Você está na página 1de 350

mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

juliana salles machado

1
Lugares de gente
MULHERES, PLANTAS E REDES DE TROCA NO DELTA AMAZÔNICO

Juliana Salles Machado

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,


Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia
Social.

Orientador: Carlos Fausto

Rio de Janeiro
março de 2012

2
LUGARES DE GENTE:
MULHERES, PLANTAS E REDES DE TROCA NO DELTA AMAZÔNICO

Juliana Salles Machado

Orientador: Carlos Fausto

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social.

Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof. Carlos Fausto

_______________________________
Prof. Moacir G. Soares Palmeira

_______________________________
Profa. Renata de Castro Menezes

_______________________________
Profa. Débora Lima

_______________________________
Profa. Fabíola A. Silva

Rio de Janeiro
março de 2012

3
Machado, Juliana Salles.

Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico/


Juliana Salles Machado. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Museu Nacional/ PPGAS,
2011.

Orientador: Carlos Fausto

Tese (doutorado) – UFRJ/ Museu Nacional/Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, 2011.

1. Sociedades ribeirinhas da Amazônia. 2. Mulheres e Plantas. 3. Redes de


Troca. 4. Paisagem. 5. Etnobotânica.

I. Fausto, Carlos (Orientador). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,


Museu Nacional, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. III.
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico.

4
RESUMO

Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Juliana Salles Machado

Orientador: Carlos Fausto

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social.

Para os ribeirinhos da Ilha Caviana, no delta Amazônico, a paisagem é um lugar social e


guarda a memória da relação entre o passado indígena e o presente
ribeirinho. Busquei decifrá-la através das concentrações de árvores úteis,
como as usavam, como as plantavam e as mantinham e, finalmente, por
que o faziam. Esta tese trata da relação entre as plantas e as pessoas.
Plantar faz parte de um conjunto de práticas, desde a obtenção do vegetal
da floresta até sua transformação em planta no ambiente doméstico. Aqui a
floresta é habitada por seres encantados e mães não-humanas dos lugares,
seres capazes de ativar um processo de transformação do humano para
aquele que o encantou. Nessa instabilidade da condição humana, as plantas
assumem um papel fundamental, pois elas oferecem a cura desse encanto,
a reversão desse processo, isto é, a possibilidade de permanência de sua
existência. Através da seleção e plantio as mulheres transformam espaços
em lugares de gente a partir da troca de plantas e remédios entre parentes,
vizinhos e amigos. Troca é um ato de cuidar, que reafirma os laços sociais
entre humanos e não-humanos engajados em relações recíprocas enquanto
os vincula a lugares específicos, reforçando seu sentimento de
territorialidade e pertencimento na ilha. O curar em Caviana é uma
ferramenta importante e compartilhada entre as mulheres numa rede de
trocas; essa rede tem como função manter sempre vivo o saber da cura, o
saber das plantas, e assim garantir a permanência de sua família e,
consequentemente, dos “filhos de Caviana”.

Palavras-chave: manejo ambiental; plantas e mulheres; rede de trocas; cuidar e cura;


Ilha Caviana; Amazônia.

Rio de Janeiro
março de 2012

5
ABSTRACT

Places of people: women, plants and exchange networks on the Amazon delta

Juliana Salles Machado

Orientador: Carlos Fausto

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em


Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social.

For the riverine of Caviana Island, on the Amazon delta, landscape is a social place and
keeps the memory of the relation between the indigenous past and the
riverine present. I sought to decipher it through the concentrations of
useful trees, how they used them, how they planted and maintained them
and, finally, why they did it. This thesis deals with the relationship
between plants and people. Planting is part of a set of practices, from
obtaining the vegetal within the forest until its transformation into plant in
the domestic environment. The forest is inhabited by enchanted beings and
non-human mothers of places, beings capable of activating a process of
transformation of the human to the one who charmed him. In this
instability of the human condition, plants play a key role because they
provide the healing of this spell, the reversal of this process, ie the
possibility of permanence of their existence. By selecting and planting the
women transform spaces into “places of people” through the exchange of
plants and medicines among relatives, neighbors and friends. Exchange is
an act of caring, which reaffirms the social bonds between humans and
nonhumans engaged in reciprocal relations while binds them to specific
places, reinforcing their sense of territoriality and belonging within the
island. Healing in Caviana is an important tool shared among women in an
exchange network; this network has the function of always keeping alive
the knowledge of healing, the knowledge of plants, and thus ensure the
continuity of their family and, hence, of the "Caviana sons".

Key-words: environmental management; women and plants; exchange networks; caring


and healing; Caviana Island; Amazon.

Rio de Janeiro
março de 2012

6
Às mulheres de Caviana

À minha mãe, Malu

Às mulheres da minha vida,


Zoraide e minha filha Camila.

7
AGRADECIMENTOS
São inúmeras as pessoas que contribuíram para a realização dessa tese. Nesses cinco
anos, sete moradas, nas quais muitas pessoas me acolheram, agradeço a
todos e em especial:
no Rio...
Agradeço ao Carlos, meu orientador, por aceitar me orientar, uma estranha no ninho,
pela paciência ao longo de todo o trabalho e pelo cuidadoso trabalho de
leitura.
Ao Moacir e Renata, que me acompanharam desde a primeira qualificação, por suas
sugestões e críticas.
À todos os professores do programa, que através de suas aulas me inspiraram a refletir
sobre minhas próprias convicções, especialmente Carlos Fausto, Lygia
Sigaud (in memorium), Moacir Palmeira e Bruna Franchetto. Aos amigos
do PPGAS que tornaram essa jornada muito mais prazerosa, em especial
Silvia e Ana Amélia.
À Tia Celina e Tio Tunico, por me acolherem de forma tão carinhosa. Pelos jantares
deliciosos e conversas maravilhosas e pelo imenso prazer de sua
companhia.

em Belo Horizonte...
Aos queridos amigos Andrei e Vanessa por deixarem tantas boas lembranças em nossa
vida mineira.
Ao Marquinho, por sempre me socorrer com seus lindos mapas.

em Sampa, minha eterna casa...


Entre os amigos, minhas constantes inspirações: Edu, Fabíola e Kica.
À Confraria de Textos, e em especial a Helena, pela cuidadosa revisão e incentivo.
Na família, é difícil dizer a importância de todos... Ao Lucas, eterno companheiro, pela
inspiração, dedicação e força, todos os dias. À Camila, cuja vida surgiu no
percurso dessa tese e que me fez entender a incondicionalidade do amor
materno. Ao pequeno Antônio, recém-chegado ao mundo que desde muito
cedo compartilha comigo esta última etapa. À minha mãe, por tudo. Por
permitir que eu pudesse me ausentar tanto tempo, pela cumplicidade e pelo
acolhimento, Muito Obrigado. Ao meu pai, pela confiança, inspiração e
segurança. Ao Ro e à Stella pela constante presença nos melhores
momentos da vida. À Zo, pelo carinho de sempre, pela dedicação
despretenciosa e sem questionamentos.

em Londres e em Paris...
Ao Stephen Shennan, por me orientar e abrir as portas do Institute of Archaeology,
UCL. Ao Stephen Nugent, pelo incentivo e valiosos conselhos, many
thanks.
À Águeda e Deni, pela acolhida carinhosa, merci.

E em Caviana,
À todos os filhos de Caviana que me receberam com café, banana, açaí e muito carinho.
À Dona Tereza, que me encantou. À Seu Adolfo, pela confiança. À Daria,
minha companheira. A Edgar e Firmo por me acompanharem sempre. A
Seu Roberto, meu apoio constante e de onde tudo começou.

8
“Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se
é o mesmo, assim como as águas, que já serão outras. O fluxo das coisas é
a própria essência do mundo.”
Heráclito de Éfeso, filósofo grego, Séc. V AC.

9
Índice

Introdução 1
1. Metodologia de pesquisa 22
2. A antropologia das populações não-indígenas da Amazônia 29
3. Paisagem feita memória 35
4. Estrutura da Tese 40

Capítulo 1: Paisagem, Tempo e Transformação 43


1.1 O passado feito presente 48
1.2 As primeiras pesquisas 50
1.3 Sobre continuidades e reocupações 65
1.4 A narrativa histórica dos filhos de Caviana 71
1.5 Tempo e transformação 83

Capítulo 2: “Quando me entendi”: a gente de Caviana 86


2.1 A ilha Caviana 90
2.2 A área de pesquisa 96
2.3 O ritmo da vida nas águas 102
2.4 A prática econômica e a subsistência compartilhada 111
2.5 Os grupos domésticos e as casas 127
2.6 A esfera da fé: os santos e as festas católicas 142

10
2.7 A gente, os filhos de Caviana 150

Capítulo 3: As mulheres e as plantas 155

3.1 As mulheres e as plantas 159


3.2 Das visitas às trocas 191
3.3 As plantas: familiarizar para cuidar 204

Capítulo 4: Um olhar sobre as plantas e a troca 213

4.1 Análise dos dados etnobotânicos 219

Capítulo 5: Plantas que curam: um olhar para o outro 247


5.1 Os outros 253
5.2 A gente que cura, as plantas da cura 262
5.3 As doenças e perturbações 271
5.4 A feitiçaria humana 281
5.5 As plantas e os lugares de gente 283

Capítulo 6: E do que nos falam as plantas? 287

- Os caminhos do cuidar 289

Referências Bibliográficas 300


Anexos 320

11
Lista de Figuras

Capa
Tereza, João Brás, Caviana, 2010. Foto: Juliana Salles Machado.

Introdução:
Figura abertura Introdução: Chegando no trapiche do João Brás Foto: Juliana Salles Machado.

Capítulo 1: Paisagem, Tempo e Transformação


Figura abertura Capítulo1: Fotos dos “filhos de Caviana”. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 1.1: Foto de Satélite da ilha Caviana. Fonte: Google Earth 2011.
Figura 1.2: Exemplo de moradia ribeirinha nas áreas florestadas da ilha. Foto Juliana Machado.
Figura 1.3: Exemplo de moradia ribeirinha na maré baixa nos campos naturais da ilha. Foto Juliana
Machado.
Figura 1.4:Mapa histórico de C. Nimuendaju sobre a dispersão de grupos indígenas Arawak. Nimuendaju,
C. 2008 [1926].
Figura 1.5: Escavação de Curt Nimuendaju em 1925, ilha Caviana. Fonte: Barreto e Machado 2001.
Figura 1.6: Escavação de Curt Nimuendaju em 1925, Rebordello, Caviana. Fonte: Nimuendaju 2004.
Figura 1.7: Prancha com cerâmicas policromas coletadas por Nimuendaju. Fonte:Nimuendaju 2004.
Figura 1.8: Prancha com cerâmica Aruã identificada por Meggers & Evans em 1948 em Caviana. Fonte:
Megers & Evans 1957.
Figura 1.9: Sítios Arqueológicos localizados na ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito.
Figura 1.10: Vista do Teso Rebordello, com detalhe de urna funerária e sítios arqueológico, 2006. Foto:
Juliana Machado

Capítulo 2: “Quando me entendi”: a gente de Caviana


Figura abertura capítulo 2: o por do sol no trapiche do João Brás. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 2.1 Mapa com indicação da área de pesquisa na ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito.
Figura 2.2: Mapa da ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito.
Figura 2.3: Entrada do igarapé Taxipucu, Caviana. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 2.4: Vista do igarapé Pracutuba na maré alta com campo natural e floresta ao fundo. Foto: Juliana
Salles Machado.
Figura 2.5: Mapa com grupos domésticos e demais locais citados no trabalho na ilha Caviana. Mapa:
Marcos Brito.
Figura 2.6: Exemplos de grupos domésticos e casas na ilha Caviana. Foto Juliana Salles Machado.
Figura 2.7: Casa de Adolfo e Tereza Figueiredo no João Brás e missa católica na igreja da comunidade
Frei Crescêncio. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.8: Exemplos de embarcações em Caviana. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.9: Exemplo de casa no igarapé Taxipucu, ilha Caviana. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 2.10 Vista do terreiro do João Brás no fim da estação chuvosa. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 2.11: Vaqueiros e sede de uma fazenda (abaixo) nos campos naturais de Caviana. Fotos: Juliana
Salles Machado.
Figura 2.12: Pesca de peixe em Caviana: acima (à esquerda) “curral”, armadilha de pesca e (à direita)
arpão de pesca; abaixo (à esquerda) pesca com anzol e (à direita) com rede. Fotos: Juliana
Salles Machado
Figura 2.13: Pesca de camarão em Caviana: acima e abaixo a esquerda, “lanceando camarão”, pesca com
rede de arrastão na margem do rio Amazonas; abaixo a esquerda, “matapi”, armadilha de
pesca. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.14: Acima, barco de passageiros e abaixo, barco de pesca ambos de Roberto e seus filhos. Fotos:
Juliana Salles Machado.
Figura 2.15: Acima, grupo doméstico do igarapé Taxipucu, com casa de Roberto e Igreja de Nossa
Senhora de Nazaré a direita; ao meio à esquerda, casa de Adolfo no João Brás e à direita casa
de Constâncio no Igarapé Socó; abaixo exemplos de casas, à esquerda no Socó e à direita no
igarapé Pocotó. Fotos: Juliana Salles Machado.

12
Figura 2.16: Acima, exemplos de trilhas importantes, à esquerda no João Brás, à direita no Pocotó; abaixo
à esquerda, exemplo de terreiro no João Brás e à direita terreiro sendo construído no entorno de
uma casa nova. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.17: Acima, exemplos de roças sendo formadas próximo ao igarapé Socó; ao meio roças de
banana cercadas, à esquerda no Turézinho e à direita no Taxipucu; abaixo à direita, roça de
banana sem cerca na mata no Turézinho e à esquerda, exemplo de roça recentemente
abandonada no Socó. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.18: Acima à esquerda e abaixo, canteiro de Tereza no João Brás; acima à direita, canteiro na
Prainha e ao meio à direita canteiro nos fundos da casa no Pocotó. Fotos: Juliana Salles
Machado.
Figura 2.19: Acima à esquerda, terreiro no Igarapé Taxipucu, à direita no Turézinho; ao meio, exemplos
de canteiro em outro grupo doméstico do Taxipucu, à esquerda e na prainha, a direita;
embaixo, contraste com vegetação de mata em trecho sem casas no igarapé Taxipucu. Fotos:
Juliana Salles Machado.
Figura 2.20: Coletânea de imagens de santos e altares no interior de diversas casas em Caviana. Fotos:
Juliana Salles Machado.
Figura 2.21: Imagens da Igreja de São Sebastião no João Brás e das missas dominicais da comunidade.
Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.22: Imagens da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré no Igarapé Taxipucu e da ladainha em
homenagem a santa. Fotos: Juliana Salles Machado.

Capítulo 3: As mulheres e as plantas


Figura abertura capítulo 3: à esquerda, Tereza e seus canteiros no João Brás e a direita, o preparo do
alimento no Taxipucu por Cristiane. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 3.1: Objetos do cuidar – Acima à esquerda, Dica trançando a tala e à direita objeto para cobrir as
canoas; abaixo à esquerda, Walica fazendo um pote cerâmico; ao meio à direita, Augusta
tecendo uma rede de algodão e abaixo à direita artefatos para fiar, como fusos de osso, cestos e
algodão Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 3.2.1: Trançados de tala de arumã feitos por Dica. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 3.2.2: Trançados de tala de arumã feitos por Dica. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 3.3: Produção cerâmica de Walica no Ubuçutuba, 2006. Foto: Juliana Salles Machado
Figura 3.4.1: Desenhos feitos por Maiara no Ubuçutuba, 2006. Acima à esquerda, o processamento do
açaí; Acima à direita, trançando a palha; abaixo, a oleira. Desenho: Maiara
Figura 3.4.2: Desenhos feitos por Maiara no Ubuçutuba, 2006. Acima, oleira tirando barro; abaixo, o rio e
a floresta. Desenho: Maiara
Figura 3.5: Croqui da casa de Tereza no João João Brás com indicação dos locais de plantio. Desenho:
Juliana Salles Machado.
Figura 3.6: Vista da casa do João Brás. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 3.7: Os canteiros de Tereza, João Brás. Foto Juliana Salles Machado.
Figura 3.8: Os canteiros de Dica (acima) e Marli (abaixo) no Socó. Foto Juliana Salles Machado.
Figura 3.9: Acima e à esquerda, a coleta e o processamento para consumo doméstico do açaí e à direita a
secagem dos caroços para posterior uso como adubo nos canteiros. Foto Juliana Salles
Machado.
Figura 3.10: Exemplos de troca de plantas de remédio entre mulheres ribeirinhas de Caviana. Fotos:
Juliana Salles Machado.

Capítulo 4: Um olhar sobre as plantas e a troca


Figura abertura capítulo 4: Final de tarde no grupo doméstico de Roberto no Taxipucu. Foto: Juliana
Salles Machado.
Figura 4.1: Exemplos de mulheres em entrevista sobre as plantas em seus terreiros e canteiros, Caviana.
Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 4.2: Exemplos de reocupação de sítios arqueológicos por famílias ribeirinhas. Acima: cemitério
indígena (detalhe de fragmentos cerâmicos de urnas funerárias) sob cemitério histórico e atual;
abaixo à esquerda, urna funerária indígena ao lado de trilha usada pelos ribeirinhos; abaixo à
direita, saque de urnas funerárias arqueológicas por estrangeiros em área próxima ao terreiro de
uma família ribeirinha. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 4.3: Exemplos de homens nos barcos de médio porte usados para o comércio de produtos e
mercadorias na ilha e nas cidades próximas. Fotos: Juliana Salles Machado.

13
Figura 4.4: Exemplos de homens, mulheres e crianças nas canoas, chamadas localmente de cascos ou
montaria, transporte mais utilizado no interior e margens da ilha. Fotos: Juliana Salles
Machado.

Capítulo 5: Plantas que curam: um olhar para o outro


Figura abertura capítulo 5: Tereza à luz do lampião. Foto: Juliana Salles Machado
Figura 5.1: Acima, cobras grandes sendo flechadas ao sairem da armadilha construida dos Humanos
(apud Vidal 2007); abaixo, foto do banco que representa a cobra Kadaykahu (apud Vidal
2007). Fonte Vidal 2007.
Figura 5.2: Tereza benzendo criança doente com planta de remédio. Fotos: Juliana Salles Machado.

Capítulo 6: E do que nos falam as plantas?


Figura abertura capítulo 6: Pôr do sol no Taxipucu. Foto: Juliana Salles Machado.
Figura 6.1: Remos inacabados de Caviana, com detalhes dos motivos possivelmente atribuidos a
representação da cobra, gravados no cabo. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 6.2: Kuahi – marca do banco do Jacaré (apud Vidal 2007). Fonte: Vidal 2007.

14
Lista de Gráficos

Capítulo 2: “Quando me entendi”: a gente de Caviana


Gráfico 2.1: Gráfico com número de casas por igarapé na área de pesquisa, Caviana (2008-2010).
Gráfico 2.2: Gráfico com rede familiar na área de pesquisa, Caviana (2008-2010).
Gráfico 2.3: Gráfico com formas de cultivo na área de pesquisa, Caviana (2008-2010).
Gráfico 2.4: Gráfico com a variedade de animais criados nas casas ribeirinhas da área de pesquisa.

Capítulo 4: Um olhar sobre as plantas e a troca


Gráfico 4.1: Gráfico com presença de plantas por local de implantação.
Gráfico 4.2: Gráfico com variedade de plantas por áreas de plantio.
Gráfico 4.2.1: Detalhamento das casas com maior variedade de plantas em canteiros.
Gráfico 4.3: Presença de roças nas casas.
Gráfico 4.4: Gráfico com variedade de plantas por local de implantação.
Gráfico 4.5: Gráfico com uso geral das plantas.
Gráfico 4.6: Gráfico com uso das plantas por lugar de plantio.
Gráfico 4.7: Gráfico com uso de plantas com origem desconhecida.
Gráfico 4.8: Origem das plantas que fornecem matéria prima.
Gráfico 4.9: Origem das plantas de remédio.
Gráfico 4.10: Gráfico com distribuição do uso de plantas por família e gênero.
Gráfico 4.11: Gráfico indicando doadores de alimentos.
Gráfico 4.12: Gráfico indicando doadores de remédios.
Gráfico 4.13: Gráfico com distribuição do uso de plantas doadas por mulheres.
Gráfico 4.14: Gráfico com distribuição do uso de plantas doadas por homens.

15
Lista de Tabelas

Introdução:
Tabela I.1: Tabela com questionário sobre economia e assentamento
Tabela I.2: Tabela com questionário sobre as plantas

Capítulo 1:
Tabela 1.1: Tabela com sítios arqueológico localizados na ilha Caviana cadastrados no IPHAN até 2006.

Capítulo 2:
Tabela 2.1: Tabela de oposições em Caviana: a cidade na percepção ribeirinha.

Capítulo 4:
Tabela 4.1: Tabela com legenda da proveniência das plantas.

16
Lista de Anexos

Anexo1: Narrativa Caviana de Alcindo Abdom – texto integral.


Anexo 2: Questionário sobre economia utilizado nas casas ribeirinhas da área de pesquisa.
Anexo 3 Diagrama genealógico geral da área de pesquisa
Anexo 4: Tabela com síntese dos dados etnobotânicos coletados.
Anexo 5: Tabela com indivíduos entrevistados, casas e dados socioeconômicos.

17
Introdução:

Figura abertura Introdução: Chegando no trapiche do João Brás Foto: Juliana Salles Machado.

18
Juliana Salles Machado

Introdução

o navegar os igarapés da ilha Caviana, na região deltaica do rio


Amazonas, o que se vê em volta é uma enorme floresta. Há mais de uma década trabalhando
na região amazônica, poucas vezes tinha visto uma vegetação tão exuberante. A primeira
impressão era a de adentrar um ambiente ainda preservado das chocantes ações humanas que
eu havia presenciado há poucos anos no entorno da cidade de Manaus. Apesar de meu
conhecimento acerca da intensidade da modificação na paisagem amazônica pela ação
humana desde os tempos pré-coloniais (Balée 2006a, 1998, 1994, 1989; Balée & Erickson
2006; Brondízio 2004. Brondízio et al. 1994; Heckenberger 2005, 2003; Heckenberger &
Neves 2009; Peteresen et al 2001; Posey 2008, 1998; Posey & Balée 1989; Roosevelt 1991;
Schaan 2004; Neves 2010, 2009, 2007, 2005, 1999; Deneven 2001; Lentz 2000; Oliver 2001),
minha real percepção de que essa enorme floresta não estava isenta desta ação se deu
gradativamente, junto com o reconhecimento das formas pelas quais se deu essa interferência.
Agrupamentos de árvores da mesma espécie em meio à variedade da mata se destacavam
como antigos assentamentos. Palmeiras denunciavam o manejo humano. As pessoas que ali
viviam conheciam a diversidade da floresta, não como um espaço único e sim por seus
incontáveis lugares significativos ligados por caminhos, histórias passadas e atuais. A floresta
escondia uma infinidade de relações significativas manifesta no próprio cotidiano dos
ribeirinhos, cuja vida se constrói junto com esses lugares.

Esta tese trata da relação entre as plantas e as pessoas. O manejo ambiental praticado
pelas populações não-indígenas da Amazônia já vem sendo amplamente discutido como
modelo de sustentabilidade e exemplo de flexibilidade econômica (Balée 1989, 2006b;
Brondízio 2004, 2006; Brondízio et al 1994; Lima 2006, 2004, 1999; Lima e Ferreira 2001;
Murrieta et al 1999; Parker 1983; Posey 1998. Posey & Balée 1989; Raffles 2002, 1999;

19
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Slater 2002). No entanto, pouco se fala sobre o significado desse manejo para os próprios
ribeirinhos, que certamente ultrapassa sua importância econômica. Como essas populações
entendem o cultivo e a manutenção de espécies vegetais e, afinal, por que o fazem? Com que
critérios escolhem seus assentamentos e suas plantações? A lógica econômica pode nos
explicar muito da inserção dos ribeirinhos no mercado e de sua relação com as cidades, mas
será essa a única razão para o manejo da floresta?

Uma de minhas hipóteses iniciais era a de que esse manejo representava uma forma de
continuidade com as populações indígenas (Arruti 2007; Nugent 1993, 2006; Batista 1991;
Wagley 1967; Galvão 1979, 1975; Silva 1996; Schaden 1963,1949; Maués 1999; Loureiro
2002; Meggers 1957; Nimuendaju 2004; Hartmann 2000). A relação entre as populações
ribeirinhas e os grupos indígenas serviu como pano de fundo às discussões sobre as chamadas
“sociedades caboclas da Amazônia” há pelo menos 50 anos, como visto nas obras clássicas de
Wagley (1957) e Galvão (1979). No entanto, os elementos de continuidade tão enfatizados
por esses autores, foram cedendo progressivamente terreno à relação dessas populações com o
sistema colonial (Chipnick 1991; Bakx 1986; Harris 1998, 2005, 2000; Lima 1999; Nugent
1993; Pace 1997; Rodrigues 2006) e com as influências africanas (Boyer 1999; Prandi 2001).
Como arqueóloga, durante muitos anos observei casas de ribeirinhos sendo construídas em
cima de sítios arqueológicos. Quando precisávamos de coleções de referência, as primeiras
pessoas a procurar sempre eram os ribeirinhos, que, dentro de suas casas, reutilizavam potes e
panelas indígenas, sabiam a localização das antigas aldeias e muitas vezes nos surpreendiam
com indicações sobre a função específica de cada lugar ou objeto. Esse conhecimento
generalizado e o interesse dos ribeirinhos pelos grupos indígenas que os antecederam
reforçavam minha hipótese de que a relação entre o passado indígena e o presente ribeirinho
ainda era muito significativa para eles.

Por meio de uma observação mais detalhada dos sítios arqueológicos e das casas dos
ribeirinhos na ilha Caviana, um fator me chamou particular atenção: a presença das mesmas
espécies vegetais nos dois lugares. Uma nova perspectiva tinha sido aberta para mim: quis a
partir de então entender o que eram essas concentrações de árvores úteis para aquela
população, como as usavam, como as plantavam e as mantinham e, finalmente, por que o

20
Juliana Salles Machado

faziam. Para dar conta dessa nova realidade que se apresentava diante de meus olhos, busquei
sistematizar os dados sobre os tipos e a localização das plantas usadas pelos ribeirinhos. Ao
documentar a riqueza dessas plantas, me dei conta da importância de cada uma delas para as
pessoas da ilha. Uma importância que extrapolava sua condição de item de subsistência,
integrando o território da memória, do parentesco e do sobrenatural.

