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1. Introdução
Memória e cidade, um binômio que marca o tempo presente, em que diferentes urbes
brasileiras se organizam para recuperar suas histórias, seja por meio de políticas culturais ou da
ação de seus cidadãos. Neste texto, temos como objetivo discutir a dinâmica mnemônica da
cidade de Toledo, no estado Paraná. Para tanto, refletimos sobre os resultados de projetos de
pesquisa desenvolvidos sobre a cidade desde 2008.1Em termos teórico-metodológicos, a
investigação realiza aquilo que o Grupo Memória Popular (2003) chama de estudo relacional.
Trata-se de um contraponto entre memórias públicas e populares. As primeiras envolvem as
reminiscências circulantes na “esfera pública” (HABERMAS, 1984) ao passo que, entre as
demais, estão as lembranças provenientes da história oral produzida com grupos populares.
Toledo, por seu turno, é uma cidade de mais de cem mil habitantes, polo agrícola e
agroindustrial da região Oeste do Paraná. Foi fundada em 1946, tendo sido emancipada em
1952, em meio a projetos privados de colonização do imediato pós-Estado Novo, ainda em
meio a um forte imaginário social da Marcha para o Oeste. É uma cidade com forte tradição
memorialística, materializada em publicações ufanistas quanto ao passado local, veiculadas
tanto por meio da imprensa quanto de livros de história (LANGARO, 2012).
Tais versões, por seu turno, não ficam circunscritas a um público letrado restrito da
cidade, mas circulam amplamente pela sociedade local, atingindo os mais diferentes grupos
sociais. O trânsito de memórias é intenso, uma vez que os textos memorialísticos são, em grande
parte, construídos com base em história oral. Por outro lado, os moradores da cidade têm acesso
às memórias públicas do lugar e reproduzem ou reelaboram muitos de seus temas e clichês.
Importante observarmos, no entanto, que as memórias públicas da cidade privilegiam a
presença dos chamados pioneiros, pessoas que teriam se deslocado para o local durante as
* Bacharel e Licenciado em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, mestre em
História Social pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU e doutor em História Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor adjunto da Faculdade de História e membro do corpo
docente permanente do Programa de Pós-Graduação em História – PPGH e do Mestrado Profissional em Ensino
de História – PROFHISTÓRIA da Universidade Federal de Goiás – UFG.
1
Entre os projetos citamos aquele que gerou nossa tese de doutorado (LANGARO, 2012) e os desenvolvidos
institucionalmente na UFGD (LANGARO, 2014) e na UFG (LANGARO, 2016). Os resultados desses dois últimos
projetos se constituem em artigos e capítulos de livros veiculados em diferentes publicações acadêmicas, todos
disponíveis para acesso em: https://ufg.academia.edu/JianiFernandoLangaro.
2
Segundo afirmamos, a cidade de Toledo conta com uma intensa rotina de publicação de
livros de história local.2 O tema é muito presente no espaço público da cidade e, em geral, essas
obras buscam enaltecer a fundação do lugar, tratada por vezes como ação de reforma agrária
(NIEDERAUER, 2004), embora tenha consistido em uma colonização privada, cujo
empreendimento visava a venda de terras. Existem ainda intensas disputas pelo passado do
município, muitas das quais motivam novas publicações. Famílias e indivíduos que se
consideram “pioneiros” travam conflitos para definir quem tem direito à alcunha, quais temas,
espaços e tempos devem ser focalizados, quem deve ser reconhecido como fundador o
município, dentre outras questões.
Essas disputas não são fortuitas, mas revelam as dimensões políticas que cercam o
passado local. Ao eleger um conjunto de cidadãos como “pioneiros”, tornando-os heróis da
fundação do lugar, hierarquizou-se a cidadania3 na cidade, dando-se mais direitos a alguns que
aos demais. Em função disso, integrar esse seleto rol de cidadãos locais tornou-se objeto de
desejo e de reivindicação de muitos moradores, pertencentes a distintos grupos sociais.
2
As obras de história local analisadas foram: SILVA; BRAGAGNOLLO; MACIEL (1988), NIEDERAUER
(2004), GRONDIN (2007), BEAL (2009) e YOSHIDA (1988).
3
Algo nesse sentido já havia sido apontado por: LAVERDI (2005, p. 15).
3
4
Esse aspecto está muito presente em: BEAL (2009).
