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Número 1
Fevereiro/Março de 2019
ISSN 1981-1659
Expediente
Expediente
Rev. bras. segur. pública vol. 13 n.1 São Paulo fevereiro/março 2019
Apoio
Open Society Foundations e Ford Foundation.
Nota Técnica
Isaías Gonçalves de Oliveira
Licenciado em Letras/Português pela Universidade Federal do Paraná; guarda municipal em Curitiba e especializado em Adminis-
tração Pública pelo Instituto Municipal de Administração Pública (Imap).
DOI: 10.31060/rbsp.2019.v13.n1.1054
Resumo
Este trabalho descreve a modalidade de polícia das guardas municipais brasileiras como polícias urbanas, de proximidade,
cidadãs, por meio de uma pesquisa histórica da origem e do desenvolvimento das atividades de natureza policial nas
sociedades e nos estados antigos e modernos, com atenção especial ao modelo proposto por Sir Robert Peel para a polícia
de Londres em 1829. Busca também aplicar a análise tipológica das modalidades de polícia, conforme a tipologia de
Dominique Monjardet, para propor um modo de análise que permita entender o fenômeno das guardas municipais num
contexto mais amplo do que até aqui se tem praticado. Explicita também as implicações das normas legais mais recentes
que tratam das guardas municipais e as relaciona com a tradição da polícia moderna, resgatando as raízes etimológicas
do termo “polícia” e sua relação com as cidades.
Palavras -Chave
Polícia; Guarda municipal; Polícia brasileira; Polícia cidadã; Modalidades de polícia.
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Abstract
Municipal Guards as citizen police model
This work describes the police mode of the Brazilian Municipal Guards as urban police, proximity police, citizen police,
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through a historical and sociological research of the origin and development of police activities in ancient and modern
societies and states, with special attention to model proposed by Sir Robert Peel for the police of London in 1829. It also
seeks to apply the typological analysis of the police modalities, according to the typology of Dominique Monjardet, to the
police of the Brazilian states and municipalities and through this to propose a mode of sociological based analysis appro-
ach that is added to the legal analysis and allows to understand the phenomenon of municipal guards in a wider context
than has hitherto been practiced. It also explains the implications of the latest legal norms dealing with municipal guards
and relates them to the tradition of modern police, rescuing the etymological roots of the term "police" and its relation to
cities.
Guardas Municipais: modelos de polícia cidadã
Isaias Gonçalves de Oliveira
Keywords
Police.Municipal Guard; Brazilian Police; Citizen Police; Police Modalities.
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Considerações iniciais
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guns desses valores. A polícia contemporâ- para classificar as polícias brasileiras, ofere-
nea integra todas essas características, com cendo uma ferramenta teórica adequada à
graus variados de especialização. análise jurídica, histórica e social das po-
lícias. Assim, pretende-se demonstrar que
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Creswell (2007, p. 186): a finalidade de regular as relações internas
do grupo e de preservar sua continuida-
A pesquisa qualitativa é fundamentalmente inter- de. Carvalho (2017, p. 30) define-a como
“[...] um organismo que emerge do seio do
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pretativa. Isso significa que o pesquisador faz uma
interpretação dos dados. Isso inclui o desenvol- próprio grupo (sociedade humana), tendo
vimento da descrição de uma pessoa ou de um como finalidade a garantia do bem co-
cenário, análise de dados para identificar temas ou mum de seus integrantes e da coesão entre
categorias e, finalmente, fazer uma interpretação
eles”. A polícia é uma atividade em que a
comunidade, de modo coletivo ou por in-
ou tirar conclusões sobre o seu significado, pessoal
termédio de pessoas do seu meio, aplica a
e teoricamente, mencionando as lições aprendi-
força, real ou como ameaça,contra si mes-
das e oferecendo mais perguntas a serem feitas.
ma (BAYLEY, 2017).Monjardet(2002, p.
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dades têm como função básica “a regula- militares também defendem as comunidades ex-
ção pública da violência privada”, e o fa- ternamente, seu uso dentro do país, que ocorreu
zem por meio de suas polícias. A função historicamente praticamente em todos os lugares,
policial não se circunscreve, entretanto, à
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suir e mobilizar recursos de força decisi- rísticas comuns aos conflitos bélicos. Uni-
vos, com o objetivo de garantir ao poder o dades militares, convocadas a interferir em
domínio (ou a regulação) do emprego da numerosas revoltas na Europa e em outros
força nas relações sociais internas” (MON- lugares do mundo, agiam com violência
JARDET, 2002, p. 27). excessiva, deixando muitos mortos e feri-
dos (BAYLEY, 2017).
