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O TICO-TICO VIU A GUERRA

Miguel Mendes

PUC-Rio

RESUMO

O artigo tem por objeto as historietas ilustradas publicadas na revista infantil O Tico-Tico e busca
respostas para a questão de como autores de narrativas em quadrinhos atuaram como mediadores na
absorção dos choques provocados, entre os jovens leitores do início do século XX, pelas rápidas
transformações sociais e materiais, bem como pela deflagração da Primeira Guerra Mundial (1914-
1918). Toma por arcabouço teórico a concepção de Elias (2011) sobre o processo civilizador, a
teoria de Moscovici (2012) sobre o processo das representações sociais e a visão de Howard S.
Becker (2009) sobre as obras de arte como relatos sociais. O trabalho se baseia num método
comparativo entre a análise das historietas do italiano Corriere dei Piccoli e a análise das historietas
de O Tico-Tico no mesmo período histórico da Primeira Guerra Mundial. A análise da publicação
italiana vem do livro das pesquisadoras Camilla Peruch e Sonia Santin Il Corriere dei Piccoli va
alla guerra (2015). As histórias em quadrinhos brasileiras analisadas são da série Chiquinho, por
Loureiro, e Zé Macaco, por Alfredo Storni.

PALAVRAS-CHAVE: O Tico-Tico; guerra; mediação.

INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla que tem a revista ilustrada infantil
O Tico-Tico como objeto, o qual foi escolhido, por sua posição privilegiada na história das
publicações brasileiras, para responder a questões sobre o processo civilizador e de
construção da subjetividade dita “moderna” entre os jovens leitores do período da Belle
Époque brasileira1 .
Nas primeiras décadas do século XX, O Tico-Tico (1905 – 1962) levava ao mercado
leitor brasileiro conteúdo direcionado ao público infantil e juvenil. Eram contos ilustrados,
curiosidades, passatempos e registros sociais, além das historietas ilustradas que

1 A qual não corresponde à cronologia da Belle Époque europeia e pode ter, por relevância social e cultural, seu marco
inicial na inauguração da Avenida Central na cidade o Rio de Janeiro, capital da República, em 1905, e como marco final
a crise financeira de 1929, uma vez que o Brasil não sofreu o mesmo impacto que a Europa sofreu com a Primeira Guerra
Mundial.
caracterizavam e distinguiam a publicação. Entre seus colaboradores estavam artistas que
podem ser louvados como pioneiros do gênero da história em quadrinhos no Brasil, tais
como Ângelo Agostini, Leônidas, J. Carlos, Loureiro, Alfredo Storni e Max Yantok.
Conforme o projeto expresso por seus editores, a revista visava produzir entretenimento
leve e, ao mesmo tempo, estimular a prática da leitura e ajudar na educação das novas
gerações (ROSA, 2002). Supunha-se que, para uma educação adequada e moderna, era
necessário produzir textos específicos para as crianças e jovens, respeitando suas
particularidades (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999).
Essa proposta educativa expressa, no entanto, não é o foco deste trabalho. Num
contexto de rápidas e profundas transformações sociais, políticas, materiais e
comportamentais cuja complexidade costuma ser ocultada sob o rótulo da “Modernidade”,
as publicações, na oferta tanto de narrativas jornalísticas quanto ficcionais, tinham papel em
processos de caráter civilizador e subjetivador. Estavam, de alguma forma, mediando a
introjeção de novos comportamentos e a naturalização do uso de novidades técnicas. Isso,
sem falar na construção do papel de cidadão brasileiro republicano. O jogo de
representações sociais em forma de personagens e narrativas cômicas era fundamental nesse
processo.
No período da Belle Époque, era nas narrativas cômicas e caricaturais que os autores
e cartunistas criticavam a “loucura” da corrida atrás das modas, ao mesmo tempo em que
ridicularizavam aqueles que queriam se aferrar ao passado rústico e às instituições arcaicas.
Exigia-se o difícil caminho do meio, o caminho mais civilizado (SALIBA, 2002). Pairava a
sensação de que o mundo progrediria com rapidez. Mesmo os habitantes deste país
periférico logo experimentariam as benesses da Civilização. No entanto, em 1914, a
Europa, berço dessa concepção de civilização, entra em guerra. Intelectuais e artistas ficam
perplexos, desapontados, e perdem a “inocência”. Ao mesmo tempo, as expectativas
reaqueciam os espíritos de inclinação marcial (FREUD, 2009).
Assim, surgiu o problema de perceber como a Primeira Guerra Mundial foi
representada nas historietas de O Tico-Tico e como os artistas e redatores mediaram a
reportagem dos fatos para um país que estava muito longe de se engajar no conflito, mas
não podia ignorá-lo, muito menos não se solidarizar com a Civilização atacada.
Neste trabalho foram analisadas histórias em quadrinhos dos personagens Chiquinho
(por Loureiro) e Zé Macaco (por Alfredo Storni) durante os quatro anos do conflito europeu
e foi feita uma comparação com as análises de Camilla Peruch e Sonia Santin (2015) sobre
as histórias em quadrinhos publicadas no Corriere dei Piccoli, publicação infantil italiana,
durante a Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918).

