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LINHAS MESTRAS
1
Apresentação
2
responsável por determinados autores ou períodos. Coube, enfim, a uma equipe – esta
que assina estas linhas – a tarefa da seleção definitiva, da organização, composição,
impressão e apresentação final do volume.
3
POESIA TROVADORESCA
1. Cantigas de amigo
2. Cantigas de amor
4
UMA IDADE MÉDIA EM QUATRO CANTARES
Umberto Eco*
Embora alguns séculos nos separem já do medievo, muito ainda nos aproxima
daquele período que abrange cerca de um milênio da história do Ocidente: a voragem do
amor-paixão, a posição da mulher na sociedade, os tabus de sexo e de trabalho, a
distribuição de rendas e a usura, o lugar dos desvalidos e marginalizados, a religião e o
fascínio do maravilhoso...
Um diálogo com a Idade Média inicia-se através da recuperação de suas marcas,
isto é, de suas representações verbais, gestuais, pictóricas, musicais... De posse desse
“tesouro”, nós, leitores do século XX, imprimimos a ele o nosso selo, numa leitura que,
sem dúvida, não é inocente e tampouco definitiva.
Reler neste final de milênio as cantigas dos primitivos cancioneiros galego-
portugueses não será somente recuperar a ética do medievo, mas sobretudo tentar
explicar o que hoje é – o mundo em que estamos – pelo que ontem foi e como foi. E
como sabemos que os documentos só respondem àquilo que lhes perguntamos,
tentaremos fazer com que respondam às seguintes perguntas: como se desenrola a cena
entre masculino e feminino no jogo cortês do amor-paixão? Como é sentido no campo o
tempo feminino? Como são vividos os tabus de sexo e de trabalho nos duplos da
persona oficial? Como é capitalizada a maravilha pagã para a afirmação da fé em Cristo
e na Virgem?
5
Com o propósito de definir o Amor discursam os convivas de O banquete de
Platão; na tentativa de viver a Paixão, Tristão e Isolda caminham para o êxtase supremo
que é a morte de amor. Amor e discurso – Eros e Logos –, paixão e morte – Eros e
Thanatos – numa ciranda sem fim... E reencenando esse drama, os cantares de amor
atualizam, à maneira cortês, a ancestral demanda...
A cantiga de amor é, antes de tudo, um texto perverso em que se lê o jogo entre
silêncio e fala. Enquanto a clausura dele, apenas um artifício, é falada, isto é, a “dor de
amor” masculina ganha estatuto literário, a clausura dela – física e sobretudo social – é
confirmada pelo silêncio de um texto que cerceia o fazer feminino.
Se o olhar – cobiçoso e concupiscente – é a fonte do Mal, o olhar masculino
nunca aparenta ali indiscrição: a dama ocupa o lugar previsível. Reafirmando a
supremacia das qualidades morais sobre as físicas, as cantigas de amor testemunham o
desprezo pelo corpo – e o medo dele – e apostam, ainda, na manutenção da opacidade
como fator indispensável ao sucesso da cortesia, jogo eminentemente masculino, como
ensina Georges Duby1.
Nesse jogo cortês, a mulher constitui o prêmio de uma competição, já que a “fin’
amors” é o correspondente exato do torneio. No serviço amoroso, quanto mais a dama
se esquiva, mais o cavaleiro se qualifica: o recato da “senhor” é elogiado e a perda do
“sen” é uma das marcas que destaca o amante perfeito do “enfron”. O gesto feminino de
indiferença concorre, portanto, para a distinção e a honra do cavaleiro; e a honra,
saliente Duby2, é um assunto de homens que depende da conduta das mulheres...
Confirmando a excelência da coyta d’amor, as cantigas recuperam
constantemente a cena fulminante (fulmen, inis: raio) do nascimento da paixão: “Des
que eu vi/ a que eu vi/ nunca dormi/ e, cuidand’i/ moir’ eu.” (Rui Fernandes, CV, 491;
CBN, 847). A febre amorosa que daí advém é alimentada por interdições – o uso do
senhal e o serviço prestado à distância –, garantias de um regime de alta tensão erótica
que encontra na morte (literária...) de amor o êxtase supremo.
Esse mundo apaixonado e apaixonante torna-se o modelo que todos desejam
viver e o Amor ganha o proscênio na palavra poética: “Amor faz a min amar tal senhor”
diz Airas Nunes (CV, 457; CBN, 814). Os ready-made “morrer de amor”, “amor
impossível”, “amor eterno” fazem da cantiga o lugar onde se (re)produz o mito da
grandeza do amor infeliz, defendido por Denis de Rougemont3.
Tentando escapar desse circuito, D. Dinis recupera o topos “Descriptio terrae
vernantis” e comenta a artificialidade do fazer provençal: “ Proençaes soen mui ben
6
trobar /.../ ...no tempo da frol” (CA, 127; CBN, 524). Colhido, porém, na própria
armadilha, não consegue esquivar-se da trama literário-amorosa: sua composição
desdobra-se em lugares-comum... A literatura inventa o Amor, aprisiona-o, hiperboliza-
o, ritualiza-o.
Tempo da cantiga de amor: tempo de criação de um código secreto para a
paixão, num mundo onde a arquitetura não garantia a privacidade e o segredo. (Aliás,
essa construção literária parece preparar o primeiro andar daquilo que se chamará
intimidade amorosa, tão bem explorada mais tarde na literatura dos séculos XVIII e
XIX). Tempo da cantiga de amor: tempo de êxtase continuado e sofrido. E nessa festa
erótica, quando chorando a ausência do outro o homem ocupa o lugar que histórica e
culturalmente pertence à mulher, o mundo viril é feminizado para tornar-se ainda mais
viril...