Meu objetivo, então, passou a ser o de entender o significado do plantar para os


ribeirinhos. Plantar faz parte de um conjunto de práticas que vão desde a obtenção de uma
muda ou semente na floresta, sua transformação em planta no ambiente doméstico, a troca das
mudas entre parentes e amigos e a preservação dessa riqueza conhecida e selecionada. Como
veremos no decorrer da tese, o ato de plantar reflete um ato de cuidar mais profundo, que
inclui o cuidar de pessoas. Como veremos principalmente nos Capítulos 3 e 5, a cosmologia
ribeirinha é repleta de “mães” que têm o papel de proteger os seus filhos, tais como as mães-
do-mato (Alencar 2002; Boyer 1999; Galvão 1975; Silva 1996; Maués 1999; Slater 2002,
1994; Wagley 1957; Prandi 2001 e, para um exemplo de pajelência Maranhense, ver Pacheco
2004) e, mais particularmente em Caviana, as mães-dos-lugares. Estes seres não-humanos
possuem poderes capazes de afetar os humanos através de flechas invisíveis, aparições e
feitiços ou encantos. Os sintomas mais comuns são o aparecimento de doenças que vão
deixando os humanos fracos e magros, podendo até fazê-los morrer. O ato de morrer é, nesse
processo, uma transformação do ser humano atingido para se tornar semelhante àquele que o
encantou. Nesse processo de instabilidade da condição de humano, as plantas assumem um
papel fundamental, pois elas oferecem a cura desse encanto, a reversão desse processo, isto é,
a possibilidade de permanência de sua existência enquanto humano.

A cura através das plantas só é possível por que os vegetais pertencem a esse mundo
não-humano, possuindo em si poderes relacionados aos agentes encantadores. Trazer um
vegetal desse mundo para o interior da casa, para a proximidade e reconhecimento dos
parentes é um ato de familiarização de seus poderes exteriores. Assim o uso dos vegetais nas
curas pelas mulheres se dá por meio do uso de poderes exteriores. O curar em Caviana é uma
ferramenta importante e compartilhada entre as mulheres numa rede de trocas; essa rede tem
como função manter sempre vivo o saber da cura, o saber das plantas, e assim garantir a
permanência de sua família e, consequentemente, dos “filhos de Caviana”.

21
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Nesta Introdução, exponho inicialmente a metodologia de pesquisa adotada na tese.


Essa explicitação é importante como ferramenta de análise e também porque pode tornar mais
clara a situação empírica da pesquisa. Em seguida, apresento um breve histórico da literatura
sobre os ribeirinhos da Amazônia, esclarecendo as raízes de certas discussões sobre esse
objeto e situando este trabalho num contexto antropológico mais amplo. No entanto, cabe
ressaltar que as ideias que sustentam esta discussão estão dispersas em diferentes áreas do
conhecimento, na antropologia 1 e sua relação com a história2 e na (etno)arqueologia 3, mas
também na etnobotânica e nos estudos mais interdisciplinares de manejo ambiental4 e
paisagem5. Esses últimos tiveram um papel fundamental, pois fizeram com que eu voltasse
meu olhar para a importância das plantas na vida ribeirinha. Mais do que isso, ampliaram
minha compreensão sobre a percepção nativa das múltiplas temporalidades presentes na
paisagem. Finalmente, concluo essa introdução com uma breve síntese da estrutura da tese.

1. Metodologia de pesquisa

A ilha Caviana fica no extremo norte do estado do Pará, no delta do rio Amazonas. É
majoritariamente habitada por comunidades ribeirinhas na sua porção oeste e por poucos
vaqueiros e fazendeiros nos campos naturais a leste, onde estão as fazendas de gado. As

1
Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Latour 2005; Leach 1996; Graeber 2001; Levi-
Strauss 1989; Leroi-Gourhan 1971; Fausto 2008, 2007, 2001, 2000; Basso 1988; Behar 1986; Brubaker e Cooper
2000; Champaigne 1975; Fortes 1969; Bourdieau 1996; Geertz 1967; Goffman 1967; Descola 2001; Elias 1965;
Malinowski 1975; Viveiros de Castro 2002; Durkheim 1989; Evans-Pritchard 2005; Strathern 2004, 1988; entre
outros.
2
Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Bensa 1998; Heckenberger 2001; Rosaldo 1980;
Sahlins 1981, 1985; Santos-Granero 1998; Steward et al 2003; Thomas 1989; entre outros.
3
Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Silva 2000, 2003; Nelson 1991; Lemmonier 1986,
1992; Neuport 2000; Pfaffenberger 1992, 2001; Polisits 1995; Schiffer & Skibo 1992, 1997; Schiffer 2001,
1972; Skibo e Schiffer 2001; Torence & Van der Leeuf 1989; Zedeno 2008.
4
Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Ellen 2006; Balée 2006a, 2006b. 1998, 1994, 1989;
Balée & Erickson 2006; Crumley 1994, 1995; entre outros.
5
Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Aldenfereder 2006; Arhem 1998; Ashor et al 1999;
Dove e Carpenter 2008; Lentz 2000; Flint & Morphy 2000; Hirsch & O´Hnalen 1995; Kuchler 1993; Ingold
2001, 2000; Buchler & Melion 1991; entre outros.

22
Juliana Salles Machado

comunidades ribeirinhas da ilha são híbridos pós-coloniais de ocupações europeias


(portuguesas e francesas), indígenas (provavelmente associadas a família linguística Arawak)
e, minoritariamente de africanos ou afrodescendentes. O acesso a Caviana é difícil, devido à
turbulência das águas do rio Amazonas nesse ponto do delta. Para chegar à ilha, é necessário
sair de barco de Macapá e fazer a travessia de um canal, o que leva aproximadamente 12
horas em seu ponto mais próximo. Outra alternativa, é sair do norte da ilha de Marajó, cujo
acesso se dá por pequenos aviões particulares ou por alguns dias de barco pelo interior dessa
ilha desde a cidade de Belém. No entanto, também nesse trecho, é necessário cruzar o
chamado canal perigoso, no qual a turbulência das águas é bastante intensa, fazendo com que
essa alternativa seja pouco usada. A grande extensão da ilha Caviana, sua implantação em
meio ao delta e seu rápido processo de transformação interna (como o assoreamento e a
sedimentação de seus rios e margens) requerem um profundo conhecimento do trecho da
navegação, sendo muitas vezes necessário algumas paradas ao longo do trajeto para esperar a
pororoca passar, ancorando os barcos em áreas mais distantes.

Selecionei uma comunidade na ilha, a Frei Crescêncio, para uma investigação mais
intensa e sistemática (no caso da coleta de dados etnobotânicos e das entrevistas). Essa
comunidade fica na porção central da ilha e foi selecionada por ter o maior número de
moradores antigos da região, além de uma vegetação nativa preservada, permitindo um modo
de vida ribeirinho não necessariamente associado à pecuária ou ao comércio intenso com a
cidade. Vivem ali cerca de 236 indivíduos, dispersos em aproximadamente 50 casas ao longo
de 10 igarapés e nas margens da ilha. Pelo menos um morador ou moradora de cada casa da
comunidade foi entrevistado, mas escolhi três grupos domésticos para analisar mais
minuciosamente: o de Adolfo Figueiredo, líder da comunidade e com maior status político e
econômico; o de Roberto Figueiredo, irmão de Adolfo e conhecido como marreteiro, que faz
o comércio de bens entre os ribeirinhos e também entre fazendeiros e a cidade; e o de
Constâncio Ferreira, pertencente a uma família com uma intensa produção de roças e plantio.
Inicialmente, minha pesquisa centrou-se no ponto de vista masculino, pelo fato de meus
principais colaboradores serem homens, mas, no decorrer do estudo, as mulheres foram
assumindo o papel central, tornando-se minhas principais fontes de informação e pesquisa.

Como pesquisadora vinda do sudeste, vinculada a uma universidade federal, eu fui


vista muitas vezes como uma estrangeira, comumente associada ao governo. No entanto, essa

23
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

visão foi atenuada com o passar dos anos. Também minha condição feminina era ambígua,
vinda de fora eu era apresentada aos líderes homens da ilha, devido principalmente ao meu
conhecimento do mundo exterior à ilha e de política em geral. No entanto, com as minhas
repetidas idas a ilha ao longo dos anos e com a percepção dos ribeirinhos do meu interesse
pelas plantas, a esfera feminina me foi sendo apresentada gradativamente. O adoecimento de
Adolfo, meu principal interlocutor nos primeiros anos, me levou a uma maior proximidade
com sua esposa, Tereza. Essa interação, aliada a meu esforço pessoal em participar das
atividades cotidianas da casa, permitiram uma mudança na visão dos ribeirinhos sobre mim.
Em pouco mais de dois anos, a ambigüidade de minha presença foi diminuída, apesar de
persistir de maneira menos óbvia até o presente. Pude ser recebida como “de casa”, como
filha, como amiga, e, finalmente, como parceira na troca das plantas. À mim foram atribuídas
atividades domésticas e cerimoniais, como nas missas dominicais. Pude acompanhar os
banhos de rio no final da tarde e as conversas íntimas na cozinha já na escuridão da noite. No
entanto, como não poderia deixar de ser, nunca deixei de ser diferente, de transitar entre os
homens e em muitos casos de ser vista como fonte de oportunidades, seja de conexão com o
restante do país, como nas cartas e telefonemas a parentes perdidos cujo paradeiro era
desconhecido das famílias, seja como alvo de solicitações das mais diversas, como o conserto
de óculos, a instalação de telefones e rádios, entre inúmeros outros pedidos.

Minha pesquisa estendeu-se por seis anos, dos quais quatro realizei pesquisas de
campo. Minha primeira etapa de campo ocorreu antes de meu ingresso no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (doravante PPGAS) e serviu como
uma etapa inicial de levantamento para melhor definir meu problema de pesquisa. Após meu
ingresso no doutorado, obtive uma bolsa CAPES com duração de quatro anos. Ao longo desse
período, tive diversos financiamentos para a realização das etapas de campo, a saber: em
2006, obtive financiamento do NuTI; em 2008, do CNPq e Farperj (bolsa CNE); e em 2009 e
2010, o Auxílio-campo PPGAS, Museu Nacional, UFRJ. Cada etapa de campo durou de 30 a
40 dias. Também obtive financiamentos para a participação em congressos nacionais e
internacionais oriundos de Auxílio-evento PPGAS e da Wenner-Gren Foundation via
Association of Social Anthropologiss of the UK (ASA). Durante esses anos de pesquisa, fui

24
Juliana Salles Machado

mãe duas vezes, experiência que certamente direcionou meu olhar para a esfera feminina da
ilha e ajudou na minha inserção entre as mulheres de Caviana.

Talvez seja importante esclarecer um pouco sobre a construção de meu objeto de


pesquisa. A ilha Caviana chamou minha atenção há quase uma década atrás, quando me
deparei com urnas funerárias de grande apelo estético em algumas coleções de museus
europeus, como o de Goteborg na Suécia. Apesar da riqueza de cores e suas formas
antropomorfas, pouco se sabia (ou ainda se sabe) sobre seu contexto de origem. Os aspectos
formais e decorativos apresentam semelhanças com às urnas marajoaras (como o uso do
vermelho, preto e branco para compor tramas geométricas e zoomorfas que ornamentam um
corpo feminino), mas também com as figuras sentadas das urnas Maracá, encontrados no sul
do estado do Amapá, e a ainda com a cerâmica Aristé, presente na região norte do mesmo
estado6. Em Caviana tais semelhanças formal e decorativa se articulavam para compor urnas
funerárias ainda pouco estudadas. Apesar dessa curiosidade inicial, apenas alguns anos mais
tarde vim saber da existência de uma produção cerâmica local contemporânea não associada a
um comércio intenso, como atualmente ocorre na ilha de Marajó e arredores de Belém.

Em 2006 quando apresentei meu projeto de doutoramento ao PPGAS buscava


justamente esse diálogo entre o passado e o presente, estudando a produção cerâmica atual da
ilha no cotidiano ribeirinho e comparando-a às cerâmicas arqueológicas atribuídas à região.
Minhas expectativas foram um pouco frustradas já no primeiro campo quando percebi que
havia apenas duas oleiras atuantes na ilha. Mas, fascinada pela região e pelo manejo
ambiental praticado pela comunidade ribeirinha, continuei minha pesquisa em Caviana. Nesse
momento, meu olhar se voltou ao manejo ambiental dos ribeirinhos nas áreas de ocupações
mais antigas, como os sítios arqueológicos. Para entender como isso ocorria, resolvi coletar
listas de plantas e usos de cada uma – cujas variáveis foram baseadas nas pesquisas e
metodologias de Ellen (2006), Balée (2006), Messer (1979) e Trujillo & Gonzalez (2011).
Nessa tarefa percebi a variedade de locais manejados e a existência de algumas associações
entre espécies de plantas, locais de plantio e uso. Resolvi então sistematizar minha coleta de
dados através de questionários e aplicá-los aos moradores de cada casa. Durante esse processo
o conhecimento das mulheres sobre as plantas se destacou, em especial a memória sobre a
origem de cada planta e a identificação do nome de quem lhes dera cada muda. Tal

6
Para uma das poucas descrições da cerâmica chamada Caviana ver Rostain 2011.

25
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

detalhamento fez com que eu incluísse em meus questionários informações sobre a origem
das mudas (Anexo 7).

O objeto de minha pesquisa foi, portanto, sendo construído conforme as informações


me eram apresentadas em campo. Apenas nos últimos dois anos pude ter um recorte mais
claro de estudo, enfocando a relação das mulheres com as plantas e o papel das redes de troca.
No entanto, foi somente no último ano de pesquisa que pude ter acesso a como as plantas
curam e à relação entre o mundo dos humanos e os não-humanos.

Exceto no levantamento preliminar, em 2006, em todas as outras etapas da pesquisa


adotei a observação participante. As comunidades ribeirinhas em geral e especificamente em
Caviana falam português, minha língua nativa, utilizando algumas palavras indígenas para
identificar objetos e lugares. Ao longo da pesquisa fiz diversas entrevistas e algumas delas
foram filmadas. Várias filmagens foram utilizadas na documentação e no registro etnográfico,
além da plotagem de pontos com GPS, croquis de áreas domésticas e áreas de plantio e
documentação fotográfica. Em todas as etapas de campo houve registros escritos (depois
editados e sintetizados em relatórios de campo) e documentação audiovisual, também editada
para cada etapa de campo. Além das entrevistas, utilizei questionários, sobretudo para obter
informações sobre economia, genealogia, dados etnobotânicos e histórico dos padrões de
assentamento. Apresento abaixo os itens analisados nos questionários (Tabela I.1 e I.2), cuja
tabela se encontra em anexo (Anexo 2 e 7):

A partir dos dados genealógicos que me foram apresentados fiz uma listagem de
nomes, os correlacionado aos demais dados socioeconômicos disponíveis. Todos os
indivíduos arrolados na tabela do Anexo 8 encontram-se também nos diagramas genealógicos
(Anexo 9), que indicam suas relações de parentesco. Para os indivíduos e famílias
entrevistados, listei no Anexo 8 o número de casas correspondentes. Para as entrevistas foram
contadas e visitadas 50 casas, mas há mais na ilha, pois nem todas foram incluídas na amostra
da pesquisa. Selecionei uma área de pesquisa coincidente à chamada comunidade Frei
Crescêncio, amostra analítica que engloba algumas casas e grupos de casas para melhor
compreender a sua localização, o uso de seu espaço interno, bem como os usos individuais e
coletivos das plantas.

26
Juliana Salles Machado

QUESTIONÁRIO 1: ECONOMIA E ASSENTAMENTO

ITEM VARIÁVEL
1 localização de cada indivíduo nas redes de identificação nos diagramas
parentesco genealógicos
2 sexo feminino ou masculino
3 número de identificação da casa alfa-numérico
4 nome do lugar onde fica a casa nominal
5 tipo de assentamento margem alagada de igarapé
margem seca de igarapé
costa da ilha
campo natural
6 forma de agrupamento das casas configuração de casas – mais de três
casas
grupo doméstico – até três casas
casa isolada
7 roças presença ou ausência
8 terreiros presença ou ausência
9 canteiros presença ou ausência
10 uso de áreas abandonadas presença ou ausência
11 criação de animais gado
porcos
galinhas
patos
12 pesca consumo doméstico
venda
13 posse de embarcações canoa
barco pequeno
barco médio
barco grande
14 atividades rentáveis/ remuneração remuneração mensal
venda de produtos da roça
venda de pescado
atividade mista
Tabela I.1: Tabela com questionário sobre economia e assentamento

Durante as visitas, observei cada casa e fiz uma entrevista estruturada e outras não
estruturadas sobre as plantas dos canteiros, terreiros e roças e os possíveis usos de áreas
abandonadas. Essas informações resultaram num banco de dados que serviu de base para a
estatística descritiva e uma sistematização dos usos das plantas na ilha Caviana. Na tabela do
Anexo 10 apresento os itens observados na aplicação de um segundo questionário. Neste, o

27
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

foco era a relação das plantas com as mulheres, a partir de dados sobre as áreas e práticas de
plantio, seus usos e origem. Enquanto no primeiro questionário, as respostas eram dadas por
representantes femininos e/ou masculinos de cada casa, neste último, os dados eram na sua
grande maioria fornecidos exclusivamente pelas mulheres. Seguem abaixo os itens
observados (Tabela I.2):

QUESTIONÁRIO 2: AS PLANTAS

ITEM VARIÁVEL
1 número de identificação da planta alfa-numérico
2 nome nativo da planta nominal
3 espécie botânica nominal
4 família nominal
5 habitat árvore
arbusto
erva
palmeira
7
6 atos de proteção sobre a planta ausência ou presença
7 atos de cultivo ausência ou presença
8 categoria de uso (variáveis combináveis): alimento
remédio
comercial
ornamento
madeira
matéria-prima
construção
ferramenta
processamento de alimentos
fibra
múltiplos usos
9 fator de reutilização ausência e presença
10 origem da planta8 nominal
11 descrição de uso descritivo
Tabela I.2: Tabela com questionário sobre as plantas

7
São consideradas ações de proteção os cuidados com as mudas como as cercas de proteção contra animais, o
corte seletivo das plantas do entorno, a retira de das ervas daninhas, a adubação, a poda etc.
8
Esse item será apresentado com os resultados da estatística descritiva encontrada no Capítulo 4.

28
Juliana Salles Machado

Ao longo de meu estudo, como disse acima, três casais se tornaram meus principais
interlocutores: Adolfo e Tereza Figueiredo; Roberto e Maria Augusta Figueiredo e Raimunda
dos Santos Batista (Dica) e Constâncio Ferreira. Apesar de os dois primeiros serem parentes,
pertencem a grupos domésticos separados, têm diferentes status e esferas de atuação na
dinâmica social da área de pesquisa. Ao final de meu trabalho, Tereza se tornou minha
principal interlocutora. Nenhum de meus colaboradores foi pago, os únicos assistentes pagos
foram os pilotos do barco, normalmente um dos filhos de Roberto, que é um dos poucos
ribeirinhos que tinha uma embarcação disponível para meu uso durante a pesquisa.

Tendo situado o contexto da pesquisa, volto-me agora para as discussões


antropológicas acerca das populações ribeirinhas.

2. A antropologia das populações ribeirinhas da Amazônia

As populações ribeirinhas da Amazônia foram muitas vezes vistas como legados de um


processo colonizador predatório frente à grupos indígenas tidos como naturais da terra9. Esse
processo, que teria ocorrido entre os séculos XVIII e XIX, estaria relacionado “à integração
dos ameríndios à sociedade brasileira” e “à criação de uma nova categoria de pessoas e
cultura” (Harris 2006:88). Chamadas de sociedades caboclas, elas ficaram fora da noção de
outro amazônico, assim como ficam até hoje à margem da dita civilização. Mesmo não sendo
explícito, esse discurso ainda subjaz à antropologia amazônica, na medida em que essas
populações são frequentemente preteridas pelos estudos acadêmicos.

A imagem da cultura cabocla que fora consolidada a partir de meados do século XX, em
acordo com seus propositores Charles Wagley (1957) e Eduardo Galvão (1975), “se
expressava na vida isolada em unidades familiares, geralmente nas várzeas dos rios, igarapés
e lagos, numa pequena agricultura familiar combinada com a pesca e a caça” (Murrieta et al.
2006:19; Nugent 1993, 2006). Nesta perspectiva, estariam sujeitos à adaptação ambiental
tornando-se acomodados às demandas econômicas externas (Harris 2006:88). Este modo de
9
Para mais discussões sobre o tema, ver Nugent (1993, 2006); Adams (2006); Galvão (1979, 1975); Harris
(2005); Lima (1999) e Lima & Alencar (2001).

29
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

vida teria posteriormente se cristalizado dentro de uma realidade a-histórica (Murrieta et al.
2006:19; Nugent 1993, 2006) – um dos temas da literatura para o qual eu gostaria de chamar a
atenção (para crítica a abordagens a-históricas, cf. Nugent 1993, 2006). Sendo fruto de um
complexo processo histórico de colonização europeia na região, da mistura de pessoas,
crenças e ideologias diversas, tais populações não possuíam um passado pré-colonial ao qual
podiam ser atribuídas diretamente. Aliado à isso, a visão de uma Amazônia como ‘natural’,
isenta de sociabilidade (Nugent 1993:5), reforçava a ideia de um estado de ser atemporal.
Perante a literatura, tais ideias acabaram por legar aos ribeirinhos uma posição passiva frente
à sua trajetória, sem história, oprimidos por um ambiente inóspito e subordinados às
oscilações comerciais externas (Nugent 1993, 2006).

Para melhor compreender esses processos históricos de embates, cooperações e


miscigenações entre populações indígenas locais, escravos africanos, afrodescendentes e
europeus e sua repercussão nas populações atuais, não podemos selecionar apenas parte desse
passado, conferindo privilégio a um ou outro vínculo. Dizer que o caboclo é um constructo do
processo colonial não nos exime de compreender esse processo. Muito se falou sobre a
relação das populações ribeirinhas com a sociedade nacional e sua vinculação com o passado
colonial europeu. No entanto, negar o passado indígena dessa população dita cabocla tem o
mesmo peso de negar a influência europeia ou africana na sua constituição. Não se trata de
buscar uma continuidade, mas de saber quais são as continuidades que se encontram nessa
população, isto é, qual é a memória que se construiu e se constrói localmente, seja no discurso
ou na prática dessas populações ribeirinhas.

Se afastando gradativamente do determinismo ambiental, na década de 1990, a noção


de caboclo começa a ser modificada para a de um agente com a capacidade de interferir e
transformar o ambiente onde vive. As pesquisas acadêmicas, de maneira geral, têm conjugado
abordagens ecológicas e econômicas. Encontramos uma variedade de trabalhos que buscam
incluir nas análises o contexto social, econômico e político mais amplo (Chipnick 1991; Lima
2006, 2004, 1999; Murrieta & WinklerPrins 2006; Murrieta et al. 1999) e também aqueles
que enfatizam a historicidade dos processos de manejo ambiental e transformação ecológica,

30
Juliana Salles Machado

resultando nas conhecidas “florestas culturais” 10 (Raffles 2002, 1999; Harris 2005, 2000,
1998; Lima & Alencar 2001). Dentre as abordagens ecológicas, nos últimos anos diversos
autores enfatizaram o uso da terra e dos recursos naturais pelas populações amazônicas e sua
relação com questões de gerenciamento político e ambiental (Adams et al. 2006; Brondízio
2004; Lima 2004; Chipnick 1991; Siqueira 2006). Já as abordagens econômicas reforçam, por
um lado, a ideia de uma Amazônia conectada por comércio, crédito, migração, trocas,
conflitos e busca de commodities e, por outro, um grupo de pessoas fora do alcance do estado,
envolvidas numa economia informal (Brondízio 2004; Nugent 1993; Lima 2006).

Atualmente, a invisibilidade da posição sociopolítica e identidade cultural dos


ribeirinhos (Nugent 1993, 2006; Boyer 1999; Chipnick 1991; Rodrigues 2006; Oliveira 1991;
Adams et al 2006; Harris 1998; Lima 1999; Lima & Alencar 20001; Loureiro 2002 – para
uma visão mais geral sobre o tema da invisibilidade e identidade ver Brubaker & Cooper
2000) tornaram-se objeto de discussão acadêmica, ainda que em número muito reduzido,
conforme afirmam Adams et al (2006) na introdução de seu livro:

A formação da identidade cabocla tem lugar no interior de processos


definidos mais pelas externalidades (transformações econômicas globais)
do que pelas comunidades culturais locais (Leonardi 1999; Nugent
1993). O contexto de violência e de dominação, no qual sua identidade
foi forjada, fez com que o caboclo construísse uma identidade de
oposição (Harris 1999; Slater 1997). Na opinião de Harris (1999), por
viver numa lógica de curto prazo e longe dos centros de poder, o caboclo
combina a oposição e a indiferença em sua relação com os patrões,
tentando evitar, ou pelo menos diminuir, a dominação através de uma
vida social aparentemente anárquica. O fato das sociedades caboclas não
possuírem antepassados pré-capitalistas evidentes (se nós não
considerarmos a sua descendência indígena como uma continuidade), ao
contrário das sociedades camponesas tradicionalmente tratadas pela
antropologia, tem dificultado ainda mais uma abordagem histórica
(Nugent 1993, 1997). (...) Reconhecer a significância das sociedades

10
Para estudos com populações indígenas, cf. Balée (2006a; 2006b; 1998; 1994; 1989); para estudos com
populações caboclas, cf. Raffles (2002; 1999).

