Você está na página 1de 7

O CÂNONE SOCIOLÓGICO: o que ele diz aos pesquisadores da área?

Bruna R. da Silva Melo1

RESUMO
Este trabalho tem por objetivo apresentar discussões a respeito da leitura dos clássicos das
ciências sociais na formação do pesquisador da área. Dessa maneira, questiona-se a
relevância, necessidade e suficiência do cânone sociológico para a formação de competência
do sociólogo. Baseado na bibliografia da disciplina de Teoria Sociológica I, ministrada pela
Profa. Dra. Simone Brito no primeiro semestre de 2023 do PPGS/UFPB, este trabalho
conclui que a revolução do cânone é necessária, embora insuficiente.

O contato direto com os clássicos da sociologia - Karl Marx, Émile Durkheim e Max
Weber - foi uma constante na minha trajetória nas ciências sociais. Na disciplina de Teoria
Sociológica I, no mestrado, não foi diferente. No entanto, foi justamente nesse semestre, no
decorrer das aulas de Teoria, que passei a observar mais a fundo o cânone sociológico,
fortemente caracterizado pelo androcentrismo, eurocentrismo e pela branquitude.
De fato, é um tema que hoje já desperta mais suspeitas e indagações sobre as autoras e
os autores não-ocidentais e não-brancos que ficaram de fora. Prova disso foi o esforço da
professora de incluir alguns deles em uma disciplina de pós-graduação. Evidente que atinge
um público muito restrito, mas ilustra a possibilidade real de abranger novas (velhas) vozes, o
que não é considerado, ou sequer cogitado pela maioria dos professores.
Quando discutidos em sala, alguns desses autores excluídos chamaram minha atenção
enquanto pesquisadora novata. Martineau é um exemplo de socióloga, ou melhor, de
intelectual que fez o que hoje se chama de sociologia, criou conceitos sociológicos e teve
vivência notável e, no fim das contas, está começando a ser reconhecida como tal atualmente.
Eu, por exemplo, ouvi sobre suas obras somente 5 anos depois de entrar na graduação em
ciências sociais.
Assim, destaco a importância da discussão cada vez mais ampla e divulgada sobre a
diversificação dos clássicos das ciências sociais. Seja por meio de trabalhos finais, artigos, da
inclusão de autores nos programas das disciplinas obrigatórias da graduação e da pós,
acredito que o reconhecimento dos esquecidos (negligenciados) pode ser construído dia após
dia.

1
Mestranda em sociologia (PPGS/UFPB)
Daí a relevância deste trabalho. De fato, trata-se de uma temática voltada para a
universidade, para os acadêmicos e pesquisadores. Contudo, como nossas pesquisas refletem
o mundo afora, sabe-se que as pautas de gênero e da descolonização estão atingindo o senso
comum através das novas gerações, nas redes sociais, conversas cotidianas e até nas mesas
dos bares. Assim, aproxima-se, ainda que lentamente, a régua entre academia e senso comum.
Este trabalho busca questionar o cânone, sua completude, relevância e suficiência na
formação dos pesquisadores. Dessa maneira, a primeira parte apresenta os autores clássicos
da maneira que nos é apresentado nas universidades em geral; a segunda traz o contraponto a
partir da contribuição da intelectual Harriet Martineau para as ciências sociais. Por fim,
questiono se um giro sob o olhar do cânone sociológico seria satisfatório ou suficiente.

APRESENTANDO O CÂNONE
O cânone, em uma abordagem semântica, diz respeito à parte referencial de
determinada área. A sociologia nos é passada a partir dos nomes de Karl Marx, Émile
Durkheim e Max Weber. E, de acordo com Connell, “[...] Their major texts, notably Capital,
Suicide, The Division of Labour in Society, and Economy and Society, form a canon widely
known as Classical Theory” (Connell, 2019, p. 352).
Essa sociologia branca, europeia (alemã-francesa) e masculina é a que dá o tom das
ciências sociais até hoje. Embora alguns autores advoguem pela inclusão de outros
intelectuais, como Tönnies, Spencer, Sumner, Simmel e Pareto, ainda tratamos de homens
europeus. O fato é que o cânone é o cânone porque se mostrou capaz de persistir através do
tempo.
Essa persistência pode ter se dado por vários motivos: seja pela originalidade da obra,
pela edificação da sociologia enquanto disciplina (embora nem soubessem que estavam
edificando uma disciplina), seja pela importância dada pelos leitores. De toda forma, Connell
afirma: “It is not accidental that sociology as an organized knowledge project emerged at the
high tide of European imperialism, both overseas and overland” (Connell, 2019, p. 354).
Assim, não foi uma criação inocente.
Além disso, Connell (2019) deixa evidente que a própria criação do cânone, que cria
um nicho ainda mais específico na sociologia, diz respeito a algo maior: um material prático,
que vem sendo objeto de estudo cada vez mais frequente entre os acadêmicos. Vejamos:

In recent years, the social sciences have been coming to terms with the fact that
knowledge formation and circulation is global, and is structured both by the history
of imperialism and the tremendous inequalities, as well as the technical possibilities,
of the neoliberal world economy today. Postcolonial, decolonial and Southern
perspectives have been elaborated in fields as diverse as education (Epstein and
Morrell, 2012), history (Chakrabarty, 2000), disability studies (Meekosha, 2011)
and criminology (Aas, 2012), as well as sociology in general (Sitas, 2006;
Rodríguez, Boatcă and Costa, 2010; Reuter and Villa, 2010) and specific fields such
as industrial sociology (Keim, 2008). (Connell, 2019, p. 359)

Inclusive, é importante dizer que a própria Connell, referência na área de estudo da


história da sociologia, cânone e temáticas afins, é lida e amplamente conhecida no mundo
sociológico porque escreve em inglês. À época do surgimento da sociologia, as línguas alemã
e francesa tinham grande relevância. Embora ainda sejam importantes hoje, o inglês
tornou-se global. É importante para refletir sobre a relevância da linguagem: o intelectual
mais lido sempre será aquele cuja linguagem seja o mainstream.
Assim, entendo que não somente a nacionalidade, região geográfica, gênero, raça,
mas também a linguagem são fatores determinantes para o sucesso de um intelectual.
Sobretudo tratando dos “founding fathers” que, de acordo com Cohn (2009), deve-se

[...] decifrar os fundamentos e as condições de mudança do mundo moderno. Muita


coisa mudou, muito conhecimento se acumulou, e para nós os problemas não se
apresentam exatamente da mesma forma. Dificilmente, porém, poderão ser
identificados e formula­dos com a necessária precisão sem recorrer ao legado
daqueles três” (Cohn, 2009, n.p)

É curioso pensar que o cânone é óbvio quando se trata das ciências sociais. São
variáveis constantemente associadas. Tal observação fica evidente na seguinte passagem do
Cohn:

esta coletânea não trata dos fundadores da Sociologia, num sentido


histórico-cronológico do tenno, mas sim daqueles autores que, pelo alcance e
profundidade de suas contri­buições originais e por sua presença na atividade
sociológica contemporâ­nea, merecem mais do que quaisquer outros a qualificação
de clássicos. Daí a concentração em Durkheim, Weber e Marx. (Cohn, 2005, p. 8)