A polícia, como representante mais vi-
sível do governo, atua nos conflitos coti- A partir do século XIX, especialmente
dianos, sejam eles violentos sejam poten- com o surgimento da polícia moderna,
cialmente violentos, de modo a garantir o esta deixa de ser apenas uma ferramenta
monopólio do Estado na utilização da vio- do poder, para se tornar garantidora de
lência. Sua atuação assume uma natureza direitos, assumindo uma face democráti-
civilizatória na medida em que “uma polí- ca que recupera o seu sentido etimológico.
cia pública é sinal indiscutível da presença Os termos ‘polícia’ e ‘política’ derivam da
de um Estado soberano e de sua capaci- palavra grega politeia (MONET, 2006).
dade de fazer prevalecer sua razão sobre as Esse termo, até Aristóteles, indica tanto a
razões de seus súditos” (MONET, 2006, cidade (pólis) como unidade política au-
p.16). A existência do Estado é garantida tônoma quanto à arte de administrar, de
pelas suas instituições policiais no âmbito governar. Depois de Platão e Aristóteles,
interno, tanto quanto o é pelas suas Forças ela passa a designar o conjunto de nor-
Armadas externamente, embora sob certas mas relacionadas à boa administração da
condições definidas pelas leis locais de cada cidade em seus aspectos de ordem pública,
Estado, as Forças Armadas, tanto no pas- moralidade e provisão, e os guardiões da lei
sado quanto no presente, tenham relativa citados por Platão em seus escritos. Entre
presença na preservação interna. Tal efeito os romanos, o termo também possui duas
é hoje atenuado pela especialização das po- acepções: a de res publica (‘a coisa pública’),
lícias, conforme Bayley (2017, p.53): e o de civitas, com o sentido de ‘negócios
da cidade’, latinizado para politia, a partir
Um aspecto importante da especialização da de polis, a cidade, “[...] de onde as línguas
polícia foi a remoção dos militares da manuten- modernas formaram police, polizia, politzei
ção da ordem interna. Uma vez que as unidades ou polícia, entre outras” (ROLIM, 2006,
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p. 24). cia”, e que a polícia, para atingir esse ob-
As ideias de organização política e de jetivo, “[...] deve ser fortemente encarada,
defesa instrumental da ordem estabelecida tanto interna quanto externamente, como
por meio da polícia são heranças da civili- inspiradora e indutora da paz”. E esses são,
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zação grega: “Com a democracia, a função exatamente, os valores que guiam a criação
policial reencontra suas raízes gregas e apa- da polícia moderna.
rece pelo que ela é: uma dimensão central
da ação política” (MONET, 2006, p. 29). O nascimento da polícia moderna
A polícia moderna não é instituída para O surgimento da polícia moderna no
aumentar o controle de governantes, mas Ocidente é um fenômeno do século XIX;
como uma manifestação de valores ligados até então, “[...] a história da ‘polícia’ não
à sua herança democrática. poderá ser contada em termos institucio-
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armadas pelo Estado, e que refletem os em 1829 uma força policial de natureza
interesses políticos de seus guerrilheiros. civil mantida por fundos públicos e com
Estas não possuem legitimidade e não são número de integrantes suficiente para fa-
um bom substituto para forças regulares de zer frente aos distúrbios civis, a chamada
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manutenção da ordem interna. Seu uso se “nova polícia” (BAYLEY, 2017; ROLIM,
torna mais constante à medida que se exi- 2006,). Impera nesse período o modelo
ge mais participação nas questões políticas. francês, que é bipartido, com uma divisão,
Monet (2006) acrescenta que movimentos a Tenência de Polícia, instituída em Paris
operários também protagonizam episó- pelo rei Luís XIV por volta de 1667, e a
dios violentos, com a urgência de integrar Guarda Civil, oriunda da Maréuchaussée,
essas massas na democracia parlamentar, o polícia de origem puramente militar, nas
que é percebido na Grã-Bretanha como a regiões rurais (ROLIM, 2006; MONET,
Guardas Municipais: modelos de polícia cidadã
Isaias Gonçalves de Oliveira
