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Trilhando caminhos,

tecendo redes
História, linguagens e outras
possibilidades interdisciplinares

Organizadores(as):
Silvana Aparecida da Silva Zanchett
Ary Albuquerque Cavalcanti Junior
Eliene Dias de Oliveira
Jiani Fernando Langaro

Cegraf UFG
Universidade Federal de Goiás

Reitora
Angelita Pereira de Lima
Vice-Reitor
Jesiel Freitas Carvalho

Diretora do Cegraf UFG


Maria Lucia Kons

Conselho Editorial deste livro


Ana Paula Squinelo
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Aníbal Herib Caballero Campos
Universidad Nacional de Asunción
Elena Nava Morales
Universidad Nacional Autónoma de México
Fulvia Zega
Università degli Studi di Genova
Karin Grammático
Universidad de Buenos Aires
Leandro Baller
Universidade Federal da Grande Dourados
Luiza Consuelo Soler Lizarardo
Universidad Autónoma de Chile
Thaís Leão Vieira
Universidade Federal de Mato Grosso
Valeria Macía
Universidad Nacional de Jujuy
História, linguagens e outras
possibilidades interdisciplinares

2º Edição

Cegraf UFG
2023
© Cegraf UFG, 2023
© Silvana Aparecida da Silva Zanchett; Ary Albuquerque Cavalcanti Junior;
Eliene Dias de Oliveira; Jiani Fernando Langaro (org.), 2023

Projeto gráfico e capa


Géssica Marques de Paulo

Diagramação
Allyson Moreira Goes

Revisão
Vanda Ambrósia Pimenta

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


GPT/BC/UFG

T829 Trilhando caminhos, tecendo redes: história, linguagens e outras


possibilidades interdisciplinares [Ebook] / organizadores,
Silvana Aparecida da Silva Zanchett … [et. al.]. - 2. ed. - Dados
eletrônicos (1 arquivo : PDF). - Goiânia : Cegraf UFG, 2023.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-495-0732-7

1. Educação. 2. Abordagem interdisciplinar do conhecimento na


educação. 3. Linguagem e educação. 4. História oral. 5. Mulheres. I.
Zanchett, Silvana Aparecida da Silva.
CDU: 37

Bibliotecária responsável: Adriana Pereira de Aguiar / CRB-1: 3172


A Elveni Caldeira,
in memoriam.
Pescar é preciso

Por que acordar no meio da noite


Sentir do vento o açoite
Vestir uma roupa fria?
Seguir madrugada adentro
Ondas altas, fortes ventos?
Porque pescar é preciso.

Por que curtir tanto sol


Enrugar o rosto, calejar as mãos
Navegar com força
E até esquecer os desejos do coração?
Porque pescar é preciso.

Por que a pressa de entrar no mar


Se há calmaria no coração?
A fé é a certeza de que vais voltar…
Mas pescar é preciso.

A herança é bela, sábio destino


Tens a pesca desde menino!
Jangada à vela ou bote de remo
O mar é sereno!
Pescar é preciso.

Olhaste a lua, sentiste a brisa?


O barco flutua…
Pescar é preciso.

O tempo é pouco
Para apreciar o brilho da lua
O balanço do mar.
Soltando linha ou iscando anzol
Nem mesmo percebes o pôr do sol
A vida é dura, o dever me avisa:
Pescar é preciso.

A noite é longa,
Calma, escura e fria
Nem sempre fazes boa pescaria!
Por que não tentas um pouco mais adiante?
Assim largas a corda e vai mais distante.
As luzes se escondem, cobriram-se os montes,
Só águas te rondam…
Pescar é preciso.

Por que águas frias,


fazem companhia no amanhecer?
Quando alguém há alguém
Que inspire do teu benquerer?
Desafia o homem, tem que ir à luta,
Pescar é conduta do grande destino.
A vida é confusa,
Sonhos… improvisos
Eu fico com os sonhos
Mas pescar é preciso.

Luzanete Lima
Pescadora e poeta de Taíba, São Gonçalo do Amarante, Ceará
Sumário

Prefácio...............................................................................................................11

Apresentação ...................................................................................................13
Silvana Aparecida da Silva Zanchett
Ary Albuquerque Cavalcanti Junior
Eliene Dias de Oliveira
Jiani Fernando Langaro

Parte I
Educação, pesquisa e ensino:
História, literatura e linguagem

Universidades e depurações do corpo docente espanhol


durante a guerra civil e o primeiro franquismo ....................................21
Lucileide Costa Cardoso

Práticas, contribuições e desafios da produção de materiais


didáticos em mestrados profissionais de História:
considerações baseadas em trabalhos finais na UFRB ...................55
Leandro Antônio de Almeida

Prática de ensino de História e Literatura Latina:


o papel da conscientização cultural .........................................................90
Carlos Eduardo da Costa Campos
Arlete José Mota
Elio Marques de Souto Junior
A semiótica francesa e os desdobramentos de pesquisa:
reflexões sobre paixões e textos de jornal .......................................... 106
Tiana Andreza Melo Antunes

A representatividade em “Olhos d’água”,


de Conceição Evaristo ................................................................................ 134
Gabriele Modesto Fluhr Vilalba
Geovana Quinalha de Oliveira

Lugares outros da crítica e da ficção: a inscrição


própria nos saberes como resistência e (re)existência ................... 158
Marta Francisco de Oliveira
Edgar Cézar Nolasco dos Santos

Parte II
História oral e memória: mulheres,
trabalhadores(as) e migrações

História das mulheres: lutas e resistências ao patriarcado


na colônia de pescadores(as) em Itapissuma ................................... 175
Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão

Corpos femininos: histórias de vida de mulheres


pescadoras nos pantanais sul-mato-grossenses ............................ 200
Silvana Aparecida da Silva Zanchett

Gênero e feminismos como teoria/prática de


resistência no campo das Ciências Sociais ........................................ 223
Vivian da Veiga Silva

História oral de vida: transcriando histórias e viveres .................... 250


Eliene Dias de Oliveira
História oral, memórias e migrações na fronteira entre
Brasil e Paraguai: uma análise de narrativas de
trabalhadores brasiguaios........................................................................ 266
Jiani Fernando Langaro

Vinte e cinco anos da primeira obra historiográfica sobre


mulheres e ditadura militar no Brasil: entrevista com
a professora Ana Maria Colling .............................................................. 294
Ary Albuquerque Cavalcanti Junior

Sobre os(as) autores(as) ........................................................................... 313


PREFÁCIO

Trilhar caminhos, tecer redes, construir conhecimento interdis-


ciplinar. Esta obra, organizada por colegas e amigos(as), desafia-nos
a responder à necessidade de superação da visão fragmentada nos
processos de produção e socialização do conhecimento histórico. É
um livro que nos ajuda a pensar a história sob o olhar interdisciplinar,
criando, por conseguinte, possibilidades plurais de produzir. Pensar
é rizomatizar, é produzir marcas, tecer redes/raízes.
Em certas leituras que venho realizando nos últimos tempos,
ponho-me a perguntar: que fissuras o conhecimento produz em nós?
Que desvios criamos por meio do encontro com as leituras, com as
histórias? O que a literatura, a história, a geografia, a sociologia, a
psicologia nos força a pensar? Que linhas de fuga temos experimentado
através das redes e trocas de saberes? Que desconstruções estamos
produzindo em nossos escritos? Que desterritorializações e minori-
zações são necessárias para fazer interferências na realidade atual?
Minorizar a história e sua episteme. O “menor” como potência
na escrita e na produção historiográfica. O “menor” que se esconde
e se imerge no hegemônico. Trilhar o “menor” é encontrar o devir da
história, é romper a história. Pensar e construir espaços de socialização
não é fácil! Mas é necessário compor novas cartografias, encontrar
linhas de fuga e dilacerar teorias que, apesar de sua potência ines-
gotável, hoje se limitam à produção da mesmice.
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Muitas vezes são os espaços “menores”, as produções “menores”,


os devires minoritários que rompem com as estruturas molares, criam
rachaduras e aberturas. São devires que se movimentam e se cruzam,
fazem novas experimentações, novas linguagens, novas cores, novos
corpos. Devires feitos de encontros infames, de gentes do interior, de
misturas inusitadas, de relações amorosas pouco convencionais, de
rizomas que se interlaçam. Tenho ultimamente defendido que onde
moram os desvios, as torções, onde aparecem as frestas, as fissuras,
aí está o conhecimento, escondido, subalternizado.
Para que(m) serve nosso conhecimento? Para ativar a potência
dos corpos, criar vidas, inventar mundos ou para engordar currículos
Lattes? Os temas que compõem esta obra apontam, de certa forma,
para a resposta a estas perguntas e nos evocam a força do devir. São
movimentos que nos arrastam à potência de um mundo melhor.
Potência de um devir-mulher para resistir ao machismo, à violência, à
misoginia; potência de um devir-criança para fugir do adultocentrismo
que existe em nós, para nos tornar criativos, leves e brincantes como
são as crianças; potência do devir-negro como maneira de resistir ao
racismo e ter a força da (re)existência negra na história.
Esta coletânea revela uma estratégia afirmativa, ética e trans-
formadora, com ênfase nas intensidades, amizades e cumplicidades,
nos nomadismos e nas fissuras da história.

Losandro Antônio Tedeschi


Coordenador da cátedra Unesco
Gênero, Diversidade Cultural e Fronteiras
na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)

Sumário
APRESENTAÇÃO

Silvana Aparecida da Silva Zanchett


Ary Albuquerque Cavalcanti Junior
Eliene Dias de Oliveira
Jiani Fernando Langaro

A presente coletânea é uma produção do grupo de pesquisa


Trilhas: Migrações, Fronteiras e Gênero, registrado no CNPq e com
sede na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), no
Câmpus de Coxim (CPCX). De perfil interdisciplinar, o grupo conta
com pesquisadores(as) de diferentes regiões do Brasil, notadamente do
Centro-Oeste. Esta publicação que ele traz à tona visa contribuir para
ampliar as discussões sobre os temas a que se dedica e atender aos seus
objetivos de fomentar a divulgação de investigações acadêmicas focadas
em análises históricas, linguísticas e literárias – produções difundidas
pelo grupo mediante encontros de estudos, seminários, publicações e
participações em eventos de cunhos nacional e internacional.
Entre os maiores eventos já organizados pelo grupo Trilhas, estão
a I Semana Internacional de História e a IX Semana de Ciências
Humanas: Contemporaneidades, Resistências e Discursos, ocorrida
no ano de 2020 na UFMS-CPCX, em Coxim, MS, sob a coorde-
nação da Profa. Silvana Aparecida da Silva Zanchett. Foi durante a
realização desse evento que os(as) integrantes do grupo de pesquisa
sentiram a necessidade de publicar um livro. Perceberam que já era
o momento de divulgar os resultados – parciais e finais – de inves-
tigações desenvolvidas por pesquisadores(as) de várias regiões do
país ao longo de mais de meia década de existência do grupo Trilhas.
14

Eventos como esse sempre possibilitaram aos membros do grupo


transitar por várias áreas do conhecimento e dialogar com elas, mas a
Semana de 2020 foi diferente. Apesar de todas as limitações impostas
pelos meios remotos, utilizados durante a pandemia de covid 19,
que impediu todas as atividades presenciais de 2020 até o segundo
semestre de 2021, o formato on-line permitiu uma participação
recorde de público: chegou-se à cifra de milhares de ouvintes. Foi
uma das primeiras oportunidades em que se registrou a presença
de praticamente todos(as) os(as) integrantes do grupo de pesquisa.
Assim, houve um profícuo intercâmbio de investigações acadêmicas
e articulações interdisciplinares. Também não se pode negar a con-
tribuição da Semana para o nascimento desta obra, embora ela não
se restrinja à publicação de textos apresentados no evento.
Os(as) autores(as) aqui reunidos(as), de perfil diferenciado no
tocante a aspectos formativos e institucionais, procuram colaborar para
a consolidação e divulgação das pesquisas realizadas principalmente
em regiões afastadas do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, conquanto
não se furtem ao diálogo com pesquisadores dos grandes centros,
como atesta esta publicação. São profissionais das Ciências Humanas
ligados pela preocupação com os estudos sobre migrações, gênero,
trabalho, história oral, educação, ensino de história, literatura, ficção
e fronteiras, e pela abordagem de sujeitos históricos como mulheres,
trabalhadores(as), intelectuais, entre outros.
Para melhor organizar a coletânea, os capítulos foram distribuídos
em duas partes. A primeira, pelos textos que concentra, intitula-se
“Educação, pesquisa e ensino: história, literatura e linguagem”. A
segunda parte reúne capítulos que lhe renderam o título “História
oral e memória: mulheres, trabalhadores(as) e migrações”.
A Parte I é inaugurada pelo capítulo “Universidades e depurações
do corpo docente espanhol durante a guerra civil e o Primeiro Fran-
quismo”, de Lucileide Costa Cardoso. A autora estuda os impactos
da guerra civil e do franquismo sobre as universidades da Espanha,

Sumário
15

abordando a educação sob um prisma ainda pouco estudado: o en-


sino superior e a perseguição movida contra docentes em períodos
de “exceção”. Tomando como fonte as publicações das universidades
espanholas, Cardoso faz uma radiografia destas publicações, que,
como ela própria admite, envolvem uma vasta quantidade de títulos
e temas que demandam futuros estudos interpretativos. Os trabalhos
apresentados pela autora são produzidos por sujeitos que ocupam o
lugar de protagonistas historiográficos. São interpretações, valorações
e descrições de questões universitárias. Diante dessas fontes, Car-
doso conclui que existe uma oscilação do corpo docente espanhol
entre acomodações e resistências ao novo regime autoritário que se
estabelecia como vencedor.
No capítulo “Práticas, contribuições e desafios da produção de
materiais didáticos em mestrados profissionais de História: consi-
derações baseadas em trabalhos finais na UFRB”, Leandro Antônio
de Almeida traça um perfil da produção didática elaborada no curso
de mestrado profissional em História da África, da Diáspora e dos
Povos Indígenas ofertado pela Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia, onde trabalha. O autor avalia os potenciais, os desafios
e as perspectivas da produção didática gerada nesse curso, que é
disponibilizada gratuitamente para o público.
O capítulo “Prática de ensino de História e Literatura Latina:
o papel da conscientização cultural”, de Carlos Eduardo da Costa
Campos, Arlete José Mota e Elio Marques de Souto Junior, destaca
a importância do uso de objetos de cultura material no ensino da
literatura latina produzida no Império Romano durante o século de
Augusto (de I a.C. a I d.C.). Os autores relatam um procedimento
didático realizado em duas turmas da disciplina Literatura Latina
IV, constante do currículo mínimo do bacharelado e da licenciatura
em Português-Latim da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Por meio desse relato, eles compartilham suas experiências
no ensino de literatura latina, permeado pela interdisciplinaridade
com a história antiga.

Sumário
16

Em “A semiótica francesa e os desdobramentos de pesquisa:


reflexões sobre paixões e textos de jornal”, Tiana Andreza Melo Antu-
nes faz avançar a discussão sobre ensino proposta por esta coletânea.
No empenho por ensinar gêneros discursivos de forma mais eficaz,
a autora efetua um diálogo com a semiótica de matriz francesa para
analisar um entrelaçamento desses gêneros composto por reportagens
jornalísticas. Dentro dessa proposta, apresenta o aspecto sensível
dos textos com base em uma leitura mais detalhada das reportagens.
Efetua, dessa maneira, uma conexão entre semiótica, sensibilidades
e ensino dos gêneros discursivos tendo em vista promover mudanças
nas práticas de sala de aula.
O capítulo “A representatividade em ‘Olhos d’água’, de Con-
ceição Evaristo”, redigido por Geovana Quinalha de Oliveira e Ga-
briele Modesto Fluhr Vilalba, analisa a escrita de Conceição Evaristo
e destaca as imagens cotidianas transvestidas para o processo criativo
de uma literatura que é linguagem e corpo. As autoras descrevem,
ainda, a pluralidade dos corpos femininos e dos movimentos políticos,
intelectuais e culturais, como o feminismo negro. Na visão delas,
por este último movimento se percebe o quanto as mulheres negras
foram, e ainda são, penalizadas, marginalizadas e invisibilizadas nos
processos históricos, sobretudo em contextos de crises econômicas
e/ou de saúde, a exemplo da pandemia covid-19.
“Lugares outros da crítica e da ficção: a inscrição própria nos
saberes como resistência e (re)existência”, de Marta Francisco de
Oliveira e Edgar Cézar Nolasco dos Santos, encerra a primeira
parte do livro. Os autores fazem uma reflexão acerca de produções
linguísticas, culturais e literárias, regionais e nacionais, através da
apresentação de uma proposta para uma política da crítica biográfica
fronteiriça, teorizando sobre sua compreensão da fronteira Sul. A
figura do autor/pesquisador/intelectual é inserida no debate, bem
como o uso da linguagem literária, o que traz à tona uma percepção
conceitual das hegemonias e relações de poder presentes na cons-
trução do conhecimento e operadas por meio da e na linguagem.

Sumário
17

Abrindo a Parte II desta obra, temos o capítulo “História das


mulheres: lutas e resistências ao patriarcado na colônia de pesca-
dores(as) em Itapissuma”, de Maria do Rosário de Fátima Andrade
Leitão. A autora problematiza a história das mulheres enfatizando
as relações de poder permeadas por questões de gênero típicas do
modelo patriarcal e que fundamentam hierarquias e desigualdades
de direitos sociais. Para dar conta dessa temática, Maria do Rosário
toma como objeto de estudo o caso das pescadoras de Itapissuma,
litoral do estado de Pernambuco, e suas maneiras de lutar e resistir
ao patriarcado e ao peso das relações de gênero desiguais que viven-
ciam cotidianamente.
O capítulo “Corpos femininos: histórias de vida de mulheres
pescadoras nos pantanais sul-mato-grossenses”, de Silvana Apare-
cida da Silva Zanchett, dá continuidade à discussão sobre mulheres
pescadoras proposta pela coletânea. Lançando mão de memórias
cotidianas de mulheres pescadoras, a autora fala das narrativas orais
construídas no mundo ribeirinho e pantaneiro. Para isso, descreve
práticas, viveres e saberes que essas mulheres vivenciam e compar-
tilham às margens dos rios do Pantanal Sul-Mato-Grossense.
Em “Gênero e feminismos como teoria/prática de resistência no
campo das Ciências Sociais”, de Vivian da Veiga Silva, é apresentado
o processo de desenvolvimento histórico dos feminismos e o de
consolidação da categoria gênero no campo acadêmico. Além disso,
com base na ótica de Michel Foucault, a autora traz uma importante
reflexão acerca do significado de resistência. Nessa proposta, relaciona
gênero e feminismos às ações e práticas contra os diversos poderes
instituídos tanto na sociedade quanto no âmbito acadêmico, na área
das Ciências Sociais.
No capítulo “História oral de vida: transcriando histórias e vive-
res”, Eliene Dias de Oliveira dialoga com o conceito de transcriação
de histórias orais de vida como um caminho metodológico para a
construção da narrativa historiográfica. À luz da entrevista concedida

Sumário
18

por uma migrante, apresenta o texto produzido e dado a ler como


uma construção em coautoria: de um lado, uma autora que elabora o
plano de trabalho, propõe a entrevista, questiona, sugere, transcreve e
transcria; de outro, uma autora que responde, lembra, discorre sobre
eventos, sentimentos e memórias de outros tempos e, por último,
endossa o texto final da narrativa apresentado pela pesquisadora. É
assim que ela procura discutir os caminhos da pesquisa e as nuances
do trabalho com história oral que, às vezes, escapam aos debates
metodológicos do ofício do(a) historiador(a).
O capítulo “História oral, memórias e migrações na fronteira
entre Brasil e Paraguai: uma análise de narrativas de trabalhadores
brasiguaios”, de Jiani Fernando Langaro, analisa as narrativas orais
de trabalhadores brasiguaios retornados: homens que nasceram no
Brasil, cresceram e passaram parte de suas vidas no Paraguai, onde
trabalharam no campo, e depois se deslocaram de volta ao país de
origem, tendo se fixado nas pequenas cidades da fronteira. Espe-
cificamente, o autor reflete sobre as maneiras como esses sujeitos
narram suas vidas e experiências de trabalho no Paraguai. Em suas
pesquisas, ele identificou dois enredos, um que trata o país vizinho
sob o prisma da negatividade e outro que positiva a vida rural ali ex-
perienciada. Cotejando entrevistas orais e memórias com as relações
sociais e experiências vividas pelos narradores ao longo dos processos
migratórios, Langaro procura confrontar essas duas maneiras de
narrar a vida no Paraguai.
Por fim, fechando a segunda parte, a coletânea traz uma entrevista
intitulada “Vinte e cinco anos da primeira obra historiográfica sobre
mulheres e ditadura militar no Brasil: entrevista com a professora
Ana Maria Colling”, realizada por Ary Albuquerque Cavalcanti Junior
com a Profª Ana Maria Colling. Na entrevista, Colling destaca os
desafios e as contribuições de seu estudo pioneiro sobre as mulheres
e a ditadura militar, publicado em 1997. Faz ainda uma explanação

Sumário
19

sobre as relações de gênero no período estudado pela obra e a im-


portância de Michel Foucault em sua formação.
O conjunto formado pelos capítulos que compõem este livro
permite divulgar preciosidades pesquisadas em diversas realidades do
país e emergidas principalmente de estudos de caráter regional, ainda
pouco valorizados pela academia. Esses estudos são representativos
do quão diverso é o Brasil, possibilitando ampliar o entendimento
sobre o país na medida em que trazem uma multiplicidade de co-
nhecimentos interdisciplinares, abordados com riqueza de detalhes.
Fica aqui o convite aos(às) leitores(as) para as múltiplas leituras e
combinações oportunizadas através desta produção, que, calcada
no plural, em hipótese alguma, espera uma recepção homogênea.

Sumário
PARTE I
EDUCAÇÃO, PESQUISA E ENSINO:
HISTÓRIA, LITERATURA E LINGUAGEM
UNIVERSIDADES E DEPURAÇÕES DO CORPO
DOCENTE ESPANHOL DURANTE A GUERRA
CIVIL E O PRIMEIRO FRANQUISMO

Lucileide Costa Cardoso

O objetivo inicial deste estudo1 é entender o modo como se


deu a perseguição ao corpo docente dentro do sistema de ensino
espanhol, com maior atenção às universidades. Essa conjuntura fez
parte do modelo repressor empregado pelos fascistas, já utilizado
como objeto de análise por vários historiadores espanhóis, especial-
mente na área da educação. A sofisticada engrenagem da máquina
de expurgo do corpo docente, constituída e aperfeiçoada durante
quatro décadas de existência do regime franquista, foi explicada com
mais rigor pelos estudiosos como a responsável por aplicar de forma
seletiva a “limpeza política” dos quadros universitários. Apreender os
diversos conceitos que orientaram essa prática, suas leis repressivas
e o estabelecimento de instituições para essa “limpeza” nos motiva
a revisitar uma bibliografia relativa ao assunto perscrutando os casos
mais contundentes de expurgo no campo científico espanhol.
As questões que habitam o universo bibliográfico e historiográfico
concernente ao sistema educacional e às universidades espanholas
contemporâneas representam um vasto campo e, por isso, merecem

1 Este capítulo de livro foi financiado pelo Programa CAPES/PRINT-UFBA,


Processo 88887.470137/2019-00, mar./2020-fev./2021, pesquisa realizada como
Professora Visitante Sênior da Universidad Autônoma de Madrid, atuando
também como Professora Titular do Departamento e do PPGH/UFBA/Brasil.
22

aprofundamentos. Com esse direcionamento, abordamos o tema das


depurações políticas e ideológicas do corpo docente universitário
na expectativa de alcançar uma sistematização sobre o assunto e,
assim, extrair os principais casos de professores perseguidos na área
das Ciências Humanas no nível acadêmico.1 Para tanto, partimos
da aplicação do conceito de “limpeza política”, diferenciando-o do
conceito de repressão, que faz alusões aos mecanismos, às atuações e
aos meios de intervenção para se conseguir o controle político-social
sobre um coletivo. A limpeza política representa “la dinámica de
homogeneización política de la población de un territorio por medio
del uso de la fuerza o la intimidación contra los grupos identificados
como enemigos políticos” (Cruz, 2007, p. 6).
No estudo do processo de depurações de professores, utilizamos
reflexões postas por autores espanhóis, passando a dialogar com
algumas pesquisas focadas no controle e na vigilância exercida pelo

1 Embora este estudo seja voltado para as universidades, parece-nos oportuno


entender que o processo das depurações do corpo docente não se restringiu
ao meio universitário, mas teve também alcance danoso nas instituições
do ensino secundário. Margarita Ibañez Tarín (2017) apresenta um amplo
panorama do ensino secundário no País Valenciano, priorizando a análise dos
professores franquistas e antifranquistas durante a guerra civil e a vigência do
regime de Franco. Na cidade de Valencia, ela detecta dezenove professores
exilados de quatro institutos secundários, seis dos quais haviam ministrado
aulas no Instituto Luis Vives durante a guerra civil. Outras cidades também
comportam cifras de professores deportados entre os intelectuais que tiveram
de sair da Espanha depois da derrota republicana. Os professores do ensino
secundário, em sua maior parte, dirigiram-se para o México, totalizando
doze professores valencianos que encontraram refúgio nesse país durante
o governo do presidente Cárdenas. Um grupo destes professores exilados
fundou na capital mexicana um centro de ensino, dando-lhe o nome de Ins-
tituto Luis Vives da Cidade do México, a mesma denominação do Instituto
de Valencia do qual procediam. Foi uma maneira simbólica de não romper
laços com a Valencia republicana que o grupo havia deixado para trás. O
Instituto tornou-se o primeiro centro que se criou no exílio por iniciativa
do Servicio de Evacuación de Refugiados Españoles (Sere), em agosto de
1939, sessenta dias após o fim da guerra civil.

Sumário
23

aparato repressivo, que enxergou na liberdade de ensino uma das


principais ameaças ao seu projeto de poder. Sara González (2015)
realizou um levantamento das publicações lançadas nas últimas dé-
cadas em torno das depurações e apontou um repertório bibliográfico
significativo sobre essa etapa da ditadura. O binômio universidade/
franquismo tornou-se o marco de referência para analisar uma amostra
significativa de investigações, incluindo também o caso particular
das universidades laborais integrantes do projeto falangista reinante
na Espanha fascista do pós-guerra civil. González assevera que, nos
últimos tempos, a história das universidades seguiu uma linha mais
interpretativa, sendo de incalculável valor o estudo realizado pelo
Centro de História da Universidade Alfonso IX, com a edição em
diversos tomos da história da Universidade de Salamanca. Exemplos
similares se encontram nas universidades de Valladolid, Valencia,
Santiago, Granada la Laguna, Zaragoza, entre outras. São obras vo-
lumosas que contaram com o apoio financeiro de suas instituições.
Foram motivadas por algum tipo de comemoração ou centenário,
ou ainda pela celebração de eventos de caráter científico. É o caso
da obra dedicada à história da Universidade de Barcelona (1990),
resultado das comunicações pronunciadas no Simposi d’Història de
la Universidad de Barcelona, realizado em 1988 como ato comemo-
rativo dos 150 anos de restauração dessa universidade.
Outro exemplo é a coletânea coordenada por Rodríguez-SAN Pedro
Bezares e Juan Luis Polo, intitulada La Universidad contemporânea,
em que se encontra uma bibliografia destacada sobre as universidades
no século XX. Muitas revistas europeias e nacionais também se dedica-
ram ao tema. Contudo, o objeto central da coletânea e dos períodicos
é a análise bibliográfica para o estudo da história da universidade na
Espanha durante o franquismo. A primeira referência no debate sobre
educação e franquismo é o compêndio La educación en España: a
examen (1898-1998), que concentra uma ampla quantidade de assun-
tos sobre o período. Esse debate foi objeto, também, de colóquios e

Sumário
24

dossiês de revistas. No ano de 1989, a revista Historia da Educación


trouxe a contribuição do professor José M. Hernández Díaz, que fez um
levantamento bibliográfico de trabalhos sobre franquismo e educação
editados entre 1975 e 1989. Em 2008, a revista Educación i Història,
número 12, publicou alguns dos trabalhos apresentados no Seminari
la Guerra Civil i el Trencament de la Política Educativa Republicana,
organizado pela Sociedade de História da Educação de Palma em finais
de 2006. No número anterior, a mesma revista havia editado uma série
de artigos organizados por Juan Manuel Fernández Soria, Alejandro
Mayordomo e Bernat Sureda, que abordaram a ruptura da política
educativa da II República durante o período do conflito bélico. Esse
número destacou temas como a depuração e o exílio levados a cabo
no magistério ou as mudanças na cultura escolar.2
Igualmente importante é o estudo realizado por Maria Ángeles
Sotés Elizalde (2004), dedicado à universidade franquista e à li-
berdade do ensino, bem como o de Jaume Claret Miranda (2006a)
sobre a destruição da universidade, considerado uma das melhores
análises já publicadas sobre o tema. As referências integram a obra
coordenada por Carreras Ares e Ruiz Carnicer (1991), composta dos
trabalhos apresentadas no congresso celebrado em Zaragoza em 1991
sobre a universidade espanhola no regime de Franco (1939-1975).
A temática é abordada ainda de modo significativo em artigos como
o de Hernández Sandoica (2002) a respeito da ditadura e da univer-
sidade, com especial atenção ao caso de Madrid, e os de Carolina
Rodríguez Lopez (2002), Hernández Díaz (1997) e Redero San Román
(2002), acerca das universidades espanholas durante o franquismo.
Também se tornaram recorrentes as análises dos marcos normativos,
destacando-se nessa área a Ley de Ordenación de la Universidad
Española (1943) e a Ley de Reforma Universitaria (1983).

2 Ver Capitán Díaz (1994), Escolano Benito (2002), Fernández Soria (1998,
2002), Mayordomo (1990, 1999), Puelles Benítez (1991, 2007) e Ruiz
Berrio et al. (1999).

Sumário
25

Uma vasta bibliografia remete ainda ao alunado universitário,


especialmente à mobilização e oposição estudantil ao regime, com
destaque para Estudiantes contra Franco (1939-1975): oposición
politica y mobilización juvenil, livro publicado em 2007 e coordenado
por Hernández Sandoica, Ruiz Carnicer e Baldó Lacomba. Alberto
Carrillo Linares, especialista em movimento estudantil de oposição
à ditadura, também investiga as culturas políticas desse movimento,
suas formas organizativas, sua evolução, suas reivindicações e outros
assuntos (Linares, 2006, 2008, 2011, 2013). Outro investigador do
tema é Sergio Rodríguez Tejada, que escreve vários artigos centrados
no movimento estudantil em Valencia e um trabalho original sobre a
militância das mulheres no movimento estudantil antifranquista (Ro-
dríguez Tejada, 2002, 2004, 2008, 2009, 2014, ). Afora os já citados
com este tema, enumeram-se ainda os estudos de Miguel Ángel Ruiz
Carnicer (1999, 2005), Juan Luis Rubio Mayoral (2005), Eduardo
González Calleja (2009), José Álvarez Cobelas (2004), Roberto Mesa
(2006), Andrea Fernández-Montesinos Gurruchaga (2008, 2009)
e Ramón Cotalero (2007). Dentro dessa ampla literatura, ainda é
possível apontar os trabalhos de Fernández Buey sobre estudantes
e professores universitários contra o regime, além de pesquisas
inerentes aos sindicatos democráticos estudantis e ao movimento
dos professores. Encontramos pesquisas relacionadas ao Sindicato
Español Universitario (SEU) (Ruiz Carnicer, 1996a) e vários outros
artigos e livros de referência sobre o movimento universitário contra
Franco: Fernández Buey (1991), Martínez Foronda (2012) e Ruiz
Carnicer (1986, 1996b).
Da extensa lista de publicações sobre os efeitos do franquismo
na universidade espanhola, destacamos o tema do exílio espanhol,
sobretudo o resumo da experiência de José Puche Álvares, deportado
para o México: “lo que se perdió en la guerra no fue sólo un gobier-
no, sino toda una cultura” (Cita de José Puche Álvares, 1989, p. 9).
Muitos professores universitários e secundários que viveram o exílio

Sumário
26

externo, principalmente os que migraram para a França e o México,


encaixam-se na metáfora “expulsados do seu espaço e do seu tempo”,
utilizada por estudiosos da história intelectual do exílio espanhol. Já
o termo “quarentena perpétua”, empregado por Margarita I. Tarìn,
identifica os professores do País Valenciano, exilados no interior do
Novo Estado e que passaram pela cultura do medo, do silêncio e da
autorrepressão dentro e fora de suas instituições de origem:

En nuestro estudio, descartando los 27 docentes de Segunda


Enseñanza que al final de la guerra tomaron el camino del
exilio exterior, hubo 48 profesores – estigmatizados por haber
padecido sanciones negativas en la depuración, multas de
responsabilidades políticas, cárcel por masonería o juicios
militares sumarísimos – que permanecieron en España
sufriendo en silencio lo que se ha venido a denominar
“exilio interior”. Un grupo muy numeroso – el 20 por cien
del total de los docentes de Segunda Enseñanza del País
Valenciano –no pudo o no quiso abandonar el país a pesar de
la penosa situación que le esperaba. (Tarìn, 2017, p. 176).

Por certo, a radiografia das universidades espanholas envolve


uma vasta quantidade de títulos e temas que demandam futuros
estudos interpretativos. Os títulos aqui citados ocupam o lugar de
protagonismos historiográficos que abrigam interpretações, valorações
e descrições de questões universitárias concernentes às acomodações
e resistências do corpo docente universitário espanhol. Há, entretan-
to, um enorme vazio bibliográfico sobre a história das universidades
espanholas no período da transição para a democracia, durante o qual
elas transformaram-se em peças essenciais do processo. O número
de trabalhos relativos a esse período segue bastante limitado; apenas
algumas revistas se tornaram referências no assunto. Sara González
cita como exemplos o número 18 (2011) da revista Educació i His-
tòria, coordenado por Alejandro Mayordomo, o número 10 (2008) de
Foro de Educación, dirigido por Juan Carlos Hernández Beltrán, e o

Sumário
27

número 21 (2002) da revista Historia de la Educación, coordenado


por Josep González-Agàpito. Por último, menciona a revista Espacio,
Tiempo y Educación (v. 2, n. 2, 2015), em que ela mesma publicou
o artigo “Universidad y transiciones a la democracia en la Europa
mediterránea e Iberoamérica (1970-1980)”.

Depuração político-ideológica no ensino universitário

No âmbito universitário, na primeira década deste século, têm


surgido obras importantes sobre o tema das depurações, como a de
Jaume Claret Miranda (2006a), El atroz desmonche: la universidad
española bajo el franquismo, e a obra coletiva dirigida por Luis Enri-
que Otero Carvajal (2006), La destrucción de la ciência en España:
depuración universitaria en el franquismo. O caso da universidade
espanhola é registrado também em fontes primárias, entre elas, os
expedientes de depuração de professores, documentos encontrados
no Arquivo Geral da Administração (AGA); os expedientes dos juízos
sumaríssimos, no Arquivo Geral e Histórico de Defesa, mais à fren-
te, denominado AGHD, em Madri; e os Informes da Seção Política
Social do Centro Documental da Memória Histórica (CDMH) de
Salamanca. Essas fontes já se encontram mapeadas e analisadas
em várias publicações, como em Casanova (2011), Nicolás Marín
(1989) e Morente Valero (1997), considerado o primeiro estudo
abrangente sobre o tema.
O principal objetivo neste capítulo consiste em analisar a depu-
ração e repressão do professorado universitário, e, para isso, destacamos
publicações relevantes de autoria do já citado Jaume Claret Miranda
(2003a, 2003b, 2004, 2006c, 2010, 2011), bem como as abordagens
de Baldó Lacomba (2011) e de Otero Carvajal (2006). Além destas,
priorizamos teses de doutoramento e artigos sobre depurações e exílios,
entre eles, o de María Fernanda Mancebo (2001) e o de Yolanda Gil
(2012), que analisa o caso do historiador e paleontólogo Pere Bosch-
-Gimpera, perseguido e exilado. Por último, ressaltamos o trabalho de

Sumário
28

Carolina Rodríguez López (2008) sobre as depurações de catedráticos


das faculdades de Direito, intitulado “Extirpar de raíz”: la depuración
del personal docente universitario durante el franquismo, publicado
no formato de capítulo de livro em Franquismus und Salazarismus:
Legitimation durch Diktatur?.
Entre essas várias publicações já referidas, a mais densa e concisa
é o artigo de Jaume Claret Miranda (2006b), “Cuando las cátedras
eran trincheras”. O texto oferece diferentes concepções das depu-
rações aplicadas aos quadros docentes na Espanha, dissecando o
conceito das depurações republicanas e sua prática administrativa,
transformada em peças jurídicas durante o período da guerra civil.
Demonstra também como o regime franquista se apropriou desses
instrumentos e os aperfeiçoou para fins de controle, vigilância e
perseguição permanente dos quadros universitários. Aliás, de acor-
do com o artigo, a repressão política se abateu não apenas sobre
as universidades, mas sobre todos os setores do sistema de ensino
espanhol, abrangendo docentes, estudantes, funcionários, inspeto-
res de ensino e demais membros da comunidade escolar primária,
secundária e universitária.
Ao lado desse quadro repressivo, Jaume Claret Miranda identifica
um cenário paralelo que ele denomina “república dos professores” ou
“segunda república” e que se caracteriza por esforços republicanos
para o desenvolvimento da educação como parte da democratização
do país. O autor aponta ainda a forte oposição entre os religiosos
católicos e os setores conservadores quando os católicos sentiram
o perigo da perda do controle e dos seus privilégios na área educa-
cional, fenômeno reconhecido como “guerra escolar”. Esse termo é
empregado para denominar o conflito entre diversos setores religiosos,
vinculados ao campo do ensino, e o Estado espanhol. Ocorreu no
período republicano, quando o Estado passou a defender a laicida-
de do ensino, configurando uma nova política educacional para o

Sumário
29

Ministério de Instrução Pública, bem como a sindicalização forçosa


da docência nos anos da guerra civil.
Claret Miranda investiga os usos da violência pelas correntes
nacionalista e católica e aprofunda-se no tema das primeiras conse-
quências das depurações profissionais. Segundo ele, a guerra civil
converteu a violência verbal em física e gerou uma contundente
repressão sob o disfarce dessas depurações. O mérito acadêmico
deu lugar ao mérito político-ideológico e iniciou-se um período de
purgação política de qualquer docente suspeito, ou seja, não sufi-
cientemente comprometido com a causa republicana.
Nos termos de Claret Miranda, a “república de professores” re-
presentou a crença na escola como formadora de cidadãos no contexto
de uma população até então formada por súditos. A esquerda e os
republicanos moderados fizeram essa aposta na cultura e na escola,
tornando-as ferramentas de regeneração, difusão e enraizamento
dos ideais democráticos republicanos. Embora a laicização do en-
sino tenha gerado a guerra escolar entre a Igreja e os republicanos,
proporcionou também uma expansão significativa da rede pública,
um aumento do número de professores, inspetores e escolas, e a me-
lhoria dos seus salários. No meio universitário, em 1931, aplicou-se
de forma experimental a tão reivindicada autonomia nas faculdades
de Filosofia e Letras de Madrid e Barcelona, e, posteriormente, em
todas as universidades da Catalunha. Com a explosão da guerra civil,
os centros universitários cerram suas portas e passam a realizar tão
somente alguns cursos de caráter patriótico e habilitações especiais
para cobrir necessidades mais urgentes dos serviços médicos. Os
primeiros meses dessa guerra se caracterizaram por um discurso de
conservadorismo corporativista, catolicismo ultraortodoxo, naciona-
lismo excludente e fascismo. A violência passou a ser considerada
como medida sanitária contra os partidos de esquerda e a democracia
em geral, concentrados principalmente nas universidades.
A guerra escolar causou reações também entre os próprios conser-
vadores e foi um período em que professores católicos, nacionalistas,

Sumário
30

reacionários e fascistas transitaram pelo mesmo espaço político, o que


igualmente se verificou entre professores derrotistas, sabotadores,
espiões e homens de ação da retaguarda republicana. Todas essas
categorias estiveram entrelaçadas com as redes de espionagem fran-
quistas, sendo, por isso, consideradas quintacolunistas, ou pertencen-
tes à Quinta Columna, organização que se consolidou em finais de
1937 e que se achava vinculada ao Serviço de Informação e Polícia
Militar (SIPM) franquista. Foram grupos filiados a partidos defen-
sores do nacionalismo espanhol, como Direita Regional Valenciana,
Renovação Espanhola e outros muitos integrados à Confederação
Espanhola de Direitas Autônomas (Ceda). Eram tradicionalistas e
confessionais, e, pouco a pouco, foram se impregnando do totalita-
rismo de corte fascista.
Na contramão destes, estavam os professores antifascistas cons-
cientes de formar parte de um movimento transnacional: simpatizantes
dos partidos republicanos e sindicatos da Frente Popular e filiados a
eles. De forma mais detalhada, os afiliados à Esquerda Republicana,
ao Partido Comunista, ao Partido Socialista e à União Republicana,
que eram essencialmente antifascistas e, em boa medida, anticle-
ricais e partidários de uma estrutura plural e federal na Espanha. A
contenda espanhola inspirou a conformação de uma cultura política
antifascista que ocupou um lugar central na Europa dos entreguerras
e na escala mundial.
O Estado via os professores antifascistas não só como dissidentes,
mas também como inimigos e decretava contra eles distintas penas,
que eram aplicadas por instituições como o Tribunal de Repressão
da Maçonaria e do Comunismo, os Tribunais de Responsabilidades
Políticas, as Comissões de Depuração Laboral, o Sistema Peniten-
ciário, entre outras. Ocorreram extorsões econômicas por meio do
pagamento de multas, além do cumprimento de penas de prisão em
decorrência de acusações de responsabilidades políticas e maçonaria.

Sumário
31

Os intelectuais foram responsabilizados como produtores da catástrofe


por serem mais inteligentes e cultos.

La depuración ha hecho desaparecer de nuestra Universi-


dad el dolor de sus miembros podridos, de los desertores
en quienes no les interesaba de ella más que la nómina,
o de los traidores que la utilizaban para encubrir con la
noble prestancia de sus títulos los designios tenebrosos
que mordían sus almas renegadas. (Cisneros, 1941 citado
por González Martínez, 1998, p. 173).

O instrumento depurativo foi aplicado durante a guerra civil


também pelos republicanos, mas não com a mesma proporção coer-
citiva do período franquista. Jaume Claret Miranda defende que as
violências praticadas nos dois períodos não se equivalem, pois os atos
de violência dos republicanos durante o conflito bélico foram uma
excepcionalidade, e não se comparam com os do regime fascista. As
punições republicanas estiveram mais concentradas em sanções admi-
nistrativas que atingiram pessoas contrárias à República e claramente
implicadas com o movimento insurgente. Tais casos são confirmados
pelos documentos depurativos localizados no Arquivo Geral da Admi-
nistração e relacionados aos catedráticos, opositores republicanos:

Entre el 3 y el 19 de agosto se confirmaban las bajas defi-


nitivas de catedráticos tan próximos e implicados con los
insurgentes, como Antonio Royo Villanova, Pedro Sainz
Rodríguez, Severino Aznar Embid, Lorenzo Gironés Na-
varro, José María Yanguas Messía, Enrique Suñer Ordóñez,
Vicente Gay Forner, Alfonso García Valdecasas, Gonzalo
del Castillo Alonso, Ángel A. Ferrer Cagigal, Salvador Gil
Vernet, Martiniano Martínez Ramírez, Francisco Gómez
del Campillo, Eduardo Pérez Agudo y Blas Pérez González.

Sumário
32

A éstos, se añadía el día 28 el catedrático de Salamanca


José María Gil Robles.3

A equivalência entre a repressão republicana e a franquista


é realmente impossível se levarmos em conta o sentido amplo, a
contundência e a discricionariedade do franquismo. A depuração
franquista se iniciava com o afastamento do serviço de todos os em-
pregados públicos, uma verdadeira triagem como medida cautelar
que se convertia em definitiva. Assim o indiciado se via obrigado a
solicitar seu reingresso e a abertura do correspondente expedien-
te de depuração de responsabilidades, isto se desejasse recuperar
seu antigo lugar. Desse modo, as diligências depuradoras podiam
iniciar-se também através de um ofício emitido por um organismo
responsável. A Igreja católica foi a principal colaboradora, salvo al-
gumas exceções, para as perseguições ideológicas dos funcionários
em geral e dos docentes em particular, contribuindo para pôr em
marcha uma autêntica contrarrevolução e uma depuração brutal
dentro do sistema de ensino espanhol. Por trás de uma linguagem
administrativo-jurídica, a depuração profissional franquista impôs
uma violenta purgação de caráter político e ideológico.
No caso dos docentes, observa-se uma mudança de padrão
depurativo a partir da vitória das forças nacionalistas. A atuação
deles passou a ser frequentemente vigiada, conforme se vê pelas
anotações da Junta de Defesa Nacional. Em 18 de março de 1939,
foi criada a Comisión Depuradora del Personal Universitario, que
assumiu a continuidade das diligências e a abertura de novos expe-
dientes, culminando com a cifra de 1.101 professores universitários
depurados até então. O suposto caráter administrativo e profissional
do processo redundava em um questionário que se centrava na

3 Archivo General de la Administración, sección Educación, IDD 1.03,


31/6047, carpeta del rectorado madrileño. Ver também a lista oferecida por
Alicia Alted Vigil (1984, p. 167-168, nota 2).

Sumário
33

conduta política, social, moral e religiosa do imputado. O acusado


era investigado tanto em suas ações concretas, como em sua pas-
sividade, sua militância ou seu grau de confiança nas autoridades
republicanas, pertencentes à maçonaria, e instigado a delações sobre
atuações de seus companheiros. Os indiciados costumavam prestar
uma contundente e firme declaração de adesão ao regime franquista,
minimizando a importância das atuações suscetíveis de sanções,
negando-as e atribuindo-as a pressões, à necessidade ou vontade
de favorecer pessoas de ordem hierárquica superior. Tais respostas
exigiam comprovação com documentos e certificados emitidos por
personalidades políticas, religiosas, militares, falangistas e admi-
nistrativas, e por ex-combatentes, ex-cativos e colegas de prestígio.
Com referência ao espinhoso tema das delações, o casuísmo ia
desde a resistência e o silêncio até a desculpa do desconhecimento
dos fatos indagados, além da citação de pessoas que já se encontra-
vam no exílio. Muitas vezes, a denúncia era feita voluntariamente
por escrito como forma de cobrar contas pendentes ou de conseguir
alguma ascensão ou regalias. Os escritos denunciativos procediam
principalmente das autoridades acadêmicas (reitores e decanos),
do governo civil, de fontes militares (governo militar, auditoria de
guerra, falanges e Serviço de Informação e Polícia Militar) e das
delações anônimas, completando-se ainda pelo conhecimento direto
dos fatos pelo instrutor. Estes mecanismos evidenciavam o caráter
político da expulsão, revelado pelos interesses primordiais da ditadu-
ra franquista: a militância e as simpatias políticas, as delações e os
documentos e garantias apresentadas. Apesar de sua falta de obje-
tividade e confiabilidade, os informes dos delatores representavam
a principal base documental da depuração e demonstravam que a
arbitrariedade incluía as próprias instâncias depuradoras. Assim, até
mesmo os companheiros de prisão e, sobretudo, o juiz depurador
se convertiam em elementos decisivos para a depuração através de
seus conhecimentos prévios, filiações e fobias.

Sumário
34

Na Universidade de Madri, os catedráticos julgados por suposta


responsabilidade política ainda durante a guerra civil, segundo Jaume
Claret Miranda, foram Manuel Martínez Risco y Macías, da área de
Acústica e Óptica, José Giral Pereira e Antonio Madinaveitia Tabuyo,
ambos da Química Orgânica, Luis Jiménez de Asúa, do Direito Penal,
Obdulio Fernández Rodríguez, da Farmácia, José Gaos y González de
Pola, da Introdução à Filosofia, Pedro Salinas y Serrano, agregado da
Universidade de Sevilla, Manuel Márquez Rodríguez, da Oftalmologia,
Luis Zulueta Escolano, da Pedagogia, Américo Castro Quesada, da
História da Língua Castelhana, José Cuatrecasas Arumí, da Botâ-
nica, Cándido Bolívar Pieltain, das Ciências, Bernardino Landette
Aragó, da Odontologia, e Arturo Duperier Vallesa, da Geofísica. Os
seis primeiros desempenhavam apenas atividades acadêmicas, ao
passo que outros seis ocupavam também cargos governamentais ou
na administração pública.
Ao finalizar a guerra, os docentes mais proeminentes foram
reprimidos diretamente pelo chefe do Estado, o general Francisco
Franco. Em 4 de fevereiro de 1939, através de um decreto estabele-
cido pela Presidência do governo rompendo com a própria legislação
franquista, este determinou a separação definitiva desses catedráticos,
que, depois de julgados sem nenhuma formalidade jurídica, foram
declarados de aberta oposição ao “espírito da Nova Espanha” e ex-
pulsos pelos seus antecedentes. O decreto atingiu professores dos
cursos de Direito, Medicina, Farmácia, Química, entre outros. Na
lista dos punidos, encontravam-se Julián Besteiro Fernández, José
Gaos y González de Pola y Domingo Barnés Salinas, catedráticos
de Filosofia e Letras, e Blas Cabrera Felipe, professor de Ciências.
Entretanto a ordem mais contundente foi publicada em 29 de julho
de 1939, fixando a separação direta e coletiva de docentes bem co-
nhecidos, como Américo Castro Quesada, Agustín Viñuales Pardo,
Claudio Sánchez Albornoz, Rafael de Buen Lozano, Emilio González
López, José María Ots y Capdequí, Niceto Alcalá-Zamora Castillo,

Sumário
35

Juan Peset Aleixandre, José Puche Álvarez, Luis de Zulueta Escola-


no, Pedro Salinas Serrano, Blas Ramos Sobrino, Enrique Rioja Lo-
-Bianco, Pedro Castro Barea, Juan Manuel Aguilar Calvo, Manuel
López Rey Arroyo y Antonio Flores de Lemus. O radicalismo da
medida assim se justificava:

Es pública y notoria la desafección, no solamente [por


las actuaciones de los catedráticos] en las zonas que
han sufrido la dominación marxista, sino también por
su pertinaz política antinacional y antiespañola en los
tiempos precedentes al Glorioso Movimiento Nacional.
[...] La evidencia de sus conductas perniciosas para el
país hace totalmente inútiles las garantías procesales,
que en otro caso constituyen la condición fundamental
de todo enjuiciamiento.4

A bem dizer, a repressão franquista concentrou-se nos campo-


neses, operários, sindicalistas e militantes de esquerda, republicanos
e nacionalistas periféricos. No entanto, ela parece ter sido mais ex-
pressiva contra os intelectuais: evidências documentais comprovam
que 160 sanções foram expedidas contra os catedráticos, incluindo a
jubilação forçada, a expulsão, as transferências e a inabilitação com-
pulsória para exercer cargos. Em meio às incertezas decorrentes dos
longos processos de tramitação e revisão das sanções ditadas pelos
órgãos repressores, era inevitável a vivência do desamparo, cárcere,
exílio e assassinato, conforme indica a listagem abaixo:

4 Archivo de la Universidad Complutense de Madrid, expedientes personales


de Manuel Martínez Risco y Macías, Luis Jiménez de Asúa, José Gaos y
González de Pola, Pedro Salinas Serrano, Manuel Márquez Rodríguez,
Luis Zulueta Escolano, Américo Castro Quesada, José Cuatrecasas Arumí,
Cándido Bolívar Pieltain y Arturo Duperier Vallesa; y D 1868, que tipifica
o documento consultado, ou seja, os Oficios, 1937-1944, solicitudes de 6
y 17 de junio, y 3 de julio de 1940.

Sumário
36

Professores assassinados: Catedrático y rector de Oviedo


Leopoldo García Alas Argüelles, el catedrático y rector
de Granada Salvador Vila Hernández, el catedrático y ex
rector de Valencia Joan Peset Aleixandre, los catedráticos
de Granada Joaquín García Labella, Rafael García Duarte
Salcedo, Jesús Yoldi Bereau y el vicerrector José Polanco
Romero, el catedrático de Valladolid Arturo Pérez Martín
y el auxiliar Federico Landrove López, el catedrático de
Salamanca Casto Prieto Millán y los auxiliares Julio Pérez
Martín y Julio Sánchez Salcedo, y los catedráticos de
Zaragoza Francisco Aranda Millán, José Carlos Herrera y
Augusto Muniesa Belenguer y el hermano de este último,
el auxiliar José María Muniesa Belenguer. Además, existen
diversas muertes no suficientemente esclarecidas, como
las de los auxiliares de Madrid Manuel Calvelo López,
Francisco Pérez Carballo y Luis Rufilanchas Salcedo, y del
auxiliar de Sevilla Rafael Calbo Cuadrado, entre otras. Y,
finalmente, mencionar también la suerte – la mala suerte
– del catedrático de Madrid Julián Besteiro Fernández,
muerto en el campo de concentración de Carmona, y del
suicidio inducido del catedrático y decano de Medicina
de Santiago de Compostela Luís Morillo Uña. (Claret
Miranda, 2006, p. 519-520).

Em síntese, a repressão franquista foi muito longe, desenca-


deando uma série de sanções, da cessão dos direitos ao assassinato,
do translado ao encarceramento, da inabilitação à jubilação forçosa.
A ciência se submeteu à ideologia nacional-católica, e as vagas se
converteram em armas de guerra para os interessados em aceder
às universidades. Jaume Claret Miranda completa este raciocínio
referindo-se a uma historiografia da repressão durante o franquismo.
Segundo ele, a partir do livro Victimas de la guerra civil, de Juliá
Diaz Santos (1999), o estudo quantitativo da repressão passou por
modificações com interesse interpretativo. São significativos os
trabalhos de caráter regional e local de Arcángel Bedmar (2000),

Sumário
37

Conxita Mir (2000, 2001), Francisco Espinosa Maestre (2005),


Michael Richards (1999) e Julián Casanova (2001, 2002). Todos
eles caracterizam a violência como um traço fundamental do re-
gime franquista e deixam claro que o franquismo não foi apenas o
general Francisco Franco: o ditador contou com uma rede ativa de
cidadãos que se beneficiaram do regime e ajudaram a consolidá-lo.
Nas palavras de Conxita Mir (2001), cada vaga de um vencido por
assassinato, por prisão, por exílio, por confisco ou apreensão gerava
uma oportunidade para um vencedor.
A repressão adquiriu claramente uma coloração política e se
aplicou a todos os funcionários com o objetivo de garantir sua ade-
são ao regime. A chamada “depuração positiva” se converteu num
requisito prévio imprescindível para recuperar postos de trabalho e
para se ter acesso à função pública e a outros setores profissionais
(Nicolás Marín, 1989; Morente Valero, 1997, 2001). A depuração
profissional foi aplicada nos vários níveis do sistema de ensino, sendo
a repressão à universidade exercida por alguns dos próprios compa-
nheiros da congregação universitária que eram partidários de Franco:

Ciertamente, una mayoría de los profesores universitarios


apoyaron a la República, pero también muchos otros se
adhirieron al levantamiento – con diferentes grados de
entusiasmo, tal y como sucedía en el otro lado – y parti-
ciparon en los diferentes niveles de la naciente adminis-
tración franquista. A menudo, la adscripción dependía de
situaciones personales y geográficas, pero también había
grandes convencidos. (Claret Miranda, 2006, p. 515).

As universidades no franquismo se incumbiram de uma dupla


tarefa: a eliminação de todo vestígio do passado republicano e a cons-
trução de uma nova tradição nacional-católica. A Lei de Ordenação
Universitária, de 1943, ratificou esta interpretação e consagrou o
despotismo reitoral na Universidade de Madrid, que passou a ser
regida por uma autêntica coalizão reacionária, e depois nas outras

Sumário
38

instituições do país. Esse assunto é abordado no artigo de Yolanda


Blasco Gil e Maria Fernanda Mancebo, publicado em 2009 com o
propósito de discutir o modo como operou o fascismo na ocupação
das vagas deixadas pelos antigos professores catedráticos assassinados,
aposentados compulsoriamente, depurados e/ou exilados. As autoras
afirmam que os pressupostos de 1940, autorizaram a reforma univer-
sitária e a Lei de Ordenação Universitária que extremou o controle
do ensino. Tais medidas propagandeavam o enaltecimento da figura
de Franco e foram calcadas na manipulação da memória histórica
da nação espanhola. O ministro da Educação nomeava falangistas
para o reitorado, os professores se enquadravam no Serviço do Pro-
fessorado e os estudantes, no Sindicato Espanhol Universitário. A
Igreja, junto com a Falange, vigiava o sistema de ensino, e poderosas
organizações, como a Opus Dei, colocaram-se em primeiro plano:

Desde julio de 1940 lbáñez Martín se lanzó a iniciar y


regular los concursos y oposiciones para recomponer el
escalafón de las universidades. [...] En el escalafón de
1935 el número de cátedras de historia era escaso. La
universidad de La Laguna no tiene aún facultad de Filo-
sofía y Letras; Granada, Murcia y Oviedo sólo cuentan
con un preparatorio de aquella facultad, dotado con una o
dos cátedras. En Salamanca, Santiago, Sevilla, Valladolid,
Valencia y Zaragoza existen secciones de historia, con
un mayor número de cátedras, cuatro o cinco. Madrid y
Barcelona son las mejor dotadas, con todas las facultades,
y en Letras varias secciones, con más cátedras, algunas es-
pecializadas, como Arqueología, Numismática y Epigrafía.
Madrid conservaba la exclusiva del, que extendido a todas
en la primera dictadura, se le devolvió desde 1933. Los
catedráticos que habían superado la depuración dominaron
las disciplinas históricas, aun-que el poder ministerial era
decisivo. La escasez de profesores facilitaba los propósitos
del franquismo, y llegan nuevos docentes para cubrir las
numerosas vacantes, afectos al nacional catolicismo, muy

Sumário
39

interesado por la historia. El nacionalismo exige el control


de sus contenidos. Hay que destacar los momentos “glo-
riosos” de la Historia de España: los Reyes Católicos, la
conquista de América, la Guerra de la Independencia...
Por tanto, los nuevos profesores tendrán que participar de
esta línea historiográfica. En 1940 había pocos titulares
a causa de la depuración, del exilio, de las muertes y las
jubilaciones; fue urgente proveer vacantes. Además se
dotan nuevas plazas para distribuir y premiar a los adeptos
al régimen, comenzando por las universidades más casti-
gadas o en precario. (Gil; Mancebo, 2009, p. 122-123).

Um exemplo concreto dos casos de favorecidos pelo regime


franquista foi o sevilhano Manuel Ballestereos Gaibrois, também
conhecido como Conde Beretta graças aos seus serviços de caráter
político-militar. Gaibrois foi professor de Língua e Literatura espa-
nhola no Instituto Secundário de Burgos durante o mês de julho de
1936, e, em 1939, encarregou-se da cátedra de História Universal
e de Espanha na Universidade de Madrid. Mais tarde, em 9 de
novembro de 1942, conseguiu a cátedra dessa mesma matéria em
Valencia, onde se tornou decano de Filosofia e Letras em 24 de julho
de 1946. Finalmente, regressou à capital espanhola como catedrático
de História da América em 6 de dezembro de 1949 (Morente Valero,
2005). Esse foi um caso emblemático dos professores que acende-
ram às universidades espanholas por serem favorecidos pelo regime,
provando que o mérito militar, bem como o político e o ideológico,
passou por cima do mérito acadêmico e científico:

La represión, el exilio, la sumisión de la ciencia a la política


y la primacía del mérito político en el acceso a las cátedras
agravaron la precariedad universitaria durante la posguerra.
Desde las propias filas franquistas, el vicerrector de la
Universidad de Madrid Julio Palacios Martínez describía
con crudeza la situación: “Son tantas las personas de valor
científico que han traspuesto las fronteras de España,

Sumário
40

que la situación actual es verdaderamente desoladora y


resulta agravada porque gran número de elementos que
por su escaso valor habían sido justamente postergados
se comportan como si la guerra no hubiese sido otra cosa
que unas elecciones ganadas, y piensan que ha llegado la
ocasión de ocupar todos los puestos que antes se hallaban
en poder del adversario”. (Bullón Fernández, 1939, p. 22).

Numa obra editada por Elisabeth Reinhardt (2002) e voltada à


história e historiografia da Igreja católica, encontramos a continui-
dade dessa polêmica entre os professores franquistas, nacionalistas
e católicos, de um lado, e os antifranquistas, de outro. O assunto é
abordado no capítulo redigido pelo historiador espanhol Luis Suárez
Fernández, em que ele fala sobre o convite que lhe fizera a Funda-
ción Franscisco Franco para ordenar todos os papéis deixados pelo
general. Para o cumprimento dessa tarefa, Suárez Fernández exigiu
que lhe fossem entregues fotocópias, e não originais dos documentos,
precavendo que poderiam acusá-lo de algum sumiço de material.
Realizou reuniões com historiadores de confiança da família Franco
e da Fundação visando um estudo sobre os fundos do arquivo que o
general manejara. Mas não foi possível um acordo com esses histo-
riadores e, assim, ele elaborou por sua própria conta o livro Franco:
la historia y sus documentos (1986), em vinte volumes, cujo objetivo
foi dar a conhecer a documentação. Segundo ele, fazia-se necessário
escrever sem paixão sobre tempos tão recentes e, para muitos, tão
conflitivos: “A era Franco foi de acertos e erros, êxitos e fracassos,
e o historiador deve ter frieza suficiente para explicar umas coisas e
outras como bom profissional, evitando manipular os dados” (Suárez
Fernández, 1986, p. 341-342).5

5 A pretensa neutralidade do historiador em uma pesquisa de compilação


documental parece-nos impossível quando se estudam fenômenos fascistas,
cujas violências não se apagam com o tempo.

Sumário
41

A terrível herança do atroz desmonte da universidade durante o


franquismo e o esquecimento da universidade republicana comportam
exceções evidentes em vários casos especiais: alguns professores se
mantiveram ativos com sanções menores, outros foram favorecidos
com revisões das condenações e outros regressaram do exílio, sem
falar dos que continuaram compartilhando os seus conhecimentos
fora das aulas oficiais e atingindo um público mais amplo e não to-
talmente acadêmico. Mas, apesar destas exceções, o que sobressai,
sem dúvida, no franquismo espanhol, são os seus efeitos cruéis, so-
bretudo, os culturais: “El dilema hoy no consiste en cómo recuperar
el exilio, sino en cómo desterrar la miseria del nacional-catolicismo
que aparece en cuanto nos descuidamos, porque está en la esencia
de nuestra formación, los ancestros culturales” (Morán, 2002).

