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O peso do pássaro morto - a espectropoética na obra contemporânea de

Aline Bei

The weight of the dead bird - spectropoetics in the contemporary work of


Aline Bei
DOI: 10.55905/revconv.16n.9-077

Recebimento dos originais: 14/08/2023


Aceitação para publicação: 14/09/2023

Priscilla de Souza Klein Gnutzmann


Mestranda em Letras
Instituição: Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
Endereço: Dourados - MS, Brasil
E-mail: priscillakleingnu@gmail.com

Daniel Abrão
Doutor em Teoria da Literatura
Instituição: Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
Endereço: Dourados - MS, Brasil
E-mail: danielabrao@uems.br

RESUMO
Este artigo analisa a obra contemporânea de Aline Bei, “O peso do pássaro morto” (2017) a partir
do conceito de espectros, de Jacques Derrida. A espectralidade é principalmente pensada por
Derrida na obra “Os espectros de Marx” (1994), na qual o filósofo interpreta o passado sob o
filtro da dívida e da herança dos antepassados. Para isso faremos a articulação entre as teorias na
narrativa contemporânea da professora e pesquisadora Beatriz Rezende (2014) e do escritor
Lionel Ruffel (2014) na tentativa de demonstrar a espectralidade de Derrida na escrita
contemporânea de Aline Bei, que carrega rastros da história da mulher no mundo, principalmente
na maternidade, por uma ótica singular, uma personagem única e, ao mesmo tempo, múltipla,
que vive suas perdas em um mundo machista por excelência.

Palavras-chave: espectralidade, Jacques Derrida, literatura brasileira contemporânea, Aline Bei.

ABSTRACT
This article analyzes Aline Bei's contemporary work, "The Weight of the Dead Bird" (2017),
based on Jacques Derrida's concept of spectres. Spectrality is mainly thought of by Derrida in the
work "The Spectres of Marx" (1994), in which the philosopher interprets the past under the filter
of debt and the inheritance of ancestors. To do this, we will articulate the theories in the
contemporary narrative of professor and researcher Beatriz Rezende (2014) and writer Lionel
Ruffel (2014) in an attempt to demonstrate Derrida's spectrality in Aline Bei's contemporary
writing, which bears traces of women's history in the world, especially in motherhood, through
a singular perspective, a unique and, at the same time, multiple character, who lives her losses in
a macho world par excellence.

Contribuciones a Las Ciencias Sociales, São José dos Pinhais, v.16, n.9, p. 15112-15132, 2023 15112
Keywords: spectrality, Jacques Derrida, contemporary brazilian literature, Aline Bei.

1 A ESPECTROPOÉTICA DE DERRIDA EM “ESPECTROS DE MARX”


A análise da espectropoética de Derrida, presente na obra "Os espectros de Marx", explora
a presença do motivo do espectro na literatura contemporânea, abordando seus pensamentos
psicológicos, sociais e culturais. A abordagem derridiana busca promover a ética da alteridade,
ou seja, a consideração ética do outro e a importância de ouvir e acolher a alteridade. O espectro
pode representar várias formas, como multidões, populações ou fantasmas que assombram
cidades, podendo ser único ou múltiplo.
Derrida utiliza o motivo literário do "fantasma do pai" de Hamlet como um meio para
explorar essas ideias, mesmo que esse motivo pertença ao gênero dramático. A presença do
espectro na literatura moderna é uma temática implícita no texto de Derrida, destacando que
embora não seja exclusiva da literatura moderna, a análise se concentra em obras
contemporâneas.
"Dom Quixote", um exemplo da literatura primórdia da modernidade, apresenta marcas
de espectralidade. O personagem de Dom Quixote tem uma relação próxima com a morte e uma
realidade abstrata e imaterial. A configuração literária da realidade passa a ser espectral, com
ecos de um passado em herança. Em contraste, Sancho Pança é um personagem mais ligado à
realidade terrena. Portanto, a análise da espectropoética de Derrida explora como o motivo do
espectro está presente na literatura contemporânea, enfocando questões éticas, sociais e culturais
relacionadas à alteridade e à natureza da realidade literária. Podemos dizer que a literatura
moderna nasce com aspectos espectrais.
A partir do modernismo, a literatura toma uma temática espectral, não a partir de temas
com fantasmas e espíritos, mas como um tipo específico de percepção do real, como podemos
notar em Beckett, Joyce, Virgínia Woolf. Personagens que não se configuram como sujeitos,
contendo uma indefinição psicológica, uma narração de um passado incerto e um espaço e tempo
muito impreciso. Volubilidade do real, do tempo, epifania, instante: isso nos leva a refletir sobre
o motivo da espectropoética no contemporâneo.