busca pelo direito de associação, concedi- 2006). A Tenência de Paris tem funções de
da entre 1825 e 1826. O autor prossegue: administração ampla da cidade, zelando
pela segurança, reprimindo a criminali-
[...] por outro lado, o desenvolvimento de uma dade, tomando medidas preventivas con-
polícia suficientemente forte para tornar inútil tra incêndios e epidemias e o controle do
o recurso ao exército e às milícias acompanha abastecimento da cidade. Além disso, ela é
de perto o famoso Massacre de Peterloo (The responsável por monitorar a opinião pú-
Battle of Peterloo), no decorrer do qual a milícia de blica por meio do controle da imprensa e
Manchester (Manchester Yeomanry) e os dragões
das livrarias, impedindo a distribuição de
panfletos e libelos, e acompanhando de
do exército fizeram oito vítimas e centenas de
perto todos os suspeitos de serem adver-
feridos entre os amotinados sublevados contra
sários da monarquia e da igreja, por meio
a lei do trigo, em agosto de 1819. (MONET,
de uma ampla rede de informantes. A Ma-
2006, p.217). réchaussée é a polícia montada francesa,
rebatizada como Gendarmerie em 1791;
Os governos europeus do século XIX, com as guerras da Revolução e do Império
diante do problema de como lidar com e a difusão do código penal napoleônico,
Forças Armadas relutantes, mas excessi- esta serve como modelo para as polícias
vamente violentas, e milícias fervorosas, militares europeias. Entre suas funções es-
mas pouco confiáveis, resolvem retirar dos tão reprimir insurreições camponesas, de-
Exércitos a responsabilidade pela manu- belar levantes, reprimir o contrabando e os
tenção da ordem interna, extinguem as salteadores de beira de estrada (MONET,
milícias e começam a desenvolver uma 2006, p. 49-50).
força especializada de ordem pública
(BAYLEY, 2017).
A substituição das milícias e dos militares por
uma polícia civil treinada se espalhou por toda a
Na Inglaterra, o responsável pela cria-
Europa no restante do século, embora os milita-
ção dessa nova força é o ministro do in-
terior britânico, Sir Robert Peel, que, res tenham continuado a desempenhar um papel
apoiado pelo Duque de Wellington, prin- mais importante no continente do que na Ingla-
cipal autoridade militar do país, institui terra, devido à existência de forças importantes
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nas gendarmes. (BAYLEY, 2017, p. 56). atividade (MONET, 2006).
O novo modelo policial logo recebe Essa iniciativa busca a identificação en-
ampla oposição, pois as forças policiais tre polícia e sociedade, conforme a afirma-
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anteriores eram instrumentos do Estado e ção de Peel de que “A Polícia é o Público
há o temor de que o modelo adotado seja e o Público é a Polícia” (ROLIM, 2006,
o francês, a serviço de objetivos políticos p.70). Segundo Bondaruk e Souza (2004),
e uma ameaça às liberdades individuais, e o ministro tem então como objetivos bási-
de que uma força policial profissional seja cos o restabelecimento da fé do público na
sempre instrumento de opressão gover- polícia, a proteção dos inocentes e a sus-
namental. Peel e aqueles que ele indicou tentação da lei.
como os primeiros comissários metropoli-
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são pessoas do povo pagas para fazer em O constable de ser civil e cortês com as pessoas de
tempo integral um trabalho que é de res- qualquer classe ou condição... Ele deve ser parti-
ponsabilidade de todos; atuando de modo cularmente atento para não interferir desastrada-
a não usurpar as funções do Judiciário; e
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se conjugam nas tarefas de segurança. O policial, antagônico à dicotomia policial existente
autor explica, por meio de sua sociologia da no Brasil, acaba sendo muito mais eficaz, pois di-
polícia, que toda instituição policial é pos- minui o risco de redundância ou de sobreposição
ta em ação a partir de três fontes: o Estado,
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de funções [...]. (CARVALHO, 2017, p. 60, gri-
governo ou poder; a iniciativa profissional fo do autor).
dos policiais; e as demandas da sociedade.