31
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

caboclas requer considerá-las como sociedades inseridas neste contexto


de mudanças históricas, e sujeitas à mesma dinâmica que incorporou
outras ‘periferias’ no âmbito dos sistemas político-econômicos
capitalistas (Brondízio & Siqueira 1997; Murrieta et al 1999; Nugent
1993; Schmink 2003). (Adams et al. 2006:17)

Não há uma denominação consensual para essas pessoas com modo de vida semelhante
que habitam as margens dos rios amazônicos, que por vezes são chamados de caboclos. O
termo “sociedades caboclas” recentemente ganhou força com a publicação de Adams et al.
(2006), obra que representa o estado da arte dos estudos sobre o tema. O uso do termo retoma
uma denominação usual entre a população amazônica, silenciada devido à sua conotação
negativa (é uma categoria relacional, não é um termo de auto-designação, é usado pelos
habitantes das cidades amazônicas para falar de pessoas do interior, e de acordo com Lima
(1999), essa categoria estabelecia um valor inferior aquele que o proferia, como mais
atrasado, iletrado, inculto). Recentemente, entretanto, foi sendo reformulada por autores locais
em uma tentativa de valorização regional. Já o uso de “ribeirinhos”, apesar de históricamente
também ter uma associação com uma posição de subordinação social (patrão/pequeno
produtor), ela é mais vaga do que àquela mencionada para “caboclos”. O uso desta designação
feito por autores como Harris (2005, 2000) e por essa autora (Machado 2010, 2009), entre
outros, se deve não apenas a referência geográfica de suas moradias ao longo dos rios e
igarapés, mas, principalmente, por marcar a relação que as pessoas e comunidades têm com
esses corpos de água, que assumem uma importância central na sua organização social. A
opção pela utilização desse termo, a meu ver, nos afasta da dubiedade interpretativa que
“caboclo” pode acarretar (focando na dicotomia campo-cidade) e nos leva a pensar a relação
que essa população constrói com a paisagem. Em minha pesquisa, o uso do termo se tornou
ainda mais forte, uma vez que é aceito pela população local, apesar de não ser utilizado e nem
ser uma auto-denominação. Outra referência encontrada é “sociedades tradicionais” (para
crítica, ver Brondízio 2004), utilizada nos discursos políticos como uma forma de inserir essas
populações em políticas públicas (Chipnick 1991). Nugent se refere ainda a “camponeses
históricos” (Nugent 1993, 2006) com o intuito de inseri-los em uma discussão sobre o
campesinato na Amazônia, área onde tal abordagem é pouco trabalhada. A utilização de uma

32
Juliana Salles Machado

referência temporal nesse caso se deve, segundo o autor, a uma alusão a trajetória histórica
particular dessa população em relação aos camponeses do nordeste brasileiro, estes últimos
intensamente tratados na literatura. Outros termos como “pequenos produtores” (Brondízio
2004) e “pescadores” (Lima 2006; 2004), são usados pelos autores para marcar a inserção
econômica desse grupo no mercado nacional e internacional. Seus estudos focam a economia
doméstica, ou economia da casa, como um fator importante de organização social. Lima os
define como “populações tradicionais” e para o contexto de Mamirauá apresenta a seguinte
descrição: “moradores de uma unidade de conservação de uso sustentável, engajados em
práticas de conservação, ou ainda ao fato de se tratar de uma população regional, amazônida,
com longa história de convivência natural” (Lima 2006:145).

Devido, em grande parte, a seu caráter híbrido (no sentido étnico – mistura entre europeus,
índios e africanos) e flexível (tanto no sentido econômico devido à diversidade de suas
atividades e flutuações intensas de seu comércio, quanto religioso, relacionado a um
catolicismo popular bastante aberto) uma das discussões que permeiam o conceito de caboclo
na literatura é se ele é passível de ser categorizado (Lima 1999; Boyer 1999; Chipnick 1991;
Rodrigues 2006; Harris 1998). Parte dessa literatura aponta para uma saída interessante: a
unidade desta categoria residiria em sua própria flexibilidade; sua intersticialidade sendo o
lócus mesmo de sua unidade (Chipnick 1991; Harris 2006; Rodrigues 2006). No entanto, a
própria ideia de intersticialidade implica em categorias discretas prévias. Dizer que essas
sociedades são intersticiais é, portanto dizer que elas não se encaixam plenamente em
nenhuma categoria, mas que ao mesmo tempo elas carregam em si todas elas11. Assim, o
chamado caboclo amazônico é índio, branco e negro, tudo ao mesmo tempo (Lima 2006;
Harris 1998; Rodrigues 2006; Chipnick 1991; Boyer 1999). Contém em si, portanto aspectos
das tradições indígenas mais antigas, particularidades afro-brasileiras e européias da época da
colonização e as mais diversas inovações atribuídas à modernidade ocidental. No entanto,
apesar desse ‘hibridismo’, elas são vistas mais como resultado da conquista europeia, do que
das sociedades locais, ou ainda como “testemunho[s] da influência nociva da ‘civilização’”
(Adams et al. 2006:16). Ainda que simplista, essa visão é amplamente difundida. Mas, como
ressaltam Adams et al. (2006:16) e outros, há que se ter em mente que “os próprios outros

11
Aqui nos referimos tanto a categorias étnicas (índios, branco e negro) quanto econômicas, como camponeses e
pescadores e vaqueiros, entre outras discussões, conforme pode ser visto em Chipnick 1991; Harris 1998,
Rodrigues 2006 e Lima 1999.

33
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

originais [os grupos indígenas amazônicos] são eles mesmos resultados do processo histórico
da colonização” e, portanto, que a “continuidade existente entre as identidades indígenas e as
identidades caboclas é muito mais complexa do que normalmente é considerado”.

A flexibilidade e a heterogeneidade econômica das sociedades ribeirinhas, já destacadas


por Lima (2006, 2004), Castro (2006), Brondízio (2006, 2004), Harris (2006), Nugent (1993)
e outros, está pautada na diversidade da exploração de recursos de pesca, caça, plantio (com a
coexistência de atividades intensivas e extensivas) e manejo ambiental. Para Harris (2006,
2005, 2000) eles são expressões de uma abertura ao externo, ao outro e um atestado de sua
“habilidade de negociar as condições do presente”. Segundo esse autor “esse ‘presentismo’,
ou domínio do presente, inclui o entendimento do passado como descontínuo em relação ao
presente, uma amnésia entre gerações, uma carência de identidade grupal consolidada em
torno de memórias sociais ou de um mito de origem e assim por diante” (Harris 2006:84).
Lima e Alencar (2001) também vão ao mesmo sentido, reforçando o constante enfrentamento
de “descontinuidades temporais” que compõem o modo de vida ribeirinho. Entre estas,
destacam-se a dinâmica ambiental das várzeas com intensos e rápidos processos de
sedimentação e erosão, e econômicos, relacionados, em grande parte, aos ciclos do comércio,
como o boom da borracha, da juta e mais recentemente do açaí. A capacidade dessas
sociedades em se reconstruir através dessa “visão cíclica de boom e estagnação” (Harris
2006:89, para uma discussão mais detalhada sobre os efeitos dos ciclos econômicos na
Amazônia sobre as sociedades ribeirinhas ver Nugent 1993), seria para Harris um forte
indicador de que essas sociedades não seriam resíduos coloniais, mas um produto do presente.
Presente este de múltiplas facetas, como nos mostra Nugent (2006:43): “as muitas
diversidades de formas de amazoneidade – de possibilidades caboclas – são uma proteção
contra a tendência de reificação de uma categoria estereotipada e intermediária de caboclo,
residindo vagamente entre o índio precariamente situado e o cidadão plenamente modernizado
do futuro”. A situação agora é vista de maneira inversa do que proposto anteriormente
(Wagley 1957; Galvão 1975), isto é, para autores como Harris (2006, 2000) as sociedades
ribeirinhas estariam pautadas na negação de um passado colonial e indígena. Mas essa
negação não se faz de maneira simplista, mas através de uma “combinação da essência (tempo
de residência para reivindicar direitos fundiários, ou tradição) com a transformação histórica

34
Juliana Salles Machado

(sucesso reprodutivo e, de modo mais geral, modernidade). Ao invés disso, existem


continuidades e convergências, assim como descontinuidades e resistência. A reunião
resultante é um presente ambivalente” (Harris 2006:105). Estou de acordo com Harris e Lima
& Alencar sobre os ribeirinhos serem um produto do presente, no entanto, não acredito como
proposto por Harris (2006:105), que as novas possibilidades possam “dissolver o passado”. O
“pouco interesse na conservação do passado”, como foi apontado pelo autor, ocorre de fato no
discurso, mas, pelo menos no contexto de Caviana, o passado é um importante elemento na
criação de um sentimento de pertencimento entre os ribeirinhos e subjaz tanto nos aspectos
materiais como ideológicos. Ao contarem histórias do passado, elas estão sim relacionadas ao
presente, como quer Harris, mas isso não as faz menos eficazes como vínculo com o passado.
Realmente trata-se de um presente ambivalente, mas que não se faz baseado na negação de
um passado, mas incorporando-o e reconceitualizando-o. O exemplo amazônico de Caviana
nos mostra que sua prática no presente é também uma forma de continuidade com seu
passado. Os dados etnográficos obtidos na ilha indicam que o intenso manejo ambiental, a
troca de espécies vegetais, as escolhas tecnológicas e aquelas relacionadas aos locais de
moradia, bem como a forma de utilização dos recursos naturais estão ligadas à memória de
um passado indígena pré-colonial e colonial, que, se não está no discurso, compõe a prática
diária da vida ribeirinha.

3. Paisagem feita Memória

Uma das discussões teóricas importantes para o desenvolvimento dessa tese foi àquela
concernente à paisagem. Permeando diversas disciplinas, o(s) conceito(s) de paisagem serviu
como pano de fundo para as mais diversas abordagens sobre a relação entre humanos e
ambiente. Nessa relação gostaria de enfatizar a importância da temporalidade e como ela foi
vista nos estudos sobre paisagem. Segundo Knapp & Ashmore (1999:21), paisagem é “a

35
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

arena a partir e através da qual memória, identidade, ordem e transformação social são
construídas, atuadas, re-inventadas e mudadas”12. Assim, segundo os mesmos autores:

quaisquer que sejam nossas visões tradicionais, agora se torna claro


que paisagem não é exclusivamente natural nem totalmente cultural: é
uma mediação entre as duas e uma parte integral do habitus de
Bourdieu, as práticas sociais cotidianas dentre as quais as pessoas
vivenciam o mundo em volta delas. Além do habitus, no entanto,
pessoas ativamente ordenam, transformam, se identificam com e
memorializam paisagens ao morar nelas. O ambiente se manifesta
como paisagem apenas quando as pessoas criam e vivenciam espaços
como um complexo de lugares. O senso de lugar das pessoas e seu
envolvimento com o mundo em volta delas são invariavelmente
dependentes de sua própria situação social, cultural e histórica 13
(Knapp & Ashmore 1999: 21). 14

O termo paisagem (landscape) é tido muitas vezes como sinônimo de meio ambiente,
dissociado da sociedade humana e concebido como repositório de recursos necessários para
obtenção e manutenção da subsistência dos grupos humanos. Nesse sentido, aparece como
sinônimo de espaço, como terra (land), composta por componentes bióticos e abióticos, com
estrutura e transformação própria, decorrente de uma dinâmica interna a qual os homens
tentam se adequar e domesticar (Zedeno 2008; Zedeno & Bowser 2009).

12
“The arena in which and through which memory, identity, social order and transformation are constructed,
played out, re-invented, and changed” (Knapp & Ashmore, 1999:21)
13
“Whatever our own traditional views, it is now clear that landscape is neither exclusively natural nor totally
cultural: it is a mediation between the two and an integral part of Bourdieu’s habitus, the routine social practices
within which people experience the world around them. Beyond habitus, however, people actively order,
transform, identify with and memorialize landscape by dwelling within it. The environment manifests itself as
landscape only when people create and experience space as a complex of places. People’s sense of place, and
their engagement with the world around them, are invariably dependent on their own social, cultural, and
historical situations” (Knapp & Ashmore 1999: 21).
14
Para mais sobre o tema, ver também David & Thomas (2008:35-36). Segundo David & Thomas (2008: 35-
36): “para entender a paisagem deve-se delinear seus meios de engajamento, a maneira que é entendida,
codificada e vivida na prática social e cada um desses, assim como a própria paisagem, tem história” 14, o
engajamento se dá e é definido “pela maneira que damos significado cultural para a localização de nossa
existência”14 (2008: 36).

36
Juliana Salles Machado

A partir dos anos 1970, contudo, o conceito de paisagem passou a ser abordado na
antropologia e na arqueologia sob um novo ângulo. Os temas tratados eram principalmente
relacionados às estratégias econômicas e suas dinâmicas inter-regionais, aos determinantes
econômicos dos padrões de assentamento, aos impactos ambientais e limitações na produção
agrícola, bem como aos processos demográficos e à organização social complexa em
determinados contextos regionais (David & Thomas 2007). O enfoque recaía, portanto, nos
impactos humanos e nas interações com o entorno físico. Tais abordagens levaram a uma
compreensão mais ampla dos processos de formação da paisagem, incluindo abordagens
interdisciplinares de fauna e flora e desenvolvimentos relacionados com um aumento da
sofisticação dos procedimentos estatísticos, esse último principalmente na arqueologia (David
& Thomas 2008; Aldenfereder 2006; Ashmor et al 1999; Zedeño 2008; Zedeño & Bowser
2009).

Esta abordagem, porém, passava ao largo da noção de lugar significativo (meaningful


place), atrelado a um sentido de um estar significativo em um lugar (meaningful
emplacement) (Zedeño 2008). A partir de trabalhos como os de Ian Hodder (1982) na
Inglaterra, começa-se a ver que o registro arqueológico sinalizava não tanto humanos
biologicamente adaptados, mas pessoas sociais interagindo que se engajavam com seu
entorno de diversas maneiras, incluindo práticas simbólicas. Paisagens então deixaram de ser
paisagens ambientais para serem de fato paisagens sociais, mudança conceitual semelhante a
que ocorreu com o conceito de paisagem utilizado na antropologia (David & Thomas 2008;
Kuchler 1993; Ingold 2001, 2000; Lentz 2000; Arhem 1998; Dove & Carpenter 2008; Flint &
Morphy 2000; Hirsch & O´Hanlen 1995; Kuchler & Melion 1991).

A partir de um levantamento realizado por Ashmore & Knapp (1999), podemos ver
como a ideia de paisagem foi sendo re-definida na década de 1990. Assim por exemplo, para
Crumley (1994) a ênfase é dada na relação estabelecida entre humanos e ambiente. Essa
ênfase em seu caráter relacional também foi dado por Johnston (1998), para quem não é
possível estabelecer uma resposta definitiva para o que é paisagem, pois se trata antes do que
ela pode ser, reiterando que a paisagem é constituída contextualmente. Temos, portanto, que a
paisagem é não apenas um ambiente sobre o qual os humanos atuam e transformam, mas o
próprio resultado dessa interação. Tal percepção levou diversos autores a voltarem seus
olhares para as formas cotidianas de ocupação em busca de compreender a relação humano-

37
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

ambiente como um recurso culturalmente significativo (Barrett 1994). Um dos autores que
tornou essa visão mais aceita entre os antropólogos e arqueólogos foi Ingold (2000) através do
que ele chama de dwelling perspective. Nessa perspectiva:

paisagem é constituída como um registro duradouro – e um


testemunho – das vidas e trabalhos das gerações passadas que nela
moraram, e ao fazer isso, deixaram lá alguma coisa delas mesmas.
[…] Perceber uma paisagem é, portanto, um ato de trazer à tona uma
lembrança, e lembrar não é tanto uma questão de buscar uma imagem
interna, guardada em nossas mentes, mas se engajar perceptualmente
com um ambiente, que é em si impregnado com o passado15 (Ingold
2000:189).

Apesar da literatura sobre as sociedades ribeirinhas ter como base a relação entre elas
e o ambiente, ela o faz majoritariamente de um viés econômico, priorizando ora sua relação
com a sociedade nacional (Nugent 1993) e/ou sua inserção no mercado (Lima 2004, 2006),
ora o manejo ambiental enquanto prática economicamente sustentável (Brondízio 2004,
2006). Meu intuito aqui é, do contrário, priorizar o significado social e simbólico dessa
relação. Ao fazer isso, como nos mostra a literatura sobre paisagem acima mencionada,
focalizarei a construção de uma ‘identidade ribeirinha’ e de sua memória por meio da
manutenção de práticas cotidianas, de seu repertório material, do processo tecnológico de
produção de objetos, das práticas de manejo ambiental, da troca de plantas e partilha
alimentar, bem como do conhecimento do meio em que vivem.

A construção da paisagem em Caviana é também a construção de sua memória e esta,


por sua vez, está intrinsecamente relacionada à manutenção e produção das redes de

15
“landscape is constituted as an enduring record of – and testimony to – the lives and works of past generations
who have dwelt within it, and in so doing, have left there something of themselves. (...) To perceive a landscape
is therefore to carry out an act of remembrance, and remembering is not so much a matter of calling upon an
internal image, stored in the mind, as of engaging perceptually with an environment that is itself pregnant with
the past” (Ingold 2000:189).

38
Juliana Salles Machado

parentesco16. A importância do parentesco no uso dos recursos naturais entre populações


ribeirinhas foi analisada por Lima (2006, 2004), que concentra seus estudos na economia
doméstica da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, no Alto Amazonas.
Para a autora, é o pertencimento a um grupo local, a inclusão nas comunidades rurais, que
permite às pessoas o usufruto dos recursos naturais do território ocupado (Lima 2006:147).
Lima ressalta a constituição de uma relação entre o parentesco (por afinidade e
consangüinidade) e o espaço local a partir do que chama de “comunidade de parentes”. Esta
comunidade detêm o direito de realizar atividades produtivas em um território comum (Lima
2006:148). Também Futemma reforça o papel chave que as redes sociais têm no acesso aos
recursos naturais; em seu estudo, como no anterior, as relações de parentesco e vizinhança
teriam um papel fundamental na manutenção desse acesso e integridade da comunidade
(Futemma 2006:237). Ela conclui que “as regras de uso e acesso aos recursos florestais e ao
solo variam conforme as características econômicas do recurso (subsistência ou comercial) e
o grau dos vínculos sociais entre as unidades domésticas (parentes de primeiro e segundo
graus, compadres e conhecidos), incluindo-se a relação entre os donos de terra e os sem-terra”
(Futemma 2006:258).

Nessa relação entre as redes sociais, parentesco e o manejo de recursos ambientais,


busco chamar especial atenção para o papel das mulheres. Há poucos estudos de gênero em
sociedades ribeirinhas; entre eles, destacam-se os trabalhos de Motta-Maués (1993) e
Murrieta & WinklerPrins (2006), este último exercendo uma influência decisiva no
direcionamento desta pesquisa. Murrieta & WinklerPrins (2006:278) trabalhando na Ilha de
Ituqui, no Baixo Amazonas tratam da relação das mulheres com o ambiente físico, dando
especial atenção aos jardins e quintais. Há uma vasta literatura sobre jardins e quintais em
contextos diversos, no entanto, conforme nos chama atenção os autores, ela é em grande parte
focado nos aspectos “ecológico-funcionais e utilitários” destes espaços (Murrieta &
WinklerPrins 2006:278). Num enfoque mais abrangente, esses autores mostram como:

o cultivo de flores e outras plantas não é apenas a manifestação do senso


estético feminino, nem somente uma estratégia econômica
complementar, mas também, é fonte de significados e práticas nas quais
status, conflitos e aspirações são constantemente negociados e

16
Para uma relação semelhantes em contextos indígenas da Amazônia ver Gow 1995.

39
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

manipulados entre os gêneros. Assim, os jardins e quintais vão além de


uma simples incorporação da condição feminina em Ituqui, e acabam
funcionando como ferramentas eficientes de negociações intra e
interunidades domésticas nas quais sobrevivência econômica, diferenças
de gênero, status social e emoções desempenham papéis fundamentais.
(...) a prática é motivada por memórias e acontecimentos sociais,
entrelaçando concomitantemente importantes domínios sociais,
ecológicos e técnicos. (...) O fluxo de informações e a confluência de um
mapa afetivo que aumenta as alianças sociais e as relações também
desempenham um papel importante (Murrieta & WinklerPrins 2006:290-
291).

Em Caviana, percebi que, mais que afetividades estritamente atinentes ao universo


feminino doméstico, a relação entre as plantas e as mulheres, explicitada pelo plantio de
canteiros suspensos e terreiros, faz parte de uma rede maior de trocas e apoio mútuo. Ao
longo do texto, procuro mostrar como tais práticas criam um sentido de territorialidade
(Zedeño 2008; Zedeño & Bowser 2009) ao mesmo tempo em que reforçam seu pertencimento
em suas famílias, comunidade e na própria ilha, e assim, constroem sua memória17.

4. A estrutura da tese

Esta tese tem um eixo diacrônico, quando enfatizo a percepção dos ribeirinhos da
historicidade e da humanização das paisagens, e também sincrônico, quando procuro
compreender a vida ribeirinha por meio de sua relação com as plantas. Nesta Introdução,
sintetizei a discussão acerca da antropologia das populações ribeirinhas da Amazônia,

17
Para uma literatura sobre memória e paisagem ver Knapp & Ashmore 1999; David & Thomas 2008; Fausto &
Heckenberger 2007; Gow 1995; Heckenberger & Franchetto 2001; Hirsch & O´Hanlon 1995; Kuchler 1993;
Kuchler & Melion 1991; Steward & Strathern 2003; Ucko & Layton 1999; Zedeño 2008; Zedeño & Bowser
2009.

40
Juliana Salles Machado

apresentando um pequeno histórico das pesquisas sobre os chamados caboclos amazônicos


para inserir minha pesquisa nessa linha de discussão e pensar como a abordagem do manejo
ambiental, a partir de uma perspectiva de seus significados para as mulheres de Caviana, se
aproxima e se diferencia de outras abordagens.

No Capítulo 1, “Paisagem, tempo e transformação”, apresento a dinâmica de ocupação


da ilha. Optei por resgatar as informações da arqueologia e discuti-las frente à história oral
dos ribeirinhos em Caviana. Foi importante enfatizar a temporalidade da paisagem em
Caviana, posto que ela é pensada e incorporada pelos ribeirinhos através da reocupação de
certas áreas que são re-conceitualizadas e, como veremos adiante, tidas como “lugares de
gente”.

No Capítulo 2, “Quando me entendi: a gente de Caviana”, trato da vida dos ribeirinhos


na ilha, de sua relação com o ritmo das águas e suas formas de agregação. Optei por focalizar
a estrutura social da vida ribeirinha, através principalmente de suas ações cotidianas, contudo
também trato de maneira sucinta as festas católicas e os grupos de trabalho.

Enquanto o Capítulo 2 enfatiza a esfera pública da comunidade, cujos discursos são


normalmente masculinos, o Capítulo 3, “As mulheres e as plantas”, enfatiza o papel das
mulheres na formação de coletivos, envolvendo humanos e não-humanos, por meio de sua
relação com as plantas. Esse capítulo contempla a maior parte da etnografia realizada na ilha,
apresentando as visitas a parentes e a troca de plantas entre as mulheres.

No Capítulo 4, “Um olhar sobre as plantas e a troca”, a etnografia apresentada


anteriormente dá lugar ao levantamento das espécies de plantas encontradas em cada uma das
casas visitadas, seus locais de plantio e a associação que suas donas fazem com seus doadores.
Obtidas através de entrevistas, essas informações foram quantificadas para dar uma visão
mais clara de que plantas são trocadas, em que situações e por quem.

Tendo mapeado qualitativa e quantitativamente a troca de plantas, chegamos ao


Capítulo 5, “Plantas que curam: um olhar para o outro”, em que enfatizo as concepções
cosmológicas das populações ribeirinhas, sobretudo a relação entre humanos e não-humanos,
que é em grande parte mediada pelas plantas.

41
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Nas considerações finais, encerro com algumas reflexões sobre como a relação entre
os humanos e as plantas, a transformação da paisagem e a constante afirmação de
territorialidade que integram um processo de (re)criação de uma memória local.

Ao longo de toda a tese, as citações de obras em inglês foram por mim traduzidas. As
versões originais se encontram nas notas de rodapé.

42
Capítulo 1
Figura abertura Capítulo1: Fotos dos “filhos de Caviana”. Foto: Juliana Salles Machado

43
Juliana Salles Machado

1
Paisagem, tempo e transformação

ilha Caviana fica no estado do Pará, na região do delta do rio


Amazonas, entre a ilha de Marajó e a costa sul do estado do Amapá (Figura 1.1). Está
implantada numa área de extrema turbulência de águas, onde a forte correnteza do rio
Amazonas se encontra com a pressão marítima contrária, acarretando erosões,
desbarrancamentos, sedimentação e pororocas recorrentes e intensas. A ilha é recoberta por
uma área de floresta, em sua parte sudoeste, uma região de campos naturais à leste e uma
região de campos alagáveis, também conhecida como região dos lagos, no seu interior e face
norte. A dinâmica dramática dessa paisagem que se transforma muito rapidamente tem forte
consequência na vida dos moradores.

Caviana é habitada por comunidades ribeirinhas e fazendeiros. A grande maioria dos


ribeirinhos vive na parte sudoeste da ilha, à beira-mar18 e às margens de igarapés de médio e
grande porte, em meio a uma vegetação de mata (Figura 1.2) e se dedica a pesca, coleta de
produtos da floresta e o manejo ambiental. Parte deles, no entanto, trabalha como vaqueiros
na porção leste em fazendas de gado e búfalo que se concentram nos campos naturais da ilha.
Nesta área, grandes fazendas cobrem os horizontes descampados, recortados apenas por
poucos retiros afastados entre si dentre as pastagens (Figura 1.3). Poucos fazendeiros vivem
na ilha; a maioria mora em Belém, Chaves ou Macapá e anualmente visitam sua propriedade.

A maior parte dos estudos acerca das populações ribeirinhas na Amazônia pauta-se na
relação dos humanos com o meio que os circunda. Na apresentação de seu livro, Wagley

18
“Beira-mar” é o termo local usado para se referir aos lugares da ilha situados à margem do rio Amazonas. Por
ser uma região onde esse rio é muito largo e se encontra com o mar, a visão do horizonte a partir de suas
margens se assemelha à da costa brasileira, sendo possível em alguns locais ver algumas ilhas mais próximas.

44
Figura 1.1: Foto de Satélite da ilha Caviana. Fonte: Google Earth 2011.

45
Figura 1.2: Exemplo de moradia ribeirinha nas áreas florestadas da ilha. Foto Juliana Machado

Figura 1.3: Exemplo de moradia ribeirinha na maré baixa nos campos naturais da ilha.

Foto Juliana Machado

46
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

(1957:2) descreve esse objetivo “[...] em sentido amplo, o livro é um estudo sobre a adaptação
do homem a um meio tropical”. 19 Essa vinculação dos ribeirinhos com o meio ambiente
perpassa quase toda a literatura sobre o tema, mesmo aquela que adota outras abordagens
teóricas. Dentre estas, vemos essa relação a partir de outras perspectivas tais como a de “ritmo
de vida” em Harris (1998, 2005), a de “relação econômica” (Nugent 1993; Lima 2006) ou a
das “formas de manejo” (Brondízio 2004), como mencionamos na Introdução.

