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Miguel Mendes
PUC-Rio
RESUMO
O artigo tem por objeto as historietas ilustradas publicadas na revista infantil O Tico-Tico e busca
respostas para a questão de como autores de narrativas em quadrinhos atuaram como mediadores na
absorção dos choques provocados, entre os jovens leitores do início do século XX, pelas rápidas
transformações sociais e materiais, bem como pela deflagração da Primeira Guerra Mundial (1914-
1918). Toma por arcabouço teórico a concepção de Elias (2011) sobre o processo civilizador, a
teoria de Moscovici (2012) sobre o processo das representações sociais e a visão de Howard S.
Becker (2009) sobre as obras de arte como relatos sociais. O trabalho se baseia num método
comparativo entre a análise das historietas do italiano Corriere dei Piccoli e a análise das historietas
de O Tico-Tico no mesmo período histórico da Primeira Guerra Mundial. A análise da publicação
italiana vem do livro das pesquisadoras Camilla Peruch e Sonia Santin Il Corriere dei Piccoli va
alla guerra (2015). As histórias em quadrinhos brasileiras analisadas são da série Chiquinho, por
Loureiro, e Zé Macaco, por Alfredo Storni.
INTRODUÇÃO
Este trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla que tem a revista ilustrada infantil
O Tico-Tico como objeto, o qual foi escolhido, por sua posição privilegiada na história das
publicações brasileiras, para responder a questões sobre o processo civilizador e de
construção da subjetividade dita “moderna” entre os jovens leitores do período da Belle
Époque brasileira1 .
Nas primeiras décadas do século XX, O Tico-Tico (1905 – 1962) levava ao mercado
leitor brasileiro conteúdo direcionado ao público infantil e juvenil. Eram contos ilustrados,
curiosidades, passatempos e registros sociais, além das historietas ilustradas que
1 A qual não corresponde à cronologia da Belle Époque europeia e pode ter, por relevância social e cultural, seu marco
inicial na inauguração da Avenida Central na cidade o Rio de Janeiro, capital da República, em 1905, e como marco final
a crise financeira de 1929, uma vez que o Brasil não sofreu o mesmo impacto que a Europa sofreu com a Primeira Guerra
Mundial.
caracterizavam e distinguiam a publicação. Entre seus colaboradores estavam artistas que
podem ser louvados como pioneiros do gênero da história em quadrinhos no Brasil, tais
como Ângelo Agostini, Leônidas, J. Carlos, Loureiro, Alfredo Storni e Max Yantok.
Conforme o projeto expresso por seus editores, a revista visava produzir entretenimento
leve e, ao mesmo tempo, estimular a prática da leitura e ajudar na educação das novas
gerações (ROSA, 2002). Supunha-se que, para uma educação adequada e moderna, era
necessário produzir textos específicos para as crianças e jovens, respeitando suas
particularidades (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999).
Essa proposta educativa expressa, no entanto, não é o foco deste trabalho. Num
contexto de rápidas e profundas transformações sociais, políticas, materiais e
comportamentais cuja complexidade costuma ser ocultada sob o rótulo da “Modernidade”,
as publicações, na oferta tanto de narrativas jornalísticas quanto ficcionais, tinham papel em
processos de caráter civilizador e subjetivador. Estavam, de alguma forma, mediando a
introjeção de novos comportamentos e a naturalização do uso de novidades técnicas. Isso,
sem falar na construção do papel de cidadão brasileiro republicano. O jogo de
representações sociais em forma de personagens e narrativas cômicas era fundamental nesse
processo.
No período da Belle Époque, era nas narrativas cômicas e caricaturais que os autores
e cartunistas criticavam a “loucura” da corrida atrás das modas, ao mesmo tempo em que
ridicularizavam aqueles que queriam se aferrar ao passado rústico e às instituições arcaicas.
Exigia-se o difícil caminho do meio, o caminho mais civilizado (SALIBA, 2002). Pairava a
sensação de que o mundo progrediria com rapidez. Mesmo os habitantes deste país
periférico logo experimentariam as benesses da Civilização. No entanto, em 1914, a
Europa, berço dessa concepção de civilização, entra em guerra. Intelectuais e artistas ficam
perplexos, desapontados, e perdem a “inocência”. Ao mesmo tempo, as expectativas
reaqueciam os espíritos de inclinação marcial (FREUD, 2009).