A essas três fontes correspondem três prin- O modelo de Monjardet, aplicado às
cípios de ação concorrentes: a manutenção polícias da maior parte do mundo define
da ordem, a luta contra o crime e a segu- modalidades abstratas. Cada polícia possui
rança pública. Toda política policial resulta características dos três tipos, em maior ou
de um compromisso entre esses três prin- menor grau, de acordo com o modelo de
cípios. A manutenção da ordem é priori- poder dominante e o modo como esse po-
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polícia militar é uma força uniformizada que têm a função de polícias judiciárias,
que reúne mais de 400.000 integrantes responsáveis pela investigação e apuração
em todo o país, com estrutura hierárquica das infrações penais (SOUZA; ALBU-
simétrica à do Exército, ao qual se integrará QUERQUE, 2017). As polícias civis, na
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o sentido pelo qual se organiza o estado de dade) que se origina nos guetos burgueses
ordem pública. As polícias militares brasi- e cujo papel é “a proteção do sono, o que
leiras atuam nesse sentido, mas incorpo- supõe rondas de guarda” (MONJARDET,
ram também o conceito de polícia osten- 2002, p. 283). A polícia urbana não tem
siva de caráter preventivo (CARVALHO, os meios de vigiar o criminoso, no sentido
2017; SZABÓ; RISSO, 2018). Monjar- da polícia criminal, nem para conter a de-
det (2002) explica que a polícia de ordem sordem, o tumulto, no sentido da especia-
está em desnível com a sociedade, porque lidade das polícias de ordem pública, mas
impõe uma ordem que se sobrepõe à socie- retira sua força da submissão consentida
dade. Mas isso não é inteiramente verdade do cidadão. Sua função é social, fazer com
sobre as polícias militares, que estão real- que se respeite a paz pública contra a per-
mente um pouco mais afastadas por causa turbação do sossego, a desordem local, a
da estrutura hierárquica, mas que buscam sujeira e a pequena delinquência. Ela atua
aproximar-se por uma série de ações de também na mediação dos conflitos e re-
polícia comunitária. Nesse sentido, essas gula o trânsito. Monjardet (2002) susten-
polícias se enquadram como polícias de ta que a polícia urbana mantém a ordem
ordem, sendo uma polícia sobre a socieda- pública, que não é a de dominação do po-
de, seu foco principal, mas também atuam der central, mas a da tranquilidade. Ela se
como polícias urbanas pelo contato com representa na sociedade, de onde provém,
as demandas de segurança pública. e onde só pode agir eficazmente por sua
integração.
A segunda modalidade é a de polícia
criminal que “instrumentaliza a força e os Desse modo também, seu controle se opera
meios de ação não contratuais para repri- através de sua visibilidade. Polícia uniformizada,
mir os segmentos da sociedade que recu- ela está a observação de todos, como preconizava
sam as suas leis” (MONJARDET, 2002, Peel. O uniforme aqui não é a vestimenta guer-
p. 282). É a polícia que funciona como reira da polícia soberana que evoca o exército e
braço do Poder Judiciário, e tem como simboliza o poder; é, ao contrário, exibição da
cliente o criminoso, posto que as leis pe-
qualidade policial, no sentido em que esta se colo-
nais são sua verdade. É uma polícia da so-
ca à disposição e sob o controle de todos. (MON-
ciedade. Equivale às nossas polícias civis,
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JARDET, 2002, p. 284). mento ocasional de proximidade, com foco
na preservação e continuidade do Estado,
O cliente da polícia urbana é o cidadão e que outra é polícia urbana, com foco na
comum, seu foco é a segurança pública e paz social da comunidade por meio de um
Nota Técnica
sua verdade são as leis comunais. Essa po- policiamento permanente de proximidade e
lícia é representada pela Nova Polícia de comunitário.
Peel, que é em si um resgate do conceito
originário de polícia relacionado à cidada- Polícia cidadã
nia. São representadas no Brasil pelas guar- Souza e Albuquerque (2017, p. 101),
das municipais. Szabó e Risso, falando so- analisando o impacto da sanção da Lei Fe-
bre a disputa que existe sobre as funções deral 13.022 de 2014, o Estatuto da Guar-
das guardas municipais, ampliadas por le- da Municipal, explicam que ela “transfor-
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Pala Balestreri (1998), o policial é antes dada muita atenção ao papel pedagógico
de tudo um cidadão, e que na cidadania da polícia na formação do caráter nacio-
deve nutrir sua razão de ser e pautar suas nal. No caso inglês, alguns autores (RO-
ações profissionais. Consequentemente, LIM, 2006; BAYLEY, 2017) entendem
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não existe antagonismo entre a classe po- que muitas das características presentes
licial profissional e a sociedade civil, pos- na população britânica, como cortesia,
to que o policial é parte dessa sociedade. respeito e apego às leis, são diretamen-
Quando Robert Peel criou a polícia de te influenciadas pelos policiais formados
Londres era essa aproximação que tinha nos princípios de Peel. O que esses auto-
em mente, ou melhor, desfazer uma divi- res parecem indicar é que o fator pedagó-
são que era artificial e criar identificação gico existe, para o bem ou para o mal, e
entre policiais e comunidade (ROLIM, que utilizado criteriosamente pode ter um
Guardas Municipais: modelos de polícia cidadã
Isaias Gonçalves de Oliveira
2006). Para Bayley, essa relação vai além impacto muito positivo sobre as gerações
da mera identificação, ela implica uma futuras. É uma característica civilizatória e
pedagogia peculiar, pois “uma vez que os a polícia funciona como um baluarte dos
policiais são a encarnação do governo, eles valores democráticos (MOORE, 2003).