Considerações finais

No princípio dos anos trinta do século XX, os institutos, os liceus


e as universidades espanholas, em vez de locomotivas do progresso,
eram mais regeneradoras e transmissoras do acervo intelectual pré-
-industrial e pré-burguês que sustentou a ordem estabelecida pelo
antigo regime. A situação espanhola continuava sendo a mesma que
denunciava Arno Mayer no livro A força da tradição: persistência
do antigo regime na Europa (1848-1914).6 A Segunda República
não foi capaz de grandes mudanças, sendo logo destronada pelo
poder do regime fascista espanhol com seu projeto educacional de
destruição da ciência.
A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) criou um cenário em que
a purgação ideológica do professorado foi levada a cabo rápida e dras-
ticamente. A recém-instaurada ditadura franquista, em seu propósito
de consolidar o Novo Estado e garantir sua própria longevidade, empe-

6 Para mais informações sobre este assunto, consultar Lucileide Costa


Cardoso (2019).

Sumário
42

nhou-se a fundo na neutralização dos dissidentes do sistema de ensino


espanhol. Os professores antifascistas espanhóis foram submetidos às
jurisdições especiais impostas pela Lei de Responsabilidades Políticas,
pelo Tribunal de Repressão da Maçonaria e do Comunismo e pelas
Comissões de Depuração Laboral. Em conjunto com a Justiça Militar
e com o sistema penitenciário, essas instâncias garantiram a “limpeza
política” da sociedade espanhola. O Novo Estado manteve o seu afã
de eliminar todos os rastros de cultura política e de identidade coletiva
anterior reunidos sob o rótulo de antiespanha: socialismo, liberalismo,
anarquismo, comunismo, laicismo, republicanismo, nacionalismo,
feminismo, entre outras denominações.
A repressão sistemática dos docentes foi para o franquismo uma
empresa prioritária e de muito maior envergadura do que as repressões
que se levaram a cabo durante a ditadura salazarista em Portugal.
Aliás, desde sua gênese, o salazarismo e o franquismo tiveram uma
marcada diferença, não sendo equiparáveis em origem. O primeiro
nasceu de um processo político de matizes variados, o golpe de Estado
do general Gomes da Costa em 1926, que contou com a adesão de
numerosas unidades militares e de um variado setor político, composto
de monárquicos, católicos, socialistas e conservadores. Já o franquismo
teve seu advento em uma guerra civil, ponto de partida de um pro-
cesso de repressão acentuada e “limpeza política”. As duas ditaduras
coincidiram nos objetivos e no tempo, aflorando na Península Ibérica
no ápice da onda fascista levantada durante o período entreguerras
na Europa. Entretanto não compartilharam os métodos e tampouco
a data da exoneração daqueles docentes que presumidamente não
iriam colaborar com os novos valores fascistas e nacional-católicos.
Os principais argumentos e conceitos apresentados até aqui
inspiram observações aplicáveis a outros sistemas de ensino que
atravessaram ditaduras fascistas ou militares, sendo possível uma
comparação entre essas ditaduras e o franquismo não somente em
relação às resistências do professorado, mas também no tocante à sua

Sumário
43

adequação à nova ordem, de forma espontânea ou forçada. A longa


vida da ditadura franquista exigiu a instauração de sólidos sistemas
de controle político-social e a criação de novos órgãos estatais e de
agentes especializados. O regime, uma vez consolidado no poder
nos finais dos anos 1930, dedicou-se a organizar o que na ditadura
civil-militar brasileira (1964-1985) se chamou, sem eufemismos, de
Operação Limpeza. O objetivo era a identificação dos opositores à
nova ordem e, por conseguinte, sua depuração da estrutura estatal.
De acordo com Jaime Valim Mansan (2015, p. 257), “la metáfora
que associava la ácción repressiva del régimen com ‘limpeza’ estuvo
presente desde los primeiros dias de la Dictadura brasileña”. No caso
espanhol, os documentos não usam explicitamente o termo “limpeza”,
substituindo-o por “depuração”, mas, de igual maneira, os regimes
autoritários na Espanha, em Portugal e no Brasil compartilharam os
mesmos objetivos de controle político-social do professorado, edifi-
cando um Estado policial e nele baseando sua estabilidade.

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Sumário
PRÁTICAS, CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS
DA PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS
EM MESTRADOS PROFISSIONAIS DE
HISTÓRIA: CONSIDERAÇÕES BASEADAS
EM TRABALHOS FINAIS NA UFRB

Leandro Antônio de Almeida

Embora a maior parte da produção de livros didáticos seja me-


diada pelo mercado editorial desde o século XIX, a partir dos anos
2000 o capitalismo didático brasileiro experimenta uma guinada,
com a aquisição das tradicionais empresas desse setor editorial, a
exemplo da Ática, Scipione, Saraiva, Moderna e Atual, por grandes
grupos, como o Somos-Kroton e Santillana (Cassiano, 2017, 2020).
São esses grandes grupos que atualmente lideram o mercado, ao lado
de grandes empresas como a FTD. Produzindo coleções didáticas,
sistemas de ensino e paradidáticos, com tendências de migração
para os ambientes digitais, a FTD e a Somos-Kroton atingiram, in-
dividualmente, faturamentos superiores a 150 milhões de euros em
2018, marca que as colocou entre as cinquenta maiores editoras do
mundo (Cassiano, 2017, 2020; Duas brasileiras..., 2019).
Uma parte significativa desse faturamento decorre das vendas
ao governo federal. Uma pesquisa sobre a produção e as vendas do
setor editorial brasileiro aponta que quase a metade dos exemplares
produzidos nesse setor (47,5%) corresponde a didáticos. Em 2019,
o governo comprou mais da metade dos exemplares disponíveis: 224
milhões, de um total de 434 milhões. O valor pago foi correspondente
56

a pouco mais de um quarto do faturamento do setor: 1,6 bilhões de


reais, de um total de 5,7 bilhões, sendo que o exemplar comprado
pelo governo tem um preço inferior ao comprado no mercado. Dos
livros adquiridos pelo governo, 97% foram para os programas do
livro: 166.022 para o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)
e 52.942 para o PNLD Literário, quantitativos correspondentes a
um faturamento de 1,250 bilhões e 280 milhões de reais respectiva-
mente (Produção e vendas..., 2020). Os dados indicam um grande
peso do subsetor didático no mercado editorial brasileiro como um
todo, sendo o governo um agente econômico crucial em seu papel
de comprador através dos programas destinados às escolas.
Balizado por pesquisas de qualidade e atendendo a reivindicações
dos agentes ligados à educação, o governo federal pressionou as edi-
toras por um maior padrão de qualidade material e pedagógica, ao
passo que, quando consideramos os sistemas de ensino que negociam
diretamente com redes estaduais e municipais, esse controle é mais
frouxo. Desde 1996, o PNLD, principal programa no âmbito federal,
realiza rígidas e complexas avaliações das coleções didáticas e de outros
materiais destinados à distribuição nas escolas. Desde 2017, com o
Decreto nº 9.099, o PNLD absorveu paulatinamente os programas
do livro gerenciados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação (FNDE), que antes eram desmembrados em modalidades
como o Programa Nacional do Livro do Ensino Médio (PNLEM) e
o Programa Nacional da Biblioteca na Escola (PNBE). A partir do
referido decreto, o PNLD tornou-se o responsável pela avaliação
de coleções didáticas e paradidáticas, materiais para o professor,
materiais digitais e livros literários de todos os níveis escolares. Mas
o poder público não rompe com o padrão empresarial de produção:
seus editais são restritos a empresas do ramo editorial, não liberando
a participação de pessoas físicas. Dessa forma, tende-se a naturalizar
e consolidar a distribuição de material didático entre produtores

Sumário
57

(autores ligados a empresas editoriais), avaliadores e distribuidores


(sobretudo o governo federal) e consumidores (professores e alunos).
O traço de mercadoria dos materiais didáticos é um componente
relevante, e tende, cada vez mais, a afetar os conteúdos de História.
Esse problema vai além da elaboração de um livro malfeito. Como
bem apontou Munakata (1997), é necessário e natural que a produção
capitalista leve em conta o valor de uso na elaboração do produto des-
tinado à escola, mas esse fato não é obrigatoriamente o responsável
pelo material didático sem qualidade. “O livro didático ruim, malcui-
dado, cheio de erros e preconceitos, ocorre não por causa da indústria
cultural, mas onde ela falha. A busca do lucro não tem como corolário
necessário um produto ruim” (p. 202). Essa questão da qualidade tem
sido resolvida com o paulatino refinamento e a abrangência dos parâ-
metros federais de avaliação. Alguns dos seus efeitos são apontados
por Flávia Caimi em recente estudo sobre as contribuições do PNLD
para um modelo mais polifônico de livro didático:

Quanto à qualidade do livro didático de história [...] pode-se


visualizar um esforço crescente de minimização de erros
conceituais, anacronismos, simplificações explicativas,
entre outras fragilidades dessa natureza que permeavam os
livros antes da avaliação sistemática. Constata-se também a
supressão de situações de estereótipos e preconceitos, além
de avanços na atualização dos conteúdos e aperfeiçoamentos
na produção gráfica e visual dos livros. Nesse particular,
mudanças de concepção editorial trouxeram recursos de
outros meios de comunicação, visualizadas em páginas que
contém textos mais breves, intercalados por muitas imagens,
mapas, atividades, quadros, tabelas, resumos [...] tem-se
cada vez mais presente o cotejo de versões historiográficas,
a incorporação de excertos de obras de autores acadêmicos
e a ênfase no trabalho com múltiplas temporalidades, no
esforço (nem sempre bem-sucedido) de focalizar temáticas
para o estudo do passado a partir das questões e problemas
do tempo presente. (Caimi, 2017, p. 41).

Sumário
58

O grande problema dos materiais didáticos brasileiros avaliados


pelo governo federal não é mais a qualidade geral do produto, e sim
sua homogeneização, ou seja, a oferta de materiais cada vez mais pa-
recidos. Em relação às coleções didáticas, um fato marcante apontado
pelo guia do PNLD em 2017, que avaliou livros para os anos finais do
ensino fundamental, foi o desaparecimento de coleções com recorte
temático, prevalecendo aquelas de concepção integrada. Isso restringe
ainda mais a escolha docente a materiais com conteúdos prescritos.
A proporção entre História temática e História cronológica ao longo
do tempo foi de 17% em 2005, 24% em 2008, 7% em 2011, 20% em
2014 e 0% em 2017 (Brasil, 2016, p. 23). Com a obrigatoriedade de
se adequar à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), na ava-
liação seguinte do ciclo correspondente ao final do ensino fundamental
(PNLD 2020), a tendência de predominância da História integrada
se manteve, mas com um conteúdo mais uniformizado para dar conta
da BNCC. Como apontam os avaliadores no guia,

em todas as coleções didáticas do componente História


aprovadas no PNLD 2020, os objetos de aprendizagem
indicados na BNCC de História para cada ano de ensino
foram encadeados exatamente como registrado no referido
documento curricular, o que ocasionou a homogeneização
das coleções no que tange ao conteúdo selecionado para
estudo. Poucas obras organizaram estes conteúdos de
forma original, articulando-os a partir de enfoques espe-
cíficos. (Brasil, 2020, p. 23).

Outro efeito da BNCC, desta vez, apontado pelas experiências


dos professores, é a ausência de materiais que contemplem demandas
de ensino regionalizadas e localizadas, sobretudo demandas situadas
fora dos centros produtores e hegemônicos do país, que concentram a
sede das principais editoras. Os conteúdos relativos a essas demandas
regionais aparecem pontualmente nas coleções destinadas aos anos
finais do fundamental e ensino médio que sejam ligadas a assuntos

Sumário
59

e recortes clássicos da historiografia. Fora desses temas tradicionais,


outros dificilmente são objeto de coleções didáticas e também de
paradidáticos, mesmo temáticos, pois as grandes editoras priorizam
assuntos com maior alcance de público.
Acreditamos que as universidades, especialmente as públicas,
podem ter um papel relevante nesse cenário, isto é, constituir es-
paços de produção didática não marcados por uma lógica mercantil, e
sim voltados ao atendimento direto de demandas sociais, culturais e
pedagógicas. Isso inclui o suprimento sistemático da necessidade de
materiais de História regional e local. Na prática, significa dar trata-
mento historiográfico às histórias de pessoas e grupos invisibilizados e
elaborar essas histórias para uma apropriação escolar. Implica também
conferir mais protagonismo aos sujeitos envolvidos no ato de ensinar, os
professores, dando-lhes condições de elaborar materiais que atendam
aos seus anseios pedagógicos e os ajudem a cumprir seus deveres para
com as comunidades de onde vêm ou onde ensinam.
Tradicionalmente, a inserção das universidades no campo da
produção didática na área de História é indireta. Elas formam a mão
de obra qualificada para trabalhar a serviço de empresas editoriais,
nas diversas etapas da produção (autoria, suporte à pesquisa, edição,
revisão e leitura crítica) de coleções didáticas, obras paradidáticas,
sistemas de ensino e outros materiais. E formam ainda um dos
importantes consumidores desses materiais, os professores. Todos
esses profissionais mobilizam referenciais de pesquisas produzidas
ou veiculadas na universidade: de cunho temático, teórico e histo-
riográfico, e também os saberes escolares disciplinares nas áreas
de ensino de História, Educação Histórica e Didática da História.
Alguns dos membros ou egressos da universidade também inte-
gram comissões governamentais que formulam as políticas públicas
e avaliam esses materiais no PNLD. Entre 2010 e 2017, conforme o
Decreto nº 7.084/2010, as universidades se responsabilizavam pela
avaliação pedagógica concorrendo a essa função por meio de um edital.

Sumário
60

Depois do Decreto nº 9.099/2017, o processo passou a ser centralizado


no próprio Ministério da Educação, envolvendo comissões indicadas
pela Secretaria de Educação Básica, dirigentes das redes de ensino,
professores da educação básica, instituições de ensino superior e outras
instituições. Entretanto, embora não mais se encarreguem dessa etapa
avaliativa, integrantes das universidades públicas ainda são numerosos
nos quadros de avaliação do PNLD, como indicam as fichas técnicas
dos guias mais recentes, de 2018 a 2020.
Se, de um lado, as universidades se prestam a essa colaboração,
de outro, os livros didáticos têm sido fonte e objeto de pesquisas
acadêmicas, que resultam em artigos, livros, trabalhos de conclusão
de curso, dissertações e teses. A importância acadêmica deles na
área de História é tal que já existem balanços destinados a mapear
as tendências desse subcampo interdisciplinar por excelência (Mo-
reira, 2006; Munakata, 2012; Silva, 2018). Os livros são portadores
de valores e ideologias, de conceitos na área da História com seus
diversos temas, de concepções pedagógicas e práticas didáticas as
mais variadas. Neles se materializam formas de organização visual e
editorial abordadas pelo design e pela comunicação (Munakata, 1997;
Bittencourt, 2008; Caimi, 2017), sem falar nas políticas públicas e
leis regulamentando a produção e distribuição de compêndios, livros
e coleções, ou na apropriação destes por professores e alunos, pais,
políticos, jornalistas e outros. No entanto, até recentemente, à pro-
ficuidade das pesquisas acadêmicas sobre o tema do livro didático,
não correspondia uma produção didática pujante no interior das
universidades, ao menos na área de História.
O cenário passou a mudar nos últimos vinte anos. Além da
expansão da rede de ensino superior pública, sobretudo a federal, a
partir de 2003, com o Reuni, podemos destacar alguns incentivos
para o aumento dessa produção. Na formação inicial de professores,
destaca-se a reformulação da licenciatura pelas Resoluções CNE-CP
1 e 2/2002, mantidas pela nova reforma em 2015 e pelo parecer do

Sumário
61

CNE de fins de 2019. Essa reformulação ampliou a carga horária de


estágio curricular na graduação para quatrocentas horas e instituiu
quatrocentas horas de Prática como Componente Curricular. Isso
concorreu para o crescimento da análise e produção didática na
universidade, já que os estágios e as práticas costumam ser espaços
propícios para o desenvolvimento dessas atividades pelos graduandos
dentro do currículo dos cursos. Além disso, algumas universidades
permitem que materiais didáticos sejam apresentados como trabalhos
de conclusão de curso.
Essa parte regular das graduações, referente ao ensino em nível
superior, é complementada por locais e ações de extensão e pesquisa.
Entre eles, estão os laboratórios universitários de ensino que, ligados
aos cursos de graduação ou grupos de pesquisa, podem produzir ma-
teriais didáticos. Um exemplo é o Laboratório de Ensino de História
do Recôncavo da Bahia (LEHRB), que, sob nossa coordenação entre
2010 e 2017, possibilitou que graduandos e mestrandos produzissem
materiais voltados à educação básica, como abordamos em Almeida
(2020). Há também os programas que ofertam bolsas a estudantes
para a sua participação em projetos relacionados à educação e ao
ensino de história. Um dos mais amplos, em escala nacional, é o
Programa de Iniciação à Docência (Pibid), promovido pela Capes,
que financia a atuação de bolsistas nas escolas públicas. Foi instituído
por editais em 2007 e começou a funcionar em 2009, distribuindo
bolsas a estudantes de licenciatura das IES participantes. Nele é
frequente a produção de materiais voltados ao ensino em sala de
aula ou em atividades complementares.
É na formação continuada, no nível de pós-graduação strictu
sensu, principalmente nos mestrados profissionais, que a produção
didática universitária tem sido mais sistemática, tornando-se passível
de avaliação e profissionalização. Como esta modalidade possibilita
a apresentação de trabalhos finais não textuais, é um campo aberto
para a elaboração de materiais didáticos por professores e outros pós-

Sumário
62

-graduandos, acompanhados e avaliados pelas comunidades acadêmica


e profissional. Conforme podemos observar no Quadro 1, na segunda
década do século XXI, os mestrados profissionais ganharam impulso
na área de História. O primeiro começou a funcionar em 2003 em
uma única instituição privada, focada na área de Patrimônio. Uma
década depois, entre 2012 e 2014, surgem oito programas, sete deles
em instituições públicas estaduais e federais, incluindo a sede da rede
ProfHistória. Atualmente (setembro de 2020), a área de História conta
com doze cursos de mestrado profissional e três doutorados profissio-
nais. Esses cursos estão efetivados em cinquenta instituições públicas
e privadas de ensino superior em todas as regiões do país.
O principal foco é o ensino de História, com cinco programas
exclusivamente dedicados a ele. Três deles são temáticos e possuem
linhas específicas para essa área, embora comportem outros tipos de
pesquisa e trabalhos finais. E, mesmo nos programas não focados
no ensino de História ou sem linhas de pesquisa nessa área, existem
possibilidades de elaboração de materiais voltados à escola. De qual-
quer modo, crescentemente, desde 2014, temos uma significativa
produção profissional nos programas de pós-graduação em História,
a maior parte dela didática.

Sumário
63

Quadro 1 - Programas profissionais da área de História – setembro de 2020


Funcio-
Instituição Instância UF Foco Cursos Concentração
namento
História, política
e bens culturais;
FGV Privada RJ 1 em 2003 Patrimônio MP/DP história e política;
memória, cultura
e sociedade
História, pesquisa
e vivências
FURG Pública RS 2 em 2012 Ensino MP
de ensino-
aprendizagem
UCS Comunitária RS 2 em 2013 Ensino MP/DP Ensino de História
História, ensino e
Uema Pública MA 1 em 2014 Ensino MP/DP
narrativas
Ensino e pesquisa
Unifal Pública MG 1 em 2014 Temático MP
de História ibérica
História da África,
da cultura negra
UFRB Pública BA 1 em 2014 Temático MP
e dos povos
indígenas
Patrimônio,
UFV Pública MG 1 em 2014 Patrimônio MP memória e
projetos sociais
História, cultura
UFG Pública GO 2 em 2014 Ensino MP e formação de
professores
Rede Pro-
UFRJ RJ 2 em 2014 Ensino MP Ensino de História
fHistória*
História, cultura
Unicap Privada PE 1 em 2018 Patrimônio MP e memórias
municipais
História e cultura
UFT Pública TO 2 em 2019 Temática MP das populações
amazônicas
Estudos culturais,
UEG Pública GO 1 em 2019 Patrimônio MP memória e
patrimônio

Fonte: Elaborado pelo autor com base na Plataforma Sucupira: Geocapes,


consultada em 9 de setembro de 2020. * A Rede ProfHistória começou
com 12 instituições associadas e, em setembro de 2020, conta com 39.

Sumário
64

A seguir, descreveremos o perfil da produção didática em um


desses programas, o da Universidade Federal do Recôncavo Baiano
(UFRB), procurando avaliar os potenciais, os desafios e as perspectivas
desse tipo de produção em mestrados e doutorados profissionais na
área de História. O mestrado profissional da UFRB é fruto de uma
trajetória iniciada no segundo semestre de 2006, com a implantação da
própria universidade e do curso de História no Campus de Cachoeira,
BA. No ano seguinte, sob a liderança de Antônio Liberac Cardoso
Simões Pires, constituiu-se o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros
(Neab), que agrega a maior parte dos docentes do programa. Foi
através do Neab que se implantou o projeto Uniafro, um curso de
especialização em História da África e da Cultura Africana, financiado
pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade
e Inclusão (Secadi)-MEC e que formou 210 professores em vários
municípios do Recôncavo entre os anos de 2012 e 2016. Foram essas
experiências que impulsionaram a criação do mestrado profissional
na UFRB em História da África, da Diáspora e dos Povos Indígenas,
aprovado pela Capes em 2013 e em funcionamento desde o primeiro
semestre de 2014 (Pires, 2020). Como aponta o site do programa,

o curso tem como perspectiva formar profissionais (docen-


tes, gestores e técnicos, [preferencialmente] os que atuam
em salas de aula) aptos a desenvolver de forma plena e
inovadora o projeto de aplicação da Lei 11.645, 2008, que
torna obrigatório o Ensino de História da África, da Cultura
Afro-Brasileira e da História Indígena. Este profissional
deverá ser capaz de compreender e criar diretrizes opera-
cionais e curriculares; desenvolver políticas públicas [para
a] aplicação da Lei 11.645; operacionalizar instrumentos
que permitam o ensino da matéria; organizar sequências
documentais e informações históricas relacionadas à ma-
téria e produzir conhecimento especializado nas diversas
temáticas; [...] demonstrar domínio sobre o conteúdo
relativo às seguintes temáticas opcionais: História Geral

Sumário
65

da África e Escravidão Negra no Brasil Colonial e Imperial;


[...] reconhecer especificidades regionais no processo da
formação das sociedades americanas; [dominar] aspectos
gerais [políticos, culturais e econômicos] da presença
negra e indígena em países das Américas (EUA, Cuba,
Colômbia...) [e] no mundo contemporâneo [...]. A produ-
ção do conhecimento propiciará a construção de produtos
específicos, como dissertações, materiais didáticos e laudos
técnicos relacionados a questões da propriedade fundiária
e do patrimônio artístico e cultural.1

O foco temático do programa é a questão negra e indígena, objeto


das leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que recobrem estudos e ações
em campos variados da área de História, e mesmo interdisciplinares.
Na linha 1 do programa, Ensino de História, Educação Inter-Étnica
e Movimentos Sociais, discutem-se mais detidamente as questões de
educação e ensino de História. A ela estão vinculados dois componentes
curriculares obrigatórios: Políticas, Teorias e Experiências Curriculares
da Educação Étnico-Racial, disciplina ofertada no primeiro semestre, e
Metodologia da Pesquisa e da Produção de Materiais Didáticos, segundo
semestre. O objetivo desta última é familiarizar os mestrandos com a
fundamentação teórica e com as tendências da produção didática em
História, além de habilitá-los para o exercício de produção de materiais
ligados às demais disciplinas, para o trabalho com temas prioritários
e para pesquisas empreendidas por eles próprios. Como já tratamos
no artigo “Produção de livros didáticos no mestrado profissional de
História” (Almeida, 2016), esse é um momento inicial, e, ao passar por
ele, os estudantes precisam enfrentar as questões, complexidades e
dificuldades desse processo de aprendizagem. Tal enfrentamento pode
ocorrer de maneira individualizada, quando o exercício de produção
corresponder à proposta do trabalho final de curso, ou em equipe.

1 Disponível em: https://www.ufrb.edu.br/mphistoria/. Acesso em: 28 out. 2020.

Sumário
66

Além das duas disciplinas citadas, o mestrando cursará outro


componente obrigatório, Teoria e Métodos da História, e mais três
componentes optativos. Cumpridos esses componentes curriculares,
ele passará pelo tirocínio docente, “compreendido como o conjunto
de atividades de acompanhamento didático, envolvendo preleções,
exercícios, práticas de laboratório, trabalhos de campo e similares,
exercidos sob a regência de um professor efetivo” (Universidade
Federal de Sergipe, 2014). O tirocínio pode ser feito em disciplinas
de graduação ou nos laboratórios vinculados ao mestrado. No tiro-
cínio realizado no Laboratório de Ensino de História do Recôncavo
da Bahia, o mestrando pode ofertar cursos e oficinas ou elaborar
materiais didáticos. Se esta for sua opção, será a segunda vez no
curso que tomará contato com as complexidades da produção de
materiais para o público escolar (Almeida, 2020). Depois das ativi-
dades do tirocínio docente, o mestrando realiza, por fim, o exame
de qualificação e encerra a trajetória com o trabalho final de curso.
O mestrado profissional em História da UFRB começou com
15 mestrandos em 2014 e, em 2020, totalizou 118 ingressantes.
Desse total, 55 alunos estavam em condições de finalizar o curso,
porém apenas 50 defenderam o trabalho final. Dos cinquenta traba-
lhos defendidos, 43 foram disponibilizados no site do Programa de
Pós-Graduação, nem sempre acompanhados dos produtos corres-
pondentes. O site disponibilizou os trabalhos até a turma de 2017,
correspondentes a defesas ocorridas entre 2016 e 2019. Classificamos
esses trabalhos em três categorias: dissertações, relatórios de práticas
e relatórios de produtos, embora os textos nem sempre venham com
essa nomenclatura. As dissertações, que trazem abordagens históricas
ou educacionais, assemelham-se àquelas defendidas em mestrados
acadêmicos. Nos relatórios de práticas os mestrandos tratam de
ações implementadas em instituições educativas de diversos níveis, a
exemplo de um relatório técnico-científico que analisa a execução do
Curso de Especialização em História da África, da Cultura Negra e

Sumário
67

do Negro no Brasil, ou outro relatório que trata da implementação da


Lei nº 10.639/2003 em Amargosa, Bahia. Por fim, os relatórios de pro-
dutos relatam a elaboração dos produtos apresentados pelos mestrandos
ao longo dos dois anos de curso. Conforme pode ser visto no Gráfico 1,
a categoria de trabalho que mais aparece no site do programa é a
defesa de dissertações, seguida do relatório de produtos e, por fim,
do relatório de práticas.

Gráfico 1- Categorias dos trabalhos de final de curso do Mestrado Profis-


sional em História UFRB – turmas 2014-2017
História UFRB – turmas 2014-2017

16; 37% Dissertação


20; 47%
Relatório Práticas
7; 16%
Relatório Produto

Fonte: https://www.ufrb.edu.br/mphistoria/ (set. 2020).


Fonte: https://www.ufrb.edu.br/mphistoria/ (set. 2020).

As dissertações concentram-se principalmente na primeira turma


(2014), com nove trabalhos nessa categoria entre quinze apresenta-
dos, diminuindo para menos da metade do total de produções nas
turmas subsequentes: cinco dissertações entre onze trabalhos na
turma de 2015, quatro entre nove trabalhos na turma de 2016 e duas
entre nove trabalhos na turma de 2017. Já os relatórios de produtos
caminharam no sentido oposto: dois relatórios entre quinze trabalhos
em 2014, três entre onze trabalhos em 2015, quatro entre nove em
2016 e seis entre nove em 2017. A inversão pode ser explicada pelo
processo de adaptação dos corpos docente e discente à modalidade
profissional, ou melhor, pela novidade em que consistia o processo de
orientação e elaboração de trabalhos finais em outros formatos além
da dissertação. Com a inclusão das turmas seguintes e por conta das
diretrizes da Capes, é provável que se inverta a relação global entre
dissertações e relatórios de produtos.

Sumário
68

Todos os 15 relatórios de produtos referem-se a materiais didáti-


cos, o que mostra a força desse tipo de produção educacional na parte
não dissertativa do mestrado profissional. Eles estão distribuídos em
gêneros e subgêneros, conforme o Gráfico 2 (A e B). Como era de
se esperar, o suporte e a linguagem mais utilizada pelos mestrandos
para seus materiais foi predominantemente textual em livro, impresso
ou digital. Nesta categoria, estão inclusos livros para o aluno e livros
para o professor. A produção de material didático no formato textual
em livro aproxima-se do universo de formação da maioria dos mes-
trandos, o que explica o cenário descrito. Os materiais em formatos
audiovisuais ou lúdicos são escolhidos somente por aqueles que
têm alguma familiaridade com esses universos. De qualquer forma,
há uma diversidade de subgêneros, apontando para uma abertura
dos mestrandos e orientadores à experimentação de novas formas
de expressão do conhecimento histórico voltado às escolas. Chama
a atenção a predominância de materiais ficcionais, um total de seis
narrativas (juvenil, infantil e teatro) e dois jogos (um deles também
narrativo), ou seja, metade da produção. Os materiais ficcionais são
seguidos por materiais informativos: quatro textuais e dois em vídeo.

Gráfico 2A e 2B - Gêneros e subgêneros dos materiais didáticos – turmas


2014-2017

2A)
A)
10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
Audiovisual Jogo Livro para o Aluno Livro para o Professor

(Continua )
Sumário
69

2B)
B)

Vídeo Educativo (Doc)

Peça de Teatro

Livro Ficcional Juvenil

Livro Informativo

Livro Ficcional Infantil

Jogo de Tabuleiro

Jogo de RPG

Guia de atividades

Álbum de Música

0 1 2 3 4

Fonte: https://www.ufrb.edu.br/mphistoria/ (set. 2020).


Fonte: https://www.ufrb.edu.br/mphistoria/ (set. 2020).

Nos relatórios, a justificativa predominante para a mobilização


da ficção ou do lúdico é a tentativa de trabalhar o tema de forma
acessível e atrativa aos jovens estudantes da educação básica. A
finalidade desse tipo de material é levá-los a se identificar com as
personagens, geralmente também jovens, ou a interagir em um uni-
verso de jogo. Em suma, a aplicabilidade do material didático e sua
aceitação pelo público-alvo condicionam a escolha do formato do
produto final pelos mestrandos.
Outro condicionante é o tema a ser abordado, que pode ser
visualizado no Quadro 2.

Sumário
70

Quadro 2 - Títulos dos materiais didáticos produzidos no Mestrado Profis-


sional em História-UFRB – turmas 2014-2017
Título Gênero
Guia de atividades
História da África nos anos iniciais do ensino fun-
para o professor
damental: os Adinkra
(anos iniciais)
Pós-abolição: experiências docentes em escolas
estaduais de educação básica, Cachoeira-BA e Livro informativo
São Félix-BA
Relatório final de produção do paradidático “Um Livro ficcional
quilombo urbano chamado Rua Nova” juvenil
Relatório final de produção do material didático“A
Independência do Brasil na Bahia: memória e pa- Livro informativo
trimônio no Recôncavo”
Relatório final de produção do paradidático “As
canções de David Zé na luta anticolonial em Angola Álbum de música
(1967-1977)”
Peça de teatro
Aqui é África!: teatro do negro na educação (livro para o pro-
fessor)
Dona Dalva: uma compreensão semiótica no ensino Vídeo educativo
de História (DOC)
Relatório final de produção do paradidático “Des-
colonizando as narrativas históricas na educação
infantil de Maragogipe-BA: contação de histórias Livro infantil
como mecanismo de (re)significação da identidade
étnico-racial”
Independência é liberdade? escravidão, liberdade
Jogo de RPG
e resistência na Independência da Bahia
Como Cura Kemet: jogando, representando e
aprendendo sobre a cura a partir dos papiros de Jogo de tabuleiro
Edwin Smith
Lucinda: minhas escolhas me fizeram voltar ao Livro ficcional
quilombo juvenil
Rezar, benzer, curar: história e memória de rezadei-
Livro informativo
ras e rezadores de Monte Gordo e Barra do Jacuípe
(Continua )

Sumário
71

Título Gênero
Relatório final de produção do material didático
“Representações de África: Tarzan e a história em Livro informativo
sala de aula”
Dona Cadu: oralidade, memórias e saberes cen- Livro ficcional
tenários juvenil
Arte e musicalidade indígena Kariri-Xocó e Fulni-Ô
na atuação pedagógica e social de uma liderança Vídeo educativo
indígena do Nordeste: relatório para a produção do (DOC)
documentário “Wakay: uma semente, um mundo”
Relatório para a produção do paradidático “Zefe- Livro ficcional
rina: o conto de uma quilombola” juvenil
Fonte: https://www.ufrb.edu.br/mphistoria/ (set. 2020).

Ao agruparmos os temas principais, temos: comunidades ou


personalidades locais (seis), história da África (quatro), narrativas
sobre questões étnico-raciais (dois), Independência do Brasil na Bahia
(dois), história indígena (um), história do negro no Brasil (um). Todos
eles estão dentro do escopo de pesquisa do programa, mas a temática
indígena é muito menos representada do que os temas referentes
aos negros. Isso deriva tanto da maior concentração das pesquisas
dos docentes nessa última temática quanto do papel sociocultural
das questões sobre negritude no Recôncavo da Bahia e na região
metropolitana de Salvador. Entre os trabalhos com foco no negro,
destacam-se aqueles relacionados à memória e história local, numa
escala intramunicipal, sobretudo os dirigidos a trajetórias de mulheres
de camadas populares e/ou de comunidades quilombolas. Nota-se o
esforço de alguns mestrandos para recuperar, através de levantamen-
tos e entrevistas, as histórias de sujeitos e grupos subalternizados e
levá-las para a escola. Normalmente essas histórias não constam nos
materiais cujos temas são mais abrangentes. Se a essas produções
acrescentarmos outras duas que abordam a Guerra da Independência
no Recôncavo, um tema clássico da história e historiografia baiana,

Sumário
72

concluiremos que metade da produção é explicitamente voltada para


temas regionais. A outra parte, com sete trabalhos, aborda assuntos
mais abrangentes, como a história da África e a questão racial no
Brasil, incluindo-se aqui a peça de teatro (livro para o professor) e
a narrativa infantil, que dialogam com heranças africanas. Tais pro-
duções têm maior potencial para extrapolar as fronteiras regionais e
ser utilizadas em contextos educativos fora da Bahia.
Como forma de especificar esses dados, abordaremos agora al-
guns materiais produzidos no programa com os quais tivemos contato
como avaliadores da banca. O primeiro foi defendido em 2016 por
Flávia Santana Santos, bolsista Fapesb, orientada pelo Dr. Emanoel
Luís Roque Soares e coorientada pelo Dr. Antonio Liberac Simões
Pires. Trata-se de um livro narrativo destinado aos anos finais do en-
sino fundamental e cujo tema é um quilombo urbano chamado Rua
Nova, localizado próximo ao centro da cidade de Feira de Santana,
a segunda maior da Bahia. Além de pesquisar a bibliografia sobre
a formação do município e de sua população negra, Flávia realizou
uma pesquisa de campo com os moradores mais velhos e antigos.
Utilizando a metodologia da história oral, ela obteve narrativas di-
versas sobre a formação do bairro quilombola entre os anos 1940
e 1985. No lugar de um livro informativo, escolheu apresentar a
história do bairro através de um livro narrativo juvenil, com dezesseis
contos ambientados na Rua Nova (Figura 1). Isso exigiu que ela
desse tratamento literário aos depoimentos. Formada em Letras e
tendo conhecimentos de arte e de ferramentas de edição, elaborou
o livro quase todo sozinha: o estilo do texto, a capa, a diagramação e
parte das ilustrações. Em apenas quatro imagens ela contou com a
participação externa de um ilustrador. Flávia elaborou também um
pequeno guia de auxílio ao professor (Figura 2). O guia acompanha
o livro de contos do aluno, trazendo possibilidades ao docente de
diversas apropriações didáticas do material (Santos, 2016).

Sumário
73

Figura 1 - Capa e páginas internas do livro Um quilombo urbano chamado


Rua Nova

Fonte: Santos, 2016.

Figura 2 - Capa e sumário do guia do professor referente a Um quilombo


urbano chamado Rua Nova

Fonte: Santos, 2016.

O segundo material abordado é A Independência do Brasil na


Bahia: memória e patrimônio no Recôncavo, também destinado aos

Sumário
74

anos finais do ensino fundamental. Foi produzido por Tamires Con-


ceição Costa, bolsista Fapesb, e defendido em 2017 sob a orientação
da Dra. Rita de Cássia Dias Pereira de Jesus e a coorientação do Dr.
Sérgio Armando Diniz Guerra Filho. Com o objetivo de valorizar o
ensino de história regional e local, a autora propôs mapear os lugares
de memória existentes em Cachoeira que tivessem ligação com os
eventos da Independência do Brasil na Bahia (1822 e 1823), quando
a cidade sediou a resistência aos portugueses que ocupavam a capital
Salvador. Tais eventos ainda hoje são comemorados no município de
Cachoeira em junho e julho, e, em função deles, o governo da Bahia
se muda para lá durante uma semana. Emergindo da experiência da
autora como moradora e docente, esse material foi pensado por ela
para interagir com a cidade por meio das aulas nas escolas locais.
Para elaborá-lo, ela mobilizou uma bibliografia sobre o processo de
independência do Brasil na Bahia e sobre o ensino de História Local e
Patrimônio. Além desse paradidático, em 2016, um projeto intitulado
Caminhadas Patrimoniais: Passos da Independência em Cachoeira,
contemplado em um edital do governo da Bahia, permitiu à mestranda
colocar em prática as propostas e objetivos desenhados no projeto e
verificar sua recepção pelo público-alvo, professores e estudantes.
O material paradidático elaborado compõe-se de três capítulos,
os dois primeiros contextualizando o processo de independência no
país e no Recôncavo, e o último dedicado à questão patrimonial, tra-
zendo um catálogo dos lugares de memória sobre o tema (Figura 3).
O livro foi fundamentado em pesquisas conduzidas pela mestranda
e contou com fotografias preparadas por três fotógrafos diferentes.
Além do livro do aluno, há um material complementar para o pro-
fessor. Entre as seções que integram esse guia do professor, estão
os comentários sobre a importância do ensino de História Local e
Patrimônio, os objetivos do livro do aluno, indicações de leitura e

Sumário
75

pesquisa e as sequências didáticas que podem ser desenvolvidas por


meio desse material (Costa, 2017) (Figura 4).

Figura 3 - Páginas do paradidático Independência do Brasil na Bahia

Fonte: Costa, 2017.

Figura 4 - Capa e sequência didática do Guia do professor – Independência


do Brasil na Bahia

Fonte: Costa, 2017.

O próximo trabalho que abordamos é um jogo de trilha denominado


Como Cura Kemet, feito por Wilson de Oliveira Badaró. Essa produção
foi orientada pelo Dr. Juvenal Carvalho Conceição e defendida em
2018. Dando prosseguimento a um trabalho de conclusão de curso
da graduação em História, o mestrando discute as práticas de cura

Sumário
76

no Egito antigo construindo um jogo de tabuleiro e cartas baseado


em um documento, o papiro de Edwin Smith, que descreve algumas
enfermidades e seu tratamento (Figura 5). Normalmente, os jogos
de tabuleiro são construídos baseando-se em algum tema. O jogo de
Wilson não foge à regra, ao trabalhar conteúdos relativos à antiguidade
egípcia. Além disso, sendo estruturado com base no papiro, permite
que os estudantes tenham contato com uma fonte histórica e proble-
matizem essa fonte. Essa é uma perspectiva interessante e promissora
a ser considerada na elaboração de jogos didáticos de História.
O principal objetivo pedagógico do jogo em análise é desfazer
a concepção estereotipada segundo a qual os africanos não tinham
conhecimentos médicos metodologicamente estruturados, como se
estas práticas e saberes tivessem começado com os gregos antigos.
Para atingir esse objetivo, o autor do jogo teve de traduzir o papiro
do inglês para o português, estudar a bibliografia sobre ele e sobre o
Egito antigo e gamificar o documento, ou seja, elaborar dinâmicas de
jogo, criar mecânicas e regras e testá-las várias vezes, além de pensar
na construção gráfica do tabuleiro e das cartas. Wilson não tinha
expertise em design, nem teve condições de pagar um profissional,
porém, durante o mestrado, aprendeu a utilizar programas como o
editor Gimp, o que lhe possibilitou trabalhar graficamente alguns
aspectos da apresentação. O jogo foi defendido e avaliado pela banca
na fase do protótipo, necessitando de posterior tratamento gráfico
para difusão e/ou comercialização. Todavia, o mais importante já foi
feito: os testes com amigos e conhecidos conseguiram fechar uma
dinâmica consistente de jogo e de regras, sem desequilíbrios. O jogo
já pode ser usado como recurso para se estudarem ludicamente alguns
aspectos da história do Egito antigo (Badaró, 2018).

Sumário
77

Figura 5 - Tabuleiro e cartas do jogo Como Cura Kemet

Fonte: Badaró, 2018.

O quarto material que abordamos teve outras condições de pro-


dução. Foi um livro infantil defendido por Rogério dos Santos Souza em
2017 sob a orientação do Dr. Cláudio Orlando Costa do Nascimento e
a coorientação da Dra. Martha Rosa Figueira Queiroz. O livro contou
também com nossa supervisão durante a fase de tirocínio docente,
realizado pelo mestrando no Laboratório de Ensino de História do
Recôncavo da Bahia (Almeida, 2020, p. 133-135). A elaboração do
material consistiu num trabalho em equipe dirigido por Rogério.
Começou com a oferta de uma oficina de contação de histórias
em abril de 2016 na UFRB, no âmbito de um projeto de extensão
que ele coordenou no referido laboratório e que resultou em vários
contos escritos pelos participantes. Todos os textos resultantes da
oficina na UFRB foram apresentados às professoras e dirigentes
de uma escola infantil de Maragogipe, em um evento de formação
profissional continuada. Nessa formação na escola infantil, a comu-
nidade escolheu um conto criado e escrito por três participantes,
intitulado “O cabelo que dava volta ao mundo”. Tal escolha foi feita
para atender a necessidade de lidar com a discriminação que meni-

Sumário
78

nas negras sofriam em sala de aula, sobretudo por conta do cabelo.


O enredo do conto permitia abordar o problema porque narra como
a protagonista Sol supera a vergonha de seus cabelos, assumindo-o
e valorizando-o como parte de sua identidade e de suas ancestrais.
Depois da seleção do conto feita pelas docentes e dirigentes,
Rogério narrou-o para as crianças da escola infantil e pediu para,
ao final, elas ilustrarem a estória. Com a devida autorização, essas
ilustrações serviram de base para outras ilustrações, feitas por uma
estudante do curso de Artes Visuais da UFRB, bolsista do Laboratório
de Ensino de História do Recôncavo da Bahia. As imagens criadas
pela artista passaram por uma revisão feita pela equipe do laborató-
rio e pelas crianças da escola, depois foram coloridas, digitalizadas
e encaminhadas para um profissional contratado pelo mestrando
para dar conta do projeto gráfico e da diagramação do livro infantil.
Paralelamente ao livro gerado, o mestrando redigiu um material
para professores, intitulado Diálogos pedagógicos com professo-
ras(es) da educação infantil (Figura 7). Os capítulos do guia do
professor abordavam temas como educação infantil, contação de
histórias e questões raciais, além de trazer sugestões de trabalho com
o livro O cabelo que dava volta ao mundo. O mestrando contratou
outro profissional para o projeto gráfico dos Diálogos pedagógicos
e, nesse material, aproveitou ilustrações excluídas do livro infantil.
Em julho de 2017, os materiais foram disponibilizados no site do
Laboratório de Ensino de História do Recôncavo (Souza, 2017;
Almeida, 2020, p. 133-135).

Sumário
79

Figura 6 - Capa, falsa folha de rosto e páginas do livro infantil O Cabelo


que dava volta ao mundo

Fonte: Souza, 2017.

Figura 7 - Capa, abertura de capítulo e página de Diálogos Pedagógicos,


livro para o professor

Fonte: Souza, 2017.

Sumário
80

Um primeiro ponto a destacar na elaboração desses materiais


é a motivação. Eles partem de questões oriundas da vida social, de
etapas da educação básica, da graduação ou da vida profissional
docente. Essas questões estão ligadas a temas mais gerais, como os
desenvolvidos por Rogério e por Wilson, ou à memória dos lugares
onde nascem e vivem os autores, a exemplo dos livros de Flávia e
de Tamires. Como notamos nos relatórios de produção desses e de
outros materiais, há uma atitude engajada dos sujeitos produtores,
que estão sempre implicados na resolução de problemas sociais e
outros, e não de demandas curriculares ou comerciais externas a
esses problemas. A relevância da produção didática nos mestrados
e doutorados profissionais repousa justamente na sua contribuição
para demandas sociais, educacionais e históricas que emergem da
própria sociedade, incitadas e veiculadas através do professor. Ele
é o principal sujeito do ato produtivo, qualificando-se na interação
com outros atores: alunos, orientadores e professores universitários,
demais profissionais envolvidos nos projetos. Mesmo que suas in-
tenções, seus objetos de estudo e formatos de produção se alterem
durante os anos de curso no mestrado, as reorientações dificilmente
se distanciarão dessas motivações e anseios iniciais.
A segunda constatação a respeito desses materiais é o fato de
que procuram mobilizar o conhecimento histórico acadêmico em
diálogo com o ensino de História escolar, de maneira semelhante
ao observado nos produtos didáticos das editoras comerciais. Mas,
diferentemente do que acontece nessas editoras, nas produções
acadêmicas, apesar dos custos, a expectativa de lucro não é um cons-
trangimento, pois a finalidade do material acadêmico é a formação
continuada de docentes e a intervenção no ambiente educacional
e/ou profissional. Tal direcionamento permite reduzir a escala do
público-alvo e dos temas a uma comunidade, uma escola, um bairro
ou, se o professor desejar, tratar de modo não convencional temas
referentes a escalas mais amplas – globais, regionais, nacionais e

Sumário
81

sub-regionais. A ausência de finalidade mercadológica cria espaço


para que os conteúdos sejam arranjados de maneira inédita, quase
sempre ligados às motivações docentes.
Um terceiro ponto é que o foco em escalas menores permite
mobilizar a historiografia produzida local e regionalmente, sobretudo
nas universidades fora dos grandes centros, e dialogar com ela. Há
então uma intermediação entre o conhecimento acadêmico produ-
zido nessas localidades e a sociedade, especialmente a escola, algo
bastante significativo se levarmos em conta que uma das grandes
insatisfações dos docentes com os materiais comerciais é a ausência
de temas sobre as regiões onde vivem e lecionam. Dessa forma, a
produção didática universitária, principalmente aquela gerada nos
mestrados profissionais, torna-se um meio de divulgar e legitimar
socialmente as pesquisas historiográficas entre os professores da
educação básica.
Acrescente-se que, não raramente, os materiais didáticos con-
templam locais, sujeitos e temas sobre os quais pouca ou nenhuma
pesquisa fora feita, cabendo aos próprios autores levantar docu-
mentação e informações e tratá-las visando à elaboração didática.
Então temos um caso não de transposição didática do saber acadê-
mico consolidado, mesmo regional, e sim de tratamento didático
de conteúdos oriundos de pesquisa. Esse tratamento pode fazer do
material produzido uma importante fonte de informação histórica
para a comunidade, para a escola e até para futuros pesquisadores.
A quarta observação sobre os materiais em discussão é a abertura
que eles oferecem para a experimentação de suportes e linguagens
através dos quais os conteúdos históricos podem ser divulgados e
trabalhados. O tempo de duração do mestrado profissional varia entre
24 e 30 meses, e isso acaba limitando o escopo de produção para
formatos menos complexos, como paradidáticos, vídeos de curta ou
média duração, catálogos e exposições menores, sites e jogos simples,
digitais ou de tabuleiro. Porém o doutorado profissional permite aos

Sumário
82

programas investir na elaboração de materiais didáticos mais com-


plexos e com amplo escopo, a exemplo de coleções didáticas, séries
de livros temáticos ou literários, catálogos e exposições com mais
objetos e recursos, jogos digitais, longas-metragens, vídeos seriados
ou canais, animações e simulações 3D, portais de conteúdos etc.
Assim, no mestrado ou no doutorado profissional, a produção
didática amplia as possibilidades de representação do passado histórico
em suportes e linguagens que extrapolam o texto acadêmico ou de
divulgação, mais familiares ao historiador e ao professor. Ou seja, os
mestrandos e doutorandos profissionais lidam pragmaticamente com a
questão de como as diferentes linguagens podem afetar a construção
da consciência histórica dos estudantes em múltiplos níveis: apreen-
são de informações e temas, formação de conceitos, surgimento de
perspectivas sobre o tempo e as múltiplas temporalidades, relação
passado-presente, trato com as diferenças e outras tantas esferas.
Isso implica um esforço não apenas de pensar cuidadosamente a
produção de materiais, mas de avaliar sua recepção pelo público-alvo
composto de estudantes da educação básica.
Tais questões não são novas; elas já estão presentes para os
profissionais dos diversos campos: artistas, jornalistas, cineastas,
literatos, produtores de jogos comerciais e educativos, museólogos,
arquivistas, arquitetos e, é claro, historiadores e pedagogos. Mas é
necessário pensá-las dentro da pós-graduação profissional na área de
História, pressupondo um trabalho contínuo com objetivos sociais,
educacionais e formativos. Acreditamos que a consecução plena e
sistemática desse projeto exigiria encarar alguns desafios. Um deles,
de cunho mais intelectual, é o estabelecimento de parâmetros de
qualidade para a produção didática em História. Sobre isso fize-
mos reflexões iniciais em um texto anterior (Almeida, 2017). Agora
passamos a abordar dois outros desafios, que seriam resolvidos ou
minimizados com financiamento adequado, mas, deste, pouco ou
nada existe por conta da recessão econômica, da redução do orça-
mento universitário nos sucessivos governos desde meados dos anos

Sumário
83

2010 e do tratamento desigual oferecido pela Capes, que diferencia


mestrados acadêmicos e profissionais no acesso a verbas, como a do
Programa de Apoio à Pós-Graduação (Proap).
A primeira e maior dificuldade que apontamos está nos aspectos
gerais necessários à confecção de materiais didáticos e pouco ou nada
trabalhados na área de formação dos mestrandos. Esses materiais
são complexos, possuindo a dimensão disciplinar, a pedagógica, a
do suporte e a das linguagens. Na graduação e pós-graduação em
História, praticamente nada se aprende sobre as duas últimas; foca-se
mais na dimensão disciplinar e na pedagógica. Então, ou o estudante
aprende por conta, em formações prévias ou paralelas ao mestrado, as
ferramentas e a expertise para lidar com as dimensões de apresentação
dos materiais a produzir – o que é raro –, ou paga a um profissional
para fazê-lo, ou trabalha apenas a dimensão dos conteúdos e deixa
o material na etapa preliminar, anterior ao protótipo.
Assim, o ideal seria que as universidades e os programas pu-
dessem contar com equipes de suporte técnico e jurídico para essa
elaboração, seja ela de material textual, de audiovisuais, de jogos ou
outras modalidades, a fim de conferir mais qualidade ao produto
final. A maioria das empresas editoriais dispõe de suportes dessa
natureza. Se os programas de pós-graduação tivessem o mesmo
suporte, isso não apenas aumentaria a qualidade dos materiais e
possibilitaria sua divulgação após a defesa, mas também serviria
para aprofundar a formação dos mestrandos através da produção.
O auxílio de profissionais capacitados pode, por exemplo, orientar o
mestrando e o professor nas questões da visualidade nos materiais
gráficos, do estilo de texto para divulgação, dos enquadramentos de
vídeo e da organização de sites. Tais questões são relevantes mesmo
após o processo de elaboração de materiais didáticos, pois ajudam
em sua análise na prática docente em sala de aula.
Uma forma de solucionar a falta desses recursos é apostar em
trabalhos inter e transdisciplinares que envolvam as diversas áreas do
conhecimento existentes nas próprias universidades. Os programas

Sumário
84

de mestrado e doutorado profissional podem integrar, como membros


do corpo permanente ou colaborador, ou ainda como coorientadores,
profissionais especialistas nas linguagens que os mestrandos dese-
jam trabalhar, justamente para tratar e discutir aspectos que podem
escapar a um historiador.2 Além do trabalho inter e transdisciplinar,
podem-se desenvolver projetos conjuntos ou convênios técnicos
entre o programa de pós-graduação e a graduação – cursos de artes,
cinema, comunicação social, informática, pedagogia, museologia etc.
–, integrando os docentes e discentes dessas áreas com as equipes de
produção de materiais didáticos. Os setores técnicos que trabalham
para a própria universidade, nas áreas de comunicação, publicida-
de ou informática, por exemplo, também podem oferecer suporte
quando necessário.
O segundo desafio, ao lado da falta de capacitação para a produção
de materiais didáticos, é a distribuição desses materiais. O desenvol-
vimento tecnológico da internet possibilitou a disponibilização, nos
sites institucionais, de vários materiais didáticos em formato digital
para uma audiência que potencialmente abarca todo o planeta. Porém,
como mostrou o período de isolamento social durante a pandemia
de Corona vírus em 2020, as desigualdades sociais e regionais no
acesso a equipamentos e à internet podem inviabilizar, em várias

2 Um exemplo desse tipo de integração ocorre na Unifal, Alfenas, MG, que


oferece mestrado profissional em História Ibérica focando na produção de
objetos educacionais digitais. Profissionais da área de informática fazem
parte do programa, podendo colaborar no trabalho com os componentes
curriculares voltados à produção didática. Esses componentes integram as
disciplinas optativas do programa, destinadas à orientação do aluno para o
trabalho final do curso. “O aluno deverá cursar 03 (três) disciplinas obrigató-
rias, cada uma valendo 04 (quatro) créditos, e outras 06 (seis) optativas, cada
uma valendo 02 (dois) créditos. As disciplinas optativas deverão ser definidas
pelo aluno em função do trabalho de conclusão do curso a ser desenvolvido.
O trabalho consiste na realização de uma pesquisa e na elaboração de um
objeto de aprendizagem derivado desta pesquisa fazendo uso das tecnologias
de informação e comunicação” (Unifal, 2020).

Sumário
85

escolas públicas, o uso dos materiais produzidos. A ausência de


computador ou celular, de internet ou sinal de telefonia, ou o uso de
equipamentos velhos ou defasados por grande parte dos estudantes,
é uma realidade de várias escolas urbanas e rurais do Brasil.
Assim, os professores mestrandos de programas profissionais
precisam se equilibrar entre o barateamento dos custos de produção
e a viabilidade do uso dos produtos pelo público-alvo de estudan-
tes da educação básica. Entre as iniciativas possíveis para levantar
recursos e sanar esse problema, citam-se a participação em editais,
o financiamento coletivo, as parcerias com empresários locais e
até a oferta dos produtos elaborados a editoras comerciais para a
mercantilização desses produtos. Todas essas iniciativas procuram
remediar um perigo que ronda essa produção: a permanência dos
materiais apenas nos repositórios institucionais como documentos
gerados em um processo formativo importante, sem sua apropriação
por professores e estudantes.
Pelo que foi exposto até aqui, os programas de mestrado e,
agora, de doutorado profissional da área de História têm um gran-
de potencial para possibilitar e apoiar a elaboração sistemática de
materiais didáticos segundo perspectivas e interesses de sujeitos
em formação acadêmica oriundos das localidades e regiões desses
cursos. De forma ampla e sistemática, tais interesses dificilmente
seriam contemplados na tradicional e secular esfera comercial da
produção didática brasileira, por pequenas e grandes editoras ou
conglomerados editoriais voltados para materiais com maior proba-
bilidade de público e de lucro.
Apesar do que acabamos de afirmar sobre a capacidade dos
programas universitários para a produção e distribuição de materiais
didáticos, eles precisam encontrar caminhos para dar suporte gene-
ralizado aos sujeitos envolvidos nesse campo, algo já consolidado
pelas empresas editoriais, por terem maior tempo de existência
e mais aporte financeiro. De qualquer forma, os mestrandos têm

Sumário
86

encaminhado individualmente a produção e distribuição de seus


trabalhos finais de curso, com experimentação, com engajamento e
com a participação de escolas e comunidades. E, quando encontram
condições propícias, seus trabalhos resultam em excelência profis-
sional aliada à relevância social e educacional.

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coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFS.
Disponível em: https://www.sigaa.ufs.br. Acesso em: 28 out. 2020.

Sumário
PRÁTICA DE ENSINO DE HISTÓRIA E
LITERATURA LATINA: O PAPEL DA
CONSCIENTIZAÇÃO CULTURAL

Carlos Eduardo da Costa Campos


Arlete José Mota
Elio Marques de Souto Junior

Introdução

O primeiro sistema de escrita surgiu com os sumérios, na Meso-


potâmia, por volta do quarto milênio antes da nossa era, permitindo a
representação da linguagem oral (Higounet, 2003). Desde então, os
registros escritos passaram a ter uma função fundamental na vida social.
Inicialmente, de acordo com Zilberman (2013), a escrita era usada nas
práticas administrativas e jurídicas, e no estabelecimento e reprodução
de textos canônicos associados às atividades religiosas na Suméria.
Surgem, então, concomitantemente às práticas religiosas, as
primeiras manifestações literárias escritas (Zilberman, 2013). Estas
foram difundidas por instituições de ensino semelhantes ao que,
atualmente, denominamos escola, e representavam experiências,
sentimentos e comportamentos culturalmente determinados do povo
sumério. Esse fato evidencia a função educativa da literatura, que
constitui um dos bens culturais de uma sociedade.
Na Antiguidade Clássica, os textos literários eram usados para
ensinar os(as) aprendizes a ler e escrever, e isso propiciava o conhe-
cimento das obras literárias consideradas mais representativas das
91

culturas grega e romana (Marrou, 2017). Além disso, a literatura, na


Grécia e em Roma, servia para ensinar valores e regras de comporta-
mento típicos desses povos. Em outras palavras, os textos literários
constituíam um recurso didático para o ensino da virtude.
A literatura como objeto de ensino não foi uma preocupação
somente das sociedades antigas, mas persiste até os dias de hoje
(Hall, 2005). O texto literário desempenha um papel essencial no
processo de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras modernas
(LEM), principalmente no que tange ao ensino das formas linguís-
ticas e padrões sociolinguísticos. A sua abordagem na aula de LEM
é também uma forma de ensinar aspectos culturais, como regras
de interação social, visões de mundo particulares etc. posto que a
literatura abrange saberes sociais, históricos, políticos, geográficos
e culturais (Barthes, 1989), configurando, portanto, uma prática
cultural situada em um contexto específico (Zyngier, 2001).
Os mesmos princípios que orientam o ensino de literatura nas
aulas de LEM podem ser utilizados para pensar o ensino de li-
teratura nas aulas de língua estrangeira clássica (LEC). Assim, é
possível segui-los no estudo da literatura latina – o latim, assim
como o grego, é considerado pelas Diretrizes curriculares nacionais
para os cursos de Letras (Brasil, 2001) como uma língua clássica.
O papel da cultura no ensino das literaturas clássicas, escritas em
um momento sócio-histórico e cultural distante do nosso, torna-se
muito mais relevante, pois esse ensino descortina traços da cultura
antiga (Dominik, 2015).
Longo (2011) afirma que o estudo do latim no contexto universi-
tário deve voltar-se para a aquisição da habilidade de ler textos nesta
língua antiga, sendo seu objetivo primordial a formação de leitores(as)
especialistas na língua e literatura latinas. Do ponto de vista da au-
tora, o ensino da cultura romana antiga é de extrema importância a
fim de evitar anacronismos na leitura e nas interpretações dos textos
em latim. Essa opinião é corroborada por Dominik (2015), segundo
o qual, na prática de ensino de língua e literatura latinas ou gregas,

Sumário
92

não se pode ignorar a cultura material produzida pelas civilizações


grega e romana. Os objetos de cultura material estão associados às
práticas sociais de um povo e fazem referência a elas, portanto o uso
desses objetos no ensino dessas literaturas clássicas contribui para a
compreensão mais heterogênea das duas sociedades.
Diante disso, este capítulo pretende destacar a importância do
uso de objetos de cultura material (Preucel, 2006) na introdução
da literatura latina produzida no século de Augusto (Pereira, 2002).
Esse percurso se cumpre por meio do relato de um procedimento
didático realizado em duas turmas da disciplina Literatura Latina IV,
constante no currículo mínimo do bacharelado e da licenciatura em
Português-Latim na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
No procedimento relatado, foi utilizada a reprodução de uma
moeda em que estava representada a figura do imperador Augusto
e, com base nesse objeto, abriu-se uma discussão cujo objetivo era
promover a “conscientização cultural” (Tomlinson; Masuhara, 2013)
dos(as) aprendizes a respeito do contexto histórico de produção da
literatura latina da época augustana. Assim, tratamos do conceito de
cultura, de seu papel em algumas metodologias de ensino de LEM
(Martinez, 2009) e da relevância da cultura material no ensino de
LEC (Beason; Kvapil, 2007; Dominik, 2015; Longo, 2011), além de
definirmos a expressão “conscientização cultural”.
Também estudamos o contexto sócio-histórico e cultural do
século de Augusto, ressaltando sua importância na cultura romana,
e conceituamos brevemente a numismática dando atenção ao seu
valor para os estudos clássicos. Finalmente, descrevemos a referida
atividade, destinada a sensibilizar os(as) estudantes acerca da cultura
romana do período augustano, preparando-os(as) para a leitura da
obra horaciana. Reproduzimos também suas reações perante a ati-
vidade proposta, evidenciando sua opinião quanto ao uso de objetos
de cultura material na aula de literatura latina.1

1 Na reprodução de falas dos aprendizes, eles foram identificados por números


a fim de ter sua verdadeira identidade protegida.

Sumário
93

A cultura no ensino de línguas estrangeiras


modernas e clássicas

O termo cultura, de acordo com Funari (2003b, p. 21), de-


riva do verbo latino colere, que significa cultivar plantas, além
de abranger “também a produção humana em geral, material e
espiritual. Portanto, [...] cultura é tudo que resulta do trabalho e
elaboração humanos”. Esta definição abarca sistemas de crenças,
valores e ideologias, e o conjunto das produções artísticas de um
povo (Tomlinson; Masuhara, 2013).
Na história do ensino de LEM, a cultura exerceu um papel
variado no processo de ensino e aprendizagem (Martinez, 2009).
Todavia, o foco deste estudo não é o ensino de LEM, e, portanto,
só fazemos referência a alguns elementos pertencentes a ele: o mé-
todo gramática-tradução, a abordagem audiolingual e a abordagem
comunicativa. As duas últimas são as mais utilizadas mundialmente
nesse ensino ainda hoje.
O método gramática-tradução surgiu a partir do interesse re-
nascentista no ensino do grego e do latim, e foi o primeiro usado no
ensino de LEM (Martinez, 2009). Enfatiza a leitura e a consequen-
te tradução de textos literários canônicos escritos na língua a ser
aprendida a fim de que os(as) alunos(as) adquiram conhecimentos
linguísticos e da cultura erudita. A língua oral utilizada no cotidiano
pelos(as) nativos(as) falantes da LEM é relegada a um segundo plano.
A abordagem audiolingual desenvolveu-se durante a Segunda
Guerra Mundial e seu foco era na língua oral (Martinez, 2009). Con-
sequentemente, o ensino de uma língua com base nesta abordagem
fundamenta-se na apresentação de diálogos que representam essa
língua em uso no cotidiano. A prática pedagógica enfatiza as formas
linguísticas, dispensando pouca atenção à função social do uso dessas
formas. O ensino de aspectos culturais restringe-se à aquisição de
regras linguísticas de interação culturalmente determinadas.

