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JOSE MIGUEZ BONINO

FE EM BUSCA
DE EFICÁCIA
Uma interpretação da reflexão
teológica latino-americana
sobre libertação

Tradução de
Getúlio Bertelli
CAPlTULO 1

ALÉM DO COLONIALISMO E DO NEOCOLONIALISMO

Há vários anos atrás, a revista Time publicou uma série de impressio­


nantes testemunhos fotográficos da “ cristologização" da figura de Che (Ernesto)
Guevara. Por mais de quinze anos, todos vimos este quase-“ícone” que parecia
multiplicar-se incessantemente. Presidia salas de reuniões estudantis, manifesta­
ções ou dormitórios, como uma espécie de divindade tutelar da juventude.
Topei com a identificação cristológica explícita pela primeira vez nos lá­
bios de um jovem cristão latino-americano. Foi na discussão que se seguiu a uma
representação de um elenco vocacional. “ Então, quem é Jesus Cristo?” perguntou,
meio confuso e escandalizado, um dos espectadores. “ Para nós” , respondeu ime­
diatamente um dos atores, “Cristo é o Che."
Por certo não nos surpreenderá o fato de que a figura de Cristo assuma o
rosto de uma pessoa - real ou imaginária - que, num determinado momento histó­
rico, parece resumir melhor aquilo que a religião cristã ou a humanidade mais plena
representam, experimentam ou anseiam. Isto ocorreu ao longo da história. Na
América Latina estas identificações foram freqüentes. Este ou aquele missionário
ou sacerdote, o índio ou o mestiço sofredor, e até algum personagem ou imagem
do confuso e sempre semipresente pano de fundo religioso indígena, emprestou
seus traços característicos às representações de Jesus Cristo. Novo e um tanto
escandaloso é o fato de que um grupo de cristãos escolheu para esta função um
guerrilheiro. Ainda mais por ser alguém que - com toda consciência e lucidez -
não se considerava a si mesmo cristão, mas um revolucionário marxista.
Curiosamente, essa estranha atração parece ter sido mútua. Além da in­
vocação religioso-humanista de Cristo, o crucificado com seus irmãos, que (pro­
vavelmente de modo errôneo) foi atribuída a ele, há a conhecida frase: “ Quando os
cristãos se atreverem a dar um testemunho revolucionário integral, a revolução la­
tino-americana será invencível. Até agora os cristãos consentiram que sua doutri­
na seja instrumentalizada pelos reacionários.” Estranha afirmação para um mar­
xista, pois parece pressupor que a revolução é um legítimo legado para os cris­
tãos, ao passo que a reação seria uma distorção (instrumentalização) de sua fé
autêntica. Evitemos por ora o escabroso terreno das interpretações das motiva­
ções subjetivas de uns e do outro (os cristãos jovens da ilustração anterior e o
próprio Guevara). Assim poderemos concentrar nossa atenção naquilo que esta
convergência significa para um número cada vez maior e importante de jovens
cristãos na América Latina. Creio que poderíamos resumi-lo em três afirmações:
1. “ Um Jesus Cristo que pode ser adorado e pregado à margem de uma
tomada de consciência e de um compromisso com a transformação revolucionária
dentro de nosso continente não tem para nós qualquer sentido ou valor. Em reali­
dade, ele se torna nosso inimigo.” Em outros termos, já passou definitivamente
uma época, qual seja: a de um cristianismo desvinculado da urgência revolucioná-

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ria. dos movimentos "cristão-democratas” e, recentemente, da teologia progressista
2. "Vivemos na realidade sócio-polftica; a linguagem que compreende­
européia que predominou no Vaticano II. Sua inspiração vem da Europa, principal­
mos as metas que nos propomos, o sentido de nossa vida estão inseridos nas
mente da Europa central e setentrional. No âmbito político-social tende a adotar
dime'nsões deste espaço. Portanto, se desejam falar-nos de Jesus Cristo, devem
posições reformistas ou desenvolvimentistas. Mas seu interesse se centra na re­
fazê-lo nos termos de referência deste mundo.” A saber, o plano de projeção da fé
novação da Igreja e em uma clara distinção entre os planos político e religioso e,
cristã deixou de ser primeiramente o mftico-mágico, ou o subjetivo-personalista,
por conseguinte, entre Igreja e Estado.
para vir a ser o ideológico-polftico.
3. Um catolicismo “ revolucionário” , que se desenvolveu na década de
3. “O que descobrimos no Che para nós está relacionado com Jesus
sessenta. Este tipo pode reivindicar também a herança do “ protesto social” de não
Cristo.” Se nos perguntamos a que se referem, a resposta parece fácil: a dedica­
poucos sacerdotes da época colonial e da independência. Este catolicismo se
ção pessoal completa, indo até o sacrifício, à causa da libertação político-social do
desvinculou das posições reformistas; supera a separação entre os âmbitos reli­
homem oprimido. Em outras palavras: para eles, libertação e revolução acabam
gioso e político, ao mesmo tempo em que rejeita toda síntese teocrática.
sendo uma legitima transcrição do Evangelho. Por isso, penso eu, não disseram:
O cristianismo penetrou na América Latina em razão de dois movimentos
"Che Guevara é Cristo" - o que seria divinização de um personagem histórico - ,
históricos: a conquista e a colonização do século XVI, e a modernização e o neo-
mas: “ Cristo é o Che" - uma encarnação histórica de um propósito divino mani­
colonialismo do século XIX. Embora estes dois episódios não sejam simétricos em
festado em Cristo.
seu significado e importância, podem servir-nos como moldura para uma compre­
Não nos corresponde a esta altura emitir um juízo sobre a legitimidade
ensão da história do cristianismo no continente.
histórica, religiosa ou política destas afirmações, mas tratar de explicá-las e com­
“Ao levar a cabo a empresa das índias” , escreveu Colombo, “ não foi a
preendê-las. Para isso, devemos situá-las em várias perspectivas. A primeira de­
razão, nem a matemática, nem os mapas que me assistiram. O descobrimento foi
las é histórica. Fica claro que as posições aqui assinaladas representam uma
simplesmente um cumprimento daquilo que disse o profeta Isaías.”2 Refere-se à
ruptura radical na autoconsciência histórica de um grupo de cristãos latino-ameri­
promessa de que Deus guiaria as naves de Tarsis para que trouxessem os tesou­
canos. Revelam também a pretensão de iniciar uma nova era na história do cristia­
ros e a glória das nações ao santuário do Senhor. Anexar à Espanha um território
nismo de nosso continente. E manifestam, finalmente, a decidida adoção de um
equivalia a apresentá-lo ante o altar de Deus. A causa de Jesus Cristo e a da Es­
novo projeto histórico, simultaneamente como presença e veículo encarnacional da
panha eram idênticas para aquele povo que acabava de completar, “ sob a insígnia
fé cristã no mundo contemporâneo.
da fé católica” , a expulsão dos muçulmanos de seu território e a unificação do rei­
Para que este propósito fique mais claro, é conveniente situá-lo na su­
no de Castela e Aragão. O novo mundo que acabavam de descobrir oferecia-lhes
cessão das principais etapas que o cristianismo viveu na América Latina. Em uma
a oportunidade de historicizar a antiga utopia, o sonho do “ reino cristão” , uma or­
recente análise da Igreja Católica na Argentina, Gera e Melgarejo falavam de três
dem ideal que incorporaria a ordem temporal sagrada e a ordem eclesiástica divi­
tipos de liderança na Igreja, que representam ao mesmo tempo concepções diver­
na, ambas estruturadas até em seus mínimos detalhes no pensamento escolásti­
sas do papel do cristianismo e diferentes épocas na história da Igreja Católica lati­
co. Para os líderes políticos e a hierarquia católica espanhola, evangelização e
no-americana1.
conquista são um único e singular projeto. “ Viemos de Castela” - diz Pizarro em
1. Os “ tradicionalistas” , “direitistas” ou “ conservadores” , cujo extremo é
seu discurso aos índios. “ Lá manda um potentíssimo rei, cujos vassalos somos
o “integrismo” . Sua concepção de Igreja e de fé remonta à época da colonização
nós. Saímos para pôr sob a sujeição de nosso rei todas as terras que encontrar­
espanhola e se nutre do ideal de cristandade. Este se expressa no sonho de uma
mos.” E acrescenta, logo à continuação: “ E é nosso principal desejo dar-vos a co­
unidade estreita entre Igreja e Estado (“um monismo religioso-polftico") conforme o
nhecer que adorais falsos deuses e que tendes necessidade de adorar ao único
modelo da cristandade colonial. Rejeitam qualquer modificação das instituições.
Deus que está nos c é u s .. .”3 A obediência ao grande rei da Espanha e a submis­
Mais recentemente, tal corrente se expressa em um "nacionalismo católico aristo­
são ao rei dos céus são exigidas num só e mesmo ato.
crático” . Este teve grande força até a década de cinqüenta, perdurando até a atua­ Certamente esta utopia não se realizou. Todas as realidades da história e
lidade em grupos pequenos, mas combativos, que ocasionalmente alcançam si­
da geografia - as grandes distâncias, a escassez de sacerdotes, a permanência
tuações de influência e poder.
das antigas culturas e religiões, a fome de ouro e riquezas, a fragilidade humana, a
2. Uma tendência "progressista” , que se remonta às linhas mais cultas da
inércia das estruturas sócio-políticas - conspiravam contra ela. O que ocorreu
Espanha e, posteriormente, ao iluminismo francês. Mais tarde assimilou posições
realmente foi a extensão à América e a adaptação às suas condições da socieda­
de semifeudal (senhorial) que existia na Espanha. Esta ordem determinou os dois
1. A p unte s p a ra una in te rp re ta c lô n de la ig le s la arg e n tin a , Vfspera, 1 5 :59ss., 1970. A te n ta tiv a m ais am pla de
elementos básicos da estrutura social do novo mundo: a posse da terra e a estrati­
in te rp re ta r a h istó ria da Ig re ja na A m érica Latina do pon to de vista de uma te o io g ia da lib e rta ç ã o é a o b ra do ficação social. As grandes extensões de terra entregues aos pioneiros dos primei­
h isto ria d o r e liió s o fo a rg e n tin o E n riqu e D. DUSSEL em seu liv ro H istoria de la ig le s ia en A m érica Latina
(B a rce lo n a , 1972), que in clu i uma am pla b ib lio g ra fia . Está em curso um p ro je to c o n ju n to (CEHILA) p a ra uma
o b ra histó rica de m a io r tó ie g o , por uma equ ipe de h istoriadores católicos e protestan tes, num a perspectiva
sem elhan to. 2. C ita d o por J. A. MACKAY, E l o tro C risto espartol, M ôxlco, 1952, p. 3 9 .
3. Ibidem , p. 47; cf. LO ÍIEN TE, H istoria do la conq uista d e i P e ru, p. 62s.