5
A esse respeito, ver: COSTA (2002: 28-29, 45, 50, 56, 66, 71-72, 77, 123, 169, 171, 182, 218 e 224).
4
Por meio das obras de história local, percebemos ainda que algumas famílias querem
ser reconhecidas como parte dos “colonizadores”. Dessa forma, tentavam deixar claro não
terem sido “simples colonos” (PIZZATO, 2009: 35), buscando uma diferenciação social frente
aos demais agentes reconhecidos como “pioneiros”.
Existe, portanto, uma rotina de publicações na cidade, que se intensificou a partir dos
anos 1980. Uma obra dialoga com a outra, respondem de maneira diferente a uma série de
questões e discordam umas das outras, formando um circuito de comunicações (DARNTON,
1990: 110-131). Nessas publicações, temos a monumentalização (LE GOFF, 1994) das
memórias de fundação do município, com a construção dos enredos de “pioneirismo”. Como
eles geralmente focam em apenas alguns sujeitos, principalmente os migrantes sulistas de
pretensa ascendência europeia portadores de algum capital, existem lutas para que novos grupos
sejam incluídos no rol de “heróis” locais.
6
Dentre os títulos da imprensa periódica analisados na pesquisa se destacam: O Oéste, A Voz do Oeste, Tribuna
D’Oeste, Jornal do Oeste e Gazeta de Toledo. A esse respeito, ver: LANGARO (2012, pp. 279-334; 448-460).
7
Uma delas é a elaboração de narrativas de história econômica para o município, como pode ser visto em:
INDÚSTRIA E... (2002).
5
com pouco apoio do Estado. Também serve como apelo para a coesão e impulso para a luta por
determinadas obras de infraestrutura para a cidade e a região. A imprensa também faz uso
desses enredos para construir uma imagem ufanista da cidade, geralmente apresentada como
uma urbe rica e plena de qualidade de vida para todos (QUALIDADE DE... 2002). Nesses
enredos, o passado “pioneiro” aparece como parte do ufanismo local, sendo usado para explicar
todo o trabalho coletivo, realizado com muito esforço, em meio a sérias adversidades, para
edificar um próspero município.
De maneira geral, percebemos que a imprensa é um lugar muito importante para a
reflexão de elementos centrais às memórias do “pioneirismo”. É também nela que se questiona
a cronologia do tempo “pioneiro” e se proclama novos sujeitos como integrantes do grupo. Sua
relação com a escrita de histórias locais também é intensa, uma vez que, muitas vezes, os autores
dos livros de história local são também articulistas da imprensa (LANGARO, 2012: 279-334).
A cultura material também faz parte desse processo de construção de memórias públicas
na cidade de Toledo-PR. Na pesquisa realizada, tomamos quatro espaços rememorativos como
objeto de nossa análise, o Museu Histórico “Willy Barth” de Toledo, a Praça Willy Barth –
central na cidade –, o Largo São Vicente de Paulo e o Parque dos Pioneiros. Segundo
constatamos, esses lugares da cidade participam das disputas pelo passado envolvendo as
famílias “pioneiras”.
O Museu Histórico “Willy Barth” de Toledo, como o próprio título já sugere, é devotado
às memórias da “colonização” e do “pioneirismo” instituídas no âmbito da segunda gestão local
da companhia Maripá. Foi construído com base na estatização de um museu privado, criado por
Ondy Hélio Niederauer (SANTOS, 2010: 104). Ele havia sido contador da empresa e articulista
da imprensa. Também atuava na cidade como historiador autodidata, sendo um admirador
devoto de seu falecido chefe, Willy Barth. Toda sua obra se configura em uma exaltação da
figura de Barth, não sendo diferente a perspectiva do museu.
O espaço congrega a sala de exposição e um arquivo histórico. Todas as temáticas da
cultura material exposta são remissivas ao tempo da “colonização”. Muitos dos bens culturais
móveis expostos são instrumentos de trabalho utilizados pela agricultura que existia na região
antes da “modernização” do campo. Vale frisar que é muito comum na região a confusão entre
o tempo “pioneiro” e o período anterior à década de 1970, quando o trabalho no campo não era
mecanizado. Também faz parte do acervo uma pele de onça – produto das caçadas que eram
6
empreendidas na região nesse período –, que grande admiração causa nas crianças das escolas
que visitam o museu em suas aulas de história local, como chegamos a testemunhar. A onça
simboliza, no museu e nas narrativas da “colonização”, os perigos corridos pelos “pioneiros”,
bem como sua bravura e disposição para enfrentar dificuldades (LANGARO, 2012: 337-345).