Vários são os que têm estudado as origens da lírica medieval. Rodrigues Lapa4
afirma que do amálgama das três teorias que disputam entre si o mérito duma
explicação – a teoria arábica, a folclórica e a latino-medieval – nasce a arte dos
trovadores. Hernani Cidade5 recorda a existência de uma lírica popular feminina anterior
à imitação provençalesca, afirmando, assim, a anterioridade das cantigas de amigo sobre
as de amor. Martín de Riquer6 salienta a importância das jarchyas que, descobertas em
1948, vêm comprovar a tese da existência de um lirismo peninsular autóctone cujas
características perduram nas cantigas de amigo galego-portuguesas: a palavra feminina,
a referência ao habib e a confidência feita à mãe ou às amigas. Natália Correia7, por sua
vez, ressalta que “o paralelismo da cantiga de amigo é o testemunho de sua antiguidade,
aliás comprovada nos temas nitidamente relacionados com os cultos remotos que nele
prevalecem.” E finalmente António José Saraiva e Óscar Lopes8 afirmam que “a cantiga
de amigo nasceu na comunidade rural, como complemento do bailado e do canto
coletivo dos ritos primaveris, próprios das civilizações agrícolas em que a mulher goza
maior importância social.”
7
amigo: o primitivismo e a simplicidade da invenção poética, a moldura matriarcal e o
substrato sagrado.
A estrutura rítmica muito simples – que faz supor que as cantigas eram
primitivamente dançadas e cantadas em coro – e a invenção poética reduzida ao mínimo
– vocabulário repetitivo, rimas pobres e toantes – constituem as principais marcas
dessas composições. Segundo António José Saraiva9, os cantares primitivos foram
reproduzidos e adaptados, justificando-se, assim, a semelhança entre alguns textos: a
cantiga de D. Diniz “Levantou-se a velida” (CV, 172; CBN, 562) é muito semelhante à
de Pero Meogo “[Levantou-se a louçana]” (CV, 793; CBN, 1188), para citar apenas um
exemplo.
Em relação à moldura matriarcal, podemos dizer que as cantigas de amigo
editam uma história da mulher: é da mãe que a moça recebe conselhos ou ouve
proibições e é com as amigas que desabafa a coyta causada, muitas vezes, pela ausência
do amigo cumpre o fossado. Se em alguns casos a mãe opõe-se ao namoro da filha, em
outros, recusando a repetição da feminina saga de desenganos, planeja com a moça a
vingança contra o amigo: “filha, fazede’ end’ o melhor:/ pois vos seu amor enganou,/
que o engane voss’ amor”. (Pero da Ponte, CA, 423; CBN, 837). Esse tempo de
revolução, numa sociedade em que cabiam à mulher gestos de espera e de impotência,
conforme salienta Isabel Allegro de Magalhães10, pode ainda ser lido na cantiga de D.
Diniz (CV, 102; CBN, 519) quando a pastora, sofrendo “gran coyta” pelo abandono de
que foi vítima, lança o maleficium: “Mal ti venha per u fores,/ ca non és se non mia
morte,/ ay amor.” Reminiscência de mágicas vozes femininas... Ecos de Morgana?
E finalmente o terceiro aspecto: o substrato sagrado e a pansensualidade. Ao
contrário do que ocorre nos cantares de amor, aqui a aventura amorosa é patrocinada
pela deusa Natura que tudo consente. Retomando os encantos do locus amoenus,
consagrado topos da literatura clássica, os cantares de amigo encenam o amor entre
fontes, plantações, jardins, ares suaves, flores, cantos de pássaros e frutos. Enquanto nas
cantigas de fonte concretiza-se o apaixonado encontro, nas albas o que se lê é a
despedida dos amantes – à maneira de Romeu e Julieta – depois de uma noite de prazer.
Trazendo ao espaço literário uma das mais populares práticas de devoção do medievo,
as cantigas de romaria recuperam o clima de liberalidade que caracteriza as
peregrinações – o que se verifica, por exemplo, nos Contos de Cantuária de Geoffrey
Chaucer – e desenha a moça que vive nos sentidos da paixão. E, finalmente,
impregnadas dos primitivos cultos à Fecundidade, as bailadas e as barcarolas
8
reescrevem o movimento cósmico de harmonia dos contrários no corpo dos amantes
que dançam sob “aquestas avelaneiras frolidas” (Joan Zorro, CV, 761; CBN, 1158) ou
que se banham “no mar leuado” (Martin Codax, CV, 884; CBN, 1278).
Tempo da cantiga de amigo: tempo dos sentidos... E ao lado dessa aventura,
também a desventura feminina. Na composição de Estevam Coelho (CV, 231; CBN,
720), o pranto da mulher que fia, no tempo da casa, eterna Penélope: “Sedia la fremosa
seu sirgo torcendo,/ Sa voz manselinha fremoso dizendo/ cantigas d’amigo.”
9
das mais importantes produções deste final de século XX – O Nome da Rosa de
Umberto Eco – recupera o antigo debate).
Acompanhando a grande inquietação intelectual que caracteriza a Idade Média
Central, o poeta encontra no uso literário de situações jocosas a maneira de expressar
sua crítica à rigidez da ordem religiosa e política.
Espelho da cidade celeste, o mundo terreno medieval organiza-se em três ordens
– a dos oratores, a dos bellatores e a dos laboratores –, hierarquicamente dispostas e
fortemente caracterizadas pelos sinais que portam e pelos gestos que executam.
Castidade, fidelidade, coragem, beleza e cortesia são marcas que definem as duas
primeiras; trabalho, obediência, paciência e perseverança é o que se pede ao inerme
vulgus. Sob o risco de tornar-se herege, desertor ou vagabundo, cada membro do corpo
social deve movimentar-se dentro de tais padrões, que passam a ser aceitáveis pela força
de dois grandes tabus: o de sexo e o de trabalho.