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ros tempos para explorar e desenvolver constituem ainda hoje, apesar dos gran­ desse catolicismo popular. No entanto, percebiam simultaneamente que a Igreja
des câmbios e modificações, o padrão básico de propriedade da terra no conti­ oficial era algo estranho a elas. Isso por pertencer “aos de cima” , como a lingua­
nente. 80% das terras cultiváveis estão em mãos de 5-15% da população. Em gem popular denomina a pequena oligarquia que decide seu destino. Tudo isso
muitos casos, isto significa que estão em mãos de um pequeno grupo de famdias significou, finalmente, que a Igreja não aprendeu um método diferente de influir so­
patrfcias, emparentadas entre si. A sociedade baseada em duas classes (patrão e bre o povo - a saber, não aprendeu outro método pastoral - a não ser o uso das
empregado) ainda prevalece em muitos pafses latino-americanos. São exceções instituições da sociedade. Para tanto devia manter uma relação positiva com as
os pequenos setores médios dependentes que a modernização produziu em al­ classes dominantes. Este fato determinou suas atitudes quando começaram a
guns poucos. emergir conflitos na sociedade latino-americana. A Igreja colonial ficou ligada à es­
A utopia espanhola não se realizou. Mas nem por isso foi estéril. As con­ trutura colonial5.
seqüências do choque e da interação entre o sonho do reino cristão e as condi­ Uma terceira conseqüência da interação de sonho e realidade foi menos
ções reais da conquista e colonização merecem ser cuidadosamente estudadas4. explorada, mas não é menos importante. Afora algumas exceções individuais (e às
Por um lado, a inspiração deste sonho frutificou num conjunto de leis e dispositivos vezes involuntariamente reforçada e justificada por elas), a fé cristã, incorporada
que procuravam assegurar um trato justo ao indígena. Visavam assim salvaguar­ ao projeto religioso-social espanhol em sua totalidade, atuou como legitimadora e
dar sua humanidade no processo de evangelização. Na prática, a maioria destas sacralizadora da estrutura social e econômica implantada na América. Serviu co­
leis foi ignorada ou desvirtuada na sua aplicação. Não devemos desconhecer o mo cobertura ideológica justificante das condições existentes. Deus nos céus, o
fato de que um reduzido número de pessoas, particularmente os missionários das rei da Espanha em seu trono, o latifundiário em sua residência: esta era a “ordem
ordens religiosas, travou um combate tão corajoso quanto impossível para que das coisas” , a ordem divina e sagrada. A estrutura social e a propriedade da terra
estes dispositivos fossem cumpridos. Frei Bartolomeu de las Casas veio a ser o (e as formas de consciência correspondentes) ficavam assim incorporadas ao
paladino de uma colonização e evangelização diferentes. Elas nunca ocorreram, mundo de representações sagradas. Ainda em 1816, quando o movimento de in­
mas correspondiam à maneira própria do cristianismo. Trata-se da “ única maneira dependência destas terras do poder espanhol varria o continente, o papa escrevia
de atrair os índios à verdadeira religião”, como reza o título de uma de suas obras aos bispos latino-americanos:
mais importantes. Homens como ele e outros são a cabeceira de um curso peque­
no, porém ininterrupto, de protesto profético no cristianismo latino-americano. Os E já que um dos preceitos mais importantes e maravilhosos [de nossa religião] é aquele
cristãos revolucionários de hoje em dia têm direito a reivindicar sua herança. que prescreve a submissão às autoridades superiores, não duvidamos de que, nas co­
moções destes pafses ( . . . ) não cessastes de inspirar à vossa grei o justo e firme ódio
Mas uma segunda conseqüência do sonho irrealizado talvez tenha mais
com que deve considerá-las.6
importância: a relação entre Igreja e sociedade que existia na Espanha - particu­
larmente a relação entre Igreja e Estado, e Igreja e estrutura.social - foi transferida Em sua forma institucional, a Igreja era parte do sonho espanhol. Identifi­
à América. A igreja desfrutou assim do uso de todos os canais da organização so­ cada com uma ordem importada, estava condenada a tornar-se reacionária quando
cial: legislação, educação, acesso à autoridade e ao poder. Ao mesmo tempo, po­ esta ordem começou a desmoronar-se. O projeto espanhol - nobre, mas anacrô­
rém, teve que pagar por isso o preço de uma solidariedade total e incondicional nico - logo começou a desintegrar-se. A economia britânica e o iluminismo fran­
com as autoridades civis. O direito de padroado, de que gozava o rei da Espanha, cês, ambos transportados nos porões da triunfante marinha britânica e contraban­
incluía a nomeação de bispos e a promulgação, em território espanhol, das pró­ deados à América na forma de livros e comércio, logo consumaram a ruína dos
prias decisões papais. A Igreja utilizou os mecanismos de compulsão civil. Simul­ impérios português e espanhol. Aparece a moderna paixão pela liberdade: livre
taneamente, contudo, dependeu das autoridades civis e sofreu a influência da na­ comércio, liberdade de pensamento, liberdade religiosa, liberdade individual e
tureza e das condições do exercício desta autoridade. Se levamos em conta a or­ emancipação política. Tudo isso apelava ao mesmo tempo à mente e aos interes­
ganização de classes, que colocava em mãos de algumas poucas famílias latifun­ ses econômicos da jovem elite latino-americana, forrnada pelos filhos dos coloni­
diárias a soma total da riqueza e autoridade, torna-se claro que a Igreja ficava su­ zadores espanhóis. Eles não viam motivo algum para que os produtos de suas
bordinada - quase prisioneira - , tanto por sua localização na hierarquia social co­ extensas propriedades fossem monopolizados pela Espanha. Afinal, os países do
mo por sua dependência dos interesses desse grupo. E difícil superestimar as norte da Europa ofereciam melhores mercados. Igualmente a autoridade não podia
conseqüências deste fato. Abria-se assim um abismo entre a religião popular - às continuar nas mãos de emissários da coroa da Espanha. Eram eles as pessoas
vezes mista ou sincretista - que se desenvolveu nas massas indígenas e pobres verdadeiramente “ importantes” nestas terras. A filosofia do iluminismo os libertava
e depois na população camponesa, e a estrutura hierárquica importada global­
mente da Espanha. As massas ficaram firmemente impregnadas de catolicismo, 5. A m e lh o r an á lis e do s ig n ific a d o sociológico e pasto ra l dessa relação foi feita pelo sociólogo norte -a m e rica n o
Ivan VALLIER, em seu livro C atolicism o, c o n tro le socia l y m o dernización en A m érica Latina, B u enos A ire s,
1971, cap. H. E m bora de uma perspectiva m uito d iferente do funciona lism o de V a llle r, J. L. SEGUNDO chega
a conclu sões s em elhan tes em seu livro A ção p a s to ra l latin o -a m e rica n a ; seus motivos ocultos, São P aulo,
4. Um penetrante estudo dessa relação, tom ando a C o lôm bia com o caso de estudo, foi pub lica d o p e lo s o c ió lo ­ Loyola, 1978.
go O rlan do FALS BORDA em sua obra La subversiôn en C o lom bia: e t cam bio s o c ia l en la h is to ria , B ogotá, 6. E n cíclica E tsl long issim o , citada em LETURIA, R e laciones e ntre la santa sede e Hispanoam órica II, Caracas,
1967, cap. 4. 1959, p. 110 -3. A in d a em 1824, a encíclica E ts iia m d iu fala dos m ovim entos de em ancipação como "a cizâ­
nia sem eada p e lo Inim ig o " (p. 266); cf. E. D. DUSSEL, op. c lt., p. 110.

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do fatalismo, da esterilidade e da passividade da filosofia escolástica, bem como que consideravam ser as conseqüências sociais, econômicas e políticas da reli­
da estreiteza e rigidez da moralidade eclesiástica. O livre comércio quebrava o gião dos países anglo-saxões: o protestantismo. Este não os atraía tanto como op­
monopólio espanhol e proclamava a liberdade de abrir a América ao mundo. A ção religiosa pessoal - bem poucos se converteram ao protestantismo - quanto
emancipação nacional era a chave de um novo mundo. como aliado na luta contra o domínio clerical. Assim como a emancipação havia
Esta rebelião inaugura a segunda era de nossa história: a era da moder­ quebrado o monopólio comercial espanhol, o protestantismo ajudaria a desfazer o
nização. Nossos intelectuais concebiam-na em total oposição à antiga ordem colo­ monopólio religioso católico. Por outro lado, o protestantismo (referiam-se princi­
nial. O mundo anglo-saxão vem a ser ao mesmo tempo modelo e aliado na luta. "A palmente ao puritanismo) ajudara a plasmar as virtudes necessárias ao mundo
idéia de liberdade”, escrevia o intelectual chileno Bello, “ foi um aliado estrangeiro moderno: liberdade de pensamento, responsabilidade pessoal, um espírito pioneiro
que combatia sob a bandeira da independência.”7 Sarmiento, o grande pedagogo e empreendedor, seriedade moral e honestidade. Era a religião da cultura, da ativi­
liberal e presidente da Argentina, não vacilava em traçar este ousado contraste: dade e do dinamismo, em oposição ao ritualismo, à vã especulação escolástica e
ao mundo futuro. A religião da vida e do movimento, contra a do imobilismo e da
A civilização norte-americana foi obra do arado e da cartilha; a sul-americana foi des­
truída pela cruz e pela espada. Lá, aprendeu-se a trabalhar e len aqui, a brincar e re­
morte. Sob os auspícios destas elites liberais, criaram-se as condições para a in­
zar.8 trodução das missões protestantes na América Latina. Assegurou-se a liberdade
religiosa - não sem resistências - e, em alguns casos, se buscou e incentivou
O líder chileno Bilbao resumia a oposição entre a antiga religião e o novo a imigração protestante.
mundo numa alternativa radical: “ catolicismo ou republicanismo”9. O protestantismo ingressou na América Latina por diversas vias. Por um
Vários aspectos de nossa história se formaram no perfodo de quase meio lado, através das colônias de imigrantes alemães, holandeses e de outras nações
século de luta entre a intelectualidade liberal e a Igreja Católica Romana. Esta era de maioria protestante. Por outro lado, as missões protestantes anglo-saxônicas
incapaz de encarar uma cultura em que tivesse que ganhar seu lugar na sociedade conseguiram reunir comunidades de convertidos em torno da pregação de um
mediante a persuasão e influência diretamente exercidas sobre as pessoas. Daí simples evangelho de salvação pessoal transplantado dos revivais americanos e
que naturalmente buscou apoio naqueles grupos e partidos que lhe ofereciam a britânicos. As missões estabeleceram escolas de excelente qualidade, que ser­
possibilidade de prolongar suas formas tradicionais de influência. Só sabia exercer viam à elite liberal, na esperança de criar uma intelligentsia que transformasse a
seu ministério “a partir de cima” . Conseqüentemente, aliou-se aos partidos con­ atmosfera espiritual do continente. Em muitos lugares ofereceram-se múltiplos ser­
servadores, integrados pelos ricos latifundiários e pela antiga aristocracia espa­ viços médicos e sociais. O protestantismo, religião proscrita na maior parte dos
nhola. Com isso aprofundou ainda mais sua dependência. Alienou desta maneira países latino-americanos até 1850, ultrapassara os 200 mil adeptos no final da
tanto os camponeses quanto as classes operárias emergentes. (Estes se aferra­ Primeira Guerra Mundial. Depois, sob a forma de pentecostalismo, penetrou nas
ram a seu catolicismo popular, imbuído simultaneamente de uma profunda descon­ massas inquietas que as transformações econômicas e sociais deslocavam em
fiança frente à hierarquia da Igreja e de uma hostilidade em relação a ela.) Alienou migrações internas. Alcançou finalmente uma fantástica taxa de crescimento, que
igualmente a intelligentsia que abraçava as novas idéias filosóficas e políticas. Nas já chegou aos 10 milhões de crentes10.
primeiras décadas da luta (1810-1870) a Igreja viveu um período de grande anar­ O protestantismo se instalou na América Latina entre 1870-1890. Cin­
quia e confusão que a deixou desorganizada, sem sacerdotes, incapaz de unificar- qüenta anos depois, uma coleção de testemunhos de intelectuais latino-america­
se em torno de um centro e mobilizar-se segundo um plano. Quando se recuperou nos documenta a compreensão do significado e função que a intelligentsia liberal
- desta vez sob a orientação direta de Roma - e começou a reorganizar-se, a atribui a estas Igrejas11:
preparar seus quadros, a estabelecer seminários, a organizar o apostolado leigo,
ela o fez na esperança de estabelecer “uma nova cristandade” . É um sonho que Aqui o catolicismo sempre foi incompatível com a democracia. ( . . . ) A democracia sur­
giu em nossa terra por um instinto da agonia popular, pelo reflexo da democracia an-
ainda não morreu. Contudo, parece diluir-se com a incapacidade dos partidos de-
glo-saxônica e pelo impulso emocional da revolução francesa. No norte a democracia
mocrata-cristãos de oferecer uma alternativa viável na situação crítica atual. nasceu sob o alento da religião; aqui, apesar dela. Não me parece que os governos
Entretanto, em nosso itinerário, devemos retornar aos albores da idade da destas repúblicas devam aceder à pressão das hierarquias católicas para obter um mo­
modernização, com seus líderes e profetas liberais. Não haveremos de nos sur­ nopólio de fato sobre os espíritos ( . . . ) E parece-me que uma das mercadorias de mais
preender pelo fato de que estes, envolvidos no conflito, se sentissem atraídos pelo urgente importação a estes territórios é a das idéias, qualquer que seja a forma em