FUNDAMENTOS TEÓRICOS

Neste estudo, O Tico-Tico não será visto como um produto de mercado controlado
tão somente pelos proprietários da Sociedade Anônima O Malho (sua editora), mas como
uma representação coletiva da sociedade, conforme formulação de Howard S. Becker. Sob
a mesma linha editorial, ao longo de incontáveis semanas, um grande número de
colaboradores, cada qual com sua formação artística e intelectual e sua identidade social,
tentou sempre conjugar suas próprias percepções com o interesse dos leitores, os quais se
manifestavam profusamente por carta, inclusive mandando colaborações amadoras. Becker
defende que:
Levar em conta as maneiras como as pessoas que trabalham em outros campos —
artistas visuais, romancistas, dramaturgos, fotógrafos e cineastas — e os leigos
representam a sociedade revelará dimensões analíticas e possibilidades que a ciência
social muitas vezes ignorou serem úteis em outros aspectos (BECKER, 2009, p.19).

Em relação à proposta educativa de caráter civilizador da revista O Tico-Tico, é


importante apontar que a profusão de objetos materiais que começa a preencher as vidas
humanas, na medida em que a produção industrial em massa se estabelece e que a indústria
acelera o investimento em tecnologia e inovação, age também no sentido de impor aos seres
humanos a necessidade de aprender novas formas de comportamento a fim de usufruir de
tais objetos. Esses comportamentos tendem a reforçar a disciplina dos corpos, o
autocontrole das emoções e a racionalização dos pensamentos. São, portanto, os
comportamentos ensinados, por diversos meios, no processo civilizador de longa duração
descrito por Norbert Elias (2012) e todos os processos de disciplina descritos por Michel
Foucault (2014).
Note-se que as instruções de boas maneiras não são um treinamento em futilidades
como, em parte, são vistos hoje. Na França do século XVIII os termos civilisation e homme
civilisé surgem na cultura da corte, entre “esclarecidos”, mas serão adotados, depois, pelo
Estado, como um projeto universal: opor-se ao estado de barbárie, alcançar “um tipo mais
elevado de sociedade: a ideia de um padrão de moral e costumes, isto é, tato social,
consideração pelo próximo, e numerosos complexos semelhantes” (ELIAS, 2011, p.59).
Entende-se que as cartilhas são alguns dos “milhares de outros instrumentos”, além da
educação familiar, com que a sociedade como um todo exerce a pressão do
condicionamento sobre as novas gerações (ELIAS, 2011, p. 139). Assim como se ensina a
etiqueta de convívio social, também devem ser ensinadas as etiquetas na operação e uso
civilizado de tecnologias, sistemas e códigos que estendem e ampliam o poder de cada um.
Novidades no rol de objetos concretos que povoam o ambiente humano, como
utensílios, peças de vestuário, alimentos e elementos urbanísticos, devido à velocidade das
transformações da “modernidade”, podem ser difíceis de encaixar em categorias culturais
existentes e de serem “assimiladas” no cotidiano. A solução para essa dificuldade não é
tarefa apenas individual; ela demanda uma disputa entre alternativas, mediada por agentes
no campo cultural. Serge Moscovici (2012) tratou do problema de como a sociedade vive
um processo contínuo de representação social; processo esse em que as novidades
produzidas pela inovação científica e tecnológica precisam ser “traduzidas” em termos de
categorias e lógicas do “senso comum”. Elas são “ancoradas” a categorias mais familiares e
“objetivadas”, de forma que as abstrações sejam substituídas por elementos quase
concretos. Para Moscovici, esse processo não é maneira de anular a novidade encaixando-a
numa categoria tradicional, mas de desenvolver a sociedade com a absorção de uma
inovação surgida nos campos científicos. As representações sociais são sempre produto da
interação social e da comunicação entre as pessoas; assim, ganham importância jornalistas,
publicitários, escritores, professores, pastores e outros profissionais que ocupam o lugar de
mediadores.
METODOLOGIA