Assim, surgiu o problema de perceber como a Primeira Guerra Mundial foi
representada nas historietas de O Tico-Tico e como os artistas e redatores mediaram a
reportagem dos fatos para um país que estava muito longe de se engajar no conflito, mas
não podia ignorá-lo, muito menos não se solidarizar com a Civilização atacada.
Neste trabalho foram analisadas histórias em quadrinhos dos personagens Chiquinho
(por Loureiro) e Zé Macaco (por Alfredo Storni) durante os quatro anos do conflito europeu
e foi feita uma comparação com as análises de Camilla Peruch e Sonia Santin (2015) sobre
as histórias em quadrinhos publicadas no Corriere dei Piccoli, publicação infantil italiana,
durante a Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918).
FUNDAMENTOS TEÓRICOS
Neste estudo, O Tico-Tico não será visto como um produto de mercado controlado
tão somente pelos proprietários da Sociedade Anônima O Malho (sua editora), mas como
uma representação coletiva da sociedade, conforme formulação de Howard S. Becker. Sob
a mesma linha editorial, ao longo de incontáveis semanas, um grande número de
colaboradores, cada qual com sua formação artística e intelectual e sua identidade social,
tentou sempre conjugar suas próprias percepções com o interesse dos leitores, os quais se
manifestavam profusamente por carta, inclusive mandando colaborações amadoras. Becker
defende que:
Levar em conta as maneiras como as pessoas que trabalham em outros campos —
artistas visuais, romancistas, dramaturgos, fotógrafos e cineastas — e os leigos
representam a sociedade revelará dimensões analíticas e possibilidades que a ciência
social muitas vezes ignorou serem úteis em outros aspectos (BECKER, 2009, p.19).
O quadro descrito pelas pesquisadoras Camilla Peruch e Sonia Santin (2015, p.20) é
a de uma publicação semanal dedicada ao público infantil que, antes da guerra, tinha muitas
similaridades com O Tico-Tico, uma vez que compartilhavam o mesmo projeto editorial,
com mistura de contos ilustrados, colunas de curiosidades e muitas historietas ilustradas,
para entreter e educar ao mesmo tempo. No entanto, diferentemente do semanário
brasileiro, o italiano foi obrigado a responder à pauta da Primeira Guerra Mundial. Assim,
durante 1914, os cartunistas e redatores apenas faziam votos públicos pela volta da paz. A
partir de maio de 1915, no entanto, a Itália entra diretamente no conflito e as mensagens
patrióticas tornam-se o assunto principal. Aqueles cartunistas e redatores tinham que
explicar aos jovens leitores os motivos da guerra, por que os homens começavam a faltar na
família e a obrigação moral de combater o ataque à nação. Ao mesmo tempo, não podiam
se esquecer do desejo infantil por evasão e fantasia.
Como exemplo: a série do menino Schizzo (por Attilio Mussino), inspirado no Little
Nemo de Winsor McCay, já vinha sendo publicada desde 1912. Mas, com os fatos de 1915,
o menino aparece lendo as notícias no jornal e, à noite, sonhando que está participando da
guerra. Numa história, Schizzo sonha que realizou uma missão perigosa e, por isso, o
próprio Rei Vittorio Emmanuele deu-lhe um beijo de agradecimento. Quando acorda,
percebe que, na verdade, era sua mãe beijando sua testa (PERUCH; SANTIN, p. 28).
O mesmo desenhista Mussino fez uma série entre 1915 e 1916 na qual retrata apenas
soldados adultos, sem mediação de qualquer personagem infantil ou jovem. Enquanto os
italianos são retratados como pobres e astutos, os austríacos, apesar de bem equipados, são
retratados como tolos sem iniciativa (ibidem, p. 29).