10. Tentei desenvolver brevem ente e docum entar esta in te rp re ta çã o da relação entre o protestan tism o e a so­
7. A n drés BELLO, cita d o por L. ZEA, Las id e a s en Iberoam érica en e l s ig lo XIX, La Plata, 1956, p. 31. Tanto o ciedade latino-am ericana no artig o “ V isão da m udança socia l e de suas tare fas p o r p arte das Ig re ja s cris­
re p ú d io da herança espanhola como a adoção do m odelo a n g lo -a m e ric a n o p o r parte dos inte le c tu a is latino- tãs náo-catôlicas", in: INSTITUTO FE Y SECULARIDAD, e d ., Fé cristã e transform ação s o c ia l na A m érica
am ericanos da época im ediatam ente p o s te rio r à em ancipação {B e llo , Lasta rria , S a rm iento e outros) estão Latina, P e trépolis, Vozes, 1977, p. 160-79.
bem docum entados no clássico liv ro de ZEA, The Latin A m erican M ind, O klahom a, 1963. Zea d istingue m ulto 11. J. P. HOWARD, Lib e rta d re lig io sa en A m érica Latina?, B u enos A ire s, 1945. As citaçées são, respectiva-
claram ente entre as tendências lib e ra is das p rim e ira s décadas e as positiv is ta s posteriores.
mentem, de M ário C lerena RODRÍGUEZ, e d ito ria lis ta da revista lib e ra l cubana Am érica (1943) {citação da
8. D. F. SARMIENTO, C onflicto y arm onfa de razas en Am érica, cita d o p o r ZEA, Las idea s. . p. 32. p. 156 do livro de H oward), E n riqu e U ribe WHITE, autor colom bia no (p. 133), H. Fernán dez ARTUCIO, le­
9. C itado por L. ZEA, ib ld ., p. 42. gis la d o r uruguaio (p. 207) e M anuel C. FERRAZ, ju iz b ra s ile iro (p. 235). O g rifo ô nosso.

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tico do Atlântico Norte, que começa no século XIX e continua até o presente. Tanto
que venham envoltas. ( . . . ) Já é tempo de soprar por esses rincões, ainda impregna­
por sua origem histórica como por seu ethos, o protestantismo ingressou em nos­
dos dos resquícios do séc. XVI, os ares da Reforma, que levaram tanto tempo para cru­
zar o Atlântico. O pensamento filosófico deste país é liberal. ( . . . ) A presença de rrys- so mundo latino-americano como o acompanhamento religioso da democracia libe­
sionários protestantes no Uruguai foi benéfica para um melhor conhecimento dos Esta­ ral e da livre empresa capitalista. Ele era o “aroma religioso” do mundo burguês.
dos Unidos e para o melhor entendimento entre o Uruguai e aquele pafs. Por quâ? Por­ O catolicismo romano aferrou-se com todas as suas forças à ordem co­
que entendiam melhor que os missionários católicos quais os princípios que poderiam lonial tradicional e sua continuidade conservadora. Por isso lutou com todas as
convir melhor ao espírito fundamentalmente democrático do povo uruguaio.
suas forças contra a invasão do mundo moderno. Contudo, seu empenho era im­
O protestantismo deu homens íntegros e úteis ao pais (Brasil). Cultivou em
seus adeptos um sentido de responsabilidade e honestidade. O protestantismo soube possível, por ser contraditório. À medida que avançava o processo, os interesses
criar um caráter Integro em seu povo. Despertou um anseio de conhecimentos e culti­ econômicos de seus aliados se tornavam cada vez mais dependentes dos víncu­
vou o gosto pelo estudo e pela leitura dos livros. los com o mundo do Atlântico Norte. As diferenças ideológicas entre conservado­
res e liberais, entre partidos aristocráticos e democráticos, foram perdendo signifi­
A democracia, a liberdade, a integridade moral, a ciência e a cultura: eis cado em proporção à unificação de seus interesses econômicos. A partir da Se­
as metas que a nova religião há de ajudar a alcançar. A leitura das atas e docu­ gunda Guerra Mundial, quando as massas entraram na arena social e política,
mentos dos congressos evangélicos latino-americanos e dos relatos dos missio­ conservadores e liberais se confundiram cada vez mais, congregados pela defesa
nários não deixam dúvidas de que o protestantismo aceitou esta tarefa. Sem dúvi­ da ordem capitalista. A Igreja Católica, por sua vez, começava então uma lenta
da, há uma grande distância entre um evangelista fundamentalista, um educador marcha de conversão aos valores da sociedade moderna. O Concilio Vaticano li
presbiteriano e um imigrante luterano alemão. Apesar disto, sua concepção do pa­ foi o ponto de chegada: democracia participativa na concepção e governo da Igre­
pel cultural do protestantismo na América Latina, explícita ou implícita, consciente ja, participação consciente no culto, liberdade religiosa e dignidade da pessoa co­
ou não, basicamente é uma só em cada um deles. Seu credo pode ser sintetizado
mo valores cristãos fundamentais: sobretudo, a defesa da autonomia da cultura, da
nesta tersa fórmula de um missionário que cumpriu um extenso e fecundo ministé­
ciência e dos âmbitos político e econômico. Algumas hierarquias latino-americanas
rio nestas terras:
mais avançadas (como por exemplo a chilena) já se haviam mobilizado nessa di­
reção. Após uma longa guerra, o catolicismo romano e o protestantismo podiam
O cristianismo, com sua ênfase no valor do indivíduo e na liberdade do espírito humano
sob a disciplina de Deus, é o fundamento mais seguro para a liberdade e democracia unir suas forças para apoiar uma sociedade democrática, liberal e progressista na
que a América Latina anseia. ( . . . ) Esta resposta só se dará se as Igrejas evangélicas América Latina. Seria uma América Latina “desenvolvida” , que finalmente alcança­
estiverem dispostas a utilizar todos os seus recursos e avançar ( . . . ) . ' 2 ria os níveis de bem-estar e progresso característicos da comunidade norte-atlân-
tica desenvolvida. Esta era uma segunda e diferente “ cristandade” - moderna, li­
Como na seção correspondente ao catolicismo romano, também aqui nos beral, burguesa e democrática. Uma cristandade que, não obstante, estava desti­
absteremos, por razões de espaço e competência, de tentar fazer uma análise
nada a ser questionada e perturbada já antes de conseguir uma clara consciência
cuidadosa do significado social, cultural e religioso do protestantismo para nosso
de si mesma. E assim retornamos aos "cristãos pós-neocoloniais” de que falamos
continente. O que mais importa a essa altura de nosso argumento ê perceber que
no início.
desempenhou um papel significativo, embora de menor alcance, no projeto liberal-
Como ocorreu esta crise? À medida que se desenvolvia o processo de
modernizador que a maioria dos países latino-americanos tentou levar a cabo a
modernização, começaram a se manifestar, cada vez com maior força, os aspec­
partir de meados do século passado. Ele lhe conferiu aprovação religiosa. Deus
tos mais sombrios do mesmo. A América Latina repentinamente percebeu que ti­
não estava atado ao mundo medieval, pré-cientffico, feudal e aristocrático. Era o
nha sido verdadeiramente incorporada ao mundo moderno, mas não como um só­
Deus da liberdade, da cultura, da democracia e do progresso, o Deus a quem se
cio atuante, chamado a desempenhar um papel cada vez mais significativo na di­
honrava com a inteligência, o trabalho e a honestidade. E verdade que o protestan­
reção da empresa, e sim como mero dependente, destinado a possibilitar o perma­
tismo reforçou alguns tcaços tradicionais de nossa cultura. Mas seu ethos - mes­
nente incremento do lucro do patrão. Retornaremos, no próximo capítulo, à análise
mo em suas formas conservadoras - operava na direção que acabamos de indi­
deste fenômeno, porém desde já devemos antecipar alguns elementos básicos
car.
que são indispensáveis para a compreensão da “nova consciência cristã” a que
Quando um pobre camponês ou, mais freqüentemente, um operário das
nos referimos.
novas seções industriais se converte ao protestantismo, deixa de beber, começa a
O elemento definidor da nova consciência latino-americana é o fato de ter
trabalhar regularmente, funda uma família, aprende a ler e escrever. Conseqüen­
percebido que nossa emancipação política da Espanha - por mais justificada e ne­
temente, ganha status econômico e social. Com toda a probabilidade, seus filhos
cessária que tenha sido - foi um passo no caminho da expansão colonial e neo­
terão sucesso. Chegarão aos “ progressistas” setores médios da sociedade. O
colonial anglo-saxônica. A emancipação da Espanha nos deixou em disponibilida­
protestantismo está assim ligado ao impacto ideológico, cultural, econômico e polf-
de como provedores de matérias-primas primeiramente e de mão-de-obra barata e
mercados cativos logo a seguir. Ao redor de 1870, duas citações de intervenções
12. W. S tanle y RYCROFT, R e lig io n a n d F a ith in L a tin A m erica, P h ila d e lp h ia , 1 95 8, p. 10.
no parlamento britânico o expressam com todo o realismo: “ Quero, sustentando

