lê, deve ser pelo fato de que a
sociedade atual excessivamente pensante dificulta a “ampliação da consciência”. Na mesma
página escreve: “Nesse contexto, a contemplação já é em si um ato transgressor”. Seria isso
um convite a cultura taoizante? Afinal, transgredir uma sociedade dominada pelo excesso de
racionalidade parece ter uma conotação positiva, e como ele mesmo disse, o taoísmo possui
ferramentas para isso (a contemplação, por exemplo).

Novamente Cherng afirma as vantagens de uma tradução direta do chinês, com um texto
idêntico ao da contracapa. E continua afirmando que o Daodejing é uma “escritura sagrada”
que revela mistérios, expressando “uma tradição que íntegra filosofia, ciência e religião à
experiência” (CHERNG, 1998, P.10 e 11). Essa última sentença reafirma o que Robinet (1997)
havia dito sobre o Canon Taoísta enquanto expressão da riqueza e integralidade da tradição
taoísta. Cherng (1998, p.11, grifo no original) segue explicando a etimologia do termo
taoismo (daojiao ou tao diao): literalmente significa ensinamento (jiao) sobre a origem (dao),
e “por isso, o Caminho da Imortalidade, objetivo dos taoístas, é denominado Via do Retorno”.

Em continuação, este mestre alega que a escola taoísta segue três obras, sendo o Daodejing
uma delas e a estrutura central dessa tradição. A seguir aborda uma pouco da historia de Laozi
segundo a tradição taoizante. Deste trecho, que pouco se difere da lenda de Laozi encontrada
em outras fontes, a não ser por datas mais antigas e riqueza de detalhes, chamamos a atenção
para um termo usado por Cherng (1998, p.12) durante a história, que chegou a merecer uma
nota explicativa: “transparência sublime”. A nota dois (2) afirma que este termo (em chinês:
Tai Chin) é um “conceito teológico de Absoluto taoísta” junto com Yü Chin e Sao Chin
(grafia Wade-Giles). Até onde sabemos a ideia de uma teologia taoísta ainda não é algo
conhecido por brasileiros(as). Vemos aqui outra forma de proselitismo: através de termos
esotéricos que eventualmente chamam a atenção do leitor curioso – mesmo que ele seja um
pesquisador. Mas, também, ao mesmo tempo, evocam-se termos da tradição autorizada
(HERVIEU-LÉGER, 2008), sendo um elemento singular dessa tradução.

Na tradução dos versos do Daodejing propriamente dito pode ser vista essa estruturação de
notas explicativas de termos herméticos, variando entre explicações teológicas, intertextuais
(com o Yi jing) e ainda explicações etimológicas. São no total 44 notas explicativas, sendo
que 27 dos 81 poemas dessa tradução do Daodejing contêm notas. Nessa tradução, ao invés
de explicações filosóficas presente em outras traduções brasileiras optou-se apenas por notas
explicativas. Sendo um empreendimento inicial da transplantação da tradição taoista dessa
linhagem ao Brasil, percebemos novamente o uso da acomodação (BURKE, 2003) como
modelo retórico, menos pelos termos, e mais pela forma sutil de proselitismo. Essa forma sutil,
acreditamos, será a forma predominante de divulgação dessa tradição, a menos que mude a
linha de raciocínio do daojiao.

Ao final do livro pode-se encontrar um convite: “Se você estiver interessado em conhecer
mais sobre taoísmo ou conhecimentos afins, entre em contato com a Sociedade Taoísta do
Brasil” seguido de endereço no Rio de Janeiro e telefone (LAO TSE, 1998, p.141)7. Se por
um lado, o convite explícito para visitar a STB parece ser mais direto, os termos
“conhecimentos afins” e “se você estiver interessado” reafirmam o caráter sutil do
proselitismo taoísta frente o público brasileiro. Também observamos mais uma vez a
autoqualificação de tradição autorizada, já que a STB se apresenta como fonte de
ensinamentos taoístas ao leitor(a). Depois, ainda temos a indicação de obras do mesmo autor
publicadas pela editora, novamente fazendo propaganda aos livros do mestre Cherng.