Foi feita uma leitura exploratória entre os fac-símiles de edições de O Tico-Tico


disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, datados de julho de 1914 até
novembro de 1918, para localizar historietas e matérias em que os autores estivessem se
referindo à guerra. Foram copiadas imagens de várias páginas para análise posterior, entre
capas, colunas de curiosidades, brinquedos de armar e anúncios. Entre os quadrinhos, as
histórias do personagem Chiquinho (por Loureiro) e do personagem Zé Macaco (por Storni)
foram selecionadas para estudo em detrimento de muitas outras narrativas, porque eram de
autoria brasileira, enquanto as demais eram traduções de histórias europeias, material
bastante comum em O Tico-Tico dessa época.
Após a leitura do livro de Camilla Peruch e Sonia Santin sobre o Corriere dei
Piccoli durante a Primeira Guerra, linhas de análise foram selecionadas para a comparação
com o contexto brasileiro: as notícias da guerra devem ser amenizadas com eufemismos? A
guerra é valorizada ou lamentada? As representações são ancoradas em fatos da realidade
ou em mundos ficcionais? O patriotismo entra na guerra?
Finalmente, foi selecionada uma sequência de 14 páginas (correspondentes a 14
semanas de publicação) do personagem Chiquinho, publicada em 1918, para análise
hermenêutica mais detida, porque seu tema, as “hostilidades” entre os meninos
protagonistas e um menino da casa vizinha, era clara referência à guerra que, no seu quarto
ano, já tinha se incorporado ao cotidiano. Além dessa sequência, foram analisadas algumas
outras páginas de Chiquinho e de Zé Macaco que complementam o quadro. A comparação
com as conclusões das pesquisadoras italianas revelou pouca semelhança entre o tratamento
que os artistas italianos deram ao problema e as ideias dos brasileiros.