24 25
minha doutrina do livre câmbio", assinalava o primeiro-ministro britânico, “ fazer da necessário integrar em nossa consciência histórica tanto o passado colonial
Inglaterra a fábrica do mundo, e da América, a granja da Inglaterra."13 Dizem que quanto o neocolonial. Poderemos então apreciar seus valores e contribuições si­
em certa ocasião um legislador comentou o seguinte: “ A Argentina é nossa colônia multaneamente negados, transmutados e superados. Contudo, neste momento o
menos onerosa; sustenta inclusive seu próprio exército de ocupação.” A verdade é mais importante é compreender a gigantesca falácia de toda a empresa moderni-
que nosso assim chamado processo de modernização foi determinado e ditado zadora. Isto porque os esforços de prolongar, consolidar e levar a cabo esta
pelas conveniências e necessidades dos senhores de ultramar. A relativa diversi­ orientação só podem criar miséria e tragédia maiores para nosso continente. O en­
ficação e auto-suficiência de uma economia agrária foi substituída pela monocultu­ gano fundamental consiste em compreender e descrever o aumento da riqueza e
ra daqueles produtos que as metrópoles necessitavam. A Argentina foi destinada a poder dos países do Atlântico Norte como uma conquista moral devida a certas
produzir carne e grãos; o Brasil, café; o Chile, salitre e cobre; os pafses da Améri­ condições de caráter e aos princípios da democracia, da livre empresa e da edu­
ca Central, bananas; Cuba, açúcar; a Venezuela, petróleo. E assim sucessiva­ cação. Daí se deduz que qualquer país que adote estes princípios e adquira estas
mente, segundo momentos e necessidades diferentes. O complexo rodoviário e qualidades naturalmente se desenvolverá da mesma maneira. Mais recentemente
ferroviário não foi traçado para conseguir o desenvolvimento e a comunicação in­ acrescentaram-se a tecnologia e o planejamento a esta ordem sagrada do desen­
terna ou latino-americana, mas como uma bomba de dois tempos: no primeiro, volvimento. Com toda a certeza nosso continente não vai se desenvolver se não
concentrava-se a produção do país na grande cidade portuária escolhida; no se­ houver trabalho, responsabilidade, honestidade e democracia. Tampouco podere­
gundo, era bombeada até a metrópole de ultramar. A diferença entre a fase britâni­ mos fazê-lo sem tecnologia e planejamento. O que muitas vezes ignoramos ou
ca e a americana deste processo responde a dois momentos diferentes da história dissimulamos é o fato de que o progresso dos países nórdicos teve lugar num
industrial, tecnológica e econômica, aos quais correspondem suas respectivas he­ momento particular da história. Além disto foi favorecido pelas possibilidades ofe­
gemonias. Mas o fato básico da determinação de toda a nossa economia e desen­ recidas pelos recursos dos países dependentes. Desenvolvimento e subdesenvol­
volvimento por parte das .necessidades e problemas dos amos de turno é, em am­ vimento não são duas realidades independentes, nem duas etapas de um continu-
bos os casos, o rnesmo. As intervenções políticas e militares, tão bem conhecidas um, mas duas fases inter-relacionadas de um mesmo processo: o subdesenvolvi­
- e tantas vezes hipocritamente lamentadas e condenadas - , particularmente dos mento latino-americano é a sombra do desenvolvimento norte-atlântico. O desen­
Estados Unidos da América do Norte na América Latina, não são senão manobras volvimento deste mundo se constrói sobre o subdesenvolvimento do “Terceiro
necessárias à proteção desta relação econômica. A América Latina descobriu o Mundo” . As categorias básicas para compreender nossa história não são desen­
fato básico de sua dependência. Nele se concentra o significado do projeto liberal- volvimento e subdesenvolvimento, e sim dominação e dependência. Este é o cen­
modernizador. tro do problema.
Um segundo elemento é o desmascaramento da fraude da democracia. E No próximo capítulo voltaremos a uma breve caracterização da dinâmica
verdade que nossas constituições nacionais incorporaram todas as formas da de­ de dominação e dependência. Em todo caso, se as afirmações que acabamos de
mocracia liberal. Porém estas continuaram tão estranhas à realidade da vida do fazer são corretas em alguma medida, a ideologia liberal sob a qual se lançou o
povo como o foram, em seu tempo, as “ leis das índias” . Como aquelas, “eram projeto modernizador na América Latina é hoje um instrumento de dominação. Isso
acatadas, mas não cumpridas” . A estrutura de classes da colônia se prolongou por mais excelentes que tenham sido suas intenções e qualquer que tenha sido
nas novas condições econômicas e sociais. Os líderes da emancipação e da mo­ seu valor histórico como necessária subversora do estrangulamento de uma so­
dernização olhavam para a Europa e os Estados Unidos e davam as costas ao ciedade feudal. Tal ideologia converteu-se em aliada do imperialismo e do necolo-
interior de seus próprios países. Ali, índios e camponeses eram incorporados ao nialismo. Esta é a convicção que se impõe hoje a um número cada vez maior de
projeto liberal como simples mão de obra econômica da nova forma de produção. estudantes, intelectuais e às massas que vão tomando consciência de sua situa­
Sua condição talvez fosse pior do que aquela que haviam sofrido antes em mãos ção. A rejeição da ideologia liberal modernizadora pode ocorrer como resultado da
de um regime paternalista. Este às vezes podia ser mais ou menos tolerante. A li­ análise sócio-polftico-econômica ou simplesmente irromper no povo comum que
berdade de imprensa, o livre comércio, a educação, a política — todas as conquis­ interpreta sua experiência na feira, na fábrica e nas urnas. De fato, os ideólogos li­
tas do liberalismo - eram privilégios da elite. Para as crescentes massas latino- berais entoam o réquiem de seus próprios sonhos. Pois admitem, cada vez com
americanas, a colheita de um século de “ democracia liberal" foi a escravidão, a menos rodeios, que os governos militares e uma escalada da repressão são os
desnutrição, o analfabetismo; posteriormente, as migrações forçadas, o desem­ únicos meios pelos quais se pode “ proteger a liberdade e a democracia” . Portanto,
prego, a exploração, o amontoamento. Finalmente, a repressão, quando se atre­ no último estágio do caminho liberal, a liberdade formal dos modernizadores vem a
viam a reclamar seus direitos. ser a justificativa ideológica de um estado policial repressivo. Hoje, quando alguém
A avaliação, a longo alcance, do significado do projeto liberal na história grita “ liberdade" na América Latina, suspeitamos imediatamente que se trata de um
reacionário. E raramente nos enganamos quanto a isso14.
da América Latina é um tema em aberto. O autor pensa que, no devido tempo, será

14. Talvez a docum entação m ais irô n ica deste fato seja o famoso R o ckefe ller R e port. N ele, N elson R ockefeller
13. C itada por G. BEYUALTT, Rafccs c o ntem porâneas de A m érica latina, Buenos A ires, 1964, p. 40. - o “ lib e ra l" da p o lític a norte -a m e rica n a e um dos m ais destacados defensores do m odelo desenvofvim en-

26 27
O cristianismo enfrenta na América Latina a crise desencadeada pelo as portas a uma nova busca: a busca de uma compreensão pós-colonial e pós-
colapso dos dois projetos históricos aos quais se havia vinculado estreitamente. O neocolonial do Evangelho de Cristo. Em caráter de ensaio, os cristãos latino-ame­
catolicismo sofreu a primeira crise na época da emancipação dos pafses do conti­ ricanos falam de uma “teologia da libertação” , uma “ Igreja dos pobres” , “a Igreja do
nente. Na medida em que continuou aferrado à sociedade tradicional, semifeudal, povo” , um “ cristianismo revolucionário” . Estas e muitas outras expressões seme­
ainda não superou esta crise. Gera caracteriza isto como sendo a situação de lhantes são sempre inadequadas e às vezes desorientadoras. Quando são usa­
“grupos minoritários, com uma posição de reação exasperada, que prolongam o das, o que de fato está em jogo é a urgência de entender o que significa ser povo
monismo religioso-polltico colonial". O “ catolicismo progressista” , aggiornato pelo de Deus na nova América Latina que há de emergir penosamente. Existe uma
Vaticano II, bem como o protestantismo, compartem a crise da ideologia liberal- compreensão do cristianismo que já não seja mais correlativa da dependência,
modemizadora. O cristianismo, cooptado petos sistemas colonial e neocolonial mas da libertação?
como autorização religiosa e justificativa ideológica, enfrenta uma terrfvel experiên­
cia de autocrítica.
E uma crise de consciência, na qual os cristãos descobrem que suas
igrejas se tomaram aliados ideológicos das forças nacionais e estrangeiras
que mantêm seus pafses em situação de dependência e seus povos em escravi­
dão e necessidade. O secretariado da CLASC (Confederação Latino-americana
Sindical Cristã) expressava, por ocasião do Congresso Eucarístico de 1968, este
duro jufzo, em carta aberta ao papa Paulo VI:

Mas cuidado, irmão Paulo! A religião e a Igreja foram constantemente utilizadas na


América Latina para justificar e consolidar as injustiças, as opressões, as repressões, a
exploração, a perseguição e o assassinato dos pobres.15

Uma longa história de aliança com a aristocracia latifundiária e seus go­


vernos conservadores, o poder potencial e real da Igreja, raramente colocado a
serviço de mudanças profundas na sociedade, o contraste entre uma Igreja rica e
um povo faminto: são estes os fatos que alimentam a crise tão difundida hoje entre
leigos e sacerdotes jovens, sem excluir vários bispos.
É também, em particular para os protestantes, uma crise de identidade.
Após orgulhar-se durante décadas de sua posição progressista vis-à-vis com o
catolicismo, começam a perceber que seu papel foi muito mais ambíguo do que
haviam imaginado. Mesmo quando se admite - e esta é a convicção de quem es­
creve estas páginas - que foi historicamente necessário quebrar o invólucro da
mentalidade colonial tradicional e que o protestantismo desempenhou um papel
significativo para isso, o protestante não pode fazer outra coisa senão perguntar-
se: na verdade, não oferecemos autorização religiosa a um novo colonialismo?
Não contribuímos para criar uma imagem benevolente e idealizada das potências
coloniais (especialmente dos EUA), camuflando o caráter letal de sua dominação?
Esta preocupação torna-se mais aguda quando jovens missionários, leigos, pasto­
res, sacerdotes vêem que suas Igrejas se conformam cada vez mais com o ethos
reacionário das oligarquias e dos setores médios aliados àquelas.
Tanto protestantes quanto católicos “ repentina e inesperadamente vêem
suas Igrejas a serviço dos interesses de uma estrutura desumana” como disse J.
L. Segundo. Mas esta “experiência traumática” , como ele mesmo a chama, abre

tista para a A m érica Latina após uma sé rie de visitas p ro lo n g a d a s e m inuciosas à A m érica Latina, por
en ca rg o do pre sid e n te Nixon, chega à convicção de que os g o v e rn o s m ilita re s fortes podem ser a ú níca
form a de preservar a A m érica Latina liv re para a "de m o c ra c ia " e o "p ro g re s s o ".
15. C arta a b le rta de tfa b a ja d o re s latlnoam erlcanos ai papa P a b lo V I, in: J. L. SEGUNDO & R. CETRULO, e d s .,
tglesla la tin o am ericana, p rotesta o profecia?, Buenos A ire s , 1969, p. 82 .