Neste trabalho, retomo a mesma temática, enfatizando, porém, dois aspectos da


relação entre os ribeirinhos e a paisagem: seu caráter histórico e seu significado para as
pessoas no presente. A relação de continuidade entre os grupos indígenas e as populações
ribeirinhas foi mencionada por autores como Wagley (1957) e Galvão (1979), sobretudo no
que toca às técnicas agrícolas e ao conhecimento da floresta: “[...] a vida econômica no vale é
evidentemente primitiva e estagnante. A maior parte das técnicas agrícolas usadas na
Amazônia foi herdada dos indígenas nativos – agricultura de coivara”20 (Wagley, 1957:4).

Em um momento posterior, deixou-se de explorar a continuidade histórica entre os


grupos indígenas e as comunidades ribeirinhas e passou-se a procurar compreender os
ribeirinhos no âmbito colonial e na sua atual inserção no mercado nacional (Nugent 1993;
Harris 2005; Brondízio 2004; Lima 2006; Murrieta et al. 2006; entre outros). Neste estudo,
proponho um outro olhar sobre o manejo ambiental praticado pelos ribeirinhos, buscando
entender a história como um processo inerente ao presente, que é vivido e constantemente
reconstruído pelas pessoas em seu cotidiano.

Neste primeiro capítulo, recupero os dados conhecidos do processo histórico da ilha,


principalmente em tempos pré-coloniais e coloniais. O objetivo dessa exposição é fornecer
dados para sustentar a ideia de um passado feito presente, com a qual trabalho ao longo de
toda a tese, e pela qual busco refletir sobre como os ribeirinhos se representam e se pensam no
mundo a partir se suas concepções nativas de tempo. Ser filho de Caviana, como discutiremos
no próximo capítulo, não implica apenas ter nascido na ilha, mas ter vivido lá – implica, pois,

19
“[...] in a large sense, the book is a study of the adaptation of man to a tropical environment” (Wagley 1957: 2).
20
“[...] the economic life of the valley is clearly primitive and stagnant. The agricultural techniques used in
Amazonia are mainly those inherited from the native Indians, fire or slash-and-burn agriculture” (Wagley, 1957:4).

47
Juliana Salles Machado

em conhecer as curvas de seus rios, identificar suas árvores e, por meio delas, pensar seu
passado, seu presente e seu futuro. Não se trata, portanto, de um meio que os circunscreve,
mas de um conjunto de relações efetivamente construídas entre humanos, plantas, animais e
lugares, no sentido mais amplo do conceito de paisagem. O manejo ambiental praticado
intensamente pelos ribeirinhos hoje é também uma forma de construção da memória e de
afirmação de uma continuidade e está necessariamente imbricado nas relações de parentesco
dos ilhéus.

1.1 O passado feito presente

A paisagem de Caviana parece ter sido sempre muito dinâmica. Pelo menos é o que
nos indica a história oral da ilha e a toponímia das suas áreas internas, que ainda designam
suas partes como ilhas independentes, como Ilha Nova e Ilha da Prainha ambas na sua porção
leste. O padrão de assentamento dos sítios arqueológicos também pode ser um indicador desse
intenso dinamismo, pois os sítios identificados estão todos implantados no alto dos tesos
antigos, atualmente recobertos por uma vegetação de mata. Não há nenhum sítio nas áreas de
campos naturais, o que pode indicar que essas áreas tenham sido anteriormente cursos d´água,
seja como rios, igarapés ou lagos. Os ribeirinhos se referem às terras secas e altas da ilha
como “tesos de índio”, atribuindo-lhes uma formação antrópica. Tal formação não foi
comprovada, mas encontra precedentes na ilha vizinha, a ilha de Marajó, são os chamados
“tesos marajoaras” estudados mais profundamente por autores como Meggers & Evans
(1996), Roosevelt (1991), Schaan (2004).

Apesar de se encontrar em uma macro-região importante para a compreensão dos


modelos antigos de ocupação da Amazônia, a ocupação pré-colonial da ilha Caviana foi
pouco estudada21. As evidências arqueológicas existentes indicam pelo menos duas ocupações
indígenas pré-coloniais, uma possivelmente mais antiga, à leste, e outra mais recente, que se

21
Para modelos de ocupação da Amazônia, ver, entre outros Heckenberger 2005; Meggers & Evans 1996, 1957;
Roosevelt 1991; Heckenberger & Neves 2009.

48
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

estende até o período colonial, no centro-sul, mais próximo à ilha de Marajó. Ambas foram
sugeridas por Curt Nimuendaju (2004, 2000), que fez escavações na ilha ainda nos anos 1920.

Duas décadas depois, dados de escavações de Meggers & Evans (1996, 1957)
corroboraram a ocupação colonial e pré-colonial mais recente de Caviana, atribuída às
populações indígenas Aruã, que também ocupavam a ilha de Marajó e foram documentadas à
época do contato (Roosevelt 1991; Schaan 2004). Segundo Meggers & Evans (1957:551):
“Parece que os Aruã compartilham com as culturas Arawak ocidentais um conjunto de fatores
que inclui alinhamentos de pedra, estatuetas polidas, contas de nefrite e amuletos, figuras
cerâmicas rudimentares, pratos e assadores, apliques e métodos ponteados de decoração
cerâmica”.22 A ocupação mais antiga, no entanto, não foi enfatizada nesta pesquisa.

Apesar dos dados exíguos, as diferenças na cultura material encontradas em alguns


sítios arqueológicos vêm sendo interpretadas como resultado de uma ocupação distinta
daquela Aruã, tendo sido chamada de fase Caviana por Rostain (2011), que usa o termo de
Nimuendaju (2004, 2000) e tem respaldo na história oral dos ribeirinhos (Anexo 1). Esta
ocupação indígena mais antiga ainda não foi datada, mas os vestígios cerâmicos polícromos
encontrados são semelhantes à algumas cerâmicas encontradas ao norte e sudeste do Amapá23
e vêm sendo atribuídos também à grupos arawak. Essa atribuição é pautada no modelo de
dispersão arawak defendido mais recentemente na arqueologia por Heckenberger (2002).
Além dos padrões e das técnicas decorativas aplicadas aos suportes cerâmicos, observa-se
semelhanças nos padrões de assentamento entre sítios arqueológicos e aldeias arawak
contemporâneas. Recentemente, os Palikur do norte do estado do Amapá desenvolveram
pesquisas arqueológicas em sua aldeia e atribuíram à seus ancestrais os vestígios
arqueológicos da fase aristé. A cerâmica aristé também apresenta policromia com motivos
antropomorfos e geométricos pintados e técnicas de produção análogas às cerâmicas
chamadas de Caviana (Rostain 2011). Tais associações são ainda hipotéticas e precisam ser
corroboradas com a intensificação de pesquisas arqueológicas na região, mas parecem ser

22
“The Aruã appears to share with Arawak cultures of the West Indies a complex of traits that includes Stone
alignments, polished celts, nephrite beads, and amulets, crude pottery figurines, Platters or griddles, and applique
and punctuate methods of pottery decoration” (Meggers & Evans 1957: 551).
23
Informação fornecida por Cabral e Moura, no II Encontro Internacional de Arqueologia Amazônica, em 2010.

49
Juliana Salles Machado

reforçadas pelo mapa de Nimuendaju para a dispersão arawak na região (Figura 1.4). As datas
atribuídas a cada grupo indígena indicado, assim como a distribuição espacial a eles
associadas, me parece reforçar o modelo de migração arwak (pelo menos para essa região),
vinculando tanto com o grupos atualmente localizados no norte Amapá (Palikur, Karipuna e
Galibi-Maworno – para mais informações ver Vidal 2007) quanto os contextos pré-coloniais
mais antigos ainda pouco conhecidos, mas atribuídos a grupos arawak.

1.2 As primeiras pesquisas

Os primeiros documentos conhecidos sobre a região remontam ao início do século


XVI. São relatos de viajantes espanhóis e portugueses envolvidos em expedições missionárias
e de conquista ligadas à posse das terras coloniais e ao descimento de indígenas para servirem
como mão de obra escrava. Textos como os de Orellana (Acuña 1941), Betendorf (1910) e
Daniel (1976), entre outros, forneceram ricas descrições da ocupação da região da foz do
Amazonas (Barreto & Machado 2001). Assim como a maior parte da ilha de Marajó na época
dos primeiros contatos e até o início do século XIX, segundo consta nos relatos de cronistas, a
Ilha Caviana estava ocupada por grupos indígenas, sobretudo o denominado Aruã, falante da
língua arawak (Nimuendaju 2004:96-97). Segundo relatado por Nimuendaju: “A política
brutal e imprudente das autoridades locais portuguesas em Belém teve a pior consequencia
para a jovem colônia, pois, de agora em diante as tribos das ilhas quase naturalmente
consideravam quase todos os inimigos dos portugueses, sejam eles Ingleses, Holandeses ou
Franceses, seus amigos e aliados” (Nimuendaju 2004: 96 Apud Berredo 1905a: 180 e 186)24.
A presença desse grupo na região é muito mencionada nos relatos em decorrência de seus
constantes embates com os portugueses assentados em Belém do Pará. Os Aruã associaram-se
aos franceses e aos holandeses para combater o governo português na região, repelindo suas
violentas investidas nas ilhas à caça de escravos indígenas (2004:96-97). A dificuldade de
ocupar esses territórios insulares se revela no reiterado fracasso em estabelecer missões na

24
“The brutal and imprudent policy of the Portuguese local authorities at Belém had the most infortunate
consequences for the young colony, because from now on the island tribes quite naturally considered every
enemy of the Portuguese, whether English, Dutch or French, their friends and allies” (Nimuendaju 2004: 96
Apud Berredo 1905a: 180 e 186).

50
Figura 1.4: Mapa histórico de C. Nimuendaju sobre a dispersão de grupos indígenas Arawak. Fonte:
Nimuendaju, C. 2008 [1926].

51
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

região. Segundo Nimuendaju (2004), os capuchinos foram os únicos a permanecer entre os


Aruã, ocupando uma única missão localizada na ilha de Marajó. Durante sua estadia, esses
frades teriam escrito sete obras, entre gramáticas e dicionários, registrando a língua aruã. No
entanto, este acervo foi perdido, e hoje essa língua só é conhecida por um glossário compilado
por Ferreira Penna já no século XIX (Nimuendaju 2004:97).

A primeira pesquisa científica na região foi empreendida pelo antropólogo Curt


Nimuendaju entre os anos de 1923 e 1924. À serviço do Museu de Göteborg (GEM), na
Suécia, apoiado pelo então diretor Erland Nordesnkiold do Etnographish Museum o
antropólogo partiu de Chaves, na ilha de Marajó, para as ilhas Caviana e Mexiana, a fim de
documentar seu registro arqueológico e etnográfico (Hartmann 2000). Não conseguindo
autorização para entrar na ilha Mexiana, Nimuendaju investiu na pesquisa do sul da ilha
Caviana, onde escavou e coletou inúmeros vestígios arqueológicos que hoje compõem a
coleção do GEM, além de dados sobre a ocupação cabocla à época e principalmente
informações orais sobre sua história (Figuras 1.5 e 1.6) (Nimuendaju 2004; Hartmann, 2000).

Segundo Nimuendaju (2004), Pe. Antonio Vieira teria tentado selar um acordo de paz
entre os portugueses e os chefes aruã, dentre os quais se destacava Piyé, habitante da ilha
Caviana, conforme descreve o autor:

Apesar do fato de ninguém acreditar em uma solução pacífica, o Jesuíta


Antonio Vieira, no entanto, levou a diante uma proposta de paz (...) Entre
os chefes que fizeram parte nesta conclusão da paz estava um Piyé.
Vieira o descreveu como o mais sensível de todos. Logo antes de
prometer a aliança, ele corretamente ressaltou para o Padre que ele
deveria dirigir suas questões e instruções aos Portugueses e os fazerem
jurar, pois eles haviam quebrado suas promessas com muita frequencia.
Este Piyé deve ter sido um chefe Aruã de Caviana; mas, de qualquer

52
Figura 1.5: Escavação de Curt Nimuendaju em 1925, ilha Caviana. Fonte: Barreto e Machado 2001.

Figura 1.6: Escavação de Curt Nimuendaju em 1925, Rebordello, Caviana. Fonte: Nimuendaju 2004

53
Juliana Salles Machado

maneira, há um lugar atualmente chamado de Rebordello que


anteriormente era chamada de ‘Aldeia do Piyé’. (Nimuendaju 2004:97).25

Segundo indicaram os moradores de Caviana à Nimuendaju, este era o local de uma


antiga aldeia conhecida como “aldeia de Piyé” Este seria o nome de um chefe Aruã, conforme
nos mostra o trecho citado. Os relatos dos cronistas indicam que no século XVIII (1760) a
“aldeia de Piyé” tornou-se um grande centro Aruã, mas já no início do século XIX o lugar
estava em declínio, tendo sido abandonado pela maior parte da população. Em 1817,
contavam-se apenas 279 nativos, segundo dados de Ferreira Penna, que visitou a aldeia (apud
Nimuendaju 2004). Na década de 1920, quando da visita de Nimuendaju, restavam apenas
três casas e uma capela de madeira. Retornei ao Rebordello em 2006, mas nessa época o teso
havia sido abandonado há aproximadamente cinco anos em função da seca do igarapé que o
cercava. Lá encontrei vestígios de madeira das bases das antigas palafitas e uma ruína que os
ribeirinhos indicaram como sendo um resquício de uma antiga igreja. Seus moradores
atualmente estão na foz do rio Pracutuba, onde estabeleceram uma pequena vila nas posses de
um fazendeiro que atualmente possui todas as terras dessa região.

Os inúmeros sítios identificados por Nimuendaju na região graças à informações orais


revelaram uma diversidade de contextos arqueológicos. Nimuendaju divide sua área de
pesquisa em Caviana como “porção sudeste” e “porção sudoeste” da ilha. Na porção sudoeste,
a cerâmica encontrada não apresentava pintura, apenas decoração plástica aplicada conforme
vemos nas figuras (Figura 1.8) (Nimuendaju 2004:65). O padrão de sepultamento era
secundário e dentre os acompanhamentos funerários foram encontradas contas de vidro.
Nimuendaju acredita que esse estilo seja totalmente distinto daquele de Marajó (atribuído aos
Aruã). No entanto, tendo em vista se tratar de um contexto pós-colombiano e dos Aruãs serem
os únicos grupos conhecidos à época do contato nesta ilha, como nos mostram os relatos de
cronistas e de Pe. Antonio Vieira, o antropólogo atribuiu essa cerâmica a esse grupo. Não
obstante, ressalta que se “a cerâmica de Campo Redondo [sítio arqueologico em Caviana] tem
sua origem relacionada aos Aruãs, contudo, este estilo tendo sido tipicamente atribuído a

25
Despite the fact that nobody believed in a peaceful solution, the Jesuit Antonio Vieira, nevertheless, brought
forward a proposal for peace (...) Among the chiefs who took part in the conclusion of the peace was one Piyé.
Vieira calls him the most sensible of them all. When about to swear allegiance, he correctly remarked that the
Father ought to direct his questions and instructions to the Portuguese and make them swear, because they had
broken their promises so often. This Piyé must have been an Arua Chief from Caviana; at any rate, the place now
called Rebordello was earlier called “Aldêa de Piyé”. (Nimuendaju 2004:97

54
Figura 1.6:
1.7: prancha com cerâmicas policromas coletadas por Nimuendaju. Fonte:Nimuendaju 2004

1.8: Prancha
Figura 1.7: prancha com cerâmica Aruã identificada por Meggers e Evans em 1948
1 em Caviana. Fonte:
Megers e Evans 1957.

55
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Marajó, não pode ser atribuído a eles, como tem sido assumido até agora” (2004:66) 26.
Nimuendaju, ressalta assim a diferença entre os vestígios arqueológicos encontrados em
Caviana e àqueles encontrados na ilha de Marajó, enfatizando que ambos não poderiam ter
sido feitos pelo mesmo grupo indígena. Com isto em mente, desqualifica a associação
previamente estabelecida entre os grupo Aruã e as cerâmicas arqueológicas encontradas no
norte da ilha de Marajó, para associá-los às cerâmicas provenientes de Caviana.

Já entre os sítios da porção sudeste de Caviana, podemos citar seis sítios-cemitérios


investigados: Redondo, Tezo dos Índios, Samahuama, Bacabal I e II e Rebordello
(Nimuendaju 2004:101) (Figura 1.7 e 1.9 – Nimuendaju 2004:78) Eles teriam, segundo
observa Nimuendaju características próprias e seriam facilmente distinguíveis entre si. Dentre
os sítios arqueológicos encontrados por este pesquisador, podemos apontar aqueles
considerados sítios-habitação, com muitos vestígios cerâmicos sem decoração e nenhuma
urna funerária; e os sítios-cemitérios, mais enfatizados no trabalho do autor. Neles foram
encontradas urnas funerárias de diversos formatos e tamanhos, contendo sepultamentos
humanos secundários e inúmeros acompanhamentos. No sítio Rebordello, encontrou-se uma
grande quantidade de vestígios cerâmicos com decoração plástica, e o que mais o difere dos
outros contextos da ilha, com pintura policrômica (Figura 1.7), até hoje pouco conhecida.
Com exceção do sítio Bacabal, todos os outros encontrados apresentaram vestígios europeus
associados aos sepultamentos em urna. Isso é um importante marcador cronológico da
ocupação dos Aruã na região, que, segundo o autor, dataria da mesma época do contato, em
torno de 150027. Tal associação entre artefatos indígenas tradicionais e vestígios materiais do
contato com os europeus, eram vistos principalmente nos acompanhamentos funerários, que
associavam objetos como machadinhos de pedra ou contas de cerâmica e jade, além de
artefatos cerâmicos como tigelas e as próprias urnas, à objetos de produção europeia como
machados e tesouras de ferro, contas de vidro, além de espelhos e louça.

26
“the pottery from Campo Redondo originates from the Aruans, however, that of the style typical of Marajó
cannot possibly be ascribed to them, as has been assumed up to now” (Nimuendaju 2004:66).
27
A presença de vestígios europeus forma encontrados em algumas urnas em quase todos os sítios, indicando
que os sítios podiam ser mais antigos, mas a ocupação ainda estava presente à época do contato.

56
Figura 1.9: Sítios Arqueológicos localizados na ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito

57
Juliana Salles Machado

O sítio Bacabal é o único sítio arqueológico onde não se encontraram vestígios de


objetos de origem europeia nos contextos funerários. Apesar disso, as características dos
vestígios cerâmicos assemelham-se às dos encontrados em contextos claramente marcados
pelo contato (Nimuendaju 2004). Para Nimuendaju, a pouca diferença técnica e estilística das
cerâmicas nas quais não foram encontrados vestígios de contato indica uma continuidade
entre essa e a ocupação pré-colonial. Em carta a Carlos Estevão de Oliveira, Nimuendaju
levanta a hipótese de esses sítios serem ainda mais antigos (Hartmann 2000). A meu ver, esta
possibilidade é reforçada pelas diferenças tecnológicas entre o conjunto de sítios a leste (ou
sudeste) e aqueles posteriormente retomados por Meggeres & Evans na porção sudoeste da
ilha, estes últimos mais claramente relacionados à época do contato.

Apesar das possíveis associações ambientais com a ilha de Marajó, Nimuendaju


descarta a possibilidade de vínculo entre elas antes do contato, refutando assim, a presença
comumente atribuída aos grupos Aruã na época do contato no norte da ilha de Marajó. Ele
prefere estabelecer uma relação alternativa entre os vestígios Aruã da ilha Caviana – atributos
antropomorfos nas urnas funerárias e padrões funerários como enterramentos superficiais ou o
não enterramento, dispondo-se as urnas diretamente sobre a superfície – e os da costa do
Amapá. Para o autor: “os Aruã não podem ter imigrado para suas ilhas de nenhum outro lugar
que não o norte do continente, e sua fuga dos portugueses, no século XVIII, para o norte, era
de fato um retorno a sua terra de origem” 28 (Nimuendaju 2004: 102).

Seguindo os passos de Nimuendaju, os arqueólogos Betty Meggers & Clifford Evans


(1996; 1957) voltaram a investigar as ilhas Caviana e Mexiana vinte e cinco anos depois,
entre 1948 e 1949 (ver Figura 1.9). Eles visavam abordar a região através de um panorama
histórico-cultural macrorregional por meio da incorporação dos vestígios arqueológicos
encontrados anteriormente por Nimuendaju nas categorias analíticas criadas por eles. Dessa
maneira Meggers & Evans (1996, 1957) inseriram a região num modelo difusionista que
propunha ondas migratórias desde o Caribe até a extremidade sul da região amazônica,
passando pela área da foz do Amazonas. Com este propósito, os autores retomaram as
escavações de Nimuendaju, como é o caso dos sítios C-9, C-4 e C-8 (ver Figura 1.9), além de
identificarem novas áreas ainda não escavadas anteriormente. Apesar das semelhanças da

28
“The Aruã may have immigrated to their islands from no place other than the northern mainland, and their
flight in the 18th century from the Portuguese towards the north was in fact a return to their old homeland”
(Nimuendaju 2004:102).

58
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

fauna e da flora entre as ilhas deltaicas do rio Amazonas, eles apontam Caviana como a única
unidade geográfica alvo de intervenções arqueológicas sistemáticas que sofreu grandes
mudanças ambientais desde a ocupação indígena. Estas seriam decorrentes da pororoca, que
em 1850 teria cortado o rio Guajuru e separado a ilha em duas partes independentes. Meggers
& Evans identificaram todos os vestígios encontrados por Nimuendaju como pertencentes à
chamada fase Aruã (Figura 1.8)29. Estabelecida a partir tanto do norte da ilha de Marajó
quanto do sul litoral do Amapá, a fase Aruã também foi encontrada nas ilhas Mexiana e
Caviana. Segundo Meggers & Evans (1957), esses contextos insulares representariam a maior
concentração dessa fase arqueológica. Também para estes autores, a presença de contas de
vidro e fragmentos de metal (M-5 – Mulatinho, Mexiana) de origem europeia marcam a
cronologia da ocupação da região nessa fase, para a qual não possuímos datações absolutas.

A definição da cerâmica da fase Aruã é dada pelos autores como:

[…] um único tipo de pote utilitário, na sua maioria sem decoração,


mas eventualmente apresentando impressões circulares ou apliques,
sem apresentar, no entanto, nenhuma subdivisão significativa dentre
esse tipo (Pirituba Plain). Tal tipo cerâmico representa de 99 a 100%

29
Na arqueologia as diferenças regionais, relativas a variações espaciais, temporais ou a características
decorativas de vestígios cerâmicos, eram expressas através de subcategorias, chamadas de fases. As fases
cerâmicas seriam manifestações regionais de Tradições arqueológicas mais amplas, que expressariam
particularidades relacionadas não apenas ao local de ocorrência, mas também à sua decoração e cronologia. A
definição de tais manifestações macro e micro regionais padroniza a nomenclatura utilizada por diversos
pesquisadores em uma grande variedade de contextos regionais, permitindo maior comparação entre diferentes
contextos arqueológicos. No entanto, a classificação de Tradições arqueológicas realizada no Brasil pelo
PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisa Arqueológica, coordenado pelo casal Meggers e Evans a partir da
década de 60 no Brasil), e mais especificamente na região amazônica (PRONAPABA – versão regional do
programa), a partir de um único atributo técnico ou decorativo torna tais definições bastante restritivas e, de certa
forma, deficientes. Meggers e Evans (1970) partiam da premissa que as chamadas Tradições cerâmicas eram um
“continuum em mudança”. No método de seriação adotado, como na biologia, os tipos cerâmicos eram tidos
como populações nas quais a maioria dos membros traria as características do todo, e apenas uma minoria fugiria
a essa regra. Tendo isso em mente, as orientações dadas aos grandes grupos culturais sob o termo tipo/variedade
eram de caráter genérico, supostamente permitindo variações internas. Já os complexos cerâmicos indicariam
tipos associados no espaço e no tempo. A associação de um determinado complexo cerâmico a outros grupos de
vestígios arqueológicos e a elementos sócio-políticos e religiosos consistia num complexo cultural ou fase
arqueológica. Em sua origem por volta da década de 1970, tais nomenclaturas eram livres de uma conotação
etnográfica. No entanto, posteriormente esses autores assim como seus seguidores passaram a utilizar as fases
como identidades separadas, enquanto as Tradições vieram a representar entidades étnicas ou lingüísticas.
(Machado 2005; Barreto 1998)

59
Juliana Salles Machado

dos fragmentos dos sítios. Não há uma tradição bem definida de


decoração nessa fase arqueológica. Escovados simples, incisões
grosseiras e a impressão de anéis no pescoço ou ombro das urnas são
algumas técnicas mais antigas utilizadas, sendo possível encontrar
pintura nas ocupações mais recentes. Apliques com roletes e esferas
são as ornamentações mais abundantes e particularmente frequentes
nos cemitérios. (Meggers & Evans 1957)

Esta descrição, bastante vaga e genérica, aponta a decoração como esporádica,


apresentando características consideradas mais funcionais, sendo os apliques e as impressões
circulares em grandes urnas funerárias raras variações desse tipo cerâmico. Para estes autores,
apesar da falta de profundidade dos artefatos arqueológicos no substrato dos sítios,
dificultando a percepção de variação cronológica, parece haver uma consistente melhora na
qualidade técnica dos artefatos, principalmente no que se refere ao tratamento de superfície
durante a sequência de ocupação da fase Aruã. Nos sítios mais antigos nas ilhas Mexiana,
Caviana e de Marajó, assim como no território do Amapá, a superfície é pouco alisada,
apresentando-se irregular e porosa. Já na sequência mais recente, atingindo maior número nos
sítios C-7 e C-6, mais fragmentos se apresentam igualmente alisados e simétricos, apesar
ainda se encontrarem fragmentos irregulares.