Essa era a lógica (e argumento) que os cartunistas adotaram para dar ânimo à
população italiana, que entrou na guerra sem equipamento, com poucos soldados e com
dificuldades logísticas e táticas. As pesquisadoras desenvolvem muito bem essa análise:
Nesse difícil contexto, o Corriere dei Piccoli incitou os jovens leitores a não terem
medo. Eis que aqueles que, na realidade, eram temíveis inimigos, foram
reconfigurados como ineptos, incapazes de cumprirem aquelas fulminantes e
resolutas ações que os meios modernos lhes haviam possibilitado. Vai daí que tudo
isso resultou na difusão de um senso geral de proteção da integridade física de cada
combatente mobilizado, italiano ou aliado. Foi assim que a guerra travada entre os
exércitos da Entente e dos Impérios Centrais se transformou numa irônica aventura
na qual entraram em campo até mesmo invenções ousadas e fantasiosas que faziam
apelo a uma geral confiança no progresso (ibidem, p.32, tradução nossa).
Luca Takko, série feita pelo desenhista Antonio Rubino, durou de 1914 a 1917 e é
exemplo da opção de fantasiar as crueldades do conflito. Em vez de se basear no noticiário,
Rubino criou países imaginários onde moravam dois amigos, Luca e Gianni, separados pela
fronteira do conflito. Essa fantasia fala da imposição sentida pelas populações de origem
italiana dispersas em lados opostos da guerra. Mais uma vez, o personagem que simboliza o
inimigo é um general medroso e inepto, embora orgulhoso: o general Bombardone. Em
tudo, os personagens lembram italianos e germânicos, que eram as culturas em conflito,
mas as histórias fantasiam alto na representação agonística, conforme Peruch e Santin:
Aquela que apareceu nos quadrinhos de Luca Takko foi uma guerra abstrata, longe
das batalhas reais. Apresenta-se como um evento jocoso, capaz de provocar uma
grande risada pela zombaria feita às custas de um adversário ridículo e débil. [...]
Foi assim que entraram em cena gás que aturdia mas não matava, personagens que
explodiam mas se recompunham logo depois... Apenas efeitos especiais
surpreendentes, nunca uma mancha vermelha indicativa de ferimento, nunca o
sofrimento, a tragédia, a morte. Desse modo, até aquilo que deveria ter deixado as
crianças chateadas, como o uso dessas novas e mortais armas que a inovação
tecnológica havia levado aos campos de batalha, acabou não infligindo medo.
(ibidem, p.36, tradução nossa).
2
Optamos por transcrever textos de O Tico-Tico usando as normas ortográficas atuais e não as do original, para maior
clareza.
político na revista ilustrada O Malho, representava essa doutrina, e publicou, em 13 de
janeiro de 1915 (enquanto, na mesma edição, Chiquinho se apresentava com sua fantasia de
Napoleão), uma história que inverte os termos “civilização” e “selvageria” (ver Fig. 2).
Tudo começa com Chiquinho e seu amigo Benjamim, mais o cachorro Jagunço, na
água-furtada do telhado, observando a casa do vizinho. Nela vive o garoto Xedas, que é
uma peste. Ele incomoda a mãe costureira, desobedece, maltrata animais e tudo. Chiquinho
fica revoltado porque “criança não tem querer”. Benjamin caçoa do vizinho porque ele é
estrábico. Xedas responde à provocação chutando uma bola na cara de Benjamin. Depois,
vai empinar uma pipa e, “sem querer”, laça o rabo do cão, puxando-o de cima do telhado.
Não só o cão, mas também Chiquinho e Benjamin descem para brigar com Xedas. A mãe
deste vem apartar a briga desigual e protege seu filho, revoltando os “cavaleiros” que só
tinham intenção de vingá-la. Forma-se uma rixa entre os meninos. Chiquinho e Benjamin
continuam a inventar modos de provocar Xedas para “corrigi-lo”. O cenário da briga passa
a ser a cerca que divide os terrenos das casas vizinhas, como uma fronteira de guerra.
Benjamin e, depois, Jagunço, invadem o terreno de Xedas para persegui-lo em seu quintal
vestidos de touro. O menino, no entanto, consegue revidar, mas só até o cão voltar e atacá-
lo ferozmente junto à cerca. A mãe de Xedas encontra o menino no chão, feito “uma papa,
molenga”, todo mordido pelo cão. Vai cobrar satisfações da mãe do Chiquinho, mas ele
termina sem ser castigado, porque sua mãe diz que “não se envolve em brigas de crianças”.