28 29
CAPÍTULO 2

A DESCOBERTA DE NOSSA REALIDADE

“ Porque já passou a década do desenvolvimento e já iniciamos a década


da libertação. Porque a libertação é o novo nome do desenvolvimento.” 1 Com es­
tas palavras o editor introduz uma coleção de ensaios sobre a teologia da liberta­
ção na América Latina. De fato, a articulação de sua obediência e a razão de sua
fé têm, para a consciência cristã que estamos tentando refletir, esta convicção
como sua premissa básica. A mesma descansa sobre uma interpretação e uma
análise da situação latino-americana para as quais a transição do desenvolvimen-
tismo (ou reformismo) à libertação é o elemento crucial. A reflexão e a ação de que
tratamos são de tal natureza, que não têm sentido à parte desta análise e interpre­
tação. Uma fé e uma obediência comprometidas não podem se mover do lado de
fora ou por cima do mundo no qual tal fé e obediência se realizam. Por conseguin­
te, para penetrar nesta teologia somos obrigados a deter-nos na compreensão e
análise da realidade humana na qual ela encontra seu lugar.
Em primeiro lugar, trata-se de tomar consciência da situação na qual vive
o povo de nosso continente. Este assunto não é uma questão de teoria ou de in­
terpretação, mas de simples observação e experiência. Ambas são acessíveis a
quem estiver disposto a visitar a América Latina e penetrar algumas poucas qua­
dras fora da área turística. O desemprego, a desnutrição, o alcoolismo, a mortali­
dade infantil, o analfabetismo, a prostituição, o contraste entre as zonas residen­
ciais e os guetos, a discriminação racial e cultural, bem como a exploração, saltam
à vista até do observador mais distraído. Monsenhor Alberto Devoto, bispo argenti­
no, descreve esta situação, em uma carta pastoral, nestes termos:

Praticamente mantêm sua atualidade os fatores tantas vezes assinalados: crescente ín­
dice de desemprego, aumento constante do custo de vida, atenção sanitária deficiente,
premente situação da família rural, promessas oficiais não cumpridas, auge da corrup­
ção e do jogo, falta de liberdade de expressão, múltiplas formas de violência, legisla­
ção repressiva para atemorizar o povo, não-participação popular nas decisões, etc. Se
tivéssemos que acrescentar algo a tudo o que se disse em outras oportunidades, seria
assinalar que todos estes problemas se agravaram num ritmo realmente alarmante.2

Traçamos aqui apenas algumas pinceladas de um quadro impressionista.


Facilmente podemos traduzi-las na linguagem fria das cifras e estatísticas. Eis al­
guns dados extraídos de um informe das Nações Unidas datado de alguns anos
atrás, comparados com outros de data mais recente. Sem comentários, medem
simultaneamente a situação real do continente e o resultado líquido daquilo que se

1. G. PÉREZ, e d ., S im posio sobre te o lo g ia de la lib e ra c iô n II, B o gotá , 1970, p. 4.


2. A. DEVOTO, P autas para una re fle xló n de la Iglesia de Goya al com enzar el afto 1973, La O p in lô n , Buenos
A ires, 13 fev. 1973, p. 8.

31
chamou de “década do desenvolvimento"3.
centração sobre uma só indústria extrativa ou sobre a monocultura (. . .) para um mer­
Dois terços da população latino-americana - talvez mais até - estão fisica­ cado externo ( . . . ) levou algumas regiões à beira da ruína econômica.
mente desnutridos, quase beirando a fome em algumas regiões. A incidência da “ inflação importada” , segundo o Boletim da CEPAL de
O uso da coca, do álcool e até a ingestão de terra são, em algumas áreas, 1976, foi, em 14 países latino-americanos, de 1 0 ,5 a 2 1 % e m 1 9 7 4 . O déficit comercial
tentativas de compensação. Segundo o Boletim do CEPAL (abril de 1976), a produção aumentou em 1975 em cerca de 1,85 bilhões de dólares, enquanto que o saldo adver­
de calorias diárias por habitante em 1973 subiu a 3.070 (o mínimo necessário estimado so da conta corrente aumentou em 3,35 bilhões de dólares. Apesar de que em 1975
é de 2.500 a 3.000). Mas 50% da população se encontra abaixo dessa média (20% houve uma m aior entrada de capitais de 1,9 bilhões de dójares, foi preciso recorrer à
consome uma média de 1.700 a 1.850 e 30% de 2.100 a 2.300). utilização de reservas internacionais num montante d e 2,3 bilhões de dólares.
Três quartas partes da população de vários países latino-americanos é O comércio dentro dos países latino-americanos, e especialmente entre
analfabeta; em outros, entre 20 e 60%. eles, está muito pouco desenvolvido.
Em países relativamente avançados como a Argentina, o analfabetismo e a Exceto na Colômbia, na Argentina, no Brasil e no Uruguai, a percentagem
deserção escolar avançaram nos últimos dez anos. O informe da UNESCO, 1966, con­ de pessoas “ ativas" ou empregadas em atividades rentáveis na América Latina é con­
clui: “ As tendências que se observam em relação ao problema do analfabetismo na sideravelmente inferior à dos EUA ou da Europa (40,8% nos EUA; 45% na Europa;
América Latina não permitem acalentar um excessivo otimismo. Embora o percentual 43% na Austrália; 30% na América Latina).
de analfabetos esteja se reduzindo desde o início do século ( . . .) as cifras absolutas
Continua a deterioração do poder aquisitivo do salário, particularmente nos
não decrescem. Em alguns casos até se duplicaram. (. . . ) Observa-se a alta correla­
países mais evoluídos do continente. No Brasil, na Argentina e no Chile, durante os úl­
ção existente entre analfabetismo e baixa renda por habitante, a estreita relação entre
timos três anos, a deterioração oscilou entre 5% e 40% ao ano.
ignorância e pobreza.
A metade da população latino-americana sofre de enfermidades por infec­
ção ou desnutrição. Os dados são abundantes e falam por si mesmos. O quadro que configu­
Enquanto as enfermidades "degenerativas" ou “ deteriorativas” atingem ram é impressionante, e poucos ousariam negá-lo. As discrepâncias começam,
49,7% da mortalidade nos EUA, as mesmas ocupam só um modesto 7 a 10% na Améri­ contudo, quando se trata de diagnosticar as causas e prescrever a cura destes
ca Latina. Aqui as pessoas não vivem o suficiente para chegar a preocupar-se com o males. É nestes pontos que ocorre o contraste entre progressistas e revolucioná­
câncer ou doenças cardíacas. rios.
Cerca de um terço da população latino-americana em idade produtiva conti­
nua fora do âmbito econômico, social e cultural da comunidade. O poder aquisitivo do Por volta de 1950 surgiu na América Latina uma grande esperança, en­
índio latino-americano é em muitas áreas praticamente nulo. gendrada pelos planos de desenvolvimento. O Terceiro Mundo, segundo a inter­
Durante a última década devemos acrescentar o fenômeno do crescente de ­ pretação que fundamentava estes planos, ainda se encontrava nas etapas iniciais
semprego. Em países como o Chile ele superou os 20% da população ativa (e nas zo­ de um processo de desenvolvimento já percorrido pelos países do Atlântico Norte.
nas marginais muito mais). Isto é conseqüência da recessão econômica criada pelos
Ainda nos encontrávamos mergulhados na sociedade tradicional. Nossas econo­
planos de "estabilização" monetária e redução da inflação.
Uma esmagadora maioria da população rural latino-americana carece de mias careciam de planejamento e não conseguiam incorporar a totalidade da po­
terra própria. Dois terços ou mais dos recursos agrícolas, florestais ou pecuários são pulação ao processo produtivo. A dependência das indústrias extrativas (agricultu­
propriedade - ou estão sob o controle - de um punhado de proprietários nativos ou de ra, pecuária, mineração) colocava-nos à mercê dos mercados mundiais tanto para
corporações estrangeiras. a exportação de matérias-primas como para a aquisição de produtos manufatura­
Nas regiões da Amazônia, no Brasil, recentemente abertas, os investidores
dos, criando assim termos de intercâmbio desfavoráveis. Ao mesmo tempo, uma
norte-americanos adquiriram nos últimos cinco anos 60 milhões de hectares.
A maior parte das indústrias extrativas são propriedade de (ou estão contro­ mentalidade estática, ainda ligada à terra, à conservação, ao ritmo da natureza não
ladas por) empresas estrangeiras. Elas enviam aos seus países de origem uma porção nos capacitava nem nos incitava ao domfnio da natureza, tão indispensável ao de­
considerável dos lucros. Ademais, muitas das instituições de produção e distribuição senvolvimento. Este era o diagnóstico básico. Qual era a cura? Era necessário
são controladas por capital estrangeiro. planejar e integrar a economia, diversificar a produção, acelerar a industrialização,
O investimento dos EUA na América Latina no período 1950-1965 alcançou elevar os níveis de educação, saúde e nutrição, incorporar a população marginal à
3,8 bilhões de dólares. Os lucros transferidos aos EUA neste período alcançaram 11,3
bilhões. Se deduzimos desse montante 5 bilhões de ajuda oferecidos à América Latina,
vida nacional e ao processo de produção.
resta um saldo líquido de 5 bilhões a favor dos EUA. Ademais, não poucos bancos e Como atingir estes objetivos? Os países nórdicos já o tinham conseguido.
instituições financeiras foram adquiridos por bancos estrangeiros. Tratava-se, assim, de seguir seu exemplo. As chaves eram o acúmulo de capital e
As condições de vida da maioria da população latino-americana são parti­ a introdução de tecnologia e planejamento. Quando estes processos se aceleras­
cularmente instáveis, pois dependem das flutuações do mercado internacional. A con­
sem, chegar-se-ia a um ponto de “arrancada", a partir do qual as economias se
expandiriam naturalmente. Assim a sociedade de bem-estar, já existente no mundo
3. NAÇÕES UNIDAS, Inform e p re lim in a r sobre ia situ a ció n s o c ia l d e i m undo, New York, 1952. Os dados com­ norte-atlântico, despontaria também no horizonte do Terceiro Mundo. Com este
para tivo s p o ste rio re s foram tirados de S ituació n dem ográfica, económ ica, soc ia l y educativa de Am érica La­ propósito, os países latino-americanos deveriam organizar-se internamente, esta­
tina, p ub licados por UNESCO (Buenos A ires. 1966) o b o le tin s do CEPAL. N3o pretendem os dar uma inform a­
ção com pleta e a tualizad a, mas sô ilustrativa. Um bom resum o, que inciu i cifras e estimativas m uito e q u ili­ bilizar suas economias, evitar a instabilidade política, efetuar certas reformas na
bradas, com fontes fidedign as e até conservadoras, se acha no artig o de J. de SANTA ANA, La Insatislación propriedade da terra e na política tributária. Isto visaria redistribuir de forma mais
do las m asas en A m érica Latina, C ristianism o y Sociedade, 5 : 2G-35, 1964.
eficaz a riqueza, bem como oferecer condições favoráveis e atraentes ao investi-