O CORRIERE DEI PICCOLI VIU A GUERRA

O quadro descrito pelas pesquisadoras Camilla Peruch e Sonia Santin (2015, p.20) é
a de uma publicação semanal dedicada ao público infantil que, antes da guerra, tinha muitas
similaridades com O Tico-Tico, uma vez que compartilhavam o mesmo projeto editorial,
com mistura de contos ilustrados, colunas de curiosidades e muitas historietas ilustradas,
para entreter e educar ao mesmo tempo. No entanto, diferentemente do semanário
brasileiro, o italiano foi obrigado a responder à pauta da Primeira Guerra Mundial. Assim,
durante 1914, os cartunistas e redatores apenas faziam votos públicos pela volta da paz. A
partir de maio de 1915, no entanto, a Itália entra diretamente no conflito e as mensagens
patrióticas tornam-se o assunto principal. Aqueles cartunistas e redatores tinham que
explicar aos jovens leitores os motivos da guerra, por que os homens começavam a faltar na
família e a obrigação moral de combater o ataque à nação. Ao mesmo tempo, não podiam
se esquecer do desejo infantil por evasão e fantasia.
Como exemplo: a série do menino Schizzo (por Attilio Mussino), inspirado no Little
Nemo de Winsor McCay, já vinha sendo publicada desde 1912. Mas, com os fatos de 1915,
o menino aparece lendo as notícias no jornal e, à noite, sonhando que está participando da
guerra. Numa história, Schizzo sonha que realizou uma missão perigosa e, por isso, o
próprio Rei Vittorio Emmanuele deu-lhe um beijo de agradecimento. Quando acorda,
percebe que, na verdade, era sua mãe beijando sua testa (PERUCH; SANTIN, p. 28).
O mesmo desenhista Mussino fez uma série entre 1915 e 1916 na qual retrata apenas
soldados adultos, sem mediação de qualquer personagem infantil ou jovem. Enquanto os
italianos são retratados como pobres e astutos, os austríacos, apesar de bem equipados, são
retratados como tolos sem iniciativa (ibidem, p. 29).
Essa era a lógica (e argumento) que os cartunistas adotaram para dar ânimo à
população italiana, que entrou na guerra sem equipamento, com poucos soldados e com
dificuldades logísticas e táticas. As pesquisadoras desenvolvem muito bem essa análise:
Nesse difícil contexto, o Corriere dei Piccoli incitou os jovens leitores a não terem
medo. Eis que aqueles que, na realidade, eram temíveis inimigos, foram
reconfigurados como ineptos, incapazes de cumprirem aquelas fulminantes e
resolutas ações que os meios modernos lhes haviam possibilitado. Vai daí que tudo
isso resultou na difusão de um senso geral de proteção da integridade física de cada
combatente mobilizado, italiano ou aliado. Foi assim que a guerra travada entre os
exércitos da Entente e dos Impérios Centrais se transformou numa irônica aventura
na qual entraram em campo até mesmo invenções ousadas e fantasiosas que faziam
apelo a uma geral confiança no progresso (ibidem, p.32, tradução nossa).
Luca Takko, série feita pelo desenhista Antonio Rubino, durou de 1914 a 1917 e é
exemplo da opção de fantasiar as crueldades do conflito. Em vez de se basear no noticiário,
Rubino criou países imaginários onde moravam dois amigos, Luca e Gianni, separados pela
fronteira do conflito. Essa fantasia fala da imposição sentida pelas populações de origem
italiana dispersas em lados opostos da guerra. Mais uma vez, o personagem que simboliza o
inimigo é um general medroso e inepto, embora orgulhoso: o general Bombardone. Em
tudo, os personagens lembram italianos e germânicos, que eram as culturas em conflito,
mas as histórias fantasiam alto na representação agonística, conforme Peruch e Santin:
Aquela que apareceu nos quadrinhos de Luca Takko foi uma guerra abstrata, longe
das batalhas reais. Apresenta-se como um evento jocoso, capaz de provocar uma
grande risada pela zombaria feita às custas de um adversário ridículo e débil. [...]
Foi assim que entraram em cena gás que aturdia mas não matava, personagens que
explodiam mas se recompunham logo depois... Apenas efeitos especiais
surpreendentes, nunca uma mancha vermelha indicativa de ferimento, nunca o
sofrimento, a tragédia, a morte. Desse modo, até aquilo que deveria ter deixado as
crianças chateadas, como o uso dessas novas e mortais armas que a inovação
tecnológica havia levado aos campos de batalha, acabou não infligindo medo.
(ibidem, p.36, tradução nossa).

O mesmo desenhista, em outra série, fez uma história em quadrinhos fantasiando o


modo como era produzida a arma de gás letal do inimigo alemão: os germânicos
supostamente colhiam o mau hálito e toda a flatulência de sua população e, numa fábrica,
com acréscimo de “ratos mortos e outras podridões”, além de “um austríaco vivo para
completar”, mexiam um tacho e estava facilmente pronto o gás mortal (ibidem, p. 39).
As principais linhas de argumento das histórias em quadrinhos de Corriere dei
Piccoli, no período, eram, em conclusão, o patriotismo, a eufemização e a chamada à
participação voluntária. O patriotismo servia para unir a população sob o sentimento de
devoção à Casa de Savóia (os soldados italianos das historietas de Mussino amedrontavam
o inimigo ao grito de “Savóia”) e à bandeira “tricolore” (que os meninos de Rubino usavam
o tempo todo para tripudiar dos invasores germânicos). A eufemização da experiência da
guerra pelas crianças se baseava na ridicularização dos representantes inimigos (como
homens ineptos ou mesmo sub-humanos, em alguns casos) e de sua tecnologia de guerra
(sempre vencida pelos improvisos latinos). A participação da população civil, na medida
em que fosse possível resistir aos invasores, era representada por vários personagens
crianças, meninos e meninas, que, nas histórias, moviam redes de colaboração para, pelo
menos, desmoralizar as tropas germânicas.
Interessa observar, a partir dessa descrição, como os cartunistas de O Tico-Tico
trabalharam durante a mesma época, sobre os mesmos fatos.

