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POESIA PORTUGUESA

ANTOLOGIA DE TEXTOS LÍRICOS

LINHAS MESTRAS

TOMO I – IDADE MÉDIA

1
Apresentação

Coordenado pela Professora Cleonice Berardinelli, a partir de 1970, alguns anos


depois de terem sido implantados os cursos monográficos na Faculdade de Letras da
UFRJ, o então curso de Linhas Mestras da Literatura Portuguesa foi um curso
reivindicado pelos próprios alunos que, argumentavam eles, se sentiam “ilhados” sem o
conhecimento necessário para a construção de pontes entre as diferentes matérias que
formam os 8 séculos da Literatura Portuguesa, agora já dispersas, já que desprovidas da
metodologia diacrônica anterior que, se não correta, dava-lhes a garantia de uma certa
continuidade.
Na primeira versão, o curso distribuía-se num 1° semestre dedicado à poesia e
num 2° semestre, à narrativa. Se poesia e prosa não se distinguem pelo grau de
dificuldade porventura sugerido pela extensão dos seus discursos, a verdade é que,
desde o início, a leitura de muitos textos narrativos, que dessem uma visão abrangente
das linhas mestras da Literatura Portuguesa, revelou-se, em termos pedagógicos,
inoperante. Esses textos foram redistribuídos no período de formação dos alunos sem
que a visão de conjunto fosse, contudo, prejudicada. Feita a opção pela poesia como
matéria de introdução obrigatória a todos os cursos de Letras, o programa assim se
apresentava: o subjetivismo, o nacionalismo – crítico e laudatório –, o messianismo e o
saudosismo.
Passaram-se anos desde aquele longínquo final de década. Ao longo dos anos
80, os professores do Setor de Literatura Portuguesa, sempre atentos aos novos métodos
de leitura, optaram por uma efetiva interlocução dos textos poéticos. Ou seja:
paralelamente à apresentação diacrônica dos poemas (Idade Média, Renascimento,
Barroco, Neoclassicismo, Romantismo, Realismo, Simbolismo, Modernismo),
procedia-se à comparação entre esses textos através de temas que os aproximavam,
independentemente do estilo ou conteúdos que, na origem, os definissem. Em nenhuma
das versões optou-se por uma versão historicista do texto literário.
O volume, que ora apresentamos, constitui o tomo 1, dedicado à Idade Média,
numa série que incluirá mais 2 outros: a) séculos XVI, XVII e XVIII; b) séculos XIX e
XX de uma antologia de textos líricos que servirão de material aos cursos de Literatura
Portuguesa na Faculdade de Letras. Todos os professores do Setor são autores nesta
empresa. De acordo com suas especialidades e projetos de pesquisa, cada um foi

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responsável por determinados autores ou períodos. Coube, enfim, a uma equipe – esta
que assina estas linhas – a tarefa da seleção definitiva, da organização, composição,
impressão e apresentação final do volume.

Jorge Fernandes da Silveira (coordenador)


Angela Beatriz Faria
Gilda da Conceição Santos
Maria Theresa Abelha Alves
Simone Pinto de Oliveira
Teresa Cristina Cerdeira da Silva

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POESIA TROVADORESCA

1. Cantigas de amigo

2. Cantigas de amor

3. Cantigas de escárnio e cantigas de maldizer

4. Cantigas de Santa Maria

4
UMA IDADE MÉDIA EM QUATRO CANTARES

Maria Elizabeth Graça de Vasconcellos

Não se sonha com a Idade Média porque seja o passado,


porque a cultura ocidental tem uma infinidade de passados
[...] Mas acontece que, e já foi dito, a Idade Média
representa o crisol da Europa e da civilização moderna. A
Idade Média inventa todas as coisas com as quais ainda
estamos ajustando as contas [...]

Umberto Eco*

Embora alguns séculos nos separem já do medievo, muito ainda nos aproxima
daquele período que abrange cerca de um milênio da história do Ocidente: a voragem do
amor-paixão, a posição da mulher na sociedade, os tabus de sexo e de trabalho, a
distribuição de rendas e a usura, o lugar dos desvalidos e marginalizados, a religião e o
fascínio do maravilhoso...
Um diálogo com a Idade Média inicia-se através da recuperação de suas marcas,
isto é, de suas representações verbais, gestuais, pictóricas, musicais... De posse desse
“tesouro”, nós, leitores do século XX, imprimimos a ele o nosso selo, numa leitura que,
sem dúvida, não é inocente e tampouco definitiva.
Reler neste final de milênio as cantigas dos primitivos cancioneiros galego-
portugueses não será somente recuperar a ética do medievo, mas sobretudo tentar
explicar o que hoje é – o mundo em que estamos – pelo que ontem foi e como foi. E
como sabemos que os documentos só respondem àquilo que lhes perguntamos,
tentaremos fazer com que respondam às seguintes perguntas: como se desenrola a cena
entre masculino e feminino no jogo cortês do amor-paixão? Como é sentido no campo o
tempo feminino? Como são vividos os tabus de sexo e de trabalho nos duplos da
persona oficial? Como é capitalizada a maravilha pagã para a afirmação da fé em Cristo
e na Virgem?

1. Cantigas de amor: refinamento e segredo no jogo cortês

5
Com o propósito de definir o Amor discursam os convivas de O banquete de
Platão; na tentativa de viver a Paixão, Tristão e Isolda caminham para o êxtase supremo
que é a morte de amor. Amor e discurso – Eros e Logos –, paixão e morte – Eros e
Thanatos – numa ciranda sem fim... E reencenando esse drama, os cantares de amor
atualizam, à maneira cortês, a ancestral demanda...
A cantiga de amor é, antes de tudo, um texto perverso em que se lê o jogo entre
silêncio e fala. Enquanto a clausura dele, apenas um artifício, é falada, isto é, a “dor de
amor” masculina ganha estatuto literário, a clausura dela – física e sobretudo social – é
confirmada pelo silêncio de um texto que cerceia o fazer feminino.
Se o olhar – cobiçoso e concupiscente – é a fonte do Mal, o olhar masculino
nunca aparenta ali indiscrição: a dama ocupa o lugar previsível. Reafirmando a
supremacia das qualidades morais sobre as físicas, as cantigas de amor testemunham o
desprezo pelo corpo – e o medo dele – e apostam, ainda, na manutenção da opacidade
como fator indispensável ao sucesso da cortesia, jogo eminentemente masculino, como
ensina Georges Duby1.
Nesse jogo cortês, a mulher constitui o prêmio de uma competição, já que a “fin’
amors” é o correspondente exato do torneio. No serviço amoroso, quanto mais a dama
se esquiva, mais o cavaleiro se qualifica: o recato da “senhor” é elogiado e a perda do
“sen” é uma das marcas que destaca o amante perfeito do “enfron”. O gesto feminino de
indiferença concorre, portanto, para a distinção e a honra do cavaleiro; e a honra,
saliente Duby2, é um assunto de homens que depende da conduta das mulheres...
Confirmando a excelência da coyta d’amor, as cantigas recuperam
constantemente a cena fulminante (fulmen, inis: raio) do nascimento da paixão: “Des
que eu vi/ a que eu vi/ nunca dormi/ e, cuidand’i/ moir’ eu.” (Rui Fernandes, CV, 491;
CBN, 847). A febre amorosa que daí advém é alimentada por interdições – o uso do
senhal e o serviço prestado à distância –, garantias de um regime de alta tensão erótica
que encontra na morte (literária...) de amor o êxtase supremo.
Esse mundo apaixonado e apaixonante torna-se o modelo que todos desejam
viver e o Amor ganha o proscênio na palavra poética: “Amor faz a min amar tal senhor”
diz Airas Nunes (CV, 457; CBN, 814). Os ready-made “morrer de amor”, “amor
impossível”, “amor eterno” fazem da cantiga o lugar onde se (re)produz o mito da
grandeza do amor infeliz, defendido por Denis de Rougemont3.
Tentando escapar desse circuito, D. Dinis recupera o topos “Descriptio terrae
vernantis” e comenta a artificialidade do fazer provençal: “ Proençaes soen mui ben

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trobar /.../ ...no tempo da frol” (CA, 127; CBN, 524). Colhido, porém, na própria
armadilha, não consegue esquivar-se da trama literário-amorosa: sua composição
desdobra-se em lugares-comum... A literatura inventa o Amor, aprisiona-o, hiperboliza-
o, ritualiza-o.
Tempo da cantiga de amor: tempo de criação de um código secreto para a
paixão, num mundo onde a arquitetura não garantia a privacidade e o segredo. (Aliás,
essa construção literária parece preparar o primeiro andar daquilo que se chamará
intimidade amorosa, tão bem explorada mais tarde na literatura dos séculos XVIII e
XIX). Tempo da cantiga de amor: tempo de êxtase continuado e sofrido. E nessa festa
erótica, quando chorando a ausência do outro o homem ocupa o lugar que histórica e
culturalmente pertence à mulher, o mundo viril é feminizado para tornar-se ainda mais
viril...

2. Cantigas de amigo: a deusa Natura e a pansensualidade

Vários são os que têm estudado as origens da lírica medieval. Rodrigues Lapa4
afirma que do amálgama das três teorias que disputam entre si o mérito duma
explicação – a teoria arábica, a folclórica e a latino-medieval – nasce a arte dos
trovadores. Hernani Cidade5 recorda a existência de uma lírica popular feminina anterior
à imitação provençalesca, afirmando, assim, a anterioridade das cantigas de amigo sobre
as de amor. Martín de Riquer6 salienta a importância das jarchyas que, descobertas em
1948, vêm comprovar a tese da existência de um lirismo peninsular autóctone cujas
características perduram nas cantigas de amigo galego-portuguesas: a palavra feminina,
a referência ao habib e a confidência feita à mãe ou às amigas. Natália Correia7, por sua
vez, ressalta que “o paralelismo da cantiga de amigo é o testemunho de sua antiguidade,
aliás comprovada nos temas nitidamente relacionados com os cultos remotos que nele
prevalecem.” E finalmente António José Saraiva e Óscar Lopes8 afirmam que “a cantiga
de amigo nasceu na comunidade rural, como complemento do bailado e do canto
coletivo dos ritos primaveris, próprios das civilizações agrícolas em que a mulher goza
maior importância social.”

Abordado o problema das origens da lírica medieval – e sem pretensão de


solucioná-lo –, passando a examinar três aspectos que caracterizam os cantares de

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amigo: o primitivismo e a simplicidade da invenção poética, a moldura matriarcal e o
substrato sagrado.
A estrutura rítmica muito simples – que faz supor que as cantigas eram
primitivamente dançadas e cantadas em coro – e a invenção poética reduzida ao mínimo
– vocabulário repetitivo, rimas pobres e toantes – constituem as principais marcas
dessas composições. Segundo António José Saraiva9, os cantares primitivos foram
reproduzidos e adaptados, justificando-se, assim, a semelhança entre alguns textos: a
cantiga de D. Diniz “Levantou-se a velida” (CV, 172; CBN, 562) é muito semelhante à
de Pero Meogo “[Levantou-se a louçana]” (CV, 793; CBN, 1188), para citar apenas um
exemplo.
Em relação à moldura matriarcal, podemos dizer que as cantigas de amigo
editam uma história da mulher: é da mãe que a moça recebe conselhos ou ouve
proibições e é com as amigas que desabafa a coyta causada, muitas vezes, pela ausência
do amigo cumpre o fossado. Se em alguns casos a mãe opõe-se ao namoro da filha, em
outros, recusando a repetição da feminina saga de desenganos, planeja com a moça a
vingança contra o amigo: “filha, fazede’ end’ o melhor:/ pois vos seu amor enganou,/
que o engane voss’ amor”. (Pero da Ponte, CA, 423; CBN, 837). Esse tempo de
revolução, numa sociedade em que cabiam à mulher gestos de espera e de impotência,
conforme salienta Isabel Allegro de Magalhães10, pode ainda ser lido na cantiga de D.
Diniz (CV, 102; CBN, 519) quando a pastora, sofrendo “gran coyta” pelo abandono de
que foi vítima, lança o maleficium: “Mal ti venha per u fores,/ ca non és se non mia
morte,/ ay amor.” Reminiscência de mágicas vozes femininas... Ecos de Morgana?
E finalmente o terceiro aspecto: o substrato sagrado e a pansensualidade. Ao
contrário do que ocorre nos cantares de amor, aqui a aventura amorosa é patrocinada
pela deusa Natura que tudo consente. Retomando os encantos do locus amoenus,
consagrado topos da literatura clássica, os cantares de amigo encenam o amor entre
fontes, plantações, jardins, ares suaves, flores, cantos de pássaros e frutos. Enquanto nas
cantigas de fonte concretiza-se o apaixonado encontro, nas albas o que se lê é a
despedida dos amantes – à maneira de Romeu e Julieta – depois de uma noite de prazer.
Trazendo ao espaço literário uma das mais populares práticas de devoção do medievo,
as cantigas de romaria recuperam o clima de liberalidade que caracteriza as
peregrinações – o que se verifica, por exemplo, nos Contos de Cantuária de Geoffrey
Chaucer – e desenha a moça que vive nos sentidos da paixão. E, finalmente,
impregnadas dos primitivos cultos à Fecundidade, as bailadas e as barcarolas

8
reescrevem o movimento cósmico de harmonia dos contrários no corpo dos amantes
que dançam sob “aquestas avelaneiras frolidas” (Joan Zorro, CV, 761; CBN, 1158) ou
que se banham “no mar leuado” (Martin Codax, CV, 884; CBN, 1278).
Tempo da cantiga de amigo: tempo dos sentidos... E ao lado dessa aventura,
também a desventura feminina. Na composição de Estevam Coelho (CV, 231; CBN,
720), o pranto da mulher que fia, no tempo da casa, eterna Penélope: “Sedia la fremosa
seu sirgo torcendo,/ Sa voz manselinha fremoso dizendo/ cantigas d’amigo.”

3. Cantigas de escárnio e de maldizer: a cena jocosa na comunidade sagrada

Os cantares d’escarnio e de mal dizer nos colocam diante do instigante universo


regido pelo riso e, assim, a leitura dessas produções exige o exame de três questões: a
função do riso, a pertinência do rir na ordem medieval e o alvo de zombaria nessa
mesma ordem.
A situação reponsável pela deflagração do riso repousa na tensão decorrente da
antipatia do grupo em face da insociabilidade da persona que encarna algo indesejável:
a covardia, a usura, a lascívia, a vaidade, a doença, a fealdade... Nesse sentido, o riso
exerce o papel regulador de reprimir os desvios, chamando a comunidade a
compartilhar da ordem conveniente.
Por outro lado, ao repensar as convenções, o riso torna-se altamente perigoso
porque subverte a hierarquia, problematizando o provilégio quer sagrado, quer político.
E em relação ainda aos já socialmente marginalizados – os tolos, os loucos, os
vagabundos –, o riso conserva também seu caráter subversivo: aterrorizantes, de início,
porque carregam o estigma do Vício, os “deserdados da sorte” tornam-se fascinantes
por serem a imagem viva da transgressão. Ridicularizá-los é mais uma vez marginalizá-
los, garante a voz do poder. Arriscada estratégia: em desfile, os excluídos, criaturas
dessa mesma ordem esclerosada – duplos da persona oficial –, parecem dizer da
iminente necessidade de mudança, revalidando, assim, o caráter utópico do riso na
demanda de um novo tempo.
Perigosamente subversivo, o riso incomoda. Não é à toa que, no “tempo das
catedrais” – fortemente marcado pela oposição entre sagrado e profano, entre Igreja e
Taberna –, muito se tenha discutido a respeito da pertinência do rir. Rejeitado pelo
primitivo monaquismo, como recorda Ernst R. Curtius11, o riso torna-se de novo objeto
de polêmica entre os intelectuais dos séculos XII e XIII. (É oportuno ressaltar que uma