32 33
mento do mundo desenvolvido, que traria capital e tecnologia4. e ainda está ocorrendo na América Latina? Queremos resumir aqui alguns dos
As Nações Unidas anunciaram a primeira “ década do desenvolvimento" elementos básicos desta análise5.
A teoria de desenvolvimento que se aplicou ao Terceiro Mundo funda­
em 1950. Criou-se uma série de organizações internacionais a serviço desses
menta-se numa análise a-histórica e mecanicista, dependente de uma sociologia
objetivos: o Banco Internacional de Desenvolvimento (BID), a Ajuda Internacicnal
funcionalista. Três grandes erros, pelo menos, são cometidos nela. O primeiro é
para o Desenvolvimento (AID), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e outros. Os
conceber a história de forma retilínea e unilinear e crer, portanto, que uma socieda­
países do Terceiro Mundo se reuniram em Bandung (1955) a fim de lutar juntos por
melhores condições de intercâmbio. As Nações Unidas criaram uma organização de pode avançar em etapas prévias com relação a outras sociedades que coexis­
tem contemporaneamente. De fato, as sociedades se movem em linhas inter-rela-
para este fim, a Comissão das Nações. Unidas para o Comércio e o Desenvolvi­
mento (UNCTAD) e o Comitê Econômico para a América Latina (CEPAL). Em vá­ cionadas. A “arrancada” das sociedades norte-atlânticas dependeu de suas rela­
ções com as colônias - em geral, do Terceiro Mundo atual. Esta situação não
rios países latino-americanos se instalaram governos populistas. Alguns países la­
existe hoje, e por isso o processo não pode se repetir. Em segundo lugar, o mo­
tino-americanos pareciam encontrar-se em ótimas condições, a ponto de alcançar
delo de desenvolvimento não levou suficientemente em conta os fatores políticos:
a almejada arrancada. Em meio a grandes expectativas, o presidente Kennedy
há um “ efeito de demonstração” que move as massas a reclamar uma participação
lançou em 1961 a Aliança para o Progresso.
na riqueza e bem-estar. Portanto, já não se pode dispor livremente do "trabalho
Poucos anos depois de iniciada a Aliança para o Progresso, já se vislum­ escravo” com q'ue se contou nas etapas iniciais do desenvolvimento do mundo
brava seu fracasso. O abismo entre o mundo desenvolvido e o subdesenvolvido nórdico. Daí a inquietude social e a necessidade de repressão. Em terceiro lugar, a
aumentava em vez de diminuir. Isso ocorreu não só porque nunca se alcançou a teoria supôs que os países desenvolvidos deviam ser o “modelo” normaI dos sub­
média mínima de crescimento considerada necessária, mas porque, aplicada a desenvolvidos. À medida que o processo avança, o Terceiro Mundo se sente cada
pontos de partida tão desproporcionais, até mesmo uma taxa semelhante de cres­ vez menos entusiasmado pela qualidade de vida e pela natureza das sociedades
cimento resultava numa crescente desigualdade. O investimento estrangeiro reti­ norte-atlânticas.
rava da América Latina muito mais do que investia. O processo de produção, dis­ Desenvolvimento e subdesenvolvimento não são dois estágios sucessi­
tribuição e financiamento foi quase totalmente transferido a agentes estrangeiros vos de um processo abstrato e mecânico, mas duas dimensões de um único mo­
(monopólios internacionais). Os termos de intercâmbio continuam sendo desfavo­ vimento histórico. Quando percebemos isto, notamos que a América Latina deve
ráveis. As somas que se pagam pela transferência de tecnologia - protegida por li­ ser estudada como o elemento dependente ou dominado neste processo. E a
cenças do mundo norte-atlântico - superam em muito os benefícios que derivam compreensão deste fato que deu origem a uma nova forma de análise: o estudo
de seu uso. A produção foi incapaz de acompanhar o nível de crescimento da po­ das sociedades dependentes. Este é uma aquisição cientifica de primeira impor­
pulação. Portanto, cresceu o número de marginalizados e sua situação se agra­ tância na sociologia latino-americana dos últimos quinze anos. A dependência po­
vou. Com exceção do Chile (inicialmente no governo de Frei, e depois sob a Uni­ de ser definida como
dade Popular), do Peru e de Cuba, não se produziram neste período reformas
agrárias significativas. Por conseguinte, explode a agitação social por todas as ( . . .) aquela situação em que um certo grupo de países têm sua economia condiciona­
partes do continente. Em numerosos países, os regimes populistas foram substi­ da pelo desenvolvimento e a expansão de outra economia. A relaçãò (. . .) assume a
forma de dependência quando alguns países (os dominantes) podem expandir-se e
tuídos, com o apoio e a ajuda dos EUA, por governos militares que possam garan­
auto-impulsionar-se, ao passo que outros (os dependentes) só podem fazê-lo como
tir as condições de estabilidade que o investimento estrangeiro exige. reflexo desta expansão.6
Porventura é meramente acidental este fracasso? Deve-se ele à incapa­
cidade dos latino-americanos, ou à má-vontade do mundo desenvolvido? Poder- Um dos documentos da Assembléia episcopal de Medellfn, de 1968, ex­
se-ia corrigir esta situação com uma maior habilidade, com intenções mais hones­ pressa isso com uma linguagem menos técnica:
tas, maior tempo e um trabalho mais intenso e racional? Sem dúvida é possível Referimo-nos aqui, particularmente, às conseqüências que traz para nossos países sua
achar todo tipo de explicações parciais. Contudo, um número cada vez maior de dependência de um centro de poder econômico em torno do qual gravitam. Daí resulta
latino-americanos crê ter descoberto que as razões fundamentais devem ser bus­ que nossas nações, com freqüência, não são donas de seus bens e de suas decisões
cadas mais profundamente, na própria natureza do sistema econômico, em sua
estrutura de classes e em seu modo e relações de produção. É este simplesmente
5. É im possível in d ic a r aqui a im ensa som a de investigaçã o so cio ló g ica , econôm ica, po lftlca e c u ltu ra l, relativa
um dogma ideológico ou o resultado de uma análise sóbria e lúcida do que ocorreu à situação de dep endência , levada a cabo na A m érica Latina d u ra n te os últim os 15 ou 20 anos. D ificilm ente
pod ería m os exag era r a im portân cia deste tra b a lh o , inclusive em re la çã o ao surgim ento da te o lo g ia latino-
am ericana. Há um bom resum o e num erosas re fe rê n cia s b ib lio g rá fic a s em G. GUTIERREZ, T eo lo g ia da li­
bertação, 6. e d ., P e tró p o lis, V ozes, 1986, p. 7 5 -8 3 . O utro sum ário e xcele nte é o a rtig o de G. ARROYO,
4. Não podem os d e ixa r de surp re e n d e r-n o s qua ndo, 25 anos m ais ta rd e , e te n d o em vista a e x p e riê n c ia acu­ P ensam ento latin o -a m e rica n o so b re dese nvolvim ento e dep en d ê n cia exte rn a , In: INSTITUTO FE Y SECULA-
m ulada, vá rio s governos la tino-am ericanos revivem quase literalm e nte os sonh os daq u e la década. O que RIDAD, e d ., Fé cristã e tran storm ação so c ia l na A m érica Latina, P e tró p o lis , Vozes, 1977, p. 2 7 0 -8 3 .
naq uela época pod e ria ser co nsid era do in g e n u id a d e ou igno rân cia bem in te n c io n a d a hoje se m ostra c la ra ­ 6. Th. dos SANTO S, La crisis de la te o ria dei d e s a rro llo y las re la cio n e s de de p e n d e n cia en Am érica la tin a , In:
m ente com o com binação do cond icionam entos econôm icos e ideo lógicos. La dep endencia p o lítico -e co n ô m ica de A m érica latina, México, 1969, p. 180.

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econômicas. Como é óbvio, isto nâo deixa de ter suas incidências no plano político,
cito se tornaram capatazes e guardiães destas corporações9.
dada a interdependência que existe entre os dois campos.7
É preciso deter-se um pouco na documentação do uso que os pafses
A dependência não é um fatõ novo. Os territórios latino-americanos in­ norte-atlânticos, particularmente os EUA, fizeram e fazem do poder político e militar
gressaram na história "universal” (a história do Ocidente) como entidades depen­ para apoiar e salvaguardar seus interesses econômicos e políticos. Qualquer país
dentes sob a colonização ibérica. E receberam a seguinte função neste mundo: que tente livrar-se da ocupação econômica enfrenta imediatamente uma série de
fornecer aos pafses colonizadores recursos (principalmente ouro e prata, depois sanções (a emenda Hickenlooper, o veto ou o voto desfavorável no FMI, no BID e
produtos agrícolas), que foram parar finalmente - dado o sistema mercantilista im- em outras agências internacionais, a redução de quotas de importação e o blo­
perante - nas mãos dos países do Atlântico Norte, para financiar o desenvolvi­ queio econômico). Estas medidas são de imediato apoiadas mediante campanhas
mento dos mesmos. O capitalismo entrou em novas fases: industrial e, a seguir, de concertadas da imprensa que responde aos mesmos interesses. Finalmente, co­
consumo. Por isso também variou o papel das nações dependentes: provedoras mo a intervenção militar direta torna-se cada vez mais inconveniente - a última
de produtos agrícolas e matérias-primas, por um lado, e de mão-de-obra barata e ocorreu em São Domingos em 1962 - a CIA, o Departamento de Estado ou as
mercados cativos, por outro. agências privadas, como a ITT, apóiam e provocam golpes militares que possam
Quando os defensores do desenvolvimentismo argumentam que o siste­ favorecer o investimento e o domínio norte-americanos. A história mais recente de
ma capitalista é por natureza dinâmico e progressista, não parecem perceber que Cuba, Peru, Bolívia (onde atuou o “subagente” brasileiro) e o Chile ilustram clara­
o foi em realidade somente para os países que hoje são desenvolvidos. Isso não mente estes fatos. Por outro lado, as recentes revelações da imprensa norte-ame-
significa que o venha a ser necessariamente também para os países dependentes. ricana e o testemunho de diversos funcionários governamentais, inclusive a nível
De fato, não é assim. Um especialista do Banco Interamericano de Desenvolvi­ ministerial, sobre as operações de “desestabilização” de governos, atentados
mento, testemunha insuspeita neste caso, explicava há pouco tempo atrás em criminosos, apoio à polícia local em suas operações repressivas, uso de residen­
uma reunião privada: tes norte-americanos no exterior, inclusive missionários religiosos como agentes
de espionagem e suborno ou corrupção de governantes, por parte da Central de
O investimento é capital-expansivo (capital-intensive).. Na medida em que contribui ao Inteligência (CIA), dispensam maior argumentação. “A confissão da parte torna as
crescimento econômico, não criará espaço significativo para as massas marginais no provas desnecessárias” , diz o clássico aforismo jurídico.
sistema, a não ser que se faça um esforço deliberado por inverter a estrutura da socie­
dade (to turn society upside down) .8
Ao descrever todo este sistema devemos evitar que a indignação moral
obscureça a natureza do problema. Não se trata de pessoas particularmente mal­
O “ milagre brasileiro” oferece uma dramática confirmação da verdade vadas ou de excrescências malignas de um sistema que tem que ser sanado e pu­
desta ingênua confissão. Durante os últimos dez anos o Brasil aplicou inexoravel­ rificado para restaurar sua saúde. Trata-se simplesmente das conseqüências natu­
mente o modelo desenvolvimentista. Era maciçamente apoiado por investidores e rais e inevitáveis dos princípios básicos da organização e dinâmica do capitalismo,
pelo governo norte-americano, evidentemente disposto a criar no Brasil uma vitrine que vão se desdobrando em nossa época tecnológica e nessa história que tornou-
de exposição e um centro subordinado de poder neste continente. Com fria e ab­ se inevitavelmente planetária. A concentração de poder econômico, a busca de
soluta brutalidade pôs-se em marcha uma repressão política e policial para arran­ lucros cada vez maiores, o esforço por obter mão-de-obra barata e evitar grandes
car pela raiz qualquer perturbação política capaz de interferir na marcha do projeto custos são a própria essência deste sistema. Já há quase meio século um inimigo
econômico. Lançou-se uma propaganda em massa destinada a criar uma “ menta­ declarado da revolução e do socialismo assinalava isso ao dizer:
lidade de desenvolvimento” , um sentido de grandeza do destino brasileiro. No final
O que hoje salta mais imediatamente à vista não é apenas o acúmulo de riquezas, mas
de quase uma década, o governo pode alardear uma das mais elevadas taxas de
o acúmulo de um enorme poder, de uma força econômica desmedida em mãos de um
crescimento do produto nacional bruto. Porém é igualmente certo, embora não seja pequeno número de pessoas. ( . . . ) Esta concentração de poder e de recursos, que é
tão interessante de se ouvir, que 41,6% de toda a indústria brasileira está em mãos como a marca distintiva da economia contemporânea, é o fruto natural de uma compe­
estrangeiras (94% da indústria química, 100% da automotriz, 82% da borracha e tência cuja liberdade não conhece limites. . . 10
71% da ferroviária). O valor aquisitivo do salário caiu em 23%. A repatriação de lu­
cros aos centros ultramarinos multiplicou-se por 4,2 em quatro anos (1964-1968) e Os teóricos do neocapitalismo dos pafses desenvolvidos advertem que
continua aumentando. A verdade crua é que o Brasil chegou a converter-se, não as conseqüências mais cruas deste sistema foram eliminadas nos pafses centrais.
em uma colônia, mas numa fábrica das corporações multinacionais. O povo brasi­
leiro tornou-se uma reserva de mão-de-obra barata. O governo, a polícia e o exér-