O TICO-TICO VIU A GUERRA


Os fatos da guerra eram amenizados com eufemismos no tratamento dado pelos
cartunistas italianos. Em O Tico-Tico, em comparação, a “guerra na Europa” era um
assunto de grande interesse, mas podia eventualmente ser tratada com certa insensibilidade.
Se, por um lado, a capa da edição 530, de 1 de dezembro de 1915, a imagem denunciava
“os horrores da guerra” (na suposição que um soldado com família ia para a guerra e
acabaria matando “os papais” de outras crianças), por outro, numa história do personagem
Chiquinho, um dos mais famosos da revista, na última edição do ano de 1914, a guerra era
apenas motivo de excitação infantil (ver Figura 1).

Figura 1 – “O natal de Chiquinho”, publicada no número 482 de O Tico-Tico (1914)


Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

No enredo da piada, Chiquinho vai dormir na noite de natal, com os sapatinhos


prontos para receber seus presentes. Enquanto isso, seus pais, silenciosamente, deixam no
quarto dele um canhão de brinquedo e uma fantasia de Napoleão. O canhão aponta direto
para sua cama. Quando, à meia-noite, nas festas de natal, começam a pipocar fogos de
artifício, Chiquinho acorda ansioso e confuso, pensando que a guerra chegou ao Brasil, e se
depara com um canhão apontado para ele. Só consegue gritar “mamãe!”, para riso do leitor.
Na edição seguinte, no entanto, o menino já elabora o choque, percebe que aquilo é um
brinquedo, assimila o canhão como um objeto de seu uso e vai fazer as traquinagens
costumeiras que se esperava de todo menino de histórias em quadrinhos dessa época.
Chiquinho veste a fantasia de Napoleão, leva o canhãozinho pra fora e atira uma bola no
coitado do jardineiro. Seguem-se reprimendas e vinganças durante as semanas seguintes,
sem mais menções à guerra que acontecia lá longe, na Europa.
Enquanto a preocupação dos italianos era justificar o envolvimento da população na
guerra, a preocupação dos brasileiros era distante e de ordem moral. A guerra era, sem
dúvida, lamentável, mas a valentia patriótica era admirável. Na coluna “Lições de Vovô” de
30 de dezembro de 1914, o redator faz uma retrospectiva do conflito e conclui2:
A guerra é o maior dos males porque não vem de uma lei da natureza, foi criada
pelos homens; é o maior dos horrores porque, mesmo quando é justa, mesmo
quando tem um fim louvável, ateia, uns contra outros, como feras, como animais
inconscientes, criaturas humanas – que, sejam alemães ou franceses, sejam
austríacos ou sérvios, são afinal homens iguais perante o sofrimento, homens
necessários às suas famílias e que vão se matar. [...] Portanto, sob esse ponto de
vista, o ano a findar foi, para o mundo, dos piores (LIÇÕES DE VOVÔ, 1914).

Em 1º de dezembro de 1915, a propósito de falar da “festa da bandeira”, o redator


comenta que há aqueles que acham “o patriotismo um sentimento inútil” porque “todos os
homens são irmãos”, mas o conflito europeu mostrou outra coisa:
Demais, aí está a guerra europeia, para mostrar o que valem essas fantasias de
acabar com os ideais do patriotismo. Também na França e na Alemanha havia
milhares desses filósofos, que declaravam não ter pátria; mas, quer num, quer
noutro país, desde que viram sua terra em perigo, cada qual pegou em armas e
correu a defender a fronteira (LIÇÕES DE VOVÔ, 1915).

De fato, cabia a uma revista pautada pelos ideais de progresso e civilização a


condenação da guerra, mesmo que o combustível da guerra fossem os assombrosos avanços
técnicos e econômicos que também eram filhos da civilização. Alfredo Storni, caricaturista

2
Optamos por transcrever textos de O Tico-Tico usando as normas ortográficas atuais e não as do original, para maior
clareza.
político na revista ilustrada O Malho, representava essa doutrina, e publicou, em 13 de
janeiro de 1915 (enquanto, na mesma edição, Chiquinho se apresentava com sua fantasia de
Napoleão), uma história que inverte os termos “civilização” e “selvageria” (ver Fig. 2).