Agora os espectros de Marx. Mas agora sem conjuntura. Um agora desajuntado ou


desajustado, “out of joint”, um agora desencaixado que sempre corre o risco de nada
manter junto, na firme conjunção de algum contexto, cujas bordas seriam ainda
determináveis. (DERRIDA, 1994, p.17)

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Derrida escreve no plural, configurando os espectros como vários, e não um só, ou vice-
versa. Os espectros podem ser uma pessoa, um fantasma, um ser, uma ideia, uma presença, uma
ausência ou até mesmo uma cidade ou um povo. A ideia espectral colocada no plural abrange
tudo aquilo que vem carregado de herança e memória de gerações.

Os espectros de Marx. Por que esse plural? Haveria mais de um? Mais de um, isso pode
significar uma multidão, quando não massas, a borda ou a sociedade, ou então uma
população qualquer de fantasmas com ou sem povo, ou uma comunidade com ou sem
chefe – mas também o menos de um, da pura e simples dispersão. Sem reunião alguma
possível. (DERRIDA, 1994, p.17)

Segundo o filósofo, desde que se deixa de distinguir o espírito do espectro ele toma corpo,
encarna-se, como espírito, no espectro. Ou antes, Marx mesmo o esclarece, chegaremos até aí, o
espectro é uma incorporação paradoxal, o devir-corpo, uma certa forma fenomenal e carnal do
espírito.
Trata-se da intangibilidade tangível de um corpo próprio sem carne, mas sempre de
alguém como algum outro. Algum outro que não é determinado como sujeito, ego, pessoa,
espírito e consciência; com isso podemos distinguir perfeitamente o espectro do ícone, do ídolo,
da imagem ou do fantasma platônico. Sabemos que a coisa é algum outro que nos olha, sentimo-
nos olhado por ela antes mesmo que pudéssemos olhar de volta.

A anacronia faz a lei aqui. Que nos sintamos vistos por um olhar que sempre será
impossível cruzar, aí está o efeito de viseira, a partir de que herdamos a lei. Como não
vemos quem nos vê, e quem faz a lei, quem liberta a injunção, uma injunção aliás
contraditória, como não vemos quem ordena “jura”, não podemos identificá-lo com
certeza, ficamos entregues a sua voz. (DERRIDA, 1994, p.23)

Um outro pode sempre mentir, pode disfarçar-se de fantasma, um outro fantasma pode
também fazer-se passar por este aqui. Em Hamlet, a armadura que recobre todo o corpo do pai
pode não ser outra coisa senão o corpo de um artefato real, um corpo estranho ao corpo espectral
que ela veste, dissimula e protege, mascarando até sua identidade. A armadura cobre todo o corpo
do pai, mas na altura da cabeça, há o elmo, uma abertura que permite ao pai ver e falar. Assim,
o pai pode ver sem ser visto e ordenar com segurança, protegido pelo capacete e com a viseira
capaz de ver e falar mantendo seu disfarce.
É neste aquém que formulamos aqui a questão do espectro, o espectro que pode ser de
Hamlet, de Marx ou de qualquer outra coisa. E o importante aí é saber de quem é o corpo e onde
está enterrado, trata-se de um corpo cujo resto é somente o que resta dele. Em segundo lugar,