Segundo o modelo de Meggers e Evans (1957), o fato de a fase Aruã ser a primeira
ocupação do Amapá indica que os Aruã devem ter saído daí e migrado em direção às ilhas
Mexiana e Caviana e depois à de Marajó, e tal migração forneceria um controle cronológico
das características cerâmicas. Sentido migratório semelhante ao proposto por Nimuendaju e
atualmente debatido através do já citado modelo de diáspora arawak (Heckenberger 2005). Já
nas ilhas, a presença de bens europeus marcaria a data pós-colombiana dos sítios, podendo já
estarem no local antes do contato. A variação na densidade e variedade destes objetos pode
ser um indicador de uma ampla disponibilidade e a intensidade das atividades europeias na
área, no entanto tal análise quantitativa não foi realizada. O término dessa fase é atribuído à
conquista europeia e à colonização efetiva das ilhas. No entanto, segundo Meggers & Evans,
“depois da exploração inicial e esporádica do século XVI, no século XVII, com o
assentamento e as disputas pela soberania, a cultura aborígene começou a desaparecer [...].
Ainda em 1816, registraram-se 279 Aruã remanescentes no Rebordello, no extreme leste de

60
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Caviana, mas não se sabe quanto da cultura aborígene restava preservado. Em 1948, ‘os
índios’ já tinham se tornado pessoas lendárias do passado” (Meggers & Evans 1957: 554-
555).30 É interessante observar que Meggers & Evans se utilizam dos dados populacionais da
“Aldeia do Piyé”, no Rebordello, associando-a à grupos Aruã. No entanto, os dados utilizados
para definição da fase arqueológica com nome homônimo eram provenientes do contexto
centro-sul ou oeste da ilha, e apresentavam características muito distintas daquelas
encontradas neste sítio, conforme Nimuendaju já ressaltava. Segundo o próprio modelo
histórico-cultural, os vestígios pintados encontrado neste sítio seriam uma “variação”
atribuída a uma época mais recente da ocupação da ilha.

Contrastando com a primeira hipótese de Nimuendaju quanto a ausência de uma


ocupação mais antiga da ilha, Meggers & Evans esboçam, por fim, uma cronologia histórico-
cultural para a área:

OCUPAÇÃO ANTIGA
fase Mangueiras – Primeira produção cerâmica de Mexiana e
Caviana encontrada apenas em um sítio; fase preponderantemente
localizada na ilha de Marajó. A presença dessa fase nas ilhas Caviana
e Mexiana representaria uma breve e mal-sucedida expansão para
outra ilha.

OCUPAÇÃO INTERMEDIÁRIA
fase Acauan – Contemporânea à fase Mangueiras em Marajó (no seu
período antigo), apresenta sinais de troca entre as duas. Representaria
uma breve ocupação das ilhas.

OCUPAÇÃO TARDIA
fase Aruã – Última ocupação da ilhas Caviana, Mexiana e de Marajó,
tendo seu auge nas ilhas Caviana e Mexiana. Associações com objetos
europeus indicam uma cronologia recente, provavelmente relacionada
ao início do contato (1500 AD) até aproximadamente início do século
XIX.

30
“[…] after the initial, sporadic exploration and trading of the 16th century gave way to the 17th-century
settlement and disputes over sovereignty, the aboriginal culture began to disappear [...] As late as 1816, there are
reported to have been 279 Aruã remaining at Rebordello on the eastern tip of Caviana, but it is not known how
much of the aboriginal culture was still preserved. By 1948, ‘the Indians’ had become legendary people of the
past” (Meggers & Evans 1957: 554-555).

61
Juliana Salles Machado

As escavações realizadas por Meggers & Evans em 1948 e 1949 não revelaram
cerâmicas com decoração pintada, com a única exceção de um pote cerâmico (indicado como
uma “variação”). No entanto, sítios localizados anteriormente por Nimuendaju (Nimuendaju
2004; Hartmann 2000) no leste da ilha Caviana apresentaram muitos artefatos pintados em
sítios datados do pós-contato, como já mencionamos. Segundo Meggers & Evans sobre os
achados de Nimuendaju, isso pode ser resultado de uma crescente influência da fase Aristé,
do Amapá, sobre a ocupação local. A região que eles apontam como tendo tido possível
influência Aristé corresponde àquela anteriormente escavada por Nimuendaju nos sítios
Bacabal I e II e Rebordello, na porção sudeste da ilha Caviana. Diferentemente do proposto
por Meggers & Evans, que não chegaram a pesquisar nessa área, os vestígios arqueológicos
encontrados por Nimuendaju apresentam muita decoração pintada polícroma, com a presença
de urnas com motivos antropomorfos.

As peças coletadas por Nimuendaju ainda precisam ser melhor trabalhadas, mas a falta
de dados quantitativos sistemáticos ou de proveniência impede uma análise mais profunda do
contexto arqueológico como um todo dessa área. Os dados obtidos com o material disponível
indicam certa semelhança com a policromia Aristé, como já havia proposto Meggers. No
entanto, as formas de algumas urnas também apontam influências estilísticas da fase Maracá
do Amapá, assim como marajoaras, no preenchimento da decoração pintada. Só recentemente,
em 2008, foi encontrado um sítio arqueológico com peças semelhantes aquelas de Caviana, na
periferia da cidade de Macapá (comunicação pessoal). Apesar de ainda não estudados e
publicados, os vestígios vêm sendo classificados como pertencentes a uma “fase Caviana”,
segundo nomenclatura proposta por Rostain (2011) a partir da coleção de Nimuendaju. No
entanto, mais pesquisas são necessárias para melhor compreendermos a relação entre esses
contextos e sua cronologia absoluta bem como sua relação com as demais ocupações da ilha.

Vale lembrar, por outro lado, que uma das propostas não exploradas de Nimuendaju é
que os vestígios cerâmicos polícromos seriam oriundos de uma ocupação mais antiga da ilha,
e não mais recente, como querem Meggers & Evans (Hartmann 2000). Antigos ou recentes,
os sítios arqueológicos onde foram encontradas as cerâmicas chamadas Caviana ficam no
mesmo lugar onde teria estado a já mencionada “aldeia do Piyé” e, como viemos a saber em
campo, um teso bastante povoado até meados da década de 1990, quando o rio secou e seus
últimos moradores se mudaram para as margens da ilha (Figura 1.10).

62
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Dentre as discussões trazidas acima, apesar das discordâncias sobre as datas de


ocupação e sobre à qual cerâmica estariam vinculados os grupos Aruã atualmente extintos, há
um consenso sobre sua vinculação com grupos falantes do tronco linguístico Arawak. Isto se
deve em grande parte devido aos relatos históricos do contato com os grupos indígenas na
região deltaica. Há também um consenso de que a origem remota dos povos da ilha seria o
norte do continente do Amapá, assim como, que sua rota de fuga após o contato estaria ligada
ao seu local de origem. A associação entre tais esta população e os grupos indígenas
atualmente encontrados no norte do Amapá, não está clara, no entanto, a associação também é
feita de forma exploratória por Vidal (2007:13), falando sobre os povos indígenas do Uaçá,
norte do estado Amapá: “ainda nos séculos XVIII e XIX, pressionados entre a Guiana
Francesa e os portugueses ao sul, são transferidos e/ou desaparecem vários povos da região,
como os Aruã e os Marworno”.Tendo isto em vista, gostaria agora de retomar brevemente o
início desta discussão, quando falávamos da ocupação dos grupos arawak na região e de uma
possível associação entre os Palikur e a cerâmica arqueológica Aristé. Atualmente entre os
povos do Uaçá, se encontram os Palikur, os Karipuna, os Galibi-Marworno, e os Galibi do
Oiapoque. Dentre eles gostaria de chamar atenção para os Palikur, pertencentes ao tronco
linguistico Arawak e aos Karipuna, população heterogênea cuja origem das famílias parece
estar associada as regiões do salgado paraense e as ilhas da Amapá 31. A origem destes
últimos, é atribuída a associação de famílias “neobrasileiras” 32 (Vidal 2007) à população
predominantemente indígena do norte do Amapá. Segundo a autora (2007:35): “as famílias
que historicamente migraram para o Curipi, misturando-se com uma população na sua maioria
indígena, possuíam uma cultura que poderíamos caracterizar como amazônica, não muito
diferente da dos índios. Práticas xamânicas, medicina popular, crenças proveninentes de um
folclore de fundo indígena, faziam parte de seu universo. Tudo isso foi re-atualizado no
Curupi, devido a um contato maior com as etnias da região”. Apesar de pouco exploradas,
veremos ao longo desta pesquisa certas semelhanças entre a cosmologia ribeirinha encontrada
em Caviana e àquela encontrada principalmente entre os Palikur, mas também, em menor

31
O termo “ilhas do amapá” é usada por Vidal para se referir a região do sul do estado do amapá repleto de ilhas.
Este contexto é o mesmo da ilha Caviana, apesar desta última, assim como a ilha Mexiana, se encontrarem
oficialmente como parte do estado do Pará.
32
Segundo a descrição de Vidal (2007) sobre os neo-brasileiras, essa categoria é correspondente ao que estamos
chamando de “populações ribeirinhas” na Amazônia.

63
Figura 1.10: Vista do teso do Rebordello, com detalhe de urna funeraria e sítio arqueológico, 2006. Fotos:
Juliana Salles Machado.

64
Juliana Salles Machado

medida, aos Karipuna do norte do Amapá. Não estou propondo aqui uma continuidade entre
os dois grupos, já que para tanto seria necessário um aprofundamente das pesquisas sobre as
migrações, mitos, e dados históricos em geral de cada um dos grupos. No entanto, gostaria de
sugerir a hipótese de que o passado indígena arawak atribuído aos ribeirinhos de Caviana
possa estar ligado aos grupos atualmente residentes do Uaçá, especialmente os Palikur.

1.3 Sobre continuidades e reocupações

A reocupação de sítios arqueológicos é comum em diversos pontos do território


brasileiro (Machado 2009). Ela é inferida a partir da observação de continuidade ou não dos
vestígios na estratigrafia: uma disposição estratigráfica contínua é normalmente associada a
formas de contato direto entre diferentes momentos da ocupação do sítio; já a ausência de
vestígios entre camadas arqueológicas indicaria a falta desse contato. Na maior parte das
vezes, as pesquisas arqueológicas têm se dedicado à compreensão das formas de contato
direto entre duas ocupações. Essas formas podem ser as mais diversas – por exemplo, guerras,
trocas ou mudanças no repertório material decorrentes de modificações sociopolíticas e
divisão de aldeias, entre outros motivos. Pouca atenção se deu às reocupações que não
apresentam indícios de contato direto entre as camadas arqueológicas. Não obstante, trabalhos
como o de Bueno (2007) e Isnardis (2004) revelam uma intencionalidade na escolha de
lugares previamente habitados para a ocupação humana. Ao serem manejados, esses lugares
se tornariam referências de espaços culturalizados, independentemente da abundância de
recursos disponíveis em outros pontos no entorno. Em contextos arqueológicos antigos,
relacionados à primeira ocupação do Brasil Central, Bueno (2007) aponta a importância dos
processos de reocupação dos sítios arqueológicos, ressaltando as diferentes formas de
interação entre um período de ocupação e outro. Em um espaço rico em recursos naturais,
como a bacia do Lajeado, no estado do Tocantins, o autor mostra a busca intencional pela
ocupação dos mesmos lugares, ora relacionado a uma busca por artefatos líticos presentes nos
sítios mais antigos, ora pela localização estratégica dos locais. Bueno (2007) aponta também
locais onde nenhum dos fatores práticos é favorável a uma nova ocupação, tendo locais mais
propícios disponíveis, reforçando a idéia de que as razões das escolhas passam também por

65
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

questões culturais, sociais e simbólicas. Assim, Bueno (2007) propõe a indissociação entre
razões práticas e simbólicas na escolha do lugar de implantação (para mais literatura sobre o
tema ver Silva 2000; Ashmore & Knapp 1999; Crumley 1995; Deneven 2001; Dyke 2008;
Isnardis 2004; Zedeño 2008; Zedeño & Bowser 2009).

Em Caviana, apesar da ausência de datações das ocupações encontradas em diversos


sítios arqueológicos, com base nas escavações feitas anteriormente por Nimuendaju, Meggers
& Evans e pelas minhas próprias observações em campo, podemos apontar, pelo menos três
ocupações na área de pesquisa: uma mais antiga, na qual não encontramos vestígios do
contato, como miçangas, louças e vidros (concentrada na porção leste da ilha, como Bacabal e
Rebordello); uma intermediária, cujos objetos coloniais estão associados à cerâmicas
indígenas (na porção centro-sul da ilha) e a recente, relacionada a ocupação ribeirinha atual.
Em vários locais encontramos a presença dos três momentos de ocupação sobrepostos.
Enquanto parece haver uma continuidade direta entre o período pré-colonial e colonial em
alguns sítios, como indicado por Nimuendaju para o sítio Bacabal e Rebordello; não aparece
haver indícios de uma ocupação contínua entre o período colonial e a ocupação riberinha
atual33. Vale ressaltar que estamos falando de ocupação contínua, isto é, sem que haja um
abandono temporário do local. Sem escavações sistemáticas na área, podemos apenas apontar
tais descontinuidades pelo discurso e narrativas dos ribeirinhos (especialmente entre o
segundo e terceiro momento, já que não podemos inferir tal descontinuidade entre os
momentos 1 e 2), o que é reforçado pelo seu padrão de mobilidade atual. Seguindo a
discussão acima proposta por Bueno (2007), e os dados arqueológicos e etnográficos de
Caviana, acredito haver uma relação indireta entre as ocupações mais antigas com as mais
recentes nos mesmos lugares, sem que, no entanto, necessariamente os grupos humanos
tenham tido contato direto.

Proponho que repensemos por que, mesmo descontínuas, as reocupações são tão
frequentes em territórios tão vastos e ricos em recursos (Machado 2009). Sua presença pode
indicar uma escolha cultural e pode esclarecer as formas de interação entre as diferentes
ocupações, mesmo em registros descontínuos. Essa questão é particularmente importante para
33
Exceção feita novamente ao Rebordello, onde até 1998 ainda havia uma vila ribeirinha no teso, sem indícios
de abandono na ocupação daquele espaço.

66
Juliana Salles Machado

melhor compreendermos as razões da escolha dos lugares para ocupação e, portanto, os


próprios padrões de assentamento em diversos biomas brasileiros.

A ilha Caviana concentra muitas reocupações de sítios arqueológicos dos períodos


pré-colonial, colonial e pós-colonial. Este estudo entre comunidades ribeirinhas da ilha
indicou uma preferência por lugares previamente antropizados para construção de casas e
cemitérios, revelando uma continuidade no manejo de espécies vegetais e sua constante
resignificação. Assim, a antropização das paisagens parece ter sido um elemento importante
para essa continuidade, sendo ela própria um atrativo para a escolha dos locais de ocupação.

Como vimos, os dados arqueológicos disponíveis para essa região são escassos,
oriundos de pesquisas realizadas por Nimuendaju na década de 1920 (Nimuendaju 2004;
Hartmann 2000) e de Meggers & Evans na década de 1940 (Meggers & Evans 1957). No
entanto, apesar das poucas pesquisas na área, há 20 sítios arqueológicos cadastrados nos
arquivos do Iphan, além de outros que pude identificar na região (Figura 1.9).

Os sítios arqueológicos encontrados na ilha Caviana durante o levantamento não


interventivo que fiz em novembro de 2006 estão implantados na parte superior dos tesos.
Estes ficam nas partes altas e secas da ilha, protegidas das variações do nível de água dos rios
e igarapés, que atingem principalmente sua costa, mas também sua malha hidrográfica do
interior. Apesar da ausência de intervenções de subsuperfície, verificam-se nas áreas
amostradas duas formas diferentes de implantação: a) sítios superficiais ou pouco profundos,
relacionados à fragmentos cerâmicos decorados (decoração plástica) e não decorados
oriundos de potes de médio a pequeno porte, e b) sítios enterrados com profundidade média
de 50 cm, possivelmente relacionados ao enterramento de urnas funerárias e oferendas.

A presença de fragmentos cerâmicos em superfície em alguns dos sítios identificados


indica pequena profundidade da camada arqueológica, apesar de serem necessárias
intervenções de subsuperfície para verificar a possibilidade de esta camada se estender ou até
de ocupações anteriores mais profundas. Localizados perto das chamadas “estradas” –
aberturas na vegetação de mata dos tesos por onde os moradores têm acesso à diferentes
partes da ilha, desde sua costa até o interior – estes sítios apresentaram fragmentos cerâmicos
em superfície com tamanhos e formas variadas e dispersos por mais de 1 km de distância.

67
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

REGISTRO IPHAN CAVIANA – PA – 2006


CADASTRO SÍTIO DESCRIÇÃO REGISTRO
1 IPHAN
PA-CA-1 teso das Igaçabas [C-1] sítio cemitério Meggers e Evans
2 PA-CA-2 Rebordello sítio cemitério Meggers e Evans
3 PA-CA-3 Porto Real [C-3] – Meggers e Evans;
Nimuendaju
4 PA-CA-5 Moreira[C-5] leste do rio Pacajá Meggers e Evans
5 PA-CA-6 Croatasal [C-6] rio Pacajá Meggers e Evans
6 PA-CA-7 São Domingos [C-7] rio Pacajá Meggers e Evans
7 PA-CA-8 Pacajá [C-8] rio Pacajá Meggers e Evans;
Nimuendaju
8 PA-CA-9 Frei João [C-9] rio Apani Meggers e Evans
9 PA-CA-10 São Bento [C-10] rio Apani Meggers e Evans
10 PA-CA-11 vaquejada de São – Meggers e Evans
11 PA-CA-12 Sebastião[C-12]
Condino [C-11] 500m de PA-CA-11 Meggers e Evans
12 PA-CA-13 Alto Piratuba [C-13] Alto Piratuba, rio Meggers e Evans
13 PA-CA-14 Limãozinho [C-14] Piratuba,Limãozinho,
igarapé Goiabal Meggers e Evans
14 PA-CA-15 Patuá [C-15] –rio Piratuba Meggers e Evans
15 PA-CA-X Campo Redondo [C-X] rio Apani Meggers e Evans;
Nimuendaju
16 PA-CA-X Esperança [C-X] rio Paricá Meggers e Evans;
Nimuendaju
17 PA-CA-X Prainha [C-X] Rebordello Meggers e Evans;
Nimuendaju
18 PA-CA-X Pesqueiro [C-X] Bacabal 1, igarapé Meggers e Evans;
Pesqueiro Nimuendaju
19 PA-CA-X Bacabal [C-X] rio Pracutuba Meggers e Evans;
Nimuendaju
20 PA-CA-X teso dos Índios [C-X] rio Pacajá, rio Paricá Meggers e Evans

Tabela 1.1 – Sítios arqueológicos localizados na ilha Caviana cadastrados no Iphan até 2006

Apesar da necessidade de realizarem-se topografias detalhadas dos tesos, a


implantação dos sítios indica sua inserção nas partes mais altas destes, que na região assumem
formas alongadas, atingindo mais de 5 km de comprimento e aproximadamente 5 m de altura
em relação ao nível da água na estação seca.

Os fragmentos cerâmicos encontrados apresentam pouca movimentação horizontal,


uma vez que há fragmentos remontáveis próximos entre si. Também pudemos notar uma

68
Juliana Salles Machado

grande riqueza de formas, tamanhos e decorações entre eles, indicando tratar-se não apenas de
ocorrências isoladas, mas de um amplo repertório material, possivelmente associado a
contextos domésticos. Na coleta de informações orais entre os moradores desses lugares, não
obtive nenhuma notícia sobre a presença de urnas funerárias, embora os espaços sejam
recorrentemente associados à antigas ocupações da ilha, sendo apontados por alguns
informantes como antigas aldeias indígenas.

Já os sítios em que havia vestígios de subsuperfície, verificados a partir de escavações


anteriores feitas por saqueadores, têm configurações bastante diversas. Sua implantação é
também na parte alta dos tesos, mas diferente dos anteriores, nos seus fundos, isto é, em áreas
mais distantes da margem da ilha. Estes sítios estão abaixo de cemitérios históricos e atuais e
apresentam fragmentos cerâmicos grandes e médios, possivelmente oriundos de urnas
funerárias. Segundo os moradores locais ali foram encontrados sepultamentos humanos dentro
de grandes potes cerâmicos. A riqueza de formas chamou atenção não só dos moradores
locais, mas também de saqueadores vindos de Belém e da ilha de Marajó, que abriram ali
grandes trincheiras para retirar os potes. Podemos mapear os trechos impactados pelos
desníveis no terreno e pela dispersão de fragmentos cerâmicos no local. Devido à falta de
controle estratigráfico da implantação desses vestígios, decorrente do método não interventivo
adotado e da constante reocupação do local por enterramentos históricos e atuais, só uma
avaliação sistemática poderá indicar o grau de perturbação do contexto arqueológico. É
importante notar a localização desses dois tipos de sítio arqueológico: entre os sítios
pesquisados, os cemitérios estão sempre associados a um sítio-habitação, e distam apenas 2
km entre cada um, ambos implantados no mesmo teso, um próximo à margem e outro no seu
ponto mais distante.

Nos últimos dez anos, as áreas de ocupação persistente, isto é, com grande freqüência
de reocupações, estão sendo pouco habitadas em função da seca e do assoreamento dos
igarapés que permeavam a região. Gradualmente, os moradores estão se deslocando em
direção à costa, abandonando esses locais. Na seca, chega-se aos sítios à pé ou à cavalo,
partindo das margens para o interior da ilha. Na estação chuvosa, pode-se seguir o curso dos
antigos igarapés e atingir à beira dos tesos pelas áreas alagadas, em pequenas canoas.

De modo geral, há uma alta incidência de reocupações de sítios arqueológicos por


assentamentos históricos e contemporâneos. Lugares como o teso da Prainha, do Bacabal, do

69
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Rebordello, Taxipucu e João Brás são apenas alguns exemplos de reocupação contemporânea
ou de um passado recente de sítios arqueológicos datados de pelo menos os primeiros anos
antes do contato (séculos XVI e XVII). O sedimento é arenoso, apresentando variações entre
branco-bege e cinza, esta última normalmente associada aos sítios arqueológicos. Apesar
dessa diferença na coloração, não há ali indícios de aumento de sua fertilidade, como se
encontra em inúmeros sítios arqueológicos ao longo da calha do rio Amazonas, onde são
encontradas as “terras pretas” (Neves 2005; Neves et al 2003).

Além da recorrência das ocupações, as atividades de campo de 2006 revelaram uma


coincidência no que poderíamos chamar de função dos espaços habitados. Ou seja, o substrato
dos lugares atualmente habitados por ribeirinhos apresenta vestígios arqueológicos
aparentemente habitacionais. Independentemente das inúmeras variações possíveis na forma e
no tipo de sítio habitacional à que esses vestígios podem estar associados, eles fazem um
contraponto marcante com as cerâmicas associadas à contextos funerários. Os fragmentos e
urnas inteiras atualmente encontradas em superfície devido a ação de saqueadores, bem como
as informações orais de enterramentos e acompanhamentos funerários, nos levam a associá-
los à sítios-cemitérios. O padrão de assentamento destes sítios arqueológicos é marcado pela
ocupação diferencial do teso, enquanto os sítios-habitação estão implantados nas suas partes
mais altas e planas, à margem de igarapés e da ilha, no mesmo teso, mas em suas partes mais
recuadas em relação aos cursos d´água, encontramos os cemitérios. Além desse padrão,
observamos a coincidência de funções entre tais sítios antigos e as atividades históricas e
contemporâneas de uso dos mesmos espaços. Assim, em pelo menos quatro sítios
identificados por mim, as mesmas atividades foram realizadas desde tempos pré-coloniais até
o presente. Isto é surpreendente tendo em vista a descontinuidade histórica atribuída às
comunidades ribeirinhas e os grupos indígenas que habitaram a ilha, especialmente frente ao
impacto inicial da colonização europeia.

70
Juliana Salles Machado

1.4 A narrativa histórica dos filhos de Caviana

Depois dessas considerações sobre o passado pré-colonial e colonial da ilha Caviana,


trago aqui a visão do passado que me foi transmitida pelos ribeirinhos em narrativas locais.
Vejamos um exemplo contado por Teotônio do rio Pracutuba:

Em mais ou menos 1900 ainda tinha um cheiro de povoação e tinha


muitos moradores ali [no Rebordello] (...) eu não alcancei essas coisas,
mas quando me entendi eu já vi essas coisas, e aí, em qualquer parte
daquele teso que vocês passaram [referindo-se ao sítio arqueológico
Rebordello], em qualquer parte dali, a gente encontra essas coisas, prato
velho de granito e de olaria mesmo e encontra também as igaçabas
[urnas funerárias] grandes. Eles escolheram ali porque era o lugar mais
limpo, quer dizer já era uma campina bem ampliada, um campo como se
fosse esse campo aqui [Pracutuba].

Os índios fizeram morada mesmo nesse lugar Rebordello, Prainha e


nesse tal de Raó. Mais ou menos, isso meus pais nunca me disseram
positivamente, mais pelo que eu já pude perceber eu acredito por volta
de 1800 e mais alguns trocados esses índios ainda estiveram por aqui,
nesse lugar. Porque o que acabou mesmo com eles totalmente nessa ilha
foi os cabanos. Eles também bateram nessa terra, de maneira que desse
Raó que eu falei para vocês, que consta através dos meus antepassados,
eles tem grande riquezas e trastes de ouro, prata e alguns trocados.
Naquela época que os cabanos assaltavam as pessoas e topavam tudo o
que tinham e depois matavam e o pessoal de Caviana, todo mundo,
correu lá para o Raó, que era um lugar isolado e lá os cabano não
acertaram (...) mas eu suponho que eles retiraram-se para o lugar que
eles vieram, aqui da bahia aí de fora, eu não estou muito seguro desta
época.

71
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Quando eu me entendi, que eu estava assim com meus doze anos, mais
ou menos, aquilo era tudo cercado de acapulco e maçaranduba, tudo
estaqueado de acapulco e depois levantado os frechais de acapulco e
maçaranduba. Quando eu me entendi ainda havia aquilo ali. (Teotônio,
Pracutuba, Caviana, 2006)

Teotônio se referia ao teso do Rebordello que acima mencionamos através da “aldeia


do Piyé” referida por Pe. Antonio Vieira e depois revisitada por Nimuendaju e por mim.
Teotônio também foi morador do Rebordello e apenas na última década que se mudou dali
para a boca do rio Pracutuba. O Rebordello é um exemplo especialmente importante para a
idéia de uma ocupação persistente, se não contínua. Na hipótese de Nimuendaju, a cerâmica
arqueológica encontrada neste local, distinta da encontrada alhures, poderia estar associada à
ocupações mais antigas.Temos registro de uma ocupação indígena neste teso desde o início do
contato até o início do século XIX, e, menos de um século depois, Nimuendaju a documenta
ocupada por populações ribeirinhas.