Figura 2 – “Zé Macaco”, publicada no número 484 de O Tico-Tico (1915)


Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Nela, seu personagem Zé Macaco, em associação com Dona Garça, faz um


espetáculo beneficente, assistido por todos os animais, para arrecadar fundos em prol da
humanidade, que está se matando na guerra. O Sr. Tigre, “indicado como o mais bondoso”,
leva o donativo da “Sociedade Protetora da Humanidade” para um soldado caído e
ensanguentado. Em vez de eufemismo, aqui há uma denúncia disfarçada de fábula e
caricatura, mas que não evita o sangue e o fogo da guerra real.
Em geral, durante todos os anos da guerra, o conteúdo da revista continua a ter
contos de fantasia, aventuras exóticas de inspiração colonialista, historietas civilizatórias
com sentido de domar o comportamento das crianças, curiosidades sobre ciências e
sugestões de trabalhos manuais. Os personagens de O Tico-Tico não vão à guerra nem em
fantasia, como foram os italianos. Mesmo assim, o ethos militar excitava a imaginação das
crianças, e os ilustradores correspondiam, publicando desenhos dos uniformes de todos os
exércitos aliados. Assim, um leitor chegou a mandar para a seção de cartas da edição 562
de 1916 um desenho do personagem Chiquinho de farda. A legenda dizia “Chiquinho,
militarizado, parte para a guerra”.
Chiquinho não foi à guerra mas o cartunista Loureiro, no final de 1918, desenhou
uma longa série de 14 painéis (da edição 653 a 666) que, voluntariamente ou não, traduziu a
guerra numa agitadíssima confusão do cotidiano. Essa história, que chamaremos de série
das “hostilidades”, conforme eram chamadas as agressões no noticiário de guerra, pode ter
colaborado para a assimilação dos fatos pelos jovens leitores de O Tico-Tico (ver Fig. 3 –
5). São reproduzidos aqui apenas 3 painéis que resumem a longa sequência.
Figuras 3, 4 e 5 – “Começam as hostilidades”, páginas de uma série semanal, publicadas nos
números 654, 657 e 666 de O Tico-Tico (1918). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