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das mais importantes produções deste final de século XX – O Nome da Rosa de
Umberto Eco – recupera o antigo debate).
Acompanhando a grande inquietação intelectual que caracteriza a Idade Média
Central, o poeta encontra no uso literário de situações jocosas a maneira de expressar
sua crítica à rigidez da ordem religiosa e política.
Espelho da cidade celeste, o mundo terreno medieval organiza-se em três ordens
– a dos oratores, a dos bellatores e a dos laboratores –, hierarquicamente dispostas e
fortemente caracterizadas pelos sinais que portam e pelos gestos que executam.
Castidade, fidelidade, coragem, beleza e cortesia são marcas que definem as duas
primeiras; trabalho, obediência, paciência e perseverança é o que se pede ao inerme
vulgus. Sob o risco de tornar-se herege, desertor ou vagabundo, cada membro do corpo
social deve movimentar-se dentro de tais padrões, que passam a ser aceitáveis pela força
de dois grandes tabus: o de sexo e o de trabalho.
Fazendo dos transgressores dessa ordenação social os personagens de seus
pequenos dramas, as cantigas de escárnio e de maldizer executam – através do riso – a
cena de exclusão. A alcoviteira, a mulher libertina, o frade devasso, o cavalheiro
covarde, o fidalgo pobre constituem preciosos alvos de zombaria. Mas como já
ressaltamos anteriormente, ao ultrapassar a primeira margem, esse desfile cômico torna-
se um ato de denúncia: denúncia de uma ordem que priva o homem do prazer de seu
corpo e da alegria de seu trabalho.
A mulher que “per pissas berra, en terra deitada” (Pero Garcia Burgalês, CV,
993; CBN, 1384), o “frade encaralhado” (Fernand’ Esquio, CV, 1136; CBN, 1604), o
homossexual amaldiçoado pelo “ome fodimalho” (Pero da Ponte, CV, 1160; CBN,
1626), a abadessa presenteada com “quatro caralhos asnaes” (Fernand’ Esquio, CV,
1137; CBN, 1604) figuram os atos do drama corporal e chamam a atenção para a
natureza, minando as bases de uma ordem que preconiza o desprezo pelo corpo e pelo
sexo.
E na figuração desse mundo às avessas é no corpo feminino que se (re)vive mais
dolorosamente o inconciliável (?) conflito entre virtude e pecado. Ao contrário do que
acontece nos cantares de amor, aqui se tece uma anatomia dos sentidos que, culminando
numa anatomia do grotesco, parece apontar para a artificialidade do retrato da “senhor
fremosa”. O avesso do corpo feminino desejável constrói-se com detalhes: “rostr’ agudo
come foron,/ barva no queix’ e no granhon,/ e o ventre grand’ e inchado. / /
Sobrancelhas mesturadas, /.../ e as tetas pendoradas /.../ / A testa ten enrugadas/ e os

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olhos encovados,/ dentes pintos come da— dos...” (Pero Viviaez, CV, 1152; CBN,
1619). À sensualidade domada das cantigas de amor responde uma sensualidade
explosiva que se concretiza em qualquer tempo ou espaço. Ao perfil opaco da “boa
dona” responde um corpo que transborda em sensações: visão, olfato, tato e audição
conjugam-se na construção da donzela, da soldadesca e até da abadessa...
Lidando com um dos mais importantes tabus do medievo – o de sexo –, as
composições satíricas apresentam, por um momento, através do riso libertador, o que o
social, moral e religioso teimam em domar; mas pelo perigo que essa liberação
representa, o próprio riso – já agora repressor – conduz à rejeição desse prazer que se
pinta grostesco. Malhas que a Literatura tece...
Em relação ao segundo tabu – o de trabalho –, o medievo estabelece a diferença
entre ofícios lícitos – o de orar pela salvação da alma e o de guerrear em nome de Deus
– e ofícios ilícitos que colocam o homem em contato com a impureza ou com o
dinheiro, como ensina Jacques Le Goff12.
Refletindo a situação política e religiosa por que passa Portugal nos séculos XIII
e XIV, as cantigas de escárnio e de maldizer apresentam, em cortejo cômico, situações
que denunciam a fragilidade daquelas convenções. O vilão feito cavalheiro, o
mercenário covarde, o falso peregrino e o escudeiro mistificador parecem dizer que o
elegante nobre, o valente cruzado e o piedoso visitante da Terra Santa são perfis que se
perderam... O tempo parece ser o do estranheiro que, chegando à corte, “de lũes ao
martes/ foi comendador d’ Ocrês.” (Pero Meéndez da Fonseca, CV, 1132; CBN, 1600).
Paio de Maas Artes, o pícaro medieval; e tantos Malasartes depois... Representando o
sucesso pela trapaça, tal personagem espelha a sociedade que vive não só uma
renovação genealógica, como também uma revolução de costumes. O nobre otium
dialoga com o rentável negotium e o próprio rei é acusado de usura: “Os vossos meus
maravedis, senhor,/ que eu non ôuvi,...” (Gil Pérez Conde, CV, 397; CBN, 1524).
Tempo das cantigas de escárnio e de maldizer: tempo de intervalo. Ao desfilar
os que não se enquadram no espaço oficial, os cantares satíricos – pela abolição
temporária das relações hierárquicas, dos privilégios, das regras e dos tabus – permitem
uma distensão. Tempo das cantigas de escárnio e de maldizer: tempo de criação de um
vocabulário especial, alegre e sem restrições, que expresse o mundo às avessas... na
demanda da terra da Cuccagna...13

11
4. Cantigas de Santa Maria: piedade e conversão na demanda do Paraíso

Na introdução às Cantigas de Santa María de Alfonso X, El Sabio (1221-1284),


Walter Mettmann14 explica que das quatrocentas e vinte composições que integram o
cancioneiro mariano mais rico da Idade Média, trezentas e cinquenta e seis são
narrativas de milagres da Virgem, enquanto as demais são de louvor a Maria ou se
referem a festividades marianas ou cristológicas.

A alusão aos milagres da Virgem nos coloca diante de um especial aspecto da


mentalidade medieva: a relação do homem com o maravilhoso. Na Idade Média
Central, como ensina Le Goff15, atesta-se a recorrência à herança pagã, carregada de
elementos maravilhosos. É nesse momento que a Igreja procura capitalizar tal reserva,
usando-a em seu próprio benefício. Enquanto no desfiar dos milagres dos santos e da
Virgem lê-se o desejo de um universo regido pela Virtude e pelo Bem, na aventura
maravilhosa dos cavalheiros da Távola Redonda, por exemplo, delineia-se a procura da
ordem perfeita – a celestial. E o poder escrecer a História...
Nas Cantigas de Santa Maria, mirablilia concorre para a manutenção da ordem e
a Virgem promete o Paraíso aos que crêem na Igreja oficial. Através da palavra do rei,
que se apresenta no Prólogo A, os eventos narrados adquirem o estatuto de verdades; e
esse mesmo rei, ao colocar-se como trovador da Virgem no Prólogo B, redispõe a
relação de serviço amoroso – que é vivida entre cavaleiro e dama, nos cantares de amor
– e chama a atenção do leitor para a especificidade do seu canto: “E o que quero é dizer
loor/ da Virgem, Madre de Nostro Sennor,/ Santa Maria, que ést’ a mellor/ cousa que el
fez;”.
Nas cantigas de caráter narrativo, um universo de hierofanias é acionado no
sentido de ajustar o maravilhoso pagão à tradição cristã. Cria-se uma geografia do
sagrado: homens e mulheres são acometidos de sonhos e de visões; manifestações
sobrenaturais são responsáveis por salvamentos; antevisões de monstros provocam
conversões. Por outro lado, como era comum associar-se a doença – física ou mental –
ao pecado, nada mais conveniente, então, que pedir ajuda ao divino para a tão desejada
cura. E nesse sentido a Virgem é pródiga: cegos, surdos, leprosos, aleijados, paralíticos,
loucos e até mortos recuperam-se. Por sua vez, judeus usurários, ricos orgulhosos,
monjas apaixonadas arrependem-se e celebram a conveniência da ordem divinal,
confirmando que mais vale o homem piedoso que o pecador. E finalmente, num
universo onde a fome era onipresente – em decorrência da peste e das guerras –, a cena

12
da comezaina, à maneira do milagre das Bodas de Canaã, constitui um dos motivos
recorrentes das cantigas, alimentando a ilusão de que nunca faltará pão aos devotos da
Virgem...
As cantigas de louvor – que celebram a figura da Maria como Auxiliadora,
Medianeira, Procuradora – explicam por que se deve amar a Virgem. Trazendo no seu
nome o emblema da perfeição (como mostra o acróstico da Cantiga 70), Maria resgatará
a humanidade da perdição provocada por Eva: “Ca Eva nos tolleu/o Parays’ e Deus,/
Ave nos y meteu.” (Cantiga 60).
Tempo das Cantigas de Santa Maria: tempo de piedade e de conversão. E nas
pequenas histórias contadas e, sobretudo, cantadas, o ouvinte, cantor também, procura o
Paraíso. Guiado pela mão da Generosa, aprende a distinguir, entre rimas e refrães, o
Bem do Mal, o eterno do temporal, o espiritual do material...

***

Uma Idade Média em quatro cantares... E o ouvinte, homem do neomilenarismo,


fascinado, reconhece-se naquelas antigas vozes.
Na aventura cortês revê os caminhos do amor e, à maneira de Tristão, procura
sua dama, mesmo que seja em Manhattan, como na trama cinematográfica de Terry
Gillian, O pescador de ilusões.
Na Cantiga de amigo, relê uma história de mulher que, em ecos, parece
desdobrar-se em venturas e desventuras até agora.
Cessado o riso provocado pelos cantares satíricos, medita sobre os tabus que
forjaram a mentalidade medieva e indaga se, em disfarçado jogo de permissões e
proibições, não estaremos ainda aprisionados em idêntico labirinto.
E finalmente, reconhecendo-se irmão do piedoso homem medieval, reaprende a
conviver com o maravilhoso e procura, outra vez, o Paraíso...
Idade Média, uma herança para (re)construir; e a nossa história para
(re)escrever...

BIBLIOGRAFIA

13
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Mettmann. Madrid: Castalia, 1986. 4 v.
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14
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Cardoso, Sergio er alii. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
29. PLATÃO. O Banquete ou do Amor. 2.ed. São Paulo: Difel, 1970.
30. PICCHIO, Luciana S. Pesquisas sobre a lírica galego-portuguesa. In:
___________. A lição do texto. Lisboa: Edições 70, 1979.
31. PIMPÃO, Álvaro J. da Costa. Cancioneiro d’ El-Rei D. Diniz. Lisboa: Atlântida,
1960.
32. RIQUER, Martín de (org). Antologia de la literatura española; siglos X-XX.
Barcelona: Teide, 1953.
33. ROUGEMONT, Denis. L’amour et l’Occident. Paris: Union Génerale
d’Éditions, 1970.
34. SARAIVA, António José. História da cultura em Portugal. Lisboa: Jornal do
Foro, 1950.
35. __________ & LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 4.ed. Porto,
[s.d.].
36. Tristão e Isolda. Lisboa: Europa-América, 1975.

15
37. VASCONCELOS, Maria Elizabeth G. de. As catingas de amor: um serviço de
alta tensão erótica. Convergência Lusíada. Rio de Janeiro: Real Gabiente
Português de Leitura, 9 (78/83), 1992.
38. ___________. Os gestos femininos no medievo europeu: dolor e maleficium.
Cadernos 1 – 3° Seminário Nacional Mulher e Literatura. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, 1989.
39. VIEIRA, Yara Frateschi. O escândalo das amas e tecedeiras nos Cancioneiros
galego-portugueses. Colóquio/Letras. Lisboa: 76: 18-27, 1983.
40. WISNIK, José Miguel. A paixão dionisíaca em Tristão e Isolda. In: CARDOSO,
Sérgio et alii. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

NOTAS
*ECO, U. (1989) p. 78

16
A Arte de Trovar dos trovadores galego-portugueses

Enquanto o lirismo provençal tem minuciosa arte poética – Las leys d’amor –, a
poesia galego-portuguesa só dispõe de uma amputada Arte de Trovar, que vem no
início do Cancioneiro da Biblioteca Nacional e cujos primeiros capítulos desaparecem.
Este fragmento começa por uma página quase apagada em que se lê, a partir do Capítulo
IV, a definição das cantigas dialogadas. É desse parco material que nos utilizamos para
as notas que se seguem.
As cantigas que constituem o acervo da poesia galego-portuguesa inscritas nos
três Cancioneiros – da Ajuda, da Vaticana e da Biblioteca Nacional – podem ser
classificadas:
1. Quanto ao gênero
2. Quanto ao estilo

Quanto ao gênero, podem ser:1

a) de amigo: aquelas em que fala a namorada, referindo-se ao amigo. Estas


cantigas, quanto ao assunto, podem ser classificadas em: bailadas, alvas,
barcarolas, pastorelas, de romaria, etc.

b) de amor: aquelas em que fala o namorado, referindo à “sua senhor”. A


cantiga “se move a razon dela”.2
c) de escárnio: “aquelas que os trobadores fazen querendo dizer mal d’alguém
em elas, e dizen-lho per palavras cubertas que ajam dous entendimentos pera
lhe lo non entenderen ligeiramente; e estas palavras chamam os clerigos
hequivocatio”.
d) de maldizer: “aquelas que fazen os trobadores mais descubertamente; e en
elas entram palavras que queren dizer mal e non averan outro entendimento
senon aquel que queren dizer chaãmente”.

Observações:

1
Não mencionamos aqui as Cantigas de Santa Maria, nas quais só figuram cantigas de cunho religioso
dedicadas à Virgem.
2
Todas as citações entre aspas são tiradas da Arte de Trovar (que, aliá, não tem título) do Cancioneiro da
Biblioteca Nacional.

17
1. As Cantigas de Malmaridada (bastante raras) participam de dois gêneros:
por serem postas na boca de uma mulher serão, de certo modo, de amigo; por serem
satíricas, de escárnio ou maldizer.

2. As cantigas, de modo geral, podem ser monologadas ou dialogadas. As


dialogadas podem ser de amigo ou de amor. Assim se distinguem na Arte de Trovar:
“E porque alguas cantigas hi ha en que falam eles e elas outrossi, por en he bem de
entenderdes se som d’amor se d’amigo, porque sabede que, se eles falam na primeira
cobra e elas na outra, he d’amor, porque se move a razon dela, como nos ante
dissemos, e se elas falam na primeira cobra he outrossi d’amigo; se se ambos falam em
ua cobra he outrossi segundo qual deles fala na cobra primeira.” Entre as dialogadas
devem-se distinguir as tensões “porque son feytas per maneyra de razon que hum aja
contra outro, em que diga aquelo que por bem tever na primeyra cobra e o outro
responda-lhe na outra dizendo o contrayro. Estas se podem fazer d’amor ou d’amigo,
ou d’escarnho ou de mal dizer, pero que devem ser de meestria”.3

Quanto ao estilo, podem ser:

a) de mestria: as mais artísticas e livres de elementos populares, cujas estrofes


não apresentam refrão.

b) de refrão: as que apresentam estribilho ou refrão, possuindo características


de cunho popular. As mais populares cantigas de refrão são paralelísticas.4

Estrofes:
As estrofes das cantigas – cobras – podem ser formadas de número variável de
versos (de 2 a 12), sendo mais usadas as de cinco versos. À disposição dos versos –
palavras5 – dá-se o nome de talho.

Findas:
“As findas son cousa antiga que os trobadores sempre husaron de poer en
acabamento das sas cantigas, para concluidiren e acabaren melhor em elas as razones
que disseron nas cantigas, chando lhes finda, porque quer tanto dizer como acabamento

3
É por essa definição que se inicia o fragmento do Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
4
Cantigas paralelísticas bailadas ou cossantes são cantigas que têm um número par de estrofes, as quais se
repetem quase que integralmente duas a duas, variando apenas o necessário para apresentar uma
alternância de rimas.
5
Palavra, na Arte de Trovar, significa vocábulo ou verso.

18
de razon”. Há findas de um, dois, três e mais versos, sendo mais frequente a finda de
dois ou três. Excepcionalmente há mais de uma finda na mesma cantiga.

Artificios poéticos:

1. Palavra perduda: “Porque alguns trobadores, pera mostrarem moor mestria,


meteron em sas cantigas que fezeron hua palavra que non rimasse con as
outras e chamam-lhe palavra perduda. E esta palavra pode meter o trobador
no começo ou no meyo ou na cima da cobra, en qual logar quiser, pero que,
se a meter en hua cobra, deve a meter nas outras en cada hua delas, en aquel
lugar”.