Sumário
94

Por fim, a abordagem comunicativa focaliza o que os(as) falantes


conseguem fazer por meio do uso linguístico (Martinez, 2009). Esta
abordagem ressalta a função comunicativa da língua e, por isso, sua
prática pedagógica centra-se em textos autênticos orais e escritos.
Dentro desta perspectiva, as obras literárias voltaram a constituir um
recurso para o ensino de diferentes aspectos da cultura estrangeira.
No que concerne ao ensino de LEC, Dominik (2015) diz que a
cultura desempenha um papel de grande importância nas aulas de
grego e latim, e também no ensino de suas respectivas literaturas. E,
como afirma Longo (2011, p. 10), “é o contato com a cultura clássica
a finalidade última” desse ensino. Essas constatações evidenciam a
inseparabilidade entre língua e cultura no estudo da Antiguidade
Clássica. Dessa forma, se o objetivo principal da formação universi-
tária de especialistas em língua e literatura latinas é que eles leiam
textos escritos em latim, o processo de ensino e aprendizagem nessas
áreas não pode destacar apenas o ensino de análise gramatical, mas
também o da cultura clássica romana. Os(as) especialistas preci-
sam analisar e interpretar esses textos apropriadamente, pois, “caso
contrário, a recepção de textos latinos correrá sempre o risco de ser
fragmentária, anacrônica e eivada de interpretações equivocadas”
(Longo, 2011, p. 13).
Segundo Funari (2003a, p. 27), a cultura clássica pode ser
estudada com base em textos literários e na cultura material
pertencentes às civilizações grega e romana e denominados, res-
pectivamente, “documentos intelectuais” e “documentos materiais”.
Esses documentos, para o autor, devem fundamentar a compreensão
da Antiguidade Clássica. E sejam eles escritos ou não, precisam
ser compreendidos como discursos, possuindo, “necessariamente,
autoria e público” (p. 27). Tanto o autor quanto o público estão
sempre inseridos em um momento social, histórico, político e
cultural determinado. A análise e a interpretação dos diferentes
tipos de documentos têm de levar em consideração sua função no
interior da sociedade.

Sumário
95

Os documentos materiais fazem parte de um conjunto de objetos


de uso privado ou público e característicos de uma sociedade (p. 27).
Assim, os “objetos de cultura material” podem ser representados por
vasos, lamparinas, moedas, pinturas parietais e, até mesmo, por ves-
tígios de edificações, que são uma forma de comunicação não verbal
e estão ligados à prática cotidiana de um povo. Objetos de cultura
material “não são reflexos passivos da sociedade, mas, ao contrário, são
participantes ativos nas práticas sociais que constituem as identidades”
(Preucel, 2006, p. 14). Com base nesta afirmação, podemos concluir,
juntamente com Preucel, que as identidades sociais de um povo não
podem ser dissociadas dos significados veiculados pela cultura material.
Para o autor, o processo de criação de objetos e as práticas identitárias
dos sujeitos estão, portanto, em uma relação dialética.
Tendo em vista que os objetos de cultura material refletem o
contexto sócio-histórico e cultural de sua produção (Preucel, 2006),
não há como negar sua importância no ensino da cultura clássica
(Dominik, 2015, p. 73). Esses objetos, ainda que não sejam originais,
mas apenas reproduções, “propiciam uma ligação real entre aquele
que os vê e aqueles que os fizeram e os usaram há várias centenas
de anos” (Dominik, 2015, p. 73). Desse modo, por meio da análise
de restos materiais, os(as) alunos(as) podem aprender acerca de as-
pectos da cultura clássica, desenvolvendo a conscientização cultural.
Baseados em Tomlinson e Masuhara (2013), definimos “cons-
cientização cultural” como um processo de sensibilização dos(as)
estudantes à cultura estrangeira, no caso deste artigo, a cultura romana
da era de Augusto. Este processo, de acordo com os autores, visa cau-
sar mudanças, principalmente cognitivas e afetivas, no modo como
os(as) aprendizes percebem fenômenos e objetos da outra cultura e
refletem a respeito deles. Postigo (2012, p. 432) também menciona a
“sensibilização do aprendiz para o estudo de conteúdos socioculturais,
partindo-se da premissa de que todos os povos apresentam comporta-
mentos culturalmente condicionados”. Ao lado desses conteúdos, os
mais variados artefatos culturais produzidos em uma sociedade, como
os textos literários, também se tornam objetos de estudo.
Sumário
96

A utilização da cultura material na introdução da literatura latina


produzida em um momento histórico específico mostra que os textos
literários fazem parte de um sistema cultural mais amplo, sendo marca-
dos por aspectos sociais, históricos e políticos. Essa estratégia constitui
uma forma de “manter o mundo clássico dinâmico e relevante” para
os(as) aprendizes. É um canal de motivação para eles (Beason; Kvapil,
2007, p. 2). A presença de vestígios materiais como recurso didático
fornece aos(às) alunos(as) um senso de realidade ao permitir-lhes
o contato com valores, normas e comportamentos de pessoas reais.

O contexto sócio-histórico do século de Augusto

O governo do princeps Otávio Augusto (27 a.C.-14 d.C.) não


foi construído como uma ruptura nem como mera continuidade das
tradições romanas, pois era uma nova forma de exercício do poder
movida pela imbricação entre a inovação e a tradição. Para preservar o
seu poder socialmente, o imperador usava um jogo retórico por meio do
qual justificava sua função como resultado da escolha do povo romano,
ratificando, assim, o seu poder através da auctoritas: capacidade de
exercer poder sobre a sociedade romana por meio da reputação pessoal,
do status que ocupava socialmente, sem o uso da força ou violência
física como condicionante (Campos, 2017, p. 381). O poder dos cé-
sares, em tese, seria uma “cadeia perpétua de delegações”, como foi
refletido por Veyne (2009, p. 1) e Béranger (1975, p. 137-138). Para
ambos os autores, o imperator/princeps não é um rei, pois o seu cargo
é explicitamente o resultado de uma investidura que deverá ser aceita
pelas instituições e pela sociedade romana.
As ações de Otávio Augusto refletem um compromisso com
a manutenção da paz social. Logo, na linguagem política augusta-
na, ele era representado como primeiro cidadão (princeps), e não
como um tirano ou monarca. Na visão de Christian Meier (1993,
p. 68-69), o principado foi formado por uma relação dialética entre
o desenvolvimento de um papel e as expectativas a que esse papel

Sumário
97

deveria corresponder socialmente. Essas expectativas tornavam a


posição do princeps extremamente delicada, e foi somente com sua
sensibilidade política para o contexto da época que Augusto con-
seguiu lidar com as condições fundamentalmente alteradas de seu
governo após as guerras civis. Mesmo diante dessas condições, as
alternativas ao sistema existente precisariam ser ligadas à tradição,
que era completamente republicana no imaginário social romano.
Não é sem razão, portanto, que observamos evidências discursivas
imagéticas e literárias de Otávio Augusto como restaurador da ordem
social em Roma no período em que a governou. Temos como pres-
suposto que esses recursos literários e iconográficos integram uma
das diversas medidas que lhe permitiam comunicar e se consolidar
no poder. Christian Meier (1993, p. 67) salienta que esta ação de
buscar visibilidade social era uma forma de lidar com as demandas
sociais. Entre as características cruciais para a edificação de um
princeps carismático, em termos weberianos, estavam a inteligência,
a paciência, a delicadeza, a perspicácia, a astúcia, uma forte sensação
de poder e muitas outras. Elas ajudaram a ampliar o campo de poder
de Augusto, e a literatura, bem como a iconografia numismática desse
personagem, assumiu funções centrais na comunicação desse poder.

A conscientização cultural na introdução da literatura latina

Durante dois semestres de trabalho na área de Português-Latim na


UFRJ, numa disciplina cujo conteúdo programático abrange a produção
literária do poeta Horácio (Quinto Horácio Flaco, 65-8 a.C.), recorremos
a uma série de recursos, inclusive de cultura material, objetivando levar
os(as) alunos(as) a refletir sobre a importância de se valorizar o conhe-
cimento do contexto histórico vivenciado pelo poeta. Além da literatura,
procuramos fazer que observassem o papel das demais expressões artísti-
cas do período. Usamos duas aulas para efetuar a proposta de trabalho,
que chamamos de “estudos introdutórios”. A partir da terceira aula,
seguimos analisando o estilo e as características da poesia horaciana,
em um percurso temporal – por data de publicação das obras.
Sumário
98

Iniciamos, já na primeira aula, fazendo comentários a respeito


dos vocábulos empregados por Horácio para designar Augusto, a
exemplo de princeps (príncipe) e dux (condutor, guia). Também ex-
plicamos que o período literário a que pertence o poeta é chamado,
por vezes, “século de Augusto”. Nesse momento, seguindo Campos
(2017), atentamos ainda para distintas formas de propaganda política
utilizadas pelo imperador.
Aspectos relacionados a um fazer poético próprio não foram
deixados de lado nessa primeira aula, em que apresentamos a relação
feita por Junqueira (2018) entre o poeta e a Musa. Para discutir os
temas abordados nas primeiras aulas, escolhemos como fundamento
as pesquisas mais recentes. Partimos, após os comentários relatados
acima, a um tópico que denominamos “imagens que impressionam”.
Dentro desse tópico, exibimos um documentário sobre o Altar da
Paz de Augusto (Ara Pacis Augustae), tecendo observações sobre as
características da construção e trazendo para o debate o atual Museu
do Altar (Museo dell’Ara Pacis), onde se encontra a reconstrução desse
objeto de cultura. Mostramos, em seguida, a imagem de uma estátua
de Augusto (Augusto Prima Porta), comentando alguns elementos
iconográficos e sugerindo leituras mais abrangentes a respeito da obra.
Acreditamos que, nesse momento, já tínhamos despertado o interesse
dos(as) alunos(as) na cultura material, tão distante das aulas de lite-
ratura. Passamos então para o exercício que finaliza nossa proposta, o
mais importante em nossa opinião. O exercício compunha-se de três
etapas, desenvolvidas por meio de um questionário. Descrevemos aqui,
brevemente, os objetivos das duas primeiras questões.
Na primeira questão, exploramos uma noção geral inerente à
relação entre arte e imaginação, questionando se a literatura também
exemplificava essa relação. Com isso, pretendíamos levar os(as)
estudantes a pensar em recursos imagéticos utilizados por ouvintes
e leitores. Na segunda, tencionando prepará-los(as) para o exercício
de sensibilização, que seguiria em terceiro lugar, solicitamos que
refletissem a respeito dos verbos sensibilizar e impressionar.

Sumário
99

Para que a terceira questão pudesse ser respondida, procuramos


inicialmente debater sobre a circulação das moedas, sobre seus relevos
e narrativas, e sobre o uso da moeda como instrumento de divulgação
de ideias, enfim, considerações introdutórias acerca da numismática.
Em seguida, fizemos circular a imitação de uma moeda romana,
um objeto esférico, dourado, com quatro centímetros de diâmetro e
que trazia a imagem de Augusto laureado, com a inscrição DIVVS
AVGVSTVS PP: “Divino Augusto Pai da Pátria”. Depois de fazer passar
a “moeda” entre os(as) alunos(as), solicitamos que respondessem às
seguintes questões: o que achou do “exercício de sensibilização” feito
em aula hoje? O que imaginou ao tocar a moeda? Já havia pensado
no poder explícito (e implícito) das imagens “tocadas”? E na circu-
lação do objeto? Uma vez que se tratava da imagem de Augusto,
solicitamos que, pela imaginação, os(as) estudantes se deslocassem
para a Roma imperial. Nas duas turmas, que chamamos de Turma A
e Turma B, todos(as) os(as) estudantes presentes nas aulas aderiram
à atividade. Nenhum(a) dos(as) aprendizes, pelo que foi detectado
posteriormente, havia passado antes por qualquer exercício desse
gênero. Abaixo, a transcrição dos relatos dos(as) alunos(as) em face
das questões que lhes foram apresentadas:
TURMA A
Aluno 1: “Prova concreta [de] que essa cultura existiu e [de]
como o povo viveu”.
Aluno 2: “O toque provoca um processo contínuo de imaginação
e criatividade”.
Aluno 3: “O ser humano precisa de objetos concretos para chegar
ao conhecimento”.
Aluno 4: “Inesperado”. “Não é experiência comum na
universidade”. “Podemos imaginar essa mesma moeda circu-
lando”. “Essa moeda tem a cara do poder”.

Sumário
100

Aluno 5: “Terias outro objeto mágico?”


Aluno 6: “Ao tocar na moeda, somos presos aos detalhes presentes”.
Aluno 7: “Foi interessante ver a representação gráfica de um
imperador”.
Aluno 8: “Os recursos visuais são essenciais para a representação
de um período”.
Aluno 9: “A imagem de Augusto como uma forma de ilustrar o
seu poder”.
Aluno 10: “Sentir e tocar faz com que nos aproximemos do latim
e da cultura”.

TURMA B
Aluno 1: “Exercício revelador”. “Não só foi como se ‘tocasse’ no
príncipe, no divino, no poder, como também pude sentir-me
participante deste poder”. “Fez-me imaginar que uma moeda
carregava uma legitimidade incontestável do governo de Augusto”.
Aluno 2: “Os romanos eram preocupados com a riqueza de de-
talhes”. “É como se tudo antes [fosse] apenas história/literatura,
e depois se tornasse concreto/real”.
Aluno 3: “Ver a moeda me fez pensar em como um objeto tão
insignificante para nós hoje em dia outrora teve um grande
impacto na sociedade”. “Portar a moeda era portar o próprio
imperador, seus ideais, crenças e governo”.
Aluno 4: “Tocar numa moeda (cópia) que representa um ideal
político da Roma antiga é como tocar na história”. “Ela espelha
a história, a arte, a política e a crença de um povo”.

Sumário
101

Aluno 5: “Ter acesso à imagem do seu imperador [era] carregar


a lembrança do respeito, do compromisso e da personalidade
de seu líder”.
Aluno 6: “Pude refletir sobre o poder da imagem que perpassa
as eras”. “Permite o resgate de sentimentos perdidos”. “Tocar
com as mãos, sentir o corpo do objeto é uma atividade íntima,
intensa e bastante potente”.
Aluno 7: “Valeu usar a imaginação para pensar na história es-
tudando literatura de uma outra cultura, num tempo muito
distante do nosso. É animador”.
Aluno 8: “Valor monetário e religioso”.
A quase totalidade das respostas transcritas acima atesta o quanto
é importante o uso da cultura material no processo de ensino e apren-
dizagem de aspectos relacionados aos estudos clássicos (Dominik,
2015). A atividade proposta contribuiu para a conscientização dos(as)
alunos(as) a respeito da cultura romana do século de Augusto, que
configura o contexto em que a obra horaciana foi escrita. O proce-
dimento didático realizado com um objeto de cultura material, de
acordo com a maioria das respostas, possibilitou aos(às) aprendizes
compreender o passado de maneira mais dinâmica e real. Desse
modo, consoante Beason e Kvapil (2007), o ensino-aprendizagem
da literatura latina tornou-se mais relevante na medida em que eles/
elas sentiram-se mais próximos da cultura que estavam estudando.

Considerações finais

A cultura, para Tomlinson e Masuhara (2013), reflete todo um


modo de organizar, conceptualizar e interpretar o mundo social típico
de uma sociedade, determinando, assim, os valores e as crenças de
um povo. Dessa maneira, o processo de conscientização cultural

Sumário
102

adquire um papel de grande importância no ensino de LEM, fazendo


que os(as) aprendizes respondam cognitiva e pessoalmente à cultura
estrangeira relativa à língua estudada.
Nessa perspectiva, expusemos o quanto o ensino da cultura
romana é relevante na formação universitária de especialistas em
língua e literatura latinas (Longo, 2011). De fato, Dominik (2015)
e Funari (2003b) observam que o uso de objetos de cultura material
no ensino de aspectos das civilizações clássicas contribui para que
os(as) alunos(as) adquiram uma compreensão mais completa dessas
civilizações.
No que concerne à atividade proposta, os relatos dos(as) alu-
nos(as) motivaram-nos a, cada vez mais, possibilitar-lhes uma forma
de extrapolar as informações pertinentes aos textos literários que
estudam nas aulas de literatura, refletindo sobre a conjuntura que
rodeava os autores desses textos: seus espaços de circulação, as
pessoas que encontravam, os cheiros e sabores que sentiam, os
objetos que tocavam etc. A atividade descrita mostrou-nos ainda
que, no estudo da literatura, não é possível falar apenas desta arte:
os(as) alunos(as) precisam entender que a escultura, a arquitetura,
a pintura e outras artes também expressam um tempo e um espaço
particulares a determinado período literário.
Mesmo com a simples imitação de uma moeda e com um nú-
mero pequeno de alunos(as), tornou-se fascinante recorrer à cultura
material antes das aulas com os textos dos autores latinos previstos.
O que os(as) aprendizes abordaram em suas respostas representou
exatamente o que se esperava da estratégia empregada. Esse recurso
permitiu que a poesia horaciana, de incrível beleza estética e formal,
pudesse ser estudada em sua relação com o período político em que
viveu e circulou o seu autor.

Sumário
103

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Sumário
A SEMIÓTICA FRANCESA E OS
DESDOBRAMENTOS DE PESQUISA: REFLEXÕES
SOBRE PAIXÕES E TEXTOS DE JORNAL

Tiana Andreza Melo Antunes

A língua penetra na vida através dos enunciados concre-


tos que a realizam, e é também através dos enunciados
concretos que a vida penetra na língua.
Mikhail Bakhtin

Introdução

Não há novidade em escolher os gêneros discursivos como


objeto de pesquisa, uma vez que, há aproximadamente três décadas,
os textos se tornaram o cerne do ensino de língua portuguesa. E,
apesar do tempo decorrido, ainda é possível encontrar professores
ou licenciandos com certa dificuldade em se desvencilhar de um
ensino altamente concentrado nos aspectos gramaticais dos textos.
Isso se verifica, por exemplo, quando alguns exercícios são feitos
com base em retiradas de elementos do texto ou em classificações
voltadas unicamente para a nomenclatura das formas gramaticais.
Insistimos, entretanto, que nenhum dos lados deve ser abandonado:
o estudo da gramática é necessário, mas é preciso haver, também,
cada vez mais, um despertar para a leitura (e a escrita), e ela tem
de ser vista como algo mais do que intuição, como uma prática com
infinitas possibilidades interpretativas.
107

Na tentativa de eleger alguma (ou mais de uma) linha teórica


que embase nosso trabalho docente na direção descrita, buscamos
nos concentrar na maneira como uma teoria voltada para textos e
discursos pode ser eficiente no aprendizado da língua portuguesa: pri-
meiramente, ajudando a formar futuros professores mais conscientes;
em segundo lugar, funcionando como um amparo na constituição do
trabalho escolar e até na confecção de obras didáticas que tenham
explicitamente esse embasamento.
Entre as variadas questões que ainda precisam ser pensadas de
modo mais prático nas salas de aula de Português, há, como aponta
Dionisio (2001), a necessidade de um maior trabalho com a oralidade e
de uma melhor delimitação teórica nos livros didáticos. Eles precisam
ultrapassar o interesse mercadológico e vencer as discrepâncias
entre a teoria que consta no manual do professor e as atividades e
propostas internas à obra. As problemáticas expostas pela autora não
são objeto de nossa fala neste capítulo, entretanto são pertinentes
caso se queira pensar sobre o ensino de Português na atualidade.
Gomes (2006) também discute o trabalho com a redação na escola
e especialmente com aptidões de leitura que possibilitem verificar,
por exemplo, a constituição discursiva dos textos, a competência
linguística em si ou a competência interdiscursiva (as múltiplas
vozes que se apresentam em um texto), entre outras perspectivas.
Neste capítulo, nossa pretensa contribuição consiste na exposição
de algumas ideias já tecidas em torno dessa busca por um ensino
mais eficaz. Tomando como embasamento a semiótica francesa,
trabalhamos com o entrelaçamento entre os gêneros do discurso,
mais precisamente, entre as reportagens de uma seção específica
de jornais. Além desse viés, escolhemos demonstrar como o aspecto
sensível dos textos permite fazer uma leitura mais detalhada das
reportagens. Para isso, trazemos reflexões de uma pesquisa que
desenvolvemos há alguns anos e conjugamos os seus resultados com
a ideia de ensino dos gêneros discursivos.

Sumário
108

Um pouco de teoria

O que estuda a semiótica francesa? Em uma resposta muito


abrangente, essa teoria dedica-se à significação dos textos e discursos. A
noção de texto engloba, por sua vez, a soma de um plano de expressão
com um plano de conteúdo, e, assim, “as estruturas discursivas serão
manifestadas como texto quando se unirem a um plano de expressão
no nível da manifestação” (Fiorin, 1995, p. 167). Dessa perspectiva,
a semiótica fundada por Greimas na segunda metade do século XX
atende à diversidade de produções discursivas que encontramos no
mundo, seja textos verbais, imagéticos ou sincréticos. É certo que, no
trabalho com essa vertente teórica, é necessário ter um mínimo de
suporte metodológico que possa abarcar os inúmeros textos existentes,
e, para tanto, utilizamos o chamado “percurso gerativo”, que inclui três
níveis de produção de sentido: o fundamental, o narrativo e o discursivo.
O nível fundamental corresponde às estruturas basilares de
um texto, à dupla de termos que, em oposição, semanticamente o
compõem, como a morte e a vida, por exemplo. O nível narrativo faz
emergir os sujeitos e objetos – como papéis narrativos, e não como
pessoas ou coisas – que estão em jogo, e ainda as sequências de
uma narrativa complexa: manipulação, competência, performance e
sanção. Esse nível revela quais são os elementos necessários para a
realização da performance e dos valores dados aos objetos. No último
e mais concreto nível de análise, o discursivo, há as relações entre
enunciador e enunciatário, baseadas no aspecto argumentativo, e a
procura por temas e figuras que se desvelam no texto. Numa aná-
lise semiótica, pode-se optar por abordar mais profundamente um
dos níveis, desde que se possua um objetivo claro do que se busca
estudar. Geralmente, é o nível discursivo o primeiro a ser notado
nesse tipo de análise, pois é a camada mais concreta do texto. Esse
nível, portanto, ampara as discussões que fazemos neste trabalho.
De acordo com Fiorin (2011, p. 44), “o percurso gerativo é um
modelo que simula a produção e a interpretação do significado, do
conteúdo.” De maneira mais detalhada:
Sumário
109

É composto de níveis de invariância crescente, porque um


patamar pode ser concretizado pelo patamar imediatamente
superior de diferentes maneiras, isto é, o patamar superior
é uma variável em relação ao imediatamente inferior, que
é uma invariante (Fiorin, 1995, p. 171).

Por conseguinte o propósito central da utilização deste caminho


metodológico é apresentar as etapas de construção dos textos, como
se fossem, eles mesmos, edifícios erigidos pelas mãos do sujeito
da enunciação.
Bipartido em enunciador e enunciatário, o sujeito da enunciação
é a instância que organiza todo o discurso. Primeiro, o enunciador
(eu pressuposto) se desdobra no narrador (eu projetado) e, quando
existem sujeitos que tomam voz no enunciado caracterizado por
discurso direto, aparece o interlocutor. Em ambos os casos, temos
narratário e interlocutário como o outro lado dessas instâncias, aqueles
que se encontram, de modo respectivo, diante do narrador e do
interlocutor. Na análise dos textos, é sempre válido observar que tipo
de relações são estabelecidas entre o enunciador e o enunciatário, pois
nenhuma produção textual é um ato solitário: cabe ao primeiro um
fazer persuasivo e ao segundo, um fazer interpretativo. No caso das
projeções em primeira ou terceira pessoa, também são examinados os
efeitos de sentido de subjetividade e objetividade, respectivamente.
Dos itens pertencentes a um texto, os mais rapidamente per-
cebidos em uma leitura são os temas e figuras, que constituem os
percursos temáticos e os percursos figurativos, na semântica do
nível discursivo. Os temas são os conceitos abstratos que explicam o
funcionamento do mundo, e as figuras, os elementos concretos que
revestem os temas. Tal como alerta Fiorin (2011, p. 107), pode ocor-
rer a repetição de um mesmo tema por um grupo de textos diversos,
ainda que se valha de percursos temáticos ou percursos figurativos
distintos; a esse fato, dá-se o nome de “configuração discursiva”.

Sumário
110

Uma das propostas de análise semiótica é a inserção das pai-


xões discursivas, sejam elas expressas pelo dizer do enunciador ou
encontradas no enunciado. Essa proposta não consiste num estudo
psicológico; é uma tentativa de entender as construções afetivas
desenroladas no texto. Tais construções se explicam por meio dos
arranjos modais, e estes, no desenrolar da narrativa, terminam por
revelar as modificações passionais dos sujeitos:

O que entendemos, pois, como paixão corresponde à


constituição de um estado afetivo verificável no discurso
por elementos de ordem modal, aspectual e tensiva, o que
disjunge tal conceito das análises puramente subjetivas.
(Antunes, 2016, p. 33).

Muitas possibilidades desses arranjos estão detalhadas em Barros


(1990), e apenas como ilustração podemos citar a paixão da curiosidade,
proveniente do querer saber. Essa paixão é importante, por exemplo,
para quem estuda os jornais, já que ela movimenta as relações entre o
produtor dos jornais e os leitores. Aqui, o enunciador é detentor de um
saber (do tipo cognitivo) que é repassado ao enunciatário, que quer saber.
As paixões se distinguem uma da outra graças a alguns fatores,
como a intensidade do querer ou os valores que são investidos nos
objetos. Desse modo, devemos

considerar a paixão não naquilo em que ela afeta o se efetivo


dos sujeitos reais, mas enquanto efeito de sentido inscrito
e codificado na linguagem. Esta contribui, por sua vez,
pelas configurações culturais que inscreve no discurso, para
moldar nosso imaginário passional, valorizar esta ou aquela
paixão, desvalorizar uma outra, fazer da paixão o motor do
trágico ou, ao contrário, estabelecer um dever, poderíamos
quase dizer uma virtude social. (Bertrand, 2003, p. 358).

O que acabamos de expor nesta seção corresponde ao que se


conhece por semiótica standard e que nos serviu e serve de fundamento
para as pesquisas desenvolvidas. Entretanto, três fortes desdobramentos
Sumário
111

dessa vertente convivem nas últimas décadas: a semiótica tensiva, a


semiótica das práticas e formas de vida e a sociossemiótica, cujos autores
centrais são, respectivamente, Claude Zilberberg, Jacques Fontanille e
Eric Landowski. Isso significa que a semiótica standard é uma teoria
em frequente construção. Por isso suas propostas combinam perfeita-
mente com a ideia de que precisamos analisar diversificadas produções
discursivas se quisermos uma explicação para o nosso modo de estar
no mundo e agir no mundo pela linguagem. Tais desdobramentos se
mostram eficazes diante de tantos objetos de discurso.

Os jornais e as reportagens como objeto de pesquisa semiótica

O domínio discursivo jornalístico aparece reiteradamente nas


seleções feitas para o ensino de Português nos documentos oficiais
desse ensino. A definição de domínio discursivo perpassa as

instâncias discursivas (por exemplo: discurso jurídico,


discurso jornalístico, discurso religioso etc.). Não abrange
um gênero em particular, mas dá origem a vários de-
les, já que os gêneros são institucionalmente marcados.
(Marcuschi, 2008, p. 155).

Numa sociedade heterogênea e em constante movimento como esta


em que vivemos, os gêneros, ainda que possuam certa estabilidade,
permitem-se o desdobramento e a alteração de algumas características.
O gênero jornalístico tem, hipoteticamente, o papel da impar-
cialidade, mas, a esse respeito, Gomes (2008, p. 15) acentua que,
“sob uma aparência de objetividade e neutralidade, sob uma suposta
verdade testemunhada pelo jornalista, há o ruído da heterogeneidade
de vozes, há, em alguma medida, a fluidez e a dispersão de sentidos”.
Atualmente, parece não ser necessário possuir um olhar científico para
mensurar o quanto os jornais tendem explicitamente para determinados
posicionamentos. Considere-se, ainda, que a objetividade é tida por
alguns estudiosos como um mito, pois diversos fatores interferem na
narração dos fatos, não apenas o posicionamento assumido pela empresa
Sumário
112

dona do jornal, mas o próprio jornalista e suas preferências e/ou saberes


prévios sobre certos assuntos. Em fatos que atingem pequenos grupos e
não têm um alcance social ou político grande, a objetividade teria mais
espaço (Rossi, 2007), entretanto, em qualquer produção discursiva, seja
jornalística ou não, haverá pistas que retomam o caminho do enunciador.
No presente texto, a escolha de um gênero que pertence clas-
sicamente ao universo jornalístico, a reportagem, foi motivada pelo
fato de esse gênero tornar possível observar diversos fenômenos de
construção de um dizer “verdadeiro”.1 A caracterização múltipla
encontra-se, aliás, nos gêneros do discurso em geral:

A riqueza e a variedade de gêneros do discurso são infinitas,


pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável,
e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de
gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-
-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais
complexa. (Bakhtin, 1997, p. 280).

No dicionário especializado de Sérgio Roberto Costa, a definição


do gênero reportagem, no qual se encaixam os exemplos analisados
adiante, é formulada nos seguintes termos:

REPORTAGEM (v. MATÉRIA, NOTÍCIA) Texto


jornalístico (escrito, filmado, televisionado) que é veiculado
por órgãos de imprensa, resultado de uma atividade
jornalística (pesquisa, cobertura de eventos, seleção de
dados, interpretação e tratamento), que basicamente
consiste em adquirir informações sobre determinado
assunto ou acontecimento para transformá-las em
noticiário. O resultado é uma notícia (v.) geralmente mais
longa, com ingredientes críticos. [Os textos jornalísticos]
podem ir além de uma notícia, no sentido tradicional (v.),
embora tenham muita semelhança em sua construção
composicional e discursiva. (Costa, 2020, p. 204).

1 Aqui é importante ponderar que não consideramos a verdade ou a falsidade


dos textos em si, mas o efeito de verdade ou mentira que é tecido no discurso.
Como pontua Barros (2008, p. 64), “o discurso constrói a sua verdade.”
Sumário
113

O caráter argumentativo e informativo, próprio da reportagem,


nem sempre revela imparcialidade. Isso se comprova, entre outros
aspectos, pela verificação das vozes dos interlocutores: se estes
comportam pontos de vista diversos ou se, ao menos, o narrador
se encarrega de apresentar um olhar mais complexo do que o que
provém do interlocutor projetado. Neste capítulo, procedemos a essa
verificação utilizando um material de análise que inclui reportagens
de dois suplementos televisivos, “Revista da TV” e “Já é! Domingo”,
dos jornais O Globo e O Dia, respectivamente. Trata-se de espaços
para reportagens formuladas especificamente para se pronunciar
sobre a televisão e seus programas.2
As reportagens sobre os suplementos televisivos são importantes
para estudar como os comportamentos das pessoas podem ser in-
fluenciados pelas paixões evidenciadas pelos atores. De certa forma,
estas acabam sugerindo e classificando paixões que se generalizam. “A
experiência individual da paixão está relacionada com as taxionomias
passionais selecionadas pelas culturas, depositadas no léxico da língua,
estruturadas e valorizadas pelos discursos” (Bertrand, 2003, p. 85).
No presente trabalho, não serão apresentadas as reportagens na
íntegra, mas os trechos mais relevantes que suscitam o estudo dos
afetos. Na quase absoluta totalidade do corpus, uma paixão e um
tema prevalecem: amor e família. Elegemos uma das divisões dessa
paixão para este capítulo, o amor romântico, cuja configuração é a
de uma paixão tensivamente intensa e mais duradoura. Essa paixão
une as modalidades do querer ser e poder ser, e pode se dirigir a um
ou mais objetos, embora em sua linha romântica atrele-se a valores
de universo – é concentrada, e não difusa. Dentro da caracterização

2 Discutindo a concepção de texto em semiótica, Fiorin (1995) também aborda


os textos televisivos e fala da estrutura das fotonovelas e das telenovelas.
Segundo o autor, elas “trabalham quase sempre com a mesma estrutura
narrativa e geralmente com os mesmos temas (ascensão social, realização
afetiva etc.) figurativizados de maneira diferente” (p. 72).

Sumário
114

feita por Barros (2001), o amor é uma paixão complexa (envolve


diversos percursos modais), fiduciária (pautada na relação de crer)
e de benquerença (é uma paixão positiva). No amor romântico, a
paixão envolve diversas temáticas e até mesmo o enlace com outros
efeitos passionais, como o ciúme, conforme observamos na análise
da reportagem “Só love, só love”, extraída do suplemento de TV do
jornal O Dia. Antunes (2016) destaca que, nesse tipo de reportagem,
as paixões são analisadas sob um ponto de vista parcial, já que os
actantes não estão todos presentes.

Torna-se bastante relevante acrescentar que as paixões


pertencentes ao espaço dos artistas podem ser tanto vi-
venciadas como apenas servirem de assunto na projeção
de segundo grau do actante; neste caso, vale dizer que as
paixões, na maior parte das vezes, encontram-se demar-
cadas sob um ponto de vista parcial nas reportagens, já
que – se vividas ou faladas – os outros actantes envolvidos
em dada paixão não estão presentes (só sabemos como
eles são amados, por exemplo, mas não como amam) e
existe um observador fixo sincretizado na figura do artista.
(Antunes, 2016, p. 104).

Em nosso material de análise, o tema da submissão é reiterado


quando o amor remete às relações homem-mulher, principalmente
se estas são consolidadas nas figuras de marido e esposa, sendo esta
última, em geral, a que se posiciona de modo submisso. O exemplo
mais canônico encontrado em nosso corpus é o que põe em jogo dois
actantes do enunciado: a artista Suzana Vieira e sua personagem
Pilar, da novela Amor à vida. A personagem é casada com César
(Antonio Fagundes), um sujeito bem-sucedido e adúltero. Veja-se
um trecho da reportagem:

Pilar, a mulher do cafajeste César (Antônio Fagundes), é


submissa, largou a profissão para cuidar dos filhos e fala de
forma contida. “Pilar é de uma geração em que a maioria das

Sumário
115

mulheres casou e foi ser dona de casa e mãe. Eu sou fruto


dessa geração, mas sou uma desgarrada dessas pessoas. Eu
sou uma exceção dentro de uma geração que casou para ficar
casada para o resto da vida, ter filho, cuidar do marido e do
lar. Não acho isso um desprestígio. Até acho uma aventura
muito boa você poder criar uma prole, se dedicar à casa”,
explica a atriz, que é mãe de Rodrigo Vieira, de 47 anos,
e avó de Rafael, 16, e Bruno, 15. (Teixeira, 2013, p. 12).

O narrador desta reportagem nos apresenta um sujeito submis-


so por meio de dois comportamentos: largar a profissão e ter uma
fala contida. Nessas ações aparecem as características relativas a
um padrão do que seria uma “boa esposa” e uma “boa mãe”. Pilar é
quem trilha esse papel de modo categórico, enquanto Suzana Vieira
opõe-se a tal postura. O narrador as aproxima ao mostrar que a artista
também é mãe e avó, fornecendo dados sobre seus filhos e netos.
O ator (Suzana), reconhecendo a diferença entre si e a perso-
nagem, autodeclara-se “uma desgarrada” e “uma exceção”, trazendo
à tona uma posição avaliativa e moralizante sobre figuras femininas
que buscam a independência (casam e podem se divorciar), atitude
reconhecidamente distinta daquela que é imposta às mulheres de
sua geração: “eu sou uma exceção dentro de uma geração que casou
para ficar casada”. Contudo, em nossa análise, a sequência desse
discurso apresenta uma contradição:

Suzana Vieira parece independente, mas não o é: julga


como um desvio de comportamento socialmente aceito o
fato de casar e separar-se (veja-se o lexema “desgarrada”
– aquela que se afasta de um rumo) e qualifica positiva-
mente como “aventura” o comportamento figurativizado
de cuidar da casa e dos filhos. Dessa forma, na voz desse
actante, existe um comportamento previsível e bem aceito
socialmente, com o qual ele rompeu [...], mas – limitado
ainda a um julgamento social – não deixa de lhe tecer
elogios. (Antunes, 2016, p. 121).

Sumário
116

O caráter argumentativo da reportagem em questão, assim como


de outras analisadas à época, reside numa influência sobre o modo de
vida do enunciatário. Em um olhar mais geral sobre os suplementos
de TV em sua totalidade,

é notório que, mesmo nos momentos em que o discurso


se concentra nas narrativas sobre a encenação dos
personagens nas novelas e sobre a vida familiar ou íntima
do artista, há também a instauração de um dever ser ou
fazer em virtude da aceitação de tais proposições por parte
do enunciatário. (Melo, 2017, p. 31).
Importa, então, reiterar que em diversas seções os
suplementos se valem dos efeitos passionais para construir
o discurso. Mais do que isso, baseiam-se na valorização
das paixões ditas benevolentes – assim avaliadas pela
própria cultura em que estão inseridas –, como o amor e
a felicidade, e refutam as más paixões, tais como o ódio
e a inveja, por exemplo. (Melo, 2017, p. 35).

Na maior parte das vezes, o enunciador projeta um narrador


mais afastado do discurso e um interlocutor ativo, o que gera no
enunciatário uma sensação de aproximação com o ator do discurso.
Se pudéssemos brevemente resumir como a paixão do amor é tra-
tada nas reportagens eleitas, diríamos que a conjunção amorosa é
vista como positiva, e o amor com temporalidade longa também. É
por essa razão que a figura casamento aparece reiteradamente nos
textos analisados.
Alguém poderia se perguntar se não existem nas novelas televi-
sivas as paixões consideradas negativas. Na verdade, pode-se afirmar
que ocorre, em certa medida, um veto sobre tais paixões, a fim de
trazer luz aos bons sentimentos. Nesse caso, captura-se o enunciatário
para os efeitos de benevolência, afastando-o das paixões que causam
repulsão. Assim, nota-se que os textos podem direcionar para um
movimento de simpatia ou de antipatia, a depender dos caminhos
sensíveis que sejam trilhados.

Sumário
117

A configuração passional se encontra, então, inserida no


espaço comunitário que não somente a sanciona e a julga
como má ou boa (pejoração/melhoração), não somente a
avalia qualitativa e quantitativamente (entre a medida e o
excesso), mas mais profundamente a seleciona como tal.
O reconhecimento, que é inicialmente uma identificação,
é, em seguida, somente julgamento axiológico sobre o
pano de fundo das normas que regem a justa circulação,
no interior do espaço comunitário, dos bens e dos valores.
(Bertrand, 2003, p. 373).

Exemplificamos esta perspectiva sobre as más paixões com


uma das encontradas no material analisado, a inveja, começando
pela definição lexical registrada em alguns dicionários etimológicos:

Inveja s. f. Desgosto ou pesar pelo bem dos outros.


(Cunha, 1986, p. 443).
Inveja s. f. 1 desejo de possuir o que é de outrem 2 p. ext.
o objeto desse desejo 3 desgosto com o sucesso alheio.
(Houaiss, 2010, p. 449).
Inveja, invídia – Sentimento penoso causado pela feli-
cidade alheia. O segundo vocábulo é erudito, literário e
pouco usado. (Nascentes, 2011, p. 291).

Tais definições relembram os apontamentos de Greimas e Fon-


tanille (1993) em sua obra seminal sobre o tema das paixões: a inveja
pode opor dois actantes em torno de um objeto ou relacionar o su-
jeito ao objeto. Na obra, a inveja aparece correlacionada ao ciúme,
pois há ali dois sujeitos rivais disputando um objeto. O “desgosto” e
o “sentimento penoso” que figuram nas definições anteriores apon-
tam para um sentir-se mal do sujeito invejoso. Barros (1990, p. 61)
classifica tal efeito passional como simples (tem um único arranjo
modal, nesse caso, o querer ser) e afirma que, “na inveja, o /querer
ser/ implica em querer que o outro não seja, isto é, os valores dese-
jados estão em conjunção com outro sujeito”. Se constatar o bem

Sumário
118

do outro causa um mal-estar, o invejoso é aquele que trabalha para


suprir sua própria falta.
Em uma reportagem feita com a artista Bianca Bin, coloca-se em
relevo o fato de um sujeito invejoso querer fazer mal a outro actante.
A atriz interpretara uma vilã na telenovela Guerra dos sexos, encon-
trando-se em um bom momento na profissão, e relata os problemas
que enfrentou para alcançar esse sucesso profissional:
– Eu apanhei muito. Era uma menina do interior muito
insegura. Descobri que as pessoas puxam seu tapete sem
motivo aparente. Sabia que o mundo não era Itu (cidade
do interior de São Paulo onde fora criada). Mas aprendi a
construir os meus escudos. Hoje não chego para trabalhar
sem fazer uma oração. (Bravo, 2013, p. 13).

Nota-se, aqui, a transformação vivida por esse sujeito, que passa


de ingênuo a prevenido. Essa mudança é figurativizada pela prática
da oração no ambiente de trabalho.
Da perspectiva, portanto, daquele que é alvo da inveja,
mostrar-se-á que existe, claramente, um contrato fiduciário
que é rompido, o que, na sequência, gera a frustração e o
distanciamento do sujeito frustrado. Embora não nomeada
a frustração, é possível percebê-la pelo depoimento de
Bianca Bin, colocando, de um lado, a inveja aludida pelo
actante e, de outro, a frustração sentida por ele. Assim,
mobilizam-se duas paixões no mesmo discurso de um
ator. O uso do advérbio de intensidade “muito”, ao lado
da marcação aspectual terminativa do verbo “apanhei”,
direciona para um sofrimento acabado, ligado ao com-
ponente modal (sujeito “inseguro”). Esse ator, a quem
faltava certeza sobre si mesmo, relacionada ao não crer
ser, também não dispunha de um saber sobre os malefícios
causados pelos demais sujeitos invejosos, no entanto, essa
falta de compreensão não impede a transformação de
estado: de inseguro a protegido, marcada pela construção
adversativa: “Mas aprendi a construir os meus escudos”.
(Antunes, 2016, p. 161).

Sumário
119

O narrador direciona para o comportamento positivo da atriz,


demonstrando que, apesar da quebra de expectativa vivida por esse
sujeito com as pessoas que “puxaram seu tapete”, mantêm-se a leveza
e a simpatia de Bianca Bin. Embora se mostrasse frustrada, a atriz
não adotou “uma postura sisuda. Sentada na mureta de uma área
externa do Projac, uma falante Bianca interrompe algumas vezes a
entrevista com a Revista da TV para cumprimentar quem passa por
ela” (Bravo, 2013, p. 13).
A fase de frustração aparece em todas as paixões em que um
contrato fiduciário, ou de confiança, é rompido – quando aquele de
quem se esperava algo não fez sua parte. A frustração se evidencia,
por exemplo, com a insegurança, conforme explicitado na fala da
atriz citada, e o indivíduo frustrado tenta suprimir a falta gerada ou
lamenta o rompimento do contrato. Bianca Bin mantém-se afastada
do querer fazer mal e apenas busca se proteger. O narrador leva seu
narratário a entender, por fim, que esse ator do discurso só é alvo da
inveja em função de seu bom desempenho profissional – e pessoal;
portanto, mais uma vez, verifica-se a tendência dos suplementos
para enaltecer as boas paixões e atrair afetivamente seu enunciatário.
Os efeitos passionais podem ser estudados não só no enunciado,
mas também na enunciação. Na análise das paixões nas reportagens
dos suplementos de TV, percebemos que o enunciador dissimula sua
inclinação passional. A dissimulação é vista, por exemplo, quando
o enunciador emprega os verbos dicendi, aqueles que introduzem
as falas dos interlocutores.3Esses verbos estão majoritariamente
desprovidos de algum teor passional, pois constituem formas mais
propriamente ajustadas ao que o actante diz: o narrador se vale de
formas verbais cujo significado é coerente com a posição assumida
pelo interlocutor, como “defende”, “filosofa”, “acredita” etc. Por fim,

3 Abreu (2006, p. 63) afirma que “é preciso ter cuidado com o emprego [desses]
verbos introdutores de vozes, pois é bastante comum o autor utilizá-los [...]
de modo a manipular a voz que apresenta.”

Sumário
120

seja qual for a estratégia do enunciador, “o público deve ser conduzido


a acreditar que o julgamento realizado pelo jornal é ‘evidente’” (Her-
nandes, 2012, p. 35). Existe, portanto, um dizer harmonioso no jogo
narrador-interlocutor.
A despeito do que já tratamos sobre a objetividade e a impar-
cialidade, pode-se assumir, de certo modo, que a objetividade de
um jornal reside no “emprego da terceira pessoa, da voz passiva e de
outros recursos gramaticais que também simulam o afastamento do
sujeito [e que] a imparcialidade é sublinhada pelo espaço dado a várias
vozes discordantes”, conforme assevera Gomes (2008, p. 38). Neste
ponto, concluiremos tacitamente que o espaço das “reportagens de
capa”4 dos suplementos televisivos comporta um direcionamento e
uma orientação argumentativa mais do âmbito da subjetividade, sem
colocar em diálogo temas polêmicos e apresentando interlocutores
que ratificam uns aos outros. O narrador, nessas reportagens, segue
esse mesmo viés. De maneira alguma, a falta do embate imparcial
significa que o discurso dos suplementos esteja empobrecido; na ver-
dade, ele é adequado ao propósito que possui: entreter o enunciatário,
apresentar-lhe um modo de vida mais adequado à normalidade e ao
equilíbrio, o “justo meio”, para sermos mais precisos, e, por certo,
influenciá-lo afetivamente, despertando-lhe a empatia pelos artistas
e personagens “nem tão maus assim”.
Nos três suplementos, o enunciador omite bastante seu próprio
aparecimento quando se leva em conta a distribuição do seu dizer
ao longo das duas a cinco páginas com que se ocupa em apresentar
ao enunciatário certas figuras do universo televisivo. Entretanto,
calar-se é também uma forma de estar no discurso – apagando-se
sem deixar de existir.

4 Alguns suplementos, como a Revista da TV, de O Globo, proporcionam


um espaço para as cartas dos leitores e um espaço de avaliação, em que o
interlocutor pode dar nota de 0 a 10 para um artista ou programa e justificar
essa nota. A esses conteúdos, dá-se o nome de reportagens de capa.

Sumário
121

Nas reportagens que analisamos, há um forte componente cul-


tural que expõe as paixões, tanto as da benevolência quanto as da
malevolência. Isso atesta a existência de uma relação intrínseca
entre língua e cultura, conforme exposto por Câmara Júnior (1989).
Segundo ele, “a língua é parte da cultura, mas se destaca do todo e
com ele se conjuga dicotomicamente” (p. 21). Assim, em face do
restante de uma cultura, uma língua é o resultado ou a súmula dessa
cultura, o meio para ela operar e a condição para que ela subsista
(p. 22). Seguindo para o pensamento semiótico tecido por Jacques
Fontanille (2012, p. 215),

a segmentação moral sobrepõe-se à segmentação afetiva de


maneira que distinções passionais sejam fixadas em todas
as culturas em que haja traços pertinentes no plano moral,
ao passo que, inversamente, nas áreas culturais em que
a moral não atue de forma distintiva, a segmentação das
paixões permaneça livre e indeterminada. Desse modo, a
dimensão moral é, ao mesmo tempo, um meio pelo qual
podemos ter acesso às classificações passionais e uma
máscara da qual precisamos nos livrar.

O que ansiamos expor, por conseguinte, é que tomar o viés


passional para entender os textos significa descortinar, de algum modo,
o que a cultura tende a operar nesses textos que nela se inserem
como atos de enunciação. Nesse ponto, destacamos a necessidade
do “enunciatário colaborativo”, isto é, aquele que exerce um fazer
interpretativo capaz de extrair do texto mais do que o dito.

Possíveis contribuições para o ensino de Português

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) indica para o


ensino fundamental II, que serve de parâmetro ao nosso estudo,
a construção de reportagens envolvendo trabalho de pesquisa e
seleção de temáticas e informações, além da prática de leitura de
diversos gêneros de jornal como forma de ajudar os alunos a assumir

Sumário
122

um posicionamento crítico. Reproduzimos adiante dois trechos do


documento que prescrevem atividades com o gênero em questão. O
primeiro remete ao trabalho do terceiro ao quinto ano do fundamental
com a produção de textos jornalísticos acerca do cotidiano, e o in-
serimos, exclusivamente, para destacar que o aprendizado deste e
de muitos outros gêneros discursivos começa com o trabalho dos
pedagogos e se perpetua nas aulas de língua portuguesa. O segundo
explana um conceito por vezes desconhecido dos alunos, a ética, que
deve ser um pilar para a produção dos textos de cunho argumentativo:

(EF05LP17) Produzir roteiro para edição de uma repor-


tagem digital sobre temas de interesse da turma, a partir
de buscas de informações, imagens, áudios e vídeos na
internet, de acordo com as convenções do gênero e con-
siderando a situação comunicativa e o tema/assunto do
texto. (Brasil, 2018, p. 125).
(EF67LP02) Explorar o espaço reservado ao leitor nos
jornais, revistas, impressos e on-line, sites noticiosos etc.,
destacando notícias, fotorreportagens, entrevistas, charges,
assuntos, temas, debates em foco, posicionando-se de
maneira ética e respeitosa frente a esses textos e opiniões
a eles relacionadas, e publicar notícias, notas jornalísticas,
fotorreportagem de interesse geral nesses espaços do leitor.
(Brasil, 2018, p. 163).

Mostrar aos alunos o jogo de dizer que se instaura nas reportagens


e em todos os demais gêneros discursivos, sobretudo aqueles proemi-
nentemente argumentativos, é um dos caminhos que podem ser
facilitados pelo conhecimento do professor sobre a teoria semiótica.
No ensino-aprendizagem da língua portuguesa, o docente conhece-
dor da semiótica tem a preocupação de mostrar como o enunciador
manipula as vozes dentro do enunciado e de evidenciar que o leitor
(enunciatário) precisa ter uma leitura ativa e adquirir a consciência
de que é coparticipante dos textos. Conforme assevera Fontanille
(2012, p. 185), há uma

Sumário
123

captura do leitor pelo discurso: para ler, o leitor deve ela-


borar a significação; para elaborar a significação, ele deve
tomar posição em relação ao campo de discurso, adotar
um ponto de vista, desenvolver uma atitude perceptiva
etc. Desse modo, ele já partilha, ao menos parcialmente,
da identidade modal e passional dos actantes do discurso.

Quando expusemos as análises das reportagens na seção anterior,


colocamos em relevo as paixões do enunciado e uma possível enun-
ciação apaixonada que não se sustentou nos discursos feitos sobre
a televisão nas reportagens escolhidas. Esse tipo de trabalho com as
paixões presentes em um texto impacta afetivamente o enunciatário,
que é o outro lado da instância da enunciação, o leitor previsto no
texto. Uma descrição detalhada de um evento marcadamente afetivo,
ou até mesmo uma fotografia que acompanhe uma reportagem, tem
grande poder sobre o enunciatário. Gomes (2008), por exemplo,
evidencia como uma fotografia de uma criança comendo pizza no
meio do lixo pode desencadear a paixão da indignação em uma notícia
que majoritariamente, em seu texto verbal, visa expor questões outras,
como as problemáticas de saúde pública advindas do lixo urbano. Esse
é um viés que pode ser suscitado também nas salas de aula, através
do estudo das paixões de um enunciado. O professor pode usar um
texto para mostrar aos alunos as estratégias que um enunciador põe
em jogo a fim de gerar indignação, medo, raiva, desprezo, entre outros
estados de alma. Visto que parte da argumentação é racional e parte
é emocional (Abreu, 2001), uma análise do aspecto persuasivo dos
textos deve passar por esse caminho, e não é preciso, é bem relevante
ressaltar, que uma paixão esteja nomeada no texto; muitas vezes,
apenas os efeitos somáticos estão detalhados ali: um rosto que se
torna vermelho, podendo denotar a paixão da vergonha, por exemplo.
Com esses efeitos, o enunciador aponta para cenas passionais que,
por vezes, correspondem a comportamentos prototípicos numa
dada cultura. A persuasão, ou o “fazer crer”, tão indispensável no

Sumário
124

processo de comunicação, depende, em grande parte, desses recursos


argumentativos. Acerca dos processos de persuasão, ouçamos as
palavras de Aristóteles (2011, p. 45-46, grifo nosso):

Há três tipos de meios de persuasão supridos pela palavra


falada. O primeiro depende do caráter pessoal do orador;
o segundo, de levar o auditório a uma certa disposição
de espírito; e o terceiro, do próprio discurso no que diz
respeito ao que demonstra ou parece demonstrar. [...] a
persuasão pode ser obtida através dos ouvintes quando o
discurso afeta suas emoções; com efeito, os julgamentos
que emitimos variam segundo experimentamos sentimen-
tos de angústia ou júbilo, amizade ou hostilidade.

Para José Luiz Fiorin, o fazer crer encontra-se fortemente vin-


culado à argumentação. Por isso ele atribui grande relevância ao
componente argumentativo dentro da comunicação.

A Semiótica considera que um componente determinante


do processo comunicacional é o fazer crer. Por isso, o
componente argumentativo adquire um relevo muito
grande na teoria. Argumentação é qualquer mecanismo
pelo qual o enunciador busca persuadir o enunciatário a
aceitar seu discurso, a acolher o simulacro de si mesmo
que cria no ato de comunicação. (Fiorin, 1995, p. 172).

Aliás, mesmo em gêneros discursivos que são propriamente


narrativos, como um romance ou um conto, é esse direcionamento
sensível, muitas vezes, que permitirá uma melhor compreensão do
motivo por que os personagens agem de determinada maneira: descrever
as ações não é mais suficiente para fazer entender as mudanças de
estado do sujeito; apenas ao compreender seus estados de alma, tem-se
a chave para a interpretação de certas produções textuais.
Com esse entendimento, trazemos à lembrança uma obra de
cunho didático de Platão e Fiorin (1995), a qual retoma, em seu
terceiro capítulo, a necessidade de observância do percurso gerativo

Sumário
125

de sentido nos textos. Nessa direção, os autores remetem aos níveis


de leitura de um texto e demonstram como cada nível colabora com
o sentido construído ali. Segundo eles, a estrutura de um texto é
formada por três planos distintos:

1) uma estrutura superficial, onde afloram os significados


mais concretos e diversificados. É nesse nível que se ins-
talam no texto o narrador, os personagens, os cenários, o
tempo e as ações concretas.
2) uma estrutura intermediária, onde se definem basica-
mente os valores com que os diferentes sujeitos entram
em acordo ou desacordo.
3) uma estrutura profunda, onde ocorrem os significados
mais abstratos e mais simples. É nesse nível que se podem
postular dois significados abstratos que se opõem entre
si e garantem a unidade do texto inteiro. (Platão; Fiorin,
1995, p. 37).

Para os autores, os bons textos sempre possuem uma unidade,


uma ordem, e é justamente o ato de encontrar esse fio condutor que
gera a coerência e a compreensão de como se entrelaçam os elementos
superficiais em torno de um sentido comum. Esse sentido geralmente
se amplia de um leitor para outro, mas tais ramificações não dependem
somente do leitor: “um texto pode ter várias leituras, bem como pode
jogar com leituras distintas para criar efeitos humorísticos. Entretanto,
o leitor não pode atribuir o sentido que bem entender” (Platão; Fiorin,
2003, p. 129). Esse alerta deve ser sempre levado em consideração,
já que algumas vezes as opiniões dos leitores invadem seu processo
interpretativo, impedindo que reconheçam o caminho apresentado
pelo enunciador e gerando resultados de leitura incoerentes com o
proposto, seja pelo dito ou pelo implícito. Platão e Fiorin (2003) apre-
sentam ainda um capítulo voltado para os estados de alma ou paixões,
ratificando nosso posicionamento de observar tais efeitos no estudo
de textos no ambiente escolar. Eles asseveram que

Sumário
126

os artistas nunca deixaram de analisá-los, de pô-los em


cena em suas obras: [basta lembrar] o ciúme de Otelo,
a avareza de Gobseck, a inveja de Caim e tantos outros
estados de alma de célebres personagens da literatura
mundial. (Platão; Fiorin, 2003, p. 269).

Estes breves exemplos, portanto, corroboram o que a semiótica


percebeu ao se debruçar sobre as paixões: que nem sempre as ações
dos sujeitos dão conta da completude do discurso, sendo necessário
desvendar também as paixões deles.
Já vimos que as paixões são encontradas não somente nos textos
do domínio discursivo da literatura, mas também nos jornalísticos, e
devemos nos valer de um conhecimento teórico sobre elas se quiser-
mos fazer com nossos alunos uma leitura mais atenta dos textos. Em
resumo, para analisar textos, é preciso conhecer a semiótica, que se
ocupa da língua e dos discursos e das formas culturais configuradas
por eles, a exemplo das paixões.

[D]istinguindo-se das abordagens filosófica e psicopatoló-


gica do passional, a semiótica restringe sua observação à
dimensão linguajeira e discursiva do fenômeno. Ela procura
inscrever seu objeto nos princípios de pertinência e de
coerência da teoria geral da significação. Ela se interessa
pelas formas culturais dos dispositivos passionais que o
discurso configurou. Aliás, é nesse limite que ela interessa
ao especialista em análise textual. (Bertrand, 2003, p. 377).

Tomando por base o olhar da semiótica francesa, é possível


realizar análises textuais trabalhando também com a tríade que
fundamenta a noção de gênero discursivo: forma composicional,
conteúdo temático e estilo. Uma boa definição de forma é a que
se infere do posicionamento de Regina Gomes sobre a forma dos
textos jornalísticos.

Sumário
127

Nos textos jornalísticos, por exemplo, percebe-se a pre-


ferência, em relação às projeções enunciativas, pela
debreagem enunciva de pessoa e espaço e enunciativa
de tempo, assim como a recorrência do emprego da
ancoragem espacial, temporal e actancial e do recurso à
heterogeneidade discursiva para corroborar a verdade dos
fatos enunciados, entre outros procedimentos. (Gomes,
2009, p. 589).

Aqui se pode observar como os componentes relativos às catego-


rias da enunciação (pessoa, espaço e tempo) são úteis para delimitar
os domínios discursivos com seus respectivos gêneros. A preferência
pelo uso da terceira pessoa (“debreagem enunciva”), por exemplo,
é um dos caminhos para a credibilidade dada pelo enunciatário aos
fatos expostos.
No que concerne ao conteúdo temático, a dedicação à semântica
do nível discursivo concentrando-se nos temas e figuras, já tratados
anteriormente, permite uma melhor análise dos gêneros e facilita
a identificação desse conteúdo. A análise semântica do conteúdo
temático de um discurso aponta que romances e notícias são textos
figurativos e necessitam, portanto, do mapeamento da camada figu-
rativa para se chegar aos temas subjacentes.
Por fim, sobre o estilo, é ele que delineia o comportamento do
gênero, como afirmara Bakhtin (1997), e sua análise demanda a
compreensão das relações entre enunciador e enunciatário.
Vejam-se, adiante, dois conjuntos de habilidades apresentados
pela BNCC para o ensino fundamental visando capacitar o alu-
no a identificar o conteúdo temático de gêneros pertencentes aos
campos jornalístico e midiático e a produzir textos nesses campos,
demonstrando conhecimentos sobre sua forma e seu estilo:

(EF69LP03) Identificar, em notícias, o fato central, suas


principais circunstâncias e eventuais decorrências; em
reportagens e fotorreportagens, o fato ou a temática re-
tratada e a perspectiva de abordagem; em entrevistas,

Sumário
128

os principais temas/subtemas abordados, explicações


dadas ou teses defendidas em relação a esses subtemas;
em tirinhas, memes, charge, a crítica, ironia ou humor
presente. (Brasil, 2018, p. 141).
(EF69LP06) Produzir e publicar notícias, fotodenúncias,
fotorreportagens, reportagens, reportagens multimidiáticas,
infográficos, podcasts noticiosos, entrevistas, cartas de
leitor, comentários, artigos de opinião de interesse local
ou global, textos de apresentação e apreciação de pro-
dução cultural – resenhas e outros próprios das formas de
expressão das culturas juvenis, tais como vlogs e podcasts
culturais, gameplay, detonado etc. – e cartazes, anúncios,
propagandas, spots, jingles de campanhas sociais, entre
outros em várias mídias, vivenciando de forma significativa
o papel de repórter, de comentador, de analista, de crítico,
de editor ou articulista, de booktuber, de vlogger (vlogueiro)
etc., como forma de compreender as condições de produção
que envolvem a circulação desses textos e poder participar
e vislumbrar possibilidades de participação nas práticas de
linguagem do campo jornalístico e do campo midiático de
forma ética e responsável, levando-se em consideração o
contexto da Web 2.0, que amplia a possibilidade de circu-
lação desses textos e “funde” os papéis de leitor e autor, de
consumidor e produtor. (Brasil, 2018, 143).

Notam-se, nestas citações, tanto o trabalho com as temáticas das


reportagens quanto uma exploração intensa do papel de enunciador,
na medida em que as habilidades estabelecidas prestam-se a motivar
o aluno a “produzir e publicar” uma variedade de gêneros discursivos.
Não vamos entrar na problemática dos gêneros que circulam na
internet, mas sabemos que o caminho dos multiletramentos, am-
plamente explorado por autores como Rojo e Moura (2012), expõe
as práticas de um enunciatário que se depara com uma infinidade
desses gêneros, precisando, portanto, aprender a selecionar e mani-
pular os textos encontrados. Muitos desses gêneros sequer existiam
há alguns anos, e muitos outros ainda passarão a existir. Isso indica

Sumário
129

a necessidade de constante estudo e aprimoramento dos professores


que atuam no ensino básico. A multiplicação dos gêneros discursivos
midiáticos demanda tanto um conhecimento teórico que reúna a
essência desses gêneros quanto uma revisitação constante da geração
de novas produções textuais.
Além de numerosos, os gêneros discursivos são flexíveis. Os textos
que se debruçam sobre eles ressaltam constantemente sua flexibilidade.
Esse elemento é crucial, e não pode deixar de ser trabalhado em sala de
aula; do contrário, o ensino de gêneros se torna um manual de modelos
a ser seguido em todas as situações comunicativas. É claro que alguns
gêneros, como uma ata, são mais rígidos, enquanto outros, como um
poema, são muito mais abertos aos objetivos do enunciador. Conforme
ratifica Marcuschi (2011, p. 20), “os gêneros não são superestruturas
canônicas e deterministas, mas também não são amorfos”. Ou seja, sua
estabilidade é relativa, porém, ainda assim, é graças a ela que podemos
“antecipar e estabelecer a ação interpretativa” (Gomes, 2009, p. 592).
O caráter dos gêneros, “ao mesmo tempo flexível e instável, nos abre
condições para nos ajustarmos às novas circunstâncias histórico-sociais
a que sempre estamos sujeitos” (Gomes, 2009, p. 592).