Por fim, o museu dedica uma sala temática a Willy Barth, tratado nas memórias públicas
locais como o grande “herói” de Toledo. Nela estão expostas roupas e objetos pessoais do
falecido segundo diretor local da “colonização” promovida pela Maripá. Dessa forma, se
individualiza esse sujeito histórico, decalcando sua experiência das demais que compuseram o
tempo de fundação da cidade, de maneira a personalizá-la (LANGARO, 2012: 337-345).
O acervo do arquivo anexo ao museu é composto pelos documentos de duas empresas
colonizadoras que atuaram no município, a Maripá S/A e a Pinho e Terras Ltda., com destaque
para a primeira. Também compõe esse acervo uma expressiva hemeroteca, com acervos
completos de jornais locais desde a década de 1950. Outras duas tipologias documentais que o
museu preserva são a coleção de fotografias do tempo da “colonização” e o fundo documental
composto por entrevistas orais realizadas com “pioneiros” (LANGARO, 2012: 337-345).
Como se pode notar, trata-se um espaço devotado às memórias da fundação do lugar, à
“colonização” e ao “pioneirismo”. Nele se destacam as narrativas elogiosas a Willy Barth e à
segunda gestão local da Maripá, embora se confira algum espaço para outros grupos
reconhecidos como “pioneiros”.
A praça Willy Barth, por seu turno, se configura em um lugar em que as esculturas
urbanas disputam as memórias fundacionais de Toledo.8 Nesse espaço se destacam três tipos
de esculturas. A primeira é o busto de Willy Barth (MONUMENTO, 1968), erigido em sua
memória ainda na década de 1960, poucos anos após seu falecimento. Outra escultura
homenageia a família de Alfredo Paschoal Ruaro, em uma tentativa de fixá-la como fundadora
da cidade (BELLO, 1999). Trata-se de uma obra encomendada pela própria família e instalada
na praça com autorização do poder púbico municipal. Por fim, temos um conjunto de pilares
em concreto com fotografias impressas em chapas de metal cobertas por estruturas de vidro.
Essas imagens fazem referência ao histórico da praça, desde o período fundacional da cidade
até o momento de reinauguração do local, em 2007 (PILARES, 2008). A praça central da
cidade, portanto, é outro espaço devotado ao “pioneirismo”, entretanto, nela se destaca a disputa
entre os grupos e famílias ligados à primeira e à segunda gestão local da Maripá.
8
Para uma análise mais detida das esculturas urbanas de Toledo remissivas ao “pioneirismo”, ver: LANGARO
(2012: 355-386).
7
9
Sobre Aldo Bello e Nelson B. Bucalão, ver: LANGARO (2012: 375).
8
popular” como aquela emergente das narrativas construídas pelos grupos populares –
notadamente das entrevistas orais –, mas não como produto exclusivo da vida privada.
Para tanto, produzimos 60 entrevistas orais com 58 pessoas diferentes.10 São histórias
de vida que lançam luz sobre a diversidade cultural e a desigualdade social que marcou a
trajetória da cidade. Não fizemos distinção entre “pioneiros” e moradores que se fixaram no
local em tempos recentes ou entre migrantes sulistas, sudestinos e nordestinos. Pelo contrário,
tentamos dialogar com o conjunto mais heterogêneo possível de habitantes, a fim de buscar as
“muitas memórias” e histórias (FENELON et al., 2004) de Toledo.
Como nosso intuito era buscar uma memória popular da cidade, evitamos realizar
entrevistas com aqueles sujeitos sócios das antigas colonizadoras ou ligados às grandes
corporações presentes em Toledo, como o Grupo BRF. Entendíamos que a voz deles já estava
registrada nos livros de história local, na imprensa e nas demais fontes utilizadas na pesquisa.