Fazendo dos transgressores dessa ordenação social os personagens de seus
pequenos dramas, as cantigas de escárnio e de maldizer executam – através do riso – a
cena de exclusão. A alcoviteira, a mulher libertina, o frade devasso, o cavalheiro
covarde, o fidalgo pobre constituem preciosos alvos de zombaria. Mas como já
ressaltamos anteriormente, ao ultrapassar a primeira margem, esse desfile cômico torna-
se um ato de denúncia: denúncia de uma ordem que priva o homem do prazer de seu
corpo e da alegria de seu trabalho.
A mulher que “per pissas berra, en terra deitada” (Pero Garcia Burgalês, CV,
993; CBN, 1384), o “frade encaralhado” (Fernand’ Esquio, CV, 1136; CBN, 1604), o
homossexual amaldiçoado pelo “ome fodimalho” (Pero da Ponte, CV, 1160; CBN,
1626), a abadessa presenteada com “quatro caralhos asnaes” (Fernand’ Esquio, CV,
1137; CBN, 1604) figuram os atos do drama corporal e chamam a atenção para a
natureza, minando as bases de uma ordem que preconiza o desprezo pelo corpo e pelo
sexo.
E na figuração desse mundo às avessas é no corpo feminino que se (re)vive mais
dolorosamente o inconciliável (?) conflito entre virtude e pecado. Ao contrário do que
acontece nos cantares de amor, aqui se tece uma anatomia dos sentidos que, culminando
numa anatomia do grotesco, parece apontar para a artificialidade do retrato da “senhor
fremosa”. O avesso do corpo feminino desejável constrói-se com detalhes: “rostr’ agudo
come foron,/ barva no queix’ e no granhon,/ e o ventre grand’ e inchado. / /
Sobrancelhas mesturadas, /.../ e as tetas pendoradas /.../ / A testa ten enrugadas/ e os
10
olhos encovados,/ dentes pintos come da— dos...” (Pero Viviaez, CV, 1152; CBN,
1619). À sensualidade domada das cantigas de amor responde uma sensualidade
explosiva que se concretiza em qualquer tempo ou espaço. Ao perfil opaco da “boa
dona” responde um corpo que transborda em sensações: visão, olfato, tato e audição
conjugam-se na construção da donzela, da soldadesca e até da abadessa...
Lidando com um dos mais importantes tabus do medievo – o de sexo –, as
composições satíricas apresentam, por um momento, através do riso libertador, o que o
social, moral e religioso teimam em domar; mas pelo perigo que essa liberação
representa, o próprio riso – já agora repressor – conduz à rejeição desse prazer que se
pinta grostesco. Malhas que a Literatura tece...
Em relação ao segundo tabu – o de trabalho –, o medievo estabelece a diferença
entre ofícios lícitos – o de orar pela salvação da alma e o de guerrear em nome de Deus
– e ofícios ilícitos que colocam o homem em contato com a impureza ou com o
dinheiro, como ensina Jacques Le Goff12.
Refletindo a situação política e religiosa por que passa Portugal nos séculos XIII
e XIV, as cantigas de escárnio e de maldizer apresentam, em cortejo cômico, situações
que denunciam a fragilidade daquelas convenções. O vilão feito cavalheiro, o
mercenário covarde, o falso peregrino e o escudeiro mistificador parecem dizer que o
elegante nobre, o valente cruzado e o piedoso visitante da Terra Santa são perfis que se
perderam... O tempo parece ser o do estranheiro que, chegando à corte, “de lũes ao
martes/ foi comendador d’ Ocrês.” (Pero Meéndez da Fonseca, CV, 1132; CBN, 1600).
Paio de Maas Artes, o pícaro medieval; e tantos Malasartes depois... Representando o
sucesso pela trapaça, tal personagem espelha a sociedade que vive não só uma
renovação genealógica, como também uma revolução de costumes. O nobre otium
dialoga com o rentável negotium e o próprio rei é acusado de usura: “Os vossos meus
maravedis, senhor,/ que eu non ôuvi,...” (Gil Pérez Conde, CV, 397; CBN, 1524).
Tempo das cantigas de escárnio e de maldizer: tempo de intervalo. Ao desfilar
os que não se enquadram no espaço oficial, os cantares satíricos – pela abolição
temporária das relações hierárquicas, dos privilégios, das regras e dos tabus – permitem
uma distensão. Tempo das cantigas de escárnio e de maldizer: tempo de criação de um
vocabulário especial, alegre e sem restrições, que expresse o mundo às avessas... na
demanda da terra da Cuccagna...13
11
4. Cantigas de Santa Maria: piedade e conversão na demanda do Paraíso
12
da comezaina, à maneira do milagre das Bodas de Canaã, constitui um dos motivos
recorrentes das cantigas, alimentando a ilusão de que nunca faltará pão aos devotos da
Virgem...
As cantigas de louvor – que celebram a figura da Maria como Auxiliadora,
Medianeira, Procuradora – explicam por que se deve amar a Virgem. Trazendo no seu
nome o emblema da perfeição (como mostra o acróstico da Cantiga 70), Maria resgatará
a humanidade da perdição provocada por Eva: “Ca Eva nos tolleu/o Parays’ e Deus,/
Ave nos y meteu.” (Cantiga 60).
Tempo das Cantigas de Santa Maria: tempo de piedade e de conversão. E nas
pequenas histórias contadas e, sobretudo, cantadas, o ouvinte, cantor também, procura o
Paraíso. Guiado pela mão da Generosa, aprende a distinguir, entre rimas e refrães, o
Bem do Mal, o eterno do temporal, o espiritual do material...
***
BIBLIOGRAFIA
13
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Mettmann. Madrid: Castalia, 1986. 4 v.
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amigo). 4. ed. Lisboa, 1959.
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11. HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Lisboa: Ulisséia, [s.d].
12. LAPA, Manuel Rodrigues (edição crítica). Cantigas d’escárnio e de maldizer
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13. ___________. Lições de Literatura Portuguesa. 6. ed. Coimbra, 1966.