Considerações finais

O exercício da pesquisa semiótica abrange muitas tarefas, entre


as quais os atos de descortinar as camadas dos textos, prezar pela
imanência da análise e atender à multiplicidade de gêneros discursivos
disseminados todos os dias nos ambiente on-line e off-line: entre
outros, os memes, os infográficos e os textos do universo jornalísti-
co, como as reportagens e seus derivados, citados na BNCC. Neste
estudo, destacamos o uso da reportagem nas salas de aula do ensino
fundamental como um caminho para tratar de assuntos de interesse
atual e estimular o exercício argumentativo nos alunos. Essa prática
permite a eles trabalhar a coerência pela escolha de figuras no nível
discursivo, confrontar posicionamentos de narrador e interlocutor e,

Sumário
130

enfim, verificar a qual enunciatário se dirige cada jornal utilizado em


aula. Entretanto, para dirigir atividades tão relevantes, o professor
precisa de um conhecimento semiótico.
O conhecimento das paixões por via da semiótica francesa apre-
senta-se, também, como um elemento para complementar nossas
aulas de língua portuguesa e nossas leituras diárias dos mais varia-
dos gêneros discursivos, das quais não é possível prescindir. Afinal,
somente a ponte dos “enunciados concretos”, como afirma a epígrafe
deste capítulo, leva-nos ao entendimento mais claro dos usos da
língua e da relação complexa entre esta e a vida.
Embora reconheçamos a existência de uma variedade de gêneros
discursivos listados nos documentos oficiais para o ensino básico,
o recorte que fizemos serve como um início de trajeto teórico para
o ensino e a aprendizagem desses gêneros. As reportagens sobre a
televisão podem não ser a escolha mais indicada para o trabalho
com os gêneros discursivos nas salas de aula, mas são úteis como
instrumentos de leitura capazes de ajudar alunos e professores a
perceber como os discursos à sua volta afetam suas emoções e os
orientam para caminhar pelas mesmas vias que o enunciador projetou
ao construir seus textos. Seja qual for o gênero discursivo trabalhado,
seu uso na sala de aula será sempre um exercício prático de familia-
rização com esses distintos textos.
Com as ferramentas advindas da semiótica, uma teoria exclusi-
vamente dedicada a textos e discursos, os docentes poderão transitar
com mais segurança pelo trabalho com as produções textuais. Além
do exercício de análise do verbal, a semiótica francesa fornece vias
também para a análise dos textos visuais e sincréticos, que não abor-
damos aqui. É improvável, aliás, cobrir em um único momento toda
a pluralidade que envolve os gêneros discursivos. Por conseguinte,
limitamo-nos a esperar que este capítulo possa impelir os leitores
ao conhecimento da semiótica discursiva e ao aprofundamento de
temas brevemente tratados nesta exposição. Ansiamos, por fim, que
a paixão da curiosidade encontre acolhimento em nossos leitores.

Sumário
131

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Sumário
A REPRESENTATIVIDADE EM “OLHOS
D’ÁGUA”, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Gabriele Modesto Fluhr Vilalba


Geovana Quinalha de Oliveira

Considerações sobre a literatura de autoria feminina negra

Desde 2020 convivemos com uma crise sanitária que tem acen-
tuado e escancarado, entre outros fatores, as profundas desigualdades
econômicas e sociais de nosso planeta. A questão torna-se ainda mais
emblemática para cada indivíduo a depender do lugar social e da
intersecção de categorias que o compõe, como as de gênero e raça/
etnia. Neste cenário, movimentos políticos, intelectuais e culturais,
a exemplo do Feminismo negro, têm demonstrado, insistentemente,
o quanto as mulheres negras sempre foram, e ainda são, penalizadas,
marginalizadas e invisibilizadas nos processos históricos. Tal margi-
nalização se agrava, sobretudo, em contextos de crises econômicas
e/ou de saúde, como estamos vivenciando com o quadro do Covid
19. No Brasil, assim como em outros países, as implicações dessa
doença apontam as assimetrias e os impactos produzidos por ela
em lugares sociais de desigualdades, como atestam as pesquisas
realizadas pelo GT Racismo e Saúde da Abrasco:

[E]m abril o Ministério da Saúde já havia apontado altas


taxas de mortalidade por COVID-19 entre os negros, uma
categoria que inclui pessoas que se identificam como “pre-
tas” e “pardas” no censo demográfico. As autoridades do
município de São Paulo também anunciaram que as taxas de
135

mortalidade entre os pacientes com COVID-19 eram mais


altas entre os negros. Dados coletados no mês de maio por
pesquisadores independentes para mais de 5.500 municí-
pios mostram que 55% dos pacientes negros hospitalizados
com COVID-19 em estado grave morreram, [contra] 34%
dos pacientes brancos. (Araújo; Caldwell, 2020).

As pesquisas em saúde pública, segundo Araújo e Caldwell


(2020), têm apontado o racismo estrutural como fator que cria os
piores resultados para a saúde da população negra brasileira. Em
virtude da insegurança alimentar e do acesso inadequado a medi-
camentos e suas prescrições, essa população apresenta as maiores
taxas de doenças crônicas, como diabetes, pressão alta, problemas
respiratórios e renais. Somam-se a esse quadro a precariedade e a
desigualdade no âmbito da moradia e do trabalho. Homens e mu-
lheres negros e negras vivem, em sua maioria, em bairros pobres das
periferias urbanas e ocupam a base da pirâmide dos salários e das
condições trabalhistas. Essas condições, essencialmente quando
somadas, precisam ser consideradas no enfrentamento da crise sa-
nitária da pandemia do Covid-19 e no combate às diversas violências
praticadas contra essas pessoas ao longo da história brasileira.
Em uma sociedade estruturada pelo racismo e pelo patriarcado,
como a nossa, os desdobramentos da atual pandemia atingem de várias
formas as mulheres, especialmente as negras. Historicamente, esse
grupo populacional foi, e ainda é, altamente explorado e negligenciado.
As mulheres negras somam as taxas mais elevadas de baixo salário, de
informalidade, de violência, de desemprego, de vulnerabilidade e de
responsabilidade enquanto chefes de família, como se vê nas estatísti-
cas apontadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
em parceria com a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM),
a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir)
e a Onu Mulheres (Ipea et al., 2011). Nas palavras da professora e
ativista Rafaella Florencio, entrevistada por Francisco Barbosa, é muito
representativo o fato de que a primeira brasileira a morrer no Brasil

Sumário
136

por conta do Covid-19 tenha sido uma mulher negra e empregada


doméstica (Barbosa, 2020).
Esse e muitos outros desafios da contemporaneidade impõem
reflexões calcadas numa perspectiva histórica que, necessariamente,
dever considerar o lugar social, simbólico e de gênero de cada grupo
populacional. Quando se levam em conta as particularidades de cada
comunidade, é possível criar estratégias mais acertadas de mudanças
positivas em direção a uma sociedade mais justa e igualitária. Pensar
estrategicamente nas diferenças, pondo em xeque mitos como a
meritocracia, é uma luta que deve ser assumida por toda a socieda-
de e por diferentes áreas do conhecimento, o que inclui a literatura
brasileira. Como defende a crítica literária feminista, escrever é um
ato de resistência e resiliência no campo das representações e das
representatividades de produção do simbólico no corpo social. To-
davia, ao analisarmos a história da literatura através da perspectiva
de gênero, percebemos que muitas produções escritas por mulheres
foram apagadas, juntamente com elas. Essa invisibilização dos textos
escritos por mulheres, e, por extensão, suas pautas e agendas, como
também seus modos de ser, sentir e desejar, foi manipulada por uma
pretensa epistemologia patriarcal abrigada pelo cânone.
Escrever e ler literatura é uma maneira de estar no mundo, por-
quanto desperta em cada um de nós as nossas vivências e os nossos
pertencimentos. É também a ponte para conhecer e dividir com o
outro as diversas formas de constituir-se como sujeito. Nas palavras
de Mia Couto, a literatura fabrica encontros e confluências porque
é uma travessia, um barco que nos leva ao encontro com o outro,
uma partilha de afetos e vivências, um momento em que se fala e
se ouve (informação verbal).1

1 Palestra proferida pelo autor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IZtc11Bn0M0. Acesso
em: 2 set. 2021.

Sumário
137

Na literatura não há fronteiras ou impedimentos, não há uma


verdade ou um ponto final. Com ela podemos revisitar nossos so-
nhos, nossas histórias, nossas memórias e fazer ecoar nossos gritos
de luta pelo direito de existir em nossas diversidades. Mais ainda,
a ficção é um veículo cultural de enfrentamento à nossa insidiosa
capacidade de não ver o outro ou mesmo de criar estereótipos e
categorias sobre ele: à medida que vamos deixando de olhar, escu-
tar e abrigar a diferença, tornamo-nos qualquer coisa que separa e
dissipa os sujeitos hierarquicamente.
Pelo exposto, a literatura nos possibilita não só refutar e re-
pensar o mundo como também propor mundos outros, pois narrar
uma história, como afirma a escritora negra e moçambicana Paulina
Chiziane, “significa levar as mentes no voo da imaginação e trazê-las
de volta ao mundo da reflexão” (Chiziane, 2008, p.12). A potência
ficcional das histórias engloba, necessariamente, expressões políticas,
históricas, éticas e econômicas cujas marcas constituem o projeto
intelectual de cada autor(a) em face de um mundo que habita, mas
que, muitas vezes, não lhe pertence, por não abrigar positivamente
suas singularidades e diferenças. A literatura é, certamente, nossa
ponte para a rebeldia contra as opressões que nos querem a todos
e todas em estado de obediência a um “sistema mundo” cujo pen-
samento homogêneo e hegemônico se encerra em si mesmo, um
pensamento enraizado na naturalização de sujeições e hierarquias
entre as pessoas.
Nara Araújo, Sueli Carneiro, Lélia Gonzalez, Djamila Ribeiro,
entre muitas outras feministas, vêm, incisivamente, lutando contra esse
tipo de pensamento na tentativa de descentrar a visão brancocêntrica
e, por conseguinte, o lugar de privilégio que deixa de fora do debate
político e da própria história da humanidade muitas mulheres. As
autoras identificam sociedades multirracionais e pluriculturais com
marcas e reivindicações específicas decorrentes do fato de se ignorarem
as situações econômicas, sociais e políticas singulares ali produzidas.

Sumário
138

Nas palavras de Sueli Carneiro (2003, p. 119), dependendo do lugar


e da condição em que estão inseridos, tais sujeitos assumem “diversos
olhares que desencadeiam processos particulares subjacentes na luta
de cada grupo”. Isso ocorre, por exemplo, entre as mulheres pobres,
negras, indígenas e imigrantes que estão na base da pirâmide social.
Esses grupos de mulheres “possuem demandas específicas que, essen-
cialmente, não podem ser tratadas [apenas] sob a rubrica da questão
de gênero se ela não levar em conta as especificidades que definem
o ser mulher” nos diferentes casos (p. 119). Essa postura crítica e
ética apontada por Carneiro revela uma mulher negra que traz uma
resistência inata e cujos olhos estão fixos na história brasileira sem as
intenções de criar uma tradição literária feminina “da margem” em
oposição a uma eurocêntrica. Ao considerar o lócus de onde emergem
essas vozes negras, a escritora busca marcar singularidades, construir
visibilidades e combater a homogeneização compulsória que por muito
tempo criou a ilusão de que as mulheres eram sujeitos universais, uma
categoria tipificada e generalizada.
Se é certo que existir na literatura (e aqui pensamos na represen-
tatividade da autoria negra) é, efetivamente, uma forma de existir no
mundo e de impulsionar a multiplicidade de vozes, podemos afirmar
que a ficção é o lugar das possibilidades, o lugar das escrevivências,
como diz a escritora Conceição Evaristo. Em nossas pesquisas, bus-
camos esta pauta. Voltadas para a escrita dessa autora, desejamos
identificar as imagens cotidianas transvestidas no processo criativo
de uma literatura que é linguagem e corpo: corpo que carrega lin-
guagem, linguagem marcada pelo corpo.
Escrevemos com o corpo e por intermédio dele. Portanto, a cate-
goria corpo definitivamente não pode ser vista como algo elementar.
Ana Maria Gonçalves, uma das mais renomadas escritoras brasileiras,
autora do livro Um defeito de cor, diz que sua escrita é tecida à base
de duas identidades complementares: mulher e negra. Em uma
entrevista sobre autoria e literatura, a autora declara:

Sumário
139

É a partir desses dois lugares que experimento o mundo,


e é também neles que busco as histórias que me interes-
sa contar, esperando que não sejam lugares limitadores,
mas de inclusão e colaboração com o projeto de narrativa
da experiência humana. (Gonçalves, 2017).

A fala de Ana Maria Gonçalves nos faz entender que, em seu pro-
jeto literário, suas personagens não representam, não são simulacros
das pessoas brancas; elas efetivamente são, ou seja, compõem-se de
sua própria essência, narrando de dentro, expondo suas experiências,
tornando-se protagonistas das histórias narradas.
Nessa mesma perspectiva de busca por autorrepresentação e re-
presentatividade, Conceição Evaristo acredita que as escritoras negras

criam uma literatura em que o corpo-mulher-negra


deixa de ser o corpo do outro como objeto a ser
descrito para se impor como sujeito-mulher-negra que
se descreve, a partir de uma subjetividade própria [e]
experimentada. (Evaristo, 2014, p. 54).

Desse modo, pode-se dizer que o fazer literário das mulheres


negras, além de possuir um sentido estético, busca semantizar um
movimento que abriga todas as lutas dessas mulheres. Portanto, a
escrita se torna um direito, assim como se torna o lugar da própria
vida (Evaristo, 2014, p. 54).
Se a literatura é, como diz Conceição Evaristo, o lugar da vida,
sempre insistiremos na ideia de que, se queremos um mundo mais
equânime, é preciso encher nossas vidas, nossos debates, nossas
escolas, nossas universidades, de literatura. Não aquela canônica
e excludente, que carrega nomes de homens brancos, héteros e de
classe dominante, mas aquela cuja potência busca efetivamente nos
tornar iguais em nossas diferenças. Por isso nós, mulheres brancas,
precisamos ler histórias de mulheres negras. É um ato político de
enfrentamento do racismo estrutural e da dominação masculina que

Sumário
140

permeia nossa sociedade. De certa forma, é também uma maneira


de reconhecer nossos privilégios como brancas e de admitir o quanto
ainda temos a aprender acerca da categoria mulheres e sobre a autoria
feminina na literatura.
Cristiane Sobral, autora de Só por hoje vou deixar meus cabelos
em paz (2014), ao ser indagada a respeito da relação entre o corpo
negro e a literatura, afirma:

Para pensar sobre o corpo negro, é preciso se lembrar dos


corpos não negros. De que corpo negro estamos falando?
O corpo negro surge como uma criação do coloniza-
dor, é um corpo desumano, desprovido de alma. Ora, o cor-
po é uma manifestação da consciência, não existe fora das re-
lações com outros corpos. Um corpo se cria a partir da
construção do outro, do que significa para o outro. A cultura
patrimonial brasileira decreta que negros não têm a pos-
se dos seus corpos, podem ser violentados, explorados,
subalternizados. As relações sociais e a visão que o homem
e a mulher negra têm de si mesmos nascem contaminadas
por essa genética social. (Sobral, 2017).

Na contramão dessa cultura de exploração e subalternização


dos corpos negros, as mulheres negras têm insistido em lutas pela
democratização do espaço e pelo direito à escrita, porque, através dela,
é possível se valorar. Os versos da poetisa baiana Urânia Munzanzu
ilustram esse enfrentamento por intermédio da literatura:

Não quero flores, quero um Baobá!


Pois quero um homem que deseje meu corpo de abun-
dantes curvas.
Meu cabelo que cresce para o alto,
minhas ancas largas para guardar filhos e meu cheiro forte
de mulher preta.

Sumário
141

Não quero flores, quero um Baobá!


Porque a minha boca carnuda, para o meu amor, deverá
ser objeto de desejo e deleite.
Não quero flores, quero um Baobá! Porque quero que o
meu homem entenda o meu jeito de fazer as coisas como
“os modos de uma rainha caprichosa”, livre do pensamento
plantado em nós pelo colonizador.
Não quero flores, quero um Baobá! (Munzanzu, 2011).

Cientes da nossa condição de mulheres brancas e da bran-


quitude que muitas vezes atravessou nossas ações, buscamos,
conscientemente, desempenhar sororidades que possam, de alguma
maneira, despertar em nós professores e professoras, pais e mães,
legisladores e legisladoras, entre outros, o papel fundamental da
literatura e do ensino na construção do entendimento de que o
racismo e o patriarcado não são fatos a serem tratados isolada-
mente; são uma realidade intrínseca, desde sempre, à sociedade
brasileira e devem ser lidos em sua dimensão coletiva. A escola e a
universidade são, certamente, instituições sociais responsáveis pela
ampliação dessa consciência. Entre os seus desafios, está a criação
de representações positivas das mulheres negras e uma educação
capaz de promover uma formação cidadã, que inclua o respeito à
diversidade e o combate ao racismo e à misoginia.
Na literatura brasileira contemporânea, essas questões, ainda
que timidamente, têm ganhado voz audível, como se nota nas es-
crituras de Cidinha da Silva, Maria Carolina de Jesus, Mel Duarte,
Ryane Leão, Mel Adún, Ana Maria Gonçalves, Cristiane Sobral, Jarid
Arraes, Conceição Evaristo e muitas outras escritoras negras. Vozes
individuais e coletivas têm buscado na literatura um lugar potente
de representação e representatividade da vida de mulheres negras,
como se vê nos versos escritos por Mel Adún:

Sumário
142

Não vou mais lavar os pratos,


Agradeço a Sobral.
Vou ser agora meu bem, viu, meu mal?
Cansei de ser você: de sonhar seus chatos sonhos
Cansei de me emperiquitar
Para encontros enfadonhos.
Agora serei meu bem,
Vou reaprender a deitar
E a sonhar sonhos meus
Com minhas cores prediletas.
Sem pensar em sentar de pernas cruzadas
Sem ligar pra depilar
Não quero baile de debutantes,
Tampouco ter filhos ou casar.
Agora vou ser meu bem, viu, meu mal?
Vou ser pós-moderna, pelo tempo que quiser
Brilhar como Yaa Asantewaa
Vou voltar a ser mulher.
Quando um dia acordar
E lavar os pratos por vontade
E me emperiquitar por vaidade.
Casar porque me apaixonei
E parir porque eu quis,
Serei para todo o sempre meu bem
Viu, meu mal?
(Adún, 2008, p. 90).

Nestes versos ecoa a voz de uma mulher negra que enfrenta


vicissitudes, feridas, ausências e dores, mas também ecoam sonhos,
liberdade, (re)invenções, mudanças e positividades. É justamente a
partir desse olhar que passaremos a discutir o conto “Olhos d´água”,
de Conceição Evaristo.

Sumário
143

Conceição Evaristo: algumas considerações

Maria Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, 1946. Cria-


da nas margens da cidade, a mineira sempre se questionou sobre as
mazelas sociais em que estava inserida. É filha de uma mãe solteira,
negra e moradora da periferia. Ao término do curso normal, mudou-
-se para o Rio de Janeiro, onde foi aprovada em concurso municipal
para magistério, e depois ingressou no curso de Letras da universi-
dade federal daquele estado. No ano de 1996, concluiu o mestrado
pela PUCRio e, em 2011, o doutorado em Literatura Comparada
pela Universidade Federal Fluminense. Autora de poemas, contos
e romances, a escritora é também pesquisadora acadêmica, e sua
produção tem como temática principal as vivências e os desejos das
mulheres negras. Encorajada por sua professora Maria José Somelarte
Barbosa, a própria Conceição investiu na publicação do primeiro
livro, Ponciá Vicêncio, que traz estéticas e questões urgentes para
as discussões antirracista e feminista. A obra tem como base as me-
mórias e desencantos da subjetividade e da cultura afro-brasileira.
Em um contexto pós-colonial e escravocrata, Conceição se
destaca como figura emblemática para a representação da luta de
seus ancestrais e para o enfrentamento de uma árdua batalha contra
o frequente negligenciamento dos corpos negros. Como professora,
romancista, poeta e pesquisadora na área de literatura comparada,
constrói com a sua literatura uma nova perspectiva acerca de pautas
que sempre foram e serão necessárias num contexto em que estes
corpos continuam sendo invisibilizados.
Conceição era filha e sobrinha de duas fortes mulheres que
enfrentaram uma dura vida como lavadeiras, além de cuidar dos
filhos e da própria casa. Era irmã de outras três Marias, Maria Inês
Evaristo, Maria de Lourdes Evaristo e Maria Angélica Evaristo.
Quando menina, trocava horas em afazeres domésticos por aulas

Sumário
144

particulares e livros para ela e os irmãos. Baseada nessa história de


lutas é que ela tece sua narrativa.
No campo da literatura nacional, é crucial evidenciar e con-
templar escritoras representativas e potentes como Conceição, cujo
projeto intelectual ético, estético e político desvela vozes insurgentes
que fazem ecoar histórias e memórias silenciadas durante séculos.
Por meio dessas vozes nos damos conta do quanto nossa cultura,
formada por colonizadores brancos, banalizou a história das mulhe-
res negras, apagando e neutralizando dados oriundos de um sistema
estrutural que continuamente mata e oprime os corpos negros, como
bem exemplifica Sueli Carneiro (2011, p. 57):

A desigualdade racial no Brasil é tão intensa que, se o


Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país le-
vasse em conta apenas os dados da população branca, o
país ocuparia a 48ª posição, a mesma da Costa Rica, no
ranking de 174 países elaborado pela Organização das
Nações Unidas (ONU). Isso significa que, se os bran-
cos e negros tivessem a mesma condição de vida, o país
subiria 26 degraus na lista da ONU. Em contrapartida,
analisando-se apenas informações sobre renda, educação
e esperança de vida ao nascer dos negros e mestiços, o
IDH nacional despencaria para a 108ª posição, igualando
o Brasil à Argélia no relatório anual da ONU [...] raça
[negra] e pobreza são sinônimos no Brasil.

A escrita de Conceição explora temas que abrangem, de uma


forma ou de outra, as experiências de vida da população negra e, em
especial, das mulheres negras. Conscientes de nosso lugar social-
mente privilegiado como mulheres brancas e da complexidade das
questões descritas, propomos analisar a intersecção de gênero, raça
e classe no conto “Olhos d’água”, de Conceição Evaristo, e salien-
tar uma literatura nacional capaz de representar as mazelas que a
população negra enfrentou e continua a enfrentar. Inserida em um
livro homônimo que reúne quinze contos, a narrativa tem apenas

Sumário
145

cinco páginas, e a leitura consome cerca de trinta minutos, contudo


as inquietações provocadas pelas sensíveis palavras de Conceição
duram uma eternidade.
As personagens femininas negras criadas pela autora caracte-
rizam-se pela invisibilidade de suas identidades e histórias. Assim
como as mulheres negras apontadas na introdução deste capítulo,
Conceição Evaristo produz uma literatura combativa em face do
apagamento das memórias dos corpos negros no território brasileiro.
Além do resgate mnemônico, sua escrita confere a participação do
sujeito na constituição de sua própria narrativa. É o que a autora
denomina de escrevivências.
Na contramão de estereótipos negativos gerados no imaginário
simbólico de diversas produções culturais da branquitude, a literatura
de autoria feminina negra fundamenta-se em construtos identitários
outros e subverte arquétipos e estereótipos, como os da exploração
sexual e da subserviência aos brancos. Ao reivindicar voz na narrativa
literária, Conceição explora e constrói modelos positivos de identi-
dades de mulheres negras na literatura, sem, contudo, silenciar as
experiências históricas de dominação e exploração de vidas negras.

O conto “Olhos d’água”

No conto em análise, Conceição Evaristo descreve de maneira


singular e arrebatadora os sofrimentos enfrentados por uma mãe de
sete filhos para cuidar de sua família. Narrado por uma das filhas da
personagem, o conto perpassa as memórias da infância da menina e
da própria mãe. Por trás da repetida pergunta “qual a cor dos olhos
de minha mãe?” (Evaristo, 2014, p. 11), a narrativa desenvolve te-
mas ligados à desigualdade social e ao racismo, processo resultante
de um país colonizado, com mais de trezentos anos de escravidão.
As consequências desse cenário podem ser vistas na violência insti-
tucionalizada sofrida pela população negra de geração em geração,
como se vê no conto:

Sumário
146

Eu me lembrava também de algumas histórias da infância


de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no
interior de Minas. […] Às vezes as histórias da infância
de minha mãe se confundiam com as de minha própria
infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando minha
mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como
se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de
alimento. (p. 11).

Repetindo diversas vezes ao longo do texto a pergunta “De que


cor eram os olhos de minha mãe?”, a narradora nos inquieta pelo fato
de não se lembrar de um aspecto aparentemente visível e simples
do corpo de sua mãe: os olhos. É como se ela tivesse deixado de
vislumbrá-los, mas, à medida que avançamos no conto, descobrimos
que, nos olhos maternos, continuamente, só havia lágrimas, e por
essa razão não eram vistos claramente pela filha. Os olhos cheios de
água da figura materna se justificam pelas constantes lutas da mãe
para nutrir seus filhos e protegê-los da escassez, da fome, das dores
e da ausência de dignidade de seus corpos que não importam para
uma sociedade racista e patriarcal.
Achille Mbembe, descrevendo as práticas da soberania em seu
texto sobre necropolítica, define a morte dos “corpos sem importância”
como uma forma de escape usada pelo Estado para negligenciar e
ignorar suas falhas. Ou seja, no lugar de investir em políticas públicas
que humanizem esses corpos, de pessoas majoritariamente pretas,
em especial, mulheres ou membros da comunidade LGBTQIA+,
migrantes ou imigrantes, é mais rentável para o Estado naturalizar
e banalizar suas mortes:

A expressão máxima da soberania reside, em grande medi-


da, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e
quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver consti-
tuem os limites da soberania, seus atributos fundamentais.
Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade
e definir a vida como a implantação e manifestação de
poder. (Mbembe, 2018, p. 123).
Sumário
147

Aproximando as palavras de Mbembe à prática da política brasi-


leira, escolhemos uma das falas do atual vice-líder político, Hamilton
Mourão, acerca do tema. Em entrevista concedida à revista Veja, o
político afirmou que no Brasil não há racismo. São discursos levianos
como esse, advindos de figuras públicas de relevância social e política,
que endossam a violência estatal contra essas vidas no país (Rangel,
2020). O Brasil é um país estruturalmente racista que disfarça seus
preconceitos em discursos como o da miscigenação e “aceitação” de
diversos povos em suas terras. A esse respeito, destacamos uma fala
emblemática observada por Lélia Gonzales (1984, p. 226):

Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de


americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é
brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem
tratado, tem o mesmo direito que a gente tem. Tanto é
que, quando se esforça, ele sobe na vida como qualquer
um. Conheço um que é médico; educadíssimo, culto,
elegante e com umas feições tão finas... Nem parece
preto. [...] Por aí se vê que o barato é domesticar mesmo.
E se a gente detém o olhar em determinados aspectos
da chamada cultura brasileira, a gente saca que em suas
manifestações mais ou menos conscientes ela oculta,
revelando, as marcas da africanidade que a constituem.
(Como é que pode?) Seguindo por aí, a gente também
pode apontar pro lugar da mulher negra nesse processo
de formação cultural, assim como [para] os diferentes
modos de rejeição/integração de seu papel.

Comentando as práticas institucionais, históricas, culturais e


interpessoais que instituem o racismo no país, Michel Wieviorka
chama a atenção para as diversas performances forjadas socialmente
nesse campo:

O racismo institucional aparece como um conjunto de


mecanismos não percebido socialmente e que permite
manter os negros em situação de inferioridade, sem que

Sumário
148

seja necessário que os preconceitos racistas se expres-


sem, sem que seja necessária uma política racista para
fundamentar a exclusão ou a discriminação. O sistema
nessa perspectiva funciona sem autores, por si próprio.
(Wieviorka, 2006, p. 168).

É como forma de enfrentamento a esse imaginário simbólico que


apaga a história dos sujeitos negros, sobretudo das mulheres negras,
que a literatura de Conceição Evaristo evidencia caminhos inovadores
para banir práticas de invisibilidades e apagamentos. Como dito, em
“Olhos d’água”, a história é narrada por uma das filhas da personagem
negra, e nenhuma das personagens do enredo é nomeada. A ausência
de nomeações talvez se dê pelo excesso de vidas que ali se fazem
presentes. “Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confun-
diam-se com as de minha própria infância” (Evaristo, 2014, p. 16).
A jovem personagem exprime seus anseios e os momentos sensíveis
de sua trajetória desde a infância passada ao lado da mãe, retratando
a história de uma mulher negra, moradora da periferia, mãe de sete
filhos e sua árdua luta em busca de sobrevivência. Após seus constantes
questionamentos, surge, impulsionada por um sonho qualquer, uma
dolorosa reflexão: de que cor seriam os olhos de sua mãe?
A escritora retoma os anseios de uma história que foi embran-
quecida e apagada, uma história reescrita pela elite burguesa que
domina e controla o país por meio de projetos políticos veemente-
mente determinados a invalidar e desacreditar a única solução de
emancipação de um território periférico: a educação.
Filha mais velha, a narradora trabalhou desde cedo por ver as
dificuldades passadas por sua família e, apesar de grande proximidade
com a mãe e do carinho materno recebido durante sua breve adoles-
cência, ela não conseguia recordar qual era a cor dos olhos de sua mãe:

Sempre ao lado de minha mãe, aprendi a conhecê-la.


Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como
também sabia reconhecer, em seus gestos, prenúncios

Sumário
149

de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me


descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor
seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho,
pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo
dela. (Evaristo, 2014, p. 16).

A filha se pergunta por cerca de dez vezes qual era a cor dos
olhos de sua mãe. Ela se lembrava de muitas coisas, como de uma
unha encravada no dedinho do pé esquerdo da mãe e de uma ver-
ruga que se perdia em seus cabelos, mas não se recordava da cor
dos olhos maternos:

Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de


fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos
protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de
prantos balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o
nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se
o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva...
Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa
balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha
mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia,
chorava! Chorava, chovia! Então, por que eu não conseguia
lembrar a cor dos olhos dela? (p.17-18).

No desenrolar das lembranças, a menina-moça traz detalhes do


carinho e da cautela da mãe para com os filhos. Em toda a narrativa,
deparamo-nos com as dificuldades que a pobreza e a fome causavam
à sua família, mas aquele olhar que tanto a intrigava era o reflexo de
todo o amor e dor unificados.

Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava,


da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse,
ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As
labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia
de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago,
ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brinca-
vam a salivar sonho de comida. E era justamente nesses

Sumário
150

dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava


com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida
era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. [...]
Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos,
sorríamos. A mãe só ria de uma maneira triste e com um
sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha
mãe? Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava
esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa
fome se distraía. (p.16-17).

A luta cotidiana daquela mulher negra e pobre representa a


luta de muitas mulheres negras no Brasil, como defende Gonzales:

Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da


periferia, nas baixadas da vida, que sofre mais tragicamente
os efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente
porque é ela que sobrevive na base da prestação de ser-
viços, segurando a barra familiar praticamente sozinha.
Isto porque seu homem, seus irmãos ou seus filhos são
objeto de perseguição policial sistemática (esquadrões da
morte, “mãos brancas estão aí matando negros à vontade;
observe-se que são negros jovens, com menos de trinta
anos. Por outro lado, que se veja quem é a maioria da po-
pulação carcerária deste país”). (Gonzales, 1984, p. 231).

Ligado a uma cultura de esquecimento, o Brasil vivencia um


processo de apagamento da escravidão, mesmo tendo sido o último
país do Ocidente a aboli-la, há menos de 140 anos. Sueli Carneiro
apresenta as formas como o racismo se estrutura e perpetua no país,
enfatizando a ausência de políticas públicas capazes de mobilizar um
reparo histórico em prol da população negra e fomentando reflexões
acerca da disparidade social e racial:

Qual foi a taxa de redução da evasão escolar de crianças


e adolescentes negros? Que taxa de ampliação alcança-
mos na presença negra no nível superior? Qual a taxa de

Sumário
151

aproximação da esperança de vida de brancos e negros?


Que campanhas de valorização da população negra e
de combate ao racismo desencadeamos nos veículos de
comunicação? Que incentivos o governo brasileiro propôs
às empresas para impulsionar a contratação e a promoção
profissional de afrodescendentes? Quantas comunidades
remanescentes de quilombos terão os títulos de proprie-
dade de suas terras ancestrais regulamentados? (Carneiro,
2011, p. 52).

Voltando ao conto, podemos dizer que a cor dos olhos da mãe


da narradora era a angústia que a acompanhava diariamente em
uma vida de fome, de pobreza e crueldade imposta por um sistema
genocida. Era a cor dos acontecimentos tristes lembrados pela filha
durante o conto, a cor do desespero. Eram maresias de fome que
cercavam mãe e filhas durante seus dias.

Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar


cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás de-
veria ser a descoberta da cor dos olhos de minha mãe. E
quando, após longos dias de viagem para chegar à minha
terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe,
sabem o que vi? Sabem o que vi? Vi só lágrimas e lágrimas.
Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas,
que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios
caudalosos sobre a face. E só então compreendi. Minha
mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por
isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos
olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de
Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos
para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim,
águas de Mamãe Oxum. Abracei a mãe, encostei meu
rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se
misturarem às minhas. (p. 18-19).

Sumário
152

Além de denunciar as incoerências históricas e sociais em que


estamos inseridos, Conceição focaliza a unificação de uma nação que
vive a dor de sua ancestralidade. Para falar dessas questões e relatar
o sentimento de seu povo, a autora cunha o termo escrevivência. O
termo tem a carga semântica de vidas que são passadas aos papéis
através da escrita. A escritora usa da literatura ficcional como um
espaço de denúncia política, social e histórica dentro do qual ela
pode relatar as mazelas sociais que os corpos dissidentes enfrentam
no país historicamente. É escrevendo que Conceição transpassa aos
papéis suas vivências e memórias, e as dores que ecoam em seu peito,
resultantes de um sistema que perpetua a cultura racista e misógina.
Essas escrevivências de Conceição Evaristo vão ao encontro das
críticas propostas pelo feminismo negro, cuja visão aponta para o
modo como os sujeitos e suas categorias precisam ser pensados, ou
seja, de forma interseccional, como sugere a feminista María Lugones:

Esses marcos analíticos enfatizam o conceito de inter-


seccionalidade e demonstram a exclusão histórica e teó-
rico-prática de mulheres não brancas nas lutas libertá-
rias travadas em nome da mulher. [...] Acredito que esse
entendimento de gênero é pressuposto nos dois marcos
de análise de maneira geral, mas ele não se expressa de
maneira explícita – ou não o faz na direção que considero
necessária para revelar o alcance e as consequências de
certa cumplicidade com ele, dois dados que motivam
esta investigação. Caracterizar esse sistema de gênero
como colonial/moderno, tanto de maneira geral, como
em sua concretude específica e vivida, nos permitirá ver
a imposição colonial em sua real profundidade; nos per-
mitirá estender e aprofundar historicamente seu alcance
destrutivo. Minha tentativa é a de fazer visível a instru-
mentalidade do sistema de gênero colonial/moderno na
nossa subjugação – tanto dos homens como das mulheres
de cor – em todos os âmbitos da vida. (Lugones, [2010?]).

Sumário
153

O feminismo negro nos ensina que precisamos reconhecer e não


esquecer os erros passados e construir uma luta capaz de amparar
todos os corpos, por isso mesmo é tão importante debater a história,
o percurso e as prioridades vivenciadas por esse movimento até os
tempos atuais. Segundo Núbia Moreira (2011), o feminismo negro
começou a ganhar força no Brasil em 1980, a partir do III Encontro
Feminista Latino-Americano, em Bertioga, SP. Os encontros esta-
duais e nacionais de mulheres negras vinham sendo utilizados por
volta desse período para desmistificar a figura da mulher e definir
seus direitos. Antes de se estabelecer esse movimento, as mulheres
negras demonstravam resistência em se intitular como feministas.
Foi por meio da literatura que elas começaram a denunciar as
incoerências com seus corpos: por exemplo, vivemos em um país que
parabeniza a princesa Isabel pela Lei Áurea, mas ignora a população
negra em massa em situação de rua nos centros urbanos das capitais.
Um país que comemora o dia 13 de maio, mas fecha os olhos para
o número de mortes da população negra em massa na maior crise
sanitária do país: a crise do Covid 19 (Pechim, 2020). A esse respeito,
Dijamila Ribeiro afirma:

Em obras sobre feminismo no Brasil é muito comum


não encontrarmos nada falando sobre feminismo negro.
Isso é sintomático. Para quem é esse feminismo então?
É necessário entender de uma vez por todas que existem
várias mulheres contidas nesse ser mulher e romper com
a tentação da universalidade, que só exclui. Há grandes
estudiosas e pensadoras brasileiras ou estrangeiras já pu-
blicadas por aqui, como Sueli Carneiro, Jurema Werneck,
Núbia Moreira, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luiza
Bairros Cristiano Rodrigues, Audre Lorde, Patricia Hill
Collins e bell hooks, que produziram e produzem grandes
obras e reflexões. Nunca é tarde para começar a lê-las.
(Ribeiro, 2018, p. 53).

Sumário
154

A voz-mulher de Conceição Evaristo povoa sua literatura de uma


vivência que pulsa em sua pele-alma, retratando as consequências de
ser, existir e estar no Brasil. Suas obras fazem parte de uma literatura
que preenche lacunas históricas e que é composta por dores e por
horrores. A citação a seguir, transcrita por Djamila Ribeiro de uma
obra de bell hooks, também é emblemática dessa literatura.

É essencial para o prosseguimento da luta feminista que


as mulheres negras reconheçam a vantagem especial
que nossa perspectiva de marginalidade nos dá e façam
uso dessa perspectiva para criticar a dominação racista,
classista e sexista, para refutá-la e criar uma contra-
-hegemonia. Estou sugerindo que temos um papel central
a desempenhar na realização da teoria feminista e uma
contribuição a oferecer que é única e valiosa. (hooks,
2000 apud Ribeiro, 2018, p. 122).

Com essa citação, compreendemos que, sobretudo a partir da


perspectiva de mulheres negras é que iremos revisitar a história e
nos opor a quem sistematiza e sustenta essa cultura estruturalmen-
te preconceituosa e misógina. Depois de ler e reler as palavras de
Conceição em “Olhos d’água” e de debruçar sobre sua poesia e seus
contos, confessamos: é difícil lembrar a cor dos olhos de quem vive
tanta violência.

Sumário
155

Referências

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www.scielo.br/j/elbc/a/9CmTDyRZVqp3VhJ6YqGjDby/?lang=pt&f
ormat=pdf. Acesso em: 2 set. 2021.
Sumário
156

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LUGONES, María. Colonialidade e gênero. [2010?]. Disponível


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RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo:


Companhia das Letras, 2018.

Sumário
157

SOBRAL, Cristiane. Quem não se afirma não existe. [Entrevista


cedida a] Graziele Frederico, Lúcia Tormin Mollo e Paula Queiroz
Dutra. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília,
n. 51, sem paginação, ago. 2017. Disponível em: www.scielo.br/j/
elbc/a/7qKSfnvMPJqRrTPK73mpRhK/?lang=ptCO. Acesso em: 2
jul. 2021.

WIEVIORKA, Michel. Em que mundo viveremos? São Paulo:


Perspectiva, 2006.

Sumário
LUGARES OUTROS DA CRÍTICA E DA FICÇÃO:
A INSCRIÇÃO PRÓPRIA NOS SABERES
COMO RESISTÊNCIA E (RE)EXISTÊNCIA

Marta Francisco de Oliveira


Edgar Cézar Nolasco dos Santos

Algumas considerações iniciais

Quanto à crítica, penso que é uma das formas modernas


da autobiografia. A pessoa escreve sua vida quando pen-
sa estar escrevendo suas leituras. Não é o contrário do
Quixote? O crítico é aquele que reconstrói sua vida no
interior dos textos que lê.
Ricardo Piglia

Pensar na crítica biográfica fronteiriça, bem como em todo o


escopo teórico que as tentativas de definição acerca de tal crítica
podem acarretar, implica inscrever-se no âmbito de uma pesquisa
e duelar – e ser constantemente vencida(o) – pela necessidade im-
posta de “reconstrução da própria vida no interior dos textos lidos”
ou pesquisados. No caso da pesquisa em estudos de linguagens e
em estudos literários, a forma de investigação acadêmica e de com-
preensão crítica da produção cultural, artística, nacional e regional
exige a inscrição do pesquisador entre aqueles que, talvez na esfera
internacional, partem dos estudos de(s)coloniais e repensam as
noções de produção de conhecimento ancorados na desobediência
159

epistêmica (Mignolo, 2014); entre aqueles possivelmente ainda


alicerçados na necessidade de avaliar as possibilidades de reversão/
inversão/transversão da dívida e da influência de conhecimentos,
vivências e experiências impostas, já que não negamos essa influência
(Santiago, 2019). Ela está presente na apropriação de discursos e/ou
em suas reversões e transversões – para o bem e para o mal, segundo
uma postura intelectual que não se furta a seu tempo e seu lugar,
seu território simbólico.
Conversar com a citação de Ricardo Piglia, exposta na epígrafe,
coloca em perspectiva a insistência teórica em problematizar algumas
questões importantes que se apresentam na atualidade, quer nas
academias, quer no ensino das disciplinas das humanidades. Temos
esse despertamento em especial quando se repensam o papel e a
relevância – colocados em xeque por algumas posturas – do ensino
das artes, da literatura e de outras linguagens e formas de narrativas
da realidade, quer ficcionalizadas, quer rememoradas, reconstruídas
ou apresentadas sob outros ângulos e pontos de vista. Se, para o es-
critor e crítico argentino Ricardo Piglia (2006), a crítica é uma forma
moderna de autobiografia, a reflexão sobre leituras pessoais, próprias
(ideia também proposta por outros(as) pesquisadores(as) na América
Latina), é igualmente um exercício de reconstrução de vida – e de
resistência e (re)existência – nos âmbitos estético, político e ético.
Com base em Mignolo (2014), Palermo (2008) e Santiago (2019),
nosso escopo teórico parte dos estudos de(s)coloniais como forma
de repensar as noções de produção de conhecimento local focados
na desobediência epistêmica e na reversão/inversão/transversão da
dívida e da influência cultural.
Embora, na epígrafe acima, o argentino esteja se referindo à
crítica da ficção, pensamos que o mesmo princípio pode ser aplicado
à pesquisa, pois o pesquisador, através de suas leituras, constrói uma
memória, uma representação de si, de sua percepção de mundo, com
base em fatos e acontecimentos passados e atuais, como sua história

Sumário
160

pessoal de vivências, experiências e leituras. Segundo este raciocínio,


ele imprime a si mesmo naquilo que lê, estuda e comenta, recons-
truindo simbolicamente seu eu, seu bios, sua vida, isto é, sua história
e suas possibilidades e representações, no interior dos textos lidos.
O lugar de nossa reflexão é constituído pela referência geo-
-histórica, biográfica, cultural e territorial: Mato Grosso do Sul,
espaço de fronteira com outros países latinos, portanto um espaço
com suas significações simbólicas e sua inserção no campo do saber
latino-americano. Além disso, agregamos nesta pesquisa o traço da
contemporaneidade mais imediata que exige teorização e propostas
de abordagem, pois os deslocamentos humanos resultantes de exílios
e migrações em massa possibilitam a produção estética de textos
também migrantes. Textos produzidos em territórios (suportes) varia-
dos, extrapolando a folha de papel ou a tela de leitura e convocando
outros sentidos e corporeidades – corporalidades. Essa literatura em
deslocamento mimetiza a construção do saber: nômade, inquieta,
incerta, mutante.
Diante disso, pensar sobre a inscrição própria implica pensar
em uma política da crítica biográfica fronteiriça que nos conduz a
indagar se e como podemos fazer uma teori(a)zação própria e local,
reconhecendo/afirmando nossa fronteira sul. Já adiantamos que, de
nosso ponto de vista, não está em discussão o se, embora possamos
encontrar opiniões contrárias entre intelectuais centrados no pensa-
mento do norte global, quer europeu, quer norte-americano. Dando
uma resposta à la Walter Mignolo, sim, podemos fazer teori(a)zação
da fronteira sul.
O começo da problematização que atende ao desenvolvimento da
resposta passa por uma teorização que dialoga com a citação a seguir:

Por isso não queremos nunca mais viver em localidades


reservadas a uma estrita minoria, não queremos nunca
mais ser os empregados de uma filial do pensamento, não
queremos nunca mais que nossas corporalidades estejam
a serviço da disciplina ou da interdisciplina que de alguma

Sumário
161

maneira nos classifica e, em geral, nos patologiza ou nos


inferioriza. Necessitamos, como se sabe desde o primeiro
momento em que se teve contato com a colonialidade,
de uma política descolonial, uma ética descolonial, uma
educação descolonial não dividida em compartimentos
estanques como a modernidade/colonialidade organizou
o mundo, mas sim em um mesmo movimento coletivo.
(Giuliano, 2018, p. 56).

A base de teorização, portanto, contempla, primeiro, “um aprender


a desaprender para (re)aprender” de outra maneira, conforme Mignolo
afirma que a filosofia ameríndia nos ensinou. Neste contexto, não cabe
mais uma restrição de pensamento ou de lugar de construção epis-
têmica, não cabe a hierarquização. Em segundo lugar, ela contempla
o aprender a “teorizar para desteorizar para, assim, (re)teorizar” em
outra base de pensamento. Se esta é a fórmula e o aprendizado mais
complexo para o intelectual (ou teorizador, ou fazedor à la Borges)
da fronteira sul, é também o aprendizado mais necessário, impon-
do-se mesmo como a única condição para se pensar e escrever uma
reflexão “desteórica” da fronteira, se recorremos ao termo empregado
por Castro-Gomez e Mendieta no livro Teorías sin disciplina (1998).
No princípio da teorização proposta, demarcamos seu lugar, a
fronteira sul, onde devem acontecer os encontros e as conversas: o
lugar das sensibilidades biográficas e locais, dos afetos (e desafetos),
elementos que devem ser defendidos pelo intelectual fronteiriço como
uma luta inscrita em suas reflexões, pensamentos e ações. No lugar
demarcado, todos(as) encontram-se atravessados(as) pelos mesmos
sentires, fazeres e estares, formando uma grande coletividade de
bem comum e bem-viver. Atrelado ao desejo de um pensamento
único desse coletivo, o intelectual fronteiriço defronta-se com a lição
primeira que deve seguir à risca em sua desteorização: faz-se teoria
para viver, não se vive para fazer teorias. Ao escrevê-las, tentamos
escavar formas de um viver melhor para todos(as) da teorização que
se quer desprendida de qualquer razão teórica e qualquer tradição.

Sumário
162

Esboça-se aqui a ideia de um “pensar de viver”, resultado de algo


que o corpo pensa em si mesmo no viver. O pensar de viver se con-
trapõe a uma práxis de pensar, é uma forma outra de viver, podendo
ser entendida como uma forma privada, particular, de filosofar. E não
seria demais lembrar que não se pensa, não se teoriza e não se filosofa
apenas por meio da escritura, embora, obviamente, esta se apresente
como um meio – o meio, por excelência – para esse exercício. Há
um mundo de exterioridades dentro do qual vozes, gentes, línguas e
corpos se intercorporam e se interculturam criando sentires, saberes
e modos de estar sendo que amalgamam um pensamento outro e,
por conseguinte, uma epistemologia fronteiriça sustentada por um
paradigma outro. Assim como há outras formas de viver, há outras
formas de pensar e, por extensão, de teorizar e de filosofar. O bom
pensar, o bom teorizar, não passa, necessariamente, pela ordem da
escritura; talvez passe mais por um “com-viver”, um pensar de viver.
Por meio desse exercício de teorização é que procuramos refletir acerca
de nossa condição pessoal e de nossa inscrição como intelectuais
fronteiriços em contato com esses modos outros de sentir, pensar e
fazer teoria. É nesse exercício que inscrevemos nossos corpos, nossos
bios, nosso território, nossa episteme.

Lugares outros: a inscrição própria como


resistência e (re)existência

A constante reflexão pode se inscrever como proposta viável e


necessária na construção de uma postura intelectual local contempo-
rânea, desde que essa reflexão se dê à luz do pensamento e da crítica
fronteiriça, da exterioridade, da razão subalternizada e de literaturas
migrantes e periféricas. E mais, desde que ela ocorra dentro do próprio
campo conceitual em que se inscreve a ideia de uma epistemologia
do Sul. Nesses moldes, é possível formar um pensar latino-americano
resistente e persistente, sobretudo se houver um movimento inte-
lectual acionado também pelos processos de reiteração e acomo-

Sumário
163

dação da herança teórico-crítica advinda da “geopolítica mundial da


literatura e da cultura com relações e trocas assimétricas e recriação
de hierarquias de vários tipos” (Botelho, 2019, p. 362). Cabe a quem
se posta como intelectual fronteiriço, ao pesquisador, reconhecer as
trocas assimétricas e as relações hierárquicas. Elas não podem ser
negadas, mas também não podem ser aceitas sem a devida problemati-
zação, no exercício do aprender, (des)aprender e (re)aprender. O inte-
lectual fronteiriço deverá tomar uma posição contrária à passividade
da recepção analítica de “textos e contextos”, nos termos de Botelho.
Revertendo-se a assimetria, o pensamento local pode ser instaurado
como uma reação conceptual e crítica. Alocado no território físico e
metafórico de fronteira, ele se torna símbolo de entrecruzamento de
saberes, propiciando formas possíveis, outras, de conexão com teorias
e com novos modos de aproximação epistêmica.
Como resultado, leitores, interlocutores e novos pesquisado-
res, dentro e fora das universidades, extrapolam limites impostos
por teorias e conceitos alicerçados em saberes legados, rompendo
com as hierarquias naturalizadas. Afinal, “o acto da descoberta é
necessariamente recíproco: quem descobre é também descoberto e
vice-versa” (Santos; Menezes, 2010, p. 181).
Ao longo do século XX, muitos dos estudos latino-americanos
se ancoraram ferrenhamente nos discursos legitimadores dos para-
digmas teórico-críticos pautados nas concepções de modernidade e
geradores de teorias segundo modelos europeizantes. Diante disso, o
imperativo é repensar a própria ideia de descoberta e sua consequen-
te ideia de hierarquia, de dominadores e dominados, de sabedores,
produtores e receptores desse saber, mesmo que para o exercício
antropofágico. Esse repensar erige um ato desobediente, inaugural,
capaz de realizar, ainda que timidamente, uma “quebra de bases”,
tomando de empréstimo a expressão de Mignolo (2014).
Seguindo o pensamento de Mignolo em um diálogo com Aníbal
Quijano, compreendemos, pelas palavras deste último, que “é necessário

Sumário
164

nos desprendermos das vinculações racionalidade-modernidade com


a colonialidade, em primeiro lugar, e de modo definitivo com todo
poder não constituído na decisão livre de pessoas livres” (Quijano apud
Mignolo, 2014, p. 288, tradução nossa). De acordo com o pesquisador
argentino, Aníbal Quijano propõe a “desobediência epistêmica”, não
como meio de deslegitimar quaisquer críticas e teorias alheias a nosso
espaço, mesmo aquelas fundamentais para estudos pós-coloniais, de
filiação europeia; o papel da desobediência epistêmica seria “afirmar
a coexistência” de formas de pensamento, propondo a alternativa
descolonial (Mignolo, 2014, p. 288). Para Quijano (apud Mignolo,
2014, p. 288, tradução nossa), deve-se proceder “à destruição da co-
lonialidade do poder mundial”, inaugurando-se a “opção descolonial
como desobediência epistêmica”, pelo viés da “identidade em política”
(Mignolo, 2014, p. 289, tradução nossa).
Mais do que se alçar como textos formadores, as reflexões nesses
novos paradigmas têm o potencial de conformar abordagens possíveis
nascidas de dobras, de desvios, como novos pontos de inclinação, de
origem epistêmica. Constituídas como opção, como um possível de-
vir ou vir a ser para o pensamento contemporâneo latino-americano,
fronteiriço, subalterno, local, as linhas se redesenham, se não na
contracorrente do pensamento ocidental, colonial, imperialista, pelo
menos apontando para outras histórias, outras culturas, outras aspi-
rações, nas palavras de Said (2003). O próprio Edward Said enfatiza
o papel do intelectual em postura de compreensão, interpretação e
questionamento de autoridades, em todos os campos, inclusive, na
produção de arte, cultura e saber. Sendo contrária à aceitação pacífica
do consenso e das imposições, tal postura nega a conformidade com os
princípios ou as normas aceitas como adequadas, corretas, segundo os
critérios impostos e alheios a nosso próprio espaço/território simbólico.
Por um lado, trata-se de uma busca teórica, um esforço de com-
preensão e de conhecimento; por outro, é a corporeidade do saber, são
as sensibilidades, os sentidos que perpassam uma experiência única,

Sumário
165

pessoal, e se expandem para as narrativas de experiências outras dos


sujeitos latino-americanos: novas narrativas, capazes de trazer aos
latinos o ensejo de ampliar suas possibilidades, não de dizer, mas de
ouvir antes de dizer, de alçar uma voz. Primeiro, porque quem busca
a reflexão (quem pesquisa) não deve falar “em lugar de”, mas ter a
capacidade de audição, de dar a voz e repercuti-la. É um “falar com”,
por meio desta voz. E o que se ouve? Onde se buscam as fontes para
a reflexão? Quais narrativas é preciso (re)ver, (re)existir?
De Palermo e Siñanis (2015, p. 105-106), retomamos a expressão
do filósofo argentino Rodolfo Kush: “a questão não está em mandar,
mas em escutar a quem recebe as ordens” (tradução nossa). Por isso,
diante das crises, não cabem soluções elaboradas minuciosamente
pelos estudiosos em nome de um racionalismo de estudante recém-
-formado, mas é preciso estabelecer relação (de dependência) com
alguma constante: algo que não se modifica, a magnitude que não
varia com o tempo, como o conceito que vem das ciências exatas. E
na América não há outra constante senão a de seu povo. A base de
nossa razão de ser está nele.
Assim, a proposta de Palermo e Siñanis (2015) consiste em escu-
tar, escutar as vozes de grupos e seus saberes, nesse caso específico,
de mulheres artesãs que se reúnem para tecer juntas, com “as mãos
e as bocas”, pois, enquanto tecem, narram “mundos que constituem
uma amálgama de práticas, crenças, costumes, vivências, tempora-
lidades procedentes de distintas memórias cuja heterogeneidade
se entrama nessa rede simbólica” (p. 106) que elas, juntas, tecem.
E as autoras fazem esse exercício de escuta na contracorrente de
uma forma de interculturalidade que é o resultado de permanentes
migrações para as periferias urbanas, migrações dos grupos oriundos
de outros espaços, rurais, por exemplo, mas também podemos pensar
nas etnias. Tal interculturalidade, por si só, não dá como resultado
uma “coalición” (coalizão), mas uma “colisión” (colisão), o choque
entre culturas. E então brotam os adjetivos que hierarquizam, que

Sumário
166

inferiorizam: uma cultura branco-urbana, a chamada cultura ocidental,


conclamada como forma universal de vida, mantém-se separada de
qualquer outra, das culturas ditas populares, menores, e as olha desde
fora e desde cima. Logo, uma dinâmica conflitivamente interativa
se produz entre tais.
É dessa maneira que outras escutas nos chegam, no exercício
de ouvir e ver a nós e aos(às) outros(as) que compõem esse espaço
latino-americano também como território simbólico de sensibilidades
e saberes. Pensando na escrita literária e nas narrativas orais, pessoais
ou dos grupos, lembramos, anacronicamente, das Crônicas de nuestra
América, de Augusto Boal, uma leitura que nos chegou às mãos por
acaso, nas estantes dos corredores da universidade, em Coxim. As
crônicas narram o espaço geográfico das Ilhas Malvinas (Falkland) e
mimetizam tensões, caracterizações, idealizações etc. nas metáforas
dos corpos e dos jogos amorosos entre personagens que contrastam
o norte e o sul, o britânico e o argentino. E este, o personagem do
sul, da “Latinoamérica”, ludibria aquele, o do norte.

[E]stas são histórias verdadeiras – histórias que o povo


andou me contando, aqui e ali, nestas viagens que eu,
errante, ando fazendo desde que saí do Brasil, em 1971
(está escrevendo isso em 1976). Alguns personagens eu
conheço – eu vi; outros, só de ouvir dizer. Nalguns lugares
estive – descrevo como repórter. Outros, me descreveram
– escrevo do mesmo jeito. Estas são histórias dos povos
de Nuestra América. Nuestra América – aquela que se
opõe à AmériKa com K. Nuestros Americanos – aqueles
que sofrem, pelejam e que um dia se libertarão! (Boal,
1977, p. 5, tradução nossa).

Sem dúvida, a época é bastante específica, o contexto outro, anterior


à construção sólida de um pensamento descolonial: outras formas
de condução das reflexões, mas o princípio do colonialismo está aí
à espreita, de alguma maneira, gerando a reação, o convite à luta e
à libertação, e esta vem, primeiramente, pela escuta.

Sumário
167

Outras retomadas, outras narrativas que se destacam para nós,


chegam-nos através de Arturo Arias, escritor e crítico guatemalte-
co, nascido em 1950, e de Ana Pizarro, ensaísta e ex-professora da
Universidade do Chile. Suas narrativas foram expostas em uma
recente conferência virtual promovida pelos Estudos de Literatura
da Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. Os autores
apresentam duas facetas de relações, mais explicitamente culturais
ou não, pautadas na hierarquização, na inferiorização de grupos
e suas práticas, seus conhecimentos e suas sensibilidades, e nos
conclamam a nos inscrever nessas narrativas, a nos impregnar delas.
Arturo Arias nos fala de Constantino Lima Chávez, aliás, Takir
Mamani, ativista indígena aimará, nascido em 1933, a quem se
atribui o uso do termo Abya-yala como forma indígena de nomear o
continente americano. Arias narra que, no ano de 1941, Takir Mamani
acompanhava sua mãe ao mercado. No caminho de volta para Cala-
coto, região onde morava, viu quando um boliviano branco se irritou
porque uma aimará, carregando algo grande, volumoso, bloqueou
sua passagem. Ele a insultou e chutou-lhe o traseiro. O menino,
traumatizado com o que vira, nunca conseguiu se esquecer dessas
imagens. Em casa, contou ao pai sobre o incidente e pediu-lhe uma
explicação, ao que ele respondeu: “os brancos vêm da Europa, nós
somos daqui. Eles nos invadiram, e agora somos seus escravos. Por
isso nos tratam mal”. Arias afirma que esta é a melhor explicação do
colonialismo que já ouviu. “O pai explicou melhor do que as teorias
de Mignolo ou Quijano”. “O que foi narrado é a experiência de todos
os sujeitos indígenas dos últimos 500 anos” (Arias, 2020).
Também no texto de Ana Pizarro, por sinal, belíssimo, o colonia-
lismo vem à luz pela descrição de uma série de formas de relações
culturais em que os mapuches, grupo indígena chileno, igualmente
presente em território argentino, são, de modo muito claro, rebaixados.

[H]á um trato discriminatório da população nacional que


os diminui e lhes atribui o status de barbárie diante de
uma população chilena ilusoriamente branca que não se

Sumário
168

reconhece como mestiça e privilegia a imagem da imi-


gração europeia. As reivindicações de grupos como os
mapuches vão além do tema histórico de recuperação
de suas terras, e isso está em sua literatura oral e escrita,
esta bem mais recente. Trata-se do reconhecimento deste
grupo frente a um estado que os vê como etnia e limita
seu status jurídico. Mas é, também, um exercício de voz,
de escuta. (Pizarro, 2020).

A transcrição ilustra as muitas formas de narrativas de vida e


de experiência referentes a grupos e indivíduos aos quais se calam
as vozes e se nega a possibilidade de existência e permanência. É o
caso também dos venezuelanos que, na perspectiva atual, cruzam
fronteiras em todas as direções, fugindo da guerra e de condições
precárias de vida. Esta é uma experiência com grandes consequências,
a experiência do exílio, ou da migração por motivos de força maior,
que marcam o sujeito como se fosse na própria carne e na memória,
deixando-lhe uma cicatriz visível de uma ferida que não sara.
Rechaçamos essa negação de vidas, em um esforço de valorização
de sujeitos e suas vivências. Propomos a atenção a pensamentos
outros que expressem as memórias de infância, os relatos ouvidos e
as histórias locais, que interfiram na construção de sensibilidades e
exijam uma alteração ocorrida diretamente na linguagem, na forma
de expressão e de compreensão do local. A linguagem carece ser
contemplada em suas múltiplas ocorrências. À força dos desloca-
mentos, ela padece de demarcações de um aqui e um lá, um eu, um
nós e um eles, muitas vezes, contrapostos, outras intrinsecamente
entrelaçados. O resultado deve ser, por conseguinte, a valorização
de todas essas formas de experiências.

Asumimos así la existencia de un conocimiento otro, en


diálogo con el del pensamiento crítico latinoamericano,
producido en la interioridad de un sector comunitario ajeno
al discurso preconstruido por la institucionalidad académi-
ca, discurso aquel que, sin embargo, está vivo y dinámico

Sumário
169

sosteniendo la vida de las gentes. A escuta apresenta a


potencialidad de un pensar emergente del hacer cotidiano
en el espacio social al que os sujeitos pertenecem. Ese
andar constructivo nos permitió volver a pensar categorías
explicativas preexistentes para finalmente imaginar un
horizonte de expectativas de posible concreción en los
tiempos por venir. (Palermo, 2008, p. 218).

Seguindo numa direção idêntica, Ana Pizarro salienta a diver-


sidade das formas de conhecimento e de pensamento e convoca à
valorização do conhecimento não institucionalizado e das culturas
não ocidentais:

[A] ciência e o conhecimento institucional estão cheios de


incertezas onde nós acreditamos que há respostas certeiras;
há modos diferentes de pensar e formas de conhecimento
que não têm que ver apenas com a racionalidade, e sim
com as sensibilidades, a emoção, o imaginário ou a per-
plexidade. O que necessitamos é aprender a valorizar as
culturas não ocidentais. (Pizarro, 2020).

De fato, valorizar as culturas que encontramos na América Latina,


no Brasil, no Mato Grosso do Sul exige esses exercícios de aceitar e
prestigiar os conhecimentos relacionados com as sensibilidades, expres-
sos pelas vozes de sujeitos vários em seus territórios de pertencimento.

Algumas considerações a modo de conclusão

Minha escrita quer ser voz.