Como resultado, produzimos entrevistas que apresentavam trajetórias múltiplas, de
sujeitos aportados na cidade desde a década de 1940. Entre eles estão filhos de famílias de
migrantes sulistas, proprietários rurais ou comerciantes, mas também aqueles trabalhadores
pobres que migraram para atuar nos serviços de colonização. Também desenvolvemos
narrativas orais com filhos de famílias “paraguaias” e “caboclas”,11 que se mudaram para
Toledo ainda na década de 1940, a fim de trabalhar no setor madeireiro.
Outro enredo marcante nessas entrevistas foi o dos “nortistas”, trabalhadores vindos do
Sudeste e do Nordeste do Brasil. Eles eram presença marcante na zona rural de Toledo, tendo
fundado distritos – que hoje são municípios – e continuam presentes principalmente nas
periferias urbanas da cidade.
Matizaram também a pesquisa as narrativas de trabalhadores que deixaram o campo a
partir da década de 1970, na maioria das vezes – mas não exclusivamente – em função do
fechamento de postos de trabalho rurais, em decorrência da “modernização” do campo. Os
narradores, longe de se apresentarem como vítimas desse processo, revelam sua potência em se
reinventar como operários urbanos, bem como ressaltam seus papéis na construção dos novos
bairros fundados em Toledo, nesse período. Muitos desses lugares, inclusive, reproduziam
diversos elementos que compunham as comunidades rurais do município.
Nas narrativas orais produzidas na pesquisa, os conflitos no campo, a pobreza e até
mesmo a fome são temas presentes. Eles revelam como a realidade vivida pelos moradores de
10
A lista completa de entrevistas orais consta em: LANGARO (2012: 461-465).
11
É preciso frisar que, no entanto, muitas dessas populações tratadas como “paraguaias” ou “caboclas” eram
indígenas.
9
Toledo não foi nenhum idílio. A desigualdade social, assim como a diversidade étnico-racial e
as relações de gênero marcaram a formação do município e se traduziram, em diversos
momentos, em relações conflituosas, permeadas por preconceitos e lutas por espaços.
A potência dos grupos populares da cidade também foi impactante nas entrevistas. Por
meio delas descobrimos que, nos anos 1980 e 1990, não houve em Toledo tão somente a
construção de políticas públicas de diálogo entre o governo municipal, os bairros e os distritos.
Parte das políticas municipais, orientadas pela concepção de democracia participativa, foi
produto de movimentos sociais urbanos (LANGARO, 2014).
Esses movimentos, de maneira geral, reivindicavam infraestrutura urbana, redes de água
e de energia elétrica, transporte público, asfaltamento de vias urbanas, escolas, dentre outros
equipamentos urbanos. Foram organizados com base nas igrejas católicas, com o auxílio de
religiosos ligados à Teologia da Libertação. Depois foram criadas as associações de moradores
que, embora não tenham mantido as mobilizações ativas, existem até hoje. Conforme
constatamos, o poder público não concedeu dádivas aos moradores, mas reconheceu seus
direitos, após muita pressão e organização.
A pesquisa revelou, no entanto, outras experiências de urbanização, realizadas ainda na
vigência da ditadura civil-militar. Nesses locais não havia a carência apenas de infraestrutura
urbana, mas da própria titulação dos terrenos. Esse foi um processo marcado por uma “cultura
política” diferente daquela dos anos 1980, tendo sido pontilhada pelo personalismo e
clientelismo político (LANGARO, 2022).
Entretanto, como pudemos notar, as lutas por direitos não se limitaram aos anos 1980 e
princípios dos anos 1990. Elas se arrastam até o presente, não sem mudanças, evidentemente.
Muitas vezes essas lutas por direitos emanam não de movimentos sociais propriamente ditos,
mas de uma sociedade que se movimenta por meio de pessoas que se mobilizam – de forma até
mesmo silenciosa e quase invisível – na vida cotidiana.
Uma dessas movimentações dizia respeito à violência urbana de Toledo, tema que as
entrevistas orais deram conta. No período em que as narrativas foram realizadas, a violência
contra jovens estava muito alta na cidade e envolvia o narcotráfico na fronteira (Torres, 2015).
As narrativas, longe de apresentarem uma visão meramente fatalista da situação, mostram como
os moradores demandavam políticas públicas e sugeriam medidas para reverter tal quadro.