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15. LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. São Paulo, Brasiliense, 1989.
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18. MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São paulo: Contexto, 1990.
19. MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo parado e o tempo “perdido”. In: ---.
O tempo das mulheres. Lisboa: Imprensa Nacional, 1987.
14
20. MARTINS, Mário. A sátira na literatura medieval portuguesa. Séculos XIII e
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21. ___________. Estudos de cultura medieval. Lisboa: Verbo, 1969.
22. MATTOSO, José. Saúde corporal e saúde mental na Idade Média portuguesa.
In: ___________. Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Estampa,
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23. NUNES, J. Joaquim. (edição crítica acompanhada de introdução, comentário,
variantes e glossário). Cantigas d’amigo dos trovadores galego-portugueses.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926. 3v.
24. ___________. (edição crítica acompanhada de introdução, comentário, variantes
e glossário). Cantigas d’amor. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1972.
25. ___________. Crestomatia arcaica. 6. ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora,
1967.
26. PASTOUREAU, Michel. No tempo dos caveleiros da Távola Redonda. São
Paulo: Companhia da Letras, 1989.
27. PERNOUD, Régine. O mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1978.
28. PESSANHA, José Américo. Platão: as várias faces do amor. In: ___________.
Cardoso, Sergio er alii. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
29. PLATÃO. O Banquete ou do Amor. 2.ed. São Paulo: Difel, 1970.
30. PICCHIO, Luciana S. Pesquisas sobre a lírica galego-portuguesa. In:
___________. A lição do texto. Lisboa: Edições 70, 1979.
31. PIMPÃO, Álvaro J. da Costa. Cancioneiro d’ El-Rei D. Diniz. Lisboa: Atlântida,
1960.
32. RIQUER, Martín de (org). Antologia de la literatura española; siglos X-XX.
Barcelona: Teide, 1953.
33. ROUGEMONT, Denis. L’amour et l’Occident. Paris: Union Génerale
d’Éditions, 1970.
34. SARAIVA, António José. História da cultura em Portugal. Lisboa: Jornal do
Foro, 1950.
35. __________ & LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 4.ed. Porto,
[s.d.].
36. Tristão e Isolda. Lisboa: Europa-América, 1975.
15
37. VASCONCELOS, Maria Elizabeth G. de. As catingas de amor: um serviço de
alta tensão erótica. Convergência Lusíada. Rio de Janeiro: Real Gabiente
Português de Leitura, 9 (78/83), 1992.
38. ___________. Os gestos femininos no medievo europeu: dolor e maleficium.
Cadernos 1 – 3° Seminário Nacional Mulher e Literatura. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, 1989.
39. VIEIRA, Yara Frateschi. O escândalo das amas e tecedeiras nos Cancioneiros
galego-portugueses. Colóquio/Letras. Lisboa: 76: 18-27, 1983.
40. WISNIK, José Miguel. A paixão dionisíaca em Tristão e Isolda. In: CARDOSO,
Sérgio et alii. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
NOTAS
*ECO, U. (1989) p. 78
16
A Arte de Trovar dos trovadores galego-portugueses
Enquanto o lirismo provençal tem minuciosa arte poética – Las leys d’amor –, a
poesia galego-portuguesa só dispõe de uma amputada Arte de Trovar, que vem no
início do Cancioneiro da Biblioteca Nacional e cujos primeiros capítulos desaparecem.
Este fragmento começa por uma página quase apagada em que se lê, a partir do Capítulo
IV, a definição das cantigas dialogadas. É desse parco material que nos utilizamos para
as notas que se seguem.
As cantigas que constituem o acervo da poesia galego-portuguesa inscritas nos
três Cancioneiros – da Ajuda, da Vaticana e da Biblioteca Nacional – podem ser
classificadas:
1. Quanto ao gênero
2. Quanto ao estilo
Observações:
1
Não mencionamos aqui as Cantigas de Santa Maria, nas quais só figuram cantigas de cunho religioso
dedicadas à Virgem.
2
Todas as citações entre aspas são tiradas da Arte de Trovar (que, aliá, não tem título) do Cancioneiro da
Biblioteca Nacional.
17
1. As Cantigas de Malmaridada (bastante raras) participam de dois gêneros:
por serem postas na boca de uma mulher serão, de certo modo, de amigo; por serem
satíricas, de escárnio ou maldizer.
Estrofes:
As estrofes das cantigas – cobras – podem ser formadas de número variável de
versos (de 2 a 12), sendo mais usadas as de cinco versos. À disposição dos versos –
palavras5 – dá-se o nome de talho.
Findas:
“As findas son cousa antiga que os trobadores sempre husaron de poer en
acabamento das sas cantigas, para concluidiren e acabaren melhor em elas as razones
que disseron nas cantigas, chando lhes finda, porque quer tanto dizer como acabamento
3
É por essa definição que se inicia o fragmento do Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
4
Cantigas paralelísticas bailadas ou cossantes são cantigas que têm um número par de estrofes, as quais se
repetem quase que integralmente duas a duas, variando apenas o necessário para apresentar uma
alternância de rimas.
5
Palavra, na Arte de Trovar, significa vocábulo ou verso.
18
de razon”. Há findas de um, dois, três e mais versos, sendo mais frequente a finda de
dois ou três. Excepcionalmente há mais de uma finda na mesma cantiga.
Artificios poéticos:
Rimas:
19
Nas cantigas de mestria, mais influenciadas pela poética provençal predominam
as rimas agudas; nas outras, as rimas graves.
Metros:
20
Os cancioneiros galaico-portugueses
21
prematuramente. Foi o próprio Monaci que deu a edição diplomática em 1880.