Mia Couto

Pensar nos lugares outros da crítica e da ficção e apresentar as


narrativas e construções de discursos locais sob o crivo da ciência e da
leitura crítica, acadêmica, é uma forma de dar visibilidade à produção

Sumário
170

do saber local através da arte e da literatura, e fazê-lo circular local e


nacionalmente. Nossa compreensão e os estudos contemporâneos,
descoloniais, que pretendemos conduzir, permitem uma escrita
acadêmica que deve ser, antes de tudo, uma escuta dessas narrativas
outras e uma inscrição pessoal na pesquisa. Assim, nossas reflexões
não desconsideram os conceitos e saberes já aprendidos, alicerçados
na tradição e reassegurados por sua migração para vários campos do
saber que edificam sua base teórica. Entretanto, essas considerações
necessitam do complemento do (des)aprender para (re)aprender,
proposto pela desobediência epistêmica (Mignolo, 2014). E mais,
os intelectuais contemporâneos precisam desenvolver o estudo das
teorias descoloniais, que lhes propiciam um olhar crítico e consciente.
Na proposta de escuta e valorização das sensibilidades e de outros
modos de acesso ao saber, os intelectuais latino-americanos, ao lado
de muitos grupos de cultura e linguagem não hegemônicas, também
emitem seu balbucio teórico (Achugar, 2006). Colocar em questão
o colonialismo e os conhecimentos oriundos da lógica moderna de
opressão e imposição pode parecer ainda um discurso não muito bem-
-articulado ou cuja proposição é inócua, sem força, mero balbucio,
como diz Achugar. É como se os articuladores desse discurso profe-
rissem apenas ruídos sem sentido, facilmente ignorados. Existem,
ademais, uma usurpação e um mascaramento quando se colocam
grupos e sujeitos em uma falsa posição de valorização cultural, que, na
verdade, é outra faceta do colonialismo: alguns grupos e sujeitos tomam
para si a tarefa de, calando outros, falar por eles. O que caracteriza os
grupos silenciados é exaltado como exótico, folclórico, interessante
para se olhar e levar para casa como lembrança ou enfeite, geralmente,
uma forma de agradar pessoas que se portam como turistas diante do
diferente. Tal relação é mimetizada nas práticas sociais e culturais e
na emissão de um discurso intelectual, acadêmico, quando os que se
julgam com direito à voz falam e decidem por aqueles que são sempre
silenciados e relegados à condição de frágeis incapazes, dependentes
intelectual, social, econômica e culturalmente.

Sumário
171

No decorrer de nossos trabalhos e reflexões futuras, ainda preci-


samos colocar em foco as narrativas e escritas femininas, que, neste
espaço de fronteira, apresentam e representam uma voz política e
socialmente marginal. São narrativas instituídas como resistência e
construção de um território simbólico ainda por explorar. Evidenciam
sujeitos esquecidos e o que eles falam, a arte, cultura, literatura,
política etc. que eles produzem e como se produzem tais elementos,
que habitam e transitam em um espaço outro, um entrelugar. Cada
vez mais, esse entrelugar se expande, mas precisa voltar-se para si
mesmo e falar de si e de suas produções, em vez de ter sua voz re-
presentada por outros, oriundos de espaços externos.
É com esse entendimento que ressaltamos a importância de
desenvolver pesquisas locais para (re)pensar nosso próprio espaço de
reflexão e criação literária, para voltar o olhar ao território simbólico em
que arte, saberes, narrativas, discursos e ficções surgem e ressurgem,
são ressignificados, migram e deslocam conceitos. Nos deslocamentos,
estes se tornam provisórios, diaspóricos e fundam o pensamento local
em oposição ao universal. Também elegem projetos afins como opção
de coexistência, de contraposição ou de harmonia visando se despren-
der do espelhamento da lógica que alia crescimento e consumismo à
exploração, marginalização e desvalorização humana (Mignolo, 2014).
Precisamos, por fim, ouvir as vozes de grupos considerados não
acadêmicos, não embasados teoricamente, mas que são detentores
de saberes e sensibilidades locais, próprias. É o caso de mulheres,
indígenas, moradores de periferias e outros grupos mais amplos ou
mais restritos quando pensamos em definições, identidades, adje-
tivações ou ocupações. Falar com esses grupos e de dentro deles é
possibilitar que a arte, a cultura e a literatura continuem a propiciar
as belas narrativas de resistência e (re)existência. E, com elas, o
conhecimento racional, mas sobretudo a valorização do humano,
da vida e das sensibilidades em todas as suas formas, em estreita
relação com a inscrição pessoal nos saberes referidos, conferindo-lhes
sentido e significado.

Sumário
172

Referências

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cultura e literatura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

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UFF: mundos silenciados, voces olvidadas [Teleconferência].
Transmitido em 26 ago. 2020. Disponível em: https://www.youtube.
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decri, 1977.

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de Uma literatura nos trópicos. In: SANTIAGO, Silviano. Uma
literatura nos trópicos. Recife: Cepe, 2019.

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sin disciplina: latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización
en debate: México: Ed. Miguel Ángel Porrúa, 1998.

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manifestaciones de una cuestión ética geopolítica. In: GIULIANO,
Facundo (comp.). ¿Podemos pensar los no-europeos?: ética decolonial
y geopolíticas del conocer. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del
Signo, 2018. p. 11-68.

MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade,


saberes subalternos e pensamento liminar. Trad. de Solange Ribeiro
de Oliveira. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémica: retórica de la mo-


dernidade, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad.
Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Signo, 2014.

Sumário
173

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proposta local de descolonização da leitura. Rascunhos Culturais:
Revista do Curso de Letras, Câmpus de Coxim-UFMS, v. 11, n. 21,
p. 46-66, 2020. Dossiê Leitores e leituras na contemporaneidade:
entre o cânone e as novas tendências.

PALERMO, Zulma. Revisando fragmentos del “archivo” conceptual


latino-americano a fines del siglo XX. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9,
p. 217-246, jul.-dic. 2008.

PALERMO, Zulma; SIÑANIS, Cristina. Heterogeneidad estructural


y re-existencia en la escucha. Millcayac: Revista Digital de Ciencias
Sociales, Mendoza, v. 2, n. 3, p. 105-113, 2015.

PIGLIA, Ricardo. Crítica e ficción. Barcelona: Anagrama, 2006.

PIZARRO, Ana. Verdad y poder: el poder de la verdad y la verdad del


poder. In: PIZARRO, Ana; REIS, Lívia; ARIAS, Artur (conferencistas).
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[Teleconferência]. Transmitido em 26 ago. 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=K3BoopzpKEw. Acesso em: 15
set. 2020.

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História oral. São Paulo: Letra


e Voz, 2010.

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro


Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Recife: Cepe,


2019.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.).


Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010.

Sumário
PARTE II
HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIA:
MULHERES, TRABALHADORES(AS) E
MIGRAÇÕES
HISTÓRIA DAS MULHERES: LUTAS E
RESISTÊNCIAS AO PATRIARCADO
NA COLÔNIA DE PESCADORES(AS)
EM ITAPISSUMA

Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão

Introdução

A proposta deste capítulo consiste em resgatar um pouco da


história das mulheres com base nas vivências de um grupo de traba-
lhadoras. Para isso, destacam-se as relações de poder configuradas
através das relações de gênero e do modelo patriarcal, que, de acordo
com Safiotti (2011), concretiza-se, especialmente, nas hierarquias
socialmente construídas, caracterizadas pela primazia masculina,
pela dominação e pela opressão.
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que envolveu levantamento
bibliográfico, visitas de campo e análise documental. A exploração
do tema abordado está ancorada na epistemologia feminista e na
literatura referente às violências produzidas pelo patriarcado: ex-
clusão das mulheres, inclusive vedando-se o seu acesso ao trabalho
remunerado e aos direitos sociais que advêm da regulamentação das
atividades laborais; trabalho precário; violência física; violência sim-
bólica, consubstanciada no âmbito cultural por meio de preconceitos
e discriminações, por exemplo; violência sexual etc.
A pesquisa de campo ocorreu na colônia de pescadores(as) de
Itapissuma, litoral Norte de Pernambuco, e em outras colônias, cujas
líderes estão citadas no texto. Na análise documental, foram exploradas
176

matérias de jornais, legislações e o acervo de trabalho de campo1 da


irmã Nilza Montenegro, que fazia parte da congregação das Doroteias.
A proposta metodológica de conhecimento situado, adotada neste ca-
pítulo, vem resgatando histórias de mulheres há dezesseis anos através
do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento e Sociedade (GPDESO),
ligado ao CNPq-UFRPE (www.gpdeso.com) e no Núcleo de Pesquisa-
-Ação Mulher e Ciência. No Grupo e no Núcleo, criados respecti-
vamente em 2002 e 2013, está incluída uma linha de pesquisa sobre
pesca artesanal. Sob o recorte metodológico adotado, problematiza-se
a vida das mulheres acompanhadas pelo Grupo e Núcleo, buscando
mostrar quem são elas, o que fazem e os obstáculos que superam em
sua rotina diária.
Além de livros e periódicos especializados no tema, foi utilizado
um portal brasileiro de publicações científicas em acesso aberto,
o OasisBR, por meio do qual foi realizado um levantamento da
literatura sobre o tema abordado. Abaixo, tem-se uma relação entre
as palavras-chave empregadas nesse levantamento e o número de
publicações científicas localizadas através delas:
1 - Mulheres marisqueiras, com um total de 47 publicações,
sendo 23 dissertações, 8 teses, 7 artigos, 7 TCC e 2 conferências.
2 - Mulheres presidentes de colônias, com apenas uma pu-
blicação, o artigo “As mulheres e a construção da Colônia de
Pescadoras Z-25 em Jaguarão/RS, 2005”.
3 - Mulheres AND colônias de pescadores, com 25 títulos, sendo
3 com abordagem de gênero e 1 fundamentado no ecofeminismo.
Das 25 publicações, 2 são teses e 2, dissertações.
4 - Pescadoras AND marisqueiras, também com 2 teses e 2
dissertações, focadas no tema gênero e pós-graduação em ciên-
cias sociais.

1 Perrot (2007, p. 27) afirma que “há mais chances de encontrar vestígios das
mulheres nos arquivos privados”.

Sumário
177

Nessas publicações, a denominação marisqueira é utilizada com


frequência para mencionar as trabalhadoras que coletam os frutos do
mar ou dos mangues: ostras, caranguejos, siris, mexilhões, sururus etc.
Em contrapartida, a denominação pescadora para as trabalhadoras
da pesca é, ainda, pouco utilizada nos recortes de pesquisa sobre a
cadeia produtiva e os sujeitos sociais que realizam a pesca artesanal.
Sem falar da escassez de publicações sobre mulheres nas colônias
de pescadores e sobre mulheres em espaços de poder nesses locais.
Os textos encontrados contribuem para a compreensão do modo
de vida dessas mulheres e dão visibilidade às suas conquistas e aos
obstáculos que precisam superar. Destacam-se aqui os das autoras
Valéria Costa Aldeci de Oliveira (2017), Eline Almeida Santos (2018),
Maria Bernadete Reis Maia (2015), Silvana Marques Porto Araújo
(2010) e Angelita Soares Ribeiro (2012).
A única publicação que aborda o tema das trabalhadoras da
pesca nos espaços de poder das colônias de pescadores é o artigo
“As mulheres e a construção da Colônia de Pescadoras Z-25 em
Jaguarão/RS, 2005”, de Kênya Jessyca Martins de Paiva (2016). A
autora debate “a trajetória de Roselein Dias (62 anos), uma das mu-
lheres que fundaram [...] a Colônia de Pescadoras Z-25 em Jaguarão
(2005)”. Segundo ela, Roselein nasceu e se criou numa família de
pescadores. O texto resgata a história das mulheres na pesca sob a
perspectiva de uma liderança feminina.
As publicações das autoras mencionadas acima abordam temáti-
cas que envolvem as mulheres marisqueiras, pescadoras e extrativistas
em suas interações com a atividade laboral e com as relações de poder.
São reflexões que nos inspiram a mergulhar nesse mar invisível que
conforma as vidas das mulheres, especialmente daquelas inseridas
em trabalhos precários, como as trabalhadoras da pesca no Brasil.
No Nordeste, essas mulheres, geralmente, são negras e têm baixa
escolaridade e muitas dificuldades de acesso aos direitos sociais.
Além das autoras já referidas, outras de diferentes regiões do
Brasil têm se debruçado sobre as relações de gênero na pesca ar-

Sumário
178

tesanal, entre elas, Maneschy, Siqueira e Álvares (2012), Alencar


(1991), Motta-Maués (1997), Leitão (2013a, 2013b, 2019a, 2019b)
e Leitão e Cruz (2009, 2010a, 2010b, 2012a, 2012b). Seus estudos
diagnosticam a divisão sexual do trabalho na pesca artesanal e a
sobrecarga gerada para as pescadoras na dupla jornada de trabalho.
Por meio deles, essas mulheres passam a ter mais visibilidade em seu
papel de sujeitos sociais, de cidadãs que desenvolvem uma atividade
produtiva universalizada como trabalho masculino e perpetuada como
tal pela exclusão social destas trabalhadoras.
Ao lado das publicações citadas, relativamente recentes, também
foram consultadas para esta investigação algumas fontes documen-
tais situadas na periferia da história oficial. Para encontrar dados,
especialmente dos anos de 1970 a 1980, foram fundamentais os
documentos elaborados pela irmã Nilza Montenegro, acessados
e publicados por Furtado e Leitão (2012). A irmã Doroteia esteve
durante vinte anos, na comunidade de pescadoras de Itapissuma,
dando assistência de diversas formas a elas e a pescadoras de ou-
tras localidades. Seus diários de campo nos permitiram adentrar
no cotidiano destas mulheres e conhecer suas experiências vividas
desde meados da década de 1970. Posteriormente, as entrevistas
com as pescadoras e com a própria irmã Nilza nos possibilitaram
romper com o silenciamento e a invisibilidade destas trabalhadoras
e completar as lacunas existentes na história das mulheres na pesca
artesanal de Itapissuma.
Para entender o funcionamento das colônias de pescadores(as),
uma boa referência é a obra de Callou (2010), que pode ser incor-
porada ao acervo de resgate histórico das colônias de pesca, criadas
em 1919 sob a tutela da Marinha de Guerra. A relação institucional
das colônias com uma instituição de caráter militar, restrita aos ho-
mens, contribuiu para excluir as mulheres do direito de associar-se
a essa cadeia produtiva e de ser reconhecidas como trabalhadoras do
setor. Felizmente, porém, tal situação foi legalmente resolvida pelo
Decreto-Lei nº 81.563, de abril de 1978. O documento possibilitou

Sumário
179

o acesso das mulheres à carteira de pesca em Pernambuco, e esta


passou a ser expedida pela Superintendência do Desenvolvimento da
Pesca (Sudepe) em 1979 (Leitão, 2010b). Um fato a ser questionado
é que, quarenta anos antes da concessão desse direito, o Decreto-
-Lei nº 794, de 19 de outubro de 1938, já autorizava o exercício da
pesca no Brasil a todos os maiores de 16 anos, desde que munidos
de licença. Isso está expresso no capítulo I do Decreto, Da pesca
e seu exercício, art. 6º: “é permitido o exercício da pesca em todo
o território da República, mediante licença, a todos os brasileiros
maiores de 16 anos” (grifo nosso). Ou seja, muito tempo foi decorrido
até que as mulheres tivessem acesso a um direito já oficializado.
Apesar desse avanço, em pleno século XXI, ainda existem muitas
mulheres sem esse registro. Um aspecto importante que distancia
as mulheres pescadoras do acesso aos direitos sociais e contribui
para sua invisibilidade no ambiente institucional relacionado à pesca
artesanal é o arcabouço burocrático instituído pelo Decreto-Lei
nº 81.563/1978. São muitos os documentos exigidos para a solici-
tação da carteira de pescador e pescadora (Figura 1), a exemplo da
carteira de identidade2 e da denominada folha corrida, “um docu-
mento que comprova que, até a data de sua emissão, o cidadão não
possui condenações criminais transitadas em julgado cujo cumpri-
mento ainda esteja em andamento”.3 No caso de não ter o registro
civil de nascimento, a interessada pode solicitar a documentação
exigida. Para isso deve apresentar um atestado de pobreza para a
isenção do pagamento da multa (O Leme, 1979, p. 6).4

2 Nessa época muitas mulheres não possuíam registro de nascimento.


3 Disponível em: https://www.rs.gov.br/carta-de-servicos/servicos?
servico=552. Acesso em: 13 nov. 2020.
4 O Leme não era um jornal feminista, mas um boletim com recorte de classe,
e, como tal, apoiava a luta das mulheres por reconhecimento profissional
na pesca artesanal. Outra fonte de relevo apontada por Perrot (2007, p. 31)
são os jornais lançados pelas mulheres desde o século XVIII.

Sumário
180

Figura 1 - Charge ilustrativa das dificuldades burocráticas para a consecução


do registro de pescador e pescadora

Fonte: O Leme, 1979. Acervo do Conselho Pastoral da Pesca.

Acrescente-se a essas dificuldades burocráticas que a situação


das trabalhadoras e dos trabalhadores da pesca é historicamente
precária, um contingente de pessoas que retiram seu sustento do
extrativismo, realizado com poucos recursos econômicos e com um
saber construído e repassado de uma geração a outra. Desde o início
do século XX, esse grupo vem se organizando em colônias de pesca,
que, de acordo com o Decreto-Lei nº 794, art. 9º, “são agrupamentos
de pescadores atuando numa mesma zona e constituídos, no mínimo,
por 150 (cento e cinquenta) profissionais de pesca”.

Sumário
181

Um grande contingente dessa categoria é composto de pescado-


res(as) negros(as). Desde a segunda metade do século XVIII, Geraldo
Luiz Silva constatou essa predominância no litoral da capitania de
Pernambuco, baseado na carta do governador dessa capitania, José
César de Menezes. Nessa carta, escrita em 22 de setembro de 1784,
o governador relata que “o Preto João da Assunção” atuava na função
de “Governador dos Pescadores da Vila do Recife” (Silva, 2001, p. 217,
1998, p. 222). As pescadoras que atuam em Itapissuma e Ponte dos
Carvalhos, municípios do litoral Norte e do litoral Sul de Pernam-
buco, também são mulheres negras, em sua maioria, e, através da
interação com o Conselho Pastoral da Pesca, reconheceram o lugar
periférico que ocupavam na sociedade. A partir desse despertamen-
to, elas lutaram pelo direito a serem reconhecidas e legitimadas
profissionalmente e, assim, acessarem os benefícios e as políticas
públicas relacionadas à cadeia produtiva da pesca artesanal. Esse
fato histórico social, que lhes deu o acesso aos espaços de poder e
decisão, foi publicado em O Leme (março de 1979, p. 6):

Um grupo de pescadeiras que havia enviado seus documen-


tos desde novembro do ano passado à SUDEPE [decidiu]
em fins de março ir até Recife reclamar pessoalmente do
Delegado Regional da SUDEPE, a longa demora. Surpreen-
dido pela atitude corajosa dessas pobres mulheres, deu
ordem imediata para que fossem atendidas sem demora.

Memória da luta das mulheres pescadoras de Itapissuma

A aldeia indígena de Itapissuma, banhada por mar e rio, foi trans-


formada em vila no século XVI5 e, no século seguinte, construiu-se
ali a capela de São Gonçalo de Amarante, o santo padroeiro do lo-
cal. A tradição da festa de São Gonçalo é mantida até hoje no local,

5 Informações disponíveis em: http://itapissuma.pe.gov.br/historia-do-municipio/.


Acesso em: 12 nov. 2020.

Sumário
182

ocorrendo no mês de janeiro, com a buscada da imagem do santo para


a celebração no Canal de Santa Cruz. Atualmente o município conta
com 70% da população envolvida na atividade da pesca artesanal.
A localidade faz parte do turismo gastronômico, sendo famosa pela
caldeirada, um cozido de frutos do mar vendido por mulheres, como
Irene, Lidiane e outras cozinheiras que comercializam o prato típico
nos boxes do Mercado Público às margens do Canal de Santa Cruz.
O resgate histórico da pesca artesanal em Itapissuma vem sendo
realizado no GPDESO e tem possibilitado o aprofundamento na te-
mática de gênero e pesca, especialmente em relação a Pernambuco.
Diferentes instituições apoiam o trabalho do Grupo por meio da
aprovação de projetos, conforme se vê pela lista a seguir:
1) CNPq-projetos MCT/CNPq/PR-SMP 45/2005; MCT/CNPq
029/2009; MCT/MDS-SAGI/CNPq nº 36/2010; MCT/CNPq/
SPM-PR/MDA nº 020/2010; MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA
nº 32/2012.
2) SPM/PR - Gênero, raça e pesca: o trabalho de marisqueiras
no litoral Sul de Pernambuco, Convênio nº 0172/2008; criação
do Núcleo de Pesquisa Ação Mulher e Ciência, possibilitado a
partir do apoio do programa Políticas para as Mulheres: Promoção
da Autonomia e Enfrentamento à Violência (2016).
3) Projetos Proext - Proext 2010, linha temática 3; Proext 2011,
linha temática 13.
4) Projeto MEC/Secadi - Curso EAD GDE – Gênero e diversi-
dade na escola: Jaboatão, Carpina, Ipojuca, Pesqueira e Tabira/
PE, de junho 2009 a fevereiro 2010.
5) Projeto MPA- Ações para consolidar a transversalidade de
gênero nas políticas públicas para a pesca e aquicultura do MPA,
Convênio nº 078/2009 entre MPA e Fadurpe.
6) Projeto MDA - Contrato nº 0309.541-78/2009/MDA/Caixa.

Sumário
183

As pesquisas mencionadas acima foram problematizadas com


base nas seguintes questões elaboradas por Joan Scott (1995, p. 93):

Qual a relação entre as leis sobre as mulheres e o Poder


do Estado? Por que (e desde quando) as mulheres são
invisíveis enquanto sujeitos históricos? Quando sabemos
que elas participaram dos grandes e pequenos eventos da
história humana? O gênero tem legitimado a emergência
de carreiras profissionais? Como as instituições sociais
têm incorporado o gênero nos seus pressupostos e na
sua organização? Já houve conceitos de gênero realmente
igualitários sobre os quais foram projetados ou mesmo
baseados sistemas políticos?

No resgate das histórias de vida das mulheres pescadoras em


Pernambuco, especialmente no município de Itapissuma,6 encontra-
mos respostas para estas indagações, conforme denotam os resultados
dos projetos referidos. Muitos desses resultados foram publicados
em periódicos científicos, em livros e cartilhas ou em forma de
radionovelas (Leitão, 2010a, 2010b, 2012a, 2012b, 2013a, 2013b,
2019a, 2019b). Essas produções, elaboradas no grupo de pesquisa
do GPDESO, possibilitam a visibilidade de processos de exclusão
social dessas mulheres.
Três grandes momentos resumem o resgate da história dessas
pescadoras: o início das atividades do Conselho Pastoral da Pesca,
abertas na década de 1970 na Colônia de Pescadores(as) de Itapis-
suma e voltadas especialmente para as mulheres; o empoderamento
feminino concretizado na eleição da primeira mulher para presidente
de uma colônia de pescadores(as) no Brasil, em finais da década
de 1980; a concepção, em 2004, do movimento social Articulação
das Mulheres Pescadoras, engajado com as questões de gênero e
preservação ambiental (Veras; Leitão, 2012).

6 O texto de resgate das memórias das pescadoras foi baseado em entrevistas


concedidas à Lívia Tavares Froes, bolsista do projeto CNPq, e publicado de
forma reduzida em Leitão (2019).

Sumário
184

O trabalho realizado pelo Conselho Pastoral da Pesca, sobre-


tudo a atuação da irmã Nilza Montenegro, formada em Sociologia,
contribui expressivamente para a manutenção da memória sobre o
cotidiano e as opressões vivenciadas por essas mulheres num pe-
ríodo em que se achavam completamente excluídas pela legislação
trabalhista. A religiosa desempenha atividades de acompanhamento
e apoio às causas das pescadoras, principalmente as do município
de Itapissuma e de outras localidades do litoral Norte e do litoral
Sul de Pernambuco. Nos seus escritos estão registrados os plane-
jamentos e relatórios relacionados às suas reuniões periódicas com
essas mulheres. Seu trabalho de quase vinte anos foi essencial para
que elas conseguissem o direito à carteira de pescadora profissional,
expedida pela Sudepe (Leitão, 2019a).
Em 1989, ocorreria a eleição da primeira mulher presidente
de uma colônia de pescadores(as) no Brasil, Joana Rodrigues Mou-
sinho, uma mulher negra cuja trajetória é permeada por diversas
interseccionalidades7 de gênero, raça, classe social e escolaridade.
Esse acontecimento viria a se tornar o divisor de águas no processo
de empoderamento das pescadoras de Itapissuma.
A eleição de Joana Mousinho trouxe visibilidade à luta das mulhe-
res pescadoras pernambucanas pela conquista de seus direitos sociais,
tornando-se um fato histórico na participação política dessas mulheres.
Após treze anos de sua eleição, numa entrevista ao jornal Diário de
Pernambuco, em 8 de março de 2002, Joana expressa seu empodera-
mento e seu engajamento na defesa dos direitos sociais e ambientais:
“Essa é minha vida, lutar pela cidadania. Dia da mulher é todo dia”.

7 Kimberlé Crenshaw (2002, p. 177) identifica as interseccionalida-


des com os múltiplos sistemas de subordinações e discriminações
das mulheres. Elas envolvem o sexismo, o racismo, o patriarcado, a
opressão de classe e outros conjuntos de estigmatizações e hierarquias
que redundam em desigualdades.

Sumário
185

Ela participou do terceiro marco no processo de inclusão e prota-


gonismo das mulheres da pesca artesanal em Pernambuco, a criação
da Articulação das Mulheres Pescadoras. Esse evento foi catalisado e
impulsionado pelo 1º Encontro Nacional das Trabalhadoras da Pesca e
Aquicultura (Brasília), oficializado pela Portaria Seap/PR n° 253, de 9
de setembro de 2004, assinada pelo secretário especial de Aquicultura
e Pesca da Presidência da República, José Fritsch.
A Portaria planeja encontros estaduais para debates sobre os
contextos locais e regionais. Para o encontro citado, foi definido o
tema “Trabalhadoras da pesca e aquicultura: rumo à superação das
desigualdades sociais”. De acordo com o artigo 5º do documento,
o Encontro foi dividido em palestras, grupos de trabalho, oficinas,
plenário geral, painéis alternativos e apresentação cultural, durante
os quais se exploraram as seguintes temáticas:

I - dificuldades e desafios enfrentados pelas trabalhadoras


da pesca e aquicultura; II - direitos trabalhistas e previ-
denciários; III - assistência à saúde e questões ambientais
e culturais; e IV - projetos específicos para a produção e
acesso ao crédito. (Brasil, 2004).

A Articulação das Mulheres Pescadoras de Pernambuco, oca-


sionada pelo ambiente crítico fomentado nos debates anteriores ao
Encontro e idealizada durante a realização do evento, foi liderada
por Joana Mousinho, Maria das Neves Santos, Josefa Ferreira da
Silva, Lindomar Rodrigues de Barros e Iolanda Moura dos Santos.
Expandiu-se para um movimento nacional que passou a contar com a
participação de representantes dos seguintes estados: Bahia, Alagoas,
Ceará, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Rio
Grande do Sul, Paraná, Piauí e Pará.
A conjuntura nacional impulsionou outros encontros e ações
de formação dessas pescadoras, demarcando novos rumos para as
lideranças das colônias de pesca em Pernambuco. Desde 2006, vem

Sumário
186

crescendo o número de colônias presididas por mulheres, conforme


se vê em Ponta de Pedras, Atapuz, Jaboatão dos Guararapes, Rio
Formoso, São José da Coroa Grande, Tamandaré, Porto de Jatobá,
entre outras localidades.

Itapissuma na vanguarda de inclusão das mulheres na


presidência das colônias de pescadores(as) em Pernambuco

O referencial teórico em diálogo com os dados coletados possi-


bilitou-nos responder à seguinte indagação: De que modo as trans-
formações sociais iniciadas com a atuação do Conselho Pastoral da
Pesca em Itapissuma contribuíram para o acesso das mulheres da
região a espaços de poder nos movimentos sociais da pesca artesanal
e à presidência das colônias de pescadores(as)?
Após sua organização, a Articulação, além de promover debates
e fomentar ações relacionadas à equidade de gênero no que se refere
ao acesso aos direitos laborais das pescadoras, vem sistematicamen-
te, desde 2010, apoiando candidaturas a presidências e secretarias
das colônias e das associações comunitárias de pescadores e pes-
cadoras artesanais. A presença de representantes desse movimento
social é notável durante todo o processo eleitoral. A Articulação age
em cooperação com as colônias de pescadores(as) e com base nos
princípios de plataformas de direitos humanos que comportam as
necessidades desses sujeitos em sua condição de subalternizados na
cadeia produtiva da pesca. Sob essa orientação, ela produz formações
discursivas por meio de práticas articuladas em rede que contemplam
sua historicidade (Scherer-Warren, 2011, p. 22).
A eleição de mulheres ao cargo máximo nas colônias de pes-
cadores(as), das quais se encontravam excluídas até 1978-1979,
consiste em uma mudança de paradigma operada a partir de finais da
primeira década do século XXI, especialmente com o fortalecimento
da Articulação. Na prática discursiva desse movimento social de
mulheres, elas declararam-se insatisfeitas com o não atendimento,

Sumário
187

pelo governo federal, de certas demandas levantadas por elas, e,


diante disso, foi definida, na ocasião, uma comissão por estado para
discutir e reivindicar os direitos dessas mulheres.

Joana Mousinho, presidente da Colônia Z-10/Itapissuma

Joana Mousinho, a primeira mulher eleita presidente de uma


colônia de pescadores(as) no Brasil, em 1989, tem atualmente 65
anos e é mãe de quatro filhos – dois falecidos. Vem de uma família
numerosa composta por dez filhos e trabalhou na pesca desde os oito
anos. Além de pescar, ela desenvolvia outras tarefas remuneradas: lavava
roupa e carregava lenha e água na cabeça. Aprendeu com seu pai, no
cotidiano familiar, a tecer à mão uma rede de pesca. Seu ingresso na
atuação política da colônia Z-10 em Itapissuma iniciou em meados de
1975. Antes de ser eleita presidente da Z-10, Joana compôs diretorias
nas funções de membro do conselho fiscal e secretária dessa colônia.
Ao ser eleita, enfrentou forte reação masculina ao seu exercício
da presidência, incluindo o risco de violação do seu corpo8 dentro
da própria colônia. Entretanto, apesar da existência e permanência
de homens machistas na Colônia, Joana afirma que boa parte dos
associados da Z-10 reconhece seu trabalho.
As dificuldades e lutas vivenciadas por Joana Mousinho podem
ser atribuídas não apenas à cultura machista da pesca artesanal de
sua região, mas também à estrutura e ao funcionamento da cadeia
produtiva dessa pesca. Embora tenha ocupado e continue ocupando
lugares de poder, ela atuou também em todas as especificidades de
seu trabalho: pescar peixes em embarcações, tecer e consertar redes,
coletar siris, caranguejos, sururus e ostras, beneficiar o pescado e os

8 Michelle Perrot (2007, p. 41) discute sobre o corpo das mulheres acen-
tuando que o corpo tem uma história, e “a diferença dos sexos que marca
os corpos ocupa uma posição central nessa história”. Assim, em virtude da
constituição física do corpo dos homens, estes não sofrem risco ao ocupar
um lugar de poder.

Sumário
188

mariscos e comercializar a pesca. Os espaços de poder político que


alcançou dentro da Colônia de Pescadores(as) foram conquistados
graças ao apoio do Conselho Pastoral da Pesca, em que sempre se
manteve atuante.
Outro aspecto importante na vida de Joana é o engajamento
nas lutas ambientais de que participa na atualidade. Um exemplo
de suas ações nesse âmbito são as denúncias sobre os impactos do
óleo (em suas palavras, petróleo) derramado na costa brasileira em
2019: as repercussões do acidente na vida dos(as) trabalhadores(as)
da pesca. Maneschy, Siqueira e Álvares (2012, p. 714) citam Lia
Zanotta Machado (2010) para comentar essa intrínseca relação so-
cioambiental em que as mulheres se acham incluídas como gestoras
e realizadoras das atividades de cuidado na sociedade. Na opinião
das autoras, como consequência desse envolvimento, elas ficam mais
vulneráveis às relações de poder opressivas e às diversas formas de
violência dentro dos contextos de subordinação.
É o caso das mulheres pescadoras, historicamente ofuscadas e
deslegitimadas em seu exercício da profissão, seja como coletoras,
beneficiadoras ou comercializadoras do pescado e de outros frutos do
mar. Geralmente as trabalhadoras da pesca são identificadas como
mulheres de pescadores, como se fosse esta a sua única função dentro
de uma relação hierarquizada pela sociedade patriarcal. Mas o fato é
que, além de pescadoras, são sobrecarregadas pelo trabalho doméstico,
considerado eminentemente feminino, e isso as distancia de forma
discriminatória dos direitos sociais e dos espaços de poder e decisão.
A escrita sobre a vida da pescadora Joana Mousinho tem pos-
sibilitado romper com essa invisibilidade. Sua história e suas ações
influenciaram a luta dessas trabalhadoras pela conquista de acesso a
direitos civis, sociais e políticos que durante tanto tempo lhes foram
negados. O legado deixado por Joana é consequência direta da atuação
do Conselho Pastoral da Pesca, um movimento social aberto com a
criação de espaços sociais durante os governos de 2003 a 2016, que
incluíram os debates sobre as minorias, entre elas, as mulheres negras

Sumário
189

e as trabalhadoras da pesca artesanal. O período contou, inclusive, com


a abertura de editais e linhas de pesquisa e extensão que proporcio-
naram visibilidade a essas minorias e mobilizaram a troca de saberes
com mulheres em trabalhos precários, a exemplo da pesca artesanal.
Nesse mesmo contexto, outras mulheres foram eleitas no período
de 2006 a 2020 nas colônias de pescadores(as) em Pernambuco e
assumiram novos papéis nestes espaços. Em 2006, Maria de Lourdes
Rodrigues de Oliveira, conhecida por Lourdinha, foi eleita presidente
da Colônia Z-03 em Ponta de Pedras, no Município de Goiana, litoral
Norte de Pernambuco, após ter atuado como secretária dessa colônia.
A reação masculina contrária à sua gestão foi tão intensa que ela foi
ameaçada com arma de fogo no dia da eleição. Contudo foi reeleita
em 2010. Enilde Lima, desde 2010, foi presidente da Colônia Z-09
em São José da Coroa Grande, litoral Sul de Pernambuco, e, em
2016, também foi eleita vereadora nesse mesmo município. Segundo
ela, o apoio do Conselho Pastoral da Pesca e a experiência adquirida
nos encontros da Articulação das Mulheres Pescadoras de Pernam-
buco e nas oficinas itinerantes promovidas pelo GPDESO-UFRPE
constituíram agentes externos essenciais para o seu envolvimento
gradativo nas atividades na colônia.
Lúcia Maria dos Santos foi eleita em 2000 como tesoureira da
Colônia Z-15 em Atapuz, no município de Goiana. Posteriormente,
Lúcia candidatou-se novamente à presidência da Colônia e ganhou as
eleições, exercendo todos os mandatos. Miriam Mousinho, sobrinha
de Joana e de Margarida Mousinho, tinha formação em magistério e,
em 2004, trabalhou na alfabetização de jovens e adultos(as) pescado-
res(as) e filhos(as) de pescadores(as) na Colônia Z-10, em Itapissuma.
Sua rotina com o trabalho da pesca começou cedo: aos oito ou nove
anos, já acompanhava a mãe e as tias Joana e Margarida na coleta
do sururu. Desde finais da década de 1990, substituía o secretário
Severino em suas ausências na Colônia Z-10. Após essa experiência,
Miriam Mousinho participou de uma chapa e foi eleita secretária
da Colônia. Mais tarde elegeu-se presidente, por dois mandatos.

Sumário
190

Maria Aparecida Santana, conhecida por Cida, foi presidente da


Colônia Z-25, em Jaboatão dos Guararapes, litoral Sul de Pernambuco,
em 2013. Antes de se eleger como presidente dessa colônia, participou
de vários movimentos relacionados à Igreja católica e de outros movi-
mentos sociais, e, convidada por Josefa, compôs a diretoria da Colônia
Z-08. Assim como as outras presidentes de colônias de pescadores(as),
ela também enfrentou a reação masculina, chegando a ouvir de um
pescador que talvez não conseguisse terminar o primeiro mandato.
As pescadoras citadas assumem que a influência de Joana con-
tribuiu para a inclusão delas na escalada rumo à ocupação de lugares
de poder e decisão nas colônias de pescadores(as). É o que denota
a fala de Miriam Mousinho: “No início eu não queria, não queria
fazer parte de diretoria, não queria fazer parte de nada!”. Cida tam-
bém admite a relevância de Joana para sua ascensão à presidência
da Colônia Z-25. Mas, apesar de seu sentimento de satisfação, as
mulheres alegam que o trabalho é difícil, exigindo o consumo de
tempo dentro da Colônia e atividades externas, como reuniões, for-
mações e viagens. Há diversas décadas elas atuam na administração,
recebendo o apoio de pescadoras e pescadores.
No momento de produção desta pesquisa, caracterizado pela
pandemia de covid 19 e pelo isolamento social, algumas entrevistas
e palestras divulgadas no YouTube nos permitiram atualizar a parti-
cipação de Joana Rodrigues Mousinho nas novas lutas, resistências
e debates, como se vê nos exemplos abaixo selecionados.
1) Vídeo publicado pela UFRPE: representando a Articulação
das Pescadoras do Brasil, Joana fala de sua experiência na pre-
sidência da Colônia Z-10, de Itapissuma, em que esteve à frente
da Confederação de Pescadores de Pernambuco. Incentiva ainda
as mulheres a participar da II Jornada dos Povos de Pernambuco,
que se realizaria de 22 a 24 de setembro de 2015 na UFRPE, e
chama a atenção para a luta diária das pescadoras e dos pescado-
res artesanais na busca por seus direitos sociais (UFRPE, 2015).

Sumário
191

2) Entrevista com Joana Mousinho, realizada pelo Marco


Zero Conteúdo, em 1º de setembro de 2020: a pescadora afirma
que o auxílio de um salário mínimo oferecido aos pescadores
da costa brasileira para compensar o impacto do óleo, por ela
denominado petróleo, derramado no mar não representa uma
compensação suficiente. Afinal, os profissionais da pesca con-
seguem obter uma renda superior a essa quantia com a comer-
cialização do seu trabalho na região. Segundo Joana, apesar de
o óleo não ter atingido diretamente Itapissuma, o consumo do
pescado restringiu-se drasticamente. E mais: após a retração do
consumo por causa do óleo, iniciaram-se as restrições relaciona-
das à pandemia de covid-19. Em finais de agosto de 2020, como
fonte alternativa de renda, abriu-se o mercado das caldeiradas.
Joana explicita que, em meio a essa crise econômica, os homens
ainda conseguiam vender algum peixe e camarão, mas as mu-
lheres, estas nada comercializavam. A solução foi buscar o apoio
da sociedade civil, que colaborou doando cestas básicas para a
comunidade de pescadores(as) (Mousinho, 2019).
3) Depoimento de Joana Mousinho, representante da Ar-
ticulação Nacional das Pescadoras, na 326ª Reunião Ordinária
do Conselho Nacional de Saúde, em 14 de fevereiro de 2020:
Joana ressaltou a gravidade da situação de quem vive da pesca
e não consegue vender o pescado e de quem teve contato direto
com o petróleo, porque ainda não se conhecem as consequências
desta substância no corpo humano. Expressa sua indignação
com o desastre descomunal e o compara a outras experiên-
cias anteriormente vivenciadas, a exemplo do derramamento
de vinhoto e desmatamento de mangue, afiançando que um
desastre nas proporções do incidente do petróleo nunca havia
visto (CNS, 2020).

Sumário
192

No último vídeo citado, Joana Mousinho evidenciou a capa-


cidade de trabalho dos(as) pescadores(as), informando que 70%
do consumo de pescados no Brasil vem da pesca artesanal. Cri-
ticou a mídia que orientou as pessoas a não consumir o pescado,
independentemente de sua área de proveniência ter sido ou não
afetada. Denunciou a falta de apoio governamental, destacando
que as cestas básicas doadas à comunidade foram fornecidas por
instituições parceiras, as universidades, a Fiocruz-PE e o Banco
do Brasil, e por deputados estaduais, e não pelo governo. “É como
se nós não fôssemos nada; somos pessoas humildes e pobres, mas
honestas e dignas. Merecemos respeito”.
Joana informa também que, apesar da ação no Ministério Público
sobre o derramamento do “petróleo”, não havia ainda uma resposta
acerca do caso, e insiste que todos(as) os(as) pescadores(as) proto-
colados(as) deviam receber o auxílio emergencial do governo federal.
Segundo ela, muitos dos que tinham a carteira não receberam esse
auxílio, que, aliás, é considerado insuficiente. E, se alguns/algumas
pescadores(as) não têm a carteira de pesca, é culpa de Brasília, por-
que, desde 2013, não se emite carteira para ninguém; as colônias têm
feito sua parte, protocolando os(as) trabalhadores(as) nesses sete anos
em que as carteiras deixaram de ser expedidas. A falta de emissão
de carteira prejudica as pessoas, inclusive, em suas aposentadorias.
Também em virtude da falta desse documento, desde 2017, não
aceitam que sejam reincluídos no programa Chapéu de Palha os(as)
pescadores(as) suspensos(as) ou cancelados(as) deste projeto e dos
benefícios que ele oferece.
Outras publicações de natureza idêntica à dos exemplos citados
são frequentemente produzidas pelas militantes das colônias de
pesca em Pernambuco. Recentemente, em 25 de agosto de 2020,
Joana e outras pescadoras divulgaram um vídeo denunciando, mais
uma vez, a falta de resposta governamental aos dois problemas que,
nos últimos tempos, impactaram diretamente a geração de renda

Sumário
193

das comunidades costeiras e especialmente a vida das mulheres: o


derramamento do óleo e a pandemia.

Considerações finais

Descrever a história das mulheres pescadoras de Pernambuco,


especialmente as da Colônia Z-10, presidida por mulheres desde
1989, consiste em dar voz a pessoas historicamente silenciadas.
No resgate da história dessas mulheres, fica evidente que sempre
trabalharam na pesca artesanal: a maioria iniciou o ofício acompanhan-
do suas mães na labuta diária. No entanto, não eram reconhecidas
como pescadoras, e sim qualificadas pela função que os outros lhes
atribuíam, a de auxiliares de seus maridos, irmãos e filhos. Nessas
condições, seu trabalho mantinha-se no âmbito da reprodução e,
obviamente, não era valorizado.
Buscamos resgatar o passado dessas mulheres em diálogo com
o presente e, neste processo, encontramos uma Joana Mousinho
combativa defendendo em 2020 as mesmas causas a que se dedicara
desde o passado até chegar à presidência da Colônia de Pescadores(as)
de Itapissuma em 1989: as desigualdades de gênero e o papel do
Estado na garantia dos direitos sociais e ambientais. Joana continua,
até hoje, problematizando e denunciando a existência dessas questões.
O processo de inserção das mulheres nos direitos sociais da pesca
artesanal em Pernambuco já dura quatro décadas, e a Articulação de
Mulheres Pescadoras tem quase dezesseis anos de existência. Esses
dois fatores contribuíram muito para a visibilidade e as conquistas des-
tas trabalhadoras, tirando do esquecimento as vidas das mulheres da
pesca em seu conjunto. Enfim, ajudaram a romper o silêncio reinante
em torno da história dessas mulheres, demonstrando o quanto elas
fazem parte da história da pesca artesanal em Pernambuco e no Brasil.
A inclusão das pescadoras nos espaços de poder e decisão das
colônias de pescadores(as), e em especial na colônia de Itapissuma,
Pernambuco, representa uma conquista expressiva em lugares onde

Sumário
194

anteriormente essas mulheres eram excluídas como profissionais. Hoje


elas podem até ser indesejáveis na pesca artesanal, mas conseguem um
espaço e uma representação significativa dentro desse setor, ocupando
por volta de um terço das presidências no estado pernambucano. É
certo que não podemos falar em feminização da cadeia produtiva da
pesca artesanal, mas podemos referenciar lideranças de mulheres
nessa área, a exemplo das citadas neste capítulo.
Em que pesem alguns avanços nas pesquisas neste universo das
mulheres pescadoras, reconhecemos que ainda há muito a aprofundar
no assunto, sobretudo no tocante às interseccionalidades de gênero
e raça e às violências físicas e simbólicas que envolvem o corpo
dessas trabalhadoras.

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VERAS, Dimas Brasileiro; LEITÃO, Maria do Rosário de Fátima


Andrade. Por uma articulação ambientalmente sustentável: práticas
e representações da educação ambiental na Articulação de Mulhe-
res Pescadoras de Pernambuco. In: LEITÃO, Maria do Rosário de
Fátima Andrade; CRUZ, Maria Helena Santana (org.). Gênero e
trabalho: diversidades de experiências em educação e comunidades
tradicionais. Florianópolis: Editora de Mulheres, 2012. p. 201-220.

UFRPE. Mulheres pescadoras. 2015. Disponível em: https://www.


youtube.com/watch?v=2mbMUry2gdk&list=RDCMUCUT61na639_
PnQJLwLrwofA&start_radio=1&t=128. 2015. Acesso em: 13 out.
2020.

Sumário
CORPOS FEMININOS: HISTÓRIAS DE
VIDA DE MULHERES PESCADORAS NOS
PANTANAIS SUL-MATO-GROSSENSES

Silvana Aparecida da Silva Zanchett

Introdução

O presente capítulo problematiza a historiografia das mulheres e


suas atividades relacionadas à pesca profissional e/ou de subsistência
no espaço do Pantanal Sul-Mato-Grossense. Pretendemos discutir
aqui, teórica e criticamente, conceitos de gênero, poder, empodera-
mento, cotidiano, memória, trabalho e história das mulheres. Permea-
da por muitas indagações referentes à presença feminina na pesca,
propomos como ponto de partida o seguinte questionamento: qual
é a concepção predominante a esse respeito nas relações de gênero
dentro do trabalho pesqueiro? Esta reflexão foi motivada por um
paradoxo que encontramos nas narrativas das mulheres da pesca no
Pantanal Sul-Mato-Grossense: mesmo dispondo de carteira assinada
como pescadoras, muitas vezes, elas mesmas se autodenominam
apenas como ajudantes dos maridos/companheiros pescadores. Isto
revela o quanto a identidade dessas mulheres foi constituída com
base em discursos hegemônicos e patriarcais que as impedem de
visualizar sua própria relevância laboral e seu papel de protagonistas
da pesca. Por isso elas se sujeitam à ideia de ser somente ajudantes
dos pescadores homens.
201

Ao provocar e incentivar as narrativas das pescadoras e ser


interlocutora dos momentos de produção dessas narrativas para o
presente estudo, compreendemos a necessidade de estabelecer uma
relação de confiança entre as partes para que o narrado apresente o
contexto que a pesquisa de fato busca, e as entrevistadas sintam-se
à vontade para se expressar livremente acerca de suas memórias.
Além de significados pessoais, essas memórias, em dados momentos,
têm também significados sociais. Ouvir as pescadoras e registrar
suas vozes ajuda-nos a entender esses sentidos. Eles emergem do
seu modo de dizer e revelam seu modo de fazer: no fazer cotidiano
dessas mulheres, parafraseando Certeau (1998), sobressai, além de
seu labor intenso, a coragem para exercer uma profissão compreen-
dida como masculina.
Para esta análise, buscamos as possibilidades com que a história
oral nos instrumentaliza, visto que, segundo Bosi (2003), essa fonte
nos concede o uso das memórias como mediadoras de pessoas e
épocas. De acordo com a estudiosa, “a memória [...] pode ser traba-
lhada como um mediador entre a nossa geração e as testemunhas
do passado”. No ato da fala, a memória é “o intermediário informal
da cultura” (p. 15). Assim, damos visibilidade às memórias das pes-
cadoras apresentando algumas histórias de mulheres que rompem
com estereótipos e conseguem, aos poucos, quebrar certas barreiras
no âmbito da pesca no Mato Grosso do Sul. Persistindo em adentrar
um território ainda marcadamente designado ao masculino, essas
mulheres demonstram aptidão e competência ao exercer a atividade
pesqueira, seja diretamente na pesca ou pilotando seus barcos e
lanchas, profissionalmente. Seu status de profissionais, garantido
pela legislação, exime-as do papel de ajudantes ligadas à sombra
dos maridos ou demais homens: são, legalmente, certificadas como
integrantes de uma categoria de trabalho.
Suas narrativas são enriquecidas ao evidenciar essas conquistas
gradativas em espaços onde antes elas eram silenciadas, tornadas in-
visíveis (Tedeschi, 2014). Em nossas interlocuções, algumas senhoras

Sumário
202

comentam que os outros olhavam-nas de modo diferente. Expressa-


vam estranheza em face daquelas mulheres “para cá e para lá no rio”,
trabalhando no meio de homens, pescando ou pilotando barcos para
turistas. Segundo seus relatos, foi nesse território, dirigindo barcos,
presidindo colônias de pesca ou exercendo a pesca comercial e/ou
turística, que encontraram sentidos múltiplos na arte pesqueira, di-
ríamos inclusive simbólicos.
O uso da história oral como ferramenta de análise metodoló-
gica possibilita o acesso a essas memórias apagadas historicamente
(Tedeschi, 2014). Das narrativas, as pescadoras começam a emergir
com força, revelando-se fortes no contexto da pesca pantaneira. Con-
quanto suas memórias abriguem sujeitos anteriormente esquecidos e
invisibilizados, essas mulheres, em conjunto, apresentam agora uma
nova perspectiva da construção histórica e social da região pantaneira,
conhecida por seus rios de grande potencial pesqueiro.

Pantanais: corpos que pescam

O Pantanal ocupa uma área de 138.183 km2, tendo o rio Para-


guai como a espinha dorsal do seu sistema de drenagem. Esse rio
corre no sentido norte-sul. Pela margem direita, recebe água dos
rios Jauru, Cabaçal e Sepotuba, e, pela margem esquerda, deságuam
nele os rios Cuiabá (com seus afluentes São Lourenço e Piquiri),
Taquari, Miranda (com seu afluente Aquidauana) e Apa. O rio Apa
delimita a Bacia do Alto Paraguai ao sul, estabelecendo a fronteira
Brasil-Paraguai (Catella, 2001, p. 2).
Ao conceituar e contextualizar o Pantanal, é preciso levar em
conta sua biodiversidade, em razão da qual optamos pelo termo
“pantanais” em detrimento do vocábulo no singular. Os diversos
pantanais formam uma área que ocupa 59,7% do estado de Mato
Grosso do Sul. Na análise das narrativas das mulheres pantaneiras,
sobretudo de suas relações familiares e comunitárias, adotamos, ao
longo deste estudo, a expressão “mulheres pescadoras dos pantanais”,
exatamente pela pluralidade desse território.
Sumário
203

A vida dos pantaneiros e pantaneiras que habitam em meio a


essa diversidade é atravessada por problemas sociais e estruturais e
pela pobreza que eles acarretam. As comunidades mais isoladas da
urbanidade sofrem ainda mais, em virtude da ausência de diversos
serviços públicos. Para suprir a carência das comunidades ribeirinhas
tradicionais, algumas entidades não governamentais, como a ONG
Ecoa,1 procuram auxiliar no trabalho de organização dessas populações.

No Pantanal, grupos isolados e comunidades enfren-


tam cotidianamente os desafios da falta de recursos e
condições básicas, como segurança territorial, saúde e
educação, entre outros fatores. A organização social e
política torna-se uma premissa básica, neste contexto,
para que essas lacunas sejam solucionadas – ou ao menos
amortizadas – e [os direitos e dinâmicas de vida dessas
comunidades] sejam respeitados. São grandes as pressões
que [elas] sofrem para permanecer nas áreas que habitam.
Há aproximadamente 25 anos a Ecoa trabalha apoiando a
organização desses grupos. (Ecoa, 21/12/2018).

Nesse processo de organização das comunidades locais, o pa-


pel das mulheres pantaneiras como lideranças femininas também
merece destaque. Essas mulheres somam “cada dia mais na renda
do núcleo familiar”, mas, ainda assim, falta-lhes “reconhecimento,
representatividade e espaço dentro das associações de moradores –
compostas predominantemente por homens”. O descontentamento
gerado por esse cenário “acabou impulsionando a organização dessas

1 O Ecoa integra o projeto Eccos: Conectando Paisajes en el Bosque Seco


Chiquitano, el Cerrado y el Pantanal de Bolívia y Brasil para la Sostenibilidad
del Desarrollo Productivo, la Conservación de sus Valores Ambientales y la
Adaptación al Cambio Climático, com o Apoio da União Europeia. Disponível
em: http://ecoa.org.br/ecoa-inicia-projeto-que-tem-o-objetivo-de-fortalecer-
governanca-das-areas-de-fronteira-cadeias-produtivas-sustentaveis-e-areas-
protegidas/. Acesso em: 18 nov. 2018.

Sumário
204

mulheres em associações próprias de produção” (Ecoa, 21/12/2018)


e transformando-as em fortes lideranças.
As mulheres recebem orientações para a organização de frentes
femininas na busca de valorização do trabalho na comunidade pes-
queira. Com o auxílio do projeto Ecoa, por exemplo, elas organizaram
assembleias gerais e, através destas, elegeram três associações de
moradoras, respectivamente, nos municípios de Corumbá, Miran-
da e Ladário, no Mato Grosso do Sul. “Não surpreendentemente,
foram empossadas três associações de mulheres, reafirmando a luta
das mulheres pantaneiras pelo reconhecimento merecido dentro
da comunidade e do Estado” (Ecoa, 21/12/2018). Tais associações
representam um movimento importante de interação entre esses
municípios e outras regiões do Brasil, e incentivam a valorização
do trabalho da mulher pescadora no país. Abaixo apresentamos a
organização das três associações.

APA Baía Negra: A Associação de Mulheres Produtoras


da APA Baía Negra está dentro de uma Área de Proteção
Ambiental em Ladário (MS). Isso fortalece tanto a
conservação da região, quanto a perspectiva [de melhores
condições de vida para] as famílias, em especial [para]
as mulheres, dentro de uma unidade de conservação de
uso sustentável.
Porto da Manga: No Pantanal, as mulheres representam
mais que 70% da categoria de pesca de iscas. Por isso,
é bastante significativo que a Associação de Mulheres
Extrativistas do Porto da Manga, composta por pescadoras
– a maioria coletoras de iscas –, esteja à frente da nova
gestão da Associação de Moradores por questões de in-
teresses comuns e específicos – que só as mulheres têm
nessa atividade tão pesada.
Porto Esperança: Em 2015, depois de intensos conflitos
socioambientais, os ribeirinhos do Porto Esperança rece-
beram seus Termos de Autorização de Uso Sustentável

Sumário
205

(TAUS), garantindo o direito histórico da comunidade de


permanecer em seu território. A Associação de Mulheres
Ribeirinhas do Porto Esperança assume neste contexto o
papel político de [lutar para] que este direito seja mantido
e seu trabalho gere mais oportunidades numa região que,
segundo elas mesmas, é abençoada. (Ecoa, 21/12/2018).

O Ecoa tem esse imprescindível papel de organizar e instrumen-


talizar as mulheres pantaneiras, ajudando-as a sair do silêncio e da
invisibilidade a que estiveram sujeitas ao longo da história do estado
sul-mato-grossense. O projeto tem “olhares para o futuro”, conforme
denota a transcrição a seguir: “Pelos próximos três anos, estas gestões
femininas estarão adiante nas representações comunitárias, em busca
de melhores perspectivas de trabalho e renda e também assumindo
o papel político em defesa dos seus territórios” (Ecoa, 21/12/2018).
Nada melhor do que ter estas mulheres nas frentes políticas, na
busca por melhorias profissionais e comunitárias.
No mundo pesqueiro, há períodos considerados como alta
temporada (agosto, setembro e outubro), em que a rotina de pesca
envolve grande parte do dia e também da noite. As pescadoras res-
saltam que é preciso aproveitar esses momentos tanto pescando para
comercialização quanto pilotando para o turista sazonal. Ouçamos
a pescadora Shirlei Aparecida da Silva, nascida no dia 22 de julho
de 1982 em São Paulo, SP, e atualmente moradora no distrito de
Salobra, na cidade de Miranda, MS. Seu comentário faz parte de
uma entrevista concedida para a produção de nossa tese Corpos
femininos: cotidiano, memória e história de mulheres pescadoras no
Pantanal Sul-Mato-Grossense (1980-2017), da qual se originou este
capítulo. A tese foi defendida no ano de 2019, por meio do Programa
de Pós-Graduação em História-UFGD.
Shirlei destaca em sua fala que, além de exercer a atividade rela-
cionada à pesca, auxilia os vizinhos nas horas vagas, levando-os em seu
carro para realizar compras no município de Miranda. Assegura que

Sumário
206

é muito feliz nessas atividades, seja no rio ou atendendo os vizinhos


como prestadora de serviços. Shirlei se encontrou na pesca profissio-
nal, está nela porque gosta e porque é o que sabe fazer atualmente.

Antes de ser pescadora, eu trabalhava na casa dos outros.


Aqui mesmo eu trabalhei bastante tempo aqui [mostra
um restaurante ao lado da sua casa], depois que fui pescar
[...]. Eu gosto, é uma coisa que eu gosto mesmo, eu não
sei fazer outras coisas. Eu gosto de pescar, sou muito feliz
mesmo, eu faço de tudo um pouco [...]. Como a pesca
está fechada agora, a gente nem para aqui: agora o pes-
soal pede para levar em Miranda, aí eu levo, eles fazem
compras, aí voltamos, mas assim, não pode parar, não é?
(Entrevista concedida na cidade de Miranda, MS, em 16
de janeiro de 2017).

Cogitando sobre a narrativa de Shirlei, trago para a reflexão a


pesquisa intitulada Lugar de mulher é em casa?: cotidiano, espaço
e tempo entre mulheres de famílias de pescadores, de Kirla Korina
dos Santos Anderson (2007, p. 32):

Entretanto, em que pese tudo isso, a atividade produtiva


[exercida pelas mulheres] é entendida, em muitos casos,
ou quase sempre nestes contextos, como “suporte” da
atividade principal do marido, o que pode ser traduzido
pela categoria “ajuda”, de que muitas vezes se utilizam
para se referir a elas, até as próprias mulheres. Implica
dizer que, ao ingressar em atividades extradomésticas, as
mulheres não deixam de lado suas obrigações com o lar.

Depreende-se da citação que as mulheres colocam-se em dois


espaços ao mesmo tempo, o da casa e o da pesca. Em certos casos,
como o da narradora Shirlei, demonstram ainda outros movimentos:
a entrevistada pesca, dirige para ajudar os conhecidos e é dona de
casa. No decurso da entrevista, Shirlei cita a cunhada, que também
“pescava muito [e] agora só trabalha na cozinha”. Nesse ponto de

Sumário
207

sua narrativa, é possível inferir que a submissão das mulheres de sua


região à diversidade de tarefas advém das necessidades cotidianas:
“esse ano não deu para pescar, [então] nós íamos catar caranguejo,
eu levava cada susto tentando pegar”.
Shirlei informa que o distrito de Salobra, onde reside, é um
local turístico, com hotéis preparados para organizar toda a pesca-
ria. Assim, ela trabalha para esses hotéis e, para não ficar “parada”
aguardando ser chamada por eles, presta serviços à comunidade.
Como pirangueira, denominação dada à mulher que pilota barcos de
pesca para atender ao turismo,2 Shirlei não só trabalha para hotéis,
mas também faz atendimentos particulares:

Eles pagam um pouco menos, depende, a gente cobra


baseado pelo hotel, a gente cobra um pouquinho menos
que o hotel, não muito menos. Pois, se o hotel cobra
R$250,00 pelo barco, motor e piloteiro, a gente já cobra
230,00, fora a gasolina, e cada um vai com um barco.

Shirlei demonstra ser empreendedora, negociando, sempre que


possível, uma diária de trabalho mais acessível que a oferecida pelo
hotel, visto que fica excluída, nesses casos, a porcentagem que ele
ganha sobre o trabalho oferecido pelas guias de pesca. É preciso ter
esse olhar em relação ao turista, afirma a entrevistada, pois, se ele for
bem-atendido, sempre que voltar, irá procurá-la, sem precisar deixar
parte de sua renda ao hotel. Um fato que transparece nas narrativas
desta mulher e nas falas de outras pescadoras é que, apesar dessas
jornadas múltiplas, elas não se sentem valorizadas.
Ao ser interrogada sobre o tema “filhos”, Shirlei responde que
tinha três filhas e que, antes delas, não pescava. Depois das filhas,
a necessidade econômica a levou a iniciar o trabalho de pescadora.
Como o esposo nem sempre conseguia atender a todos os turistas

2 Em algumas regiões brasileiras, a expressão pirangueira é aplicada de maneira


pejorativa, no entanto aqui é utilizada pela entrevistada para referir-se à profissão.

Sumário
208

que o procuravam, ela mesma decidiu que poderia exercer aquela


atividade, pois sabia fazer tudo que o ofício exigia. Shirlei conta sua
primeira experiência ao ligar o motor, um fato até desastroso, mas que
não a fez duvidar de seu potencial. Sua memória trouxe à narrativa o
choro das filhas amedrontadas, que ela carregava consigo no barco,
e a alegria de ter conseguido pegar muitos peixes naquele dia. Isso
serviu para contrabalançar suas recordações negativas.

Nesse tempo não, nessa época eu pescava só para mim,


daí o que acontecia: tinha vez que ele [o esposo] fica-
va quinze dias pescando, daí [...] aparecia turista e ele
não tinha como sair [com eles]. Eu ficava em casa. Daí
falei: “sabe de uma coisa? Eu vou pilotar [risos], como
eu tenho carteira de arrais [carteira de habilitação para
conduzir embarcações] e tudo mais, vou começar pilo-
tar”. Aí, comecei a sair e fui indo, e eu sei mexer com
coisa de pesca inteiro, eu faço o que ele faz, de tudo... É
difícil colocar o motor no barco, porque é pesado, mas,
na maioria das vezes, o barco já fica na água. Daí foi que,
quando eu comecei a pescar, foi com ela [aponta para
a cunhada]. Um dia, eu nem sabia como que era, daí o
marido da minha cunhada colocou o motor no barco e eu
desci o rio, fui pertinho aqui. Na hora que fui saindo, o
motor estava engatado e deu uma arrancada, menino do
céu! Essas meninas choravam, chorava muito, chegou a
entrar água no barco, aí quando eu ia funcionar o motor
para irmos embora, elas não queria. Eu falava: “como
nós vamos embora?” As crianças não queriam entrar no
barco, [...] até que nós conseguimos vir embora, e nesse
dia pegamos muito peixe.

Dialogando com o estudo de Leitão (2012), percebemos que


está muito presente nos relatos das mulheres pescadoras a indicação
de que as atividades domésticas e os cuidados com os filhos e o lar são
compreendidos pelos homens como trabalho exclusivamente feminino.
Aliás, muitas mulheres reproduzem esse comportamento e essa

Sumário
209

mentalidade socialmente construídos, atribuindo essas responsabi-


lidades tanto a si mesmas quanto às demais mulheres. Em outras
palavras, considera-se, de modo geral, que, se existe a necessidade
de levar os filhos para o trabalho, é a mulher quem deve levá-los, e
o mesmo vale para outros tipos de cuidados direta ou indiretamente
ligados a casa e à prole. Anderson (2007) também observa que a ati-
vidade pesqueira não isenta as pescadoras dos cuidados domésticos;
pelo contrário, elas somam jornadas de trabalho.