Foi nessa perspectiva que nos deparamos com entrevistas orais em que os narradores
revelam novas demandas sociais. Uma delas é pela completude da inclusão social dos
moradores da periferia da cidade. Uma das críticas que encontramos dizia respeito ao fato de
os jovens desses bairros ainda serem vistos como apenas aptos a servirem de mão-de-obra às
10
indústrias locais. Delineava-se, dessa forma, demandas para que eles também pudessem se
empregar nos escritórios e em funções menos ligadas a trabalhos manuais, mais qualificadas e
que os remunerassem melhor (GENESSI, 2010).
Outras demandas que se apresentavam eram pelo acesso às artes e aquilo que se
convencionou chamar de “cultura”. Nesse aspecto, se criticava os valores cobrados por
espetáculos e se via com bons olhos a instituição de um “vale cultura”, pelo governo federal.
Nesse aspecto, víamos entre os setores populares de Toledo o desejo de também ter um melhor
acesso à fruição cultural (DILACIR, 2010). Trata-se, visivelmente, de uma demanda mais
ampla por inclusão social, que não se limita às necessidades mais imediatas de sobrevivência.
Essa questão demonstra um amadurecimento da consciência desses trabalhadores quanto ao seu
“direito à cultura” (CHAUÍ, 2006), e um avanço com relação às décadas passadas, quando eles
ainda tinham que lutar por um mínimo de infraestrutura urbana.
As entrevistas orais, portanto, conformam um conjunto rico e fértil de memórias e
trajetórias de vida. Elas revelam não uma história única e linear da cidade, mas as muitas
memórias e histórias das pessoas que habitam a cidade. Nesse aspecto, a linearidade e os clichês
dão lugar a histórias vivas, que revelam uma urbe repleta de diversidade, desigualdade, lutas
por direitos, contradições e processos de consciência.
Uma das questões que salta aos olhos, ao consultarmos o acervo de história oral que
nossa pesquisa construiu, envolve as lutas pelo “direito à memória” (PAOLI, 1992).
Praticamente todos os narradores tentaram enquadrar suas trajetórias pessoais ou familiares no
enredo de “pioneirismo” que marca a história local. Alguns lembravam do “pioneirismo”
familiar em algum distrito municipal ou em outras cidades paranaenses, enquanto outros
reivindicavam-se como “pioneiros” de bairros. Entendemos esse movimento como decorrente
de uma concepção hegemônica de que história local é sinônimo de narrativas de “colonização”
e de “pioneirismo”. Em função disso, as pessoas não se conformavam em não fazer parte do rol
de cidadãos especiais do município e lutavam para se inserir nesse tipo de categorização.
Vale frisar que a hierarquização da cidadania promovida pela alcunha de “pioneiro” não
é meramente simbólica. Ela resulta no empoderamento desses indivíduos, que adquirem peso
maior que os demais cidadãos na hora de definir certas políticas públicas. Tal questão fica muito
perceptível em audiências públicas para tratar de determinadas obras de urbanização de Toledo
(REVITALIZAÇÃO DE..., 2005).
11
à serviço da Maripá, era o “verdadeiro” fundador de Toledo. Atribui a ele características sobre-
humanas e o apresenta como um grande herói, que teria enfrentado a floresta, os animais
selvagens e desenvolvido o trabalho de desmatamento para abertura de estradas e patrimônios
completamente sozinho. Mundo Novo – um trabalhador braçal negro – certamente era alguém
bem mais próximo culturalmente de Amâncio – um trabalhador da construção civil nordestino,
nascido no Piauí – que os membros das famílias de pretensa origem europeia candidatos ao
título de fundadores do lugar e/ou postulantes a “heróis” da “colonização”.
Por fim, notamos essas disputas também no ato de redigir manuscritos de história local,
empreendido por lideranças comunitárias que entrevistamos. Tal prática revela, portanto, como
as memórias populares não estão circunscritas às narrativas orais. Gentil escreveu uma síntese
da história do Jardim Panorama, com dados e informações que julgava importantes sobre o
local. Ele guardava consigo esse documento, digitado e impresso, e nos forneceu para
reprodução (CORREA, 1999[?]).