2. Dobre: é a repetição de uma palavra em dois ou mais versos da mesma


estrofe. “E convem, como a meteron em ua das cobras que assi a metam nas
outras todas”.
3. Mosdobre: é a repetição da mesma palavra, ou mais especialmente do
mesmo verbo, variando as flexões. É uma variante do dobre.
4. Cantiga ateúda: é aquela que apresenta ligação sintática entre todas as
estrofes, as quais encadeiam por enjambement ou cavalgamento.

PS. Há um outro processo de encadeamento das estrofes, o leixapren, que não


devemos incluir nos artifícios poéticos, pois é um processo popular, usado nas cantigas
paralelísticas. Este processo consiste na repetição de um verso inteiro de uma estrofe na
seguinte ou subsequente.

Rimas:

As rimas mais usada são as consoantes (consonâncias), mas nas cantigas


populares – principalmente as paralelísticas – encontram-se também as rimas toantes
(assonâncias).
A rima era obrigatória na poética trovadoresca. O esquema rimático usado na
primeira cobra devia ser mantido em todas as demais. As rimas, porém, podiam ser as
mesmas ou não. No primeiro caso, chamam-se uníssonas, no segundo, singulares. Há,
ainda, mais raras, cobras cujos versos têm todos a mesma rima: podemos chamá-las
monórrimas.

19
Nas cantigas de mestria, mais influenciadas pela poética provençal predominam
as rimas agudas; nas outras, as rimas graves.

Metros:

Nas cantigas de mestris predominam o octassílabo e decassílabo agudos; nas


outras, o metro é muito variável, indo de cinco a quatorze sílabas, compredominância,
todavia, do verso de sete sílabas ou redondillha maior que é, até hoje, em nossa
língua, o mais popular.

20
Os cancioneiros galaico-portugueses

1. Cancioneiro da Ajuda ou do Colégio dos Nobres, também conhecido como


Livro das Cantigas do Conde de Barcelos – Foi encontrado em grosso in-folio
encadernado que reunia 40 fls. Do Nobiliário do conde de Barcelos e 88 fls. do
Cancioneito, de modo que se supôs que ambos tivessem o mesmo autor: o filho
bastardo de D. Dinis. Da livraria do Colégio dos Nobres foi transportado para a
Biblioteca do Paço da Ajuda. Em 1823, um diplomata inglês, Lord Stuart,
imprimiu-o diplomaticamente, em 25 exemplares. Em 1849, o brasileiro
Varnhagem publicou-o com o título de Livro de Trovas ou das Cantigas do
Conde de Barcelos. Em 1904. D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos deu dele
uma edição crítica. É o único cancioneiro do qual possuímos o códice
membranáceo. Contém cantigas de trovadores anteriores a D. Dinis e somente
cantigas de amor num total de 310. Deve remontar aos fins do século XIII ou
começo do século XIV.

2. Cancioneiro da Vaticana – Deste concioneiro tem-se uma cópia tardia de mão


italiana, já dos fins do século XV ou início do XVI, feita a mando do humanista
Angelo Colocci. O brasileiro Caetano Lopes de Moura foi quem o deu
parcialmente à estampa pela primeira vez em 1847. Outro brasileiro,
Varnhagem, dele dá uma edição parcial em 1870, com o título de: Cancioneiro
de trovas antigas. A edição diplomática virá a luz em 1875, rigorosamente feita
pelo filólogo italiano Ernesto Monaci. Este cancioneiro contém mais de 1200
cantigas, das quais 56 figuram no Cancioneiro da Ajuda.

3. Cancioneiro da Biblioteca Nacional – O exemplar que ora se encontra na


Biblioteca de Lisboa e que pertenceu a Angelo Colocci é da mesma época do da
Vaticana e foi encontrado, em 1878, na biblioteca do Conde Brancuti. Enrico
Moteni, discípulo de Monaci, pretarava-se para editá-lo quando morreu

21
prematuramente. Foi o próprio Monaci que deu a edição diplomática em 1880.
Publicou apenas 470 canções das 1647 que o manuscrito continha, pois apenas
estas não se encontravam também no Cancioneiro da Vaticana. Há uma edição
do Cancioneiro da Biblioteca Nacional em 7 volumes. São responsáveis por ela
Elza Machado e José Pedro Machado.

4. Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o sábio, rei de Castela e Leão. É o


único cancioneiro constituido de cantigas de inspiração religiosa. Possui-se o
códice original, com ricas iluminuras e a música de todas as cantigas.

Observações:
a) Por ser inacabado, o Cancioneiro da Ajuda não traz as músicas das cantigas. Só
se conhecem os sons das barcarolas de Martim Codax, graças à descoberta do
manuscrito de Vindel.
b) O professor Rodrigues Lapa deu, em 1965, uma edição crítica das Cantigas
d’Escarnho e Maldizer (Coimbra, Editorial Galáxia, Colección Filológica).

22
CANTIGAS DE AMIGO

23
JOÃO ZORRO

Bailemos agora, por Deus, ai velidas,


sô aquestas avelaneiras frolidas,
e quem for velida, como nós velidas,
se amigo amar,
sô aquestas avelaneiras frolidas
verrá bailar.

Bailemos agora, por Deus, ai loadas,


sô aquestas avelaneiras granadas,
e quem for loada, como nós loadas,
se amigo amar,
sô aquestas avelaneiras granadas
verrá bailar.
V 761
B 1158

JOÃO SOARES COELHO

Eu nunca dórmio nada, cuidand'em meu amigo,


el que tam muito tarda, se outr'amor há sigo
ergo lo meu, querria
morrer hoj'este dia.

E cuid'em esto sempre, nom sei que de mi seja,


el que tam muito tarda, se outro bem deseja
ergo lo meu, querria
morrer hoj'este dia.

Se o faz, faz-mi torto, e, par Deus, mal me mata,


el que tam muito tarda, se outro rostro cata
ergo lo meu, querria
morrer hoj'este dia.

Ca meu dano seria


de viver mais um dia
V 301
B 700

24
MEENDINHO

Sedia-m'eu na ermida de Sam Simion


e cercarom-mi as ondas, que grandes som!
Eu atendendo meu amig', eu a[tendendo].

Estando na ermida ant'o altar


[e] cercarom-mi as ondas grandes do mar.
Eu atendendo meu amig', eu a[tendendo].

E cercarom-mi as ondas, que grandes som!


Nom hei [eu i] barqueiro nem remador.
Eu atendendo meu amig', eu a[tendendo].

E cercarom-mi [as] ondas do alto mar;


nom hei [eu i] barqueiro nem sei remar.
Eu atendendo meu amig', eu a[tendendo].

Nom hei [eu] i barqueiro nem remador


[e] morrerei fremosa no mar maior.
Eu atendendo meu amig', eu a[tendendo].

Nom hei [eu i] barqueiro nem sei remar


e morrerei fremosa no alto mar.
Eu atendendo meu amig', eu a[tendendo].

V 438
B 852

PERO MEOGO

— Digades, filha, mia filha velida,


por que tardastes na fontana fria?
Os amores hei.

— Digades, filha, mia filha louçana,


por que tardastes na fria fontana?
Os amores hei.

— Tardei, mia madre, na fontana fria,


cervos do monte a áugua volv[i]am.
Os amores hei.

Tardei, mia madre, na fria fontana,


cervos do monte volv[i]am a áugua.
Os amores hei.

25
— Mentir, mia filha, mentir por amigo,
nunca vi cervo que volvesse o rio.
— Os amores hei.

— Mentir, mia filha, mentir por amado,


nunca vi cervo que volvess'o alto;
— Os amores hei.
V 797
B 1192
***

[Levou-s'aa alva], levou-s'a velida,


vai lavar cabelos na fontana fria;
leda dos amores, dos amores leda.

[Levou-s'aa alva], levou-s'a louçana,


vai lavar cabelos na fria fontana;
leda dos amores, dos amores leda.

Vai lavar cabelos na fontana fria,


passou seu amigo, que lhi bem queria;
leda dos amores, dos amores leda.

Vai lavar cabelos na fria fontana,


passa seu amigo, que [a] muit'a[ma]va;
leda dos amores, dos amores leda.

Passa seu amigo, que lhi bem queria,


o cervo do monte a áugua volvia;
leda dos amores, dos amores leda.

Passa seu amigo que a muit'amava,


o cervo do monte volvia [a] áugua;
leda dos amores, dos amores leda.
V 793
B 1188

NUNO FERNANDES TORNEOL

Levad', amigo, que dormides as manhanas frias


tôdalas aves do mundo d'amor dizia[m]:
leda m'and'eu.

Levad', amigo que dormide'las frias manhanas


tôdalas aves do mundo d'amor cantavam:
leda m'and'eu.

26
Tôdalas aves do mundo d'amor diziam,
do meu amor e do voss[o] em ment'haviam:
leda m'and'eu.

Tôdalas aves do mundo d'amor cantavam,


do meu amor e do voss[o] i enmentavam:
leda m'and'eu.

Do meu amor e do voss[o] em ment'haviam


vós lhi tolhestes os ramos em que siíam:
leda m'and'eu.

Do meu amor e do voss[o] i enmentavam


vós lhi tolhestes os ramos em que pousavam:
leda m'and'eu.

Vós lhi tolhestes os ramos em que siíam


e lhis secastes as fontes em que beviam;
leda m'and'eu.

Vós lhi tolhestes os ramos em que pousavam


e lhis secastes as fontes u se banhavam;
leda m'and'eu.
V 242
B 641

JOÃO GARCIA DE GUILHADE

Morr'o meu amigo d'amor


e eu nom vo-lho creo bem;
e el mi diz logo por en
ca verrá morrer u eu for,
e a mi praz de coraçom
por veer se morre, se nom.

Enviou-m'el assi dizer:


que eu, por mesura de mim,
o leixasse morrer aqui,
e o veja quando morrer;
e a mi praz de coraçom
por veer se morre, se nom.

Mais nunca já crea molher


que por ela morrem assi,
ca nunca eu esse tal vi,
e el moira, se lhi prouguer,
e a mi praz de coraçom
por veer se morre, se nom.
V 353; B 750

27
JUIÃO BOLSEIRO

Aquestas noites tam longas que Deus fez em grave dia


por mim, por que as nom dórmio, e por que as nom fazia
no tempo que meu amigo
soía falar comigo?

Porque as fez Deus tam grandes, nom posso eu dormir, coitada,


e, de como som sobejas, quisera-m'outra vegada
no tempo que meu amigo
soía falar comigo.

Porque as Deus fez tam grandes, sem mesura, desiguaes,


e as eu dormir nom posso, por que as nom fez ataes
no tempo que meu amigo
soía falar comigo?
V 782
B 1176

Mal me tragedes, ai filha, por que quer'haver amigo,


e, pois eu, com vosso medo, nom o hei nem é comigo,
nom hajade'la mia graça,
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.

Sabedes ca, sem amigo, nunca foi molher viçosa,


e, porque mi o nom leixades haver, mia filha fremosa,
nom hajade'la mia graça,
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha, que vos assi faça

Pois eu nom hei meu amigo, nom hei rem do que desejo,
mais, pois que mi por vós vẽo, mia filha, que o nom vejo,
nom hajade'la mia graça,
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha, que vos assi faça

Per vós perdi meu amigo, por que gram coita padesco,
e, pois que mi o vós tolhestes e melhor ca vós paresco,
nom hajade'la mia graça,
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha, que vos assi faça
V 777; B 1171

28
AIRAS NUNES

— Bailade hoje, ai filha, que prazer vejades,


ant'o voss'amigo, que vós moit'amades.
— Bailarei eu, madre, pois me vós mandades,
mais pero entendo de vós ũa rem:
de viver el pouco moito vos pagades,
pois me vós mandades que baile ant'el bem.

— Rogo-vos, ai filha, por Deus, que bailedes


ant'o voss'amigo, que bem parecedes.
— Bailarei eu, madre, pois mi o vós dizedes,
mais pero entendo de vós ũa rem:
de viver el pouco gram sabor havedes,
pois me vós mandades que baile ant'el bem.

— Por Deus, ai mia filha, fazed'a bailada


ant'o voss'amigo de sô a milgranada.
— Bailarei eu, madre, daquesta vegada,
mais pero entendo de vós ũa rem:
de viver el pouco sodes moi pagada,
pois me vós mandades que baile ant'el bem.

— Bailade hoj', ai filha, por Santa Maria,


ant'o voss'amigo, que vos bem queria.
— Bailarei eu, madre, por vós todavia,
mais pero entendo de vós ũa rem:
em viver el pouco tomades perfia,
pois me vós mandades que baile ant'el bem.
V646
B881

PERO GONÇALVES DE PORTOCARREIRO

Par Deus, coitada vivo


pois nom vem meu amigo;
pois nom vem, que farei?
Meus cabelos, com sirgo
eu nom vos liarei.

Pois nom vem de Castela,


nom é viv', ai mesela,
ou mi o detém el-rei;
mias toucas da Estela,
eu nom vos tragerei.

29
Pero m'eu leda semelho,
nom me sei dar conselho;
amigas, que farei?
Em vós, ai meu espelho,
eu nom me veerei.

Estas doas mui belas,


el mi as deu, ai donzelas,
nom vo-las negarei;
mias cintas das fivelas,
eu nom vos cingerei.
V505
B918

PERO VIVAEZ

Pois nossas madres vam a Sam Simom


de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos d'andar
com nossas madres, e elas entom
queimem candeas por nós e por si,
e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos todos lá irám


por nos veer e andaremos nós
bailand'ant'eles fremosas em cós;
e nossas madres, pois que alá vam,
queimem candeas por nós e por si.
e nós, meninhas, bailaremos i.

Nossos amigos irám por cousir


como bailamos e podem veer
bailar [i] moças de bom parecer;
e nossas madres, pois lá querem ir,
queimem candeas por nós e por si,
e nós, meninhas, bailaremos i.
V 336
B 735

JOÃO AIRAS DE SANTIAGO

Mia madre, pois [a]tal é vosso sem


que eu que[i]ra mal a quem mi quer bem
e me vós roguedes muito por en,
dized'ora, por Deus que pod'e val,
pois eu mal quiser a quem mi quer bem,
se querrei bem a quem mi quiser mal.

30
Dizedes-mi que, se eu mal quiser
a meu amigo, que mi gram bem quer,
que faredes sempre quant'eu disser,
mais venh'or'a que mi digades al:
pois hei de querer mal a quem mi bem quer
se querrei bem a quem mi quiser mal.

Muito mi será grave de sofrer


d'haver quem mi quer bem mal a querer,
e vós, madre, mandades-mi-o fazer,
mais faço-vos ũa pregunt'atal:
pois quem mi quer bem hei mal a querer,
se querrei bem a quem mi quiser mal.

Se assi for, por mi podem dizer


que eu fui a que semeou o sal.

V 206
B 1300

Tôdalas cousas eu vejo partir


do mund', em como soíam seer,
e vej'as gentes partir de fazer
bem que soíam, tal tempo nos vem!
Mais nom se pod'o coraçom partir
do meu amigo de mi querer bem.

Pero que home part'o coraçom


das cousas que ama, per bõa fé,
e parte-s'home da terra ond'é,
e parte-s'home d'u gran[de] prol tem,
nom se pode parti'lo coraçom
do meu amigo de mi querer bem.

Tôdalas cousas eu vejo mudar,


mudam-s'os tempos e muda-s'o al,
muda-s'a gente em fazer bem ou mal,
mudam-s'os ventos e tod'outra rem,
mais nom se pod'o coraçom mudar
do meu amigo de mi querer bem.
V 550
B 963

31
MARTIN CODAX

Ondas do mar de Vigo,


se vistes meu amigo?
e ai Deus, se verrá cedo?

Ondas do mar levado,


se vistes meu amado?
e ai Deus, se verrá cedo?

Se vistes meu amigo,


o por que eu sospiro?
e ai Deus, se verrá cedo?

Se vistes meu amado,


o por que hei gram coidado?
e ai Deus, se verrá cedo?
V884
B 1278

Mandad'hei comigo
ca vem meu amigo,
e irei, madr', a Vigo.

Comig'hei mandado
ca vem meu amado,
e irei, madr', a Vigo.

Ca vem meu amigo


e vem san'e vivo,
e irei, madr', a Vigo.

Ca vem meu amado


e vem viv'e sano,
e irei, madr', a Vigo.
V 885
B 1279

Mia irmana fremosa, treides comigo


a la igreja de Vigo u é o mar salido
e miraremos las ondas.

Mia irmana fremosa, treides de grado


a la igreja de Vigo u é o mar levado
e miraremos las ondas.