9. E n tre as num erosas o b ra s rela cio n a d a s com o "m odelo b ra s ile iro " destacam os um livro recente de F. Flenrl-
7. II CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO, C o nclusões de M edellin , 2 . e d ., Sâo que CARDOSO, O m odelo p o lític o b ra s ile iro , Sâo P aulo, 1973. Os dados de nosso te xto sâo tom ados de
P a ulo, P a ulinas, 1975, Seçâo "Paz*, p a rá g ra lo b, p. 25s. uma sé rie de artig os so b re o B rasil que apareceram em La O pinión, de Buenos A ire s , sob os títu lo s "El
8. Jerom e I. LEVINSON, do Inler-A m erlcan D evelopm ent Bank, nas a las do ‘ C o uncil on F oreign R e la tio n s " (um costo p o lític o d e i m odolo econém ico b ra slle fto ” (25 lev. 1973, p. 11 e 27 fov., p. 19). V e |a também C. FUR­
g ru p o de espe cialistas financeiros e Investidores na A m érica Latina, aus p ic ia d o p o r David R o ckefe ller Jr.), TADO, E l m ito d e i d o s a rro llo econôm ico y o l futuro d e i te rce r m undo, Buenos A ires, 1974.
NACLA V ir : 13. 1971. 10. PIO XI, Q uadragésim o ann o, p a rágrafos 105, 107.

36 37
Contudo costumam omitir o fato de que estas mudanças foram conseguidas me­ mundo de hoje, cria nos países dependentes (e talvez não só neles) um estilo de
diante graves conflitos e que foram possibilitadas pela descoberta e exploração de vida caracterizado por artificialidade, egoísmo, busca desumana e desumanizante
outro proletariado, o proletariado externo do Terceiro Mundo. do êxito medido em termos de prestígio social e dinheiro, bem como o abandono da
Entretanto, cometeríamos grave erro se nos limitássemos a descrever a responsabilidade pelo mundo e pelo próximo. Este último ponto é, em alguns senti­
dependência como um assunto meramente externo, uma relação entre dois entes dos, o mais sério. Ao mesmo tempo em que esta cultura falsa e induzida destrói no
globais e diferentes: o mundo desenvolvido e o Terceiro Mundo. Na verdade, os povo até mesmo a consciência de sua própria condição de dependência e explo­
países norte-atlânticos e os periféricos, dominantes e dependentes, integram uma ração, anula as fontes de sua humanidade: a capacidade de erguer-se e tornar-se
única história. Ela determina reciprocamente a estrutura interna, o estilo de vida, a agente de sua própria história, de decidir e de lutar, de conceber e de realizar um
cultura e as relações de uns e outros, embora de distintas maneiras, correspon­ autêntico projeto histórico.
dentes a seu caráter de dominantes ou “ centrais” e de dependentes ou “ periféri­ Contudo, não devemos cair vítimas do pessimismo. O processo que aca­
cos” . Do ponto de vista destes últimos, este fenômeno foi chamado de “ internali- bamos de descrever desenvolve também suas próprias contradições internas.
zação da dependência” . Vários aspectos merecem ser destacados neste contex­ Através delas o homem e a sociedade dependentes tomam consciência de sua
to. situação, reclamam sua humanidade e põem em marcha a luta por sua libertação.
O mais importante destes aspectos se refere à estrutura de classes das Num nível muito elementar, situa-se a contradição que chamamos de “ efeito de
sociedades dependentes. Os interesses econômicos estrangeiros reforçaram, nas demonstração” ou “ revolução de crescentes expectativas". Trata-se do desejo -
etapas iniciais de sua dominação, a estrutura biclassista da sociedade tradicional que de fato é uma compulsão subjetiva — de aceder aos benefícios da indústria de
da América Latina. Estabeleceram um pacto com a classe alta (latifundiários e pe­ consumo. Ora, isto choca-se com o decréscimo objetivo de possibilidades. As po­
cuaristas), induzindo nela um nível de vida que só era acessível mediante a im­ pulações marginalizadas e semimarginalizadas - que aumentam a cada dia com o
portação de cultura e produtos manufaturados requintados. Criaram assim ilhas de desemprego ou com o subemprego - experimentam uma crescente frustração e
alto consumo e sofisticação cultural no mundo colonizado. Ainda mais importante é rebeldia. Ademais, em economias sujeitas a permanente inflação, a pequena bur­
o fato de que estes interesses deram origem a uma nova elite econômica necessá­ guesia urbana (pequenas indústrias, profissões liberais) e os funcionários de cola­
ria para a exploração e direção das indústrias extrativas e para a administração da rinho branco sofrem de modo particularmente agudo esta contradição entre as al­
nova indústria dependente. Apareceram grupos sociais cujos interesses e sobre­ tas expectativas e a perda do valor aquisitivo de seus salários. Não devemos es­
vivência dependem totalmente destes interesses. Mais recentemente foram feitos tranhar, nem atribuir a agitadores profissionais (estes sem dúvida existiram) o fato
esforços conscientes e sistemáticos por incorporar tão diretamente quanto possí­ de que as desordens registradas nas grandes cidades argentinas (Córdoba, Rosá­
vel alguns dos estratos superiores destes grupos às corporações internacionais. rio, Mendoza) em 1968 e 1969 mostraram a classe média unindo-se espontanea­
Isto ocorre seja pela compra de ações com poder de decisão nas empresas na­ mente aos operários para incendiar locais de fábricas estrangeiras, quebrar vidra­
cionais, seja pela inclusão de pessoas destes grupos - e, significativamente, tam­ ças das grandes iojas e levantar barricadas contra a polícia.
bém de pessoal militar de alta patente — nos diretórios locais das subsidiárias das Também desenvolve-se uma contradição entre a pequena burguesia local
multinacionais. As freqüentes visitas aos países centrais e o treinamento que neles e a pequena indústria (não monopolista), por um lado, e os monopólios multinacio­
ocorre de agentes econômicos, militares e técnicos fortalecem a homogeneidade nais, por outro. Aquelas vêem-se cada vez mais asfixiadas pelo poder crescente
de procedimento, estilo de operação e ideologia. A burguesia local dos países de­ destes, que monopolizam o crédito privado e público, reduzem os custos de pro­
pendentes solidariza-se assim completamente com os interesses estrangeiros. dução, controlam o mercado e praticam um dumping que os livra de toda concor­
A invasão cultural completa este quadro. Os meios de comunicação de rência. Nestas circunstâncias, estes interesses nacionais aliam-se, ao menos
massa - em alguns casos propriedade desses mesmos interesses e dependentes temporariamente, aos operários na luta contra o imperialismo econômico estrangei­
em tudo das agências internacionais de notícias e de produção de filmes, discos e ro. Em um país como o Chile, por exemplo, o pequeno e médio capital local cons­
outros meios - difundem os valores e a ideologia dos países norte-atlânticos até os tituía 97% da indústria total, mas utilizava só 56% da força de trabalho e possuía só
rincões mais afastados do Terceiro Mundo. A doutrinação anticomunista e pró-oci- 42% do investimento de capital. Em termos análogos poder-se-ia analisar a peque­
dental e uma sistemática idealização do “modo de vida ocidental-capitalista” pene­ na e média produção rural em relação aos grandes latifundiários e às corporações
tram quase tudo o que o homem comum lê, escuta ou vê (no cinema e na televi­ rurais.
são) cada dia. A propaganda em massa dos bens de consumo modela os gostos e A nível de idéias, estas contradições expressam-se em um conflito muito
cria necessidades artificiais. Os esportes para consumo em massa e ultimamente importante: a crescente reação de jovens, estudantes, grupos de profissionais
os jogos de azar legalizados e incentivados reforçam esta cultura de alienação. (mestres, professores, advogados, arquitetos), contra a concepção de vida e os
Desta maneira se embota a consciência crítica, e uma sociedade que devia ser valores da sociedade capitalista. Os valores de justiça e dignidade humana ine­
motivada ao esforço e à solidariedade é conduzida à fuga da realidade e à aquisi­ rentes à tradição cristã despertam, frente à miséria e ao sofrimento crônicos que o
ção de hábitos e preocupações de um mundo orientado ao ócio e ao consumo. sistema produz, uma reação de dor, solidariedade e indignação. Quando os inte­
Em última análise, a forma capitalista de produção, tal como opera no resses estrangeiros e seus agentes locais recorrem à repressão, à perseguição, à