Maria (2010) realizava algo semelhante. Sua família esteve à frente da associação de
moradores do Jardim América, da qual ela participou ativamente. Foi catequista e liderança
comunitária na Igreja Católica local, na comunidade Sagrado Coração de Jesus. Maria escreveu
um manuscrito contendo a história dessa comunidade, que confunde a trajetória do grupo
católico com a do bairro. O documento era redigido de forma manuscrita, em um livro de
registro de atas. Na folha de rosto, a autora colou uma imagem do Sagrado Coração de Jesus,
como forma de dar-lhe o aspecto de um livro impresso (CHAVES, 2003). Seu sonho, segundo
nos contou, era que alguém publicasse um livro didático com a história do bairro, para ser usado
na escola do Jardim América.
Conforme constatamos, as lutas pelo “direito à memória” dos trabalhadores e demais
integrantes dos grupos populares de Toledo não ficaram apenas no campo das reivindicações.
Empoderados, essas pessoas se sentiram no direito de – elas próprias – elaborarem novas
versões para o passado local e até mesmo redigirem sínteses históricas. Suas demandas não
paravam por aí, uma vez que esperavam a publicação de obras que dessem maior visibilidade
aos enredos locais, dos bairros.
7. Considerações finais
A pesquisa realizada revelou toda uma dinâmica em torno das inúmeras memórias e
histórias de Toledo. Longe desse dado apenas apresentar uma diversidade de lembranças, nos
deparamos com um intenso campo de disputas pelo passado da urbe. Esses conflitos, por sua
13
vez, não estão limitados a um confronto entre “memórias públicas” e “memórias populares”,
embora eles também existam, como demonstrou o estudo relacional.
As memórias públicas também são clivadas pelo choque entre diferentes versões do
passado local e estão envoltas em disputas empreendidas até mesmo pelos grupos com maior
visibilidade em seus enredos. Essas versões são ainda confrontadas pela população local, a
quem as memórias públicas chegam de diferentes formas, pelos meios de comunicação, pelos
espaços da cidade ou mesmo pela leitura de livros de história local, inclusive os didáticos.
Embora os enredos do “pioneirismo” sejam hegemônicos no município e tema
privilegiado quando o assunto é história local – mesmo entre pessoas que não participaram da
“colonização” de Toledo –, os moradores questionam essas histórias. Mais que isso, eles
reivindicam seus direitos de figurar nas memórias e narrativas do passado do lugar e se dedicam
a elaborar outras versões sobre a trajetória do município.
Como pudemos perceber, a história local não é monolítica. Não existe uma memória
única para a cidade e sim muitas memórias, que redundam em muitas histórias diferentes.
Diversos agentes, nesse contexto, lutam para manter essas diferentes narrativas vivas no
cotidiano da cidade. Assim, embora há décadas se tente construir uma narrativa homogênea e
consensual para a cidade, estamos muito longe de ver isso acontecer. Tal dado não é negativo,
ao contrário, garante uma história mais plural para Toledo.
Nessas histórias, o ufanismo local, que trata Toledo como um lugar rico e desenvolvido,
pleno de qualidade de vida, disponível para toda a sua laboriosa população nem sempre é
questionado. Entretanto, sempre se indaga quem construiu a cidade nesses termos e como ela
deveria, de fato, colocar sua riqueza, qualidade de vida e demais benefícios à disposição de
todos. Tal aspecto revela que, embora seja hegemônica nesses enredos uma perspectiva
“heroicizante” da história local, ela não é imune a tendências mais críticas e reflexivas.
8. Referências
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cores verde e marrom, que reproduz um casal com uma criança de colo, esculpida como
homenagem à “família pioneira”. 1 escultura.
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Abramo, 2006.
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comunidade. Ano e mês 10-08-2003. Toledo/PR: Manuscrito, 2003.
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Sul Gráfica, 2002.
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DILACIR, autônoma, moradora do Jardim Pansera de Toledo-PR. A entrevista foi realizada em
09 de janeiro de 2010, quando ela possuía 46 anos de idade.
ESTÁTUA em concreto: reproduz a figura de padre Antonio Patuí, nas cores verde, marrom,
cinza e branca. [Toledo: Prefeitura Municipal, 1996]. 1 escultura.
FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY,
Yara Aun. (orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’Água, 2004.
GENESSI, dona de casa, moradora do Jardim Europa de Toledo-PR. A entrevista foi realizada
em 30 de janeiro de 2010, quando ela possuía 39 anos de idade.
GENTIL, aposentado e microempresário, morador do Jardim Panorama de Toledo-PR. A
entrevista foi realizada em 21 de janeiro de 2009, quando ele possuía 53 anos de idade.
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15