32
A la igreja de Vigo u é o mar levado
e verrá i, mia madre, o meu amado
e miraremos las ondas.

A la igreja de Vigo u é o mar salido


e verrá i, mia madre, o meu amigo
e miraremos las ondas.
V 886
B 1280

Ai Deus, se sab'ora meu amigo


com'eu senheira estou em Vigo!
E vou namorada...

Ai Deus, se sab'ora meu amado


com'eu em Vigo senheira manho!
E vou namorada...

com'eu senheira estou em Vigo


e nulhas gardas nom hei comigo!
E vou namorada...

Com'eu senheira em Vigo manho


e nulhas gardas migo nom trago!
E vou namorada...

E nulhas gardas nom hei comigo,


ergas meus olhos que choram migo!
E vou namorada...
V 887
B 1281

Quantas sabedes amar amigo,


treides comig'a lo mar de Vigo
e banhar-nos-emos nas ondas.

Quantas sabedes amar amado,


treides comig' a lo mar levado
e banhar-nos-emos nas ondas.

Treides comig' a lo mar de Vigo


e veeremo' lo meu amigo
e banhar-nos-emos nas ondas.

Treides comig' a lo mar levado


e veeremo' lo meu amado
e banhar-nos-emos nas ondas.
V888; B1282

33
Eno sagrado em Vigo
bailava corpo velido.
Amor hei!

Em Vigo, no sagrado
bailava corpo delgado.
Amor hei!

Bailava corpo velido


que nunc'houver'amigo.
Amor hei!

Bailava corpo delgado


que nunc'houver'amado.
Amor hei!

Que nunc'houver'amigo
ergas no sagrad'em Vigo.
Amor hei!

Que nunc'houver'amado
ergas em Vigo no sagrado.
Amor hei!
V 889
B 1283

Ai ondas que eu vim veer,


se me saberedes dizer
por que tarda meu amigo sem mim?

Ai ondas que eu vim mirar,


se me saberedes contar
por que tarda meu amigo sem mim?
V 890
B 1284

34
D. DINIS

Levantou-s'a velida,
levantou-s'alva,
e vai lavar camisas
eno alto,
vai-las lavar alva.

Levantou-s'a louçana,
levantou-s'alva,
e vai lavar delgadas
eno alto,
vai-las lavar alva.

[E] vai lavar camisas;


levantou-s'alva,
o vento lhas desvia
eno alto,
vai-las lavar alva.

E vai lavar delgadas;


levantou-s'alva,
o vento lhas levava
eno alto,
vai-las lavar alva.

O vento lhas desvia;


levantou-s'alva,
meteu-s'[a] alva em ira
eno alto,
vai-las lavar alva.

O vento lhas levava;


levantou-s'alva,
meteu-s'[a] alva em sanha
eno alto,
vai-las lavar alva.
V 172
B 569

35
Ũa pastor se queixava
muit'estando noutro dia
e sigo medês falava
e chorava e dizia
com amor que a forçava:
"Par Deus, vi-t'em grave dia,
ai amor!"

Ela s'estava queixando


come molher com gram coita
e que a pesar, des quando
nacera, nom fora doita;
por en dezia chorando:
"Tu nom és senom mia coita,
ai amor!"

Coitas lhi davam amores,


que nom lh'eram senom morte;
e deitou-s'antr'ũas flores
e disse com coita forte:
"Mal ti venha per u fores,
ca nom és senom mia morte,
ai amor!"
V 102
B 519

— Ai flores, ai flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo?
Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,


aquel que mentiu do que pôs conmigo?
Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,


aquel que mentiu do que mi há jurado?
Ai Deus, e u é?

— Vós me preguntades polo voss'amigo


e eu bem vos digo que é san'e vivo.
Ai Deus, e u é?

36
— Vós me preguntades polo voss'amado
e eu bem vos digo que é viv'e sano.
Ai Deus, e u é?

— E eu bem vos digo que é san'e vivo


e será vosco ant'o prazo saído.
Ai Deus, e u é?

— E eu bem vos digo que é viv'e sano


e será vosc[o] ant'o prazo passado.
Ai Deus, e u é?
V 171
B 568

Nom chegou, madre, o meu amigo,


e hoj'est o prazo saido;
ai madre, moiro d'amor!

Nom chegou, madr', o meu amado,


e hoj'est o prazo passado;
ai madre, moiro d'amor!

E hoj'est o prazo saido;


por que mentiu o desmentido?
ai madre, moiro d'amor!

E hoj'est o prazo passado;


por que mentiu o perjurado?
ai madre, moiro d'amor!

Por que mentiu o desmentido,


pesa-mi, pois per si é falido;
ai madre, moiro d'amor!

Por que mentiu o perjurado,


pesa-mi, pois mentiu per seu grado;
ai madre, moiro d'amor!
C 169
B 566

37
— Dizede por Deus, amigo:
tamanho bem me queredes
como vós a mi dizedes?
— Si, senhor, e mais vos digo:
nom cuido que hoj'home quer
tam gram bem no mund'a molher.

— Nom creo que tamanho bem


mi vós podéssedes querer
camanh'a mi ides dizer
— Si, senhor, e mais direi en:
nom cuido que hoj'home quer
tam gram bem no mund'a molher.

— Amig', eu nom vos creerei,


fé que dev'a Nostro Senhor,
que m'havedes tam grand'amor!
— Si, senhor, e mais vos direi:
nom cuido que hoj'home quer
tam gram bem no mund'a molher.
V 180
B 577

Meu amigo vem hoj'aqui


e diz que quer migo falar,
e sab'el que mi faz pesar,
madre, pois que lh'eu defendi
que nom fosse, per nulha rem,
per u eu foss', e ora vem

aqui; e foi pecado seu


de sol põer no coraçom,
madre, passar mia defensom;
ca sab'el que lhi mandei eu
que nom fosse per nulha rem
per u eu foss', e ora vem

aqui, u eu com el falei


per ante vós, madr'e senhor;
e oimais perde meu amor,
pois lh'eu defendi e mandei
que nom fosse per nulha rem
per u eu foss', e ora vem

aqui, madr', e pois fez mal sem,


dereit'é que perça meu bem.
V 187
B184

38
Que coita houvestes, madr'e senhor,
de me guardar que nom possa veer
meu amig'e meu bem e meu prazer!
Mais, se eu posso, par Nostro Senhor,
que o veja e lhi possa falar,
guisar-lho-ei, e pês a quem pesar.

Vós fezestes todo vosso poder,


madr'e senhor, de me guardar que nom
visse meu amig'e meu coraçom!
Mais, se eu posso, a todo meu poder,
que o veja e lhi possa falar,
guisar-lho-ei, e pês a quem pesar.

Mia morte quisestes, madr', e nom al,


quand'aguisastes que per nulha rem
eu nom viss'o meu amig'e meu bem!
Mais, se eu posso, u nom pod'haver al,
que o veja e lhi possa falar,
guisar-lho-ei, e pês a quem pesar.

E se eu, madr', esto poss'acabar,


o al passe como poder passar.
V185
B 582

ESTEVÃO COELHO

Sedia la fremosa seu sirgo torcendo,


sa voz manselĩa fremoso dizendo
cantigas d'amigo.

Sedia la fremosa seu sirgo lavrando,


sa voz manselinha fremoso cantando
cantigas d'amigo.

— Par Deus de cruz, dona, sei eu que havedes


amor mui coitado, que tam bem dizedes
cantigas d'amigo.

Par Deus de cruz, dona, sei [eu] que andades


d'amor mui coitada, que tam bem cantades
cantigas d'amigo.

— Avuitor comestes, que adevinhades!


V 321; B 720

39
VASCO RODRIGUES DE CALVELO

Roguei-vos eu, madre, há i gram sazom,


por meu amig', a que quero gram bem,
que o viss'eu, e a vós nom prougu'en;
mais, poilo eu já vi, de coraçom
gradesc'a Deus que mi o fezo veer,
e que nom hei a vós que gradecer.

Gram sazom há, madre, que vos roguei


que o leixássedes migo falar
e nom quisestes vós esto outorgar;
mais, poilo eu já vi [e lhi falei],
gradesc'a Deus que mi o fezo veer,
e que nom hei a vós que gradecer.

Vós nom quisestes que veess'aqui


o meu amig', ond'havia sabor
de o veer, e quis Nostro Senhor
que o eu visse, mais, poilo eu já vi,
gradesc'a Deus que mi o fezo veer,
e que nom hei a vós que gradecer.

Mostrou-mi-o Deus e fez-mi gram prazer,


sem haver eu a vós que gradecer.
V 437
B 851

40
CANTIGAS DE AMOR

41
PAIO SOARES DE TAVEIRÓS

Como morreu quem nunca bem


houve da rem que mais amou,
e que[m] viu quanto receou
dela, e foi morto por en:
ai, mia senhor, assi moir'eu!

Como morreu quem foi amar


quem lhe nunca quis bem fazer,
e de que lhe fez Deus veer
de que foi morto com pesar:
ai, mia senhor, assi moir'eu!

Com'home que ensandeceu,


senhor, com gram pesar que viu
e nom foi ledo nem dormiu
depois, mia senhor, e morreu:
ai, mia senhor, assi moir'eu!

Como morreu quem amou tal


dona que lhe nunca fez bem,
e quen'a viu levar a quem
a nom valia, nen'a val:
ai, mia senhor, assi moir'eu!
A 35
B 150

No mundo nom me sei parelha


mentre me for como me vai,
ca já moiro por vós e ai,
mia senhor branca e vermelha!
queredes que vos retraia
quando vos eu vi em saia?
Mao dia me levantei
que vos entom nom vi fea!

E, mia senhor, des aquelha


me foi a mi mui mal di', ai!
E vós, filha de dom Paai
Moniz, e bem vos semelha
d'haver eu por vós garvaia:
pois eu, mia senhor, d'alfaia
nunca de vós houve nem hei
valia d'ũa correa.
A 38

42
FERNÃO VELHO

Quant'eu de vós, mia senhor, receei


a ver, dê'lo dia em que vos vi,
dizem-mi ora que mi o aguis'assi
Nostro Senhor, como m'eu receei:
de vos casarem; mais sei ũa rem,
se assi for: que morrerei por en!

E sempr'eu, mia senhor, esto temi,


que mi ora dizem, de vós a veer,
des que vos soubi mui gram bem querer;
per bõa fé, sempr'eu esto temi:
de vos casarem; mais sei ũa rem,
se assi for: que morrerei por en!

E sempr'end'eu, senhor, houvi pavor


des que vos vi e convosco falei
e vos dix'o mui grand'amor que hei;
e, mia senhor, daquest'hei eu pavor:
de vos casarem; mais sei ũa rem,
se assi for: que morrerei por en!
A 258
V 47
B 345

43
JOÃO LOBEIRA ou Anónimo

Senhor genta,
mi tormenta
voss'amor em guisa tal,
que tormenta
que eu senta
outra nom m'é bem nem mal
— mais la vossa m'é mortal!
Leonoreta,
fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta,
nom me meta
em tal coi[ta] voss'amor!

Das que vejo


nom desejo
outra senhor se vós nom,
e desejo
tam sobejo
mataria um leom
— senhor do meu coraçom!
Leonoreta,
fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta,
nom me meta
em tal coi[ta] voss'amor!

Mia ventura
em loucura
me meteu de vos amar:
é loucura
que me dura,
que me nom posso en quitar
— ai fremosura sem par!
Leonoreta,
fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta,
nom me meta
em tal coi[ta] voss'amor!
B 224

44
JOÃO GARCIA DE GUILHADE

Quantos ham gram coita d'amor


eno mundo, qual hoj'eu hei,
querriam morrer, eu o sei,
e haveriam en sabor;
mais, mentr'eu vos vir, mia senhor,
sempre m'eu querria viver
e atender e atender.

Pero já nom posso guarir,


ca já cegam os olhos meus
por vós, e nom mi val i Deus
nem vós; mais, por vos nom mentir,
enquant'eu vos, mia senhor, vir,
sempre m'eu querria viver
e atender e atender.

E tenho que fazem mal sem,


quantos d'amor coitados som,
de querer sa morte, se nom
houverom nunca d'amor bem,
com'eu faç'; e, senhor, por en
sempre m'eu querria viver
e atender e atender.
A 234
V 36
B 424

RUI FERNANDES DE SANTIAGO

Quand'eu vejo las ondas


e las muit'altas ribas,
logo mi vêm ondas
al cor, pola velida:
maldito seja'l mare
que mi faz tanto male!

Nunca ve[j]o las ondas


nen'as altas debrocas
que mi nom venham ondas
al cor, pola fremosa:
maldito seja'l mare
que mi faz tanto male!

45
Se eu vejo las ondas
e vejo las costeiras,
logo mi vêm ondas
al cor, pola bem feita:
maldito seja'l mare
que mi faz tanto male!
V488
B 903

NUNO FERNANDES TORNEOL

Ir-vos queredes, mia senhor,


e fic'end'eu com gram pesar,
que nunca soube rem amar
ergo vós, des quando vos vi.
E pois que vos ides daqui,
senhor fremosa, que farei?

E que farei eu, pois nom vir


o vosso mui bom parecer?
Nom poderei eu mais viver,
se me Deus contra vós nom val.
Mais ar dizede-me vós al:
senhor fremosa, que farei?

E rog'eu a Nostro Senhor


que, se vós vos fordes daquém,
que me dê mia morte por en,
ca muito me será mester.
E se mi a El dar nom quiser,
senhor fremosa, que farei?

Pois mi assi força voss'amor


e nom ouso vosco guarir,
des quando me de vós partir,
eu que nom sei al bem querer
querria-me de vós saber:
senhor fremosa, que farei?

A 70
B 183

46
PERO DA PONTE

Se eu podesse desamar
a quem me sempre desamou
e podess'algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
se eu pudesse coita dar
a quem me sempre coita deu.

Mais sol nom poss'eu enganar


meu coraçom que m'enganou,
per quanto mi fez desejar
a quem me nunca desejou.
E por esto nom dórmio eu,
porque nom poss'eu coita dar
a quem me sempre coita deu.

Mais rog'a Deus que desampar


a quem m'assi desamparou,
ou que podess'eu destorvar
a quem me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
se eu podesse coita dar
a quem me sempre coita deu.

Vel que ousass'en preguntar


a quem me nunca preguntou,
por que me fez em si cuidar,
pois ela nunca em mi cuidou;
e por esto lazeiro eu:
porque nom posso coita dar
a quem me sempre coita deu.
A 289
V 567
B 980

47
RUI QUEIMADO

Nostro Senhor! e ora que será


de mim? Que moiro, porque me parti
de mia senhor mui fremosa, que vi
polo meu mal! E de mi que será,
Nostro Senhor? Ou ora que farei?
Ca, de pram, nẽum conselho nom hei,
nem sei que faça, nem que xe será

de mim, que moiro e nom me sei já


nẽum conselh'outro senom morrer!
E tam bom conselho nom poss'haver,
pois que nom cuido nunca veer já
esta senhor, que por meu mal amei,
des que a vi, e am'e amarei
mentr'eu viver; mais nom viverei já

mais des aqui, de pram, per nulha rem,


cuidando sempre no meu coraçom
no mui gram bem que lh'hoj'eu quer', e non'
a veer, nen'a cuidar já per rem
a veer. E com aqueste cuidar
cuid'a morrer; ca nom poss'hoj'osmar
com'eu possa viver per nulha rem,

poila nom vej'; e cuid'em quanto bem


lhe Vós fezestes em tod', ar cuid'al,
em com'a mim fezestes muito mal:
pois já quisestes que lh'eu tam gram bem
quisesse, nom mi o fazer alongar
de a veer, e tam a meu pesar!

Nostro Senhor, u me faredes bem?


A la fé, nenlhur, aquesto sei já!
Ca, se a nom vir, nunc'haverei rem.
A 135
B 256

48
JOÃO ZORRO

Em Lixboa, sobre lo mar,


barcas novas mandei lavrar,
ai mia senhor veelida!

Em Lixboa, sobre lo lez,


barcas novas mandei fazer,
ai mia senhor veelida!

Barcas novas mandei lavrar


e no mar as mandei deitar,
ai mia senhor veelida!

Barcas novas mandei fazer


e no mar as mandei meter,
ai mia senhor veelida!

D. DINIS

Quer'eu em maneira de proençal


fazer agora um cantar d'amor
e querrei muit'i loar mia senhor
a que prez nem fremosura nom fal,
nem bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de bem
que mais que todas las do mundo val.

Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,


quando a fez, que a fez sabedor
de todo bem e de mui gram valor,
e com tod'est[o] é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bom sem
e des i nom lhi fez pouco de bem
quando nom quis que lh'outra foss'igual.

Ca em mia senhor nunca Deus pôs mal,


mais pôs i prez e beldad'e loor
e falar mui bem e riir melhor
que outra molher; des i é leal
muit'; e por esto nom sei hoj'eu quem
possa compridamente no seu bem
falar, ca nom há, tra'lo seu bem, al.
V 123
B 520

49
Proençaes soem mui bem trobar
e dizem eles que é com amor;
mais os que trobam no tempo da flor
e nom em outro, sei eu bem que nom
ham tam gram coita no seu coraçom
qual m'eu por mia senhor vejo levar.

Pero que trobam e sabem loar


sas senhores o mais e o melhor
que eles podem, sõo sabedor
que os que trobam quand'a frol sazom
há e nom ante, se Deus mi perdom,
nom ham tal coita qual eu hei sem par.

Ca os que trobam e que s'alegrar


vam eno tempo que tem a color
a frol consig'e, tanto que se for
aquel tempo, log'em trobar razom
nom ham, nem vivem [em] qual perdiçom
hoj'eu vivo, que pois m'há de matar.
V 127
B 524b

Senhor, que de grad'hoj'eu querria,


se a Deus e a vós aprouguesse,
que, u vós estades, estevesse
convosc'e por esto me terria
por tam bem andante
que por rei nem ifante
des ali adeante
nom me cambiaria.

E sabendo que vos prazeria


que, u vós morássedes, morasse
e que vos eu viss'e vos falasse,
terria-me, senhor, todavia
por tam bem andante
que por rei nem ifante
des ali adeante
nom me cambiaria.

50
Ca, senhor, em gram bem viveria,
se u vós vivêssedes, vivesse
e sol que de vós est'entendesse,
terria-me, e razom faria,
por tam bem andante
que per rei nem ifante
des ali adeante
nom me cambiaria.
V 136
B 533

Que soidade de mia senhor hei


quando me nembra dela qual a vi
e que me nembra que ben'a oí
falar; e por quanto bem dela sei,
rog'eu a Deus, que end'há o poder,
que mi a leixe, se lhi prouguer, veer

cedo; ca, pero mi nunca fez bem,


se a nom vir, nom me posso guardar
d'ensandecer ou morrer com pesar;
e porque ela tod'em poder tem,
rog'eu a Deus que end'há o poder
que mi a leixe, se lhi prouguer, veer

cedo; ca tal a fez Nostro Senhor,


de quantas outras no mundo som
nom lhi fez par, a la minha fé, nom;
e poila fez das melhores melhor,
rog'eu a Deus que end'há o poder,
que mi a leixe, se lhi prouguer, veer

cedo; ca tal a quiso Deus fazer,


que, se a nom vir, nom posso viver.
V 119
B 256a

51
Senhor fremosa e do mui loução
coraçom, e querede-vos doer
de mi, pecador, que vos sei querer
melhor ca mi! Pero sõo certão
que mi queredes peior doutra rem;
pero, senhor, quero-vos eu tal bem

qual maior poss'e o mais encoberto


que eu poss'; e sei de Brancafrol
que lhi nom houve Flores tal amor
qual vos eu hei; e pero sõo certo
que mi queredes peior doutra rem;
pero, senhor, quero-vos eu tal bem

qual maior poss'; e o mui namorado


Tristam sei bem que nom amou Iseu
quant'eu vos amo, esta certo sei eu;
e com tod'esto sei, mao pecado!,
que mi queredes peior doutra rem;
pero, senhor, quero-vos eu tal bem

qual maior poss'e tod'aquest'avém


a mim, coitad'e que perdi o sem.
V 115
B 552a

Quix bem, amigos, e quer'e querrei


ũa molher que me quis e quer mal
e querrá; mais nom vos direi eu qual
é a molher; mais tanto vos direi:
quix bem e quer'e querrei tal molher
que me quis mal sempr'e querrá e quer.

Quis e querrei e quero mui gram bem


a quem mi quis mal e quer e querrá,
mais nunca homem per mi saberá
quem é; pero direi-vos ũa rem:
quix bem e quer'e querrei tal molher
que me quis mal sempr'e querrá e quer.

Quix e querrei e quero bem querer


quem me quis e quer, per bõa fé,
mal, e querrá; mais nom direi quem é;
mais pero tanto vos quero dizer:
quix bem e quer'e querrei tal molher
que me quis mal sempr'e querrá e quer.
V113; B 520s; T 7

52
Vós mi defendestes, senhor,
que nunca vos dissesse rem
de quanto mal mi por vós vem;
mais fazede-me sabedor:
por Deus, senhor, a quem direi
quam muito mal [eu já] levei
por vós, senom a vós, senhor?

Ou a quem direi o meu mal


se o eu a vós nom disser,
pois calar-me nom m'é mester
e dizer-vo-lo nom m'er val?
E pois tanto mal sofr'assi,
se convosco nom falar i,
per quem saberedes meu mal?

Ou a quem direi o pesar


que mi vós fazedes sofrer,
se o a vós nom for dizer,
que podedes conselh'i dar?
E por en, se Deus vos perdom,
coita deste meu coraçom,
a quem direi o meu pesar?
V 85
B 502

53
CANTIGAS DE SANTA MARIA

54
[Este é o prologo das cantigas de Santa Maria, ementando as cousas que á mester eno
trobar]

Porque trobar é cousa em que jaz


entendimento, poren queno faz
á-o d’aver e de razon assaz,
per que entenda e sábia dizer
o que entend’e e de dizer lle praz
ca bem trobar assi s’á de fazer.

E macar eu estas duas non ey


com’ eu querria, pero provarei
a mostrar ende um pouco que sei,
confiand’ en Deus, ond’o saber vem;
ca per ele tenno que poderei
mostrar do que quero algũa ren.

E o que quero é dizer loor


da Virgem, Madre de Nostro Senhor,
Santa Maria, que ést’ a melhor
cousa que el fez; e por aquest’ eu
quero seer ou mais seu trobador,
e rogo-lhe que me queira por seu

Trobador e que queira meu trobar


Reçeber, ca per el quer’ eu mostrar
dos miragres que ela fez; e ar
querrei-me leixar de trobar des i
por outra dona, e cuid’ a cobrar
per esta quant’ enas outras perdi

Ca o amor desta Sem[n]or é tal,


que queno á sempre per i mais val;
e poi-lo gaannad’á, non lle fal,
senon se é per as grand’ ocajon,
querendo leixar ben e fazer mal,
ca per esto o perd’ e per al non.

Poren dela non me quer’ eu partir,


ca sei de pran que, se a bem servir,
que non poderei em seu bem falir
de o aver, ca nunca y faliu
quen llo soube com merçee pedir,
ca tal rogo sempr’ ela ben oyu.

Onde lle rogo, se ela quiser,


que lle praza do que dela disser
en meus cantares e, se ll’aprouguer,

55
que me dé gualardon com’ ela dá
aos que ama; e queno souber,
por ela mais de grado trobará.

Esta é de loor de Santa Maria, das çinque leteras que á no seu nome e o que
queren dizer.

Eno nome de Maria


Çinque letras, no-mais, y á.

M mostra MADR’ e MAYOR


e mais MANSA e mui MELLOR
de quant’ al fez Nostro Sennor
nen que fazer poderia.
Eno nome de Maria...

A demostra AVOGADA,
APOSTA e AORADA,
e AMIGA e AMADA
da mui santa companhia,
Eno nome de Maria...

R mostra RAM’ e RAYZ,


e REYNN’ e Emperadriz,
ROSA do mundo; e fiiz
Quena visse ben seria.
Eno nome de Maria...

I nos mostra JHESU-CRISTO,


JUSTO JUYZ, e por isto
foi por ela de nos visto,
segun disso Ysaya.
Eno nome de Maria...

A ar diz que AVEREMOS


e que tod’ ACABAREMOS
aquele quenos queremos
de Deus, pois ela nos guia.
Eno nome de Maria...

56
Esta é de loor de Santa Maria, do departimento que á entre Ave e Eva.

Entre Av’ e Eva


gran departiment’ á.

Ca Eva nos tolleu


o Parays’ e Deus,
Ave nos y meteu;
porend’, amigos meus;
Entre Av’ e Eva...

Eva nos foi deitar


do dem’em as prijon,
e Ave em sacar;
e por esta razon:
Entre Av’ e Eva...

Eva nos fez perder


amor de Deus e bem,
e pois Ave aver
no-lo fez; e poren:
Entre Av’ e Eva...

Eva nos ensserrou


os çeos sen chave,
e Maria britou
as portas per Ave.
Entre Av’ e Eva...

57
Como Santa Maria desviou a monja que se non fosse com un cavaleiro con que
posera de ss’ ir

De muitas guisas nos guarda de mal


Santa Maria, tan muyt’ é leal.

E dest’ um mirage vos contarei


que Santa Maria dez, com’eu sei,
dũa monja, segund’ escrit’ achei,
que d’amor lle mostrou mui gran sinal
De muitas guisas nos guarda mal...

Esta monja fremosa foi assaz


e tiia bem quant’ em regla jaz,
e o que a Santa Maria praz,
esso fazia senpr’ a comunal,
De muitas guisas nos guarda de mal...

Mas lo demo, que dest’ ouve pesar,


andou tanto pola fazer errar
que a troux’ a que ss’ ouve de pagar
dum cavaleiro; e pos preit atal
De muitas guisas nos guarda mal...

Con ele que sse foss’ a como quer,


e que a fillasse pois por moller
e lle dess’o que ouvesse mester;
e pos de s’ir a el a um curral
De muitas guisas nos guarda de mal...

Do mõesteir’; e y a atendeu.
mas en tant’ a dona adormeceu
e viu en vijon, ond’ esterreçeu
con mui gran pavor que ouve mortal.
De muitas guisas nos guarda de mal...

Ca sse viu sobr’ um poç’ aquela vez,


estreit’ e fond’ e mais negro ca pez,
e o demo, que a trager y fez,
deita-la quis per i no infernal
De muitas guisas nos guarda de mal...

Fogo, u mais de mil vozes oyu


d’omes e muitos tormentar y viu;
e con med’ a poucas xe lle partiu
o coraçom, e chamou: Senhor, val
De muitas guisas nos guarda de mal...

58
Santa Maria, que Madr’es de Deus,
ca sempre punhei en faze-los teus
mandamentos, e non castes los meus
pecados, ca o teu ben nunca fal.
De muitas guisas nos guarda de mal...

Pois esto disse, foi ll’ aparecer


Santa Maria e mui mal trager,
dizendo-lhe: “Venha ch’ or’ acorrer
o por que me deitast’, e non m’ em cal”
De muitas guisas nos guarda de mal...

Esto dito, um diaboo a puxou


dentro no poç’; e ela braadou
por Santa Maria, que a sacou
del, a Reynna nobre spiritual
De muitas guisas nos guarda de mal...

Des que a pos fora disse-ll’ assi.


“Des oge mais non te partas de mim
nen de meu Fillo, e se non, aqui
te tornarei, u non averá al.”
De muitas guisas nos guarda de mal...

Pois passou esto, acordou enton


a monja, tremendo-ll’ o coraçon;
e com espanto daquela vijon
que vira, foi logo a un portal
De muitas guisas nos guarda de mal...

U achou os que fezera vĩyr


aquele con que posera de ss’ir,
e disse-lles: “Mal quisera falir
em leixar Deus por ome terrẽal.
De muitas guisas nos guarda de mal...

Mais, se Deus quiser, esto non será,


nen fora daqui non me veerá
ja mais null’ome; e ide-vos ja,
ca non quer’os panos neno brial.
De muitas quisas nos guarda de mal...

Nen mentre viva nunca amador


aveirei, nen non quer’ eu outr’ amor
senon da Madre de Nostro Senhor,
a Santa Reynna celestial”
De muitas guisas nos guarda de mal...

59
CANTIGAS DE ESCÁRNIO E CANTIGAS DE
MALDIZER

60
PERO GOMES BARROSO

Do que sabia nulha rem nom sei,


polo mundo, que vej'assi andar;
e quand'i cuido, hei log'a cuidar,
per boa fé, o que nunca cuidei:
ca vej'agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.

Aquesto mundo, par Deus, nom é tal


qual eu vi outro, nom há gram sazom;
e por aquesto, no meu coraçom,
aquel desej'e este quero mal:
ca vej'agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.

E nom receo mia morte por en


e, Deus lo sabe, queria morrer;
ca nom vejo de que haja prazer
nem sei amigo de que diga bem:
ca vej'agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.

E se me a mim Deus quisess'atender,


per boa fé, ũa pouca razom,
eu post'havia no meu coraçom
de nunca jamais nẽum bem fazer:
ca vej'agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.

E nom daria rem por viver i


en'este mundo mais do que vivi.
V 592-593

61
AFONSO X

O que foi passar a serra


e nom quis servir a terra,
é ora, entrant'a guerra,
que faroneja?
Pois el agora tam muito erra,
maldito seja!
O que levou os dinheiros
e nom troux'os cavaleiros,
é por nom ir nos primeiros
que faroneja?

Pois que vem cõn'os prostumeiros,


maldito seja!
O que filhou gram soldada
e nunca fez cavalgada,
é por nom ir a Graada
que faroneja?
Se é ric'homem ou há mesnada,
maldito seja!

O que meteu na taleiga


pouc'haver e muita meiga,
é por nom entrar na Veiga
que faroneja?
Pois chus mol é [el] que manteiga,
maldito seja!
V 77
B 494

Nom quer'eu donzela fea


que ant'a mia porta pea.

Nom quer'eu donzela fea


e negra come carvom
que ant'a mia porta pea
nem faça come sisom.
Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Nom quer'eu donzela fea


e velosa come cam
que ant'a mia porta pea
nem faça come alermã.
Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

62
Nom quer'eu donzela fea
que há brancos os cabelos
que ant'a mia porta pea
nem faça come camelos.
Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.

Nom quer'eu donzela fea,


veelha de má[a] coor
que ant'a mia porta pea
nem [me] faça i peior.
Nom quer'eu donzela fea
que ant'a mia porta pea.
B 476

DIEGO PEZELHO

Meu senhor arcebispo, and'eu escomungado


porque fiz lealdade: enganou-mi o pecado.
Soltade-m', ai, senhor,
e jurarei, mandado,
que seja traedor.

Se traiçom fezesse, nunca vo-la diria;


mais, pois fiz lealdade, vel por Santa Maria,
soltade-m', ai, senhor,
e jurarei, mandado,
que seja traedor.

Per mia malaventura, tivi um castelo em Sousa


e dei-o a seu don'e tenho que fiz gram cousa.
Soltade-m', ai, senhor,
e jurarei, mandado,
que seja traedor.

Per meus negros pecados, tive um castelo forte


e dei-o a seu dono, e hei medo da morte.
Soltade-m', ai, senhor,
e jurarei, mandado,
que seja traedor.
B1592
V1124

63
PERO GARCIA BURGALÊS

Roi Queimado morreu com amor


em seus cantares, par Santa Maria,
por ũa dona que gram bem queria;
e por se meter por mais trobador,
porque lh'ela nom quis[o] bem fazer,
feze-s'el em seus cantares morrer;
mais ressurgiu depois ao tercer dia.

Esto fez el por ũa sa senhor


que quer gram bem; e mais vos en diria:
porque cuida que faz i maestria,
enos cantares que fez há sabor
de morrer i e des i d'ar viver.
Esto faz el, que x'o pode fazer,
mais outr'homem per rem non'o faria.

E nom há já de sa morte pavor,


senom sa morte mais la temeria,
mais sabe bem, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for;
e faz-[s'] em seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu — mais quen'o cuidaria!

E se mi Deus a mi desse poder


qual hoj'el há, pois morrer, de viver,
jamais [eu] morte nunca temeria.
B 1380
V 988

Maria Negra, des[a]ventuirada!


E por que quer tantas pissas comprar,
pois lhe na mãa nom querem durar
e lh'assi morrem aa malfada[da]?
E num caralho grande que comprou,
o onte ao serãa o esfolou,
e outra pissa tem já amormada.