Publicou apenas 470 canções das 1647 que o manuscrito continha, pois apenas
estas não se encontravam também no Cancioneiro da Vaticana. Há uma edição
do Cancioneiro da Biblioteca Nacional em 7 volumes. São responsáveis por ela
Elza Machado e José Pedro Machado.
Observações:
a) Por ser inacabado, o Cancioneiro da Ajuda não traz as músicas das cantigas. Só
se conhecem os sons das barcarolas de Martim Codax, graças à descoberta do
manuscrito de Vindel.
b) O professor Rodrigues Lapa deu, em 1965, uma edição crítica das Cantigas
d’Escarnho e Maldizer (Coimbra, Editorial Galáxia, Colección Filológica).
22
CANTIGAS DE AMIGO
23
JOÃO ZORRO
24
MEENDINHO
V 438
B 852
PERO MEOGO
25
— Mentir, mia filha, mentir por amigo,
nunca vi cervo que volvesse o rio.
— Os amores hei.
26
Tôdalas aves do mundo d'amor diziam,
do meu amor e do voss[o] em ment'haviam:
leda m'and'eu.
27
JUIÃO BOLSEIRO
Pois eu nom hei meu amigo, nom hei rem do que desejo,
mais, pois que mi por vós vẽo, mia filha, que o nom vejo,
nom hajade'la mia graça,
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha, que vos assi faça
Per vós perdi meu amigo, por que gram coita padesco,
e, pois que mi o vós tolhestes e melhor ca vós paresco,
nom hajade'la mia graça,
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha, que vos assi faça
V 777; B 1171
28
AIRAS NUNES
29
Pero m'eu leda semelho,
nom me sei dar conselho;
amigas, que farei?
Em vós, ai meu espelho,
eu nom me veerei.
PERO VIVAEZ
30
Dizedes-mi que, se eu mal quiser
a meu amigo, que mi gram bem quer,
que faredes sempre quant'eu disser,
mais venh'or'a que mi digades al:
pois hei de querer mal a quem mi bem quer
se querrei bem a quem mi quiser mal.
V 206
B 1300
31
MARTIN CODAX
Mandad'hei comigo
ca vem meu amigo,
e irei, madr', a Vigo.
Comig'hei mandado
ca vem meu amado,
e irei, madr', a Vigo.
32
A la igreja de Vigo u é o mar levado
e verrá i, mia madre, o meu amado
e miraremos las ondas.
33
Eno sagrado em Vigo
bailava corpo velido.
Amor hei!
Em Vigo, no sagrado
bailava corpo delgado.
Amor hei!
Que nunc'houver'amigo
ergas no sagrad'em Vigo.
Amor hei!
Que nunc'houver'amado
ergas em Vigo no sagrado.
Amor hei!
V 889
B 1283
34
D. DINIS
Levantou-s'a velida,
levantou-s'alva,
e vai lavar camisas
eno alto,
vai-las lavar alva.
Levantou-s'a louçana,
levantou-s'alva,
e vai lavar delgadas
eno alto,
vai-las lavar alva.
35
Ũa pastor se queixava
muit'estando noutro dia
e sigo medês falava
e chorava e dizia
com amor que a forçava:
"Par Deus, vi-t'em grave dia,
ai amor!"
36
— Vós me preguntades polo voss'amado
e eu bem vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?
37
— Dizede por Deus, amigo:
tamanho bem me queredes
como vós a mi dizedes?
— Si, senhor, e mais vos digo:
nom cuido que hoj'home quer
tam gram bem no mund'a molher.
38
Que coita houvestes, madr'e senhor,
de me guardar que nom possa veer
meu amig'e meu bem e meu prazer!
Mais, se eu posso, par Nostro Senhor,
que o veja e lhi possa falar,
guisar-lho-ei, e pês a quem pesar.
ESTEVÃO COELHO
39
VASCO RODRIGUES DE CALVELO
40
CANTIGAS DE AMOR
41
PAIO SOARES DE TAVEIRÓS
42
FERNÃO VELHO
43
JOÃO LOBEIRA ou Anónimo
Senhor genta,
mi tormenta
voss'amor em guisa tal,
que tormenta
que eu senta
outra nom m'é bem nem mal
— mais la vossa m'é mortal!
Leonoreta,
fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta,
nom me meta
em tal coi[ta] voss'amor!
Mia ventura
em loucura
me meteu de vos amar:
é loucura
que me dura,
que me nom posso en quitar
— ai fremosura sem par!
Leonoreta,
fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta,
nom me meta
em tal coi[ta] voss'amor!
B 224
44
JOÃO GARCIA DE GUILHADE
45
Se eu vejo las ondas
e vejo las costeiras,
logo mi vêm ondas
al cor, pola bem feita:
maldito seja'l mare
que mi faz tanto male!
V488
B 903
A 70
B 183
46
PERO DA PONTE
Se eu podesse desamar
a quem me sempre desamou
e podess'algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
se eu pudesse coita dar
a quem me sempre coita deu.
47
RUI QUEIMADO
48
JOÃO ZORRO
D. DINIS
49
Proençaes soem mui bem trobar
e dizem eles que é com amor;
mais os que trobam no tempo da flor
e nom em outro, sei eu bem que nom
ham tam gram coita no seu coraçom
qual m'eu por mia senhor vejo levar.
50
Ca, senhor, em gram bem viveria,
se u vós vivêssedes, vivesse
e sol que de vós est'entendesse,
terria-me, e razom faria,
por tam bem andante
que per rei nem ifante
des ali adeante
nom me cambiaria.
V 136
B 533
51
Senhor fremosa e do mui loução
coraçom, e querede-vos doer
de mi, pecador, que vos sei querer
melhor ca mi! Pero sõo certão
que mi queredes peior doutra rem;
pero, senhor, quero-vos eu tal bem
52
Vós mi defendestes, senhor,
que nunca vos dissesse rem
de quanto mal mi por vós vem;
mais fazede-me sabedor:
por Deus, senhor, a quem direi
quam muito mal [eu já] levei
por vós, senom a vós, senhor?