Caviana guarda muitas histórias orais, cujos episódios estão gravados, principalmente,
na memória dos habitantes mais velhos da ilha e que ouvi pela primeira vez de Roberto e
depois, com mais detalhes, do próprio Adolfo. Caviana guarda histórias de seu passado, cujos
fragmentos são contados por diversos moradores. Esta tradição oral é transmitida por homens
e mulheres no cotidiano das casas, nas visitas à amigos e parentes. Enquanto às mulheres cabe
a manutenção deste conhecimento histórico através da repetição de seus termos,
nomenclaturas, músicas, gestos e principalmente da tecnologia; aos homens cabe a
transmissão de um discurso histórico, que é feito através da contação de histórias, repetidas
quando da visita à amigos e parentes. Pude acompanhar algumas visitas onde Adolfo, líder da
comunitário e bom orador, contou fragmentos das histórias de Caviana. Outra situação
importante para os contextos de transmissão desta meória coletiva, é nos encontros
comunitários, seja para uma missa, seja para um grupo de trabalho, quando homens se juntam
e discutem sobre a história de suas famílias e da ilha. A semelhança dos trechos narrados me
indica tratar-se de uma única narrativa compartilhada por todos. Durante minhas etapas de
campo tive a oportunidade de ouvir três versões mais completas da narrativa contadas por

72
Juliana Salles Machado

Roberto, do igarapé Taxipucu, Adolfo, do João Brás e Teotônio, morador de uma área mais
distante no oeste da ilha, no igarapé Pracutuba. Ao buscar mais versões dessa narrativa
histórica me deparei com um texto escrito que se encontrava guardado por Adolfo. As
histórias que eu ouvira de forma dispersa pelos moradores haviam sido compiladas e
registradas em papel compondo uma única narrativa por um comerciante da ilha de Marajó,
Alcindo Abdom (Anexo 1). Trata-se de um híbrido de histórias contadas oralmente e
referenciais locais mobilizados para consolidar uma narrativa, que veio a se tornar, de certa
forma, a versão ‘oficial’ da história de Caviana. Os temas abordados nessa história são amor e
brigas, assim como paz, guerra e prosperidade. A narrativa começa no contato entre os índios
chamados de Cavianos34 e os portugueses, período considerado de imensa prosperidade e
alegria. Segue-se um período de guerra, quando uma tentativa de invasão francesa é contida
pela união dos índios aos colonos portugueses. Apesar da vitória dessa aliança, a relação entre
os índios e os portugueses se deteriora, devido às pressões do governo de Belém, que
começava a nomear novos governantes para a ilha. Essas desavenças culminaram numa
última guerra, deflagrada pelo amor proibido entre uma índia e um médico, filho de um
colono português. Muitos índios então teriam morrido ou fugido, e os que restaram teriam
ficado como trabalhadores das terras que se tornaram portugueses.

A narrativa romanceada de Alcindo Abdom é conhecida em parte pelos moradores,


que repetem principalmente uma música que canta o romance proibido. Ao escrevê-la,
Abdom insere exaltações à fauna e à flora da ilha, integrando a paisagem à sequência da
narrativa. O conhecimento da flora e da fauna local é um saber compartilhado por todos os
“filhos de Caviana”, sua utilização na narrativa, gera, portanto, um fator de cumplicidade com
os leitores conhecedores da ilha.

Apresento alguns trechos da narrativa abaixo:

34
Não há uma padronização dessa nomenclatura, que pode variar entre Cavianos e Caviana. Também não
encontrei registros históricos que apontem para essa nomenclatura. Segundo relatos dos cronistas mencionados
anteriormente, à época do contato a ilha Caviana era ocupada por índios Aruãs. No entanto, as narrativas orais de
Caviana reforçam que esses grupos eram distintos. Como vimos, os dados de Nimuendaju, também apontam
para essa direção, isto é, as diferenças entre os vestígios cerâmicos encontrados na duas partes da ilha
pesquisadas indicam que havia pelos menos dois grupos distintos e a presença de contas de vidro evidencia essa
cronologia da época do contato. No entanto, mais pesquisas são necessárias para averiguarmos tal hipótese.

73
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Caviana35

[...] Essa ilha era habitada pelos índios Caviana, que pela suas aparências
deveriam descender do povo Espanhol dado a cor de seus cabelos e suas peles,
esses viviam de caça e pesca;
Até que pelos anos de 1796 chegou em uma das enseadas dessas ilha, um
português chamada Pedro Corrêa de Brito, enseada essa de Porto Manso,
tendo em frentes três pequenas ilhas, que dado as tidas terem grande
quantidade de aves, da qual a maior quantidade eram chamadas marrecas,
logo apelidada de ilhas das Marrecas. Pedro era um português de estatura
média, porém forte e de uma vontade imensa de se tornar senhor possuidor de
uma imensidão de terras.
Assim ao chegar nessa ilha tratou de fazer amizades com os índios Cavianos36;
e tendo se feito acompanhar de seu primo Isidoro Carvalho de Brito e da sua
mulher e seus filhos e outro português chamado Venceslau Firmo Figueiredo,
cada um dos componentes levando seus escravos em média seis para cada um,
esses eram para todos os serviços, inclusive remeiros do pequeno barco com
capacidade para 10 toneladas de peso, quando não tinha vento para arrastar o
barco, os escravos serviam de seus remos denominados Paia, para continuar a
viagem, assim foram fixadas as residências dos três primeiros aventureiros
que abordaram a rica ilha e denominado o local domo São Pedro. Os barracos
foram construídos com a própria madeira existente na ilha. Essas madeiras
chamadas Anoirá e Pau Mulato:
Pedro com as amizades feitas com os indígenas dando presentes de lenço de
cor encarnado, miçangas e outras bijuterias sendo para os mais graduados
como sejam o Tuxana37 denominado Batú e curandeiro Touro Preto. Foi
presenteado com duas facas de fabricação inglesa e para a índia Jandira, essa
de cabelos ruivos e olhos esverdeados a mais bonita da tribo foi lhe dado por
Pedro, vestidos encarnados, brincos e sandálias e meses depois, após a
chegada dos aventureiros se tornou companheira de Pedro.
E assim Pedro foi buscando em Belém do Pará outros colonos que se
submetiam a Pedro nos trabalhos de colonização, em outras viagens para
Belém do Pará, através dos estreitos de Breves eram levados para ilhas, gado
Vacum Cavalares, caprinos, porcos e aves domésticas, que distribuíam com os
colonos, ficando o senhor Pedro com os direitos de vender os animais já
produzidos e para corte;

35
A versão apresentada da narrativa Caviana consiste em um recorte de trechos do documento original, que
apresento na íntegra no Anexo 1.
36
Conforme mencionaie anteriormente, não há uma padronização nessa nomenclatura, em campo ouvi dizerem
índios Caviana, assim como índios Cavianos.
37
No texto original está escrito “tuxana”, no entanto nas versões orais o termo que ouvi era “tuxaua”.

74
Juliana Salles Machado

Que no valor da venda eram feitos beneficiamentos da comunidade do qual os


indígenas trabalhavam duro para o senhor Pedro, dado Jandira já se achar
com um bebê nos braços, filho de Pedro: Assim a ilha foi sendo povoada por
mais colonos portugueses e escravos;
Pois achavam que descobriram um paraíso banhado de águas doces. Essa ilha
além de ser fértil possuía uma imensidão de animais de espécie como sejam:
capivara, veado, porco do mato, animais de casco e Peixe-Boi, pirarucu, aves
de muitas espécies e verdes campos apropriado para a criação de animais
domésticos, e parte Norte da ilha era impressionante a quantidade de jacarés,
esse nome dado pela gíria indígena e por nós crocodilo. As suas carnes e ovos
eram apreciados pelos indígenas.

Assim se tornando um paraíso tanto para os primitivos como para os colonos,


que viviam no entrosamento de trabalho e amizades tanto assim que a esposa e
filhas de Isidoro que eram de formação católica, se tornaram professores no
ensinamento de religião católica ao povo indígena e Pedro ergueu uma grande
cruz e construiu um templo de orações a onde se reuniam colonos e indígenas
aos domingos para prestarem cultos as coisa divinas, e assim continuavam a
paz e tranqüilidade entre índios e colonos que foram se casando e moda índia,
filhos de colonos com filhas de indígenas, foi se tornando populosa;
[...]
Essa tranqüilidade foi quebrada uma certa manhã ensolarada/ com a chegada
de uma caravela que erguia uma bandeira de nacionalidade Francesa
tripulada por homens armados de facões, espadas e garruchas carregadas
pela boca;
Desembarcando uma parte da tripulação, fizeram ciente Pedro Correa de
Brito através de um homem falando português que iria ocupar a ilha,
hasteando uma bandeira francesa.
Pedro meditando alguns minutos respondeu ao tal homem que ia conversar
com os colegas colonos e o tuxana dos índios Cavianos, assim titulados para
que não houvesse grandes lutas, e no dia seguinte iria a borda levar a resposta
das conversações para o comandante da nave;
que com desconfiança o chefe e os marujos aceitaram a proposta porque
Pedro com a maior habilidade tratou os marujos oferecendo queijo, pássaros
denominados jaburus, que tem uma carne saborosa, para os mesmos
banquetearam a borda.
E Pedro entrou logo em conversação com o seu sogro o tuxana Batú e o
curandeiro Touro Preto, combinado como seus guerreiros e os colonos
receberiam os marujos em terra no dia seguinte, teriam a vantagem da
surpresa para o combate.
Pedro mandaria uma igarité convidando para o desembarque, assim foi no dia
seguinte mandando para a bordo a igarité levar o convite que foi aceito pelo

75
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

comandante. Esse como medida de precaução mandou seu subcomandante e


uma parte da tripulação dar o desembarque,
que ao chegar em terra foram logo desarmados, os que sobraram com vida
foram aprisionados, e suas armas serviram para armar mais voluntários que
avisados foram chegando das fazendas Tachipurú, Monte Alegre e Piranhas
formando um bastante pelotão de combate.
Tendo um índio, filho de Tuxaua que pretendia substituir seu pai procurou o
chefe Pedro expondo seu plano para Pedro:
Pretendia nadar até aonde se achava ancorado o Galeão, e com sua faca
amolada que fora presenteada pelo próprio Pedro. Abriria um rombo na
embarcação e cortaria a amarra da mesma, deixando a mercê das
correntezas;
que na noite anterior tinha ido observar que certa hora todos a bordo se
achavam dormindo, ai colocava seu plano em ação, não tinha falado ainda ao
grande chefe Pedro, com receio de que Pedro se contrariasse.
Porém como Pedro tinha receio por ter o número inferior de combatentes para
a defesa, e como tinha sido ferido meditou porque não gostava desse tipo de
defesa, gostava do combate limpo e leal, mas se achava gravemente ferido
concordou;
Pois logo dois meses após o acontecido veio a falecer, não tendo o curandeiro
Touro Preto e nem um prático em enfermagem, o português Joaquim
Albuquerque da Silva conseguido salvá-lo a noite;
Batú filho esperou que tudo se achasse em silêncio fazendo de uma tora de
aminja bóia salva-vida, nadou para o Galeão que achava-se ancorado entre a
ilha Caviana e as três ilhas denominadas Marrecas.
Batú filho, chegando logo ao Galeão esperou cerca de uma hora até constatar
que a tripulação se achava dormindo, começou a operação mergulho. E
trabalhando com sua faca conseguiu dentro de uma hora abrir um buraco de
25 cm de comprimento por 10 cm de largura, junto a Carkinga do Galeão;
Pois essa região seria impossível ser ouvido o maruja das águas, assim
descobrindo a operação pois só foi apropriada pela embarcação pois as
madeiras que hoje constrói-se embarcação chamam-se Piquiá, Itaúba, Acapú,
seria inteiramente impossível esse tipo de trabalho, ou pelo mesmo muito
demorado para ser feito com uma faca.
Batu em seguida cortou a amarra de piçaba do Galeão nadando com muito
cuidado em silenciosamente de volta para a ilha;

76
Juliana Salles Machado

amanhecendo dormindo no celeiro do seu cunhado Pedro Corrêa de Brito, e


pela manhã verificaram que a caravela não estava mais ancorada no local que
anteriormente se achava.
Pedro mandando uma igarité a remo espionar onde se achava o Galeão que
foi visto afundando longe no meio do canal entre a ilha Caviana e uma praia
que hoje denominada Camaleões;
para o bem estar dos colonos e indígenas, houve uma pequena tempestade que
se calcula que a tripulação querendo salvar-se nas balieiras pereceram
afogados antes de chegar na praia pelas grandes ondas que se fizeram com a
tempestade;
[...]
[Pedro] Por ser médico e ainda casando-se com a índia Caviana chamada
Piaçoca aonde tiveram uma filha chamada Arlete nome esse francês que
apelidada Aracari, nome esse indígena.
Essa apaixonou-se pelo filho de Isidoro Carvalho de Brito;
Essa união não aceita pelos familiares de ambas as partes, de onde começou
um conflito entre as duas partes dividindo os indígenas em duas forças, e
começando uma luta de mortes;
Porém saindo vencedor, Isidoro Brito, que também contava com a força dos
colonos;
Porém essa luta quase que extermina com a tribo dos Cavianos ou melhor, os
pacatos índios Cavianos que esses por volta de 1925 ainda tinha os lavradores
descendentes de uma índia de nome Sussuarana e de Isidoro Brito;
Dizem os antigos que essa indígena tornou-se uma lenda naquela ilha, que nas
noites de lua cheia aonde era a fazenda Monte Alegre, aparece uma índia com
a voz de tenora cantando uma canção em língua indígena e em português,
sendo acompanhada de tambores rufenios;
Tanto que um caboclo Sérgio que morreu em 1930 contando 104 anos de
idade, contava que quando tinha 20 anos de nascido, ia todas as sextas-feiras
para as proximidades da antiga fazenda Monte Alegre ouvir as ditas canções
aonde Sérgio aprendeu um trecho da canção que era cantada em português:

I
As horas mortas da noite
A lua brilha no mar,
As ondas beijando as praias,
Dormes no lindo luar.

II
Sei que de mim não te lembras,

77
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Quando daqui te ausentares,


Meu coração se apaixona,
Quando partir e me deixar.

[...]
Ondas essas denominadas Pororoca que cerca de meia hora antes delas
surgirem, há uma espécie de cântico que se misturam, os cânticos das
saracuras aritauã que embreasse os caboclos residentes na redondeza e
quando passam as ondas deixam um marujar sonoro parecendo assim irem
com saudades distanciar-se da ilha;
Que ainda é conhecida como reserva ecológica, porque ainda existem uma
grande quantidade de animais peixes denominados Peixe-Boi, Pirarucú,
Tucunaré em grande quantidades nos igarapés denominados Papajá, Taxipurú
e lagos denominados escarpados. Tuiuiú, Massarico, Pocotó e seus campos
verdes perfumados por flores de Carobeiras, Ingá Xixica e pelas cores dos
pássaros denominados Jaburús, Colheira, Guará Tuiuiu como já falamos das
quantidades e espécies de jacarés como seja Jacaré Açu, Tinga, Uma Corôa
que essa espécie de Corôa foi denominado pelos colonos por serem rajadas de
preto e branco sendo o Tinga é de cor amarelo claro e a carne e seus ovos são
prediletos dos indígenas.

[...]
E por falar em indígena, o autor deste livro conheceu um casal denominado
Manoel Gomes e Efigênia, falecidos em 1940, ambos descendentes dos índios
Cavianos;
Ele faleceu com cerca de 110 anos e ela com cerca de 95 anos;
Contavam que quando se uniram, viveram de pesca e agricultura e na certa
noite de lua, estavam pescando na sua igarité, e viram quando os
remanescentes dos índios Cavianos saíram em suas pirogas a remo;
Piroga nome da embarcação fabricada pelos índios;
E pela conversação dos índios Cavianos que ela falava sobre os mesmos iam a
procura de novas terras, onde pudessem viver tranqüilos, sem a intercessão do
homem branco, os índios sabiam haver na terra geral lugares aonde poderiam
estabelecer-se e na cabeceira do Calçoene
[...]
(Alcindo Abdom, s/d)

78
Juliana Salles Machado

Esta narrativa vem do diálogo entre os ribeirinhos de Caviana e um comerciante da


ilha Chaves, pequena cidade que, apesar de ser a sede do município à que pertence Caviana, é
antes uma vila, que fica ao norte da ilha de Marajó. O contato entre as localidades é feito por
barcos de médio porte, conduzidos por alguns homens, em geral comerciantes, marreteiros e
pescadores. O avô de Adolfo, Augusto Firmo Figueiredo, descendente de um dos primeiros
colonos da ilha Caviana, era um homem muito influente em sua terra, não por ser rico, mas
por sua capacidade de reunir pessoas em torno de si. Firmo Figueiredo fez amizade com um
comerciante de Chaves, Alexandre Abdom, com quem dividia durante horas seguidas as
histórias que seus antepassados contavam sobre Caviana. A narrativa aqui apresentada é
resultado desse encontro. Foi escrita por Alcindo Abdom, filho de Alexandre, que ouvira de
seu pai as histórias da ilha Caviana que haviam sido narradas por Firmo. Nascido em Caviana,
Alcindo era herdeiro da profissão de comerciante e dos clientes do pai e também da memória
que agora fazia parte seu próprio acervo de lembranças. Em resumo, a narrativa Caviana é
obra de um comerciante morador de Chaves e que faz de Caviana sua vida. Levava
mercadorias da cidade para vender lá e de lá trazia o produto do trabalho dos ribeirinhos –
frutas, castanhas, peixes, porcos e galinhas – e muitas memórias.

Alcindo formou um novo elo com a família Figueiredo, agora na figura de Adolfo,
para relembrar as histórias que marcaram o contorno da ilha e imortalizá-las em folhas de
papel. Se não temos ao certo a data em que a narrativa foi escrita, sabemos que o autor nasceu
em 18 de agosto de 1918 e faleceu no final da década de 1990. Sabemos também que é a
compilação de histórias contadas por pelo menos três gerações e cinco homens (Augusto
Firmo Figueiredo, seus filhos Camilo Correia de Figueiredo e Adolfo Figueiredo, e Alexandre
e Alcindo Abdom). A julgar pelos fragmentos que ouvi aqui e acolá durante minha estadia em
Caviana, são mais que memórias individuais, constituindo uma memória coletiva de pelo
menos parte dos moradores da ilha. De maneira circular, as narrativas orais foram
transformadas em texto por Abdom, e este serviu para gerar novos fragmentos orais. Sabemos
ainda, pelo conteúdo do texto, que foi escrito depois de 1945, quando o casal de arqueólogos
estadunidenses, referidos nos texto (ver Anexo 1), esteve em Caviana.

Perguntado sobre o passado da ilha, Adolfo conta sobre a origem dos portugueses no
local, trazendo nomes e sobrenomes ainda familiares aos atuais moradores. Segundo ele
alguns portugueses e brasileiros vieram à Caviana para plantar, criar e trabalhar, lá fizeram

79
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

suas moradias e se juntaram aos índios. Posteriormente à chegada dos colonos, eles teriam
dividido a ilha em quatro partes, uma para cada “capitão” que veio defender a ilha dos
franceses. De acordo com Adolfo, são eles: Augusto Firmo Figueiredo; Afonso Gomes da
Costa; Manuel Furtado; e Manuel Correia. Seguindo de leste para oeste, as terras da ilha
teriam sido distribuídas da seguinte maneira: Augusto Firmo Figueiredo teria ficado com a
terra do Pacajá ao Rebordello; do Pacajá até São João era de Manuel Correia; de São João até
Taxipucu de Afonos Gomes da Costa; e do Taxipucu até Guajuru de Manuel Furtado.

Trago abaixo trechos que se referem aos primeiros colonizadores da ilha e gostaria de
chamar especial atenção a última parte do trecho, onde o autor faz referência ao loteamento da
ilha Caviana entre os colonos já residentes, mesmos nomes e divisões que nos foram
mencionados anteriormente por Adolfo.

[...] Até que pelos anos de 1796 chegou em uma das enseadas dessas ilha,
um português chamada Pedro Corrêa de Brito, enseada essa de Porto
Manso, tendo em frentes três pequenas ilhas, que dado as tidas terem
grande quantidade de aves, da qual a maior quantidade eram chamadas
marrecas, logo apelidada de ilhas das Marrecas. Pedro era um português
de estatura média, porém forte e de uma vontade imensa de se tornar
senhor possuidor de uma imensidão de terras.

Assim ao chegar nessa ilha tratou de fazer amizades com os índios


Cavianos; e tendo se feito acompanhar de seu primo Isidora Carvalho de
Brito e da sua mulher e seus filhos e outro português chamado Venceslau
Firmo Figueiredo, cada um dos componentes levando seus escravos em
média seis para cada um, esses eram para todos os serviços, inclusive
remeiros do pequeno barco com capacidade para 10 toneladas de peso,
quando não tinha vento para arrastar o barco, os escravos serviam de
seus remos denominados Paia, para continuar a viagem, assim foram
fixadas as residências dos três primeiros aventureiros que abordaram a
rica ilha e denominado o local domo São Pedro. [...] através do
intendente de Chaves que pedia anexação da ilha Caviana como distrito

80
Juliana Salles Machado

de Chaves e com o falecimento de Pedro Correa de Brito o Governador


de Belém do Pará [...] querendo agraciar o moço recém-chegado de
Portugal, descendente da nobreza portuguesa, Afonso Gomes da Costa,
pois o mandou como senhor dono da ilha, como juiz e representante do
Governo, com carta branca para fazer e desfazer. Esse feudal era
possuidor de uma soma elevada de valores e conseguindo uma leva de
escravos dirigiu-se para a ilha, tomou posse e construiu uma bela
residência chamada Vera Cruz; Iniciou uma espécie de reinado, e como
era um homem de princípios religiosos era um bom homem, honesto e um
bom condutor, que cuidou logo de criar meios de alfabetizar nem só os
filhos dos colonos, dos escravos e dos indígenas. Assim foi se povoando
mais sua ilha, que trazendo mais colonos de origem portuguesa que se
chamavam Diogo Pinto de Sousa, João Alberto Furtado, Augusto Sérgio
de Oliveira Brito, João Corrêa. E assim viviam em clima de paz e
tranqüilidade.

[...] Até que um dia o destino quis proteger essa gente, pois Capistrano
foi morto por filho e sobrinho de fazendeiro que tinham sido mortos,
passando as fazendas para Capistrano, até que fora morto. Assim
voltando a paz na vila de Chaves e com bons entrosamentos entre o novo
intendente de Chaves o Sr. Antonio Goia de Delcarme e Afonso Gomes da
Costa, as duas localidade progrediram; tanto que chegou ao ponto de
Afonso Gomes da Costa resolveu lotear a ilha entre os colonos; dando a
Venceslau Figueiredo, a parte do nascente da ilha compreendendo do
Igarapé Piranha, nome esse dado pelos indígenas até o igarapé Pacutuba
[Pracutuba], nome esse também indígena; e para Sérgio Augusto de
Oliveira Brito, a parte norte da ilha compreendido do furo do Guajuru
rodando até a ponta do Espírito Santo, nome esse denominado por
Afonso Gomes da Costa, aonde existe um igarapé por nome Carmo,
aonde Sérgio localizou sua residência; dando ainda para João Alberto
Furtado a parte da ponta de Rio Ubussutuba [Ubuçutuba], nome esse
indígena, até o igarapé faxipucú [Taxipucu]; dando ainda para Isidoro
de Brito da margem direta de que sobre o igarapé faxipucú [Taxipucu],

81
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

até o lugar denominado por ele Afonso Gomes da Costa, até o lugar
Monte Alegre; essas doações foram feitas para que evitasse de os
vendedores ambulantes que começaram a introduzir na ilha, vindo
embarcações a vela que eram tripuladas por escravos que serviam de
remeiros para quando faltava vento, assim seria difícil os invasores
ambulantes negociarem com bebidas alcoólicas para com os indígenas e
escravos.

(Alcindo Abdom, S/D)

Os nomes das famílias dos colonos ainda estão presentes entre os riberinhos de
Caviana hoje. Se compararmos a localização dos lotes oferecidos a cada família, com a
disposição das famílias atualmente, vemos que esse padrão de distribuição ainda é
perceptível, mesmo com a introdução de novos agentes na ilha e com os casamentos entre as
famílias. Os dados relativos as famílias e seus locais de moradia podem ser obtidos na tabela
do Anexo 8. Em alguns casos, como para a família Figueredo, consegui traçar a genealogia de
meus interlocutores até os primeiros colonos que chegaram à ilha (ver Anexo 9).

Uma fala recorrente entre os ribeirinhos com quem conversei é a mudança dos tempos.
A passagem do tradicional para o moderno é um tema recorrente na literatura de
comunidades. A recorrência do tema é acompanhada de um sentimento generalizado de
melancolia, de perda do passado e incerteza no futuro. Esse discurso, em Caviana, é tanto dos
mais velhos quanto dos jovens, mas, entre aqueles, é mais explícito e intenso. Talvez tenha
sido esse sentimento que levou Alcindo Abdom a escrever a narrativa. Temendo o futuro
incerto, registrou suas memórias para eternizar um passado que parecia cada vez mais distante
e incompreensível para o novo mundo. Não faço aqui uma análise detalhada do conteúdo da
narrativa a partir da estrutura formal do texto, mas esboço algumas ideias acerca da escolha
dos termos na composição da narrativa e de suas implicações para os significados
transmitidos ao longo dela.

Os personagens históricos de “Caviana”, as datas mencionadas e algumas observações


sobre a natureza que são destacadas e repetidas pelo autor podem ser entendidos como

82
Juliana Salles Machado

indicadores de memória, reminiscências do caráter oral da narrativa. Assim, os elementos


recorrentes seriam como palavras-chave, em dois sentidos – como referências locais, que
remetem o ouvinte à referentes pessoais conhecidos (paisagens, parentes, amigos e uma
variedade de bichos e situações familiares aos ilhéus), e como fórmulas mnemônicas para o
narrador, que garantem a unidade narrativa do discurso e permitem identificá-lo como
coletivo.

A narrativa histórica “Caviana” está vinculado a uma performance oral que tem um
espaço marcado na vida dos moradores de Caviana. A “Caviana” de Alcindo Abdom
imortaliza versões individuais da história da ilha. As narrativas são contadas de um para outro
a partir de uma performance específica, no seu próprio tempo e do seu próprio jeito. A
narrativa Caviana traz novamente o contraste recorrente entre um passado glorioso e um
presente deteriorado, tema que é encontrado nas narrativas ameríndias e nos estudos de
comunidades camponesas em geral. No entanto, conserva seus próprios personagens, seus
atos gloriosos e sua sequência narrativa.

Assim, a narrativa “Caviana” é o resultado de uma ou várias versões de narrativas


históricas orais (ver em Anexo 1: Macro-Bloco 1: passado) de domínio coletivo que foi
consolidado e emoldurado por experiências pessoais (ver em Anexo 1: Macro-Bloco 2:
presente). Seu caráter prosaico e fluente é a provável razão das poucas pausas. O tom poético
final, fruto da consolidação da(s) narrativa(s) histórica(s) inicial, reflete o hibridismo oral-
escrito, prosaico-poético da experiência pessoal do próprio autor, longe dos templos da
escrita, imerso no cotidiano “caboclo” de que fala.