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saber a importância da língua, da voz que identifica o espírito ou a geração dele. O terceiro ponto
destacado pelo filósofo é o trabalho do espectro, o seu deslocamento e sua transformação, sua
composição ou decomposição.
A pergunta do simpósio que nos é dirigida no início desta obra “Whither Marxism?” ou
“Para onde vai o marxismo? nos leva a refletir por que Derrida nos aponta para um fantasma da
literatura, o pai de Hamlet? Seria para apontar um fantasma que perseguimos ou um fantasma
que nos persegue? Retornamos à questão da presença/ausência, vida/morte que é apontada pela
presença ou não de um fantasma que nos leva a uma oposição clara de repetição e primeira vez,
ou última vez e repetição. “Cada vez, trata-se do acontecimento mesmo, a primeira vez e uma
última vez. O acontecimento tem a singularidade da primeira vez que faz dela uma última vez.
Totalmente outro.” (DERRIDA, 1994, p.26). Portanto, a pergunta clássica “To be or not to be?”
é uma obsessão poderosa relacionada às oposições do ser e do acontecimento. Como poderíamos
desvendar e realmente compreender o discurso do fim ou o discurso sobre o fim? “Após o fim
da história, o espírito vem ao revir, ele figura ao mesmo tempo um morto que revém e um
fantasma cujo retorno esperado se repete, mais e mais.”(DERRIDA, 1994, p.26):

“The time is out of joint” ou “O tempo está fora de junção ou desalinhado” , a expressão
fala do tempo, o tempo de agora, que pode ser a qualquer tempo, um tempo deste
mundo, esta época e nenhuma outra. “...mas se o diz então nesse outro tempo, no
pretérito perfeito, uma vez no passado, como isso valeria para todos os tempos? ...como
pode retornar e apresentar-se de novo, outra vez, como novo? Como pode estar presente
de novo, quando seu tempo não está mais presente? Como pode valer para todas as
vezes que alguém tenta dizer “nosso tempo”. (DERRIDA, 1994, p.73)

Quando falamos do espectro, ao espectro, aceitamos a injunção que nos chega no


presente, do passado e do futuro. Chega pelas vozes e corpos que nos habitam. A aparição do
espectro é sempre a volta de algo ou algum outro, como o pai de Hamlet, que não está
necessariamente presente, é uma presença/ausência que está no presente, não está e não é mais
um de nós.

Para falar aos espectros é preciso assumir a responsabilidade da herança que somos nós.
A história do pai de Hamlet chama a atenção “também pelo fato de que o tempo de
Hamlet é difícil de se calcular porque o fantasma aparece primeiramente na peça, pela
segunda vez. (DERRIDA,1994, p.03)

Quando Hamlet diz: “The time is out of joint” o tempo está disjunto” Derrida trata do
tema da disjunção, da não-contemporaneidade a si mesmo, a expressão fala do tempo, o tempo

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de agora, que pode ser a qualquer tempo, um tempo deste mundo, esta época e nenhuma outra.

Este predicado diz alguma coisa do tempo e o diz no presente do verbo ser, mas se o
diz então nesse outro tempo, no pretérito perfeito, uma vez no passado, como isso
valeria para todos os tempos? Em outras palavras, como pode retornar e apresentar-se
de novo, outra vez, como o novo? Como pode estar presente de novo, quando seu tempo
não está mais presente? Como pode valer para todas as vezes que alguém tenta dizer
“nosso tempo”?. (DERRIDA, 1994, p.73)

Derrida cita o verbo ser no infinitivo como uma abertura aos espectros no tempo presente.
O verbo conjugado no infinitivo e na terceira pessoa do singular abre espaço para os espectros
no tempo presente e se for conjugado no plural logo dá-se abertura a todos os espectralidade
ancestral.