4. Revisitando o caminho - Conclusão

Buscamos tecer alguns apontamentos sobre os modos de divulgação do taoísmo dentro do


contexto de sua transplantação ao Brasil pelo mestre Wu Jyh Cherng. De maneira geral
pontuamos duas questões, uma como revisão, outra como meta para próximos trabalhos sobre
este tema no Brasil. Primeiramente, pudemos perceber que mesmo nos contornos de um texto
sagrado traduzido – capa, contracapa, dedicatória, agradecimentos, iconografia, introdução,

7
Apesar de termos utilizado a referência de Lao Tse (1998), na verdade trata-se de um “anexo” do livro, mais
especificamente um espaço extra da obra onde não se determina o autor exato. Por muito provavelmente foi
alguém da STB que solicitou este convite no final do livro, talvez o próprio Cherng.
convite – uma religião pode encontrar meios de divulgação da tradição. No caso estudado,
observamos uma primeira experiência de proselitismo taoísta pela linhagem do mestre
Cherng, mas sempre de forma sutil, evitando confrontos e convidando constantemente a
entrar na lógica taoizante. Assim afirma-se como tradição autorizada (HERVIEU-LÉGER,
2008) através de um processo de acomodação (BURKE, 2003).

Em segundo lugar, gostaríamos de expor nossa consciência dos limites deste ensaio, e já
apontar para outros horizontes: “Textos sagrados são mais importantes para sacerdotes do que
para leigos, mas nem estes, nem aqueles contentam-se com eles. Sua vida religiosa é mais
abrangente do que apenas a doutrina e sua interpretação” (GRESCHAT, 2005, p.63). Ou seja,
resta-nos agora saber: como o proselitismo sutil contido numa tradução e apresentado neste
ensaio é recebido por adeptos da Sociedade Taoista do Brasil? Quais são os elementos da vida
religiosa taoísta que não são encontrados em suas escrituras?

Referências
BIZERRIL, José. Retorno à raiz: tradição e experiência de uma linhagem taoísta no Brasil.
São Paulo: Attar, 2007.
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Tradução Leila Mendes. São Leopoldo, RS: Editora
Unisinos, 2003.
CHERNG, Wu Jyh. Iniciação ao Taoísmo: volume 1. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
CHERNG, Wu Jyh. Introdução. Em LAO TSE. Tao Te Ching: o livro do caminho e da
virtude. Tradução Wu Jyh Cherng. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é a ciência da religião?. Tradução Frank Usarski. São
Paulo: Paulinas, 2005.
HERVIEU-LÉGER, Daniele. O peregrino e o convertido – a religião em movimento.
Tradução João Batista Kreuch. Petrópolis: Vozes, 2008.
LAO TSE. Tao Te Ching: o livro do caminho e da virtude. Tradução Wu Jyh Cherng. Rio de
Janeiro: Mauad, 1998.
MURRAY, Daniel. Daoism in Brazil: the globalization of the Orthodox Unity (Zhengyi)
tradition. An essay submitted to the Department of Religious Studies in conformity with the
requirements for the degree of Master of Arts. Queen’s University: Kingston, Ontario, Canada,
(June) 2010.
POCESKI, Mario. Introdução às religiões chinesas. Tradução Márcia Epstein. São Paulo:
Editora Unesp, 2013.
ROBINET, Isabelle. Taoism: growth of a religion. Tradução Phyllis Brooks. Stanford:
Stanford University Press, 1997.
ROHDEN, Huberto. Introdução, tradução e comentários. LAO-TSÉ. Tao Te Ching. São Paulo:
Martin Claret. 2003.
SOUZA, Marcia Coelho de. Apresentação. Em LAO TSE. Tao Te Ching: o livro do caminho
e da virtude. Tradução e comentários Wu Jyh Cherng; coautoria e transcrição, edição e
adaptação dos textos Marcia Coelho de Souza. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011.
USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da Religião: cinco ensaios em prol de uma
disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006.

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