E já ela é probe tornada,


comprando pissas, vedes que ventuira!
Pissa que compra pouco lhe dura,
sol que a mete na sa pousada;
ca lhi convém que ali moira entom
de polmoeira ou de torcilhom,
ou, per força, fica end'aaguada.

64
Muit'é pera ventuira menguada,
de tantas pissas no ano perder,
que compra caras, pois lhe vam morrer;
e est'é pola casa molhada
em que as mete, na estrabaria;
[e] pois lhe morrem, a velha sandia
per pissas será em terra deitada.
B 1384
V 993

ROI PAIS DE RIBELA

— Maria Genta, Maria Genta da saia cintada,


u masestes esta noit'ou quem pôs cevada?
Alva, abríades-m'alá!

— Albergámos eu e outra [e]na carreira,


e rapazes com amores furtam ceveira.
Alva, abríades-m'alá!

U eu maj'aquesta noite, houv'i gram cea,


e rapazes com amores furtam avea.
Alva, abríades-m'alá!
B 1439
V 1049

65
JOÃO GARCIA DE GUILADE

Ai dona fea, fostes-vos queixar


que vos nunca louv'en[o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei todavia;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, se Deus mi pardom,


pois havedes [a]tam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero já loar todavia;
e vedes qual será a loaçom:
dona fea, velha e sandia!

Dona fea, nunca vos eu loei


em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já um bom cantar farei
em que vos loarei todavia;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!
B1485
V 1097

Nunca [a]tam gram torto vi


com'eu prendo d'um infançom,
e quantos ena terra som,
todo'lo têm por assi:
o infançom, cada que quer,
vai-se deitar com sa molher
e nulha rem nom dá por mi.

E já me nunca temerá,
ca sempre me tev'em desdém,
des i ar quer sa molher bem
e já sempr'i filhos fará
— siquer três filhos que fiz i,
filha-os todos pera si:
o Demo lev'o que m'en dá!

Em tam gram coita viv'hoj'eu


que nom poderia maior:
vai-se deitar com mia senhor
e diz do leito que é seu
e deita-se a dormir em paz;
des i, se filh'ou filha faz,
nõn'o quer outorgar por meu!
B 1498; V 1108

66
PERO DA PONTE

Eu digo mal, com'home fodimalho,


quanto mais posso daquestes fodidos
e trob'a eles e a seus maridos;
e um deles mi pôs mui grand'espanto:
topou comig'e sobraçou o manto
e quis em mi achantar o caralho.

Ando-lhes fazendo cobras e sões


quanto mais poss', e and'escarnecendo
daquestes putos que s'andam fodendo;
e um deles de noit[e] asseitou-me
e quis-me dar do caralh'[e] errou-me
e lançou, depós mim, os colhões.
B 1626
V 1160

Rubrica:
Esta cantiga fez Pero da Ponte ao infante Dom Manuel, que se começa "E mort'é
Martim Marcos", e na cobra segunda o podem entender.

Mort'é Dom Martim Marcos, ai Deus! Se é verdade


sei ca, se el é morto, morta é torpidade,
morta é bavequia e morta neiciidade,
morta é covardia e morta é maldade.

Se Dom Martinh'é morto, sem prez e sem bondade,


oimais, maos costumes, outro senhor catade;
mais non'o acharedes de Roma atá cidade;
se tal senhor queredes, alhu'lo demandade;

Pero um cavaleiro sei eu, par caridade,


que vos ajudari'a tolher del soidade;
mais [queredes] que vos diga ende bem verdade?
Nom é rei nem conde, mais é-x'outra podestade,

que nom direi, que direi, que nom direi...


B 1655
V 1189

67
AIRAS NUNES

Porque no mundo mengou a verdade,


punhei um dia de a ir buscar,
e, u por ela fui [a] preguntar,
disserom todos: — Alhur la buscade,
ca de tal guisa se foi a perder
que nom podemos en novas haver,
nem já nom anda na irmaindade.

Nos moesteiros dos frades regrados


a demandei, e disserom-m'assi:
— Nom busquedes vós a verdad'aqui,
ca muitos anos havemos passados
que nom morou nosco, per bõa fé,
[nem sabemos u ela agora x'é,]
e d'al havemos maiores coidados.

E em Cistel, u verdade soía


sempre morar, disserom-me que nom
morava i havia gram sazom,
nem frade d'i já a nom conhocia,
nem o abade outrossi, no estar,
sol nom queria que foss'i pousar,
e anda já fora d[a] abadia.

Em Santiago, seend'albergado
em mia pousada, chegarom romeus.
Preguntei-os e disserom: — Par Deus,
muito levade'lo caminh'errado!
Ca, se verdade quiserdes achar,
outro caminho convém a buscar,
ca nom sabem aqui dela mandado.
B 871
V 455

PERO MENDES DA FONSECA

Chegou Paio de más artes


com seu cerame de Chartes;
e nom leeu el nas partes
que chegasse há um mês
e do lũes ao martes
foi comendador d'Ocrês.

68
[E] semelha-me busnardo,
vind'em seu ceramem pardo;
e, u nom houvesse reguardo
em nẽum dos dez e três,
log'houve mant'e tabardo
e foi comendador d'Ocrês.

E chegou per ũa 'strada,


descalço, gram madurgada:
u se nom catavam nada
d'um hom[e] atam rafez,
cobrou manto com espada
e foi comendador d'Ocrês.
B1600
V 1132

GIL PERES CONDE

Os vossos meus maravedis, senhor,


que eu nom houvi, que servi melhor
ou tam bem come outr'a que os dam,
hei-os d'haver enquant'eu vivo for,
ou à mia mort', ou quando mi os darám?

A vossa mia soldada, senhor Rei,


que eu servi e serv'e servirei,
com'outro quem quer a que a dam bem,
hei-a d'haver enquant'a viver hei,
ou à mia mort', ou que mi farám en?

Os vossos meus dinheiros, senhor, nom


pud'eu haver, pero servidos som,
come outros, que os ham de servir;
hei-os d'haver mentr'eu viver, ou pom-
-mi-os à mia mort', ou a quem os vou pedir?

Ca passou temp'e trastempados som,


houve an'e dia e quero-m'en partir.
B 1524

69
Nom é Amor em cas d'e[l]-rei
ca o nom pod'hom'i achar
àa cea nem ao jantar;
a estas horas o busquei
nas pousadas dos privados,
preguntei a seus prelados
por Amor, e non'o achei.

Têm que o nom sab'el-rei


que Amor aqui nom chegou,
que tant'ogano del levou
e nom veo; ben'o busquei
nas tendas dos infanções
e nas dos de criações,
e dizem-[me] todos: — Nom sei.

Perdud'é Amor com el-rei,


porque nunca em hoste vem;
pero xe del[e] algo tem,
direi-vos eu u o busquei:
antr'estes freires tempreiros,
ca já os hespitaleiros
por Amor nom preguntarei.
B 1525

Já eu nom hei por quem trobar


e já nom hei en coraçom,
porque nom hei já quem amar;
por en mi míngua razom,
ca mi filhou Deus mia senhor;
ah, que filh'o Demo maior
quantas cousas que suas som!

Como lh'outra vez já filhou


a cadeira u siia
o Filh'; e porque mi filhou
bõa senhor que havia?
E diz El que nom há molher;
se a nom há, pera que quer
pois tant'à bõa Maria?

Deus nunca mi a mi nada deu


e tolhe-me bõa senhor:
por esto nom creo en'El eu
nem me tenh'en por pecador,
ca me fez mia senhor perder;
catade que mi foi fazer,
confiand'eu no seu amor!

70
Nunca se Deus mig'averrá
se mi nom der mia senhora;
mais como mi o corregerá?
Destroia-m', ante ca morra.
Hom'é: tod'aqueste mal faz,
[como fez já o gram malvaz],
e[m] Sodoma e Gomorra.
B 1527

AFONSO ANES DO COTOM

Bem me cuidei eu, Maria Garcia,


em outro dia, quando vos fodi,
que me nom partiss'en de vós assi
como me parti já, mão vazia,
vel por serviço muito que vos fiz,
que me nom destes, como x'homem diz,
sequer um soldo que ceass'um dia.

Mais desta seerei eu escarmentado:


de nunca foder já outra tal molher
se m'ant'algo na mão nom poser,
ca nom hei porque foda endoado;
e vós, se assi queredes foder,
sabedes como: ide-o fazer
com quem teverdes vistid'e calçado.

Ca me nom vistides nem me calçades,


nem ar sej'eu eno vosso casal;
nem havedes sobre mim poder tal
por que vos foda, se me nom pagades
ante mui bem; e mais vos en direi:
nulho medo, grado a Deus e a el-rei,
nom hei de força que me vós façades.

E, mia dona, quem pregunta nom erra


— e vós, por Deus, mandade preguntar
polos naturaes deste lugar
se foderam nunca, em paz nem em guerra,
ergo se foi por alg'ou por amor.
Id'adubar vossa prol, ai senhor,
ca vedes: grad'a Deus, rei há na terra.
B 1588
V 1120

71
Abadessa, oí dizer
que érades mui sabedor
de tod'o bem; e, por amor
de Deus, querede-vos doer
de mim, que ogano casei,
que bem vos juro que nom sei
mais que um asno de foder.

Ca me fazem en sabedor
de vós que havedes bom sem
de foder e de tod'o bem;
ensinade-me mais, senhor,
como foda, ca o nom sei,
nem padre nem madre nom hei
que m'ensin'e fic'i pastor.

E se eu ensinado vou
de vós, senhor, deste mester
de foder e foder souber
per vós, que me Deus aparou,
cada que per foder direi
Pater Noster e enmentarei
a alma de quem m'ensinou.

E per i podedes gaar,


mia senhor, o reino de Deus,
per ensinar os pobres seus
mais ca por outro jajũar;
e per ensinar a molher
coitada, que a vós veer,
senhor, que nom souber ambrar.
B 1579
V 1111

72
AFONSO MENDES DE BESTEIROS

Dom Foão, que eu sei que há preço de livão,


vedes que fez ena guerra — daquesto sõo certão:
sol que viu os genetes, come boi que fer tavão,
sacudiu-se [e] revolveu-se, al-
çou rab'e foi sa via a Portugal.

Dom Foão, que eu sei que há preço de ligeiro,


vedes que fez ena guerra — daquesto som verdadeiro:
sol que viu os genetes, come bezerro tenreiro,
sacudiu-se [e] revolveu-se, al-
çou rab'e foi sa via a Portugal.

Dom Foão, que eu sei que há prez de liveldade,


vedes que fez [e]na guerra — sabede-o por verdade:
sol que viu os genetes, come cam que sal de grade,
sacudiu-se [e] revolveu-se, al-
çou rab'e foi sa via a Portugal.
B 1558

FERNÃO VELHO

Maria Pérez se maenfestou


noutro dia, ca por [mui] pecador
se sentiu, e log'a Nostro Senhor
pormeteu, polo mal em que andou,
que tevess'um clérig'a seu poder,
polos pecados que lhi faz fazer
o Demo, com que x'ela sempr'andou.

Maenfestou-se ca diz que s'achou


pecador muit', e por en rogador
foi log'a Deus, ca teve por melhor
de guardar a El ca o que a guardou;
e mentre viva, diz que quer teer
um clérigo com que se defender
possa do Demo, que sempre guardou.

73
E pois que bem seus pecados catou,
de sa mort'houv'ela gram pavor
e d'esmolnar houv'ela gram sabor;
e log'entom um clérigo filhou
e deu-lh'a cama em que sol jazer,
e diz que o terrá, mentre viver;
e est'afã todo por Deus filhou.

E pois que s'este preito começou


antr'eles ambos houve grand'amor
antr'ela sempr'[e] o Demo maior,
atá que se Balteira confessou;
mais, pois que vio o clérigo caer
antr'eles ambos, houv'i a perder
o Demo, des que s'ela confessou.
B 1504

JOÃO SOARES COELHO

Luzia Sánchez, jazedes em gram falha


comigo, que nom fodo mais nemigalha
d'ũa vez; e, pois fodo, se Deus mi valha,
fic'end'afrontado bem por tercer dia.
Par Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia,
se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.

Vejo-vos jazer migo muit'aguada,


Luzia Sánchez, porque nom fodo nada;
mais se eu vos per i houvesse pagada,
pois eu foder nom posso, peer-vos-ia.
Par Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia,
se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.

Deu-mi o Demo esta pissuça cativa,


que já nom pode sol cospir a saíva
e, de pram, semelha mais morta ca viva,
e se lh'ardess'a casa, nom s'ergeria.
Par Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia,
se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.

Deitarom-vos comigo os meus pecados;


cuidades de mi preitos tam desguisados,
cuidades dos colhões, que trag'inchados,
ca o som com foder e é com maloutia.
Par Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia,
se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.
V 1017

74
FERNANDO ESQUIO

A um frade dizem escaralhado,


e faz pecado quem lho vai dizer,
ca, pois el sabe arreitar de foder,
cuid'eu que gaj'é de piss'arreitado;
e pois emprenha estas com que jaz
e faze filhos e filhas assaz,
ante lhe dig'eu bem encaralhado.

Escaralhado nunca eu diria,


mais que traje ante caralho arreite,
ao que tantas molheres de leite
tem, ca lhe parirom três em um dia,
e outras muitas prenhadas que tem;
e atal frade cuid'eu que mui bem
encaralhado per esto seria.

Escaralhado nom pode seer


o que tantas filhas fez em Marinha
e que tem ora outra pastorinha
prenhe, que ora quer encaecer,
e outras muitas molheres que fode;
e atal frade bem cuid'eu que pode
encaralhado per esto seer.
B 1604
V 1136

JOÃO DE GAIA

Rubrica:

Rubrica anterior:
Diz ũa cantiga de vilãao: "A pee d'ũa torre, baila corpo probo. Vedes o cós, ai
cavaleiro!". E Joam de [...]
Rubrica posterior:
Esta cantiga seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos, que diz a refrom:
"Vedes lo cós, ai, cavaleiro!" E feze-a a um vilãao que foi alfaiate do bispo Dom
Domingos Jardo de Lixbõa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o
bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar ant'el; e feze-o el-rei
Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de Sam Nicolao e chamarom-lhi
Joam Fernandes de Sam Nicolao.

75
Vosso pai na rua
ant'a porta sua:
vede'lo cós, ai cavaleiro!

Ant'a sa pousada,
em saia 'pertada:
vede'lo cós, ai cavaleiro

Em meio da praça,
em saia de baraça:
vede'lo cós, ai cavaleiro!
B 1604
V 1136

PERO VIVÃES

Ũa dona de que falar oí


desej'a veer e nom posso guarir
sen'a veer; e sei que, se a vir,
u a nom vir, cuid'a morrer log'i;
pois que a vir, u a nom vir, prazer
de mi nem d'al nunca cuid'a veer.

A que nom vi [e] m'em tal coita tem,


sol que a vir, u a nom vir, morrerei;
pois que a vir, u a nom vir, nom sei
rem que me guarde de morte por en;
pois que a vir, u a nom vir, prazer
de mi nem d'al nunca cuid'a veer.

A que nom vi e mi assi vai matar,


sol que a vir, u a vir, matar-m'-á;
pois que a vir, u a nom vir, nom há
rem que me possa de morte guardar;
pois que a vir, u a nom vir, prazer
de mi nem d'al nunca cuid'a veer.
B 447

76
AFONSO SANCHES

Conhocedes a donzela
por que trobei, que havia
nome Dona Biringela?
Vedes camanha perfia
e cousa tam desguisada:
des que ora foi casada
chamam-lhe Dona Charia.

D'al and'ora mais nojado,


se Deus me de mal defenda:
estand'ora segurado,
um, que maa morte prenda
e o Demo cedo tome,
quis-la chamar per seu nome
e chamou-lhe Dona Ousenda.

Pero se tem per fremosa,


mais que s'ela poder pode,
pola Virgem gloriosa,
um homem que fede a bode
e cedo seja na forca,
estand'a cerrar-lhe a lorca,
chamou-lhe Dona Gondrode.

E par Deus, o poderoso,


que fez esta senhor minha,
d'al and'ora mais nojoso:
do demo d'ũa meninha,
d'acolá bem de Zamora,
u lhe quis chamar senhora,
chamou-lhe Dona Gontinha.
B 415
V 26

77
JOÃO PERES DE ABOIM E LOURENÇO

— Lourenço, soías tu guarecer


como podias, per teu citolom,
ou bem ou mal, nom ti dig'eu de nom,
e vejo-te de trobar trameter;
e quero-t'eu desto desenganar:
bem tanto sabes tu que é trobar
bem quanto sab'o asno de leer.