53
CANTIGAS DE SANTA MARIA
54
[Este é o prologo das cantigas de Santa Maria, ementando as cousas que á mester eno
trobar]
55
que me dé gualardon com’ ela dá
aos que ama; e queno souber,
por ela mais de grado trobará.
Esta é de loor de Santa Maria, das çinque leteras que á no seu nome e o que
queren dizer.
A demostra AVOGADA,
APOSTA e AORADA,
e AMIGA e AMADA
da mui santa companhia,
Eno nome de Maria...
56
Esta é de loor de Santa Maria, do departimento que á entre Ave e Eva.
57
Como Santa Maria desviou a monja que se non fosse com un cavaleiro con que
posera de ss’ ir
Do mõesteir’; e y a atendeu.
mas en tant’ a dona adormeceu
e viu en vijon, ond’ esterreçeu
con mui gran pavor que ouve mortal.
De muitas guisas nos guarda de mal...
58
Santa Maria, que Madr’es de Deus,
ca sempre punhei en faze-los teus
mandamentos, e non castes los meus
pecados, ca o teu ben nunca fal.
De muitas guisas nos guarda de mal...
59
CANTIGAS DE ESCÁRNIO E CANTIGAS DE
MALDIZER
60
PERO GOMES BARROSO
61
AFONSO X
62
Nom quer'eu donzela fea
que há brancos os cabelos
que ant'a mia porta pea
nem faça come camelos.
Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.
DIEGO PEZELHO
63
PERO GARCIA BURGALÊS
64
Muit'é pera ventuira menguada,
de tantas pissas no ano perder,
que compra caras, pois lhe vam morrer;
e est'é pola casa molhada
em que as mete, na estrabaria;
[e] pois lhe morrem, a velha sandia
per pissas será em terra deitada.
B 1384
V 993
65
JOÃO GARCIA DE GUILADE
E já me nunca temerá,
ca sempre me tev'em desdém,
des i ar quer sa molher bem
e já sempr'i filhos fará
— siquer três filhos que fiz i,
filha-os todos pera si:
o Demo lev'o que m'en dá!
66
PERO DA PONTE
Rubrica:
Esta cantiga fez Pero da Ponte ao infante Dom Manuel, que se começa "E mort'é
Martim Marcos", e na cobra segunda o podem entender.
67
AIRAS NUNES
Em Santiago, seend'albergado
em mia pousada, chegarom romeus.
Preguntei-os e disserom: — Par Deus,
muito levade'lo caminh'errado!
Ca, se verdade quiserdes achar,
outro caminho convém a buscar,
ca nom sabem aqui dela mandado.
B 871
V 455
68
[E] semelha-me busnardo,
vind'em seu ceramem pardo;
e, u nom houvesse reguardo
em nẽum dos dez e três,
log'houve mant'e tabardo
e foi comendador d'Ocrês.
69
Nom é Amor em cas d'e[l]-rei
ca o nom pod'hom'i achar
àa cea nem ao jantar;
a estas horas o busquei
nas pousadas dos privados,
preguntei a seus prelados
por Amor, e non'o achei.
70
Nunca se Deus mig'averrá
se mi nom der mia senhora;
mais como mi o corregerá?
Destroia-m', ante ca morra.
Hom'é: tod'aqueste mal faz,
[como fez já o gram malvaz],
e[m] Sodoma e Gomorra.
B 1527
71
Abadessa, oí dizer
que érades mui sabedor
de tod'o bem; e, por amor
de Deus, querede-vos doer
de mim, que ogano casei,
que bem vos juro que nom sei
mais que um asno de foder.
Ca me fazem en sabedor
de vós que havedes bom sem
de foder e de tod'o bem;
ensinade-me mais, senhor,
como foda, ca o nom sei,
nem padre nem madre nom hei
que m'ensin'e fic'i pastor.
E se eu ensinado vou
de vós, senhor, deste mester
de foder e foder souber
per vós, que me Deus aparou,
cada que per foder direi
Pater Noster e enmentarei
a alma de quem m'ensinou.
72
AFONSO MENDES DE BESTEIROS
FERNÃO VELHO
73
E pois que bem seus pecados catou,
de sa mort'houv'ela gram pavor
e d'esmolnar houv'ela gram sabor;
e log'entom um clérigo filhou
e deu-lh'a cama em que sol jazer,
e diz que o terrá, mentre viver;
e est'afã todo por Deus filhou.
74
FERNANDO ESQUIO
JOÃO DE GAIA
Rubrica:
Rubrica anterior:
Diz ũa cantiga de vilãao: "A pee d'ũa torre, baila corpo probo. Vedes o cós, ai
cavaleiro!". E Joam de [...]
Rubrica posterior:
Esta cantiga seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos, que diz a refrom:
"Vedes lo cós, ai, cavaleiro!" E feze-a a um vilãao que foi alfaiate do bispo Dom
Domingos Jardo de Lixbõa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o
bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar ant'el; e feze-o el-rei
Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de Sam Nicolao e chamarom-lhi
Joam Fernandes de Sam Nicolao.
75
Vosso pai na rua
ant'a porta sua:
vede'lo cós, ai cavaleiro!
Ant'a sa pousada,
em saia 'pertada:
vede'lo cós, ai cavaleiro
Em meio da praça,
em saia de baraça:
vede'lo cós, ai cavaleiro!
B 1604
V 1136
PERO VIVÃES
76
AFONSO SANCHES
Conhocedes a donzela
por que trobei, que havia
nome Dona Biringela?
Vedes camanha perfia
e cousa tam desguisada:
des que ora foi casada
chamam-lhe Dona Charia.