Numa proposição predicativa no que se refere ao tempo, e claramente à forma- presente


do tempo, o presente gramatical do verbo ser, a terceira pessoa do presente do indicativo
dá a impressão de oferecer uma hospitalidade predestinada ao retorno de todos os
espíritos, palavra que basta escrever no plural para das as boas-vindas aos espectros.
(DERRIDA, 1994, p.73)

O filósofo destaca a fala de Hamlet sobre o tempo fora do eixo, expondo o motivo
espectral na obra diante do mundo e da política. O tempo presente sendo entrelaçado e amarrado
ao passado, bem como consumindo-se enquanto corre para o futuro.

The time is out of joint”, uma fala de Hamlet diante do teatro do mundo, da história e
da política. O mundo está fora dos eixos, tudo está desregulado, injusto ou desajustado,
começando pelo tempo. “O mundo vai muito mal, desgasta-se à medida que se adianta
em anos... (DERRIDA, 1994, p.107).

Podemos pensar no contemporâneo como um infinito ir e vir no tempo, como um processo


que nunca acaba e recomeça a cada época. O mundo é desgastado e renovado a cada dia, algo no
presente que é contemporâneo em relação ao passado, pode ser considerado ultrapassado no
futuro e novamente contemporâneo num próximo passo. Derrida aponta os aspectos espectrais
justamente nestas heranças passadas de gerações em gerações.

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2 O ESPECTRAL NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA
Então, o que é o contemporâneo senão um processo infinito, que pode ser único e múltiplo
ao mesmo tempo, algo impreciso que pode ou não encaixar-se em qualquer época? Segundo
Lionel Ruffel, o contemporâneo é o fim de um processo de substantivação inacabada. Um
processo que é infinito. Enquanto tentamos conceituá-lo ele acaba e continua ao mesmo tempo,
justamente essa relação que escreve Derrida no “espectro de Marx”, com o tempo inacabado,
sem conjuntura, desajustado. O contemporâneo que se pode entrever na temporalidade do
presente é sempre retorno que não cessa de se repetir, portanto, nunca funda uma origem e, com
isso, se aproxima da noção de poesia, diz Agamben.

(...) o poema se define no seu fim. Para Agamben a poesia é esse movimento do olhar
para trás operado no poema e, portanto, um olhar para o não-vivido no que é vivido, tal
como a vida do contemporâneo. O voltar-se para trás, suspender o passo, ver o escuro
na luz, entrever um limiar inapreensível entre um ainda não e um não mais e
compreender a modernidade como imemorial e pré-histórica são algumas das fraturas,
das cisões no tempo com as quais o sujeito, o poeta, tem que lidar. (AGAMBEN, 2019,
p. 19)

A partir daí, pretende-se analisar a espectropoética de Derrida na contemporaneidade na


obra de Aline Bei, “O peso do pássaro morto”, obra publicada em 2017, finalista do Prêmio São
Paulo de Literatura em 2018, uma narrativa poética que se destaca pela honestidade em que
retrata o feminino, principalmente quanto a maternidade. A linguagem utilizada na obra é em
muitos momentos chocante, a crueza das palavras demonstra uma realidade de perdas, tragédias
e violência, mas a sutileza utilizada pela autora é o diferencial.

3 ALINE BEI E SUA CRIAÇÃO EM PROSA POÉTICA “O PESO DO PÁSSARO


MORTO”
Aline Bei nasceu em São Paulo, em 1987. É formada em letras pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e em artes cênicas pelo teatro-escola Célia Helena. Seu
romance de estreia, “O peso do pássaro morto” (2017), foi vencedor do prêmio São Paulo de
Literatura e do prêmio Toca, além de finalista do Prêmio Rio de Literatura. “Pequena coreografia
do adeus” é seu segundo livro, lançado em 2021.
Em uma de suas entrevistas, Aline Bei conta que a ideia do romance nasceu de uma
lembrança da infância, quando sua mãe pediu para que segurasse um canário que tinha em casa
enquanto ela pegava a tesoura para cortar suas garras, e de repente ele morreu na sua mão; anos