— Joam d'Avoim, já me cometer


veerom muitos por esta razom
que mi diziam, se Deus mi perdom,
que nom sabia 'm trobar entender;
e veerom por en comig'entençar,
e figi-os eu vençudos ficar;
e cuido-vos deste preito vencer.

— Lourenço, serias mui sabedor


se me vencesses de trobar nem d'al,
ca bem sei eu quem troba bem ou mal,
que nom sabe mais nẽum trobador;
e por aquesto te desenganei;
e vês, Lourenço, onde cho direi:
quita-te sempre do que teu nom for.

— Joam d'Avoim, por Nostro Senhor,


por que leixarei eu trobar atal
que mui bem faç'e que muito mi val?
Des i ar gradece-mi-o mia senhor,
por que o faç'; e, pois eu tod'est'hei,
o trobar nunca [o] eu leixarei,
poilo bem faç'e hei [i] gram sabor.
V 1010

78
CANCIONEIRO GERAL DE GARCIA DE
RESENDE

79
Porque a natural condição dos Portugueses é nunca escreverem cousa que façam,
sendo dinas de grande memória, muitos e mui grandes feitos de guerra; paz e vertudes,
de ciência, manhas e gentilezas sam esquecidos. Que, se os escritores se quisessem
acupar a verdadeiramente escrever nos feitos de Roma, Troia e todas outras antigas
cronicas e estorias, nam achariam mores façanhas nem mais notaveis feitos que os que
dos nossos naturaes se podiam escrever, assi dos tempos passados como d'agora: tantos
reinos e senhorios, cidades, vilas, castelos, per mar e per terra tantas mil leguas, per
força d'armas tomados, sendo tanta a multidão de jente dos contrairos e tam pouca a dos
nossos, sostidos com tantos trabalhos, guerras, fomes e cercos; tam longe d'esperança de
ser socorridos, senhoreando per força d'armas tanta parte de Africa, tendo tantas
cidades, vilas e fortalezas tomadas e continuamente em guerra sem nunca cessar; e assi
Guinee, sendo muitos reis grandes e grandes senhores seus vassalos e trebutarios, e
muita parte de Etiopia, Arabia, Persia e Indeas, onde tantos reis mouros e gentios e
grandes senhores sam per força feitos seus suditos e servidores, pagando-lhe grandes
pareas e trebutos, e muitos destes pelejando por nós, debaixo da bandeira de Cristo, com
os nossos capitãaes, contra os seus naturaes, conquistando quatro mil leguas por mar,
que nenhũas armadas do Soldam nem outro nenhum gram rei nem senhor nom ousam
navegar com medo das nossas, perdendo seus tratos, rendas e vidas; tornando tantos
reinos e senhorios com inumeravel jente aa fee de Jesus Cristo, recebendo agua do santo
bautismo; e outras notaveis cousas que se nam podem em pouco escrever.
Todos estes feitos e outros muitos d’outras sustancias nam sam devulgados
como foram, se jente d’outra naçam os fizera. E causa isto serem tam confiados de si,
que nam querem confessar que nenhũus feitos sam maiores que os que cada ũu faz e
faria, se o nisso metessem. E por esta mesma causa, muito alto e poderoso princepe,
muitas cousas de folgar e gentilezas sam perdidas, sem haver delas noticia, no qual
conto entra a arte de trovar,/ que em todo o tempo foi mui estimadada, e com ela Nosso
Senhor louvado, como nos hinos e canticos que na Santa Igreja se cantam se veraa.E
assi muitos emperadores, reis e pessoas de memoria, polos rimances e trovas sabemos
suas estorias. E nas cortes dos grandes princepes é mui necessaria na jentileza, amores,
justas e momos, e tambem para que maos trajos e envenções fazem, per trovas sam
castigados e lhe dam suas emendas, como no livro ao diante se veraa. E se as que sam
perdidas dos nossos passados se poderam haver e dos presentes s’escreveram, creo que

80
esses grandes poetas, que per tantas partes sam espalhados, nam teveram tanta fama
como têm.
E, porque, Senhor, as outras cousas sam em si tam grandes que por sua grandeza
e meu fraco entender nam devo de tocar nelas, nesta, que é a somenos, por em algũa
parte satisfazer ao desejo que sempre tive de fazer algũa cousa em que Vossa Alteza
fosse servido e tomasse desenfadamento, determinei ajuntar algũas obras que pude
haver d’algũs passados e presentes e ordenar este livro, nam pera por elas mostrar quaes
foram e sam, mas para os que mais sabem s'espertarem a folgar d'escrever e trazer aa
memoria os outros grandes feitos, nos quaes nam sam dino de meter a mão.

81
Joan de Roiz de Castelo Branco:

Cantiga sua partindo-se

Senhora, partem tão tristes


meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,


tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Vilancete do Conde do Vimioso

Meu bem, sem vos ver,


se vivo um dia,
viver não queria.

Caland’ e sofrendo
meu mal sem medida,
mil mortes na vida
sinto não vos vendo.
E pois que vivendo
Morro todavia,
Viver não queria.

82
Joan de Menezes:

Outro vilancete de Dom Joam a ũa escrava sua (pg.151)

Cativo sam de cativa,


servo d’ũa servidor
senhora de seu senhor.

Porque sua fermesura,


sua gracia gratis data,
o triste que tarde mata
é por mor desaventura.
Que mais val a sepultura
de quem é seu servidor
qu’aa vida de seu senhor.

Nam me daa catividade,


nem vida pera viver,
nem dita pera morrer
e comprir sua vontade.
Mas paixam sem piedade,
ũa dor sobr’outra dor,
que faz servo do senhor.

Assi moiro mans’ e manso,


nunca leixo de penar
nem desejo mais descanso
que morrer por acabar.
O que triste desejar
para quem com tanta dor
se fez servo de senhor!

83
Francisco Sá de Miranda:

Antre tremor e desejo,


vã espernça e vã dor,
antre amor e desamor,
meu triste coração vejo.

Nestes extremos cativo


ando sem fazer mudança,
e já vivi d'esperança
e agora vivo de choro vivo.
Contra mi mesmo pelejo,
vem d'ua dor outra dor
e d'um desejo maior
nace outro mor desejo

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor da gente fugia,


Antes que esta assi crecesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?
.

Cerra a serpente os ouvidos


à voz do encantador;
eu não, e agora com dor
quero perder meus sentidos.
Os que mais sabem do mar
fogem d' ouvir as sereas;
eu não me soube guardar:
fui-vos ouvir nomear,
fiz minh' alma e vida alheas.

84
Coitado, quem me dará
novas de mim ond’estou?
Pois dizeis que não sou lá
e cá comigo não vou.

Tod’este tempo, senhora,


sempre por vós preguntei,
mas que farei que já agora
de vós nem de mim não sei?
Olhe vossa mercê lá
se me tem, se me matou,
porqu’eu vos juro que cá
morto nem vivo não vou.

Jorge d’ Aguiar

De Jorge d’Aguiar contr’as molheres.

Esforça-te meu coração,


não te mates, se quiseres,
lembra-te que são molheres.

Lembra-te qu’é por nacer


nenhua que não errasse
lembrete que seu prazer,
por bondade e merecer,
não vi que dele gostasse,
pois não te des à paixão,
toma prazer se poderes,
lembra-te que são molheres.

Descansa, triste, descansa,


que seus males sam vinganças,
tuas lagrimas amansa,
leix’as suas esperanças,
ca pois naçem sem rezão,
nunca por ella lh’esperes;
lembra-te que são molheres.

Tuas mui grandes firmezas,


tuas grandes perdições
suas desleais nações

85
causaram tuas tristezas.
Pois não te mates em vão,
que quanto mais as quiseres,
verás que são as molheres.

Que te presta padecer,


que t’aproveita chorar,
pois nunc’outras ão-de-ser,
nem se hão nunca de mudar.
Deix’-as com sua nação,
seu bem nunca lho esperes;
lembra-te que são molheres.

Não te mates cruamente


por que fez ta grande errada,
que quem de si se não sente,
por ti nam lhe dará nada.
Vive lançando pregão
por u fores e vieres,
que são molheres, molheres.

Cabo

Espanha foi já perdida


por Letabla hûa vez,
e a Troia destroida
por males qu’Elena fez.
Desabafa, coração,
vive, não te desesperes,
que quem fez pecar Adão
foi a mãe destas molheres.

86
Coração, já repousavas,
já não tinhas sojeição,
já vivias, já folgavas;
Pois por que te sogigavas
outra vez, meu coração?

Sofre, pois te não sofreste


na vida, que já vivias;
sofre, pois te tu perdeste;
sofre, pois não conheceste
como t'outra vez perdias.
Sofre, pois já livre estavas
e quiseste sojeição;
sofres, pois te não lembravas
das dores de qu’ escapavas,
sofre, sofre, coração!

Bernardim Ribeiro

D’esperança em esperança
pouco a pouco me levou
grand’engano ou confiança,
que me tão longe leixou.
Se m’isto tomara outrora,
cuidara de ver-lhe fim,
mas qu’ei-de cuidar j’agora
sem esperanla e sem mim?

Cantiga sua à senhora Maria Coresma

Uns esperam a Coresma


pera se nela salvar,
eu perdi-me nela mesma
pera nunca cobrar.

Mas com esta perda tal


eu m’ei por muito bem ganhado,
porque o milhor de meu mal
está todo no cuidado.

Os que cuidam qu’a Coresma


não é pera condenar,
se a virem ela mesma
mal se poderão salvar.

87
Antre mim mesmo e mim
não sei que s’alevantou
que tão meu imigo sou.

Uns tempos com grand’engano


vivi eu mesmo comigo,
agora no mor perigo
se me descobre o mor dano.
Caro custa um desengano
e pois m’este não matou
quão caro que me custou.

De mim me sou feito alheio,


antr’o cuidado e cuidado
está um mal derramado,
que por mal grande me veo.
Nova dor, novo receo
foi este que me tomou
assi me tem, assi estou.

D. Joam Manuel

Suas a ua senhora sem se nomear

Quem, sem lho eu merecer,


me causou mal tão crecido,
nunca Deos lhe dê prazer
nem marido.
Todo seu segredo seja
descuberto,
nunca so desejo veja
comprido com fim onesto.

E todos os seus amigos


lhe queiram mal de verdade
ajam dela seus imigos
piadade.
E de quem for namorada,
cada dia,
se veja desprezada
que moira de fantasia.

Deos lhe mande tristes fadas,


seus sospiros e gemidos

88
sejam dele respondidos
com rinchadas.
Mais que ele seja formosa
a terceita,
seja dela tão raivosa
que se torne feiticeira.

Bocado quente nem frio


que dele fique da cea
nem muito menos cadea,
cabelos seus por pavio
carta queimada e bebida,
que lhe dem,
a façam menos querida,
querendo-lh’ela mor bem.

Quanto bem fantansiar


polo contrairo lhe venha
e quanto mal esperar
tanto venha.
Ao pé da fresta adormeça,
se vier,
e cada dia avorreça
a vida mais qu’o morrer.

Fim

Com muito prazer se vá


e ela fique chorando,
ande sempre preguntando:
— casou já?
Respondam: — Por certo hão
que é casado
para que fique vingado
Dom João.

89
Regra sua pera quem quiser viver em paz

Ouve, vê e cela
e viverás vida folgada.
Tua porta cerrarás,
teu vezinho louvarás
quanto podes não farás,
quanto sabes não dirás,
quanto vês não julgarás,
quanto ouves não crerás,
se queres viver em paz.
Seis cousas sempre vê,
quando falares te mando:
de quem falas, onde e quê,
e a quem, como e quando.
Nunca fies nem perfies,
nem a outro injuries,
não estês muito na praça,
nem te rias de quem passa,
seja teu todo o que vestes;
a ribaltos não doestes,
não cavalgarás em potro,
nem ta molher gabes a outro;
Não cures de ser picão
nem travar contra rezão.
Assi lograras tas cãs
com tuas queixadas sãs.

90
João Rodriguez de Sá

Trovas de João Rodriguez de Sá, partindo donde ficava ua molher

Grão descanso levaria


meu coração se sentisse,
senhora, qu’eu nom deria
que, depois que me partisse,
vos lembrásseis algum dia
de mim, que mais nom queria
outro bem nem galardão,
de quanta rezão
com rezão sei que teria
de pedir satisfação.

Satisfação do passado,
tempo também despendido,
bem despeso, bem gastado
em trazer quanto cuidado
por vós trago no sentido.
Que por ser milhor servido
nom posso servir em al,
ainda mal,
vosso merecer sobido
pera mim tão desigual.

Desigual, porque nom posso,


sem vós serdes deservida,
dizer que sofro esta vida,
senhora, porque sou vosso,
até que seja perdida.
Mas sofrer a sem medida
pena, que sofro em calar,
faz dobrar
e ser muito mais crecida
a dor que me quer matar.

Matar, porque me convém


nom convém, mas é forçado
partir-me de vós, meu bem,
meu bem sempre desejado,
Mas que sois meu mal poré.
Pois sabendo que non tem
outrem poder de me dar
vida e tirar,
nom ma dais, nem a ninguém
o poder de m’acabar.

91
Acabar de ver a fim
que me der minha ventura,
a ventura com que vim
onde vossa fermosura
vos deu poder contra mim.
Mas bem sei que será assi
como cada dia brado,
pois apartado
cedo m’ei-de ver daqui
de vossa vista alogado.

Fim

Alongado de vos ver


e co este apartamento
sei que comprido há-de ser
meu desejo e meu tormento
s’acabará co viver.
Mas que prestará morrer,
pois na mesma morte sei
que nom leixarei
muitas mais penas sofrer
das que na vida passei.

Alvaro de Brito

Trovas d’ Alvaro de Brito fengindo navegando com tormenta, grosando ũa cantiga


do camareiro-moor que diz: Cuidados deixai-m’agora

Cuidados deixai-me’agora
cuidar meu maior cuidado
com que meu coraçam chora,
porque vou de foz em fora
de prazer desamarrado,
com tam forte tempestade,
que nam posso portar vela.
Com tam grande saudade,
com tam pouca piadade
perdimentos me revela.

Dexem-me vossos rumores


enquanto possa dizer
meus sospirados clamores

92
de tristezas, de[s]favores,
dores de meu padecer.
No contrairo do que quero
ventura me faz andar
agro caminho tam fero,
que penando desespero
de viver sem me matar.

Penar me faz conhecer


em minha forçada via
quam longe sam de prazer,
conhecendo meu querer
amar mais que me compria.
Com desconsoloda vida,
de perigos tam mortaes,
tam ferida, tam corrida,
oh minha triste partida
quantos males me causaes!

Neste negro navegar


grandes agonias sento,
em largas coitas passar
sam acerca de dobrar
com tormentas meu tormento.
Arvor seca vou correndo
sobre bancos de discordia,
antre baixas me perdendo,
nem destreza me valendo,
nem perdir misericordia.

Vou assi quasi perdido,


levo rota de trestura,
bem querendo, mal querido,
onde penso ter havido
o cabo de desventura;
nom podendo resestir
a meu gram padecimento
d’amar sem poder partir
a quem mostra nom sentir
quanto mal por ela sento.

Em vagas de mar aceso


contra vento e sem maree,
vejo meu prazer despeso,
vejo-me remeiro preso
em centi[n]a de galee.
Nam acho terra segura
que tenha seguro porto,
nem que haja mim cura
nestas ondas d’amargura,

93
de mil mortes vivo morto.

Assi mal afortunado


nas refegas destes mares,
de cuidados carregado,
contino desatinado,
guarnecido de pesares,
com afrontas nom achando
onde me possa ancorar,
contrairos tempos pairando,
sem governo governando
todo meu desgovernar.

Nem gemer minhas paixões,


nem chorar, nem sospirar,
nem fazer lamentações
a minhas trebulações
nada me pode prestar.
Estorcendo toda hora
sem conto penar sobejo,
brandando vou: – Oo senhora,
socorrei quem vos adora,
vós meu bem e meu desejo!

Quanto mais constante sam


em vos manter minha fee.
tanto mais sem compaixam,
por me dar maior paixam,
vosso bem contra mim ee.
De soverano poder,
vós, que podeis me salvai,
ou por menos mal sofrer,
pois me nam quereis valer,
sem dilatar me matai.