Muito dessa história faz analogia com a narrativa da Primeira Guerra, quando as
nações que se consideravam mais “civilizadas” vão à guerra para punir nações “bárbaras”
que precisam de correção. Ambos os lados se utilizam dos meios mais violentos e antiéticos
para dar a última palavra no conflito. No fim, frente à destruição, o conflito não tem árbitros
e os vencedores não são cobrados por seus atos.
As versões têm nuances, é preciso apontar: enquanto as narrativas inglesas e
francesas seguem a argumentação de que o agressor tem comportamento “bárbaro” –
seguida pelos cartunistas brasileiros, conforme concluímos –, os quadrinhos dos italianos
narram aventuras em que os agressores representam o mundo industrializado, mais urbano e
civilizado e os heróis representam as comunidades ainda tradicionais, que poderiam ser
tachadas de “rústicas” e “bárbaras” em alguns manuais de etiqueta estudados por Elias.
Conforme Howard S. Becker, por meio dessa obra narrativa em forma de
quadrinhos, nossa sociedade parece querer representar a guerra como um mal necessário ou,
pelo menos, um recurso que as nações fortes precisam utilizar e que os brasileiros, se
necessário, também precisam cogitar. Não é necessário que o cartunista Loureiro tenha
expressamente levantado essa tese. Seu trabalho exerceu influência e também recebeu, é
claro, influência de seu meio social. Isso pode fundamentar essa leitura, entre outras.
Apoiando-se na teoria de representações sociais de Moscovici, é possível dizer que a
“objetivação” do conflito mundial num cenário que apresenta duas casas, uma cerca e
provocações entre crianças vizinhas pode ter ajudado a serem assimiladas todas as
abstrações que os intelectuais devem ter tecido sobre os motivos da guerra, na época.
O projeto civilizatório e modernizador republicano de que O Tico-Tico fazia parte
tinha como imagem inspiradora a “ascensão” do Brasil ao nível das maiores nações do
mundo. Essas mesmas nações tinham sido protagonistas da guerra. Nos últimos meses do
conflito, o país realmente se juntou aos aliados e ensaiou alguma colaboração no esforço de
guerra, mas não precisou mandar tropas. A guerra acabou e, com muita felicidade,
Chiquinho e Benjamin recebem a notícia, tanto porque a paz voltou, e não haverá mais
racionamentos e carestia, mas também porque o Brasil se irmanou com os vencedores. No
último quadrinho de uma história de 27 de novembro de 1918, os meninos comemoram
com todas as bandeiras dos países aliados, inclusive a do Brasil (ver Figura 6). A guerra
pode ter sido vista como uma oportunidade de ver realizada aquela ascensão do Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cartunista Loureiro tocou, com essa historieta, questões sobre a relação entre
civilização e violência. O processo civilizador requer dos meninos comportamento
controlado, que responde à autoridade (dos pais) mesmo à custa de seus desejos (brincar,
mexer com as coisas). Chiquinho, cobra tal nível de civilidade do vizinho, mas recorre (por
procuração) à violência para castigar Xedas, como se a violência, nas mãos justas, fosse o
recurso que civiliza. As “hostilidades” começam não com Xedas, mas com os heróis, que
provocam o vizinho a partir daquele ponto de vista. Afinal, eram eles que estavam vigiando
a casa dos outros. A imagem do Xedas no chão, mole feito pasta, pode representar o desejo
do civilizador (no que seria uma contradição, pois é a expressão de seus impulsos de
violência, e não de cultura, num sentido que Freud explicaria melhor).
REFERÊNCIAS
ELIAS, Norbert. O processo civilizador vol. 1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar,
2011.
FREUD, Sigmund. Escritos sobre a guerra e a morte. Trad. Artur Morão. Covilhã: Lusofia, 2009.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: histórias & histórias.
São Paulo: Ática, 1999.
PERUCH, Camilla; SANTIN, Sonia. Il Corriere dei Piccoli va alla guerra. Veneto:
Kellermann,2015.
ROSA, Zita de Paula. O Tico-Tico: meio século de ação recreativa e pedagógica. Bragança
Paulista: EDUSF, 2002.