No exame da mobilidade ocupacional feminina, os resultados


revelam que as inserções e re-inserções são orientadas para
a complementação de renda, o que tem servido para com-
preender o desempenho de outras atividades produtivas que
não estão relacionadas com a pesca. (Anderson, 2007, p. 32).

Isso significa que, se a mulher entra para o mundo da pesca


com o intuito de gerar renda e não à procura de lazer, esta, em geral,
não é exatamente uma decisão pessoal, como se fosse sua primeira
opção ao buscar uma profissão, ou como se esta mulher acalentasse
desde cedo o sonho de exercer esse ofício. A atividade é inserida em
sua vida em virtude de outra demanda: complementar a renda de
uma família em que o homem ainda é o provedor, ou seja, o papel
da mulher pescadora é subalterno e dependente. E em decorrência
dessa subalternidade, as múltiplas tarefas, sobretudo as domésticas,
passam a fazer parte do cotidiano dessa mulher como algo natural e
inerente à figura feminina, esposa e mãe. Subjetivamente, ela assume
um papel que é, de fato, “designado” para as mulheres.
Saffioti (2004) salienta que o patriarcado é um caso emblemático
das relações de gênero vivenciadas de maneira desigual e hierárquica.
A ordem patriarcal de gênero admite a dominação e a exploração
de mulheres pelos homens, configurando a opressão feminina. No
binômio dominação/exploração da mulher, os dois polos da relação
possuem poder, mas de maneira desigual.

Sumário
210

Como qualquer fenômeno histórico, a família patriarcal


não corresponde a um modelo único de organização fami-
liar, apresentando variações ao longo do tempo e de acordo
com o lugar, porém mantendo sempre a superioridade e
o poder do patriarca em relação aos [outros membros da
família]. E esse poder masculino não se limita ao espaço
doméstico, mas se reflete na forma de organização da
sociedade como um todo. (Lima; Souza, 2015, p. 517).

Aqui observamos que, na relação de subordinação feminina, há


variações, mas em geral não são muitas as alterações no resultado
final. No caso das ribeirinhas e pescadoras, essas mulheres puderam
questionar a supremacia masculina e encontrar meios diferenciados de
resistência: “mesmo com medo, eu fui pescar” (Shirlei, na entrevista
realizada em Miranda, MS, em janeiro de 2017). O medo referido
está vinculado a uma reticência inicial, deixada pela dificuldade
de compreender como e por que adentrar um território estranho,
pertencente a outro, um local social e historicamente negado a ela,
por sua condição feminina. Talvez não se trate especificamente de
um medo do marido, um único homem, mas do receio simbólico e
social imposto como construção histórica.
A relação patriarcal continua bastante enraizada no imaginário
coletivo, pois o homem permanece no comando. Ao falarmos dos
avanços femininos, especialmente na conquista dos espaços públicos,
a mulher ainda figura como a principal responsável pelos cuidados
com o lar e com a criação dos filhos, ou seja, ainda se mantém muito
atrelada e, por vezes, restrita ao espaço privado; o espaço público,
apesar das mudanças de configuração social e do lar, segue majori-
tariamente ligado ao domínio masculino. Parece haver, em muitos
homens, uma rejeição e uma ausência proposital de assimilação da
ideia de que as funções domésticas no âmbito familiar não são ex-
clusividade das mulheres, posto que eles também compartilham esse
espaço, sendo corresponsáveis por sua construção e manutenção,
incluindo o cuidado e a educação dos filhos.

Sumário
211

Ao mesmo tempo que persistem socialmente vinculadas ao espaço


privado, as mulheres são impelidas, por diversos fatores históricos,
sociais, culturais e econômicos, a adentrar na esfera pública, porém
encontram empecilhos na conquista de espaço neste âmbito, sofrendo
discriminação, violência e descrédito. As pescadoras entrevistadas
ilustram esses aspectos. A organização estrutural de suas famílias
está alicerçada no patriarcalismo. Nas famílias pesqueiras, à mulher,
cabe os cuidados com o lar e, ao homem, os cuidados com o barco,
com os apetrechos. No entanto, não à maneira de cooperação, mas
de demarcação de espaços e papéis, de determinação do sistema
patriarcal enraizado na cultura ribeirinha. Soihet (1989, p. 169)
destaca que muitas atividades laborais realizadas por mulheres não
aparecem nos censos, e, ao consultar os órgãos oficiais do estado
pernambucano, encontramos a categoria “pescador”, ao passo que
não se contabiliza a “pescadora”.
Nesse modelo familiar, identificamos o poder simbólico con-
ferido aos homens, aquele que, na definição elaborada por Pierre
Bourdieu (2001), é incorporado implícita e subjetivamente no âmbito
das relações socioculturais. Segundo o autor, “o poder simbólico é,
com efeito, esse poder invisível [que] só pode ser conhecido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos
ou mesmo que o exercem” (p. 7-8). Ele ainda ocorre nas relações
entre indivíduos dos diferentes grupos quando os dominados com-
preendem e aceitam sua condição, isto é, naturalizam e neutralizam
sua situação de subordinação, tornando-se cúmplices, mesmo que
subjetivamente, de sua própria dominação. A dominação entre os
gêneros perpassa uma série de representações que constroem so-
cialmente os corpos num contexto social. Os discursos moldam a
estruturação dessa dominação situando e conformando os gêneros
e as sexualidades de acordo com a determinação cultural, estabele-
cendo hierarquia entre eles e fazendo que o macho se sobreponha
à fêmea (Bourdieu, 2001).

Sumário
212

Na entrevista mencionada anteriormente, o poder simbólico


pode ser localizado na atitude de uma turista que demonstra medo
de navegar em um barco pilotado por Shirlei. Afinal, o trabalho de
pilotar era natural para homens, e não para mulheres:

Há um costume com piloteiros [homens], ela nunca tinha


entrado num barco, a hora que eu entrei, assim que eu
funcionei o motor, ela disse: Não, não! Foi só no começo,
quando chegamos lá embaixo, ela se aliviou e gostou. Daí ela
começou a cantar, pegava peixe e cantava [...]. Nós pegava
peixe, foi que agora toda vez que ela vem, ela quer que eu
vou com eles, fica aqui em casa [...]. Aqui é bom de peixe,
no começo da temporada é bom de peixe, se desce lá, você
está no barco e vê [...]. Conforme a cor da água, você vê o
peixe grande em cima, conheço quando tem peixe no rio.

O trabalho desenvolvido por Shirlei carece de uma relação de


confiança, visto que não depende somente de sua desenvoltura com
a embarcação, mas também de sua agilidade diante das adversidades
vindas da natureza. No entanto, em sua fala, ela reforça que é tão
eficiente na arte pesqueira quanto seu esposo. Conhece o movimento
dos peixes, sabe onde tem peixe pela coloração e pelo cheiro da água.
Domina, enfim, todas as nuances de seu “modo de fazer”, de seu ofício,
e, com isso, conquistou o casal de turistas, que hoje são seus amigos.
Segundo Shirlei, para trabalhar na pesca, é preciso ter muita
coragem e força, e algumas pescadoras abandonam a profissão para
exercer outros ofícios. A cunhada, por exemplo, deixara a pescaria
por não se identificar com a atividade, além de ter filhos pequenos
que careciam de seus cuidados mais de perto. Entre os apuros en-
frentados na pesca, a narradora relembra um episódio com um jacaré,
momento que marca o seu rito de iniciação no ofício:

Quando eu estava aprendendo as coisas, um dia estava


pegando pacupeva, o pintado passava no canal, [o pacu-
-peva] só pegava com coador, pintado só com bicheiro,

Sumário
213

aí ele [o esposo] estava com o cilibrim [lanterna de alta


potência refletora], ele falou: “Pega ali”. Nada de pegar.
Aí que um jacaré veio, quando fui com o coador no
jacaré, só que eu não vi que era um jacaré, o jacaré veio
com tudo, aí caí no barco e ele xingou. Agora ele não
xinga mais! (Entrevista realizada em Miranda, MS, em
janeiro de 2017).

Nota-se que a inserção na pescaria não foi fácil para ela, pois
o trabalho exige um olhar criterioso que ela não possuía no início
da atividade. E mais: cada pescaria com novas turmas de turistas é
um desafio até que ela ganhe a confiança dos integrantes do grupo:

Agora, quando a gente vai pescar, quando o pessoal é novo


e não me conhece, eu fico olhando na cara deles. Quando
eu entro no barco e eles sabem que é uma mulher que
vai pilotar, eles ficam meio desconfiados, eles pensam:
“será que vai dar certo?” De repente, quando é de tarde,
que eles pegam peixe, eles me elogiam, dão os parabéns,
já pega o número, já marca outra pescaria, eles ligam e já
reserva e fala: “eu quero a Shirlei!”

Ou seja, apesar de seus anos de experiência, sua trajetó-


ria é marcada pela repetida necessidade de se provar apta e
capaz num serviço em que os turistas esperam encontrar um
homem. Na sequência de seus relatos, sua memória retoma
dois momentos que foram marcantes para sua iniciação como
piloteira, primeiramente quando o esposo a indica para um casal
de idosos (o casal de turistas já mencionado) e, depois, quando
um fazendeiro procura por um piloteiro e ela se candidata e vai
realizar a atividade, mesmo com medo: fator de empoderamento
que lhe dá coragem para iniciar-se como guia de pesca.

Um senhor da fazenda, até hoje ele vem, muito tempo, ele


chegou ali, perguntou assim se tinha como alguém pilotar
para ele. Daí a minha menina veio aqui correndo, eu falei

Sumário
214

assim: “Eu vou!” Eu acho que foi quando eu comecei a


ir, meio com medo, aí fui embora [...]. Ele vem direto,
vem o filho dele, direto ele vem, já me procura, falando:
“Shirlei, vamos pescar”.

A partir de então, seu nome ganha prestígio na região e se torna


referência entre as pescadoras, principalmente pelo seu atendimento ao
turista, em que oferece um trabalho de qualidade, segundo ela própria.

Nós sempre pescava com dois senhores, um era mudo,


um dia estava pescando ali embaixo, aí [o outro] falou
assim: “Shirlei, coloca isca, coloca alguma linha para ele,
porque, se eu colocar lambari, fica beliscando e balançando
o barco!” Eu coloquei. Quando eu coloquei, ele jogou,
ele fisgou e foi puxando, puxando, eu não aguentei, um
pacu, coloquei outra bolinha de novo, outro pacu, bolinha
de jenipapo, daí eles sempre vêm aqui e já me procura.

Com sua experiência e seu conhecimento sobre o fazer pesqueiro,


Shirlei conquista uma clientela que se torna fiel ao seu trabalho. No
entanto, não deixa de ser afetada pelas relações de poder relaciona-
das ao gênero, que ocasionaram inúmeros debates no movimento
feminista e entre estudiosas e estudiosos do tema. A propósito, é
preciso ter cautela na interpretação e abordagem dessas relações,
lembrando que Foucault (1999) retrata em suas análises uma nova
concepção de poder, desvencilhada daquela que defende que apenas
parte da sociedade o possui. E essa perspectiva parece confirmada
por determinadas reações de Shirlei quando se percebe desrespeitada
no ofício em razão de ser mulher. “Eu falo assim, aqui mesmo, se
precisarem pilotar, eles sabem de uma pessoa do Paraná que veio,
[contudo] eles vieram para eu pilotar, mas os homens começaram
com graça, aí não fui.”
Ao se sentir ameaçada, ela prefere não ir, respondendo a essa
violência com um não. A teoria geral do poder nos auxilia na com-
preensão dessas múltiplas relações entremeadas na vida cotidiana,

Sumário
215

descritas por Foucault (1999) como uma “microfísica do poder”.


Segundo ele, existe uma rede de micropoderes dos quais ninguém
está destituído. Essa contribuição teórica nos ajuda a analisar traços
de violência contra as mulheres e a entender essa gama de fatores
que perpassam as relações permeadas de violências. Melhor ainda,
indica que as mulheres não se encontram totalmente desprovidas de
poder e, no exato momento da ameaça de violência, podem fazer uso
dos mecanismos que detêm. No caso de Shirlei, conforme mencio-
nado, ela enfrentou a “graça” dos homens, disse “não vou”, e não foi.
Suas habilidades na pesca concorrem para a valorização de seu
trabalho e lhe trazem essa segurança para estar no espaço masculino
e desempenhar bem suas funções, competindo com os homens em
condições de igualdade no que diz respeito ao conhecimento de seu
“modo de fazer”. O pacu, conhecido e considerado peixe de primeira
linha, representa para os turistas um troféu, por não ser tão fácil de
se encontrar no rio e de se pescar, e, assim, com sua agilidade para
localizá-lo, Shirlei conquista seus clientes, que conseguem pescar o
tão desejável pacu-amarelinho do rio. Questionada sobre seu modo
de fazer na pescaria, responde:

Só pesco com a minha varinha assim [mostra a varinha].


Ele [o esposo] é mais chato com as coisas dele [risos].
Quando íamos pescar, ficava tudo junto, agora já tenho as
coisas separadas, minha varinha é minha, a dele é dele,
eu também não empresto minhas coisas.

Pela fala da narradora, percebe-se que, ao longo do tempo, ela


tem conquistado sua independência profissional, equipando-se com
seus próprios materiais de pesca, mesmo que subjetivamente revele
uma estreita relação com o marido ao dizer que “ele é mais chato”. Sua
autonomia sobressai quando ela diz: “também não empresto minhas
coisas”. Essa fala marca um movimento rumo à igualdade: tendo sua
própria organização dos apetrechos de trabalho, ela não abre mão
de sua conquista nem de seus equipamentos, assim como o esposo.

Sumário
216

Shirlei gosta não apenas de pilotar, como também de pescar para


comercializar o pescado. Sua residência é localizada às margens da
BR-262, o que propicia o comércio pesqueiro, principalmente, em
virtude dos caminhoneiros que por ali transitam. Durante a entre-
vista, ela descreve o modo como se deu seu empreendimento no
ramo e como se organiza na aquisição de apetrechos para melhorar
tanto no atendimento ao turismo quanto no seu dia a dia com a
venda de pescados:

Teve um tempo que só tínhamos um barquinho pequeno


[com] que nós pescávamos, o motor estragado [...]. Ele
se enfezou e largou a pesca e eu fiquei aqui. Ele pegou
um acerto e comprou um barco e eu apanhei e comprei
um motor. Parcelei e tal, fiz empréstimo pelo produtor e
aí foi que conseguimos melhorar os equipamentos. Nós
descíamos para acampar, às vezes, e o motor estragava lá
embaixo, e toda vez eu batia o motor e não funcionava,
e, quando funcionava, vinha embora... Daí foi assim,
melhorou com a compra de um novo.3

3 Nesse trecho, a narradora reporta-se a uma política que visa ampliar e


instrumentalizar a produção de pescados no Brasil, implantando linhas
de crédito para as pescadoras e os pescadores pelo Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), vinculado à Secretaria
Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (Seafda).
Esta foi uma medida bastante bem-vinda, já que antes elas/eles ficavam
“amarradas(os)” nas mãos dos atravessadores: não possuindo os instrumen-
tos de trabalho, como o barco e o motor, tinham de pescar exclusivamente
para esses intermediários. Com essa oportunidade de financiamento a juros
baixos, que variam de 0,5% até 3% ao ano e têm uma carência de até três
anos, os pequenos produtores do ramo obtêm acesso a um investimento
que equipa e qualifica o seu trabalho, gerando-lhes mais possibilidades de
renda. “Em outubro de 2012 foi lançado o Plano Safra da Aquicultura e Pesca
2012/2013/2014, instrumento que organiza as políticas governamentais e
apresenta uma série de medidas voltadas para o desenvolvimento sustentável
da cadeia produtiva da pesca e aquicultura” (Brasil, 2013, p. 3).

Sumário
217

Apesar da autonomia e da competência que se refletem na voz


da pescadora e que, certamente, estendem-se a muitas ribeirinhas do
Pantanal Sul-Mato-Grossense e a outras tantas trabalhadoras do Brasil
como um todo, as mulheres ainda não têm voz ativa na politização da
classe trabalhadora. No caso das pescadoras, mesmo exercendo cargos
como os de presidentas de colônias de pescadores(as), suas vozes e
demandas não são ouvidas no cenário público, e suas participações
são, ainda, muito pequenas. Há um descrédito no discurso masculino
acerca das conquistas que as mulheres têm alcançado. Parafrasean-
do Foucault (1999), tal descrédito pode ser analisado com base nos
mecanismos externos de controle do discurso: o discurso elabora-
do pelos homens tende a silenciar a voz das mulheres, tornando-as
invisíveis em suas ações. O filósofo supõe que

em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo


tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída
por certo número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu aconteci-
mento aleatório, esquivar sua pesada e temível materia-
lidade. Em uma sociedade como a nossa, conhecemos,
é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente,
o mais familiar também, é a interdição. Sabe-se bem
que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode
falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer
um, enfim, não pode falar de qualquer coisa. (Foucault,
1999, p. 9-10).

Na região pesquisada, o interdito materializado na voz mascu-


lina enfrenta uma ameaça disparada pelo outro lado do poder. No
discurso das mulheres pescadoras, está presente a seguinte argu-
mentação construída no imaginário social ribeirinho ao longo das
gerações: o fato de as mulheres possuírem renda própria coloca-as
em pé de igualdade com os homens e garante a elas a conquista
de direitos sociais. Em suma, estamos diante de um cenário de

Sumário
218

empoderamento4 dessas trabalhadoras, que vêm de uma ordem


social machista e patriarcal.

Para nós, feministas, o empoderamento de mulheres é


o processo da conquista da autonomia, da autodetermi-
nação. [...] um instrumento/meio e um fim em si próprio.
O empoderamento das mulheres implica, para nós, a liber-
tação das mulheres das amarras da opressão de gênero, da
opressão patriarcal. Para as feministas latino-americanas,
em especial, o objetivo maior do empoderamento das mu-
lheres é questionar, desestabilizar e, por fim, acabar com a
ordem patriarcal que sustenta a opressão de gênero. Isso
não quer dizer que não queiramos também acabar com
a pobreza, com as guerras, etc. Mas para nós o objetivo
maior do “empoderamento” é destruir a ordem patriarcal
vigente nas sociedades contemporâneas, além de assumir-
mos maior controle sobre “nossos corpos, nossas vidas”.
(Sardenberg, 2006, p. 2).

Diante dessa definição, concluímos que o empoderamento das


pescadoras pantaneiras vai além de certa autonomia financeira: elas
são mulheres empoderadas porque rompem barreiras da profissão
milenarmente dominada por homens. Em suas narrativas, há indí-

4 Nesta pesquisa, utilizamos o conceito de empoderamento refletindo nas


constantes lutas por valorização e reconhecimento de gênero no campo do
trabalho, da independência financeira e das conquistas documentais e de
direitos. Conforme o programa Estudos Interdisciplinares de Comunidades e
Ecologia Social, o empoderamento contempla uma construção da consciência
crítica pelo sujeito em seus contextos natural, social, cultural, político
e de vivência. Esta consciência deve estar integrada à ação, isto é, ao
“desenvolvimento da capacidade real de intervenção e transformação da
realidade”. O empoderamento não é uma simples capacidade de atuação
em diferentes âmbitos da vida social, profissional etc., mas está diretamente
ligado à aquisição de poder, que só ocorrerá mediante essa articulação entre
consciência e ação. Esse conceito vai além de um processo de emancipação
individual, pois envolve uma consciência coletiva. Disponível em: http://
www.eicos.psycho.ufrj.br/anexos/port_empod.htm. Acesso em: 15 out. 2016.

Sumário
219

cios dessa libertação, mesmo que muitas ainda não os vejam; há


transformações significativas para as mulheres, a exemplo da carteira
profissional de pesca e do acesso aos benefícios que a categoria lhes
pode proporcionar.
As mudanças apontadas não se restringem ao Pantanal Sul-
-Mato-Grossense, mas irradiam-se pelo Brasil inteiro. Scherer (2013)
destaca que, por todo o país, as mulheres buscam as agências do
Registro Geral da Pesca nas colônias de pescadores(as) para obter
suas carteiras de pescadoras profissionais artesanais. Essa é uma
iniciativa elementar visando o cumprimento dos direitos trabalhistas
e previdenciários assegurados pela Constituição Federal de 1988. E,
como resultado da luta por mais direitos, no decorrer do ano de 1991,
foi promulgada a Lei nº 8.287, que concede aos(às) pescadores(as)
artesanais os benefícios do seguro-desemprego na época de defeso
(Brasil, 1991). Essa política está intrinsecamente ligada à equiparação
dos direitos das trabalhadoras rurais aos das trabalhadoras urbanas.
Quando analisamos as narrativas e os debates relacionados a
determinadas categorias de trabalho, observamos que a tendência
deles empiricamente é a excludente, no entanto, avaliando as polí-
ticas públicas e o contexto inerentes a estas categorias, percebemos
que tudo depende de quem está conduzindo o discurso e com que
interesse o está fazendo. Em relação aos enunciados de represen-
tação da Colônia Z-10/Itapissuma, notamos um discurso organizativo,
porém, na prática cotidiana da Colônia, não é assim tão simples, pois
o lugar de onde é organizada e representada a categoria é um lugar
de poder. As normas da categoria são elaboradas pelo poder público,
cujas lideranças delimitam os traços que compõem a “verdadeira pes-
cadora”. Analisam se a atividade da pesca é a principal fonte de renda
das pescadoras, se pescam embarcadas ou no barranco e, quando
são guias de pesca, se conhecem os equipamentos desse trabalho, se
vêm de famílias de pescadores. No entanto, o decreto que procura
caracterizar as “pescadoras de verdade” desconhecia a realidade das
pescadoras profissionais, que exercem atividades pesqueiras e ligadas

Sumário
220

à pesca, como a produção artesanal de equipamentos de pescaria,


a coleta de iscas em lagoas e manguezais, entre outras atividades.
Num contexto geral, concordamos com Cabral, Stadtler e Do
Carmo (2010), segundo as quais essas mulheres exercem a profis-
são, mas necessitam da tutela dos maridos para serem profissionais
reconhecidas. A primeira questão que se levanta no processo de
concessão da carteira profissional de pescadora, até mesmo na pri-
meira esfera, que é a colônia de pesca, é se a requerente é esposa,
filha ou irmã de pescador.

Considerações finais

A atuação profissional das mulheres da Colônia Z-10 como guias


de pesca e na pesca em geral é uma forma alternativa de resistir e
lutar pelas condições dignas de vida e de trabalho da/na pesca. Es-
sas mulheres sempre estiveram no ofício, porém sendo vistas como
secundárias, como meras ajudantes de seus esposos, pais ou irmãos,
mas atualmente não se subordinam mais a isso; querem mostrar a
importância da atividade pesqueira em suas vidas e, assim, buscam
meios de (re)conquistar o direito de exercê-la com plenitude de pos-
sibilidades materiais e subjetivas, e em total contato com a natureza
e com a urbanidade.
O lugar das pescadoras representa o mundo vivido, os lugares
de realização da vida. Em seu ambiente de atuação profissional, elas
se percebem como genuínas integrantes do mundo da pesca. A per-
cepção de si no ser humano é entendida como uma “ação humana de
compreensão do mundo, que se dá no momento em que o homem
vai ao mundo, se ver no mundo, se construindo com ele”. (Nogueira,
2014, p. 79). Ou seja, cada pescadora se constrói no mundo da pesca
carregando-se de significados simbólicos reais e imaginários. Cada
uma concebe um mapa mental que “é a representação da forma como
o homem percebe, representa, descreve e vive o lugar” (Nogueira,
2014, p. 103).

Sumário
221

Analisando o espaço das mulheres pescadoras sob um viés fe-


nomenológico, procuramos entender como elas se relacionam com
o Pantanal, como vivem suas experiências nos lugares da pesca, na
coleta de iscas e em outras ações cotidianas. Em nossas interlocuções,
elas demonstraram idealizar uma representação romântica do lugar,
referindo-se a ele como belo, o local da verdadeira felicidade, entre
outros adjetivos utilizados para destacar que vivem num lugar mara-
vilhoso. Esse espaço bucólico e repleto de adversidades representa,
para elas, o próprio sentido da vida e da sobrevivência.

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cotidiano, espaço e tempo entre mulheres de famílias de pescadores.
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artesanais, durante os períodos de defeso. Disponível em: https://
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CABRAL, D. M.; STADTLER, Hulda; DO CARMO, Lyvia Tavares.


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Sumário
222

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TEDESCHI, Losandro Antônio. Alguns apontamentos sobre história


oral, gênero e história das mulheres. Dourados, MS: Ed. UFGD,
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Sumário
GÊNERO E FEMINISMOS COMO
TEORIA/PRÁTICA DE RESISTÊNCIA NO
CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Vivian da Veiga Silva

Introdução

Nascer mulher significa estar sujeita a processos de dominação,


exploração e subalternização, variando a intensidade e as peculiari-
dades de sociedade para sociedade. A vivência e a experiência das
mulheres são marcadas por um contínuo processo de superação de
obstáculos, de desconstrução de valores e normas, e de busca in-
cessante pela autodeterminação. E esse processo não é individual;
a luta pelas pautas e demandas femininas é um ato coletivo movido
pelo desejo de alcançar uma realidade social livre das desigualda-
des de gênero, das múltiplas violências, das cobranças sociais e dos
estereótipos femininos. Mas, para tanto, precisamos compreender
a emergência e o desenvolvimento histórico dos feminismos como
estratégia social, cultural e política que visa estabelecer uma nova
ordem social pautada em valores igualitários, humanitários, não
sexistas e não racistas.
Os feminismos emergem simultaneamente como prática de
mudança social e como teoria para a compreensão e transformação
da realidade social. A categoria de gênero constitui uma importante
ferramenta teórica feminista, que permite levar para o campo científico
as discussões iniciadas nos movimentos e nas organizações sociais.
224

Longe de ser uma categoria científica neutra, gênero é um produto


das lutas políticas levadas a cabo pelos movimentos feministas.
Na contemporaneidade brasileira, percebe-se a proliferação dos
debates sobre gênero e feminismos, tanto nos espaços acadêmicos
e nas organizações sociais, quanto nas redes sociais. No entanto,
também é perceptível um processo de demonização e de banalização
dessas categorias, em um imaginário social de crescente conservado-
rismo religioso e de ascensão da ignorância como prática cultural que
nega os valores científicos. Por meio da construção de estereótipos e
da deturpação dessas categorias, os setores conservadores da socie-
dade brasileira se movem para consolidar um discurso que invalide
a cientificidade das discussões acerca da temática de gênero e des-
qualifique as pautas dos movimentos feministas, em clara tentativa
de manutenção da ordem patriarcal e heteronormativa.
Diante disso, o objetivo central do presente capítulo é apresentar
o processo de desenvolvimento histórico dos feminismos e discorrer
sobre o afloramento e a consolidação da categoria gênero no campo
acadêmico. Assim retomamos o percurso de construção histórica
dessas duas categorias como forma de resistir à sua banalização e
simplificação e de compreender a sua devida importância para o campo
social e para o campo científico. Nessa direção, partimos das res-
pectivas conceitualizações na tentativa de elaborar uma reflexão sobre
o significado de resistência dentro da ótica foucaultiana, relacionando
gênero e feminismos às ações e práticas contra os diversos poderes
instituídos, tanto na sociedade quanto na área das Ciências Sociais.

O percurso histórico dos feminismos

Qualquer proposta de desmistificação de uma temática e de


fixação dos reais conceitos que a compõem deve iniciar sua reflexão
entendendo quais discursos emergem no imaginário social e no senso
comum acerca desse tema. No caso deste estudo, pode-se questionar:
o que o senso comum pensa sobre o feminismo? Qual é o discurso

Sumário
225

que circula cotidianamente na discussão desse movimento social?


Chimamanda Adichie (2015, p. 14-15) nos traz um exemplo para-
digmático do posicionamento comum a respeito do assunto: “A femi-
nista odeia os homens, odeia sutiã, odeia a cultura africana, acha que as
mulheres devem mandar nos homens; ela não se pinta, não se depila,
está sempre zangada, não tem senso de humor, não usa desodorante”.
Em seu importante texto sobre o feminismo contemporâneo,
Adichie denuncia que as pessoas em geral (homens e mulheres) pos-
suem uma visão equivocada das práticas feministas, atribuindo-lhes
representações sociais pejorativas em uma tentativa de desqualifi-
cação. A autora indica também que a recusa em admitir a relevância
do termo feminista é uma estratégia para não reconhecer as desigual-
dades entre homens e mulheres dentro das mais diversas sociedades:

Algumas pessoas me perguntam: “Por que usar a palavra


‘feminista’? Por que não dizer que você acredita nos direitos
humanos, ou algo parecido?” Porque seria desonesto. O fe-
minismo faz, obviamente, parte dos direitos de uma forma
geral – mas escolher uma expressão vaga como “direitos
humanos” é negar a especificidade e particularidade do
problema de gênero. Seria uma maneira de fingir que as
mulheres não foram excluídas ao longo dos séculos. Seria
negar que a questão de gênero tem como alvo as mulheres.
Que o problema não é ser humano, mas especificamente
um ser humano do sexo feminino. Por séculos, os seres
humanos eram divididos em dois grupos, um dos quais
excluía e oprimia o outro. É no mínimo justo que a solução
para esse problema esteja no reconhecimento desse fato.
(Adichie, 2015, p. 42-43).

Dentro dessa perspectiva, portanto, feminista é uma pessoa que


acredita na igualdade social, política e econômica entre homens e
mulheres e defende essa igualdade. Remetendo à definição dada
por bell hooks (2019), o feminismo pode ser entendido como um
movimento de busca pela igualdade e pela superação do sexismo,

Sumário
226

da exploração sexista e da opressão, visando estabelecer uma ampla


transformação social. Diante da abrangência do termo, é importante
deslindar o processo histórico de surgimento e consolidação dessa
organização coletiva.
Em um primeiro momento, podemos conceituar feminismo (no
singular) como um fenômeno social, cultural e político que desponta
na Europa em meados do século XVIII e ganha força nos períodos
subsequentes. A origem do feminismo remonta à percepção de que
homens e mulheres não desfrutavam dos mesmos direitos sociais, o que
levou à reivindicação por igualdade, conforme exemplificado na obra
de Mary Wollstonecraft (2016), em que a autora defende a igualdade
de educação e de oportunidades para homens e mulheres. Essa forma
de contestação social se espalhará por diversas regiões ao redor do
mundo a partir do século XIX, passando por inúmeras transformações.
Um dos pontos centrais desta primeira fase do feminismo é a
discussão sobre a ideia de identidade, conforme indica Piscitelli
(2009, p. 134):

O reconhecimento político das mulheres como coletividade


ancora-se na ideia de que o que une as mulheres ultra-
passa em muito as diferenças entre elas. Isso criava uma
“identidade” entre elas. A base para essa identidade inclui
traços biológicos e, também, aspectos sociais, efeitos da
dominação masculina. A opressão patriarcal estabeleceria
uma conexão entre todas as mulheres, através do tempo
e das culturas. As feministas afirmaram que todas as mu-
lheres sofriam opressão. Essa afirmação era justificada ao
se definir de maneira particular a opressão. Segundo elas,
era necessário prestar atenção às experiências femininas:
a opressão incluiria tudo o que as mulheres “experiencias-
sem” como opressivo. Ao definir o político de tal maneira
que acomodasse essa concepção de opressão, toda ativi-
dade que perpetuasse a dominação masculina passou a
ser considerada política. Nesse sentido, a política passa a
envolver qualquer relação de poder, independentemente
de estar ou não relacionada com a esfera pública.

Sumário
227

Com base nessa argumentação, é possível elaborar a contestação


dos papéis atribuídos às mulheres, que são pautados em um determi-
nismo biológico por meio do qual se tenta justificar a subordinação
feminina tendo em conta pretensos critérios fisiológicos (menor força
física e compulsoriedade da maternidade) e mentais (emoção em
detrimento da razão), fortemente repudiados por diversos estudos
científicos. Ainda com base no enunciado acima, pode-se colocar,
então, como objetivo a compreensão de que os papéis sociais são
construções sociais, culturais e históricas, o que possibilita a busca
de outra forma de organização da realidade social capaz de enfrentar
as desigualdades entre homens e mulheres, garantindo a autodeter-
minação feminina.
Até a década de 1960, o feminismo concentrou suas discussões
em três aspectos básicos: a superação de ideias essencialistas sobre
as mulheres, uma vez que essas ideias impediam-nas de acessar
plenamente os direitos sociais, como educação, mercado de trabalho
e sistema eleitoral; a redefinição dos papéis sociais femininos; e a
formulação de políticas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres. Não somente nesse feminismo inicial, mas também
no atual, é notável a expressividade da ideia de patriarcado como um
sistema social de opressão gerenciado por homens contra as mulheres
e vivido de forma comum por todas as mulheres ao redor do mundo.
No Brasil, já em meados do século XIX, percebe-se a eclosão das
pautas feministas no país, tendo como marco a publicação de Direitos
das mulheres e injustiça dos homens, em 1832, de autoria de Nísia
Floresta, grande defensora dos direitos femininos no país. No ano de
1922, ocorre o I Congresso Internacional Feminista, organizado pela
Federação Brasileira para o Progresso Feminino, fundada em 1921.
Na sequência desse congresso, surgem as primeiras movimentações
em prol do voto feminino, que passa a ser obrigatório somente em
1946, consolidando-se como um importante ganho político do mo-
vimento feminista brasileiro (Blay; Avelar, 2017).

Sumário
228

No decorrer do século XX, essa organização coletiva ganha


destaque e relevância social e política, aprofundando as pautas e
as demandas. Entre os ganhos auferidos pelo movimento, estão a
participação feminista nas lutas democráticas, tanto no enfrenta-
mento da ditadura militar quanto no processo de redemocratização;
o envolvimento nas questões trabalhistas; o enfrentamento da vio-
lência contra as mulheres, alcançando leis específicas de proteção e
delegacias especializadas; o empenho para a visibilidade de mulheres
negras, periféricas e campesinas. Todas as políticas públicas voltadas
às mulheres brasileiras, assim como os mecanismos específicos de
proteção a elas, são frutos da luta das feministas brasileiras perten-
centes às mais diversas organizações coletivas (Blay; Avelar, 2017).
Dessa forma, seja no plano nacional ou mundial, podemos com-
preender o feminismo como uma estratégia comunitária que busca,
com êxitos e fracassos, a transformação social, cultural e política,
conforme indica Fraser (2019, p. 27):

Dizem, frequentemente, que o sucesso relativo do movi-


mento na transformação da cultura contrasta nitidamente
com seu relativo fracasso na transformação das instituições.
Essa avaliação tem duplo sentido: por um lado, os ideais
feministas de igualdade de gênero, tão controversos nas
décadas anteriores, agora são populares e fazem parte do
imaginário social, por outro lado, eles ainda têm que ser
colocados em prática. Assim, as críticas feministas sobre,
por exemplo, o assédio sexual, tráfico de mulheres e de-
sigualdade salarial, que pareciam revolucionárias pouco
tempo atrás, são princípios amplamente apoiados hoje;
contudo, essa mudança drástica de comportamento no nível
das atitudes não eliminou, de forma alguma, tais práticas.

Pelas reflexões de Fraser, é possível visualizarmos a influência


do feminismo para a aquisição de direitos sociais e para a fixação de
valores e normas mais igualitárias. No entanto, também se percebe

Sumário
229

que esse movimento contestatório ainda precisa se empenhar na


garantia de mudanças mais amplas e contundentes. E é justamente
nessa perspectiva que podemos situar o segundo momento do per-
curso histórico do feminismo.
A partir da década de 1960, inicia-se um processo crítico no seio
do movimento feminista, denunciando a invisibilidade e o silencia-
mento de mulheres negras, terceiro-mundistas, lésbicas, trabalhadoras
e pobres. A crítica elaborada por essas mulheres é que o feminismo
clássico, que passa a ser denominado hegemônico, centrava suas
pautas nas demandas de mulheres brancas, eurocentradas, heterosse-
xuais e pertencentes às elites, não estendendo as reivindicações para
as reais necessidades das mulheres que apresentavam determinadas
especificidades, conforme indica Carneiro (2019, p. 318):

A origem branca e ocidental do feminismo estabeleceu


sua hegemonia na equação das diferenças de gênero e
tem determinado que as mulheres não brancas e pobres,
de todas as partes do mundo, lutem para reintegrar em
seu ideário as especificidades raciais, étnicas, culturais,
religiosas e de classe social. Até onde as mulheres brancas
avançaram nessa questão?

Em face desse cenário, o feminismo deixa de ser uma categoria


monolítica e unívoca, passando a ser apresentado no plural para
abranger as diversas vivências e experiências femininas. Sobre essa
questão, Lorde (2019, p. 245) destaca:

Como uma lésbica feminista negra, confortável com os


diversos ingredientes de minha identidade, e uma mulher
comprometida com a liberdade racial e sexual, vejo que
sempre estou sendo encorajada a arrancar algum aspecto
de mim mesma e mostrar esse aspecto como sendo o todo
significativo, eclipsando ou negando as outras partes do
eu. Mas essa é uma maneira destrutiva e fragmentada de

Sumário
230

viver. Só disponho de toda a minha energia concentrada


quando integro todas as partes de quem eu sou.

Pelo exposto, é impossível pensarmos um movimento feminista


unificado e capaz de padronizar suas reivindicações ou de homo-
geneizar a identidade feminina. Essa identidade deve sempre ser
pensada como multiplicidade, abarcando as mais diversas formas
de ser mulher nas mais diversas sociedades. Nessa perspectiva, a
ideia de patriarcado como fenômeno universal e homogêneo passa
a ser igualmente repensada e criticada, conforme indica Piscitelli
(2009, p. 135-136):

O conceito de patriarcado, útil do ponto de vista da mobi-


lização política, colocou sérios problemas no que se referia
às particularidades da condição feminina em diferentes
lugares e épocas. [...] [Ele] foi estendendo-se no discurso
político e na reflexão acadêmica, sem que fossem trabalhados
aspectos centrais de seus componentes, sua dinâmica e seu
desenvolvimento histórico. Com o decorrer do tempo, o pa-
triarcado passou a ser um conceito quase vazio de conteúdo,
nomeando algo vago que se tornou sinônimo de dominação
masculina, um sistema opressivo tratado, às vezes, como
se tivesse uma natureza imutável. Assim, o conceito trouxe
problemas delicados em termos metodológicos.

Na atualidade, temos um significativo resgate da definição de pa-


triarcado por autoras feministas como Rita Segato (2018), que constrói
uma concepção historicizada desse sistema opressor, compreendendo-o
como um elemento detentor de características diferentes em sistemas
culturais diferentes, e não como algo unificado e homogêneo. Na opi-
nião da autora, suprimir o conceito de patriarcado traz o grande risco
de invisibilizar as práticas e as instituições que oprimem as mulheres.
Melhor seria tratá-lo como um sistema que apresenta muitas facetas
e variações culturais no decorrer da história humana.

Sumário
231

Também é importante trazer à discussão a ideia da interseccio-


nalidade, que permite enfatizar os diferentes graus de opressão que
as mulheres sofrem de acordo com suas especificidades: classe social,
raça, etnia etc. A interseccionalidade impulsiona os movimentos
feministas a considerar em toda e qualquer de suas pautas os mais
diversos aspectos que compõem a identidade feminina. Dessa forma,
compreendemos que o patriarcado não age sozinho, mas se associa a
outras práticas opressoras, como o racismo e a colonialidade, operando
de várias formas em conformidade com as especificidades das mulheres.
Com o processo de autocrítica do feminismo, o movimento se
abre para múltiplas maneiras de ser feminista, buscando abranger
a diversidade identitária feminina. Nesse transcurso, ele passa por
uma espécie de desmembramento desencadeado pelas críticas ao
feminismo hegemônico – branco, heterossexual, elitizado e eurocen-
trado –, surgindo então os feminismos: o feminismo negro, que busca
visibilizar a opressão sofrida pelas mulheres negras; o feminismo
indígena, que denuncia a invisibilidade e a opressão das mulheres
indígenas; o feminismo lésbico, centrado nas opressões contra as
mulheres lésbicas; o transfeminismo, que luta pelo enquadramen-
to das mulheres transexuais na categoria de mulher; o feminismo
terceiro-mundista e decolonial, que busca superar as desigualdades
coloniais, entre outros.
Esses exemplos demonstram o quanto os movimentos feministas
contemporâneos estão preocupados em incluir todas as vivências e
todas as experiências femininas, garantindo que as mais variadas
pautas sejam atendidas. Para Carneiro (2015, p. 247),

as ações na sociedade e no pensamento, ou seja, os fe-


minismos, entendidos como instrumento e efeito dos
movimentos sociais e das críticas epistemológicas, pro-
curam retirar das sombras e do silêncio a construção das
desigualdades de gênero, a divisão binária, histórica e
política da sociedade. Assim, procuram mostrar os dis-

Sumário
232

positivos de produção e naturalização das identidades


sexuadas, reconhecer as formas históricas de operação
da cultura androcêntrica, para pensar e reconstruir, para
além da desigualdade construída, a multiplicidade de
experiências humanas em outros termos. Sugere-se o
uso do termo no plural – feminismos – para se dar a ler e
conhecer o conjunto diverso de experiências e acepções
possíveis que remetem ao enunciado.

Esses movimentos feministas de contestação dos mais numerosos


tipos de opressão e de desigualdade possibilitaram uma vivência femi-
nina mais autônoma e plena, muito embora ainda persistam inúmeras
ocorrências que buscam garantir a ordem patriarcal e o mandato da
masculinidade: violência física e simbólica, disparidade salarial, negação
de direitos sexuais e reprodutivos, dificuldades no acesso à educação e
renda, limitação da representatividade política, entre outros exemplos.
Tudo isso apenas reforça a importância dos feminismos e aponta a
razão pela qual os setores conservadores brasileiros procuram construir
discursos para a deslegitimação desses movimentos.
Os feminismos forjaram teorias, conceitos e categorias para
pautar suas discussões, concebidas para contestar os essencialismos
biológicos e as opressões sofridas, e ajudar a compreender as vivên-
cias e as experiências femininas. Sobre as especificidades da teoria
feminista, Harding (2019, p. 99) questiona:

Como poderemos, então, construir uma teoria feminista


adequada ou mesmo diversas teorias, pós-modernas ou
não? Onde iremos encontrar conceitos e categorias ana-
líticas livres das deficiências patriarcais? Quais serão os
termos apropriados para dar conta do que fica ausente,
invisível, emudecido, que não somente reproduzam, como
uma imagem de espelho, as categorias e projetos que mis-
tificam e distorcem os discursos dominantes? Mais uma
vez, há dois modos de encarar essa situação. Por um lado,
podemos usar a força da razão e da vontade, modeladas

Sumário
233

pelas lutas políticas, para reunir o que vemos diante de


nossos olhos na vida e na história contemporâneas numa
imagem conceitual clara e coerente, usando parte de um
discurso aqui, outro ali, improvisando de modo criativo
e inspirado, e revendo assiduamente nossos esquemas
teóricos enquanto continuamos a descobrir outros an-
drocentrismos nos conceitos e nas categorias que viemos
utilizando. Podemos, então, voltar nossas atenções para
a instabilidade das categorias analíticas e a falta de um
esquema permanente de construção das explicações [...].
Por outro lado, é possível aprender a aceitar a instabilida-
de das categorias analíticas, encontrar nelas a desejada
reflexão teórica sobre determinados aspectos da realidade
política em que vivemos e pensamos, usar as próprias
instabilidades como recurso de pensamento e prática.
Não há “ciência normal” para nós!

Essa postura deixa nítido que os feminismos se colocam simul-


taneamente como prática e teoria, constituindo-se como movimento
social e área de estudos. Para tanto, as teóricas feministas construíram
conceitos e categorias que estão intrinsecamente conectados com
os debates cotidianos dos movimentos sociais, associando estudo
acadêmico e prática política. Para nós, o maior exemplo dessa fusão
foi a elaboração e o desenvolvimento da categoria gênero.

Gênero: uma categoria analítica e política

Na contemporaneidade brasileira, o senso comum e conservador


compreende o termo gênero como uma ideologia que visa perturbar
as identidades sexuais e desestruturar as famílias. Os discursos
construídos sobre a ideologia de gênero a entendem como uma teo-
ria que afeta a integridade familiar ao questionar o poder masculino
e que, por discutir sexualidades dissidentes, desvirtua crianças e
adolescentes. No entanto, tal como se dá no caso dos feminismos,
ao interrogarmos o real sentido e o processo de elaboração da teoria

Sumário
234

dos gêneros, fica perceptível que se trata de uma tentativa teórica e


política de desconstruir os essencialismos biológicos, que legitimam
as desigualdades entre homens e mulheres, e de compreender os
papéis sociais masculinos e femininos como construções sociais,
culturais e históricas.
É certo que homens e mulheres são biologicamente diferentes,
mas isso não é justificativa para tornar as relações sociais desiguais
entre esses dois elementos. De onde brota a desigualdade entre
homens e mulheres? Essa questão incitou debates e reflexões entre
as teóricas feministas, sobretudo até meados do século XX. Elas
buscaram definir em termos teóricos e científicos o ponto de origem
da opressão e da submissão feminina, o que resultou na formulação
do conceito de gênero.

Quando as distribuições desiguais de poder entre homens


e mulheres são vistas como resultado das diferenças, tidas
como naturais, que se atribuem a uns e outras, essas de-
sigualdades também são “naturalizadas”. O termo gênero,
em suas versões mais difundidas, remete a um conceito
elaborado por pensadoras feministas precisamente para
desmontar esse duplo procedimento de naturalização
mediante o qual as diferenças que se atribuem a homens e
mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções
naturais, e as desigualdades entre uns e outras são per-
cebidas como resultado dessas diferenças. Na linguagem
do dia a dia e também das ciências a palavra sexo remete
a essas distinções inatas, biológicas. Por esse motivo, as
autoras feministas utilizaram o termo gênero para referir-se
ao caráter cultural das distinções entre homens e mulheres,
entre ideias de feminilidade e masculinidade. (Piscitelli,
2009, p. 119, grifo da autora citada).

A percepção de que as desigualdades são construídas socialmente,


culturalmente e historicamente já está presente nas obras de algumas
teóricas do início do século XX, como da antropóloga estadunidense

Sumário
235

Margareth Mead, que, na década de 1930, problematizou a fixidez


da ideia de masculinidade e de feminilidade, e da filósofa francesa
Simone de Beauvoir, autora de uma contundente crítica elaborada
no final de 1940 contestando os aspectos sociais que determinavam
o papel social da mulher. No entanto, o termo gênero ainda não era
utilizado no século XX, aparecendo pela primeira vez na década de
1960, no campo da psicologia, para pensar o componente cultural
da identidade sexual e biológica. As formulações de gênero que
realmente impactaram as Ciências Sociais foram arquitetadas por
algumas teóricas feministas na segunda metade da década de 1980,
segundo Veiga e Pedro (2015, p. 304-305):

O conceito gênero, no sentido político que se conhece


na atualidade, surgiu com força na segunda metade dos
anos 1980, tendo sido construído coletivamente e de
modo desafiador pela colaboração de algumas teóricas do
feminismo, que percebiam a vulnerabilidade dos termos
mulher ou mulheres, ao trazerem em seu bojo uma força
de legitimação apoiada no corpo biológico desses sujeitos.
Gênero buscaria então dar conta de relações socialmente
constituídas, que partem da contraposição e do questiona-
mento dos convencionados gêneros feminino e masculino,
suas variações e hierarquização social.

Dessa forma, compreendemos que a definição de gênero está


intrinsecamente ligada aos movimentos feministas, conforme salienta
Piscitelli (2009, p. 125, grifo da autora citada):

Esse movimento social, que buscava para as mulheres


os mesmos direitos dos homens, atuou decisivamente na
formulação do conceito de gênero. As feministas utilizaram
a ideia de gênero como diferença produzida na cultura,
mas uniram a essa noção a preocupação pelas situações
de desigualdade vividas pelas mulheres [...]. Foi, portanto,
a partir de uma luta social que surgiu uma contribuição
teórica fundamental para o pensamento social. Nessa

Sumário
236

elaboração, aspectos presentes na longa história de rei-


vindicações feministas, relativos à dominação masculina,
articularam-se a noções teóricas que procuravam mostrar
como as distinções entre feminino e masculino são da
esfera do social.

Para Scott (1995), a receptividade da teoria de gênero nos meios


acadêmicos se deve à percepção de que esse é mais palatável e neutro
– menos político – do que a ideia de feminismo, considerado polí-
tico demais. No entanto, ela salienta que só é possível a elaboração
dessa categoria por meio dos embates pautados pelos movimentos
feministas. Portanto, gênero é uma categoria que traz em si a luta
política e o questionamento das dinâmicas sociais entre mulheres e
homens dentro das sociedades.
Retomando o percurso histórico da categoria de gênero, em
1975, a antropóloga estadunidense Gayle Rubin publicou o ensaio
Tráfico de mulheres: notas sobre a economia política do sexo, no
qual utiliza essa concepção para problematizar a diferença sexual.
De acordo com Piscitelli (2009, p. 137, grifo da autora citada),

inserindo-se no debate sobre a natureza e as causas


da subordinação social da mulher, Rubin elaborou um
conceito que denominou sistema sexo/gênero. Segundo
a autora, esse sistema é o conjunto de arranjos através
dos quais uma sociedade transforma a sexualidade bioló-
gica em produtos da atividade humana. Perguntando-se
sobre as relações sociais que convertem as “fêmeas” em
“mulheres domesticadas”, a autora localiza essa passa-
gem no trânsito entre natureza e cultura, no espaço da
sexualidade e da procriação.

Embora a discussão proposta por Rubin tenha obtido ampla


repercussão no campo acadêmico, a categoria gênero passará a ser
utilizada com mais expressividade a partir de 1986, após a publicação

Sumário
237

do artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, da histo-


riadora norte-americana Joan Scott. Para a autora, gênero é o signifi-
cado social e cultural atribuído ao caráter biológico, podendo incluir
o sexo, mas não sendo diretamente determinado por ele. Constitui
uma categoria analítica que nos permite visualizar como as relações
humanas funcionam. Ainda de acordo com a historiadora, gênero pode
ser compreendido como “um elemento constitutivo de relações sociais
baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e [...] é uma forma
primeira de significar as relações de poder” (Scott, 1995, p. 86). Essas
relações, por sua vez, são manifestas no plano simbólico, nos conceitos
normativos expressos nas mais diversas doutrinas, como a religiosa,
educativa, científica, política ou jurídica, tomando a forma típica de
uma oposição binária fixa. Também são evidenciadas na construção de
identidades subjetivas. Pelo exposto, as relações de poder dentro das
nossas sociedades se constroem primariamente por meio das relações
desiguais entre homens e mulheres.

Estabelecidos como um conjunto objetivo de referên-


cias, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a
organização concreta e simbólica de toda a vida social.
Na medida em que essas referências estabelecem distri-
buições de poder (um controle ou um acesso diferencial
aos recursos materiais e simbólicos), o gênero torna-se
implicado na concepção e na construção do próprio poder.
(Scott, 1995, p. 88).

Portanto, para Scott, gênero é, antes de tudo, uma categoria analí-


tica que nos permite visualizar como as relações humanas funcionam,
sendo estritamente relacional. Ou seja, adotamos esse conceito para
analisar a maneira como cada sociedade e cada contexto histórico
constroem formas específicas de masculinidade e de feminilidade, se
o fazem fundamentados em relações igualitárias ou hierarquizadas,
ou na distribuição de poder.

Sumário
238

Embora a conceitualização de Scott seja um importante divisor


de águas nos estudos feministas, é necessário reconhecer que a ca-
tegoria gênero não é unívoca, ou seja, não tem um significado único
nesse campo científico, conforme aponta Saffioti (2015, p. 47, grifo
da autora citada):

Gênero também diz respeito a uma categoria histórica,


cuja investigação tem demandado muito investimento
intelectual. Enquanto categoria histórica, o gênero pode
ser concebido em várias instâncias: como aparelho semió-
tico (Lauretis, 1987); como símbolos culturais evocadores
de representações, conceitos normativos; como grade de
interpretação de significados, organizações e instituições
sociais, identidade subjetiva (Scott, 1988); como divisões
e atribuições assimétricas de características e potencia-
lidades (flax, 1987); como, numa certa instância, uma
gramática sexual, regulando não apenas relações homem-
-mulher, mas também relações homem-homem e relações
mulher-mulher (Saffioti, 1992, 1997b; Saffioti e Almeida,
1995) etc. Cada feminista enfatiza determinado aspecto
do gênero, havendo um campo, ainda que limitado, de
consenso: o gênero é a construção social do masculino
e do feminino.

Saffioti nos alerta, também, para a necessidade de conciliar


as categorias patriarcado e gênero, justamente para garantir que as
especificidades das mulheres não se percam no campo maior dos
estudos de gênero e que as relações de exploração-dominação mas-
culina não sejam mascaradas. Essas relações precisam ser expostas
e combatidas, pois, como a autora conclui juntamente com Suely
Souza de Almeida, elas dão lugar à emergência e à continuidade das
práticas violentas contra os corpos femininos:

O gênero constitui uma verdadeira gramática sexual nor-


matizando condutas masculinas e femininas. Concreta-
mente, na vida cotidiana, são os homens, nesta ordem

Sumário
239

social androcêntrica, os que fixam os limites da atuação


das mulheres e determinam as regras do jogo pela sua
disputa. Até mesmo as relações mulher-mulher são nor-
matizadas pela falocracia. E a violência faz parte integrante
da normatização, pois constitui importante componente
de controle social. Nestes termos, a violência masculina
contra a mulher inscreve-se nas vísceras da sociedade
com supremacia masculina. Disto resulta uma maior
facilidade de sua naturalização, outro processo violento,
porque manieta a vítima e dissemina a legitimação social
da violência. (Saffioti; Almeida, 1995, p. 32).

À medida que a categoria de gênero nos permite questionar as


relações desiguais de poder entre homens e mulheres, e compreender
os respectivos papéis sociais deles como construções sociais, culturais
e históricas, abre-se também a possibilidade de contestarmos a
heterossexualidade compulsória e a consequente discriminação das
sexualidades dissidentes. Essa consciência abre um novo campo para os
estudos sobre sexualidade, conforme destaca Piscitelli (2009, p. 143):

Nas novas leituras sobre gênero considera-se que a distinção


entre masculino e feminino não esgota os sentidos de gêne-
ro. Essas diferentes categorias de pessoas aparecem como
“dissonantes” em termos de gênero, porque embaralham as
distinções entre masculino e feminino e também confun-
dem as normas de heterossexualidade, que requerem essa
distinção. A filósofa estadunidense Judith Butler mostra que
essas pessoas questionam a coerência entre sexo (genitália
masculina ou feminina), gênero (aparência da pessoa como
masculina ou feminina) e desejo (supostamente deveria ser
sempre um desejo heterossexual).

Nota-se aí uma desestabilização da categoria de gênero, e essa


ocorrência, dada a partir da década de 1990, estende-se também
para o campo dos estudos sobre sexualidade. Eles se transformam
em instrumento de contestação da heterossexualidade compulsória

Sumário
240

e de compreensão/visibilização das múltiplas formas de vivenciar


a sexualidade e a corporalidade. Ou seja, a partir de 1990, há uma
expansão dos estudos de gênero para além do campo feminista.
E essa não é a única desestabilização que o gênero sofre no
decorrer de sua trajetória histórica. Ele deixa de ser meramente
uma categoria através da qual tentamos entender como são cons-
truídas as relações de poder entre homens e mulheres dentro das
sociedades. Nesse momento, passa-se a especular as possibilidades
de usar os estudos de gênero para analisar outras práticas de poder
além daquelas consubstanciadas dentro das relações tradicionais
homem-mulher. Sendo o gênero uma categoria forjada dentro do
cânone ocidental, projetado por uma sociedade branca e eurocêntrica,
quais as possibilidades de estender essa discussão para mulheres que
não se encaixam nesse padrão? Eis algumas questões surgidas entre
as teóricas feministas a partir da década de 1980, conforme indica
Piscitelli (2009, p. 139-141):

O objetivo de criar um sujeito político fez com que, du-


rante muito tempo, o pensamento feminista destacasse a
identidade entre as mulheres, concedendo pouca atenção
às diferenças entre elas. Na década de 1980, porém, essa
“identidade” foi intensamente contestada, principalmente
por feministas negras dos Estados Unidos e do “Terceiro
Mundo”. Elas afirmavam que sua posição social e política
as tornava diferentes e diferenciava também suas reivin-
dicações [...]. Assim, feministas negras e do “Terceiro
Mundo” consideraram que no sistema sexo/gênero o foco
singular no gênero fazia com que essa categoria obscu-
recesse ou subordinasse todas as outras. Sublinhando
as diferenças entre mulheres, elas exigiram que gênero
fosse pensado como parte de sistemas de diferenças, de
acordo com os quais as distinções entre feminilidade e
masculinidade se [entrelaçassem] com distinções raciais,
de nacionalidade, sexualidade, classe social, idade.

Sumário
241

Temos aqui uma legítima objeção, pois não é possível homogenei-


zar as experiências e as reivindicações das mulheres. É preciso olhá-las
de maneira complexa, percebendo-as como seres que compartilham
vivências, mas que carregam identidades sociais diversas, ocupam
diferentes espaços e possuem distintos desejos e necessidades. Cada
uma tem sua identidade individual, que é construída por múltiplos
marcadores identitários. Aliás, de maneira geral, é essa identidade
particular que determina os privilégios alcançados ou as opressões
sofridas em sociedade. É ela que torna impossível utilizarmos somente
a categoria gênero para avaliar as opressões e as violências enfrentadas
pelas mulheres; para alcançar a complexidade das vivências e das
experiências femininas, necessitamos estabelecer relações dialógicas
entre o gênero e outras categorias: raça, nacionalidade, sexualidade,
classe social, idade etc.
Ainda pensando as desestabilizações da categoria gênero, temos
autoras feministas que percebem tal categoria como sendo inteira-
mente colonial, como é o caso da filósofa argentina María Lugones
(2014). Para ela, as sociedades que sofreram invasões coloniais não
apresentavam um sistema de gênero; esse sistema foi imposto a partir
do processo de colonização. Portanto, a dualidade opositiva entre
homens e mulheres é uma determinação colonial, em um processo de
leitura e de compreensão das ditas sociedades com base numa lógica
eurocentrada. Longe de constituir uma categoria analítica, gênero
provoca um apagamento da identidade das sociedades colonizadas,
na perspectiva de Lugones.
Em uma visão oposta à de Lugones, a antropóloga argentina
Rita Segato (2018) entende que a dualidade entre homens e mu-
lheres já existia nas sociedades colonizadas em períodos anteriores
às intrusões, caracterizando um patriarcado comunitário de baixa
intensidade. No entanto, com o transcurso da colonização, essa
dualidade se transformará em um binarismo, radicalizando as dife-
renças entre homens e mulheres e acentuando as hierarquizações

Sumário
242

sociais e as violências. É o chamado patriarcado colonial moderno


de alta intensidade, nos termos da autora. Em suma, para Segato, o
gênero não é uma invenção colonial, pois as relações desiguais nesse
âmbito já existiam nas sociedades pré-intrusão; a colonização apenas
acentua essas hierarquizações.
Se o gênero está intimamente ligado ao cotidiano societário e
aos debates políticos, é impossível que seu conceito se mantenha
estático no decorrer dos anos. Sua transformação é constante, con-
forme indicam Veiga e Pedro (2015, p. 307):

Essas e outras tensões levam a pensar em gênero como um


conceito que, mais do que qualquer fixidez, nos oferece
instabilidade e fluidez, que melhor representam as relações
sociais que atravessam o tempo e chegam à atualidade.
Tendo emergido desde o início sob rasura e tensão, com
as reivindicações intrínsecas ao início dos anos 1980
sobre questões envolvendo raça, etnia, classe e outras
possíveis intersecções sociais, gênero mostra-se ainda útil
como categoria de análise, passando por adaptações às
necessidades de cada grupo que a reivindica.

Com base em todas as reflexões apresentadas, é possível visualizar


a trajetória histórica do gênero, de sua emergência até os debates
contemporâneos, como nesta súmula apresentada por Piscitelli (2009,
p. 146, grifo da autora citada):

Sintetizando a trajetória do conceito de gênero, vemos


que um termo que se difundiu aludindo às diferenças
e desigualdades que afetam as mulheres adquire outros
sentidos. Continua referindo-se a diferenças e desigual-
dades e, portanto, continua tendo um caráter político.
Entretanto, nas suas reformulações, o conceito de gênero
requer pensar não apenas nas distinções entre homens e
mulheres, entre masculino e feminino, mas em como as
construções de masculinidade e feminilidade são criadas
na articulação com outras diferenças, de raça, classe social,
nacionalidade, idade; e como essas noções se embara-
Sumário
243

lham e misturam no corpo de todas as pessoas, inclusive


aquelas que, como intersexos, travestis e transexuais,
não se deixam classificar de maneira linear como apenas
homens e mulheres.

Em suma, a categoria de gênero não é unívoca; ao contrário, apre-


senta diversas facetas e conceitualizações, e transforma-se de acordo
com as demandas da sociedade e as pautas dos movimentos sociais.
Carrega em si a criticidade e a politicidade, incluindo as disputas
políticas pelo reconhecimento das diferenças e pela superação das
desigualdades. Por isso, não podemos desvincular gênero das práticas
contestatórias e dos embates contra os poderes instituídos socialmente.

Feminismos e gênero como resistência no campo científico

Diante do que foi exposto, consideramos como feminismos os


movimentos sociais que contestam as múltiplas feições da opressão
e da desigualdade em nossas sociedades e que, no decorrer de seu
percurso histórico, resultaram na garantia de direitos para as mulhe-
res e na fixação de valores mais igualitários nos diversos imaginários
sociais. Por sua vez, a categoria de gênero, que deve ser compreendida
como um resultado teórico dos feminismos, é dotada de politicidade,
permitindo os debates sobre diferenças e desigualdades no campo
científico. Posto isso, colocamos a seguinte questão: qual é o impacto
desses dois elementos (feminismos e gênero) no campo científico,
sobretudo no das Ciências Sociais?
Iniciamos essa discussão refletindo sobre as noções de poder e
resistência idealizadas pelo filósofo francês Michel Foucault (1985).
Para o autor, o poder não está encarnado em uma instituição ou em
uma pessoa; expressa-se no cotidiano, circulando por intermédio das
mais diversas relações sociais:

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou


melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca
está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns,

Sumário
244

nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O


poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os
indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição
de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o
alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros
de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica
aos indivíduos, passa por eles. (Foucault, 1985, p. 103).