Fim

Quem pode sofrer meu mal,


quem vio marteiro tam vivo
de dano tam creminal,
onde nom nacer mais val
que padecer tam esquivo!
Oh dama, em tal graveza
em que me fazeis morrer,
vós, primor de gentileza,
cece ja vossa crueza,
doia-vos ver-me perder.

94
Garcia de Resende

Trovas que Garcia de Resende fez à morte de Dona Ines de Castro, que El-Rei Dom
Afonso, o Quarto, de Portugal, matou em Coimbra, por o principe D. Pedro, seu filho,
a ter como mulher, e, polo bem que lhe queria, nam queria casar. Endereçadas às
damas.

Senhoras, s'algum senhor


vos quiser bem ou servir,
quem tomar tal servidor
eu lhe quero descobrir
o galardam do amor.
Por Sua mercê saber
o que deve de fazer,
vej'o que fez esta dama,
que de si vos daraa fama,
s'estas trovas quereis ler.

Fala Dona Inês

– Qual seraa o coraçam


tam cru e sem piadade,
que lhe não cause paixam
ũa tam gram crueldade
e morte tam sem rezam?
Triste de mim, inocente,
que por ter muito fervente
lealdade, fee, amor
ò princepe, meu senhor,
me mataram cruamente!

A minha desaventura
nam contente d'acabar-me,
por me dar maior tristura
me foi pôr em tant'altura,
para d'alto derribar-me.
Que, se me matara alguem,
antes de ter tanto bem,
em tais chamas nam ardera,
pai, filhos nam conhecera,
nem me chorara ninguem.

Eu era moça, menina,


per nome Dona Ines
de Castro, e de tal doutrina
e vertudes qu'era dina
de meu mal ser ò revés.
Vivia sem me lembrar
que paixam podia dar
nem dá-la ninguem a mim.

95
Foi-m'o princepe olhar,
por seu nojo e minha fim!

Começou-m'a desejar,
trabalhou por me servir;
Fortuna foi ordenar
dous corações conformar
a ũa vontade vir.
Conheceo-me, conheci-o,
quis-me bem e eu a ele,
perdeo-me, tambem perdi-o;
nunca tee morte foi frio
o bem que triste pus nele.

Dei-lhe minha liberdade,


nam senti perda de fama,
pus nele minha verdade,
quis fazer sua vontade
sendo mui fremosa dama.
Por m'estas obras pagar
nunca jamais quis casar;
polo qual aconselhado
foi El-Rei qu'era forçado,
polo seu, de me matar.

Estava mui acatada


como princesa servida,
em meus paços mui honrada,
de tudo mui abastada,
de meu senhor mui querida.
Estando mui de vaguar,
bem fora de tal cuidar,
em Coimbra d'assessego,
polos campos de Mondego
cavaleiros vi somar.

Como as cousas qu'ham-de-ser


logo dam no coraçam,
comecei entresticer
e comigo soo dizer:
– Estes homens donde irão?
E tanto que que preguntei,
soube logo que era El-Rei.
Quando o vi tam apressado,
meu coraçam trespassado
foi que nunca mais falei!

E quando vi que decia,


sahi à porta da sala;
devinhando o que queria

96
com gram choro e cortesia
lhe fiz ũa triste fala.
Meus filhos pus derredor
de mim, com gram homildade,
mui cortada de temor
lhe disse: – Havei, senhor,
desta triste piadade!

Nam possa mais a paixam


que o que deveis fazer,
metei nisso bem a mam,
qu'ee de fraco coraçam
sem porquê matar molher.
Quanto mais a mim, que dam
culpa, nam sendo rezam,
por ser mãi dos inocentes
qu'ante vós estam presentes,
os quaes vossos netos sam.

E têm tam pouca idade,


que, se nam forem criados
de mim, soo com saudade
e sua gram orfindade
morreram desemparados.
Olhe bem quanta crueza
faraa nisto Voss'Alteza
e tambem, Senhor, olhai,
pois do Princepe sois pai,
nam lhe deis tanta tristeza.

Lembre-vos o grand'amor
que me vosso filho tem
e que sentiraa gram dor
morrer-lhe tal servidor
por lhe querer grande bem.
Que s'algũ erro fizera
fora bem que padecera
e qu'este filhos ficaram
órfãaos, tristes, e buscaram
quem deles paixam houvera.

Mas pois eu nunca errei


e sempre mereci mais,
deveis, poderoso Rei,
nam quebrantar vossa lei,
que, se moiro, quebrantais.
Usai mais de piadade
que de rigor nem vontade,
havei doo, senhor, de mim
nam me deis tam triste fim,

97
pois que nunca fiz maldade.

El-Rei, vendo como estava,


houve de mim compaixam
e vio o que nam oulhava:
qu'eu a ele não errava
nem fizera traiçam.
E vendo quam de verdade
tive amor e lealdade
oo Princepe cuja são,
pôde mais a piadade
que a determinaçam.

Que se m'ele defendera


qu’a seu filho nam amasse
e lh'eu nam obedecera,
entam com rezam podera
dar-m'a moorte qu'ordenasse.
Mas vendo que nenhũ hora
des que naci ategora
nunca nisso me falou,
quando se disto lembrou,
foi-se pola porta fora,

Com seu rosto lagrimoso,


co proposito mudado,
muito triste, mui cuidoso,
como rei mui piadoso,
mui cristam e esforçado.
Ũ daqueles que trazia
consigo na companhia,
cavaleiro desalmado,
detras dele mui irado
estas palavras dezia:

– Senhor, vossa piadade


é dina de reprender,
pois que sem necessidade
mudaram vossa vontade
lágrimas d’ũa molher!
E quereis qu'abarregado,
com filhos como casado
estê, Senhor, vosso filho!
De vós mais me maravilho
que dele, qu'ee namorado!

Se a logo nam matais,


nam sereis nunca temido
nem faram o que mandais,
pois tam cedo vos mudais

98
do conselho qu'era havido.
Olhai quam justa querela
tendes, pois por amor dela
vosso filho quer estar
sem casar e nos quer dar
muita guerra com Castela.

Com sua morte escusareis


muitas mortes, muitos danos;
vós, senhor, descansareis
e a vós e a nós dareis
paz para duzentos anos.
O princepe casaraa,
filhos de bençam teraa,
seraa fora de pecado,
qu'agora seja anojado,
amenhã lh'esqueceraa.

E ouvindo seu dizer,


El-Rei ficou mui torvado
por se em tais estremos ver
e que havia de fazer
ou ũ ou outro forçado.
Desejava dar-me vida,
por lhe não ter merecida
a morte nem nenhũ mal,
sentia pena mortal
por ter feito tal partida.

E vendo que se lhe dava


a ele tod'eesta culpa,
e que tanto o apertava,
disse aaquele que bradava:
– Minha tenção me desculpa.
Se o vós quereis fazer,
fazei-o sem mo dizer,
qu'eu nisso não mando nada,
nem vejo eessa coitada
por que deva de morrer.

Fim

Dous cavaleiros irosos,


que tais palavras lh'ouviram,
mui crus e nam piadosos,
perversos, desamorosos,
contra mim rijo se viram.
Com as espadas na mam
m'atravessam o coraçam,
a confissam me tolheram.

99
Este é o galardam
que meus amores me deram!

Garcia de Resende às damas

Senhoras, nam hajais medo,


nam receeis fazer bem,
tende o coraçam mui quedo
e vossas mercês veram, cedo
quam grandes beens do bem vem.
Nam torvem vosso sentido
as cousas qu’haveis ouvido,
porqu’ee lei de deos d’amor:
bem vertude nem primor
nunca jamais ser perdido.

Por verdes o galardam


que do amor recebeo,
porque por ele morreo,
nestas trovas saberam
o que ganhou ou perdeo:
nam perdeo senam a vida,
que pudeera ser perdida
sem na ninguem conhecer,
e ganhou por bem querer
ser sua morte tam sentida.

Ganhou mais que sendo dantes


nom mais que fermosa dama,
serem seus filhos ifantes,
seus amores abastantes
de deixarem tanta fama.
Outra moor honra direi:
como o Principe foi rei,
sem tardar, mas mui asinha
a fez alçar por rainha,
sendo morta o fez por lei.

Os principais reis d’Espanha,


de Portugal e Castela,
e Emperador d’Alemanha,
olhai, que honra tamanha,
que todos descendem dela.

100
Rei de Napoles também,
Duque de Bregonha, a quem
todo França medo havia,
e em campo El-Rei vencia,
todos estes dela vem.

Por verdes como vingou


a morte que lh’ordenaram,
como foi rei trabalhou
e fez tanto que tomou
aqueles que a mataram.
A ũ fez espedaçar
e ò outro fez tirar
por detras o coração.
Pois amor daa gualardam,
nam deixe ninguem d’amar!

Cabo

Em todos seus testamentos


a decrarou por molher,
e por s’isto melhor crer
fez dous ricos moimentos
em qu’ambos vereis jazer:
rei, rainha, coroados,
mui juntos, nam apartados,
no cruzeiro d’Alcobaça.
Quem poder fazer bem faça,
pois por bem se dam tais grados.

101
Duarte da Gama

Nam sei quem possa viver


neste reino ja contente,
pois a desordem na jente
nam quer leixar de crecer.
A qual vai tam sem medida
que se nam pode sofrer,
nem ha i quem possa ter
boa vida.

Ũus vejo casas fazer


e falar por antresoilos
que creio que têm mais doilos
do qu’eu tenho de comer.
Outros guarda-roupa quartos
tambem vejo nomear
que ja deviam d’estar
d’isso fartos.

Outros vejo ter cadeiras


de justo e de cruzado
e chamarem-lhes d’estado,
nam entendo taes maneiras!
Outros vendem a herdade
por comprar tapeçaria,
dos quaes eu ser nam queria
na verdade.

Outros sei que vão chamar


suas mãis minha senhora,
que muito milhor lhe fora
tal cousa nunca falar.
Outros se vão, por trazer
cabeleiras, trosquiar,
podendo-se desviar
de o fazer.

Outros nom têm moradia


mais de seiscentos reaes,
os quaes querem ser iguaes
cos fidalgos de valia.
Outros por s’afidalgar
andam aa brida continos
em sindeiros que sam dinos
de coutar.

Outros vam trazer atados

102
ũs lencinhos no pescoço,
que com gram pedra nũ poço
deviam de ser lançados.
Outros sem ser mancipados
sendo menores d’idade,
andam ja com vaidade
agravados.

Outros sem lhe pertencer


às molheres poem o dom,
havendo que é mui boom,
sem d’aquisso se correr.
Outros paje vão chamar
a ũu moço dos que tem,
que às vezes lhe convem
almofaçar.

Outros ham por cousa boa


nam ter homens nem cavalos,
e despreçam os vassalos
por se virem a Lixboa.
Os quaes, se fossem lembrados,
das pendenças e das guerras,
folgariam de ter terras
e criados.

Ja ninguem nam quer usar


da nobraza dos passados,
senam vinte mil cruzados
ver se podem ajuntar.
S’algũu quer ser caçador
nom é senam de dinheiro,
nem ha ja nenhũ monteiro
gram senhor.

Frei Paio com sua renda,


monteiros e caçadores,
escudeiros, servidores
lh’acharam e nam fazenda.
Tinha lei de cavaleiro
na maneira do viver
e quis antes isto ter
ca dinheiro.

O almirante passado
Frei Paio ja precedeo,
pois na guerra despendeo
mais do que tinha ganhado.
E leixou endividado
seu filho, como sabeis,

103
mas em fim acha-lo-eis
mui honrado.

Cos mortos quis alegar,


por pena nam padecerem
os que disto carecerem,
sem os vivos lhe louvar.
Os quaes, se louvar quisesse,
por ventura cessaria,
com temor que nam teria
que dissesse.

Outros querem ir andar


na corte sendo casados
e se fazem de desterrados
donde deviam d’estar.
Outros se querem vender
qu’andam com damas d’amores,
que nam sam merecedores
de as ver.

Outros nam querem verdade


falar com ribaldaria,
falando por senhoria
A homeens sem dinidade.
Ó usura conhecida,
tratada por tanta jente,
porqu’es no mundo presente
tam crecida?

Na cobiça dos prelados


nom é ja pera falar,
qu’em vender mais que rezar
e em comprar sam acupados!
Ũu soo nam meto aqui
que se nam nomearaa,
e cada ũu tomaraa
que é por si.

As donas, por competir


em terem cousas de Frandes,
as fazendas muito grandes
querem fazer destroir.
As donzelas e[m] lavores
a isso tambem lh’ajudam.
Nam sei porque nam se mudam
taes erros!

Os desvairados vestidos,
que se mudam cada dia,

104
nom vejo nehũa via
para serem comedidos.
Que se ũu galante traz
ũu vestido qu’ele corte,
qualquer homem doutra sorte
outro faz.

Porque como fez foãao


ũu capuz muito comprido,
polo reino foi sabido
todos dam ja pelo chão.
Quem o portugues pintou
em Roma, como se diz,
foi nisso mui boom juiz
e acertou.

A maneira d’escrever,
que costumam nos ditados,
é chamarem ja preçados
a mil homeens sem o ser.
E quando na baixa jente
o costume for jeral,
ha-de vir a principal,
a excelente.

Em qualquer aldeazinha
achareis tal corruçam
qu’a molher do escrivam
cuida que é ũa rainha.
E tambem os lavradores
com suas maas novidades
querem ter as vaidades
dos senhores.

Na Chamusca vi ũu dia
ũa filha d’ũu vilãao
lavrando d’almarafãao,
o qual pera si fazia.
Daqui virão os chapins
e tambem os verdugados
e após eles trançados
e coxins.

O cavalo desbocado
nunca se pode parar
sem primeiro se cansar
entam logo é parado.
Assi creio que faremos
nos gastos demasiados,
e depois de bem cansados,

105
pararemos.
É prudencia conhecida
por esta comparaçam
nam nos ir El-Rei à mão
estes dez anos de vida.
A qual lh’acrecentaraa
quem lha deu por muitos anos,
com que todos estes danos
tiraraa.

Bem assi como tirou


outros muitos que sabemos,
com que tal descanso temos,
que jamais nam se cuidou.
Se nos meterem em ordem
com força d’ordenaçõees,
tirar-s’-á dos coraçõees
a desordem.

A cidade de Cartago,
depois de ser destroida,
fez em Roma moor estrago
que antes de ser perdida:
os romãos des que venceram
foram dos vicios vencidos,
e seus louvores crecidos
pereceram.

Assi por nam perecerem


os tam antigos louvores
dos nossos predecessores,
convem de nos reprenderem
dos vicios e das torpeza
em que queremos viver,
antes de se converter
em natureza.

Pois se eu em tais desordens


soo quiser ser ordenado
hei-de ser apedrejado
sem me valerem as ordeens.
Molhar-m’-ei, em que me pês,
polo tempo e sazam
pois é natural; razam
a do Marquês.

Se Martim Vaz de Siqueira


neste tempo s’acertara,
que doces cousas tocara
e por quam gentil maneira!

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Nom ha i mais antremeses
no mundo oniversal
do que há em Portugal
nos portugueses!

Em Roma, segundo lemos,


ordenaram dous censores,
os quaes eram reprensores
dos vicios e dos extremos:
lembravam aos principaes
e òs pequenos o que tinham
e a todos donde vinham
e seus pais

Fim

Assi no tempo presente,


nam seria muito mal
haver i oficial
de desenganar a jente.
O qual em mi acharia
o que quero reprender
e quiçaes arrepender
me faria.

1
DUBY, G
2
DUBY, G. (1988) p.156
3
ROGEMONT, D. (1970)
4
LAPA, M. R. (1965 b) p. 202
5
CIDADE, H. (1959) p. VIII
6
RIQUER, M. (1953) p. 9
7
CORREIA, N. (1978) p.42
8
SARAIVA, A. J. (1950) v 1, p. 259

107
9
SARAIVA, A. J. & LOPES, O. [S.D.] p. 50
10
MAGALHÃES, I. A. (1987) p. 103
11
CURTIUS, E. R. (1957) p. 440
12
LE GOFF, J. (1989) p. 47
13
LE GOFF, J. (1985) p. 24.
14
ALFONSO X, EL SABIO. (1986) p.7
15
LE GOFF, J. (1985) p. 20

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