1.5 Tempo e transformação

Espero, ao longo deste capítulo, ter logrado traduzir o dinamismo histórico da


trajetória de Caviana, de suas paisagens e de seus habitantes. Não se trata aqui de construir
uma história de ocupação contínua da ilha, mas de enfatizar a diversidade de formas de
ocupação e percepções dessas transformações. Trata-se de ver que as concepções do presente,
as memórias que constroem sua identidade, estão necessariamente imbricadas na sua relação

83
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

com o passado. Um passado que é constituído não de pessoas e lugares, mas da relação entre
eles, como mostram tanto os inúmeros casos de reocupação dos mesmos lugares quanto a
narrativa local, cujos índices de memória são as toponímias, marcadores dessa relação. Entre
estes marcadores temos os nomes de locais como “Porto Manso”, “Ilha das Marrecas”, “São
Pedro”, “Monte Alegre”, “Piranhas” e “Tachipurú” (atualmente conhecido como Taxipucu) –
todos ainda reconhecíveis entre os moradores da ilha. Também a referência aos nomes de
famílias tradicionais de Caviana, como os Figueiredo e os Correa de Brito, trazem referências
de parentesco importante. Já entre os animais temos inúmeros exemplos entre os peixes
(como o pirarucu e o peixe-boi), a caça (como veados, capivara, porco do mato e jacaré) e os
passáros (como tuiuiú, massarico e pocotó), bem como de referências de árvores importantes
para os ribeirinhos como fonte de recursos (como Anoirá, Pau Mulato, Piquiá e Itaúba).

Nos próximos capítulos, trataremos do presente dos ribeirinhos, de seu ritmo e modo
de vida, das mulheres e de suas plantas e da relação dos humanos com os outros, encantados e
não-humanos. Veremos, no entanto, que esse presente revela muito do passado e que ser
“filho de Caviana” implica um aspecto diacrônico de pertencimento a um lugar e, ao mesmo
tempo, a um grupo de pessoas. A importância social e pessoal da relação entre pessoas e
lugares é citada por Tilley (1994: 15, grifo nosso), quando o autor trata do que chama de topo
análise; ou seja, “é aquela que explora a criação de identidades pessoais (self-identity) através
do lugar. A experiência geográfica começa nos lugares, alcança os outros através dos espaços
e cria paisagens ou regiões para a existência humana” 38. É a idéia de emplacement, ou estar
no lugar, que pode ser entendida também como o lugar de estar e ser; que não dissocia
espaço, passado e presente, mas é sua síntese, numa constante reconstrução e ressignificação
desses agentes sociais. A idéia de lugar (place) é fundamental para entendermos o contexto de
Caviana e a relação das mulheres com as plantas. Assim, encerramos esse capítulo com uma
(de muitas possíveis) definição de lugar, o qual usaremos daqui em diante.

“nós entendemos como lugar a experiência de um local particular com


alguma medida de ancoramento (apesar de instável), um senso de

38
“personal and cultural identity is bound up with place; a topoanalysis is one exploring the creation of self-
identity through place. Geographical experience begins in places, reaches out to others through spaces, and
creates landscapes or regions for human existence” (Tilley 1994: 15)

84
Juliana Salles Machado

fronteiras (apesar de permeáveis), e conexão com a vida cotidiana,


mesmo que sua identidade seja construída, atravessada pelo poder e
nunca fixa”.39 (Escobar 2001: 143)

39
“we understand by place the experience of a particular location with some measure of groundedness (however,
unstable), sense of boundaries (however, permeable), and connection to everyday life, even if its identity is
constructed, traversed by power, and never fixed”. (Escobar 2001: 143)

85
Capítulo 2
Figura abertura capítulo 2: o pôr do sol no trapiche do João Brás. Foto: Juliana Salles Machado

86
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

2
“QUANDO ME ENTENDI”:
A GENTE DE CAVIANA

E eu lá quero ir para um lugar que eu nunca vi, não


sei nem como ele é e nem onde fica?
Tereza Figueiredo, Caviana

uando me entendi” é uma expressão comum em Caviana, e se


refere ao momento da vida em que uma pessoa se torna capaz de entender sua inserção na
família e na vida social, de lembrar e produzir memórias próprias. Recortei um trecho da fala
de Teotônio citada no capítulo anterior, no qual a expressão é repetida várias vezes, para que
tenhamos um exemplo de seu significado:

Eu não alcancei essas coisas, mas quando eu me entendi eu já vi essas


coisas (...) isso meus pais nunca me disseram positivamente, mais pelo
que eu já pude perceber eu acredito por volta de 1800 e mais alguns
trocados esses índios ainda estiveram por aqui, nesse lugar. (...)

Quando eu me entendi, que eu estava assim com meus doze anos, mais
ou menos, aquilo era tudo cercado de acapulco e maçaranduba, (...)
Quando eu me entendi ainda havia aquilo ali. (Teotônio, Pracutuba,
Caviana, 2006)

87
Juliana Salles Machado

O trecho é bastante significativo para mostrarmos a construção da pessoa através da


compreensão das formas de sua inserção social e histórica, independente de seus pais. Escolhi
a expressão como título deste capítulo, pois minha intenção aqui é compreender de que
universo sociológico estou tratando ao pesquisar os ribeirinhos de Caviana. Por isso, este
capítulo versa sobre a maneira pela qual os ribeirinhos se organizam a partir de sua casa, de
seus grupos domésticos e redes de parentesco, bem como à maneira pela qual se relacionam
com o meio ambiente e constroem um ritmo de vida e formas de sociabilidade próprios. As
formas de agregação coletiva abordadas neste capítulo são, na maior parte das vezes, o que
poderíamos chamar de a esfera pública de Caviana, a partir de um ponto de vista
predominantemente masculino – o ponto de vista das mulheres será focalizado no próximo
capítulo.

Como vimos no capítulo 1, a ilha Caviana apresenta uma grande diversidade ecológica
e em sua forma de ocupação. Não há, porém, subdivisões oficiais de seu território. Os
moradores se referem à diferentes lugares usando critérios variados como o pertencimento às
comunidades católicas, à localização das casas ao longo dos rios e igarapés ou em função de
registros de propriedade e de posse. A área selecionada para esta pesquisa coincide
geograficamente com a comunidade Frei Crescêncio 40 e fica na porção sudoeste da ilha
(Figura 2.1). Ela agrega aproximadamente 236 pessoas, em 52 casas distribuídas ao longo de
10 igarapés de médio porte e à beira-mar. 41 Ao longo da pesquisa, percorri todos os igarapés
dessa área, tendo ficado mais tempo em três locais: a) na posse de João Brás 42, pertencente a
Adolfo Figueiredo e sua família; b) no igarapé Taxipucu, onde se concentra o grupo
doméstico de Roberto, irmão de Adolfo, e sua família; e c) no igarapé Socó, onde vive a
família de Dica e Constâncio.

Começo descrevendo a ilha Caviana, para situar a área de pesquisa numa escala
regional. Em seguida, o foco passa à própria área de pesquisa, descrevendo-se suas
delimitações e articulações internas. Para entender a vida ribeirinha, apresento ainda alguns
aspectos de suas práticas econômicas, colhidos em diversas entrevistas, entre 2008 e 2010. Na

40
Divisão relacionada à Igreja Eclesial de Base, cuja paróquia está sediada em Chaves, na ilha de Marajó.
41
Expressão que designa os lugares na margem da ilha, à beira do rio Amazonas.
42
João Brás é também a atual sede da comunidade Frei Crescêncio.

88
Figura 2.1 Mapa com indicação da área de pesquisa na ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito

89
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

seção seguinte, trato dos grupos domésticos e das casas, tomados como as unidades
socioeconômicas mínimas da estrutura ribeirinha. Nessa seção, dou alguns exemplos de
grupos de trabalho e como eles extrapolam a esfera doméstica, formando agregações coletivas
fluidas, que se atualizam nas atividades cotidianas. Todos os aspectos apresentados até esse
ponto ganham uma nova compreensão quando inseridos na discussão sobre o ritmo de vida
ribeirinho, que é o tema da seção subsequente. Ali, busco inserir o movimento cíclico das
marés, as variações sazonais do regime de chuvas e as mudanças da paisagem local como
elementos fundamentais na estruturação da vida ribeirinha, seja no que se refere à percepção
do tempo e do espaço, seja como parte integrante da formação de sua memória e da sua
relação com as pessoas. O último tema tratado neste capítulo é a religião, que tem uma
dimensão coletiva menos fluida do que os grupos de trabalho, pois as famílias e os devotos de
santos reafirmam constantemente sua fé, num esforço de consolidação de uma coletividade.

2.1 A ilha Caviana

Como vimos anteriormente, Caviana situa-se na foz do rio Amazonas, numa região
repleta de ilhas, formações características do delta amazônico (Figura 2.2). A porção de terra
continental mais próxima é a costa sul do estado do Amapá, na altura da cidade de Macapá,
capital do estado e referência urbana para os ribeirinhos. As ilhas mais próximas são Mexiana,
uma pequena porção de terra adjacente à extremidade leste, e Marajó, a maior ilha da região,
que fica ao sul e pode ser vista de alguns pontos da costa de Caviana. A ilha Caviana se
estende por 102 km no sentido leste-oeste e 41 km no sentido norte-sul, definindo uma área
de 4.182 km². Ela é recortada por inúmeros igarapés, sendo cinco deles de maior porte e
importância para os ribeirinhos, são eles de oeste para leste: Ubuçutuba, Pocotó, Taxipucu,
Apani e Pracutuba. Sua importância está relacionada à extensão de seu curso e à profundidade
de seu leito, cortando a ilha desde o interior até a costa e permitindo a navegação de barcos de

90
Figura 2.2: Mapa da ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito

91
Juliana Salles Machado

maior “calado”.43 Essa configuração permite uma pesca abundante e uma locomoção segura,
tornando essas áreas muito atrativas para os moradores da ilha e ocasionando uma forte
demanda pela ocupação de suas margens. Ao longo do curso desses rios, ficam as escolas da
ilha, seja em locais construídos pela prefeitura, como no Ubuçutuba, no Pocotó e no
Pracutuba, seja alojadas no interior das casas ribeirinhas, como no Taxipucu. Há apenas um
posto de saúde, no rio Ubuçutuba, mas que atualmente está abandonado.

O rio Ubuçutuba é o maior da ilha e cruza sua extensão norte-sul quase


completamente. Muitas famílias ribeirinhas dizem ter sua origem nesse rio. Contudo, hoje, a
grande maioria de seus moradores é oriunda de ilhas ou cidades próximas, tendo se
estabelecido recentemente em Caviana. A ausência de luz elétrica e meios de comunicação –
telefone ou rádio – em toda a ilha e sua localização mais próxima ao continente, torna-a um
ponto de refúgio para quem quer se afastar das cidades. Essa busca de isolamento é vista com
desconfiança pela população local, que evita o contato com novos moradores. Contudo,
Ubuçutuba tem uma das únicas oleiras da ilha, que produzia potes cerâmicos para quase todas
as casas até 2009, quando adoeceu. Muitas histórias de feitiçaria são atribuídas aos habitantes
desse rio, também conhecidos por suas festas, as “mucuras”, que são encontros dançantes
comuns em finais de semana. Pouco procurado pelas pessoas tidas como “de fora”, um braço
deste rio, denominado Ubuçutubinha, continua sendo o refúgio dos antigos moradores.

O rio Pocotó também abriga as famílias antigas da ilha e, assim como o Ubuçutuba,
vem sofrendo novas ocupações. Mas, nesse caso, a ocupação recente está relacionada à
exploração do palmito pelos chamados “palmiteiros”. Essa atividade é ilegal e desaprovada
pela população local, que evita “se meter com essa gente”. Os palmiteiros constroem abrigos
temporários e se mudam com frequência, abandonando suas casas e acampamentos ao longo
desse trajeto. Depois de alguns anos de exploração, deixam o rio em busca de novos lugares
de coleta. Durante sua permanência na ilha, estabelecem poucas relações com os moradores
locais e, durante a minha estadia, não acompanhei nenhum casamento entre eles. O rio Pocotó
abriga um antigo cemitério de Caviana, agora abandonado, mas que é muito conhecido nessa
parte da ilha e fica mais no interior do teso que margeia o rio. Também a partir deste rio,
temos acesso ao cemitério atual, onde são enterrados habitantes das proximidades e de outros
igarapés.

43
“Calado” é o espaço que uma embarcação ocupa verticalmente dentro d’água.

92
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Mais recentemente, os moradores mais antigos da ilha têm considerado perigosos


ambos os rios, Ubuçutuba e Pocotó, por causa da presença de pessoas desconhecidas ou
envolvidas no extrativismo ilegal, que vêm construindo sua casa na costa da ilha ou, na
maioria das vezes, em pequenos igarapés em seu interior.

Seguindo de oeste para leste, o grande igarapé seguinte é o Taxipucu, inteiramente


ocupado por moradores antigos, quase todos parentes entre si, e que foi uma das principais
bases da minha pesquisa (Figura 2.3). O Taxipucu é extenso e largo e é conhecido como um
rio antigo. A ele estão associadas muitas histórias de “encantados” e entes não-humanos. Os
moradores da ilha acreditam-no muito perigoso, por ali ter morado muita gente e por ser um
rio que atinge a parte central da ilha, nos campos alagados. Apesar disso, hoje suas margens
são bastante ocupadas, e suas águas profundas são navegadas por inúmeros barcos, rumo às
suas cabeceiras. Adiante, falarei mais sobre o Taxipucu.

O Apani foi o único grande rio que não pude conhecer, pois fica num trecho da ilha
cuja intensa sedimentação secou a foz dos igarapés, impedindo o acesso ao interior com
barcos. No passado, foi um rio grande e profundo, com as margens muito habitadas. Como o
Ubuçutuba, o rio Apani abrigava algumas oleiras e até hoje tem um reconhecido “experiente”,
por vezes também chamado de “pajé” que, pelo diálogo com os “encantados”, tem o poder de
curar as pessoas. 44 Atualmente, muitos moradores deixaram o lugar em função da seca, e os
que ficaram caminham horas desde a costa até o interior, onde mantém suas casas.

O último grande rio da ilha, já próximo à extremidade leste, é o Pracutuba. Depois do


Ubuçutuba (a oeste), dizem que esse rio foi um dos principais de Caviana. Enquanto o
primeiro é lembrado pelas famílias ribeirinhas por suas oleiras, pelo plantio e pela fabricação
da farinha de mandioca e pela feitiçaria, a memória sobre o passado do Pracutuba está ligada a
sua prosperidade comercial e densidade de sua ocupação, quando abrigava a única grande vila

44
“Experiente” é o termo usado na ilha para falar de pessoas que lidam com os “encantados” e que, a partir
deles, têm poder de cura. Já o termo “pajé” se aplica aos “experientes” mais poderosos. “Encantados” é uma
categoria ampla de entes não-humanos que contempla figuras maternas poderosas, como a “mãe-do-mato” e a
“mãe-do-lugar”, assim como espíritos de pessoas que morreram, criaturas mágicas como os botos e as cobras-
grandes e santos. Para mais discussões sobre o tema ver Capitulo 5.

93
Figura 2.3: Entrada do igarapé Taxipucu, Caviana. Foto: Juliana Salles Machado

Figura 2.4: Vista do igarapé Pracutuba na maré alta com campo natural e floresta ao fundo.

Foto: Juliana Salles Machado

94
Juliana Salles Machado

de Caviana. Dizem que, nos tesos45 que se erguem à sua margem, havia uma grande vila com
muitas casas, uma igreja, um cemitério e uma venda que, como mencionamos no capítulo 1,
era chamada de “aldeia de Piyé”. A região era conhecida pela extração de castanha e
borracha, que eram vendidas à grandes navios que lá atracavam e as revendiam nas casas de
comércio em Belém. Ainda pude encontrar os vestígios dessa vila, nas estacas no chão e nas
ruínas da igreja. Essa mesma vila foi documentada por Nimuendaju na década de 1920, como
discutido anteriormente. Dessa época, os moradores de Caviana contam inúmeras brincadeiras
e festas em que se encenavam eventos de caça e a aparição de seres sobrenaturais como a
mãe-do-mato”.46 Hoje, toda a extensão das margens do rio Pracutuba pertence a uma família
de fazendeiros, que lá criam búfalo para corte (Figura 2.4). Esse rio também secou, mas ainda
é possível entrar de barco até a casa da fazenda, devido a um furo cavado pelo fazendeiro
local. Com a seca do rio, os antigos moradores do interior da ilha, às margens do igarapé, se
mudaram para a costa, próximos à sede da fazenda, na foz do Pracutuba. O grande número de
pessoas que se mudaram para lá, levou à formação de uma nova vila, que tem uma venda e
uma igreja.

Entre esses grandes rios, há aglomerados menores de casas na costa da ilha ou


espalhados em seu interior ao longo de pequenos cursos d’água, às vezes intermitentes. O
interior da ilha não é habitado, mas tem inúmeras áreas baixas e inundáveis recobertas por
gramíneas, semelhantes às da costa sudeste e leste da ilha, que os ribeirinhos chamam de
campos. Na seca, são recortados por pequenos lagos e pelas pontas dos tesos e, na estação

45
“Teso” é o termo com que os ilhéus designam elevações de terra não inundáveis recobertas por uma densa
vegetação arbórea chamada localmente de “mata velha”.
46
O termo “brincadeiras”, ou “cordões”, se refere a festejos pagãos em que se encenam ações de caça ou
encontros com sobrenaturais e que sempre acabam numa festa dançante. Durante minha pesquisa, não se fez
nenhuma dessas brincadeiras, e eles dizem que não as fazem mais. No passado, alguns fazendeiros patrocinavam
as brincadeiras, convidando os brincantes para ficar a noite inteira, quando ofereciam uma festa. Os cordões
ocorriam em junho, próximo a São João, e duravam aproximadamente 10 dias. Em maio, começavam a ensaiar
nos fins de semana. Depois dos ensaios, sempre faziam “mucuras”, festas organizadas na casa de algum
conhecido. As brincadeiras variavam, mas a ideia era sempre de proteção ao animal que estava sendo
perseguido. Adolfo descreveu-me um cordão de 22 brincantes no Pracutuba, conhecido como a “brincadeira do
Pavão”, em que se cantavam versos improvisados. O nome da apresentação era “Matança”, segue sua descrição:
“um caçador aparecia e matava o pavão; um médico era então chamado e o curava. O caçador tentava matar o
pavão novamente, mas índios, armados com flechas, apareciam e espantavam os caçadores”. Adolfo se recorda
também da música da “Brincadeira da Jacina”, que é uma libélula: “A Jacina vem da terra/A Jacina vem do ar/A
Jacina vem de longe/Não pode se demorar/Senhor caçador da Jacina/Faça favor, venha cá/Às ordens, senhor,
meu amo/Eu já vou me apresentar”. Nessa brincadeira, a Jacina aparecia e o caçador atirava nela. Um
personagem chamado “amo” pegava o caçador e o fazia “pagar o mico”, ocasião em que ele devia pagar o amo
com dinheiro, se não, tinha suas mãos amarradas. Segundo Adolfo, o “amo” era o protetor da Jacina e “chamava
mãe para ela”.

95
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

chuvosa, formam grandes lagos rasos que cobrem quase toda sua extensão. Ali ficam as
cabeceiras dos rios, referência que nomeia cada uma de suas partes – por exemplo, o “campo
do Pocotó”, ou “pantanal do Pocotó”. Essas terras são áreas coletivas de caça, onde se
encontram animais como a paca, o tatu, o veado, o porco-do-mato, a anta, o jabuti e a onça-
laranja em abundância. Segundo um morador do rio Pocotó, “ninguém mora lá, os caçadores
vão lá”.

Para entender o modo de vida ribeirinho, escolhi uma porção da ilha que concentra
grande parte dos igarapés e muitos de seus antigos moradores. Como essa área não tem
campos naturais extensos, como a porção leste, não há fazendas de gado, e os moradores
vivem de pesca, caça, coleta de produtos da floresta, manejo e plantio de seus terreiros,
canteiros e roças. Há também a venda de frutas e produtos da floresta, que intermediários
levam à cidade. É comum que os homens mais jovens tenham outras atividades econômicas –
trabalham como vaqueiros nas fazendas de búfalo nos campos à leste da ilha, como marítimos
em grandes barcos para transporte de gado ou na venda de mercadorias da cidade, ou prestam
serviços nas casas ribeirinhas, roçando terrenos de parentes e amigos.

2.2 A área de pesquisa

Minha área de pesquisa é delimitada a oeste pelo rio Ubuçutuba e à leste pelos campos
naturais, abrangendo uma extensão aproximada de 250 km² (ver Figura 2.1). O limite sul é o
próprio contorno da ilha e o norte, a região dos campos. De oeste à leste, essa área
compreende as seguintes localidades, reconhecidas a partir da presença de aglomerados de
casas e nomeadas normalmente pelo rio mais próximo, mas também, nos últimos três casos,
em função do nome da fazenda onde ficam: Prainha (PRA), Bom Jesus (BOJ), Socó (SOC),
Boa Vista (BOV), Pocotó (POC), João Brás (JOB), Turezinho (TRZ), Taxipucu (TAX),
Querquilhau (QUE), São Raimundo (SAR) e São Pedro (FSP) (Figura 2.5). Esses conjuntos
de casas estão em igarapés, praias à beira-mar e campos. Navegando à beira-mar, vemos uma

96
Figura 2.5: Mapa com grupos domésticos e demais locais citados no trabalho na ilha Caviana. Mapa:
Marcos Brito

97
Juliana Salles Machado

mata quase contínua, recortada apenas por concentrações de palmeiras e pequenos clarões em
torno de palafitas de madeira cobertas por folhas de buçu 47 trançadas ou por telhas de zinco.
Na foz de alguns igarapés, há alguns agrupamentos com cinco casas, mas o mais comum são
grupos de duas ou três casas, distantes entre si (Figura 2.6). Nos gráficos as casas foram
contabilizadas individualmente, independentemente de pertencerem a um agrupamento de
casas ou grupo doméstico. No Gráfico abaixo (Gráfico 2.1) as casas foram contabilizadas por
igarapé, portanto, nos casos com igarapés de maior porte, como por exemplo, o Taxipucu
(TAX) e o Pocotó (POC), assim como em grandes áreas de campo como São Raimundo
(SAR), mais de um agrupamento de casas foi contabilizado. No Taxipucu, foram contadas
nove casas, sendo distribuídas em apenas um agrupamento de cinco casas e as quatro casas
restantes dispersas de maneira isolada nas margens do rio. Já no rio Pocotó, com onze casas
são comuns agrupamentos de duas ou três casas e outras isoladas.

Gráfico 2.1 – Número de casas por igarapé na área de pesquisa

47
“Buçu” é o termo local para designar a palmeira do babaçu, da família botânica Arecaceae, muito utilizada
para cobrir casas.

98
Figura 2.6: Exemplos de grupos domésticos e casas na ilha Caviana.

Foto Juliana Salles Machado

99
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Em Caviana, a terra é tida como um bem da família. Idealmente indivisível, procura-se


mantê-la unida através das gerações. Com a morte dos pais, a terra passa aos filhos (homens e
mulheres) e é compartilhada por eles, e não dividida. Em geral, os filhos homens mantêm sua
casa no local, enquanto as mulheres vão morar na terra do marido – mas seu direito à morar
no terreno é sempre lembrado e, em alguns casos, requisitado. Na maioria dos casos, os
terrenos familiares são grandes, estendendo-se da beira-mar até os campos do interior da ilha.
A história da posse da terra em Caviana contada a partir dos ribeirinhos inicia-se na
distribuição de partes da ilha para alguns colonos no período colonial, conforme descrito no
Capítulo 1 – tornando portanto sua posse ‘oficial’. Mais recentemente, há aproximadamente
10 anos, foi feito uma nova demarcação de terras, à pedido dos fazendeiros do leste da ilha.
Neste momento as novas áreas do campo e as antigas ocupações da região foram demarcadas
e a posse das terras oficializadas. Não foi relatado nenhuma situação de confronto neste
processo, sendo que a grande extensão de terras utilizadas e reconhecidas pelas famílias
ribeirinhas parecem ter sido mantidas. No entanto, atualmente encontrei algumas famílias que
não possuíam mais terras na ilha. Parte destas famílias perdeu suas terras em um passado
muito recente, quando com a seca dos igarapés, abandonaram suas terras para morar mais
próximo à água, em terrenos atualmente de posse dos fazendeiros. Suas terras então foram
incorporadas às fazendas (por vezes, compradas pelos fazendeiros), e seus antigos
proprietários passaram a “morar de favor” nas fazendas.

A maior parte das famílias ribeirinhas é católica, e os fiéis se distribuem em sete


comunidades.48 Minha área de pesquisa fica na a comunidade Frei Crescêncio, assim
denominada em homenagem a um padre que morreu numa de suas visitas ao João Brás
(Figura 2.7). Entre 1982 e 1983, as comunidades foram divididas pela paróquia de Chaves,
que também estabeleceu sua forma organizacional – cada uma tem um dirigente, um sub-
-dirigente, um secretário, um animador, dois leitores e três zeladores. Há ainda um
coordenador geral que representa certo número de comunidades e os moradores perante à
paróquia municipal. Em encontros anuais ou semestrais, esses representantes entregam aos

48
As comunidades paroquiais de Caviana são: Frei Crescêncio (João Brás), São João da Caridade (Ponta da
Caridade), Nossa Senhora Aparecida (Ilha Nova), São Benedito (Pracutuba), Santa Maria (Taiqui), Sagrado
Coração de Jesus (Apani) e Santa Mônica (Fazendinha).

100
Figura 2.7: Casa de Adolfo e Tereza Figueiredo no João Brás e missa católica na igreja da comunidade
Frei Crescêncio. Fotos: Juliana Salles Machado

101
Juliana Salles Machado

párocos a lista de frequência dos cultos dominicais, a atualização dos óbitos e o dízimo
semanal. Além desses encontros, que acontecem em lugares variados, uma vez ao ano um
padre vai a uma das sedes das comunidades rezar uma missa e oficiar as cerimônias de
batizado e casamento. Já os cultos dominicais são realizados semanalmente na sede da
comunidade e proferidos pelos coordenadores, dirigentes, leitores e animadores.