Tudo começa com Chiquinho e seu amigo Benjamim, mais o cachorro Jagunço, na
água-furtada do telhado, observando a casa do vizinho. Nela vive o garoto Xedas, que é
uma peste. Ele incomoda a mãe costureira, desobedece, maltrata animais e tudo. Chiquinho
fica revoltado porque “criança não tem querer”. Benjamin caçoa do vizinho porque ele é
estrábico. Xedas responde à provocação chutando uma bola na cara de Benjamin. Depois,
vai empinar uma pipa e, “sem querer”, laça o rabo do cão, puxando-o de cima do telhado.
Não só o cão, mas também Chiquinho e Benjamin descem para brigar com Xedas. A mãe
deste vem apartar a briga desigual e protege seu filho, revoltando os “cavaleiros” que só
tinham intenção de vingá-la. Forma-se uma rixa entre os meninos. Chiquinho e Benjamin
continuam a inventar modos de provocar Xedas para “corrigi-lo”. O cenário da briga passa
a ser a cerca que divide os terrenos das casas vizinhas, como uma fronteira de guerra.
Benjamin e, depois, Jagunço, invadem o terreno de Xedas para persegui-lo em seu quintal
vestidos de touro. O menino, no entanto, consegue revidar, mas só até o cão voltar e atacá-
lo ferozmente junto à cerca. A mãe de Xedas encontra o menino no chão, feito “uma papa,
molenga”, todo mordido pelo cão. Vai cobrar satisfações da mãe do Chiquinho, mas ele
termina sem ser castigado, porque sua mãe diz que “não se envolve em brigas de crianças”.
Muito dessa história faz analogia com a narrativa da Primeira Guerra, quando as
nações que se consideravam mais “civilizadas” vão à guerra para punir nações “bárbaras”
que precisam de correção. Ambos os lados se utilizam dos meios mais violentos e antiéticos
para dar a última palavra no conflito. No fim, frente à destruição, o conflito não tem árbitros
e os vencedores não são cobrados por seus atos.
As versões têm nuances, é preciso apontar: enquanto as narrativas inglesas e
francesas seguem a argumentação de que o agressor tem comportamento “bárbaro” –
seguida pelos cartunistas brasileiros, conforme concluímos –, os quadrinhos dos italianos
narram aventuras em que os agressores representam o mundo industrializado, mais urbano e
civilizado e os heróis representam as comunidades ainda tradicionais, que poderiam ser
tachadas de “rústicas” e “bárbaras” em alguns manuais de etiqueta estudados por Elias.
Conforme Howard S. Becker, por meio dessa obra narrativa em forma de
quadrinhos, nossa sociedade parece querer representar a guerra como um mal necessário ou,
pelo menos, um recurso que as nações fortes precisam utilizar e que os brasileiros, se
necessário, também precisam cogitar. Não é necessário que o cartunista Loureiro tenha
expressamente levantado essa tese. Seu trabalho exerceu influência e também recebeu, é
claro, influência de seu meio social. Isso pode fundamentar essa leitura, entre outras.
Apoiando-se na teoria de representações sociais de Moscovici, é possível dizer que a
“objetivação” do conflito mundial num cenário que apresenta duas casas, uma cerca e
provocações entre crianças vizinhas pode ter ajudado a serem assimiladas todas as
abstrações que os intelectuais devem ter tecido sobre os motivos da guerra, na época.
O projeto civilizatório e modernizador republicano de que O Tico-Tico fazia parte
tinha como imagem inspiradora a “ascensão” do Brasil ao nível das maiores nações do
mundo. Essas mesmas nações tinham sido protagonistas da guerra. Nos últimos meses do
conflito, o país realmente se juntou aos aliados e ensaiou alguma colaboração no esforço de
guerra, mas não precisou mandar tropas. A guerra acabou e, com muita felicidade,
Chiquinho e Benjamin recebem a notícia, tanto porque a paz voltou, e não haverá mais
racionamentos e carestia, mas também porque o Brasil se irmanou com os vencedores. No
último quadrinho de uma história de 27 de novembro de 1918, os meninos comemoram
com todas as bandeiras dos países aliados, inclusive a do Brasil (ver Figura 6). A guerra
pode ter sido vista como uma oportunidade de ver realizada aquela ascensão do Brasil.

Figura 6 : “Ainda a visita a O Tico-Tico”, publicada no número 686 de O Tico-Tico (1918)


Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cartunista Loureiro tocou, com essa historieta, questões sobre a relação entre
civilização e violência. O processo civilizador requer dos meninos comportamento
controlado, que responde à autoridade (dos pais) mesmo à custa de seus desejos (brincar,
mexer com as coisas). Chiquinho, cobra tal nível de civilidade do vizinho, mas recorre (por
procuração) à violência para castigar Xedas, como se a violência, nas mãos justas, fosse o
recurso que civiliza. As “hostilidades” começam não com Xedas, mas com os heróis, que
provocam o vizinho a partir daquele ponto de vista. Afinal, eram eles que estavam vigiando
a casa dos outros. A imagem do Xedas no chão, mole feito pasta, pode representar o desejo
do civilizador (no que seria uma contradição, pois é a expressão de seus impulsos de
violência, e não de cultura, num sentido que Freud explicaria melhor).

REFERÊNCIAS

BECKER, Howard S. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o


social. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador vol. 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar,
2011.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014.

FREUD, Sigmund. Escritos sobre a guerra e a morte. Trad. Artur Morão. Covilhã: Lusofia, 2009.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: histórias & histórias.
São Paulo: Ática, 1999.

LIÇÕES DE VOVÔ. O Tico-Tico, n. 482, 30 dez. 1914.

_______________ . O Tico-Tico, n. 530, 1 dez. 1915.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis:


Vozes, 2012.

PERUCH, Camilla; SANTIN, Sonia. Il Corriere dei Piccoli va alla guerra. Veneto:
Kellermann,2015.

ROSA, Zita de Paula. O Tico-Tico: meio século de ação recreativa e pedagógica. Bragança
Paulista: EDUSF, 2002.

SALIBA, Elias T. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle


Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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