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depois andando na rua me brotou o título, porque minha mão mudou para sempre depois da morte
do canário, ficou pesada e estrangeira. Então decidi escrever um livro sobre perdas e o “Pássaro”
nasceu assim.
A doutora em comunicação e semiótica da PUC, Elisabete Alfeld, no artigo “Poética da
rememorização”(2021), descreve essa subjetividade presente nos depoimentos da autora, que
migra para a criação do enredo e o modo de construção da protagonista. O projeto poético está
nas mãos da artista-autora; a narração na voz da protagonista–narradora vivencia a linha narrativa
de sua história tecida na irreversibilidade do tempo: olhar para a vida sem as muitas coisas
levadas pelo tempo, uma vez que “tudo escorre e tudo é perda”; suportar o peso do que foi
escorrendo, inclusive a fragilidade de seu próprio corpo violentado.
O protagonista-narrador sem nome é caracterizado por lembranças-cicatrizes, que a
fazem sentir-se despersonalizada e sem vontade de viver. A trama aparentemente simples
descreve suas perdas ao longo de sua vida, mas a maneira única como Bei organiza e desenvolve
a narrativa se destaca.
A prosa poética de Bei é marcante, com linhas desiguais que lembram versos, criando um
ritmo que ecoa o ocorrido cardíaco do leitor. Essa estrutura peculiar é observada nas páginas 44
e 45, e em que uma dissimetria sugere uma qualidade espectral à narrativa:

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Figura 1: Dissemetria espectral

Fonte: BEI, 2007, p.44

A obra é dividida em nove capítulos, todos intitulados com a idade da personagem no


momento do relato – oito, 17, 18, 28, 37, 48, 49, 50 e 52 anos. Em cada trecho, a linguagem
reflete a maturidade da narradora. Uma narrativa poética, um romance com estrutura de poema
escrita, em sua maioria, em primeira pessoa. É uma estrutura diversificada, uma narrativa em
forma de poema com uma linguagem muito próxima da oralidade, mas com espaços que
representam palavras não ditas, uma respiração, uma pausa que é muito significativa para o
enredo. Os espaços na obra representam um tempo passado ou um vazio de uma palavra não dita.
O livro retrata também a importância dos primeiros anos de vida da personagem, e, ao
mesmo tempo, a importância dessas vivências para todos os indivíduos, as marcas do que viveu,
momentos trágicos que passou e as escolhas que fez a partir dessas vivências deixando em alguns
momentos a impressão de que muitas coisas poderiam ser evitadas.

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Figura 2: Trecho do início, infância

Fonte: BEI, 2017, p.7

Diversidade nas formas e na estética é o que o torna contemporâneo e autêntico. Revela


como em um diário várias fases na vida de uma mulher, dos 8 aos 52 anos, e marca momentos
impactantes e com muitas perdas importantes envolvendo a morte. Começando pela morte do
pássaro em sua mão sequenciada pelas experiências durante toda a sua vida.

A sensação nunca mais me abandonou, e a imagem veio como título, anos depois.
Pensei então em escrever uma história sobre perdas, sem tréguas e escolhi a voz de uma
anônima para narrar, conta Aline em entrevista ao Lunetas. (PENZANI, 2018, n.p)

Mulheres que vivem desde o início dos tempos submissas e reprimidas por uma sociedade
machista e patriarcal. O romance em prosa poética percorre campos temáticos diversos, desde a
infância, convivência, relações parentais, emoções reprimidas, maternidade, sexualidade e abuso.
Porém, a relação com a maternidade é o que mais impacta a vida da protagonista, tanto no que
diz respeito a relação afetiva que teve com a mãe, como na relação conturbada que teve com seu
único filho. Na infância teve que conviver com a morte de uma amiga aos 8 anos e passou pela
dificuldade da mãe em falar sobre o assunto, em expressar-se de maneira natural em relação ao
ocorrido, e isso fez com que a menina carregasse o peso da dúvida e do medo da morte pelo resto

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da vida. No trecho, a combinação da palavra “Morreu” iniciada em letra maiúscula com a palavra
“Piano” aumenta o peso da notícia e logo após os espaços de silêncio e medo:

Figura 3: O silêncio

Fonte: BEI, 2017, p.18

Em seguida a conversa com a mãe:

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Figura 4: A mãe

Fonte: BEI, 2017, p.19

Essa perda foi a primeira na vida da personagem, que tinha a amiga como referência,
amiga que brincava todos os dias na escola e que ajudava com seu medo de borboleta.
Percebe-se na resposta da mãe uma frieza em comparar a morte com um pedaço de carne
que pode ser usado e manipulado enquanto está vivo e muito mais após sua morte. Uma
espectralidade ancestral pode-se notar nesta resposta crua e aparentemente sem sentimentos,
dando a nítida impressão de uma mulher acostumada a sofrer e ser manipulada que não consegue
assimilar e nem compartilhar a dor de uma criança que perdeu a amiga de uma forma tão trágica.
Um verso vivo e profundo, relacionando a perda da garota a várias outras perdas que já vem
marcando gerações.
A infância e a adolescência da personagem continuam com as alegrias e tristezas de uma
fase complicada e desconexa que para ela é muito sofrida, não consegue se posicionar diante do
mundo, enfrenta o bullying dos colegas de escola e, neste contexto, se questiona muitas vezes
sobre o “deusinho teimoso da manjedoura”, a existência de Deus e as crenças nas rezas do seu
Luís que a cada dia ficava mais distante. Enfrenta a primeira paixão e também a primeira
desilusão. Começa a sonhar e tentar encontrar um espaço dentro da sociedade. Sonha em ser
aeromoça e viajar pelo mundo conhecendo vários lugares.

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Figura 5: Os sonhos

Fonte: BEI, 2017, p.23

Até que a menina começa a virar mulher e perceber que não poderia ser livre como
imaginava, não poderia fazer o que queria sem ser taxada e rotulada pela sociedade, passa por
uma situação complicada, em que é flagrada num show de rock, desfrutando de um desses
momentos raros na vida: curte sua juventude e sua sexualidade aflorada, mas logo se arrepende
por causa do julgamento dos outros. Por conta desse julgamento social, essa menina, então com
17 anos, é crucificada e taxada como transformasse em um objeto que não tivesse nenhum direito
à liberdade do seu próprio corpo.
Eis a espectralidade em sentido social, um monstro, um espírito machista, dominador,
patriarcal, pertencente a uma sociedade em que a mulher deve ser sempre submissa, um
sentimento que toma conta de toda vida da personagem. É um preconceito enraizado, uma
história de violência que a mulher é submetida há séculos, um rastro enraizado no tempo.
Vejamos o trecho:

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Figura 6: A raiz da violência

Fonte: BEI, 2017, p.52

Quando analisamos o contemporâneo como nocional, um conjunto de discursos que se


cruzam, que respondem uns aos outros, percebemos a contemporaneidade na obra, que consegue
ser atual e ao mesmo tempo clássica, trazendo questões seculares fundamentais ao feminino e
entrando no mundo dos sentimentos de uma mulher de uma maneira tão singular e nova. A
autora trata, por exemplo, de um filho vindo de um estupro, ao qual a mulher sente vergonha e
exposta a julgamentos e por isso, prefere ficar calada e reprimir todo o sentimento advindo de
uma culpa sobrenatural, uma culpa que carregava por causa da sua feminilidade.
No trecho:

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Figura 7: A culpa

Fonte: BEI, 2017, p.58

O peso que essa mulher carrega é real e ao mesmo tempo irreal, um peso palpável,
representado pelo filho que foi gerado a partir de uma relação não concedida, um estupro que ela
é incapaz de fugir desde o momento do acontecimento em si até o final da sua vida. Não é o filho,
propriamente dito, a pessoa do filho, mas o que ele representa, a violência, o desamor, a raiva
que sentiu naquele dia, o acontecimento que marcou significativamente sua vida, o
arrependimento por não ter saído para comer pizza naquela noite.
Aline fala de um acontecimento real, que se repete há séculos e que até hoje é considerado
“natural” socialmente. O homem engravida uma mulher, abandona o filho, e a mulher ainda se
sente na obrigação de cuidar daquele filho como se a responsabilidade pelo ato fosse totalmente
dela.
O filho existe e faz parte da sua vida desde os 17 anos e as consequências do nascimento
deste filho causa um desconforto constante, como se algo a estivesse perseguindo, uma sombra,
como se fosse um resto de algo, uma situação mal resolvida, um resto que teve fim, mas que
sempre se repetia, um fim e um começo constante. A depressão pós-parto é ricamente expressa
neste trecho:

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Figura 8: A sombra depressiva

Fonte: BEI, 2017, p.64

Que amor é esse, que ela não conseguia encontrar naquele filho, pelo menos naquele
momento?
A escrita literária de Aline Bei em "O Peso do Pássaro Morto" também tem um caráter
político, denunciando a realidade vivida por muitas mulheres brasileiras com uma abordagem
literária poderosa e sensível.
A autora quebra padrões ao incorporar outras formas de expressão artística e linguagens
na narrativa, combinando oralidade, narrativa e poesia. Essa abordagem começa com o conflito
entre recursos narrativos realistas e a própria ruptura com o realismo. Em um momento crucial
da obra, um personagem interrompe uma viagem que esperava por muito tempo para empreender,
uma jornada para encontrar seu destino. Um novo sentido na sua vida. É como se aquele cão
completasse todas as suas expectativas, mas não tinha uma identidade, uma referência. Daí a
dúvida que a autora deixa para o leitor: esse cão era real ou uma representação da realidade tão
sonhada pela personagem? Uma completude de um amor que deveria ser tomada pelo filho e não
acontecia.
Quem ou o que era esse cão? Aí que surge o indizível, o horror em toda sua
impossibilidade de ser representado. O crítico Luiz Costa Lima na “Nota pessoal” de seu livro

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“O Redemunho do horror”(2003), diz “que o texto ficcional, em vez de dar as costas à realidade,
a dramatiza e a metamorfoseia (...); na vida cotidiana, dispomos o mundo; o mundo, isso que está
aí; a ficção transtorna as dimensões do mundo, em vez de pôr o mundo entre parênteses”.(LIMA
apud LABRIOLA, 2004, p.207)
Pode-se observar na obra de Bei que a autora descreve a realidade da cidade, das estradas
em que dirigia, destacando o nome da cidade e os locais por que passava de forma bem realista,
mas o encontro com o cão no posto de gasolina demonstra um lado mais sombrio no texto, da
agonia, do medo e do espectral.

A ruptura com a tradição realista da literatura, não pelo uso de recursos ou formatos
próprios da ficção não realista como o absurdo ou o real-imaginário latino-americano,
mas pela apropriação do real pelo ficcional de formas diversas, com a escrita literária
rasurando a realidade que, no entanto, a incorpora. O documental e o ficcional podem
conviver na mesma obra, como acontece em outras criações artísticas contemporâneas
(RESENDE, 2014, p. 14)

Entre o nascimento e a morte, o espaço era muito estreito, a mulher viajando para visitar
o filho que há anos não via, as lembranças de tristeza e desamor, um medo de rever o filho e
sentir ou não sentir aquilo que uma mãe deveria sentir. Uma distância enorme havia entre eles.
A mentira sobre o pai que o menino nunca conheceu e nem imaginava o que realmente havia
acontecido a deixava cada vez mais angustiada. Na viagem para visitar o filho de surpresa ocorre
um grande encontro que marca definitivamente a vida dessa mulher e novamente leva ao
desencontro do filho:

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Figura 9: Desencontros

Fonte: BEI, 2017, p.104

Esse cão que aparece repentinamente na história, justamente quando a mãe vai ao
encontro do filho, é uma fuga da realidade, um cão que parece um porco?
A obra apresenta aspectos espectrais, não no sentido de retratar o cão como um fantasma,
mas como uma representação da percepção do real. A protagonista lida constantemente com seu
passado, presente e futuro, personificado na vida de seu filho. Ela é uma personagem sem nome,
simultaneamente única e multifacetada, projetada pela autora para representar uma multidão de
mulheres. A fluidez do real, uma epifania ou um momento marcante que "ficou me olhando",
provoca uma reflexão sobre a presença do motivo espectropoético na obra contemporânea de
Aline Bei.
No trecho a desfiguração do espectro que vê sem ser visto:

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Figura 10: Desfiguração do espectro

Fonte: BEI, 2017, p.104

No trecho a seguir, podemos notar um momento de epifania, o olhar da coisa e a


proximidade com a morte

Contribuciones a Las Ciencias Sociales, São José dos Pinhais, v.16, n.9, p. 15112-15132, 2023 15129
Figura 11: Epifania

Fonte: BEI, 2017, p.105

A morte que sabia que cedo ou tarde chegaria, a metafísica, o momento de morrer
definitivamente como mãe. Aos 48 anos, num encontro com seu filho, ela decidiu nunca mais
tentar ser mãe, sabia que aquele instante era o último, um instante que não volta, que se quebrou
em algum momento e que não teria conserto nunca mais. A morte de uma mãe ainda viva que
agora tinha o seu cão, um ser que muitas vezes parecia um menino, um filho com o qual ela não
teve condições de se aproximar e de verdadeiramente amar.
A espectralidade de Derrida não é uma teoria da narrativa, mas uma noção, uma tentativa
de ontologizar os restos, torná-los presentes, identificar os despojos e localizar os mortos. As
questões espectrais são sempre relativas ao luto, que pode ser, no caso da obra, o filho, o pai ou
até a amiga morta na infância que é representado pelo cão encontrado por acaso no meio da
estrada, numa parada que a mulher precisa fazer para voltar de um lugar que ela não queria ir.

Contribuciones a Las Ciencias Sociales, São José dos Pinhais, v.16, n.9, p. 15112-15132, 2023 15130
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
"O Peso do Pássaro Morto" se destaca ao subverter a retórica convencional sobre as
dificuldades das mulheres em um mundo historicamente dominado pelos homens. A autora,
Aline Bei, infunde a protagonista feminina sem nome com uma abordagem ética e estética,
fazendo com que as vozes femininas ressoem no presente com vigor e intensidade. Essas vozes
não apenas são vivenciadas e compartilhadas coletivamente, mas também são transmitidas e
transmitidas às gerações futuras.
A interseção entre "Espectros de Marx" de Jacques Derrida e a ficção contemporânea de
Aline Bei é uma escolha significativa, explorando a perspectiva do indecidível no pensamento
de Derrida. Essa abordagem busca examinar o que sutilmente assombra a ficção e a história,
explorando uma dívida com o passado que a literatura não pode pagar, mas que possibilita a
compreensão desse passado e a transformação das relações de dívida e responsabilidade em
relação à história das mulheres no mundo.
A obra aborda temas perturbadores como a violência sexual, o abuso psicológico e a
maternidade, que desestabilizam a mulher tanto fisicamente quanto mentalmente. Essa
maternidade é retratada como uma prisão, com um amor incondicional e não declarado que
continua a afetar as mulheres no presente. No âmbito das relações pessoais, familiares e da
formação subjetiva, emerge uma ditadura não questionada do passado, uma carga histórica difícil
de escapar, que continua a pesar sobre as mulheres.
"O Peso do Pássaro Morto" oferece uma visão profunda e complexa das experiências das
mulheres, desafiando as narrativas tradicionais e explorando as intricadas camadas de opressão
e história feminina.

Contribuciones a Las Ciencias Sociales, São José dos Pinhais, v.16, n.9, p. 15112-15132, 2023 15131
REFERÊNCIAS

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Contribuciones a Las Ciencias Sociales, São José dos Pinhais, v.16, n.9, p. 15112-15132, 2023 15132

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