Ele não fica concentrado, mas propaga-se na sociedade, en-


tranhando-se nas relações sociais e podendo mudar de lugar a todo
momento. E onde existe poder, existe também uma resistência in-
trínseca, conforme indica Wolff (2015, p. 647):

A noção de resistência está geralmente associada à de


poder ou de opressão, significando as forças ou ações
que se opõem ao exercício do poder na sociedade, ou à
opressão social [...]. É nesse sentido que tem sido usada
essa categoria nos estudos de feministas e de gênero e na
história das mulheres em geral: para designar ações de
oposição à dominação e opressão de gênero.

Analisando essa perspectiva, concluímos que os poderes sociais


desempenhados pelos homens nas várias sociedades consolidaram
valores patriarcais e práticas violentas para garantir a subalternização
feminina, e, em face desses poderes, os feminismos emergiram como
movimentos de resistência e oposição à violência e à opressão. Entre
os resultados desses movimentos, está a elaboração da categoria de
gênero como uma estratégia de resistência teórica, bem como o fato
de as mulheres ocuparem espaços onde são indesejadas. E é justa-
mente nesse ponto que trazemos outra questão, a introdução das
mulheres no campo das Ciências Sociais e nos poderes instituídos
dentro desse campo.
Um primeiro elemento a ser apontado nessa questão é a cons-
tituição eurocentrada dessa área científica. As Ciências Sociais
(Sociologia, Antropologia, Ciência Política, História, Economia etc.)

Sumário
245

tiveram seu surgimento e seu desenvolvimento associados à ideia


de modernidade, aflorada no imaginário social europeu dos séculos
XVIII e XIX. Esse movimento legitimou apenas os conhecimentos
que irromperam no contexto ocidental e eurocêntrico, não conside-
rando científicos os saberes produzidos pelas sociedades colonizadas.
Com isso, instaura-se o que a antropóloga afro-dominicana Ochy
Curiel descreve como colonialidade do saber, remetendo às ideias
do sociólogo peruano Aníbal Quijano:

A modernidade ocidental eurocêntrica também produziu


uma colonialidade do saber – outro conceito que o fe-
minismo decolonial retoma –, um tipo de racionalidade
técnico-científica, epistemológica, que se coloca como o
modelo válido de produção de conhecimento. O conhe-
cimento, nessa visão, deve ser neutro, objetivo, universal
e positivo [...]. Trata-se de um imaginário proposto de
uma plataforma neutra, um ponto único, a partir do qual
se observa o mundo social, que não poderia ser observa-
do a partir de nenhum ponto, assim como os deuses. A
partir daí, cria-se uma grande narrativa universal na qual
a Europa e os Estados Unidos são, simultaneamente, o
centro geográfico e a culminação do movimento temporal
do saber, onde se subvaloriza, ignora, exclui, silencia e
invisibiliza conhecimentos de populações subalternizadas.
(Curiel, 2020, p. 128, grifo da autora citada).

Com base no que diz a antropóloga, compreendemos que os


grandes sistemas teóricos do campo das Ciências Sociais foram
forjados no imaginário social europeu e moderno, e sua validação
perdura até a contemporaneidade, muito embora presenciemos a
proliferação de estudos pós-coloniais e decoloniais que elaboram uma
crítica contundente à colonialidade do saber. Ainda hoje assistimos
à influência de teorias eurocentradas que persistem no decorrer dos
anos, como o marxismo e o estruturalismo, por exemplo.

Sumário
246

O segundo ponto que chama a atenção nas Ciências Sociais é a


predominância de teorias e conceitos elaborados por homens, confor-
me destacam as teóricas francesas Chabaud-Rychter, Descoutures,
Devreux e Varikas (2014, p. 3):

Para conquistar um espaço em suas disciplinas acadêmicas,


os estudos feministas e, de um modo geral, as pesqui-
sas sobre as mulheres, os papéis de sexo, as identidades
sexuais, as relações sociais de sexo ou o gênero sempre
tiveram que se posicionar em função dos discursos cien-
tíficos dominantes e romper com as Ciências Sociais que
poderíamos qualificar de “normásculas” (ou malestream)
e que pensam o masculino sem mesmo perceber; sem
perceber e impregnando de masculinidade resultados
ou teorias supostamente “objetivas”, uma neutralidade
que é, de fato, marcada por sua indiferença em relação
às desigualdades entre os homens e as mulheres e, mais
profundamente ainda, por sua indiferença ao domínio das
segundas pelos primeiros.

Dessa forma, as práticas feministas e a categoria de gênero


representam uma ampla ruptura no campo das Ciências Sociais,
visto que esse ainda é extremamente “normásculo”. A incorporação
desses dois elementos nos meios acadêmicos provoca uma deses-
tabilização nessa área científica ao contestar as teorias clássicas
que defenderam os essencialismos biológicos e as reproduções de
desigualdades e que se silenciaram diante das opressões sofridas
pelas mulheres. Tal inserção concretiza a ocupação feminina de um
espaço predominantemente masculino. Apesar desse fator de grande
desestabilização das Ciências Sociais, outras estratégias ainda pre-
cisam ser pensadas para “invadir” campos teóricos e conceituais, de
maneira que a categoria gênero e as práticas feministas não sejam
mais consideradas campos menores e isolados; ao contrário, que se
tornem elementos fundamentais para enervar e complexificar todo
o campo das Ciências Sociais.

Sumário
247

Referências

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Sumário
HISTÓRIA ORAL DE VIDA: TRANSCRIANDO
HISTÓRIAS E VIVERES

Eliene Dias de Oliveira

Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras


perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movi-
mentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos
quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas ema-
ranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar,
interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de
barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas
com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque
ou numa clareira cheia de ciladas.
Carlo Ginzburg

Considerações iniciais

Este texto parte do conceito de transcriação de histórias orais


de vida como um caminho metodológico de construção da narrativa
por meio de entrevistas, sendo esse um conceito-chave “que vai
inspirar o trajeto de procedimentos e o espírito da transformação
da fala do interlocutor, do momento da entrevista passando pelos
últimos trabalhos com o texto até a interpretação” (Caldas, 1999,
p. 71). À luz de uma entrevista concedida pela migrante Jussara Cunha
(pseudonome), em Coxim-MS/Brasil, em 18 de abril de 2013, busco
apresentar o texto produzido e dado a ler como uma produção em
coautoria entre aquela que, de um lado, elabora o plano de traba-
251

lho, propõe a entrevista, questiona, sugere, transcreve e transcria, e


aquela que, de outro lado, responde, lembra, discorre sobre eventos,
sentimentos e memórias de outros tempos e, por último, endossa
o texto final da narrativa apresentado pela pesquisadora. Assim,
pretendo discutir sobre os caminhos da pesquisa e as nuances do
trabalho com história oral que, muitas vezes, escapam às discussões
metodológicas do ofício do historiador.
Reconhece-se, comumente, o uso da história oral em três modali-
dades de abordagens: a história oral temática, a tradição oral e a história
oral de vida. Nessa análise, a história oral de vida é a opção analisada.
Se o historiador, no olhar de Ginzburg, assemelha-se ao
caçador, farejando carne humana, perseguindo seus rastros e
marcas, interpretando sinais, é plausível afirmar que, como fonte
de trabalho e recurso metodológico na abordagem de trajetórias,
a história oral de vida figura como um caminho metodológico de
produção e análise das memórias de homens e mulheres que, ao
narrarem suas experiências, (re)contam e (re)(s)significam o seu
viver e o de seus grupos sociais.

A história oral de vida, por sua vez, tem a experiência


como foco, e as entrevistas realizadas nesta perspectiva
apontam para uma postura diferenciada por parte do
entrevistador. Este deve estar imbuído de sensibilidade
que o faça ouvir mais do que falar, estimular mais que
perguntar. Neste caso, as entrevistas podem ser únicas
ou múltiplas, de acordo com a necessidade da pesquisa,
e sua duração dependerá de cada entrevistado. Isto não
significa, entretanto, que não exista preocupação com
estes pontos. Ao contrário disso, e salientando a necessi-
dade de um projeto que anteceda o trabalho de campo,
o pesquisador deve ter a responsabilidade de conduzir o
processo como um todo, não através de imposição, mas
de negociação. (Evangelista, 2010, p. 174).

Sumário
252

Conforme se vê pela transcrição acima, um dos caminhos para a


produção de narrativas orais é a entrevista. Ao falarem de si, os entrevis-
tados falam também de seus grupos sociais, atribuindo novos significados
e olhares a antigas práticas e saberes. E, nesse exercício, elaboram textos
que serão lidos como uma produção realizada em coautoria:

Não são textos que se digam, mas textos que exigem o


diálogo, o posicionamento e a reinterpretação. São textos
que, ao resultarem de uma poética da experiência, exigem,
para se tornarem, tanto uma poética da leitura quanto
uma poética da interpretação. (Caldas, 1999, p. 76).

Desafios e possibilidades na transcriação de uma entrevista

A entrevista, momento crucial na produção da narrativa, será,


sobretudo, momento de encontro e alteridade:

Durante todo o tempo, enquanto o pesquisador olha para


o narrador, o narrador olha para ele, a fim de entender
quem é e o que quer, e de modelar seu próprio discurso
a partir dessas percepções. A “entre/vista”, afinal, é uma
troca de olhares. E bem mais do que forma de arte verbal,
a história oral é um gênero multivocal, resultado do tra-
balho comum de uma pluralidade de autores em diálogo.
(Portelli, 2010, p. 20).

Nesse momento, as diferenças não são apagadas, mas cria-se


utopicamente uma experiência de igualdade, “na qual dois sujeitos,
separados pelas hierarquias culturais e sociais, escancaram suas de-
sigualdades e as anulam, fazendo delas o território de suas trocas”
(Portelli, 2010, p. 213). Logo, a entrevista é um entreolhar. O sujeito
que entrevista olha e é visto por aquele que responde. Duas vozes, dois
sujeitos que criam e transcriam uma narrativa contada e recontada
para si mesmos e para outrem. É o exercício de escuta e fala que se
ritualiza na construção de um enredo em que vivências, práticas e

Sumário
253

saberes se misturam, construindo uma narrativa. São dois coautores


tecendo uma narrativa que “é sempre e inevitavelmente construção,
elaboração, seleção de fatos e impressões” (Bom Meihy, 2006, p. 153).
Durante uma entrevista, as subjetividades se impõem de forma
indiscutível. Por isso, partilhar o espaço de memórias, de criação de
narrativas e significados requer a compreensão dos códigos necessários
para se adentrar o mundo do outro. Esses códigos nem sempre estão
visíveis, solicitando do pesquisador uma sensibilidade que se inicia
na construção de um plano de trabalho, na tessitura de uma rede de
possíveis entrevistados, na efetivação da entrevista como momento
de troca, na transcriação do texto e, por último, na interpretação.
Na perspectiva da historiadora Yara Aun Khoury (2001, p. 84),
a entrevista abre caminho para pensarmos e trabalharmos a noção
de fato histórico. Afinal, cada pessoa traz, em suas experiências e
narrativas, elementos de sua cultura impregnados de seu próprio
ponto de vista e forjados em convívio e em conflito na dinâmica
social. Dessa maneira, dizemos que, na narrativa, dispomos menos
de fatos reconhecidos como tais do que de textos, de enredos. E
que esses textos, a seu modo, são também fatos, ou seja, dados,
de alguma maneira, objetivos. Portanto merecem ser estudados e
analisados. Sonhos, expectativas, propostas, projetos, fabulações e
memórias trazidos pelos interlocutores são também percebidos como
fatos passíveis de reflexão objetiva, oferecendo indícios concretos de
possibilidades interpretativas.
No momento da entrevista, o autor principal é o entrevista-
do, cabendo ao entrevistador mais ouvir do que falar. Na etapa
seguinte de produção dessa narrativa, ou seja, na transcriação,
será o pesquisador o agente central desse processo. E o produto
dessa narrativa, o texto originado no encontro dos interlocu-
tores, indelevelmente, é um texto escrito a quatro mãos. Essa
escrita se estrutura mediante a transcriação proposta por Bom
Meihy (1991, 2006) como opção metodológica a ser adotada

Sumário
254

na transposição da fala oral ao texto escrito. Os não ditos, os


interditos e as lacunas são elementos essenciais à elaboração
e interpretação da narrativa produzida nesse percurso. Bom
Meihy admite que, quando considerada relevante, a fala da/
do pesquisadora/pesquisador também poderá ser reproduzida
no texto. Essa opção explicita o caráter dialógico da entrevista
que se realiza entre dois sujeitos. A respeito da produção de
narrativas com base em entrevistas, Evangelista (2010, p. 180)
apresenta a seguinte perspectiva:

O trabalho transcriativo se aproxima do artesanal [...],


pois a possibilidade de transcriação somente é viabilizada
quando aquele que escreve o texto final está envolvido
em todas as etapas do trabalho, desde a elaboração do
projeto de pesquisa. O envolvimento direto com o tema e
com o documento vivo materializado pelos entrevistados é
insubstituível na composição no texto final. A experiência
agregadora da pesquisa em história oral de vida confere
gradativamente ao oralista a segurança necessária para
escrever com propriedade sobre a vida daqueles com
quem divide experiências. Tal qual o produto do artesão,
o texto transcriado é o resultado de uma série de etapas
criativas que vão contornando um produto sempre inédito.

Entre os historiadores que fazem uso da fonte oral, é comum


ouvir relatos sobre as dificuldades de produção e manuseio dessa
fonte. Em alguns casos, o pesquisador poderá utilizar um acervo já
criado e disponível, no entanto a realidade mais comum é que ele
tenha de produzir todas as etapas de construção de uma narrativa
oral: projeto, entrevista, transcriação e análise.
Nesse caminho, após a realização das entrevistas, inicia-se um
árduo trabalho de passagem do texto oral para o escrito. Essa tarefa,
que, no olhar de Evangelista, equipara-se ao trabalho artesanal, não é
das mais simples, pois requer uma grande sensibilidade no manuseio

Sumário
255

de um texto que possui elementos narrativos próprios e que será


adequado a um código de escrita de natureza totalmente diversa.

A escrita representa a linguagem quase que exclusivamente


por meio de traços segmentários (grafemas, sílaba, palavra
e sentença). Mas a linguagem também é composta por
outros conjuntos de traços, que não podem ser contidos
dentro de um único segmento, mas também são porta-
dores de significado. A fileira de tom e volume e o ritmo
do discurso popular carregam implícitos significados e
conotações sociais irreproduzíveis na escrita [...]. A fim
de tornar a transcrição legível, é usualmente necessário
inserir sinais de pontuação, sempre, mais ou menos, adição
arbitrária do transcritor. (Portelli, 1997, p. 27).

A palavra falada que se manuseia durante esse trabalho repre-


senta o movimento, as várias possibilidades de entonações, sotaques
e afetividades, dando corpo a frases entrecortadas, ora pelo silêncio
das memórias que levam o narrador para outros tempos e espaços,
ora pela pausa para enxugar uma lágrima que teima em cair. Em
outro caminho, a palavra escrita é a estagnação, o congelar do mo-
vimento, a conformação a um código de linguagem comum, com
suas estruturas textuais delimitadas. Na transposição de uma para
a outra, o pesquisador enfrenta o desafio de honrar a experiência do
narrador e de lidar com as dificuldades intrínsecas ao processo de
transcriar o texto. Efetivamente não é fácil transformá-lo de oral a
escrito apresentando uma narrativa factível, plena de significados
a ser interpretados na análise, que, só então, poderá ser realizada.
O conceito de transcriação apresentado por Bom Meihy (1991)
considera que o processo de transcrição de palavras do oral ao escrito
deixa escapar sentidos e significados que o pesquisador poderia agregar
ao texto, seja por meio de edições em conjunto com o entrevista-
do, seja com o auxílio do seu caderno de campo. Nesse caminho,

Sumário
256

“o fazer do novo texto permite que se pense a entrevista como algo


ficcional […], com isso valoriza-se a narrativa enquanto um elemento
comunicativo” (Bom Meihy, 1991, p. 31). O autor ressalta ainda que
o texto produzido com a entrevista carece da validação daquele que
a concedeu.
Isso comprova que a coautoria integra o processo de produção
característico da criação de histórias orais e enriquece as possibilida-
des interpretativas do texto mediante a assunção do papel de autor
da narrativa também pelo pesquisador. O texto final, legitimado pelo
entrevistado que partilha suas memórias, é reescrito por aquele que
as escuta. Nesse percurso, este enfrenta o paradoxo entre a busca
por manter a essência do texto falado e a necessidade de enquadrá-lo
no padrão de escrita comum. Para melhor explicar essa reescritura,
servimo-nos, mais uma vez, das palavras de Caldas (1999, p. 76):

O texto geral não é texto definitivo ou limitado. A teoria do


pesquisador será somente uma das possíveis perspectivas
abertas pelo texto. Em sua rede ficcional, em sua força
viva, [este] exige mais que a sensação de uma leitura,
exige o que envolve uma releitura, reinterpretações. Por
ser um corpus vivo não se esgotou nem no projeto que o
iniciou, nem no longo trajeto transcriativo e muito menos
nas interpretações que, formalmente, o transformaram
através do pesquisador numa leitura específica e singular.
O leitor se converte num verdadeiro participante da ope-
ração criadora, deixando de ser um espectador passivo,
aquele que aceita a voz monofônica tanto do autor quanto
de um monofonismo da própria estrutura do texto.

A seguir, apresento a transcriação da entrevista que me foi con-


cedida pela senhora Jussara Cunha durante o período de construção
da tese À procura de um norte: migração e memória de nordestinos
em Coxim MT/MS – 1958/1996. Convido o leitor a participar da
operação criativa de produção do texto baseado nessa entrevista,

Sumário
257

criando uma das possíveis leituras desse corpus vivo em que os


sentidos e significados se (re)constroem a cada nova pergunta, a
cada novo olhar.

Senhora Jussara Cunha: “Agora eu posso dizer que eu tou


no céu, eu tou rica!”

Jussara Cunha (nome fictício) nasceu em 2 de março de 1951, no


município de Bom Jardim, Pernambuco. Tem 63 anos. Não frequentou
sistema escolar formal. É casada, tem dois filhos, é dona de casa e
lavadora de roupas. Mudou-se para o antigo Mato Grosso em 1958.
Jussara soube que sua vida estava prestes a mudar quando sua
mãe, Helena, sentindo dores de parto, chamou-a para conversar
antes de partir para o hospital de Bizarra, hoje Distrito de Bom Jar-
dim. Ela, sua mãe, seu pai Augusto e seus irmãos moravam então
no Sítio Desenganos, também no município de Bom Jardim. Eram
meados de 1957. Jussara tinha por volta de seis anos no dia em que
foi surpreendida por aquela conversa fatídica a partir da qual sua
vida mudaria para sempre:

– Jussara, eu vou pro hospital hoje, aí, se eu voltar pra


casa, eu tomo conta de vocês. Se eu não voltar, o Zezinho
[tio de Jussara] toma conta de você. Vai ser seu pai é ele!
O seu pai é ele, que ocê já veve com ele, aí você se crie
com ele, o Zezinho toma conta de você.
E foi dito e feito! Minha mãe foi pro hospital... chegou lá
ela morreu... e já veio pra casa num caixão. E aí o meu
tio pegou e... e no outro dia já foi lá na casa do meu pai
e me buscou e eu fiquei com ele até a data que eu me
casei aqui. (Entrevista concedida em Coxim, MS, 18 de
abril de 2013).

O diálogo reproduzido pela narradora reconstrói os momentos


finais com sua mãe, representando, portanto, um ponto-chave em
sua trajetória, um divisor de águas em sua vida. É nesse momento

Sumário
258

descrito no enredo apresentado acima que se define o rompimento


de Jussara com o grupo familiar de origem (pai, mãe e irmãos) e com
a terra natal. Seguindo a recomendação da mãe, ela foi entregue ao
tio Zezinho e à madrinha Rosa. Logo após a morte de Helena, seu
esposo, impossibilitado de manter a família unida, entregou também
os irmãos de Jussara a diferentes familiares para serem cuidados:
“Que minha mãe morreu e meu pai não tinha condições de cuidar
de nós. Pegou e deu nós tudo!”.
Num tempo em que ainda era recente a perda da mãe, Jussara
precisou separar-se definitivamente do pai, partindo com seus tios
rumo ao desconhecido Mato Grosso. De lá viera uma notícia da
possibilidade de o Tio Zezinho conseguir terra e trabalho por meio de
um amigo da família, o Sr. Francisco. Viajaram de ônibus juntamente
com outras famílias conhecidas, tendo como destino a Colônia São
Romão, no município de Coxim.
A trajetória de Jussara no antigo Mato Grosso, hoje Mato Grosso
do Sul, é narrada tendo como fio condutor um dia a dia de trabalho e de
luta incessante. Primeiro, ainda criança, trabalho árduo “na roça”1 em
terras de terceiros e nos quinze hectares que seu tio conseguira adquirir.

Se tivesse chovendo, nós trabaiava, se não dava pra traba-


lhar de enxada, nós ia pra dentro daquela arroizada, com o
mato dessa altura... nós saía assim, dentro daquela água,
arrancando aqueles mato pra descobrir as carreiras de arroz.
Nós não dava pra trabalhar de enxada, nós trabaiava de
mão! Passando necessidade. Se tivesse fazendo sol, nós ia
pra roça, se tivesse chovendo, nós ia pra roça! (Entrevista
concedida em Coxim, MS, 18 de abril de 2013).

1 Segundo Câmara Cascudo (s. d.), o termo roça, na acepção de terreno


plantado, já aparece em documentos portugueses desde 1327. É sinônimo
de roçado. No vocabulário popular, conforme presente em várias narrativas,
pode significar propriedade, posse, moradia rural.

Sumário
259

A vivência na zona rural é recordada como um tempo de tra-


balho, em que não havia espaço para diversões ou escola. Junto aos
primos, que agora eram seus irmãos, Jussara passou muito cedo a
contribuir para o sustento da família e o seu próprio, principalmente
trabalhando no plantio de arroz. Moravam todos em uma casa muito
simples, feita de matéria-prima vegetal retirada de uma palmeira
popularmente conhecida como buriti, a mauritia flexuosa. Com a
palha dessa palmeira, cobria-se o teto e, com a madeira, faziam-se
as paredes.
Ainda na roça, Jussara se casou com o Sr. Severino, também
oriundo da região de Bom Jardim, em Pernambuco. Ele fora para o
Mato Grosso no grupo de famílias que migraram com o tio de Jussa-
ra, em 1958, mas ela só veio a conhecê-lo no município de Coxim.
Fizeram a viagem juntos, ainda crianças, vindos de ônibus. Jussara
tinha então sete anos e o Sr. Severino, quatorze. Em Coxim, foram
morar na mesma região, a Colônia de São Romão, na zona rural, e ali
continuaram convivendo com o mesmo grupo social e frequentando
os mesmos ambientes. Assim se conheceram e se casaram. O Sr.
Francisco, que convidara o tio de Jussara a viver em Coxim com a
família, foi o padrinho de casamento.
Depois de casados, no início da década de 1970, Jussara e
Severino residiram na zona urbana de Coxim. Em meados de 1974,
migraram para o estado de Rondônia e lá tiveram o primeiro filho,
Paulo. Como não foram bem-sucedidos em Rondônia, retornaram
a Coxim: “Aí não se demos bem lá e pegou e veio embora. Quando
eu vim pra cá, eu tava com 22 dias de dieta de Pedrinho [o outro
filho de Jussara]” (Entrevista concedida em Coxim, MS, 18 de abril
de 2013). De volta a Coxim, Jussara continuou trabalhando, agora
lavando e passando roupas para terceiros, enquanto o esposo tra-
balhava como servente de obras. Tiveram mais uma filha. Tempos
depois, Jussara assumiu também a educação da neta Ana, filha do
Paulinho. Recebeu-a dos braços da mãe com um dia de vida.

Sumário
260

Alguns anos antes da entrevista que tivemos, Jussara realizou um


antigo sonho: organizou-se financeiramente e, com a ajuda do tio, foi
rever o pai no Nordeste, o Sr. Augusto Quincas. Esse foi certamente
um ponto alto de sua narrativa, marcado por forte emoção:

Eliene Dias: Como é que foi esse reencontro, você voltar,


depois de uma vida?
Jussara Cunha: Quando eu cheguei lá, ele não tava em
casa. Ele era doente da coluna, ele anda com um pauzinho,
uma bengala... ele andava, né? [...] Aí, não sei quem foi
que viu ele lá, que conversou com nós, quando nós chegou
lá... aí que o meu tio falou assim: “Se você encontrar o pai
de Jussara, fala pra ele que nós tá aqui, que nós tá aqui no
Norte”. Aí diz que foi, que o rapaz encontrou ele e falou
assim: “Olha, sua filha veio de Mato Grosso, veio de Mato
Grosso, tua filha que você nunca mais viu, ela tá aí”. Aí
disse que ele pegou e falou: “Então deixe eu ir pra casa”.
Aí, quando ele chegou em casa, aí nós fomos lá, saímos do
meu tio e fomos na casa dele. Aí quando cheguemos lá, aí
o meu tio falou assim: “O Augusto tá em casa?” Aí a minha
mãe de criação, que era casada com ele, falou assim: “Não
tá não, ele tá pra rua, mas agorinha ele chega...”. Aí nós
ficou lá, aí, quando vimos, lá vem ele, com aquele pauzinho,
com aquele pauzinho. Aí eu saí pra fora, saí de dentro de
casa e fui lá pro terreiro encontrar ele. Aí eu cheguei e falei
assim: “Pai, tá me conhecendo?”. Ele falou: “Não, minha
fia, quem é você?” [voz embargada]. Falei: “Sua filha que
você pensava que tinha morrido...” [pausa, choro]. Aí ele
me abraçou, eu abracei ele, ele chorou...guria do céu! Aí
nós veio pra dentro, ele pegou e mandou a patroa dele fazer
comida pra nós, fizemo aquela comidona lá e jantemos, e
fiquemos inté tardão da noite conversando lá e depois que
fomos dormir. (Entrevista concedida em Coxim, MS, 18
de abril de 2013).

Esse ponto da narrativa de Jussara atingiu o seu ápice emotivo,


momento marcado por choro e voz embargada. O retorno ao “Norte”

Sumário
261

e o reencontro com o pai fecham um ciclo de sua trajetória, alinha-


vando pontos até então não inteiramente costurados na trama de
sua existência. Para ela, o pai a tinha como morta, pois os dois não
mantinham nenhum tipo de contato desde que ela saíra de casa.
Embora não saiba precisar o ano desse reencontro, a narradora
relembra que os filhos já estavam “grandinhos” e que o filho maior
fazia o curso de datilografia. Os marcos que dão significado aos fatos
importantes de sua história têm sentidos outros, formados além do
tempo do calendário. Assim, suas referências situam-se dentro da
própria experiência, e não em elementos externos de identificação.
Posteriormente à visita narrada, o Sr. Augusto veio a falecer, e
aquela foi então a única visita ao Nordeste e aos membros da família
que lá ficaram. Hoje, Jussara não pensa em voltar a residir no Norte,
como ela se refere à região Nordeste do país. Para ela, o Mato Grosso
do Sul é a sua casa, lugar onde criou sua família. Ali passou por difi-
culdades, mas hoje se sente próspera e feliz nessa região: “Agora eu
posso dizer que eu tou no céu... eu tou rica! Pra vida que eu já passei,
eu tou rica... Eu tenho a minha casa, tenho meus movinho dentro de
casa. Que, quando eu casei, eu não levei nada. Nada, nada, nada!”
(Entrevista concedida em Coxim, MS, 18 de abril de 2013). Embora
tenha uma vida simples e sem grandes luxos, ainda trabalhando como
lavadeira e passadeira para complementar a aposentadoria do esposo,
Jussara analisa o seu presente à luz de um passado de muita carestia
e de adversidades, e considera-se uma pessoa rica.
Afinal, em sua narrativa, fica expressa uma infância de sofrimen-
tos, marcada pela morte da mãe e pela separação do pai e dos irmãos.
Depois, a migração e o trabalho na roça, a supressão do direito de ir
à escola e as privações alimentares:

Nós passemo fome, Liene! Nós passemo fome. [...] Quan-


do chegava em casa, nós não tinha comidinha boa pra
nós comer não, minha fia, era aquela mandioca, aquele

Sumário
262

caldeirão velho de mandioca insuada,2 pra nós comer com


aquele moinho de pimenta. [...] sem arroz, sem nada”. (En-
trevista concedida em Coxim, MS, 18 de abril de 2013).

Enfim, depois de ter se realizado com a construção de uma famí-


lia, a conquista da casa própria, as pequenas melhorias no mobiliário
e a viagem de reencontro com o pai, não é sem razão que Jussara
afirma estar rica e sentir-se no céu.

Considerações finais

Na metodologia de pesquisa histórica, a dificuldade documental


em relação a determinados temas pode ser representada pela metá-
fora do garimpeiro em busca do caminho das pedras preciosas. Isso
vale principalmente para os temas que tangem a homens e mulheres
comuns que não tiveram suas vivências e memórias registradas pelos
canais oficiais, a exemplo da senhora Jussara e de outros trabalhado-
res, dos grupos marginais e dos integrantes de movimentos sociais
e culturais de caráter popular, entre outros. A diferença entre o
garimpeiro e o historiador é que, muitas vezes, este último terá de
fabricar suas próprias pedras preciosas. Terá de elaborar a história oral
de vida de sujeitos comuns com base em “entre/vistas” e encontros
entre esses sujeitos.
A construção da história oral possibilita a reflexão teórica ali-
cerçada nas narrativas de sujeitos entrevistados. O uso da narrativa
oral como ferramenta metodológica remete à fala de Elias Thomé
Saliba (2009), que nos conta das tribos africanas dos Suailes e de
suas lendas. Esse povo divulga a crença de que as pessoas mortas
permanecem vivas nas memórias daqueles que as conheceram. Tor-
nam-se mortos-vivos, só conseguindo morrer completamente quando
morre também a última pessoa que as conheceu. Assim, os anciãos

2 Quando Jussara diz mandioca insuada, refere-se à planta com baixo teor
de amido nas raízes em função das chuvas, o que altera o sabor e o valor
nutritivo do alimento.

Sumário
263

sobreviventes carregariam “o fardo de guardar em si o registro do


que passou de mais importante” (Saliba, 2009, p. 311), narrando a
si mesmos com base nas narrativas que são, ao mesmo tempo, suas
e de outras pessoas.
Conferir às narrativas um papel fundamental na compreensão da
realidade histórica é reconhecer que, na relação memória-história, a
trama da vivência de grupos sociais distintos envolve a memorização
do acontecer social, que também faz parte do exercício do poder. Por
isso, quando lidamos com a diversidade de memórias, não devemos
apenas pensar num conflito entre a memória comunitária pura e
espontânea e a oficial, ideológica, de forma que, uma vez desmon-
tada esta última, possa ser assumida a autenticidade não mediada
da primeira. Na verdade, estamos diante de uma multiplicidade de
memórias fragmentadas e internamente divididas. Todas, de uma
forma ou de outra, ideológica e culturalmente mediadas (Portelli,
2000, p. 107). Isso significa que fontes escritas e orais não são mu-
tuamente excludentes.

Elas têm em comum características autônomas e funções


específicas que somente uma ou outra pode preencher
(ou que um conjunto de fontes preenche melhor que o
outro). Desta forma, requerem instrumentos interpre-
tativos diferentes e específicos. (Portelli, 1997, p. 26).

Nessa direção, entendendo a história oral de vida como meto-


dologia de trabalho possível ao profissional de História, percebemos
que ela constitui uma alternativa às interpretações estruturais e um
contraponto ao discurso homogeneizador, que nega o caráter plural
dos acontecimentos. Parafraseando Raphael Samuel (1990, p. 232), o
uso da fonte oral não visa preencher vazios, e sim demonstrar, através
da memória dos sujeitos que narram, as múltiplas representações te-
cidas na vivência social, expressas na elaboração das narrativas desses
sujeitos e carregadas de significados ainda não plenamente explorados.

Sumário
264

Na busca por esses significados, a transcriação é uma ferra-


menta que traz para o centro do debate o pesquisador e o desafio de
transformar o texto oral em escrito. “O texto final... jamais poderia
ter sido pronunciado daquela maneira final pelo nosso interlocutor;
no entanto, cada palavra, cada frase, cada estrutura lhe pertence (ele
não disse, mas somente ele poderia ter dito)” (Caldas, 1999, p. 75).
Dar nome para a subjetividade intrínseca ao trabalho do his-
toriador é tarefa desconfortável, porém necessária, se almejamos
continuar a decifrar sinais e pistas do bicho homem no interior da
clareira da vida de sujeitos que, narrando suas histórias, dão sentido
aos seus viveres e aos de seus grupos sociais.

Referências

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oral de vida. São Paulo: Loyola, 1991.

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Rio de Janeiro: Ediouro, [s. d.].

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GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Cia. das
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Sumário
265

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PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto


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de História, São Paulo, v. 9, n. 19, set. 1989-fev. 1990.

Sumário
HISTÓRIA ORAL, MEMÓRIAS E MIGRAÇÕES
NA FRONTEIRA ENTRE BRASIL E PARAGUAI:
UMA ANÁLISE DE NARRATIVAS DE
TRABALHADORES BRASIGUAIOS

Jiani Fernando Langaro

Considerações iniciais

Historicamente as fronteiras foram fixadas para delimitar os


estados nacionais e dividir povos e nacionalidades. Todavia, os se-
res humanos resistem às delimitações territoriais que se tenta lhes
impor, ou seja, as migrações são inimigas das divisas. Há um desejo
ou mesmo uma necessidade de cruzar as linhas limítrofes, não por
um impulso natural, tampouco por determinações de forças extra-
-humanas: esse desejo ou imposição são historicamente construídos
e experienciados. Tal é o cenário presenciado nos limites entre Brasil
e Paraguai, uma fronteira rebelde em que as demarcações oficiais não
coincidem necessariamente com o vivido. Ao longo de todo o século
XX, paraguaios e brasileiros cruzaram a linha da fronteira para viver
do outro lado, num país em que não nasceram. Alguns emigraram
definitivamente de um país para se radicar no outro. Para outros, os
emigrantes retornados, essa experiência foi transitória.
Neste capítulo, analisamos as narrativas de pessoas que se en-
contram na segunda situação, a das “migrações de retorno”: brasileiros
que emigraram para o Paraguai, onde passaram boa parte de suas
vidas, e depois voltaram ao Brasil. Serão apresentadas entrevistas
267

orais com trabalhadores migrantes residentes em pequenas cidades


no lado brasileiro da fronteira entre Brasil e Paraguai. Essas pessoas
integram um movimento migratório mais amplo, formado de brasi-
leiros que emigraram para o país vizinho a partir da década de 1970,
o que, em ambos os países, rendeu-lhes a alcunha de brasiguaios.
As narrativas orais de que trataremos neste capítulo foram pro-
duzidas ainda na primeira metade da década de 2000, quando rea-
lizamos uma pesquisa de iniciação científica sobre o município de
Marechal Cândido Rondon, estado do Paraná, e outra investigação
para o mestrado, tendo como objeto de estudo o município de Santa
Helena, estado do Paraná.1 Embora nossos objetivos, naquela época
de feitura das entrevistas, não fossem trabalhar o trânsito humano pela
fronteira, aquele era um momento de grande retorno de brasiguaios,
e muitos deles procuravam se fixar nas áreas urbanas das pequenas
municipalidades brasileiras situadas na fronteira com o Paraguai.
Como já mantinham relações com essas cidades antes mesmo de
retornar ao Brasil, isso contribuiu para que as escolhessem como
local de residência. Por isso o trânsito fronteiriço ficou bastante acen-
tuado nas entrevistas orais, permitindo a posterior retomada dessas
narrativas com o objetivo específico de problematizar as relações dos
narradores com a fronteira.
Para este capítulo, serão analisadas as narrativas orais de quatro
destes trabalhadores brasiguaios pobres retornados ao Brasil, todos
eles apresentados aqui com nomes fictícios em respeito à sua privaci-
dade: Carlos, metalúrgico, morador da cidade de Marechal Cândido

1 A pesquisa de iniciação científica foi orientada pela Profa. Drª Geni Rosa
Duarte no curso integrado de Licenciatura e Bacharelado em História, na
Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Dela se originou o relatório
intitulado Escolarização, trabalho e vida urbana em Marechal Cândido
Rondon (Langaro, 2003). Já a pesquisa de mestrado foi orientada pelo Prof.
Dr. Paulo Roberto de Almeida, no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Uberlândia. Deu origem à dissertação Para além de
pioneiros e forasteiros: outras histórias do Oeste do Paraná (Langaro, 2006).

Sumário
268

Rondon, estado do Paraná, e cuja entrevista foi realizada em 7 de


dezembro de 2002, quando ele tinha 29 anos; Alberto, servente de
pedreiro, habitante da mesma cidade, entrevista realizada em 29 de
novembro de 2002, estando ele com 24 anos; Renato, construtor,
morador da cidade de Santa Helena, estado do Paraná, e entrevistado
em 9 de julho de 2004, aos 32 anos; Fernando, eletricista, residente
na mesma cidade, entrevista ocorrida em 11 de julho de 2004, quando
ele contava com 27 anos.
Esses quatro narradores foram escolhidos em virtude de sua “re-
presentatividade”, que, segundo Alessandro Portelli (1996), não está
ligada à sua capacidade para expressar o que pensa a média de uma
sociedade; para ele, um narrador é representativo quando consegue
articular narrativamente elementos compartilhados por seu grupo
social. Assim, representatividade se refere mais a possibilidades que
a médias. No caso dos narradores selecionados, a representativida-
de de suas falas permitiu confrontar visões e tendências narrativas
antagônicas sobre o Paraguai.
No momento histórico em que realizamos as entrevistas, ficou
patente a recorrência de certos enredos – no sentido de padrões
narrativos – para expressar o tempo vivido no estrangeiro. Quando
retomamos as narrativas orais, conseguimos, após uma análise apro-
fundada dessas fontes, distinguir dois enredos muito nitidamente, um
que apresenta a vida no Paraguai destacando seus aspectos negativos
e outro que a apresenta de forma positiva. Duas das narrativas são
povoadas por elementos auspiciosos e até mesmo romantizados da vida
no outro lado da fronteira; nas outras duas, a tônica são os aspectos
negativos sobre o lugar. Duas formas relativamente padronizadas de
lembrar as trajetórias pessoal e familiar no além-fronteira.
As quatro narrativas trazem em comum o universo masculino,
remetendo à vida cotidiana de homens que trabalhavam no campo,
no país vizinho. A escolha das narrativas masculinas, no entanto, não
foi decorrente de um critério estabelecido previamente. Como já
afirmamos, as pesquisas que originaram as entrevistas orais abordadas

Sumário
269

neste capítulo foram produzidas sem a pretensão inicial de proble-


matizar a vida na fronteira, temática explorada posteriormente ao
retomarmos essas narrativas para lançar sobre elas novas interrogações.
Assim, quando realizamos as entrevistas, não houve preocupação em
formar um conjunto heterogêneo de narradores que contassem suas
experiências fronteiriças, pois, como as pesquisas desenvolvidas na
primeira metade da década de 2000 eram mais amplas, a heteroge-
neidade no interior do grupo de entrevistados se dava em outros ter-
mos. Somem-se a esse fato as dificuldades que tivemos em encontrar
mulheres brasiguaias dispostas a dar entrevistas, principalmente no
estudo realizado em Marechal Cândido Rondon. Entendemos que
essa questão não inviabiliza nossa reflexão, mas requer considerações
quanto às possibilidades de trabalhar com narrativas femininas dentro
da proposta de corpus documental mencionada e dos parâmetros
estabelecidos pela metodologia de análise da história oral. Embora
este não seja um estudo sobre relações de gênero e sexualidades, tais
questões servem de convite para novas e futuras discussões.
No tocante à metodologia, as entrevistas são concebidas e anali-
sadas nesta pesquisa à luz de autores como Alessandro Portelli (1996),
Alistair Thomson (1997, 1998), Janaina Amado (1995), Heloisa Helena
Pacheco Cardoso (2004), Yara Aun Khoury (2004), Luisa Passerini
(1993), Robson Laverdi (2005), Silvia Salvatici (2003) e Verena Alberti
(2008). Esse conjunto variado de referências sinaliza que as narrativas
orais devem ser analisadas como memórias em construção cultural-
mente mediadas e subjetivamente produzidas. Mais ainda, aponta que
o historiador deve saber lidar com as especificidades metodológicas da
história oral em vez de buscar uma pretensa objetividade nas falas e
tratá-las como verdade ou como mentira. É preciso também entender
as falas dentro da cultura em que são geradas, compreendendo cultura
como maneiras de viver em movimento ao longo do tempo (Williams,
1979). Se as falas têm ligação com a cultura dos falantes, os sentidos
e os significados produzidos pelos entrevistados são peças integrantes
e fundamentais de sua cultura.

Sumário
270

Assim, a preocupação aqui não é realizar um levantamento sobre


as condições de vida dos narradores no Paraguai, no intuito de efetuar
denúncias sociais. O objetivo central é entender como as narrativas
orais retratam as migrações pela fronteira, quais significados os entre-
vistados imprimem aos fatos narrados sobre suas vidas no exterior e
como estes significados auxiliam na compreensão de suas trajetórias
e culturas. Afinal, como indica Thompson (1987),2 eles são mediados
pela experiência social, que, no caso dos narradores, é formada com
base no lugar social que passaram a ocupar em seu retorno ao Brasil.
Esta não é a primeira vez que retomamos essas quatro entrevistas
com a finalidade de problematizar as memórias e experiências de vida
fronteiriças dos narradores. Em outras duas oportunidades, trabalhamos
com elas, tendo já produzido dois artigos baseados em seu conteúdo.
Na primeira publicação (Langaro, 2013), exploramos as narrativas
que focam nos aspectos negativos da vida no Paraguai; na segunda
(Langaro, 2014), tratamos da visão positiva e talvez romântica da vida
e do trabalho nesse país. Embora a opção por trabalhar separadamente
com cada um dos tipos de enredos fronteiriços nos tenha permitido
aprofundar a discussão, ao final da escrita de ambos os trabalhos,
houve um sentimento de incompletude. Parecia que faltava algo para
complementar o debate, como o caldeamento ou mesmo o contraponto
entre esses dois modos de narrar a vida no Paraguai.
Na tentativa de suprir essa lacuna, resolvemos mais uma vez
revisitar nossos narradores para tratar, agora de maneira conjunta
e/ou em contraposição, as visões negativada e positivada sobre o
Paraguai. Seus enredos sintetizam parcelas da complexidade existen-
te nas relações entre o Brasil e esse país vizinho. Particularmente,
constatamos que, embora o Paraguai seja tão próximo ao Brasil –

2 De acordo com E. P. Thompson (1987), a experiência humana é decorrente


da capacidade que as pessoas têm para tratar em suas consciências e com
base em seus referentes culturais a realidade vivida. Refere-se ao potencial
dos seres humanos para ler o mundo circundante e agir sobre ele de forma
não totalmente livre, mas também não totalmente determinada.

Sumário
271

física, comercial e diplomaticamente –, ele ainda é pouco conhecido


e muito incompreendido pelos brasileiros, e vice-versa. É sobre essa
complexidade das relações entre ambos os países e seus habitantes
que trataremos na próxima seção.

Brasil e Paraguai: complexas relações, uma história de tensões

No plano das relações internacionais, apesar da aproximação


ocorrida entre Brasil e Paraguai no final do século XX e da formação
do Mercado Comum do Sul (Mercosul), o envolvimento entre os
dois países é pontuado historicamente por conflitos, cuja expressão
máxima foi a Guerra do Paraguai (1864-1870). Também conhecida
como a Guerra da Tríplice Aliança ou Guerra Guasú, terminologia
empregada no Paraguai, esta é considerada o maior conflito bélico
da América do Sul. Configura-se como um trauma nas memórias
paraguaias, ainda muito presentes nos debates políticos nacionais
(Souchaud, 2011), sendo um dos marcos da subordinação do país
na área de política internacional.
Desenvolvidas no plano macropolítico, tais tensões acabam por
se espraiar por todo o tecido social, de maneira a interferir na vida
cotidiana de ambos os países. Atualmente, a imagem do Paraguai
circulante no Brasil é a de um país pobre, desorganizado, economi-
camente atrasado e, portanto, inferior. De modo análogo, no Paraguai
também circula uma imagem negativa dos brasileiros como povo
que subjugou os paraguaios com a vitória na guerra do século XIX,
suposta origem dos grandes problemas enfrentados pelo país no pre-
sente. Contribuem para esse quadro os inúmeros crimes de guerra
cometidos por brasileiros durante o grande confronto; a anexação
pelos vencedores, principalmente Brasil e Argentina, de terras em
litígio na fronteira com o Paraguai; a privatização de terras estatais
paraguaias, também imposta pelos vencedores, de forma a originar
o latifúndio e a grande concentração fundiária existentes naquele
país (Almeida Neto; Flores, 2014).

Sumário
272

Para agravar as tensões entre os dois países, a imigração brasileira


no Paraguai, intensificada desde a década de 1950, ocorreu no inte-
rior de um contexto problemático, sendo instigada pelas políticas de
desenvolvimento adotadas na ditadura do general Alfredo Stroessner.
Ou seja, essa imigração, aliás, expressiva, não resultou de um amplo
debate com a sociedade ou mesmo de uma discussão democrática
com as instituições paraguaias. Entre as décadas de 1970 e 1980, a
comunidade brasileira chegou a representar cerca de 10% da popu-
lação do Paraguai (Baller, 2008). Nesse período, empresas coloniza-
doras paraguaias venderam áreas rurais de diferentes dimensões para
agricultores brasileiros e, nas décadas de 1980 e 1990, verificou-se
nas regiões fronteiriças uma intensa concentração fundiária decor-
rente da modernização da agricultura. Tal concentração, entretanto,
não se verificou apenas no Brasil, mas também no Paraguai (Silva,
2010). Após a derrota do regime de Stroessner, sucedida em 1989,
movimentos reivindicatórios de políticas de reforma agrária passaram
a questionar a presença de brasileiros e de suas propriedades rurais
no país (Baller, 2008). Nessas circunstâncias, as memórias da guerra
são invocadas para denunciar que a submissão do país ao estrangeiro
contribuiu para excluir a população paraguaia do acesso à terra, e
o nacionalismo passa a ser o elemento balizador de reivindicações.
No contexto dos anos de 1970 e 1980, brasileiros de diferentes
níveis sociais adquiriram terras no país vizinho, desde pequenos e
médios agricultores até latifundiários. Para lá afluíram também os
pequenos posseiros, aqueles que cultivavam áreas rurais sem as
ter comprado ou regularizado perante a justiça. Os posseiros eram
trabalhadores rurais pobres que, em grande fluxo migratório, na
década de 1980, dirigiram-se ao Paraguai para trabalhar no cultivo
de hortelã, recebendo terras cedidas pelas empresas colonizadoras
para que fizessem nelas o trabalho de desmatamento. A partir da ex-
pansão da produção mecanizada de soja no Paraguai, principalmente
na década de 1990, esses posseiros sofreram pressão para deixar ou

Sumário
273

comprar as terras, cujos valores eram majorados pela especulação


imobiliária. Assim, ante a impossibilidade de se tornarem pequenos
proprietários, muitos retornaram ao Brasil (Silva, 2010).
Os posseiros geralmente eram “caboclos”, como são geralmente
chamados na fronteira os brasileiros mestiços, ao passo que, nos ou-
tros estratos de proprietários, era mais comum encontrar brasileiros
brancos, descendentes de europeus. Deixando o Sul do Brasil, onde
já eram pequenos ou médios proprietários, estes emigravam para
o Leste do Paraguai e ali conseguiam adquirir áreas maiores para
o cultivo. Entre os motivos para a emigração, esse segundo grupo
citava o desejo de obter propriedades que pudessem ser partilhadas
com os filhos como herança; o fato de possuir, no Brasil, uma área
muito diminuta e, portanto, inviável para a modernização agrícola
ou de ter sido desapropriado para a edificação de grandes obras
governamentais, como a Usina Hidrelétrica de Itaipu, construída na
região fronteiriça na passagem da década de 1970 para a de 1980; a
necessidade de desistir de uma área rural no Brasil por falta da devida
regulamentação dessa área sob o ponto de vista legal.
Embora as atividades rurais tenham sido o grande chamariz
do Paraguai, dentro do universo pesquisado fica perceptível que
muitos brasileiros não conseguiram sobreviver no campo nesse país.
Os motivos foram variados, envolvendo a condição de posseiros, os
conflitos fundiários e as dificuldades em permanecer no meio rural
em face do baixo subsídio estatal à agricultura. Esses e outros fatores
resultaram em um violento processo de concentração fundiária no
Paraguai, na passagem do século XX para o XXI.
Em seu retorno ao Brasil, muitos daqueles brasileiros, empobre-
cidos e na condição de trabalhadores rurais sem terra, acabaram por
se integrar aos movimentos brasileiros de luta pela reforma agrária.
Aliás, foi no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que se
forjou o termo “brasiguaio” para denominar esses brasileiros pobres
que emigraram para o Paraguai e depois voltaram ao solo pátrio:
“O termo foi a expressão e bandeira de luta dos migrantes [e serviu

Sumário
274

para representá-los na imprensa], que levou a situação vivida por eles


ao conhecimento de todo o país” (Silva, 2010, p. 17).
Brasiguaio, no entanto, é um vocábulo de difícil conceituação,
pois, ao longo do tempo, adquiriu diferentes sentidos, como aponta
Leandro Baller (2008, p. 163-164):

Para os especialistas e pesquisadores brasileiros que tra-


balham o tema, o brasiguaio é compreendido como o
migrante brasileiro que foi ao Paraguai e não conseguiu se
reproduzir enquanto agricultor. Sofreu o desgaste de dé-
cadas de trabalho em terras estrangeiras e posteriormente
retornou ao Brasil, fomentando as periferias das cidades
do oeste paranaense e/ou a população do movimento
de trabalhadores sem terras, e por último ainda vive em
condições precárias no país vizinho ou no Brasil. [...] Por
outro lado, a maioria dos pesquisadores paraguaios, salvo
algumas exceções, como o sociólogo Ramón Fogel, com-
preendem como brasiguaios todos os brasileiros que foram
ao Paraguai desde o início do movimento migratório que
deriva do final da década de 1950, adentrando as décadas
seguintes. Outra percepção desse novo indivíduo que ha-
bita os dois países e é dinamizador do espaço fronteiriço
vem da imprensa, que amplia a noção de quem possa ser
o brasiguaio. Tanto a imprensa brasileira como a paraguaia
não procuram especificar quem ele realmente seja, au-
mentando a disposição de pessoas que, queiram ou não,
são introjetadas enquanto brasiguaios no cenário social.

Das perspectivas descritas, brasiguaio pode designar tanto os


trabalhadores brasileiros pobres que viveram no Paraguai e retorna-
ram ao Brasil, como todos aqueles brasileiros que se radicaram no
país vizinho, sem distinções de classe. Enquanto as duas primeiras
definições são muito empregadas pelos intelectuais do Brasil, a última
é adotada pelas mídias paraguaia e brasileira.
Nas pequenas cidades da fronteira do Brasil com o Paraguai,
em especial no estado do Paraná, o termo adquiriu conotações pe-
jorativas para definir aqueles que seriam considerados como cida-
Sumário
275

dãos de segunda categoria, não portadores de direitos. Trata-se de


uma região que nutre uma autoimagem de sociedade fundada por
proprietários rurais descendentes de europeus, principalmente de
alemães e italianos. Os integrantes dessa sociedade não concebem
de maneira positiva aqueles que deixam o campo, principalmente
se eles são pobres e mestiços, e/ou se viveram alguns anos no outro
lado da fronteira, mesmo que nesta estadia sequer tenham apren-
dido os idiomas dos “vizinhos”. Para justificar esses preconceitos,
alegam que retornar ao Brasil nem sempre significa uma ruptura
total dos vínculos pessoais e de trabalho com o país vizinho (Silva,
2010). Diante do sentido depreciativo aplicado ao termo, brasiguaio
é comumente uma denominação externa aos sujeitos, não assumida
como uma identidade pelos retornados do Paraguai.
Foi nesse contexto que tomamos contato com tais sujeitos nas
pesquisas realizadas entre julho de 2002 e janeiro de 2006, quando
eles já habitavam as pequenas cidades brasileiras de fronteira, onde
encontraram alguma dificuldade para se inserir socialmente. Ao
analisar suas trajetórias, percebemos que a fronteira não implica
apenas questões de ordem legal e diplomática, mas também relações
sociais e culturais, com a consequente produção de significados
sobre ambos os países. No interior desse universo significativo é
que problematizaremos aqui aqueles dois enredos mencionados,
muito marcantes nas narrativas dos entrevistados, um que apresenta
memórias positivas da vida no Paraguai e outro que apresenta o país
vizinho por meio da negatividade.

O Paraguai positivo: a romantização da


vida no campo no país vizinho

Para os nossos narradores, lembrar da vida no Paraguai não requer


somente refletir sobre o tempo em que residiram no exterior, mas
também sobre o trabalho e o cotidiano no campo. Tais narrativas são
produzidas à luz de um momento posterior em suas trajetórias, após

Sumário
276

seu retorno ao Brasil e sua inserção no meio urbano de pequenas


cidades fronteiriças. Portanto, elas lidam com os clichês elaborados
sobre Brasil e Paraguai, e ainda com aqueles remissivos ao campo e à
cidade. Ler e interpretar o rural e o urbano, no mundo contemporâneo,
é lidar com lugares-comuns. Em O campo e a cidade: na história e
na literatura, obra clássica sobre o tema, Raymond Williams (1990)
estuda as imagens historicamente cristalizadas sobre esses dois am-
bientes. O autor apresenta intrigantes conclusões especificamente
sobre a prática de romantizar determinado passado rural, muito
observada na literatura inglesa do período da Revolução Industrial.
Conforme assinala, essa literatura que trata o campo como um lugar
idílico, em que as pessoas levavam uma vida simples e sem grandes
conflitos sociais, era produto de uma leitura romantizada que os es-
critores do tempo da Revolução Industrial faziam do Medievo. Como
sabemos, nesse período da história, a Idade Média, a violência e as
hierarquias sociais faziam sentir seu peso sobremaneira no ambiente
rural. Entretanto, o tempo da Revolução Industrial, período em que
eram escritas as obras literárias analisadas por Williams, compunha
um contexto histórico de violentas transformações no campo, em
que se verificou um árduo processo de concentração fundiária e
expulsão das populações camponesas dos meios rurais. Assim, Wil-
liams defende que a leitura romantizada do campo medieval era uma
resposta dos escritores do período da Revolução Industrial ao duro
processo verificado no meio rural de seu tempo. Portanto, conforme
pontua, todas essas construções sobre campo e cidade são gestadas
nas relações sociais vividas pelos escritores e constituem intervenções
nas realidades por eles vividas.
O caminho trilhado por Williams (1990) para construir sua
reflexão é uma inspiração para pensarmos as narrativas orais. Para o
autor, não caberia discutir a obra dos escritores ingleses do período
industrial sob o crivo da verossimilhança, mas pensar nas relações
sociais com que eles dialogavam no momento de elaboração de seus

Sumário
277

livros e na intervenção criativa que pretendiam produzir no mundo


em que viviam. De maneira semelhante, não devemos buscar nas
memórias sobre campo e cidade, presentes em entrevistas orais, uma
fidedignidade à realidade histórica. Ela seria impossível, porquanto
a realidade é lida de múltiplas formas por diferentes pessoas. En-
tendemos, pois, ser bem mais proveitoso explorar as relações sociais
subjacentes às narrativas e os significados políticos resultantes da
intervenção na realidade, os quais moldam as entrevistas orais tanto
em relação à forma como ao conteúdo.
Assim, por mais idílicas e romantizadas que sejam as memórias
sobre a vida no campo no Paraguai, tais aspectos não invalidam as
narrativas. Amparados na discussão feita por Alessandro Portelli
sobre o conceito de subjetividade, compreendemos que o ideal é
procurar entender o universo de valores e sentidos compartilhados
pelos narradores com seu grupo social e materializados nas narrativas
orais, em vez de tentar corrigi-las ou separar o subjetivo e o objetivo,
tarefa inglória e impossível ao historiador.3
Nessa perspectiva, iniciaremos a discussão das entrevistas orais
com a narrativa de Carlos, já apresentado na seção anterior juntamente
com os demais narradores, Alberto, Renato e Fernando. Nascido em
Bom Destino, estado do Espírito Santo, Carlos partiria mais tarde com
sua família rumo a São Paulo, onde moraram por pouco tempo, tendo
se deslocado em seguida para Marechal Cândido Rondon, estado do
Paraná, a fim de trabalhar no cultivo de hortelã. Segundo o narrador,

3 Para Alessandro Portelli (1996), a subjetividade não é um defeito, mas o


elemento de maior riqueza possível presente nas fontes orais. Segundo ele, é
inútil ao pesquisador querer separar os aspectos subjetivos dos objetivos numa
entrevista, pois ambos são intimamente amalgamados, sendo impossível dife-
renciá-los. Mais que impossível, tal intento constituiria um erro metodológico,
pois a subjetividade de uma narrativa não é uma distorção da “verdade”, mas
a forma como os narradores organizam individualmente processos vividos e
lembrados coletivamente, impregnando-os com os valores de seu grupo social.
Cabe aos historiadores, enfim, ficar atentos à subjetividade das narrativas orais
e explorá-la adequadamente, para que seja possível o estudo não apenas dos
fatos narrados, mas também da cultura dos narradores.
Sumário
278

a decisão de deixar o Brasil foi motivada pelo falecimento do pai, pois,


para a mãe e os irmãos mais velhos, tornara-se muito difícil sustentar a
família em Marechal Cândido Rondon. Dessa maneira, eles se dirigiram
para a região de Marangatu, departamento (equivalente a província
ou estado) de Canindeyú, no Paraguai, onde, na época da entrevista,
possuíam uma pequena área de terras que somavam sete alqueires
paulistas,4 administrados pelo irmão de Carlos. Aos quatorze anos de
idade, o entrevistado passou a trabalhar nas fazendas da redondeza,
atuando, inclusive, como tratorista, a fim de obter renda própria. Ali
permaneceu até os 26 anos, quando emigrou de volta para o Brasil.
Carlos recorda de forma bastante positiva esse período de sua
vida em que trabalhou e viveu na zona rural do país vizinho:

Era boi berrando... e... roça plantando... e... a gente...


motosserra derrubando mato... [...] já recebia lá, a cada
seis meses ia chegar o pagamento, né? Daí a gente já
perdia, então, um pouco dos dias que tinha marcado, né?
[O patrão] Chegava, fazia uma festa e... pagava... saía.5
(Entrevista concedida em Marechal Cândido Rondon,
PR, 7 de dezembro de 2002).

As possíveis tensões existentes nas relações de trabalho, como


as decorrentes dos dias de serviço não pagos, são ignoradas no relato,
prevalecendo as relações amistosas, relembradas por meio das imagens
das festas que o patrão fazia para os empregados, quando do paga-
mento, marcas de relações trabalhistas mediadas pelo paternalismo.
Colabora para tal perspectiva o quadro traçado na citação acima, em

4 O gentílico “paulista” acompanha a denominação da unidade de medida


porque a extensão de um alqueire não é uniforme em todo o Brasil, experi-
mentando variações regionais. Cada alqueire paulista corresponde a 24.200
metros quadrados.
5 A pontuação das transcrições de passagens das entrevistas orais, princi-
palmente o uso da vírgula e das reticências, segue a lógica da oralidade
do narrador, com suas pausas curtas e longas, e não preceitos gramaticais
rígidos da língua portuguesa.

Sumário
279

que Carlos coloca o trabalho no campo em primeiro plano, acima das


divisões sociais. Nesse quadro, a fazenda também é descrita como
um ambiente harmonioso, um lugar ordenado: a natureza domada (as
vacas) ou em processo de conquista (a floresta sendo derrubada pelas
motosserras) compõe com os seres humanos uma mesma dimensão.
Ao responder nossa questão sobre sua infância no Leste do
Paraguai, a perspectiva do narrador é extremamente otimista, de
forma que ele apresenta esse período e lugar como uma espécie de
“paraíso perdido”. Em suas lembranças, a caça, a pesca e o trabalho
no campo, na companhia dos irmãos e amigos, são apresentados
como parte de um tempo de muita diversão, ainda que a caça e a
pesca tivessem como objetivo também a subsistência das famílias,
e não apenas o lazer. O trabalho no campo, mesmo exigindo muito
esforço, é igualmente apresentado como parte de um contexto festivo,
imagem resultante da memória positiva construída sobre o Paraguai.
O narrador faz aqui uma “recomposição” de suas memórias
correspondentes à experiência social vivida na infância e no início
da adolescência.6 Esse período é lembrado de forma nostálgica, ao
contrário do que acontece quando Carlos narra especificamente a
vida na fazenda do patrão: embora ela também seja recordada de
maneira positiva, aparece imersa em um sentido de ordem que abar-
ca natureza e seres humanos, conforme pontuamos anteriormente.
Essas memórias podem indicar a diferença vivenciada pelo narrador
no regime e na disciplina de trabalho, pois, à medida que passa a
laborar fora do círculo familiar e do ambiente doméstico, a “festa”
dá espaço à “vida adulta”. Isso, no entanto, não é narrado por Carlos
de forma trágica ou como uma ruptura em suas maneiras de viver,

6 De acordo com Alistair Thomson (1997), a “recomposição” de memórias é a


maneira pela qual os narradores reorganizam, no e em função do presente,
as reminiscências de experiências passadas. O objetivo da reorganização é
sentir-se confortável com as próprias recordações no tempo presente, superar
lembranças de passagens difíceis da vida e vencer traumas. É o processo
que permite às pessoas lidar com memórias desagradáveis e utilizá-las para
dar sentido (político, inclusive) às suas vidas no presente.

Sumário
280

uma vez que ele se identifica com as lides do campo. O quadro – de


certa forma romântico – traçado por Carlos para o período em que
viveu no Paraguai possivelmente emergiu como um contraponto às
formas adversas como ele se inseriu no universo urbano, ao retornar
ao Brasil, por volta de 1999, com 26 anos de idade. Na ocasião, a
falta de escolaridade e de experiência em atividades urbanas o relegou
ao subemprego nas agroindústrias locais. Sua trajetória na cidade,
portanto, não representou uma conquista de qualidade de vida, mas
grandes dificuldades para conseguir sobreviver.
O segundo narrador, Alberto, nasceu em Saudades, estado de
Santa Catarina, onde viveu com seus seis irmãos. Após o falecimento
de seu pai, a família também emigrou para o Leste do Paraguai, para a
localidade de Troncal Quatro. Conforme aponta, também eram peque-
nos produtores rurais que, a custo, procuravam manter-se no campo.
Quando relata a vida no país vizinho, o narrador apresenta o
campo, onde viveu com a família, usando os mesmos clichês adotados
por outros brasileiros que também ali residiram: o isolamento do local
onde moravam, o contato com a mata e demais empecilhos enfren-
tados para o estabelecimento da família. Porém, em determinado
momento, a fala muda de rumo e Alberto passa a elencar os pontos
positivos da vida que levou no exterior: “Lá, choveu tu não faz nada, e
anda para cima, para baixo, caçando e... meio jogando bola [futebol].
[...] Jogava baralho...” (Entrevista concedida em Marechal Cândido
Rondon, PR, 29 de novembro de 2002). Além de citar diferentes
formas de lazer, o narrador destaca que aquela sociedade não era
dominada pelo materialismo e pelo jogo de aparências, características
que compreende como típicas do universo urbano:

No interior tu usa um calção assim, um[a] camisa... o que


tu quiser vestir está bom. E na cidade já não, na cidade
já tu sai... mal-arrumado... para começar, se tu não tem
dinheiro, tu dentro da cidade não é ninguém também,
daí... as primeiras vezes e... não gostei nada, nada da
cidade, viu? Por qualquer coisinha estava voltando para

Sumário
281

trás. Mas depois peguei o costume de... da cidade... saía


com os amigos... ia para baile, ia por... por tudo que é
canto, festinha de aniversário, por aí. É, fui pegando o
jeito e... até hoje [estou] na cidade, mas se... por acaso
tiver algum dia que... resolvo de ir para a cidade, [corrige
a informação] para o interior [zona rural], eu mudo de
novo. Não desprezo o interior de jeito nenhum, né... mas...,
por enquanto, eu estou bem aqui... e sei lá..., pode surgir
algumas outras coisas melhores, mais tarde né, mais, sei
lá. (Entrevista concedida em Marechal Cândido Rondon,
PR, 29 de novembro de 2002).