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tortura e ao assassinato a sangue-frio para proteger seus interesses, um sentido tegorias moldadas pelo marxismo. A esta altura devemos conformar-nos com al­
de dignidade nacional, de solidariedade humana, de justiça elementar movem estes gumas breves observações a respeito do uso desta metodologia de análise.
cfrculos à luta11. A primeira diz respeito à objetividade. A sociologia funcionalista e estrutu-
Sem dúvida é fundamental em tudo isso a contradição entre o modo ca­ ralista denunciou freqüentes vezes a “ parcialidade" e os “ compromissos” desta
pitalista de produção e o operário cujo trabalho é explorado. Na América Latina, as análise. Contudo, parece claro que o fracasso concreto e evidente dos planos re­
forças de trabalho criaram suas organizações já há mais de um século. A história formistas e desenvolvimentistas desmascarou a parcialidade e o compromisso
destes movimentos é diferente e complexa. Mas é importante comprovar que, num ideológico da sociologia liberal funcionalista. Porque se torna evidente que esta, ao
país depois do outro, os movimentos de trabalhadores esforçam-se por romper a tomar suas categorias da sociedade burguesa e interpretar mediante as mesmas
camisa-de-força napoleônica que os confinava a um papel puramente reivindicató- os fenômenos do Terceiro Mundo, de fato pressupõe aquela sociedade como nor­
rio e não-polltico. A própria experiência nutre a convicção de que a luta por melho­ mativa. Assim, transforma-a em padrão, negando a história e confinando sua pers­
res condições de trabalho e remuneração conduz inevitavelmente à arena política pectiva de mudança às possibilidades inerentes ao sistema que lhe emprestou seu
e ao problema do poder. Muitas organizações operárias assumem assim uma he­ marco teórico. Longe de ser objetiva e “pura” , é na verdade reacionária, uma “ so­
rança revolucionária. ciologia subdesenvolvente”, como alguém a chamou. Assim, destrói-se o mito da
Não há dúvida de que o triunfo da revolução cubana também teve impor­ objetividade. As categorias marxistas, por outro lado, ofereciam aos sociólogos do
tantes repercussões em todo o continente. Parecia indicar que o jugo colonial ca­ Terceiro Mundo um marco categorial de estudo aberto ao dinamismo da história e
pitalista podia ser quebrado a apenas setenta milhas de seu centro e contra o es­ uma perspectiva projetiva da atividade humana. Sua compreensão conflitiva da
forço conjunto do país imperial e de seus satélites. Nos quase 20 anos que trans­ realidade correspondia melhor à situação. Neste sentido, eram mais objetivas do
correram desde então, ficou claro para a maioria que a revolução cubana não pode que uma ciência supostamente neutra, mas de fato entregue - consciente ou in­
ser copiada em seu acesso ao poder, nem deve ser um modelo a ser reproduzido. conscientemente - à preservação do status quo.
Porém continua sendo para muitos um sinal da vulnerabilidade do sistema e um No entanto, pelos mesmos motivos a sociologia latino-americana mais
exemplo das conquistas que uma nova organização da sociedade pode alcançar significativa rejeita ao mesmo tempo todo marxismo dogmático e a ortodoxia ideo­
no campo da educação, saúde, eliminação da corrupção e muitos outros. Pode­ lógica. A estrutura de classes, por exemplo, precisa ser estudada de acordo com
mos discutir até que ponto justifica-se a reiterada denúncia de que Cuba exporta as realidades que se dão numa sociedade dependente, ao passo que os clássicos
sua revolução mediante agentes e armas (muitas vezes expressa por governos marxistas viram-na como surgia nos países norte-atlânticos. As novas formas do
que não têm escrúpulos em exportar armas e agentes para a repressão). Mas não capitalismo neocolonial e multinacional requerem, por sua vez, uma reconsidera­
há dúvida de que exerceu uma influência importante no panorama político do conti­ ção das formulações clássicas. A importância das instâncias chamadas super-es-
nente. truturais (cultura, religião) na luta pela libertação merece uma atenção muito maior
Acabamos de resumir a análise de fundo subjacente à nova consciência do que aquela recebida no passado. Nestes e noutros sentidos, o esquema mar­
que muitos cristãos adquiriram no continente e que se expressa no projeto históri­ xista não é tomado como um dogma. Ele é, isto sim, um método a ser aplicado à
co que trataremos de caracterizar no próximo capítulo. Seria necessário acres­ nossa própria realidade nos termos desta. Isto, por sua vez, vai reverter na própria
centar um grande número de detalhes e explicações para fazer justiça ao enorme correção e retificação do método. Assim como o sistema socialista que esperamos
trabalho analítico e teórico que se está realizando. Também não faltam dissidên­ que venha a prevalecer na América Latina não será uma cópia de nenhum dos
cias e diferenças de interpretação em muitos pontos. Por exemplo, deveríamos existentes, mas uma criação vinculada à nossa própria realidade, da mesma forma
distinguir as tendências “ populistas” , que enfatizam o conceito de “ povo” e “ anti- a análise tem que se adaptar a esta realidade e recriar seus próprios métodos e
povo” frente ao de classes e conflito de classes; ou o debate entre os que admitem categorias.
a aliança de classes na luta contra o imperialismo como uma etapa necessária na Por outro lado, tais métodos e categorias não se desenvolvem na abstra­
transição para o socialismo e os que rejeitam esta mediação; ou a importante di­ ção ou numa contemplação puramente objetiva, e sim no próprio esforço por supe­
vergência dos que aderem a estratégias de subversão violenta (e inclusive dentro rar as condições presentes e avançar em direção a uma sociedade nova. Por
desta linha existem muitas controvérsias, às vezes bastante acirradas) e os que conseguinte, a análise que se requer é, em alguma medida, antecipatória. Tem que
confiam num processo institucional. Não é possível ignorar que as categorias e projetar a realidade, bem como examiná-la. De outra maneira só consolida a situa­
métodos analíticos que se empregam nestas análises estão vinculados ao pensa­ ção presente e, ao fazê-lo, falsifica o movimento da história e não percebe as di­
mento marxista. Na segunda parte deste livro teremos que discutir mais detalha­ mensões mais significativas da realidade. Mas uma tal ciência antecipatória exige
damente o significado teológico e os problemas que derivam desta adoção de ca­ um compromisso com um projeto histórico definido que, por sua vez, nasce de um
certo discernimento do futuro. Abordamos desta maneira o delicado entrelaça­
mento de ciência e ideologia, ideologia e utopia e - em termos teológicos - o en­
11. É Im portante notar que estas mesmas preocup ações e atitu des nSo sáo totalm ente alh e ia s a g ru p o s e seto-
res das forças arm adas. O caso do Peru 6 sem dúvid a único, mosmo por causa da im portân cia a d q u irid a
trelaçamento da ciência, ideologia e utopia com a profecia, tema que voltaremos a
por esses setores, mas as mesmas tendências estâo presentes em outros países. abordar na segunda parte. Em todo caso, o crucial é compreender a relação in­
dissolúvel entre análise e compromisso. A consciência cristã transformadora, que
40 41
trataremos de apresentar no próximo capítulo, baseia-se certamente na análise
esboçada no presente. Porém esta análise também tem seu lugar no contexto de
CAPÍTULO 3
um compromisso. E este não é um círculo vicioso, mas criador. Em realidade, é a
única possibilidade de que a análise seja uma ciência humana - a saber, projetiva
- e que também o compromisso seja humano (isto é, racional). O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA CRISTÃ *

“Até um cego pode ver que a América Latina caminha irreversivelmente


em direção a alguma forma de socialismo", disse o bispo Antulio Parrilla-Bonilla, de
Porto Rico1. Sem dúvida uma afirmação como esta nem de longe é compartida por
todo o episcopado latino-americano. Não obstante, é significativo que em sua críti­
ca de "Cristãos pelo Socialismo” quase todos os episcopados latino-americanos
concordaram no repúdio ao capitalismo de livre iniciativa e admitiram que é urgente
caminhar rumo a alguma forma de "socialização” . Contudo, os bispos chilenos
mantêm a liberdade de opção dos cristãos (“em seu juízo técnico”) e, junto com
uma aguda crítica ao marxismo, assinalam que “ a tendência moderna à ‘socializa­
ção’ da vida humana é um dos mais claros ‘sinais dos tempos' em que podemos
discernir o chamado e a ação de Cristo como Senhor e Libertador da história.”2 Em
tom semelhante, o arcebispo de La Paz (Bolívia) analisa os traços socializantes
durante o período de Torres e conclui - ao mesmo tempo em que faz reiteradas
advertências acerca do marxismo - que “o neo-socialismo não entra em conflito
com a fé dos cristãos.” Entretanto, continua dizendo que “ a socialização, como
processo sócio-cultural que personalize o homem boliviano, crie comunidade entre
o povo e solidariedade na sociedade, é muito mais importante ( ...) que qualquer
ideologia.”3 Os bispos argentinos, finalmente, em uma declaração crítica das posi­
ções adotadas pelos “ Sacerdotes para o Terceiro Mundo” comprovam, contudo,
que “ as correntes socialistas ( . . . ) vão despertando uma crescente simpatia.”4 Al­
gum tempo atrás, antes de surgir o conflito, declararam:

Comprovamos que, através de um longo processo histórico que ainda tem vigência,
nosso país chegou a uma estruturação injusta.5

* C o locar em d ia a história da consciê ncia profética dos cristã o s na A m érica Latina, esboçada aqu i em term os
g erais até 197 2, se ria tão necessário q u a n to im possível d en tro dos iim ítes desta obra. Na m a io ria dos p a íse s
ocorreram transform ações políticas de fundam ental im portân cia, com suas conse qüentes repercussões nas
Igrejas e nos diferentes grupos. Tal é o caso, particularm ente, nos q ua tro m ovim entos que discutim os em
m aior d e ta lh e . ONIS, com m odificações com preensíveis na situação, continuo u sua ta re fa , mas o m ovim ento
a rgentino, o colom bia no e ISAL deixa ram de existir de form a o rg â n ica . C ontudo, estes fatos não in v a lid a m
seu sig n ific a d o histórico nem seu c a rá te r de m anifestações sig n ifica tiva s da nova consciê ncia que e m erge
e ntre cristão s la tino-am ericanos. Na im p ossibilidade de a tu a liza r adequadam ente a inform ação, p re fe ri re­
p ro d u z ir este capítulo em sua forma o rig in a l. Que o le ito r ten h a em conta esta a dve rtência, p a rticu la rm e n te
em relação às refe rên cias a grupos e m ovim entos cuja con stitu içã o e situação variaram drasticam e nte d esd e
então.
1. A . PARRILLA-BONILLA, Nuevos enfoque s de ia doctrina social cristla n a : 80 aftos despuês de la "R e rum No-
varum ", NADOC, Lima, 2 1 4 :1 -9 , 1971.
2. “ E va ngelio, p o lític a y soclalism os", docum ento de tra b a lh o dos bispos do C h ile (13 de a b ril de 1972), re p ro ­
duzido em La ig le sla latinoam ericana y e l socialism o, Louvain, 1973, pa rá g ra fo 23.
3. J. M anrique HURTADO (arce bispo de La Paz), El socialism o y la igfesia en B o lívia , in: Ibidem , p. 86.
4. D eclaración dei episcopado a rg e n tin o , In: Ibld. p. 69, p a rá g ra fo 5.
5. D eclaración de San M iguel, seção II, p a rá g ra fo 3. Citado de P olém ica en la igle sia, A ve lla n e d a , A rg e n tin a ,
1970, p. 14. A segu ir os bispos se re fe re m especificam ente a características do sistem a econôm ico c a p ita ­
lista e ao Im perialism o.

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