77
JOÃO PERES DE ABOIM E LOURENÇO
78
CANCIONEIRO GERAL DE GARCIA DE
RESENDE
79
Porque a natural condição dos Portugueses é nunca escreverem cousa que façam,
sendo dinas de grande memória, muitos e mui grandes feitos de guerra; paz e vertudes,
de ciência, manhas e gentilezas sam esquecidos. Que, se os escritores se quisessem
acupar a verdadeiramente escrever nos feitos de Roma, Troia e todas outras antigas
cronicas e estorias, nam achariam mores façanhas nem mais notaveis feitos que os que
dos nossos naturaes se podiam escrever, assi dos tempos passados como d'agora: tantos
reinos e senhorios, cidades, vilas, castelos, per mar e per terra tantas mil leguas, per
força d'armas tomados, sendo tanta a multidão de jente dos contrairos e tam pouca a dos
nossos, sostidos com tantos trabalhos, guerras, fomes e cercos; tam longe d'esperança de
ser socorridos, senhoreando per força d'armas tanta parte de Africa, tendo tantas
cidades, vilas e fortalezas tomadas e continuamente em guerra sem nunca cessar; e assi
Guinee, sendo muitos reis grandes e grandes senhores seus vassalos e trebutarios, e
muita parte de Etiopia, Arabia, Persia e Indeas, onde tantos reis mouros e gentios e
grandes senhores sam per força feitos seus suditos e servidores, pagando-lhe grandes
pareas e trebutos, e muitos destes pelejando por nós, debaixo da bandeira de Cristo, com
os nossos capitãaes, contra os seus naturaes, conquistando quatro mil leguas por mar,
que nenhũas armadas do Soldam nem outro nenhum gram rei nem senhor nom ousam
navegar com medo das nossas, perdendo seus tratos, rendas e vidas; tornando tantos
reinos e senhorios com inumeravel jente aa fee de Jesus Cristo, recebendo agua do santo
bautismo; e outras notaveis cousas que se nam podem em pouco escrever.
Todos estes feitos e outros muitos d’outras sustancias nam sam devulgados
como foram, se jente d’outra naçam os fizera. E causa isto serem tam confiados de si,
que nam querem confessar que nenhũus feitos sam maiores que os que cada ũu faz e
faria, se o nisso metessem. E por esta mesma causa, muito alto e poderoso princepe,
muitas cousas de folgar e gentilezas sam perdidas, sem haver delas noticia, no qual
conto entra a arte de trovar,/ que em todo o tempo foi mui estimadada, e com ela Nosso
Senhor louvado, como nos hinos e canticos que na Santa Igreja se cantam se veraa.E
assi muitos emperadores, reis e pessoas de memoria, polos rimances e trovas sabemos
suas estorias. E nas cortes dos grandes princepes é mui necessaria na jentileza, amores,
justas e momos, e tambem para que maos trajos e envenções fazem, per trovas sam
castigados e lhe dam suas emendas, como no livro ao diante se veraa. E se as que sam
perdidas dos nossos passados se poderam haver e dos presentes s’escreveram, creo que
80
esses grandes poetas, que per tantas partes sam espalhados, nam teveram tanta fama
como têm.
E, porque, Senhor, as outras cousas sam em si tam grandes que por sua grandeza
e meu fraco entender nam devo de tocar nelas, nesta, que é a somenos, por em algũa
parte satisfazer ao desejo que sempre tive de fazer algũa cousa em que Vossa Alteza
fosse servido e tomasse desenfadamento, determinei ajuntar algũas obras que pude
haver d’algũs passados e presentes e ordenar este livro, nam pera por elas mostrar quaes
foram e sam, mas para os que mais sabem s'espertarem a folgar d'escrever e trazer aa
memoria os outros grandes feitos, nos quaes nam sam dino de meter a mão.
81
Joan de Roiz de Castelo Branco:
Caland’ e sofrendo
meu mal sem medida,
mil mortes na vida
sinto não vos vendo.
E pois que vivendo
Morro todavia,
Viver não queria.
82
Joan de Menezes:
83
Francisco Sá de Miranda:
Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
84
Coitado, quem me dará
novas de mim ond’estou?
Pois dizeis que não sou lá
e cá comigo não vou.
Jorge d’ Aguiar
85
causaram tuas tristezas.
Pois não te mates em vão,
que quanto mais as quiseres,
verás que são as molheres.
Cabo
86
Coração, já repousavas,
já não tinhas sojeição,
já vivias, já folgavas;
Pois por que te sogigavas
outra vez, meu coração?
Bernardim Ribeiro
D’esperança em esperança
pouco a pouco me levou
grand’engano ou confiança,
que me tão longe leixou.
Se m’isto tomara outrora,
cuidara de ver-lhe fim,
mas qu’ei-de cuidar j’agora
sem esperanla e sem mim?
87
Antre mim mesmo e mim
não sei que s’alevantou
que tão meu imigo sou.
D. Joam Manuel
88
sejam dele respondidos
com rinchadas.
Mais que ele seja formosa
a terceita,
seja dela tão raivosa
que se torne feiticeira.
Fim
89
Regra sua pera quem quiser viver em paz
Ouve, vê e cela
e viverás vida folgada.
Tua porta cerrarás,
teu vezinho louvarás
quanto podes não farás,
quanto sabes não dirás,
quanto vês não julgarás,
quanto ouves não crerás,
se queres viver em paz.
Seis cousas sempre vê,
quando falares te mando:
de quem falas, onde e quê,
e a quem, como e quando.
Nunca fies nem perfies,
nem a outro injuries,
não estês muito na praça,
nem te rias de quem passa,
seja teu todo o que vestes;
a ribaltos não doestes,
não cavalgarás em potro,
nem ta molher gabes a outro;
Não cures de ser picão
nem travar contra rezão.
Assi lograras tas cãs
com tuas queixadas sãs.
90
João Rodriguez de Sá
Satisfação do passado,
tempo também despendido,
bem despeso, bem gastado
em trazer quanto cuidado
por vós trago no sentido.