Nesse momento, notamos uma contraposição entre o passado,


vivido na zona rural do Leste do Paraguai, e o presente, em que o
narrador residia em Marechal Cândido Rondon. Na cidade brasileira,
Alberto não possuía um trabalho fixo, era servente de pedreiro diarista,
morava na periferia e encontrava-se em processo de alfabetização.
É nesse ambiente, marcado pelo peso das hierarquias sociais, que
ele recorda o período anterior à mudança focando em temas como
a simplicidade do ambiente rural, com que se identificava e onde
se sentia mais à vontade.
Alberto demonstra cuidado ao falar dos problemas vivenciados
no país vizinho e evita lançar um olhar estereotipado sobre aquela
realidade. Segundo ele, gostava de morar lá, e somente se mudou
para a cidade, por volta do ano de 1998, em função da pressão feita
por sua família, já quase integralmente retornada ao Brasil. Embora
não compreendesse o tempo presente de forma trágica ou puramente
negativa, em determinado trecho da entrevista, chegou a afirmar que
ainda nutria o desejo de voltar ao meio rural do Paraguai.

O Paraguai sob o manto da negatividade: intercruzamentos


entre estereótipos nacionais e relações entre campo e cidade

As narrativas orais que tratam da vida no Paraguai pelo prisma


negativo referem-se ao país vizinho por meio de elementos impregna-
dos de estereótipos e de carga pejorativa. Como Williams (1990) bem
Sumário
282

pontuou, o próprio meio rural nem sempre é lembrado de maneira


positiva; muitas vezes, ele é significado negativamente. A contrapo-
sição entre campo e cidade, não raro, resulta em uma visão favorável
ao urbano e prejudicial ao rural. Esse contraponto está presente nas
narrativas orais que analisamos, cuja visão sobre o passado rural toma
por base um presente urbano. Assim, nessas narrativas, as imagens
depreciativas do Paraguai se coadunam com as visões negativas sobre
o campo, existindo uma simbiose entre ambas.
Começaremos a explorar esse enredo negativo com a entrevista
de Renato, que nasceu na zona rural do município de Santa Helena,
estado do Paraná, e, aos nove anos de idade, deixou a região do Oeste
paranaense juntamente com sua família para morar em Rebouças, no
Centro-Oeste do estado. A família fora desapropriada de uma área
rural que possuía, na qual seria construída a usina hidrelétrica de
Itaipu. A cidade de Rebouças foi destino comum de muitos agricul-
tores expulsos do Oeste do Paraná pelo empreendimento hidrelétrico
levado a cabo pela ditadura militar. No município havia terras pouco
férteis, porém a preços acessíveis para quem só contava com o parco
dinheiro da indenização recebida em virtude da desapropriação.
A mudança para o Leste do Paraguai ocorreu em 1991, quando
Renato tinha dezenove anos de idade. Sem a família, ele foi morar
na região de Vila Procópio, departamento de Alto Paraná. Foi para
lá a contragosto, pois seus irmãos, administradores dos negócios da
família, compraram uma área de terras naquela região e o investiram
da função de tomar conta da pequena propriedade, enquanto eles
e sua mãe permaneceram em Rebouças. A área possuía titulação,
e Renato, que, inicialmente, havia emigrado sem a documentação
legal, adquiriu o visto da imigração paraguaia, não tendo dificuldades
para permanecer ali, sob o ponto de vista jurídico. A compra foi uma
forma de manter a família no campo, uma vez que, em Rebouças,
eles eram oito irmãos para dividir uma área de quatorze alqueires
paulistas, extensão insuficiente para a sobrevivência de todos eles
como agricultores.

Sumário
283

A zona rural de Vila Procópio, no Leste do Paraguai, é caracterizada


por Renato como um lugar habitado majoritariamente por brasileiros.
A narrativa dele é marcada pelas dificuldades lá vividas, tais como a
falta de móveis e utensílios domésticos em sua casa e a ausência de
energia elétrica, que o forçava a mudar a alimentação: para contornar a
falta de um congelador e não estragar os alimentos, ele precisava salgar
muito o feijão ou fazer charque com a carne, salgando-a e colocando-a
na banha. As falas sobre o desconforto vivido nesse local são fortes e
assumem o foco da entrevista nas passagens que se referem ao Paraguai.
Em outro momento, ao tratarmos mais a fundo de seus hábitos
alimentares, tanto do passado como do presente, Renato retornou a
esse tema, discutindo novamente as privações vividas no estrangeiro:
“No Paraguai eu tive épocas lá, que... [tosse] até inclusive quando...
[tom de voz mais baixo] eu estava ca... com a minha [volta ao tom de
voz normal] ex-mulher, ela estava... grávida, né, e a gente não tinha
de onde tirar... é... o pão” (Entrevista concedida em Santa Helena,
PR, 9 de julho de 2004). A falta de dinheiro para comprar comida
decorria da escassez de trabalho como diarista rural, desempenhado
paralelamente às lides do sítio da família, e da carência de produtos
para comercializar, como soja e milho. O narrador tampouco podia
contar com aquilo que era passível de ser produzido no próprio sí-
tio, como animais para consumo. Estes haviam sido destruídos por
circunstâncias locais, como a febre aftosa, endêmica naquela região,
na época, e o ataque de animais selvagens, muito presentes no lugar.
Renato se esforça para nos convencer de que tal situação não fora
gerada por falta de empenho pessoal ou de zelo com a propriedade,
mas por elementos alheios à sua vontade. Como forma de atestar
sua capacidade em superar tais obstáculos, ele destaca ainda que a
filha nasceu com boa saúde, apesar dessas intempéries. Com isso,
ele sugere que, mesmo tendo vivido tantos problemas, não deixou
que a família padecesse. Nesse momento, o narrador constrói a si
mesmo como um bom chefe de família, procurando, provavelmente,

Sumário
284

compensar a passagem em que relatou terem passado fome. A in-


tenção é deixar claro que, a despeito das situações delicadas, ele foi
um bom pai e marido, cumprindo seu papel de homem “provedor”,
ainda muito difundido na sociedade brasileira.
Notamos que muitas das adversidades relatadas são configuradas
pelas condições de vida enfrentadas pelo narrador, segundo ele, de-
correntes da situação de pobreza em que se mudara para o Paraguai
e da precária estrutura ali existente. Seus problemas não se referem
ao convívio interpessoal, que não é tratado por Renato como algo
gerador de tensões: “A gente se sentia como se fosse aqui no Brasil
porque... em matéria de pessoas, né, porque [...] só tinha brasileiro
[em Vila Procópio]” (Entrevista concedida em Santa Helena, PR,
9 de julho de 2004). Renato construiu sociabilidades com os com-
patriotas, que formavam a maioria da população de Vila Procópio,
segundo relatou. No momento da entrevista, muitos deles também
já haviam voltado ao Brasil, vivam em Santa Helena e continuavam
a manter contato com o narrador. Em outros trechos da entrevista,
Renato explica que mesmo o lazer na localidade de Vila Procópio não
diferia muito daquilo que tinha vivido na zona rural do Paraná. No
país vizinho, aprendeu tão somente um espanhol rudimentar e não
se naturalizou paraguaio. Sem contar que sua filha nasceu em Santa
Helena, onde vivia a família de sua ex-esposa, e foi registrada como
cidadã brasileira, prática comum entre os trabalhadores brasiguaios.
Os habitantes paraguaios e os possíveis conflitos vividos no estrangeiro
são silenciados por Renato, provavelmente como forma de afirmar-se
como brasileiro, mesmo tendo vivido alguns anos fora do país.
Em outra passagem marcante, ele contrapõe sua trajetória no país
vizinho à do irmão mais velho, que, depois dele, também emigrara
para lá. Esse irmão é apresentado como alguém de sucesso, pois
tivera melhores condições financeiras para investir em sua proprie-
dade estrangeira. Já trabalhava na agricultura e era independente dos
demais. Conseguiu acumular certo capital, aproveitando, inclusive, para

Sumário
285

comprar áreas vizinhas e carentes de titulação, no Paraguai. Renato,


ao contrário, possuía, no país vizinho, uma área rural muito diminuta,
cuja propriedade dividia com outros irmãos, e, sem dinheiro suficiente
para investir, não conseguira obter sucesso no empreendimento rural.
Ao longo dos cinco anos que viveu no exterior, casou-se com uma
brasiguaia e teve uma filha. Nesse intervalo de tempo, alguns de seus
irmãos, sócios da área rural, mudaram para aquele local e passaram
a morar junto com Renato e sua família. Depois de alguns conflitos
familiares, por volta de 1996-1997, ele, a esposa e a filha deixaram o
Paraguai e retornaram ao Brasil, para a cidade de Santa Helena, estado
do Paraná. A mudança foi motivada, também, pelo convite do cunhado
de Renato, que era mestre de obras e lhe ofereceu emprego como ser-
vente de pedreiro, além de prestar-lhe sua solidariedade ensinando-lhe
a nova profissão. A área de terras do Paraguai ficou com seus irmãos,
que posteriormente a venderam para vizinhos latifundiários. A despeito
do árduo trabalho na construção civil, Renato se profissionalizou nes-
se ramo e se tornou construtor, ascendeu economicamente e voltou
a estudar. Por essa razão, talvez, perceba de maneira tão negativa o
tempo em que viveu no Paraguai trabalhando no campo, sem obter
resultados tão bons como na profissão atual.
Tomar as dificuldades vividas no Paraguai como enredo não é
exclusividade de Renato, já que encontramos elementos semelhantes
na entrevista realizada com Fernando. Segundo afirmou o narrador,
seus pais eram sergipanos e deixaram o Nordeste do Brasil na déca-
da de 1970, “fugindo” para se casar, pois a família de sua mãe não
aprovava a união. Nesse período, a mãe de Fernando tinha dezoito
anos e o pai, vinte. De Sergipe, eles mudaram para São Paulo e, após
alguns meses, dirigiram-se para Matelândia, no Oeste do Paraná, onde
vivia um amigo de seu pai. Foi nessa cidade que Fernando nasceu.
Além das questões que envolveram motivos pessoais, Matelândia
foi escolhida num contexto de intensa migração de trabalhadores
evadidos das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil nas décadas de
1960 e 1970 (Laverdi, 2005). Na época, Matelândia ficou conheci-

Sumário
286

da na região por ter sido palco de conflitos agrários entre os muitos


posseiros que a habitavam. Possivelmente o pai de Fernando e o
amigo dele foram residir no local a fim de obter uma área de terras
para trabalhar. Do mesmo modo, a conquista de uma propriedade
rural estava entre os objetivos da família do narrador quando eles se
mudaram para o Paraguai, entendendo que, naquele país, tal em-
preendimento seria realizado com menos dificuldades. Inicialmente,
atuaram na agricultura da região de Vila Procópio trabalhando com
hortelã, na condição de posseiros. Mais tarde, venderam a terra e
deixaram o campo, deslocando-se por diversas localidades paraguaias
e passando a exercer atividades comerciais.
Silva (2010) aponta os problemas enfrentados pelos trabalha-
dores da hortelã para permanecer nas terras cultivadas no Leste
do Paraguai. Porém, nas memórias de Fernando, as sucessivas mu-
danças de locais de moradia não se deviam a essas dificuldades, mas
exclusivamente à vontade de seu pai e à sua suposta falta de plane-
jamento das atividades com que trabalhava. A mudança da família
para o Paraguai – quando Fernando ainda era um bebê – também
é interpretada como motivada unicamente pelo desejo de seu pai,
que teria preferido morar em lugares mais remotos como forma de
não se integrar à modernidade.
Todavia esses deslocamentos podem ter sido uma consequência
do empenho de seus pais por permanecer no campo por meio da
obtenção de terras para plantar, quando eram jovens e possuíam saúde
e disposição para (e)migrar. Assim teriam ido em busca de regiões sem
grande infraestrutura instalada, na esperança de adquirir terras para
si e sua prole. Também podemos compreender de maneira diferente
as outras atividades da família em cidades paraguaias – vender frutas
ou pipocas, por exemplo –, entendendo-as como a improvisação de
alternativas para sobrevivência quando o trabalho rural não lhe era
mais possível. Ou seja, não se tratava de mera vontade ou falta de
planejamento: eram trabalhadores rurais com pouca escolaridade
e baixa qualificação, o que limitava seu acesso ao trabalho urbano.

Sumário
287

Fernando, porém, lembra e narra com outro olhar essas passagens


de sua vida, e é justamente sobre a forma como ele recorda seu tempo de
permanência no Paraguai que precisamos refletir. Seu ponto de partida
para relatar sua vida no país vizinho são as dificuldades lá encontradas.
O Paraguai surge em sua narrativa como local onde os trabalhadores
rurais eram submetidos à moradia e alimentação de baixa qualidade,
levando uma vida insalubre, responsável pela má formação física das
crianças. Mas Fernando ressalta principalmente o trabalho extenuante,
realizado no campo, quando ainda era criança e adolescente.

A gente trabalhava, direto na lavoura, e... passamos por


momentos lá difíceis, [...] alimentação, péssima, sabe,
alimentação, assim, era terrível [pausa]. [...] [Morávamos]
em casas... feitas de... madeira, cobertas com folhas tipo de
sapé, aquelas... coberturas, terríveis. (Entrevista concedida
em Santa Helena, PR, 11 de julho de 2004).

Um diferencial entre a narrativa de Fernando e a de Renato está


na maneira como enxergam o convívio com os paraguaios: ao passo que
o segundo silencia os conflitos interpessoais, o primeiro trata a convi-
vência com os habitantes do país vizinho como parte da negatividade
desse país. Ao relatar sobre a vida em Hernandarias, uma das cidades
paraguaias em que viveu, destaca que os paraguaios não gostavam
de brasileiros e interpreta essa questão como resquícios de conflitos
com o Brasil, como a Guerra do Paraguai, em que este foi derrotado:7

Quando eu fui morar em Hernandarias, eu tive [um] ami-


go paraguaio, assim, [pausa] mas na verdade ele é amigo
seu assim... tem que ficar sempre esperto com ele, sabe,

7 A guerra é o grande marco da história do Paraguai, sendo entendida como a


razão fundamental do declínio econômico e político do país. Acredita-se que
com ela se deu também o princípio dos latifúndios e da desnacionalização
das terras paraguaias quando, sob a imposição dos países vencedores, as
terras estatais foram vendidas para empresas de capital estrangeiro. Sobre a
Guerra da Tríplice Aliança e sua relação com os conflitos entre paraguaios
e brasileiros no período contemporâneo, ver Albuquerque (2005).
Sumário
288

porque eu não, deve ser por causa dis, é... um problema


histórico, né, por causa de guerras que o Brasil teve com
eles, assim, ganhou deles [pausa] e... eles são teus amigos,
mas, na primeira oportunidade que eles tiverem pra te...
fazer alguma coisa de mal, eles fazem. Não vou dizer to-
dos, mas pelo menos as pessoas com quem eu convivi foi
assim. Eles são... bastante vingativos, assim, e, tive amigo,
mas quando você pensava que, não podia contar com ele,
assim. Eles [pausa] e... ainda mais assim, ó: se, se tu tem
um amigo paraguaio, está você e ele só, tudo bem, daí
chega mais uns dois, paraguaios, assim, daí eles começam
já tramar [risos] contra, contra você, tem que ficar esperto,
nesse sentido aí. (Entrevista concedida em Santa Helena,
PR, 11 de julho de 2004).

O narrador expressa as tensões entre brasileiros e paraguaios por


meio do conteúdo e da forma como narra: faz diversas pausas, pensa
naquilo que dirá e ri de situações relatadas como forma de demonstrar
que, desse contexto, não resultavam atos de violência deliberada.
Como fica evidente, tais embates também não impediam o convívio
e as relações de amizade entre brasileiros e paraguaios, embora o
narrador entenda que, mesmo assim, era necessário tomar cuidado
com os naturais do país vizinho. Dessa forma, ele aponta a existência
de uma barreira a separar as pessoas de ambos as nacionalidades.
A situação na fronteira é bastante tensa, conforme frisamos
anteriormente. Existem críticas de setores políticos e de movimentos
sociais quanto à presença de brasileiros na região Leste do Paraguai
e, sobretudo, quanto ao grande número de latifúndios em áreas
muito férteis sob o domínio de brasileiros, enquanto grande parte
da população natural do país se encontra sem terra para trabalhar.
Além disso, como aponta Baller (2008), a presença brasileira naquela
região de fronteira suscita debates a respeito da soberania do Paraguai
sobre parte importante de seu território.
Nesse contexto, uma parcela das populações brasileiras se negou
a integrar-se à sociedade paraguaia: aprendeu muito rudimentarmente

Sumário
289

os idiomas locais (espanhol e guarani) e permaneceu ligada às cidades


do lado brasileiro da fronteira. Isso revela que, apesar de interagir
com os moradores daquele país, tais brasileiros não deixam de nutrir
preconceitos contra eles. Fernando mesmo procura enfatizar que,
embora tenha crescido no país vizinho, não se tornou paraguaio.
Admite as relações estabelecidas com os paraguaios, mas evidencia
que preservou elementos identitários brasileiros. Possivelmente esse
movimento em seu relato procura reafirmar o direito de retornar
ao Brasil. Todos esses elementos concorrem para demonstrar que
Fernando não se identifica com aquele lugar e que, em sua visão,
era inviável permanecer ali.
Depois de atravessar a fronteira de volta para o Brasil, mais
especificamente para Santa Helena, estado do Paraná, em fins da
década de 1980, Fernando continuou a viver muitas dificuldades,
como o trabalho infantil, desenvolvido ainda na adolescência quando
foi trabalhador volante, ou boia-fria, como era popularmente conhe-
cido aquele tipo de atividade. Entretanto, a despeito das inúmeras
adversidades enfrentadas em Santa Helena, ele conseguiu se pro-
fissionalizar como eletricista e voltou a estudar, chegando a cursar
o ensino superior. Tal como Renato, expressa uma visão positiva
sobre o Brasil e o trabalho urbano e se sente como quem conquistou
muito, o que talvez contribua para fazê-lo lembrar do Paraguai de
maneira mais negativa.

Considerações finais

Neste capítulo, lidamos com dois enredos diferentes por meio


dos quais os brasiguaios entrevistados costumam tratar suas vidas
no Paraguai. Um deles é representado por Carlos e Alberto, que se
lembram do país vizinho como um paraíso perdido, terra venturosa e
próspera, onde viveram bons momentos e da qual só saíram porque
seus familiares também já haviam emigrado. Tal visão foi construída
com base na comparação entre a vida na zona rural paraguaia e a vida

Sumário
290

urbana no Brasil, caracterizada pelas dificuldades dos narradores para


conseguir bons empregos por conta da falta de experiência profissional
em ofícios urbanos e de sua baixa escolaridade. O retorno ao Brasil,
quando se mudaram para Marechal Cândido Rondon, estado do
Paraná, foi vivido por eles como uma experiência, de certa forma, de
exclusão social, embora não seja lembrado em tons de tragicidade.
O outro enredo é notado nas falas de Renato e Fernando, que
tratam o Paraguai com negatividade. Suas narrativas foram gestadas
nos grandes obstáculos encontrados no outro lado da fronteira e
possivelmente contribuiu para sua elaboração a melhoria que ambos
os narradores experimentaram em suas trajetórias na zona urbana de
Santa Helena, estado do Paraná. Por essa razão, a volta para o Brasil
é vista de maneira positiva, embora reconheçam que aqui também
tiveram seus reveses.
Conforme se percebe, os estereótipos difundidos sobre o Paraguai,
no Brasil, são tratados de maneiras diferenciadas pelos narradores. Alguns
os incorporam, outros os refutam e apresentam um Paraguai positivo.
Entretanto, a mediar tais memórias, existem a trajetória e a história
de vida de cada um deles, além de suas experiências sociais e de suas
relações com o campo e a cidade. Ou seja, as recordações pessoais dos
entrevistados foram sendo esculpidas ao longo de sucessos e insucessos,
de conquistas e decepções vividas ao longo de suas existências, não
podendo, portanto, ser tomadas de forma descontextualizada.

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Sumário
VINTE E CINCO ANOS DA PRIMEIRA OBRA
HISTORIOGRÁFICA SOBRE MULHERES E
DITADURA MILITAR NO BRASIL: ENTREVISTA
COM A PROFESSORA ANA MARIA COLLING

Ary Albuquerque Cavalcanti Junior

Notas introdutórias

Em 2023, o Brasil completa quase sessenta anos do golpe civil


militar de 1964, que instaurou um dos períodos mais obscuros de
nossa história. Ao longo desse tempo, muitas obras foram publicadas
sobre o assunto, tendo várias delas se tornado referência, seja por
suas abordagens, seja por suas inovações.
Nesse contexto, é importante lembrar as dificuldades no acesso
a fontes de pesquisa no período pós-ditatorial, nos idos do pós-1985.
E foi nesse cenário que, em 1997, a historiadora Ana Maria Colling
publicou a obra A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil, a
qual completou 25 anos de publicação pela editora Rosa dos Tempos.
Ela é uma das maiores referências no campo de estudos sobre
mulheres e ditadura militar, sendo mencionada corriqueiramente
em livros, teses, dissertações e outras produções acadêmicas. As-
sim, na presente entrevista, procuro, por intermédio da própria
autora, explanar reflexões e rememorar os desafios da produção do
livro e os avanços dos debates provocados por ele hoje. Para isso,
durante as questões, busco relacioná-las à trajetória acadêmica
295

e intelectual de Ana Maria Colling, que segue publicando livros


e artigos sobre o tema e também sobre as relações de gênero e a
história das mulheres.
No campo da historiografia, até 1997, não havia sido produzida
nenhuma obra específica acerca da temática das mulheres e da
militância na ditadura militar. Foi nesse ano que Ana Maria Colling
publicou A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil, com
base em sua dissertação de mestrado intitulada Choram Marias
e Clarices: uma questão de gênero na ditadura militar brasileira,
defendida em 1994 no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Entre o final do mês de fevereiro e o início de março de 2021,
a autora concedeu-me gentilmente a entrevista que transcrevo neste
capítulo e que trata da produção de seu livro. Inicialmente essa entre-
vista foi realizada para compor o Dossiê “Ditaduras latino-americanas
no século XX: corrupção, violência e meio ambiente”, publicada pela
revista Em tempo de Histórias, ligada ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade de Brasília (UnB). Em virtude, porém,
da repercussão da entrevista publicada, fiz uma atualização do texto,
ainda que preservando o cerne da versão original,1 e o trago novamente
à luz na próxima seção.

Entrevista

Ary Albuquerque Cavalcanti Junior: Em 2021, o seu livro


A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil, publicado
em 1997 pela editora Rosa dos Tempos/Record, completou 24
anos de publicação. Mas, antes de abordá-lo especificamente,
como foi sua trajetória e quais foram/são suas maiores inspi-
rações acadêmicas?

1 A entrevista original encontra-se em Cavalcanti Junior (2021).

Sumário
296

Ana Maria Colling: Fiz mestrado na Universidade Federal


do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutorado na Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com
estágio em Coimbra, Portugal. Mas, antes de me transformar
em pesquisadora, fui professora na rede pública do Rio Grande
do Sul, trabalhando com séries iniciais e ensino médio, e na
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul (Unijui) no curso de História. Após me tornar doutora,
passei a trabalhar em mestrados no campo da Educação. Depois
de aposentada, concorri a uma bolsa ofertada pela Coorde-
nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
como professora visitante nacional sênior (PVNS) na Univer-
sidade Federal da Grande Dourados (UFGD), com um projeto
de pesquisa sobre as mulheres na Guerra do Paraguai. Após a
renovação e o término da bolsa, continuo na UFGD atuando
no Programa de Pós-Graduação em História e, especialmente,
como pesquisadora da Unesco, na cátedra Diversidade Cultu-
ral, Gênero e Fronteiras e no Laboratório de Gênero, História
e Interculturalidade (Leghi).
Quando cursava o mestrado, fui “apresentada às questões de
gênero” e à historiadora de mulheres Michele Perrot, que havia
acabado de lançar, pela Paz & Terra, sua obra clássica, Os excluídos
da História: operários, mulheres e prisioneiros (1988). Também
travei o primeiro e impactante contato com Michel Foucault. Isto
foi marcante em minha vida acadêmica e em meu trajeto de futura
pesquisadora.
Depois desses “encontros”, nunca mais abandonei Perrot e
Foucault, que têm uma produção vasta e maravilhosa, e que mais
tarde se agregaram a tantos(as) outros(as) autores(as) brasileiros(as)
e internacionais. Nesse tempo de novas descobertas acadêmicas,
de novas leituras, eu tinha um especial carinho para com a Editora
Rosa dos Tempos, que pertencia à Record e que tinha como editora

Sumário
297

uma brava feminista, a escritora Rose Marie Muraro. Essa mulher


publicava o que havia de melhor sobre estas novas temáticas.
Ary Albuquerque: Naquele período, quais foram suas moti-
vações para o tema de pesquisa explorado?
Ana Colling: Era o começo dos anos 90 e eu cursava mestrado
na UFRGS quando fui surpreendida por uma notícia nos jornais
de Porto Alegre anunciando que os documentos do Departamento
de Ordem Política e Social (Dops) estariam disponíveis a pesqui-
sadores(as). Como ex-militante de esquerda, tinha curiosidade
de saber quais eram os discursos dos militares golpistas sobre as
mulheres que faziam oposição a eles. Homens que haviam lutado
contra a ditadura ocupavam altos cargos nos governos estadual
e municipal do Rio Grande do Sul e escreviam suas biografias e
análises sobre aquele período. Quanto às mulheres, porém, um
silêncio que gritava. A partir daí, sob a orientação da professora
Céli Pinto, com a cara e a coragem, fui à luta.
Lembro-me de dois pontos fundamentais: era a primeira vez
que os documentos do Dops estavam sendo colocados à disposição.
E, com o fim da ditadura em 1985, a anistia foi dada ao torturado e
ao torturador, portanto muitos algozes continuavam ativos em seus
postos. No caso do Rio Grande do Sul, Amaral de Souza, último
e medíocre governador indicado pela ditadura, com medo que a
oposição chegasse ao poder através de eleições, determinou, no dia
27 de maio de 1982, a incineração dos preciosos arquivos do Dops.
Quatro caminhões de mudança levaram toneladas de documentos
do Dops da Avenida Ipiranga para os fornos de uma olaria da Briga-
da Militar em Gravataí, na Grande Porto Alegre, onde queimaram
durante oito horas. Viraram cinzas os papéis que contavam 44 anos
de repressão política do Dops gaúcho, criado na ditadura do Estado
Novo de Vargas. Mas é sabido e provado que estes documentos foram
microfilmados. Foucault (1992, 1996) nos ensina das relações de

Sumário
298

poder e saber desta maneira: jamais os detentores do poder iriam


incinerar documentos tão preciosos sem guardar cópias.
O outro ponto que considero fundamental para esta análise
são os discursos dos militares sobre as mulheres que os enfrenta-
ram durante a ditadura. Da perspectiva desses homens, os papéis
historicamente destinados como “naturais” às mulheres eram o
casamento e a maternidade. O mundo público, da política, era um
lugar exclusivamente masculino. As mulheres que ousassem, apesar
do movimento feminista, que estava se iniciando, adentrar este es-
paço de poder receberiam castigos dos mais variados, que foi o que
ocorreu com as militantes de esquerda.
Ary Albuquerque: Acerca do livro A resistência da mulher à
ditadura militar no Brasil, quais foram os principais desafios em
sua produção, uma vez que foi o primeiro no campo da História
a tratar do tema?
Ana Colling: Meu livro A resistência da mulher à ditadura
militar no Brasil foi publicado em 1997 e é resultado de minha
dissertação de mestrado defendida na UFRGS em 1994 com
o título Choram Marias e Clarices: uma questão de gênero na
ditadura militar brasileira.
A ditadura terminou oficialmente em 1985 com a eleição de
Tancredo Neves e a posterior posse de seu vice José Sarney, antigo
apoiador da ditadura, e muitos livros sobre a resistência a esse regime
já haviam sido escritos por homens, ex-militantes. Mas, em relação
às mulheres, quase nada, um silêncio absoluto. Inicialmente falo
de minha surpresa ao saber, através de Rose Marie Muraro, editora
da Rosa dos Tempos, que meu trabalho era o primeiro no campo da
História a tratar sobre as mulheres e a ditadura militar no Brasil. Mas,
de fato, senti a importância deste livro quando de seu lançamento
em 31 de março de 1997 em Porto Alegre. Livraria lotada e, na fila,
aguardando seus autógrafos, estavam as mulheres entrevistadas,
anunciando com orgulho seus codinomes. Em uma palestra minha

Sumário
299

na Câmara de Vereadores da cidade, estava presente uma das minhas


entrevistadas – a que mais tortura sofreu e a que mais tempo ficou
presa – acompanhada de sua filha, que tinha oito anos quando de
sua prisão e cuja presença nas sessões de tortura era sempre anun-
ciada pelos algozes. Ambas me abraçaram emocionadas, dando a
entender que, de alguma maneira, estavam sendo vingadas. Só por
isso, a publicação de meu livro já tinha valido a pena.
Numa demonstração do ineditismo deste trabalho, fui convidada
a participar, e participei, de programas em todas as rádios, canais
de televisão e imprensa da cidade, que deram grande destaque ao
livro. O Zero Hora, um dos jornais mais lidos no Rio Grande do Sul,
dedicou uma página ao trabalho, e o Jornal do Comércio, matéria de
capa inteira no dia do lançamento, 31 de março. O Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, também publicou uma página inteira em edição do-
minical. Entre tantos, cito ainda a Gazeta Mercantil de São Paulo,
o Diário de Pernambuco e O Globo, RJ. Em uma entrevista à Rádio
da USP, em off, para falar de Zuzu Angel, cantei a música “Angélica”,
de Chico Buarque, pois o repórter não a conhecia.
Após todo este movimento com o lançamento de A resistência
da mulher à ditadura militar no Brasil, minha voz produziu efeitos e
me transformei em referencial para os futuros estudos de mulheres
e da ditadura militar. Concordo com Georges Duby quando diz que
nosso ofício perde o sentido se permanecer fechado em si próprio,
pois a história deve ser consumida por outros além daqueles que a
produzem (Duby; Lardreau, 1989, p. 162).

Os desafiantes caminhos em busca de fontes

Quando decidi investigar o discurso da repressão sobre as mu-


lheres “subversivas”, a primeira tarefa colocada foi o levantamento
imediato das fontes para ver o que elas ofereciam de concreto a um
trabalho sobre as relações de gênero no período da ditadura militar. A
trajetória na busca das fontes, um trabalho de investigação histórica,

Sumário
300

é, muitas vezes, repleta de reveses e dificuldades, exigindo da/do


pesquisadora/pesquisador grandes doses de paciência e perseverança.
Até chegar à defesa de minha dissertação e à sua posterior publicação
pela Rosa dos Tempos, muito labutei com essa busca.
O primeiro local a ser checado foi o Arquivo Público do Rio
Grande do Sul, que, segundo os jornais, estaria catalogando o material
sobre a ditadura. Na primeira visita, constato que os documentos
colocados à disposição das/dos pesquisadoras/pesquisadores e do
público interessado eram somente de 1989 a 1991. Para o trabalho
pretendido, estas fontes não serviam; os partidos de esquerda já
estavam legalizados e a anistia já havia sido conquistada. O que
constava nesta documentação eram assembleias de sindicatos, festas
de partidos e pronunciamentos de alguns políticos.
Recorro, então, à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos,
da Assembleia Legislativa do estado, que estava a todo vapor devido
à instalação de uma comissão parlamentar de inquérito, cujo objetivo
era a procura da documentação do Dops, supostamente incinerada na
gestão do governo José Augusto Amaral de Souza. Como deputado,
Amaral de Souza havia apoiado o governo militar e, mais tarde, fora
indicado pelos golpistas para o governo estadual.
Na Assembleia Legislativa gaúcha, obtenho a informação de
que os arquivos do Dops teriam sido entregues ao Arquivo Público
(aqueles que não me haviam interessado) e de que alguns microfil-
mes do Departamento se encontravam no Palácio da Polícia. Volto
novamente ao Arquivo Público e novamente me garantem que ali
havia somente os documentos anteriormente a mim apresentados.
Vou ao Palácio da Polícia (Av. João Pessoa, 2.050, 3º andar),
onde sou recebida pelo comissário, segundo o qual eles possuíam
microfilmes, sim, e a consulta poderia ser imediata se fosse para
procurar minha ficha pessoal. Mas, como a intenção era de pesquisa
universitária, exigia-se um ofício solicitando a pesquisa, assinado pela
coordenadora do curso de mestrado da UFRGS e dirigido ao diretor

Sumário
301

da Polícia. Cometo aí um equívoco, provocado, talvez, pela minha


inexperiência como pesquisadora, subestimando o perigo das fontes
que eu pretendia consultar. O ano era 1992 e muitos dos envolvidos
em tortura durante anos de ditadura e repressão estavam, certamen-
te, ainda na ativa. Aceitei o argumento do comissário sobre o ofício
e a espera foi longa. Após entregar ao diretor da Polícia o tal ofício
assinado pela coordenadora do Mestrado em História da UFRGS,
precisei esperar durante um mês, mas recebi a resposta positiva,
autorizando-me o acesso ao setor de microfilmagem da Polícia Civil.
Nas inúmeras vezes em que fiz ligação telefônica solicitando o
deferimento ao meu pedido, tive a sensação de que minha intenção
de pesquisa havia causado preocupação e temor. Isto foi compro-
vado quando um amigo, professor da Universidade, telefona-me
preocupado porque a polícia está à minha procura. Fico radiante:
enfim, a resposta. Ele não entende minha alegria com o recado,
pois, especialmente naquele tempo, a polícia sempre nos causava
medo e apreensão.
Recebo no Palácio da Polícia um ofício assinado pelo delega-
do Newton Müller Rodrigues, chefe de polícia, informando que a
documentação que pertencia ao Dops na capital fora incinerada, e
o que restava, na Polícia Civil, de documentação referente à época
em que o Dops existia era a microfilmagem de alguns documentos
oriundos da Justiça Militar, à disposição do público interessado. No
seu despacho, o chefe de polícia expede um ofício similar ao diretor
do Departamento de Informática Policial, autorizando a consulta no
serviço de microfilmagem e solicitando toda a atenção à pesquisadora.
O ofício informa ainda que os únicos documentos remanescentes
do Dops que se encontravam no interior do estado do Rio Grande do
Sul haviam sido encaminhados ao secretário da Justiça e Cidadania
em ofício de janeiro de 1992 (documento anexado ao oficio), já que
este presidia a comissão ligada ao assunto. O diretor do Departa-
mento de Informática mostrou-se contrariado com o documento
por mim entregue, dizendo que não possuía microfilmes a respeito

Sumário
302

do tema desejado e perguntando ironicamente se eu não sabia que


o Dops havia sido extinto. Mesmo assim, encaminhou-me à sala de
microfilmagens, onde me deparo com filmes em péssimo estado de
conservação, sendo que nenhum deles tratava do período político
pretendido para a pesquisa.
Encontro somente documentos do Instituto Médico Legal (IML)
e a determinação de funcionários em afirmar que por ali jamais ha-
viam passado documentos do Dops. Apesar de desestimulada pelo
que não encontrei, resolvo dar atenção ao item de despacho do chefe
de polícia e sair à procura dos documentos enviados pelo Dops ao
interior do estado.
Até essa época, o Arquivo Público do Rio Grande do Sul estava
subordinado à Secretaria de Justiça e, portanto, era este o local onde
deveriam estar os documentos.2 Como já havia ido várias vezes ao
Arquivo e recebido sempre a mesma resposta, de que os arquivos do
Dops ali encontrados eram somente os de 1989 a 1991, restavam-me
como alternativas desistir da pesquisa ou, como caçadora, farejar as
pistas em outros lugares.
Mas na História também há espaço para fadas madrinhas. E
eu, neste caminho de pesquisa, encontrei uma: Lícia Peres,3 na
época, diretora da Casa da Mulher, ligada à Casa da Cidadania.
Lícia possuía um passado de resistência ao regime militar, tendo
feito parte da Campanha pela Anistia. Sendo feminista e socióloga,
e interessada na produção intelectual sobre a luta das mulheres,
engajou-se prontamente na minha proposta de trabalho, disposta
a abrir caminhos para chegar às fontes de pesquisa necessárias à
viabilização dessa proposta.
De imediato ligou para a Secretaria de Justiça, obtendo a infor-
mação de que os documentos do Dops estariam no Arquivo Públi-

2 Atualmente o Arquivo é subordinado à Secretaria de Administração e Re-


cursos Humanos do Rio Grande do Sul.
3 Lícia Peres morreu em Porto Alegre, aos 77 anos, em 2007, deixando um
vazio no movimento feminista e na luta contra a ditadura.
Sumário
303

co, naquele momento subordinado à Secretaria da Administração.


Colocou-me em contato telefônico direto com o secretário Walter
Nique, que, numa ligação telefônica ao Arquivo Público, solicitou
que os documentos fossem colocados à minha disposição.
Nessa nova conjuntura, dirijo-me novamente ao Arquivo Público
e, com surpresa, deparo-me com 42 caixas enfileiradas, repletas de
documentos à minha espera para ser manuseados e analisados. O
argumento da direção do Arquivo e dos funcionários que me negaram
o acesso aos documentos nas vezes anteriores em que lá estive foi o
fato de eles ainda não terem sido catalogados à época. A partir desse
feliz incidente, inicio um trabalho que durou três meses. Sonho de
uma pesquisadora, a primeira a ter acesso ao material, caixas desorga-
nizadas que, ao ser abertas, encantam-me pela riqueza de conteúdo.
Ary Albuquerque: Atualmente temos inúmeros bancos de dados
que nos permitem acessar documentos de outros períodos, em
sua maioria, digitalizados, mas pouco se reconhecem os desafios
para o acesso às fontes na década de 90 do século passado. Como
foi lidar com a ausência de fontes escritas?
Ana Colling: Apesar de possuirmos documentos digitalizados
de mais fácil acesso, o trabalho de um(a) pesquisador(a) sempre
é árduo. Que perguntas fazer aos documentos? Essa questão é
sempre crucial, pois a história somente responde às perguntas
que fazemos.
No caso em análise, ao abrir e separar o material contido nas
caixas, que traziam muitos documentos sobre drogas e traficantes
entre os documentos políticos, meu olhar tinha uma direção: as
mulheres. Este era o tema principal de meu trabalho. Mas os docu-
mentos, assim como a história, falam pouco de mulheres, pois elas
são invisíveis como sujeitos históricos. É preciso correr atrás de suas
pistas, que são tênues.
Não aconteceu diferente com os discursos do Dops e do Serviço
de Organização Política e Social (Sops) resumidos nos documen-

Sumário
304

tos que encontrei nas 42 caixas. Poucas mulheres citadas entre os


integrantes dos grupos de esquerda que combatiam os golpistas, a
maioria delas, estudantes secundaristas ou universitárias de classe
média. Muitas delas, filhas, esposas e amantes de sujeitos políticos de
oposição ao regime militar. Encontro inúmeros casos assim. Mulheres
como amásias e amantes sucedem-se nos documentos do Dops. São
Marias, Rosas, Beneditas, Carlas. Todas com atividades subversivas
segundo a repressão, mas elas não são importantes ali, pois, em pri-
meiro lugar, aparecem seus envolvimentos com os homens subversivos.
Muitas, descritas como desalmadas, por terem abandonado seus lares,
seus filhos. Sempre como elementos desviantes dos papeis sociais,
pois lugar de mulher não é na política. Elas são descritas como mal
educadas pela família, mal-amadas ou homossexuais. Apêndice dos
homens, sem vontade própria, como marionetes.
Esta linha de desqualificação das mulheres como militantes
políticas autônomas somente é quebrada nos documentos da repres-
são com a descrição de algumas religiosas. Segundo os relatos, por
serem celibatárias, não possuindo companheiros ou maridos, essas
mulheres não estariam à procura de homens, portanto, não eram
perigosas e tinham o poder de persuasão da religião a engrandecê-las.
Pelos motivos acima descritos, concluí que os documentos do Dops/
Sops sobre as mulheres seriam insuficientes para o que eu pretendia.
Surge então a ideia de entrevistar mulheres que haviam sido
presas pela repressão. Inicialmente, a dificuldade em encontrar estas
mulheres. Eu sabia que elas existiam, mas onde estavam? Converso
com uma deputada do Partido Comunista do Brasil (PC do B), Jussara
Cony, que me indica alguns nomes e, a partir daí, tal qual uma rede,
uma corrente, elas foram aparecendo. Através de uma, ia chegando
a outra e, no final, possuía uma extensa lista de militantes presas e
muitas torturadas pela ditadura militar. Decidi por um grupo de seis,
número suficiente para o que eu desejava.
Começo então o trabalho de entrevistas feito conjuntamente com
o fichamento no Arquivo Público. E, pela riqueza das entrevistas, a

Sumário
305

proposta inicial é modificada. Se antes os documentos do Dops eram


o fundamento principal, agora as entrevistas, pela sua relevância,
tomaram o lugar deles. A história oral possibilita trazer à visibilidade
as mulheres, convocando ao palco suas vozes e também seus silên-
cios. Por esse motivo, segundo Perrot (2005), ela é uma revanche
das mulheres, que estão ausentes nos arquivos públicos e oficiais.
Ao finalizar a tarefa de ouvir as mulheres, surgiu a necessidade
de também entrevistar homens pertencentes a partidos de esquer-
da e que haviam sido presos ou torturados pela repressão. Foi fácil
encontrá-los, pois estavam ocupando cargos públicos e políticos.
Sua relação com o torturador e, especialmente, sua relação com as
companheiras de partido clandestino ou suas experiências no exílio
mostravam-se fundamentais naquele momento.
Quando colocava um gravador entre mim e minhas entrevistadas
(cada uma separadamente), elas falavam. Ao falar, apesar das marcas
profundas, das lágrimas provocadas pelas suas memórias, perceberam,
pela primeira vez, que possuíam uma história.
Ary Albuquerque: Podemos dizer que, com o advento do sécu-
lo XXI, surgiram muitas pesquisas e consequentemente vários
estudos sobre a participação das mulheres na ditadura militar.
Como vê esse crescimento?
Ana Colling: A relação entre história e memória ocupa historia-
dores(as) que têm como tema a ditadura militar no Brasil. Há,
na atualidade, mais do que nunca, uma disputa pela memória,
um jogo de interpretação dos fatos e de suas “verdades”. Pierre
Nora fala dos “lugares de memória” constituídos por um “jogo
da memória e da história”. Segundo ele, memória e história não
são sinônimos. Sobre as memórias das mulheres que resistiram à
ditadura militar, há muito por se dizer e escrever. Suas lembranças
e a luta contra o esquecimento são fundamentais nesta disputa
de interpretações (Nora, 1993).

Sumário
306

No Brasil, a escrita sobre mulheres e ditadura é ainda muito


tênue se comparada àquela que se produz nos países vizinhos que
passaram pela mesma tragédia. Tenho acompanhado, com muita
satisfação, uma grande produção de dissertações e teses em univer-
sidades de vários estados brasileiros, mas esta produção pouco se
traduz em publicações. Defendo que os trabalhos de pesquisa feitos
com seriedade e afinco devem ser socializados, permitindo que a
história seja consumida além dos muros da academia.
Ary Albuquerque: Em seu livro A resistência da mulher à
ditadura militar no Brasil (1997), você destaca a forma como a
repressão representava as mulheres militantes tanto nas ações
verbais quanto nos documentos apresentados. Gostaria que
elucidasse melhor estas questões.
Ana Colling: A desqualificação do feminino arraigada na história
foi radicalizada durante a ditadura militar. Como em todos os
processos históricos ou do cotidiano, o corpo das mulheres é o
alvo prioritário do poder. Essas mulheres que ousaram romper os
padrões e lugares estabelecidos para os dois sexos, adentrando o
espaço público e político, eram certamente desvios do feminino
e cometiam dois pecados aos olhos da repressão: fazer oposição
à ditadura e abandonar seu lugar “natural”, o lar. Segundo o
relato de minhas entrevistadas, todas eram tachadas de “putas
comunistas”. Acusá-las de comunistas não era suficiente para
desmerecê-las; era necessária uma acusação moral, de efeito
mais devastador para as famílias: prostitutas. Afinal, se estavam
em um lugar que não era o delas, estavam à procura de homens
ou eram homossexuais – também um desvio do feminino.
O corpo das mulheres é alvo de poder daqueles que se sentem
donos dos corpos femininos enjaulados: estupros ou tentativas de
estupro, socos e outras formas de agressão física. Na ditadura, esse
tipo de agressão vinha constantemente associado à tortura psicológica,
pois o primeiro ato dos torturadores era despir a mulher e vendar-lhe

Sumário
307

os olhos, fazendo somente sinais da presença deles. O corpo negro e


pobre, como em todas as situações em nosso país, é o que mais sofre
violências. Uma de minhas entrevistadas era negra e operária, e, na
época das torturas, tinha uma filha de oito anos: foi a mais torturada
e somente foi liberta pela Lei de Anistia.
Ary Albuquerque: Em 2015, publicou, em parceria com o Prof.
Dr. Losandro Antônio Tedeschi (UFGD), o Dicionário crítico
de gênero, vencedor de prêmios e que tem a apresentação da
historiadora Michelle Perrot. Qual é o significado desta obra?
E como ela contribui para o campo das Ciências Humanas?
Ana Colling: A publicação do Dicionário crítico de gênero, agora
em segunda edição revista e ampliada, na minha opinião, é um
marco nos estudos da história das mulheres e das relações de
gênero, e quem igualmente assevera isso é a historiadora francesa
Michele Perrot no prefácio que inaugura a obra. Um marco por
vários motivos no meu entender: por aglutinar pesquisadoras/
pesquisadores de diversos países e, no caso do Brasil, de diversas
instituições e regiões; por constituir um material de pesquisa
cujos verbetes encaminham para novas leituras aqueles que
querem se aprofundar na temática, e, finalmente, por demons-
trar, em duros tempos de “ideologia de gênero” e “escola sem
partido”, o quanto é necessário falarmos e escrevermos sobre
estes temas. Tenho certeza de que o Brasil passará por tempos
melhores, deixando para trás o obscurantismo e o desprezo
pela ciência e pela educação. A conquista em 2016 do prêmio
Abeu na categoria Ciências Humanas foi a prova disso. Em
contrapartida, sei também que esse descaso com a educação
e esse descrédito na ciência presenciados dia após dia serão
responsáveis por consequências nefastas na futura educação
de crianças, jovens e adultos.
Ary Albuquerque: Em suas produções, vemos a presença de
Michel Foucault. Como ele nos ajuda a compreender a socie-

Sumário
308

dade e especificamente os estudos em torno das mulheres na


ditadura militar?
Ana Colling: Todas e todos as/os historiadoras/historiadores
que trabalham com história das mulheres, relações de gênero
e sexualidades são devedoras/devedores a Foucault. Apesar de
pouco se falar em mulheres, as ferramentas teóricas que ele
oferece são fundamentais para se trabalhar estas questões, para
questionar, levantar suspeitas sobre o eterno feminino.
Falar de uma mulher era falar de todas as mulheres, todas igual-
mente presas nas tramas da identidade, da natureza e da representação.
No entanto, Michel Foucault, ao demonstrar em suas obras que os
objetos históricos são meramente construções discursivas, revolucionou
a vida das mulheres, ou pelo menos a sua história, libertando-as da
sua natureza e permitindo que pudessem tomar para si sua história.
Mostrou-nos que tudo aquilo que invocamos do passado passa por
um intrincado jogo de relações de poder e saber e institui verdades.
Aprendemos com ele que as mulheres, assim como os homens, são
simplesmente um efeito de práticas discursivas e práticas não dis-
cursivas. Segundo Veyne (2011, p. 50), “os discursos são as lentes
através das quais, a cada época, os homens perceberam todas as coisas,
pensaram e agiram”. Em idêntica perspectiva, Foucault aponta para
a necessidade de problematizar o sujeito como objeto constituído:

Seria interessante tentar ver como se dá, através da história,


a constituição de um sujeito que não é dado definitiva-
mente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá
na história, mas um sujeito que se constitui no interior
mesmo da história, e que é a cada instante fundado e
refundado pela história. (Foucault, 1996, p. 10-11).

Em Hermenêutica do sujeito (2001a) e História da sexualidade


(2001b), Foucault se ocupa da função do discurso como formador
de subjetividade. Esta função consistiria em ligar o sujeito à verdade.
E, se a verdade existe numa relação de poder e o poder opera em
Sumário
309

conexão com a verdade, então todos os discursos poderiam ser vistos


funcionando como regimes de verdade. A produção de identidades
pelos discursos, ao mesmo tempo que inspira liberdades, organiza
práticas de disciplinamento e de controle.
Sobre as mulheres e a ditadura militar, minhas principais per-
guntas de pesquisa eram como a repressão constrói a “mulher subver-
siva” através de seus discursos e se, para ela, existia um modelo
de “mulher subversiva”. Perguntava ainda se a “mulher subversiva”
era uma anormalidade, um desvio, nos discursos da repressão e se
estes discursos atingiam as demais camadas da sociedade. Portanto,
as obras e o pensamento de Michel Foucault foram fundamentais
para minhas pesquisas sobre as mulheres e a ditadura militar, como
são fundamentais nos estudos sobre a história das mulheres. Durval
Muniz Albuquerque Junior, historiador estudioso de Foucault, resume
em algumas perguntas a importância desse filósofo para a história:

Como foi possível que tal objeto viesse à tona, como foi
possível acreditarmos como a-histórico ou natural algo que
foi urdido nos embates da História? O que nos fez ser o
que somos? É possível sermos diferentes, pensarmos o
diferente? A História deve ser a incômoda pergunta que
não cessa de questionar o silêncio, o sono, o corpo, a vida.
(Albuquerque Junior, 2007, p. 162).

Ary Albuquerque: Quais os planos para os próximos anos e


como vê os debates em torno das relações de gênero, ditadura
militar e história daqui há alguns anos?
Ana Colling: Tenho escrito muito sobre a ditadura militar no
Brasil e a resistência feminina. Falar sobre a luta das mulheres, sua
presença nas organizações de esquerda para combater a ditadura,
em nome da liberdade, não é diferente de falar sobre as mulheres,
o feminino e as relações de gênero em outros contextos. Em 2022,
nas bodas de prata de A resistência da mulher à ditadura militar
no Brasil, pretendo lançar uma nova edição do livro.
Sumário
310

Essa edição contará com um texto que escrevi em 2015 por


conta da morte de Inês Etienne Romeu aos 72 anos. A propósito,
acompanho agora com alegria, anos depois desse sombrio período, a
confirmação da prisão do sargento Antônio Waneir Pinheiro de Lima,
acusado de sequestrar, torturar e estuprar esta mulher. No dia 25 de
fevereiro de 2021, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região negou o
recurso da defesa do sargento. Segundo a magistrada (uma mulher)
que negou o pedido, para crimes contra a humanidade, não existe
anistia nem prescrição.
Inês Ettiene Romeu foi a única sobrevivente da Casa da Morte
em Petrópolis, RS, centro clandestino da repressão para prisão, tortura
e mortes. Quem lá entrou não saiu com vida, com exceção de Inês,
que viveu para acertar contas com a injustiça e o terror. Em 1981, ela
localizou e denunciou a casa onde torturavam, estupravam e matavam
militantes de esquerda, em sua grande maioria, muito jovens. Graças
à memória de Inês, vários torturadores foram identificados, assim
como a atuação do médico Amílcar Lobo, responsável por manter
os prisioneiros vivos para a tortura.
Infelizmente um pedaço da história do Brasil está comprometido
pelo governo Bolsonaro. Muitos jovens foram capturados pelas ideias
negacionistas. E não podemos nos esquecer de que, no impeachment
de Dilma Roussef, primeira mulher presidenta do Brasil e ex-militante
de esquerda, Bolsonaro dedicou seu voto ao coronel Brilhante Ustra,
torturador de Dilma. Entre 1970 e 1974, Ustra, conhecido como
“Major Tibiriçá”, foi responsável pelo centro de tortura, o Destaca-
mento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-Codi). Em outubro de 2008, num processo inédito no
Brasil, Ustra tornou-se o primeiro oficial a ser declarado e condenado
como torturador no país.

Sumário
311

Notas finais

Ainda que já tenhamos estudos consolidados sobre a ditadura


militar no Brasil, recentemente foi possível observarmos pedidos
de parte da sociedade civil pela volta do Ato Institucional nº 5, do
fechamento do Congresso Nacional e até mesmo do Estado milita-
rizado. Tal retrocesso e falta de conhecimento sobre nosso passado
histórico recente torna ainda mais necessário relembrarmos produções
como A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil, de Ana
Maria Colling (1997). Essa obra, além de evidenciar, com fontes
históricas/científicas, o que foram os 21 anos de ditadura, combate
o negacionismo que permeia nossa contemporaneidade, e reafirma
a importância e o protagonismo feminino no período ditatorial.
No rol de produções como esta, temos outro livro da professora
Ana Maria Colling, publicado em 2021, A cidadania da mulher bra-
sileira: uma genealogia, que já obteve adesão em diversos lugares do
país, sendo, sem dúvida, mais uma referência. Finalizo o presente
texto agradecendo à professora pela entrevista e por autorizar sua
utilização nesta obra.

Referências

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. História: a arte de inven-


tar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007.

CAVALCANTI JUNIOR, Ary Albuquerque. “Sobre as mulheres, um


silêncio que gritava”: duas décadas da primeira obra historiográfica
sobre mulheres e ditadura militar no Brasil, entrevista com a profes-
sora Dra. Ana Maria Colling. Em Tempo de Histórias, [S. l.], v. 1,
n. 38, 2021. DOI: 10.26512/emtempos.v1i38.36913. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/emtempos/article/view/36913.
Acesso em: 12 out. 2021.

Sumário
312

COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar


no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.

COLLING, Ana Maria. A cidadania da mulher brasileira: uma


genealogia. São Leopoldo: Oikos, 2021.

COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antônio. Dicionário


crítico de gênero. Dourados: Ed. UFGD, 2019.

DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a Nova História.


Lisboa: Dom Quixote, 1989.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,


1992.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

FOUCAULT, M. L’herméneutique du sujet. Cours au Collège de


France (1981-1982). Paris: Gallimard/Seuil, 2001a.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber.


Rio de Janeiro: Graal, 2001b.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares.


Projeto História, São Paulo, n. 10, 1993. Disponível em: https://
revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101. Acesso em:
1 mar. 2021.

PERROT, Michele. Práticas da memória feminina. In: BRESCIANI,


Maria Stella Martins (org.). A mulher no espaço público. São Paulo:
Marco Zero, 1989. p. 9-18.

PERROT, Michele. As mulheres e os silêncios da História. Bauru:


Edusc, 2005.

VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2011.

Sumário
SOBRE OS(AS) AUTORES(AS)

Arlete José Mota


Bacharel e licenciada em Português-Latim pela Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especia-
lista, mestra e doutora em Língua e Literatura Latinas pela UFRJ.
Docente da Faculdade de Letras da UFRJ, Departamento de Letras
Clássicas, Setor de Latim. Membro do Programa de Pós-Graduação
em Letras Clássicas (PPGLC) da UFRJ.

Ary Albuquerque Cavalcanti Junior


Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT). Doutor em História pela Univer-
sidade Federal da Grande Dourados UFGD). É autor do livro: “Três
mulheres e uma história de luta pela democracia e pela liberdade”
(2020). Atualmente é membro da Red Panamazónica para la For-
mación y Enseñanza de la Historia: panorama de pesquisa, diálogos
e intercâmbio (Repamfeh); do Laboratório de Estudos de Gênero,
História e Interculturalidade (Leghi-UFGD), Cátedra Unesco; do
Grupo de estudos e pesquisa em História e Memória Geracional
e Trajetórias Sociogeracionais (Ghempe-UESB); do Grupo de pes-
quisa Interpretação do Tempo: ensino, memória, narrativa e política
(iTemnpo), da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Grupo de
314

Pesquisa Trilhas: migrações, fronteiras e gênero ligado à Universidade


Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). É coordenador do projeto
de pesquisa: “Ditadura militar no Brasil: representações, sociedade e
ensino de história” (UFMT). E-mail: ary.junior@ufmt.br

Carlos Eduardo da Costa Campos


Docente adjunto de Pré-História e Antiguidade do curso de
História da Faculdade de Ciências Humanas (FCH) da Universi-
dade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Câmpus de Campo
Grande. Membro do Mestrado Profissional em Ensino de História
da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e do
Museu de Arqueologia da UFMS. Bacharel e licenciado em História
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Licenciado
em Letras-Literatura pela Universidade Norte do Paraná (Unopar).
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Uerj. Dou-
tor em História pela Uerj e em Letras Clássicas pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Edgar Cézar Nolasco dos Santos


Docente titular da Faculdade de Artes, Letras e Comunicação
(Faalc) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS),
Câmpus de Campo Grande. Membro do Programa de Pós-Graduação
em Estudos Literários (PPGEL) da UFMS. Graduado em Letras
pela UFMS, mestre e doutor em Estudos Literários pela Universi-
dade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-doutor pelo Programa
Avançado de Cultura Contemporânea (PPAC) da UFRJ.

Eliene Dias de Oliveira


Professora adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS), Câmpus de Coxim (CPCX). Graduada e mestra em
História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e doutora

Sumário
315

em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD),


com realização do estágio de doutoramento pela Universidade de
Gênova (Itália). Membro da Associazione lnternazionale Areia, com
sede na Universidade de Gênova.

Elio Marques de Souto Junior


Bacharel em Português-Inglês pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Licenciado em Língua Portuguesa e especialista
em Sexualidade pelas Faculdades Integradas A Vez do Mestre. Espe-
cialista em Teoria Psicanalítica pela Universidade Veiga de Almeida
(UVA). Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorando em Letras Clássicas pela UFRJ.

Gabriele Modesto Fluhr Vilalba


Graduanda em Letras (Português-Inglês) pela Universidade Fe-
deral de Mato Grosso do Sul (UFMS), Câmpus de Campo Grande.
Realizou Pivic com a pesquisa A mulher negra no conto Olhos d’água,
de Conceição Evaristo, sob a orientação da Profa. Dra. Geovana
Quinalha de Oliveira.

Geovana Quinalha de Oliveira


Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina (UFSC). Mestra em Letras com ênfase em Estudos Literários
pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Graduada
em Letras (Português-Espanhol) pela UFMS, Câmpus de Campo
Grande. Docente adjunta da Faculdade de Artes, Letras e Comuni-
cação (Faalc) da UFMS, Câmpus de Campo Grande. Membro do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD).

Sumário
316

Jiani Fernando Langaro


Bacharel e licenciado em História pela Universidade Estadual
do Oeste do Paraná (Unioeste), mestre em História Social pela Uni-
versidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutor na mesma área pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor
adjunto da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás
(UFG) e membro do corpo docente permanente do Programa de
Pós-Graduação em História (PPGH) e do Mestrado Profissional
em Ensino de História (ProfHistória) dessa mesma universidade.
Membro da Associazione lnternazionale Areia, com sede na Uni-
versidade de Gênova.

Leandro Antônio de Almeida


Bacharel e licenciado em História pela Universidade de São
Paulo (USP). Mestre e doutor em História Social pela USP. Docente
do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB). Membro do corpo docente do Mes-
trado Profissional em História da África, da Diáspora e dos Povos
Indígenas da UFRB. Líder do grupo de Pesquisa Roda de Histórias
(rodahistorias.pro.br/).

Lucileide Costa Cardoso


Professora visitante sênior da Universidad Autónoma de Madrid.
Professora associada IV do Departamento de História da Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Membro do Programa de Pós-Graduação
em História (PPGH) da UFBA, área de concentração História Con-
temporânea e História do Brasil República. Pós-doutora em História
Contemporânea pela Universidade do Porto. Doutora em História
Social pela Universidade de São Paulo (USP).

Sumário
317

Maria do Rosário de Fátima Andrade Leitão


Pós-doutora pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar
em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Doutora em Estudios Iberoamericanos pela Universidad
Complutense de Madrid. Mestra em Desenvolvimento Urbano pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduada em Arqui-
tetura pela UFPE. Investigadora visitante no Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa e professora titular da Universi-
dade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Membro do Programa
de Pós-Graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local da
UFRPE.

Marta Francisco de Oliveira


Docente do curso de Letras da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS), Câmpus de Coxim (CPCX). Graduada em
Letras (Português-Espanhol) pela Faculdade de Artes, Letras e Co-
municação (Faalc) da UFMS, Câmpus de Campo Grande. Mestra
em Letras-Literatura pela UFMS, Câmpus de Três Lagoas (CPTL).
Doutora em Letras-Estudos Literários pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Câmpus de Assis. Pós-
-doutora pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado, ligado ao Pro-
grama de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPGEL) da UFMS.

Silvana Aparecida da Silva Zanchett


Professora adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS), Câmpus de Coxim (CPCX). Graduada em História
pela UFMS, CPCX, mestra e doutora em História pela Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD). Membro da Associazione
lnternazionale Areia, com sede na Universidade de Gênova.

Sumário
318

Tiana Andreza Melo Antunes


Professora adjunta da Universidade Federal do Mato Grosso do
Sul (UFMS), Câmpus de Coxim (CPCX). Graduada em Português-
-Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
mestra e doutora em Língua Portuguesa pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Letras Vernáculas dessa mesma universidade.

Vivian da Veiga Silva


Professora adjunta da Universidade Federal do Mato Grosso
do Sul (UFMS), Câmpus do Pantanal (CPPAN), Corumbá-MS.
Graduada em Ciências Sociais e mestra em Educação pela UFMS,
e doutora em História pela Universidade Federal da Grande Dou-
rados (UFGD).

Sumário
Sobre o E-book

Tipografia Fairfield LT Std, Azo Sans, Muli, Bilo

Publicação Cegraf UFG


Câmpus Samambaia, Goiânia-Goiás,
Brasil. CEP 74690-900
Fone: (62) 3521-1358
https://cegraf.ufg.br

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