são os professores mais permanentes dos Entretanto, isso pode levar ao pensamento
valores cívicos na sociedade” (BAYLEY, de que tal defesa é sempre pacífica, o que
2017, p. 212). Monjardet (2002) entende não é. Quando a polícia controla o crime,
que agindo como professores, os policiais ela não está em contradição com esses va-
devem construir uma relação de autori- lores democráticos, pois com altas taxas
dade com o público. Essa relação de au- de crimes a democracia também está em
toridade não é mais uma imposição sim- risco, de modo que atuar contra o com-
ples, mas deriva de uma construção que se portamento criminoso é servir aos valores
manifesta no consentimento do público democráticos, o que por sua vez significa
(BONDARUK; SOUZA, 2004). indiretamente apontar o comportamento
correto (SHERMAN, 2003 ).
Para Balestreri (1998), os policiais são
cidadãos, mas cidadãos qualificados, ou, O policiamento cidadão é exercido de
nas palavras atribuídas a Peel, os policiais modo mais claro e eficiente no policia-
são “[...] membros do povo que são pagos mento de proximidade ou comunitário,
para dar atenção todo o tempo aos deveres funções da polícia urbana (MONJAR-
de que são encarregados (sic) cada cida- DET, 2002), em conexão com o policia-
dão, nos interesses do bem-estar da comu- mento orientado para o problema. Ambos
nidade e do próprio ser” (BONDARUK; são “estratégias organizacionais” (MOO-
SOUZA, 2004, p. 17-18). Balestreri expli- RE, 2003, p.116). Para Monjardet, o poli-
ca que, assim como em outras profissões ciamento comunitário implica a delegação
de suporte público, existe essa dimensão de autoridade na tomada de decisões aos
pedagógica na ação policial que é ante- policiais que atuam na ponta, expressão
rior à sua especialização, ou seja, a função popular entre a classe. Moore (2003) ex-
policial ensina antes mesmo que houvesse plica que tal estratégia promove a mudan-
agente especializado na aplicação da lei. ça de um modelo centralizado de coman-
Rolim (2006) diz que no Brasil nunca foi do para um de estruturas descentralizadas
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que proporciona ligações de proximidade nadas a serviços de responsabilidade mu-
com as comunidades locais. O policia- nicipal (MOORE, 2003 ROLIM, 2006).
mento comunitário, no plano operacional, Szabó e Risso (2018, p. 60) acreditam que
implica a inversão da pirâmide hierárquica a resolução desse tipo de problema deveria
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e enfatiza que os cidadãos são, eles mes- ser uma vocação das guardas municipais,
mos, a primeira linha de defesa contra a que atuariam “de modo a colaborar na au-
criminalidade (MOORE, 2003). torregulação e na regulação coletiva”. Nes-
se sentido, a população não cumpre um
O policiamento orientado para o proble- papel secundário em relação à polícia, mas
ma busca encontrar soluções locais para a polícia que é suplementar à população
problemas também locais, fazendo uma (ROLIM, 2006). As guardas municipais
abordagem situacional das circunstâncias já atuam de modo comunitário, e com o
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influir na formulação de políticas públicas O policiamento é encarado, muitas vezes,
de segurança e de fiscalizar e avaliar o seu como uma instituição, ou uma espécie de
desempenho (JUGEND, 2008). As guar- poder transcendente, mas ele é um serviço
das municipais têm seu foco na modalida- que o Estado presta aos seus cidadãos.
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