Que por ser milhor servido
nom posso servir em al,
ainda mal,
vosso merecer sobido
pera mim tão desigual.
91
Acabar de ver a fim
que me der minha ventura,
a ventura com que vim
onde vossa fermosura
vos deu poder contra mim.
Mas bem sei que será assi
como cada dia brado,
pois apartado
cedo m’ei-de ver daqui
de vossa vista alogado.
Fim
Alvaro de Brito
Cuidados deixai-me’agora
cuidar meu maior cuidado
com que meu coraçam chora,
porque vou de foz em fora
de prazer desamarrado,
com tam forte tempestade,
que nam posso portar vela.
Com tam grande saudade,
com tam pouca piadade
perdimentos me revela.
92
de tristezas, de[s]favores,
dores de meu padecer.
No contrairo do que quero
ventura me faz andar
agro caminho tam fero,
que penando desespero
de viver sem me matar.
93
de mil mortes vivo morto.
Fim
94
Garcia de Resende
Trovas que Garcia de Resende fez à morte de Dona Ines de Castro, que El-Rei Dom
Afonso, o Quarto, de Portugal, matou em Coimbra, por o principe D. Pedro, seu filho,
a ter como mulher, e, polo bem que lhe queria, nam queria casar. Endereçadas às
damas.
A minha desaventura
nam contente d'acabar-me,
por me dar maior tristura
me foi pôr em tant'altura,
para d'alto derribar-me.
Que, se me matara alguem,
antes de ter tanto bem,
em tais chamas nam ardera,
pai, filhos nam conhecera,
nem me chorara ninguem.
95
Foi-m'o princepe olhar,
por seu nojo e minha fim!
Começou-m'a desejar,
trabalhou por me servir;
Fortuna foi ordenar
dous corações conformar
a ũa vontade vir.
Conheceo-me, conheci-o,
quis-me bem e eu a ele,
perdeo-me, tambem perdi-o;
nunca tee morte foi frio
o bem que triste pus nele.
96
com gram choro e cortesia
lhe fiz ũa triste fala.
Meus filhos pus derredor
de mim, com gram homildade,
mui cortada de temor
lhe disse: – Havei, senhor,
desta triste piadade!
Lembre-vos o grand'amor
que me vosso filho tem
e que sentiraa gram dor
morrer-lhe tal servidor
por lhe querer grande bem.
Que s'algũ erro fizera
fora bem que padecera
e qu'este filhos ficaram
órfãaos, tristes, e buscaram
quem deles paixam houvera.
97
pois que nunca fiz maldade.
98
do conselho qu'era havido.
Olhai quam justa querela
tendes, pois por amor dela
vosso filho quer estar
sem casar e nos quer dar
muita guerra com Castela.
Fim
99
Este é o galardam
que meus amores me deram!
100
Rei de Napoles também,
Duque de Bregonha, a quem
todo França medo havia,
e em campo El-Rei vencia,
todos estes dela vem.
Cabo
101
Duarte da Gama
102
ũs lencinhos no pescoço,
que com gram pedra nũ poço
deviam de ser lançados.
Outros sem ser mancipados
sendo menores d’idade,
andam ja com vaidade
agravados.
O almirante passado
Frei Paio ja precedeo,
pois na guerra despendeo
mais do que tinha ganhado.
E leixou endividado
seu filho, como sabeis,
103
mas em fim acha-lo-eis
mui honrado.
Os desvairados vestidos,
que se mudam cada dia,
104
nom vejo nehũa via
para serem comedidos.
Que se ũu galante traz
ũu vestido qu’ele corte,
qualquer homem doutra sorte
outro faz.
A maneira d’escrever,
que costumam nos ditados,
é chamarem ja preçados
a mil homeens sem o ser.
E quando na baixa jente
o costume for jeral,
ha-de vir a principal,
a excelente.
Em qualquer aldeazinha
achareis tal corruçam
qu’a molher do escrivam
cuida que é ũa rainha.
E tambem os lavradores
com suas maas novidades
querem ter as vaidades
dos senhores.
Na Chamusca vi ũu dia
ũa filha d’ũu vilãao
lavrando d’almarafãao,
o qual pera si fazia.
Daqui virão os chapins
e tambem os verdugados
e após eles trançados
e coxins.
O cavalo desbocado
nunca se pode parar
sem primeiro se cansar
entam logo é parado.
Assi creio que faremos
nos gastos demasiados,
e depois de bem cansados,
105
pararemos.
É prudencia conhecida
por esta comparaçam
nam nos ir El-Rei à mão
estes dez anos de vida.
A qual lh’acrecentaraa
quem lha deu por muitos anos,
com que todos estes danos
tiraraa.
A cidade de Cartago,
depois de ser destroida,
fez em Roma moor estrago
que antes de ser perdida:
os romãos des que venceram
foram dos vicios vencidos,
e seus louvores crecidos
pereceram.
106
Nom ha i mais antremeses
no mundo oniversal
do que há em Portugal
nos portugueses!
Fim
1
DUBY, G
2
DUBY, G. (1988) p.156
3
ROGEMONT, D. (1970)
4
LAPA, M. R. (1965 b) p. 202
5
CIDADE, H. (1959) p. VIII
6
RIQUER, M. (1953) p. 9
7
CORREIA, N. (1978) p.42
8
SARAIVA, A. J. (1950) v 1, p. 259
107
9
SARAIVA, A. J. & LOPES, O. [S.D.] p. 50
10
MAGALHÃES, I. A. (1987) p. 103
11
CURTIUS, E. R. (1957) p. 440
12
LE GOFF, J. (1989) p. 47
13
LE GOFF, J. (1985) p. 24.
14
ALFONSO X, EL SABIO. (1986) p.7
15
LE GOFF, J. (1985) p. 20