A função de dissociação, ou de adição, recai sobre os sociólogos e deve ser uma


atividade feita constantemente, afinal, não se espera uma revolução rápida. É por isso que,
reconhecida a contribuição dos founding fathers, chega o momento de conhecer e reconhecer
novas vozes. Proponho o alinhamento com a contribuição de Harriet Martineau e, para isso,
achei de bom tom descrever sua trajetória até alcançar a intelectualidade sociológica.
DIALOGANDO COM MARTINEAU
Harriet Martineau, inglesa da era vitoriana, foi a sexta de oito filhos, em uma família
ligada à corrente religiosa do Unitarismo. Importante destacar que o Unitarismo era uma
corrente que não pressupunha, de acordo com Silveirinha e Ferreira (2019), o corte entre
religião e ciência, portanto muitos intelectuais da época eram adeptos à ela. Foi na década de
1820, aos 19 anos de idade, que Martineau publicou seus primeiros escritos na imprensa
unitarista sob um pseudônimo.
Mas a década de 1820 também foi trágica: perdeu irmão, pai e noivo e os negócios da
família faliram. A saúde de Martineau também se mostrou limitada durante toda a vida
adulta. Quando percebeu na escrita uma oportunidade de ganhar dinheiro, Martineau engatou
na profissão de escritora, se tornando uma das principais intelectuais de sua época, além de
contribuir enormemente para as ciências sociais.
Foi a série Illustrations of Political Economy que trouxe Martineau aos holofotes.
Nessa obra, a intelectual ilustrava a teoria de autores como Malthus, Mill, Ricardo e Smith,
tornando a linguagem acessível para o grande público. Ela o fez a partir de mininovelas, ou
seja, criou personagens, cenários e diálogos para mostrar que as leis econômicas faziam parte
do dia a dia. Apesar disso, Martineau renunciou à área da economia política por desacreditar
no seu viés científico.
Em 1834, a intelectual partiu para o Novo Mundo em companhia da sua assistente. Já
durante a viagem observou e escreveu sobre a moral, hábitos e modos de vida, ou melhor,
sobre métodos de observação dessas categorias; foi quando nasceu a obra How to Observe:
Morals and Manners. Este foi o primeiro livro de metodologia de pesquisa em Ciências
Sociais, embora eu só o tenha conhecido na disciplina de Teoria Sociológica no mestrado - e
não na disciplina de Metodologia, menos ainda durante a graduação.
Martineau já chegou conhecida nos EUA, e influenciou outros europeus sobre o
singularidade do Novo Mundo. Tocqueville e Dickes foram para a América inspirados por
ela. A narrativa de viagem americana ascendeu como um gênero literário nesse movimento
de vinda para a América. Mas como nem tudo é perfeito, Martineau foi ameaçada
delinchamento e precisou redefinir os rumos da viagem para o norte dos EUA, pois se
colocou, publicamente, contra a escravidão e favorável ao abolicionismo.
Àquela época, viajar era a melhor maneira de observar e, consequentemente, escrever
- embora ela afirmasse que “‘nunca trabalhou pela fama’ e que escrevia ‘porque não podia
evitar’” (Campos e Daflon, 2022, p. 80). Assim, além da América, Martineau viajou pela
europa, áfrica e oriente médio. Também traduziu obras de Auguste Comte para o inglês,
ampliando o acesso do mundo anglo-saxão à sociologia positivista comteana. Sua obra é
diversa: “escreveu tratados religiosos, ensaios, resenhas, artigos para jornais e revistas,
narrativas de viagem, romances, histórias infantis, contos políticos, históricos e econômicos,
tratados metodológicos sobre como fazer pesquisa social e traduções” (Campos e Daflon,
2022, p. 80).
Martineau decidiu escrever sua autobiografia depois de receber um diagnóstico
médico de pouco tempo de vida, embora acreditasse que deveria escrevê-la desde a
juventude. Curiosamente, também escreveu seu próprio obituário, que foi realmente
publicado dias depois da sua morte.
O fato é que Martineau ajudou a construir o campo da sociologia. Ela acreditava que
estudos sobre a sociedade requeriam epistemologia e metodologia específicas, daí seus
escritos sobre método - antes mesmo de As regras do método sociológico de Durkheim. Além
da pluralidade de temas, nota-se a pluralidade de campos pelos quais a intelectual conseguiu
passear. Até mesmo a ciência estatística , os dados e a empiria foram temas abordados por
ela, que os sublinhou como relevantes depois do contato com o positivismo, embora não
tenha aderido ao projeto comteano da Igreja Positivista.
Martineau também se contrapõe à unificação da ciência e à utilização de métodos das
ciências naturais, que era um projeto positivista. Ela prefere valorizar “símbolos, significados
e emoções, procurando desenvolver, assim, uma metodologia passível de captar essas
dimensões” (Campos e Daflon, 2022, p. 83). Daflon, ao comentar a contribuição de
Martineau, salienta:

As disputas que se deram em torno da Sociologia devem ser vistas dentro dos seus
respectivos contextos históricos: se Durkheim atuou pelo estabelecimento de um
campo autônomo para a Sociologia nas instituições de ensino superior em disputa
com disciplinas estabelecidas como a Economia, a Filosofia e a Psicologia, se
esforçando para institucionalizar e profissionalizar a disciplina, Martineau desejou
estabelecer um domínio científico para o “estudo da moral distinto daquele dos
amadores e diletantes” (Campos e Daflon, 2022, p.83-84)

Ademais, Martineau também se posiciona contra autores europeus que se baseavam


em relatos (sem planejamento) de viajantes para fazer sociologia pois, para ela, a pesquisa é e
deveria ser intencional, guiada pela teoria, por princípios metodológicos - os chamados
‘meios seguros’. A pesquisa também deveria ser guiada pelo conceito de “empatia”, isto é,
compreender que as sociedades são diferentes entre si, o que chamamos hoje - salvo o
anacronismo - de relativismo cultural. E a autora continua: as sociedades colonizadas
possuem a independência como algo justo e até mesmo como um pré-requisito, já que
enfrentam desvantagens para o progresso. Vejamos:

Para fazer generalizações justas e corretas sobre a sociedade observada, ela entendia
que era necessário que o observador evitasse julgá-la, a partir dos parâmetros da sua
sociedade de origem ou de suas inclinações pessoais. Por enxergar o pesquisador
como um agente moral, dotado de valores, entendia que era necessário evitar que os
seus princípios morais se tornassem a régua para avaliar outras sociedades. Diante
disso, uma estratégia possível era avaliar uma sociedade, a partir dos próprios
princípios e padrões morais que ela se propunha a realizar. Desta maneira, o
sociólogo poderia estudar o status moral de outra sociedade de forma crítica, mas
justa (Campos e Daflon, 2022, p. 85)

Entende-se que Harriet Martineau buscou produzir uma ciência da sociedade


empiricamente embasada, isto é, apoiada na observação, nas instituições, interações, no dia a
dia e nas falas dos pesquisados. E isso difere dos seus contemporâneos como Marx, Spencer e
Comte, que buscavam dar origem a um sistema geral e abstrato. Foi assim que Martineau
passeou por temas como a situação política, abolição, gênero, situação da mulher, religião,
método e fazer sociológico.

ADICIONAMOS UMA MULHER AO CÂNONE, e agora?


Primeiramente, aqui foi exposta a vida de Martineau, bem como foi realizado um
passeio sobre a sua contribuição intelectual. Imaginemos uma realidade em que foi realizada
a adição de Martineau ao cânone sociológico Não quer dizer que agora ela foi aceita e
incorporada como clássica, contudo. As salas de aula da sociologia ainda estão carentes dessa
virada de chave e, infelizmente, é uma realidade longínqua.
No entanto, é válido questionar se a presença de Harriet Martineau no cânone seria
suficiente para a formação do cientista social. Como salientado, a sociologia clássica sofre do
androcentrismo, eurocentrismo e da branquitude. Martineau só não é um homem, mas é
europeia, branca, anglófona. Além disso, sua caracterização enquanto liberal não deve ser
trazida para os dias atuais, sob pena de cometer anacronismo, afinal o que era liberal para a
época pode não ser (e não é) hoje.
É nesse sentido que trago Connell para complementar minha ideia. Segundo a autora,

At the end of the day, re-working the canon, even de-colonizing the canon, and
substituting a more diverse group of classics, is not a methodologically adequate
way of relating to the history of social thought (Connell, 2019, p. 358).

O reconhecimento de Connell a respeito do cânone e suas contribuições é


inquestionável. Mas a autora afirma de antemão que há correntes que sobreviveram à
imposição do cânone, portanto há outras maneiras de tornar a sociologia mais inclusiva. E
essas outras maneiras fazem da sociologia uma disciplina mais comprometida. Vejamos sua
opinião enfática no último parágrafo do artigo:

Sociology does have a capacity to speak to the critical issues of contemporary


society. But it will do so only if more sociologists are willing to think for
themselves, form new kinds of international connections, and take intellectual and
personal risks. In short, do as Marx, Durkheim and Weber did, rather than endlessly
repeat what they said. It won’t get you into the American Sociological Review. But
it might help change the world. (Connell, 2019, p. 363).

Apesar disso, ressalto a importância de estudar a história da sociologia. Na verdade,


advogo pela inclusão da história da sociologia enquanto disciplina (obrigatória, aliás) para os
estudantes das ciências sociais. Acredito que dessa maneira teremos acadêmicos aptos a
formular suas próprias opiniões a respeito do tema, mas mais que isso: que adicionem os
autores certos ao cânone.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Luna Ribeiro; DAFLON, Verônica Toste. Harriet Martineau. In: Verônica Toste
Daflon e Luna Ribeiro Campos (orgs.). Pioneiras da sociologia: mulheres intelectuais nos
séculos XVIII e XIX, Niterói: Eduff, 2022. p. 237-256.

COHN, G. (et al.). Sociologia: para ler os clássicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Azougue, 2009.

Connell, Raewyn. CANONS AND COLONIES: THE GLOBAL TRAJECTORY OF


SOCIOLOGY. Estudos Históricos (Rio de Janeiro) [online]. 2019, v. 32, n. 67, pp. 349-367.
Acesso em 25 ago. 2023. Available from:
<https://doi.org/10.1590/S2178-14942019000200002>

Você também pode gostar