Apesar de a criação das comunidades responder a uma vontade exterior à ilha, sua
delimitação geográfica não é aleatória. Uma vez que a participação dos indivíduos em uma ou
outra comunidade é voluntária, a agregação em comunidades reflete certa unidade prévia
entre os ribeirinhos. Adotando a delimitação geográfica estabelecida pela comunidade Frei
Crescêncio e descolando-a do sentido religioso estritamente ligado às obrigações paroquiais,
vemos a articulação de parentes e amigos em diversos grupos domésticos e na constante
formação de coletivos através de grupos de trabalho, de festas religiosas e brincadeiras, da
partilha de alimentos e das redes de troca de remédios (ver Capítulo 3 e 4).

De fato, as pessoas estão envolvidas numa variedade de coletivos. Há os grupos


masculinos associados à atividades coletivas como a caça, a pesca, a roçagem de terreiros, a
abertura de novas roças e também a negociação de produtos para venda na cidade. Há os
grupos de devotos de santos, que na área de Frei Crescêncio são o de São Sebastião e o de
Nossa Senhora de Nazaré. Há também grupos de trabalho femininos, nos quais parentes e
amigas se juntam para fazer o trabalho doméstico ou se ocupam com atividades de plantio.
Assim, cada um está engajado em diversos agrupamentos, uns mais fluidas, outros mais
duradouros, estruturados em torno do parentesco ou da residência.

2.3 O ritmo da vida nas águas

“Tem medo de maré? Parece mulher!”


(Tereza, João Brás, 2009)

No estuário, é acentuada a sazonalidade das águas, devido à junção do rio Amazonas com as
marés do oceano Atlântico, formando a conhecida pororoca, que impacta severamente as ilhas
do delta amazônico. A construção das casas em palafitas permite a seus moradores um fácil

102
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

acesso à água. Em lugares com alta variação no fluxo das marés como a ilha Caviana, essa
proximidade é considerada fundamental, por sempre permitir a locomoção e dar acesso à
recursos aquáticos para o sustento da casa. Rios perenes são valorizados, e seus meandros
mais acentuados, chamados de “porto”. Essa proximidade também os expõe muito à variação
das marés, mas isso não é necessariamente entendido como restrição ou determinante
inexorável de hábitos e formas de vida. O que vemos é uma relação íntima dos ribeirinhos
com o regime das águas, que, ao mesmo tempo em que constrange, também viabiliza certo
modo de vida. Se, por um lado, as marés são cíclicas e, portanto, seu ritmo é constante e
conhecido, por outro, esse conhecimento é apenas parcial, pois as marés nunca são totalmente
confiáveis ou previsíveis. A água é, simultaneamente, um atrativo que todos querem por
perto, e o inesperado, um perigo constante. Sua imprevisibilidade é reiterada pela intensidade
da devastação produzida pela pororoca, pelos recorrentes naufrágios em tempestades, pelos
barrancos caídos, pelo grau da sedimentação que seca os rios mais profundos, pela formação
de novas ilhas e terras, enfim, pela contínua e inelutável transformação da ilha. A água e os
humanos constroem uma relação que, para durar, deve ser sempre renovada. Um exemplo
desta relação pode ser encontrado no relato de Adolfo sobre o Pracutuba:

Durante todo esse tempo continuava também a trabalhar no Pracutuba.


Fiquei lá até secar. Mesmo depois ia e voltava para lá. Mas, o rio secou e
a água ficou empossada levando a uma grande epidemia. As pessoas que
moravam lá não foram embora e muita gente morreu. Suas barrigas
ficavam grandes. Tinha muita gente no Pracutuba. E o rio continuava a
secar. Quando chegava o verão tudo secava, as embarcações ficavam
paradas lá fora. Com a água rasa, a água começou a entrar por meio da
natureza, pela pororoca que chegava até aonde antes era um grande rio. A
maré era grande, trazia muito barro e lama e rapidamente aterrou tudo.
No inverno alagava muito. Ultimamente abriu um pouquinho, pois
mandaram abrir um furo para chegar até a casa do Zé Lobato. Ele
encarou o rio que acabou furando por lá. Antes era mais difícil de entrar,
secava muito. (Adolfo, Caviana, 2009)

103
Figura 2.8: Exemplos de embarcações em Caviana. Fotos: Juliana Salles Machado

104
Juliana Salles Machado

Os ribeirinhos dependem da variação na profundidade da água para se locomover, o


que afeta inclusive as atividades cotidianas; em muitos lugares, não se pode sair de casa na
maré baixa sem ficar com lama até o meio das pernas. Dada a grande distância entre as casas,
visitar parentes e amigos, ir à cidade ou a uma roça distante ou fazer qualquer coisa fora da
unidade doméstica ou da “mata velha” próxima demanda que haja água suficiente para os
barcos boiarem (Figura 2.8). A quantidade de água necessária para isso varia muito,
dependendo do tipo do barco. Para pequenas canoas de madeira, também chamadas de
“montaria” ou “cascos”, basta um espelho d’água, sendo a locomoção mais usada pelos
ribeirinhos para pequenas viagens perto de casa. Já embarcações de pequeno a médio porte,
dotadas de motor – localmente chamadas “lanchas” –, precisam de mais água. Há dessas
embarcações maiores em algumas casas ribeirinhas e são comumente usadas para transportar
passageiros ou levar produtos para vender em Macapá, Chaves ou Afuá. Não encontrei
embarcações de grande porte entre os moradores da área pesquisada, mas elas podem ser
vistas passando no “mar”, levando e buscando gado das fazendas da porção leste da ilha. O
ritmo das águas se condiciona à conjunção das variações diárias e cíclicas das marés com as
duas estações do ano reconhecidas localmente como “inverno” e “verão”. 49

As atividades externas são comumente realizadas no verão. É nessa época que se


roçam terreiros, abrem e limpam estradas e caminhos, tratam canteiros, plantam e colhem
roças (cultivos de ciclo curto), consertam ou constroem casas e trapiches, tira-se madeira e
pesca-se mais, principalmente para vender. No inverno, há uma relativa reclusão, devido à
intensidade das chuvas e da força das marés e ao consequente alagamento das áreas baixas. O
trânsito entre as casas, devido à lama e à chamada “maresia”, quando se formam muitas ondas
e os rios ficam agitados e a navegação perigosa. Suspende-se a manutenção do terreiro e do
canteiro e não se constroem novas casas ou trapiches, só se fazem reparos dentro das casas.
Há sempre uma grande apreensão neste período, pois na época das chuvas as marés sobem
muito, inundam a área abaixo das casas e às vezes chegam a cobrir seus pisos, onde deixam
uma camada de lama.

Com o “crescimento” das águas, a pesca fica mais difícil, e aumenta a necessidade da
caça. As carnes mais apreciadas são de queixada, cotia, anta, tatu, capivara, jacaré, paca e

49
O inverno corresponde ao período das chuvas – de janeiro e a junho, dependendo do ano. O verão, quando
chove menos, vai de julho a dezembro.

105
Figura 2.9: Exemplo de casa no igarapé Taxipucu, ilha Caviana. Foto: Juliana Salles Machado

Figura 2.10 Vista do terreiro do João Brás no fim da estação chuvosa. Foto: Juliana Salles Machado

106
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

veado. Também se comem muito jabuti e perema (espécie de tartaruga pequena). Comumente,
caça-se com uma lança com uma ponta de ferro, com que se encurrala e depois espeta o tatu, a
cotia, a paca, a mucura ou o tamanduá (Figura 2.9). Já para o porco-do-mato, veado ou onça,
usam-se armas de fogo. Há certas restrições alimentares para a caça, envolvendo
principalmente o caçador e mulheres grávidas, como veremos no Capítulo 5. De modo geral,
toma-se cuidado com alimentos considerados “remosos”,50 como paca, camarão, porco ou
paturi.51 Estes são ingeridos cotidianamente, quando não se está doente, mas há o cuidado de
não associá-los à açaí ou feijão, nem ao ato de tomar banho ou remédio, pois tal associação
poderia deixá-los doentes.

Pode-se caçar aproveitando uma oportunidade, quando se vê um bicho nos arredores


da casa ou quando o cachorro por acaso “encova”.52 Encovar no dicionário quer dizer, obrigar
a fugir, a recolher-se ao covil – descrição que traduz bem essa caça, na qual o cachorro leva a
presa a um local de onde ela não pode escapar e então o caçador a mata. Nesses casos, caça-se
sozinho ou com o irmão ou o filho. Mas há as saídas mais planejadas, quando se organizam
grupos de caça entre irmãos, cunhados, primos e amigos. Isso acontece quando a caça
escasseia em volta da casa ou quando se quer comer animais como veado ou anta. Os homens
ficam dias longe de casa, em acampamentos improvisadas ou dormem no barco. Não
acompanhei nenhum grupo de caça, mas os filhos de Roberto dizem que se pode caçar com
lança ou com espingarda. Em geral, a caça é mais comum na estação das chuvas, mas, ainda
que em menor intensidade ocorre ao longo de todo o ano.

No período das chuvas, as famílias se recolhem em suas casas e pouco se visitam os


parentes ou se vai à cidade. O mato cresce entre as árvores do terreiro, os canteiros ficam
“feios” e “sujos” e as madeiras de casas, barcos e trapiches apodrecem (Figura 2.10). Mas o
inverno é também época de muitas frutas como inajá, açaí, bacaba, manga, tucumã, jenipapo,
taperebá, cupuaçu, pupunha, coco, banana, jaca, mari e mari-mari.

50
Diz-se “remoso” o alimento que pode fazer mal e em geral, está associado a carnes mais gordurosas.
51
Variedade de pato encontrado em Caviana.
52
“Encova” é o termo local que designa uma forma de caça: um cachorro encurrala a presa, e, assim, o caçador
pode se aproximar o suficiente para cravar-lhe a lança.

107
Juliana Salles Machado

Em agosto de 2008, no fim de um inverno que, segundo eles, “custou a acabar”, o


entorno das casas estava tomado por uma vegetação rasteira, que cresce nos terreiros e nos
canteiros e é considerada indesejável pelos ilhéus. A terra ainda estava encharcada e não se
podia plantar nada, e as paredes ainda tinham um musgo verde, fruto da umidade do inverno.
Mas, depois de três dias de sol, eles já se animavam com o verão e as visitas de parentes se
intensificaram. Os preparativos para o verão implicavam planejar a limpeza dos terreiros,
comprar tábuas de madeira para o reparo do trapiche e telhas e mais tábuas para construir
casas novas, vender porcos no mercado, aproveitar o fim da temporada do açaí e da laranja
para seu consumo e venda, a volta dos parentes da cidade e a redistribuição das crianças em
casas de parentes com a volta às aulas 53. De uma maneira ou de outra, isso tudo depende do
fluxo das águas do inverno e do verão. A partir daí se decide quando e quanto material
comprar, quanto dos produtos vender e quanto comer e também quando as crianças devem ir à
aula. A mudança de estação evidencia e intensifica um ciclo diário de presença e ausência de
água nas casas. As ações diárias são regidas pelo horário e pela duração das marés, entre a
cheia e a seca, conforme a água esteja perto ou longe das casas e dos trapiches.

O cotidiano é absolutamente sincronizado ao ritmo da maré. Tudo tem seu tempo – no


tempo da “lançante”, da “vazante” ou da “morta”. Todos conhecem o regime da maré, e ele é
tema comum de conversa, em casa ou nas visitas, e há muitos termos para designá-lo. A
variação cíclica das marés é regida pela lua. O ciclo começa na lua cheia, com a maré
“lançante”, quando as águas começam a crescer e os pequenos igarapés passam a receber um
volume cada vez maior de água do rio Amazonas, mas ainda não atingiram seu ápice. O
momento em que ela começa a encher é a “reponta da maré”, expressão que localmente
significa que “já vai encher e vai ficar grandona”. Na lua cheia, a maré começa a encher às
seis da manhã, fenômeno chamado na ilha de “tapecuema”. As águas crescem até a “preia-
mar”, “quando a maré dá cheia e já vai vazar”. No ciclo lunar, segue-se o quarto minguante,
quando, apesar de a maré amanhecer à preia-mar, as águas são pequenas, “a água é morta”.
Nesse momento, as águas crescem pouco e, mesmo no ápice, não chegam a encher. Nesse
período, param os deslocamentos que dependem da maré, pois a água fica longe e tão rasa que

53
Como há poucas escolas em Caviana e os acessos são difíceis, durante o ano escolar as crianças saem de suas
casas para morar com parentes que moram perto da escola. Nas férias elas voltam para a casa de seus pais. Essa
dificuldade de freqüentar a escola, a baixa qualidade do ensino e constante ausência dos professores, acaba por
não incentivar várias famílias, que acabam por tirar seus filhos da escola, alguns ensinando em casa o que sabem
(poucos exemplos), outros mandando as crianças para morar com parentes em Macapá, ou ainda deixando as
crianças sem uma educação formal.

108
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

os barcos não chegam a boiar. Na lua nova, se repete o ciclo da lua cheia, com águas
“lançantes” e “tapecuemas” a “preia-mar”. Finalmente, no quarto crescente, a maré também
amanhece à “preia-mar”, mas já começa a crescer. O calendário lunar marca as horas das
enchentes e vazantes e sua intensidade. Ao todo, são cerca de cinco horas de enchente e oito
de vazante, ciclo que se repete diariamente, com duas enchentes e duas vazantes por dia.

O conhecimento desse complexo ritmo das marés é fundamental para a população, que
se organiza em função desse ciclo e sempre discute e avalia suas variações. As atividades são
planejadas para começar na lançante e durar até as águas estarem à preia-mar e começarem a
vazar, momento em que são encerradas; as pessoas se recolhem nas casas e passam a se
dedicar a atividades no seu interior.

A água dá aos ribeirinhos algo constante, seguro. Eles se fiam no conhecimento dos
movimentos da água – para trazê-los, buscá-los e, principalmente, mantê-los. Mas essa
relação de confiança não é dada pela condição geográfica e deve ser permanentemente
renovada. Os ribeirinhos não se cansam de “reparar” a água; discutem suas variações diárias e
sazonais e, na seca, conhecem seus caminhos. Em seus cascos e barcos, testam diariamente
seus conhecimentos e habilidades. O estreitamento dessa relação confere à alguns o título de
marítimos, dado apenas àqueles que ficam dias embarcados e só conhecem as marés como sua
casa. Esses poucos homens da ilha, comerciantes ou pescadores, apenas visitam suas casa em
terra e muitos voltam para dormir no barco. Todos têm alguma intimidade com a água, mas a
relação de cada um é particular; cada um constrói sua própria relação com a água e dela faz
sua história de vida.

Os campos surgem na paisagem quando nos aproximamos da porção leste da área de


pesquisa, onde estão as fazendas do Querquilhau, e de lá seguem até quase o fim da ilha, só
recortadas por pontas de tesos cobertos por mata que despontam lá e cá. Os homens e algumas
mulheres têm parte da sua vida associada ao campo, pois mais de uma vez mudam de casa
para trabalhar em diferentes lugares da ilha; nesse caso, como vaqueiros ou tomando conta de
alguma fazenda (Figura 2.11). Nos campos sazonalmente alagados do interior, nas cabeceiras
dos rios, há áreas privilegiadas de caça como as ilhas de miriti e açaí e os lagos de pirarucu e
jacaré-açu. Os fundos dos terrenos dos ribeirinhos dão para o centro da ilha, para esses

109
Figura 2.11: Vaqueiros e sede de uma fazenda (abaixo) nos campos naturais de Caviana.

Fotos: Juliana Salles Machado

110
Juliana Salles Machado

campos. Os terrenos que não chegam ao meio da ilha também acabam por usufruir deles, pois
por serem afastadas, acabam sendo áreas livres, que todos podem aproveitar.

Assim, se por um lado o campo é próximo, pois todos o conhecem, por outro lado,
também inacessível, como objeto da disputa com os fazendeiros. Nesse caso, é uma fonte
potencial de recursos. No imaginário local, o campo é belo, limpo e fértil – “tudo o que se
planta cresce”. Poderia ser entendido como um ideal, mas, quando perguntados se morariam
lá, a maioria prefere ficar no “mato”. Muitas famílias de ribeirinhos possuíam ou ainda
possuem terras no campo, que eram de seus familiares, mas, com a seca, muitos se mudaram
para o mato. Vez ou outra, alguém da família vai “espiar” essas terras. Quanto às grandes
fazendas, são escassamente ocupadas por vaqueiros e encarregados contratados.

A distância entre o campo e o mato, entre o ribeirinho, o caçador e o vaqueiro é


marcada no discurso, mas não como oposições. Ser vaqueiro é um estado, normalmente
temporário. Na prática, não há oposição: a mesma pessoa costuma assumir mais de um papel
nas várias etapas de sua vida. Assim como as pessoas têm diversas atividades – vaqueiro,
pescador, marítimo ou caçador –, há uma complementaridade na relação campo-mato.

2.4 A prática econômica e a subsistência compartilhada

A maior parte do tempo de trabalho é dedicada à atividades de subsistência não


remuneradas, mas circula dinheiro na ilha, como resultado da venda de frutas, peixes e
produtos da floresta, de trabalho remunerado eventual e, hoje, das aposentadorias rurais.
Durante minha pesquisa, entrevistei aproximadamente 200 indivíduos acerca de sua renda
pessoal e familiar 54. Nas entrevistas um representante de cada família55 indicou as principais
fontes de renda da casa, variando entre a) a venda de peixes e frutas; b) remuneração por

54
O questionário e todos os dados coletados estão no Anexo2.
55
O questionário foi aplicado por casa, assim um representante de cada casa indicava a variedade de renda
familiar; no entanto, em casos onde mais de uma família morava em uma casa – como, por exemplo, casais
recém-casados que ainda não tinham construído sua própria casa – eles foram contabilizados separadamente.
Assim os indicadores se referem as famílias e não estritamente às casas, apesar de em grande parte essas
categorias serem correspondentes.

111
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

serviços prestados (como a roçagem de terrenos, ou ainda os agentes de saúde, merendeiras,


professores, etc.); c) aposentadoria e d) diversos, item no qual incluí fontes diversas como a
venda de gado e porcos, transporte de passageiros em barcos, venda de mercadorias da
cidades, etc. Assim, os valores referidos no Gráfico 2.2 no eixo Y não são monetários, mas
antes se referem a quantidade de indivíduos que dependem majoritariamente de uma ou outra
fonte de renda. Note que as categorias não são excludentes, minha preocupação foi apenas ter
um panorama das principais fontes de renda das casas entrevistadas. Como vemos no Gráfico
2.2, a venda de frutas e de peixes é a principal fonte de renda das famílias.

60

50

40

30

20

10

0
Frutas e/ou Peixes Diversos remuneração Aposentados

área de pesquisa em Caviana (2008-2010)56

Em Caviana, classificam-se os peixes em “peixes-do-mato” e “peixes-do-mar”. São do


mato àqueles que se pescam nos igarapés, os mais comuns nas casas ribeirinhas. Podem ser
pescados por homens, mulheres ou crianças, e de diversas maneiras dependendo da família e
da habilidade do pescador. São usuais a pesca com linha e anzol na beira dos trapiches, com

56
Na categoria “diversos”, estão representados os indivíduos que, na entrevista, não especificaram sua atividade,
dando indicações vagas como “a gente faz um pouco de tudo”. Nesse “um pouco de tudo”, pude inferir a venda
de frutas e peixes e serviços ocasionalmente prestados a vizinhos, parentes e amigos.

112
Figura 2.12: Pesca de peixe em Caviana: acima (à esquerda) “curral”, armadilha de pesca e (à direita)
arpão de pesca; abaixo (à esquerda) pesca com anzol e (à direita) com rede.

Fotos: Juliana Salles Machado

113
Juliana Salles Machado

arpão nas canoas no meio dos igarapés, com redes colocadas na boca dos rios, com
armadilhas à beira-mar ou ainda com o que chamam de “gapóia” (Figura 2.12), que veremos a
seguir.

A pesca com linha e anzol é a mais praticada pelas crianças, que ficam algumas horas
na beira do trapiche e trazem uma quantidade de peixes pequenos espetados num pedaço de
pau. O arpão é mais utilizado pelos homens adultos, quando saem para pescar sozinhos em
seu “casco”. Com ele, não se pegam muitos peixes, mas pegam-se peixes maiores. A pesca
com rede é coletiva, feita pelo marido e sua mulher e filhos ou por irmãos do mesmo grupo
doméstico. Eles saem juntos numa canoa quando a maré está enchendo e põem a rede perto da
boca do rio; quando a maré começa a baixar, eles a retiram. Isso dá uma grande quantidade de
peixes, e, quando se pesca mais do que a família precisa, os peixes que sobram são
distribuídos entre os grupos domésticos ou entre vizinhos, parentes e amigos. A pesca por
armadilhas, o chamado “curral”, é também comum na ilha. É uma atividade masculina
normalmente individual e cabe ao “chefe da casa”. Ela consiste em fincar esteios de madeira
perto da margem da ilha – o que se faz na seca – fechando um quadrado, um retângulo ou um
círculo. Na parte inferior dos esteios, quase no chão, se trançam cipós, formando uma espécie
de parede que impede a passagem de peixes. Com a maré baixa, os peixes ficam presos no
“curral”, de onde são retirados antes da cheia. Por fim, a técnica da “gapóia” consiste em
cercar poças de água na maré seca e tirar a água de cada uma delas até aparecerem os peixes.
A água é retirada com uma ferramenta que chamam de “violão”, confeccionada com o tronco
da bacabeira, cuja tala se assemelha a um remo. Selecionam-se os peixes que serão retirados e
se soltam os demais com a cheia da maré.

Outra fonte importante de proteína são os camarões. Eles são muito comuns em
determinadas épocas. Grande parte do camarão é salgado e se conserva por um longo tempo,
o que dificilmente acontece com o peixe, que sempre se come fresco. Os camarões são
pescados com armadilhas chamadas “matapi” colocadas na beira dos igarapés, ou com redes
nas margens da ilha. Embora no João Brás se pesque com rede ou “malhadeira” (o que se
chama “lancear camarão”), a técnica mais comum na ilha é a pesca com “matapi”, uma
armadilha feita de talas amarradas com cipó ou fio de náilon, colocadas no fundo do rio e
presas até a superfície (Figura 2.13). Ainda que também os homens possam fazê-lo, isso é
mais frequente entre mulheres e crianças. Duas vezes ao dia ou durante a noite, o “matapi” é

114
Figura 2.13: Pesca de camarão em Caviana: acima e abaixo à esquerda, “lanceando camarão”, pesca com
rede de arrastão na margem do rio Amazonas; abaixo à esquerda, “matapi”, armadilha de pesca.

Fotos: Juliana Salles Machado

115
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

colocado quando a maré começa a encher e retirado quando começa a vazar. Algumas casas
possuem muitos “matapis” e as mulheres usam-no para pescar camarões para venda, como
uma forma de aumentarem a renda familiar.

Os “peixes-do-mar” são muito valorizados pelas famílias ribeirinhas, mas não são tão
comuns, dada a dificuldade de sua pesca, que obriga os homens a se afastarem das margens da
ilha, o que normalmente exige um barco de médio porte, não encontrado em todas as casas.
Os homens que vão pescar no mar aberto57 são chamados pescadores e em geral fazem-no
profissionalmente, vendendo os peixes nas cidades e ilhas próximas. Os peixes mais pescados
são: pescada, piaba, bagre, tainha, tambaqui, pirapitinga, aruanã, “boi de escama” (pirarucu),
filhote e mandubá. Na época da chuva, porém, quando a pesca profissional é proibida em
função da desova, os “peixes-do-mar” são destinados apenas à família.

Gráfico 2.3 – Gráfico com locais de cultivo na área de pesquisa em Caviana (2008-2010)

57
“Mar aberto” é o oceano Atlântico, que banha o extremo leste da ilha e aonde só vão pescadores profissionais,
já que sua travessia exige equipamento específico e barcos maiores.

116
Juliana Salles Machado

O Gráfico 2.3 acima trata dos locais de plantio utilizados (eixo X) por cada família
(eixo Y). Assim dos 180 representantes entrevistados, mais de 160 possuíam terreiros, 160
tinham canteiros, 100 utilizavam áreas abandonadas e apenas 60 plantavam roças. Comparada
à outras áreas da Amazônia, as roças são pouco usadas pelas famílias ribeirinhas, sendo os
terreiros e canteiros os principais locais de cultivo (ver Gráfico 2.3). Não há em Caviana roças
de mandioca, apesar da grande quantidade de farinha consumida pelas famílias em suas casas
cotidianamente. A farinha é trazida de Macapá em grandes sacos pelos “marreteiros” que as
vendem para as famílias da ilha. Quando perguntados sobre a falta do plantio, alguns dizem
que não sabem fazer o processamento da mandioca, outros que o processamento pe muito
trabalhoso. No entanto, entre as mulheres ainda persiste o conhecimento da manufatura do
tipiti, importante instrumento de processamento da mandioca. Algumas famílias contam que o
plantio era realizado por várias famílias, principalmente no igarapé Ubuçutuba, mas
atualmente pouco encontrado. Enquanto a pesca é reconhecida como atividade comercial, a
venda de frutas é vista como oportunística, porque, seja pela qualidade ou pela quantidade de
frutas vendidas, ela não é regular. As frutas mais vendidas são: o açaí, a laranja, a bacaba, o
jerimum e a melância. Sua venda assume grande importância na econômica doméstica, no
entanto está associada mais à diversificação do plantio do que na intensificação de sua escala
de produção. Na maior parte dos casos, não se destaca a produção de um único produto para
venda (com exceção do açaí), mas há um esforço geral para a manutenção da riqueza de
plantas. Essa orientação se assemelha à de outros contextos amazônicos (Lima 2006; Adams
2006; Adams et al. 2006), em que a diversidade de formas de exploração dos recursos leva a
uma flexibilidade econômica das famílias ribeirinhas, permitindo uma inserção mais
autônoma no mercado. No entanto, um aspecto pouco abordado nesses trabalhos e que
decorre dessa escolha é como ela modifica os padrões de assentamento e transforma a
paisagem, como veremos adiante.

A trajetória de Adolfo, um de meus principais interlocutores é exemplar desta


flexibilidade, já que como quase todos os riberinhos, sua vida foi marcada por uma constante
mudança tanto de locais de moradia, como e principalmente por sua atividade econômica. As
atividades praticadas por Adolfo são comuns aos demais habitantes da ilha, apesar de nem
sempre a praticarem com tamanha intensidade. Adolfo Figueiredo nasceu em 14 de março de
1933 na Fazendinha no rio Piranha, na Ilha Caviana; a seguir trago um trecho do relato que
me foi oferecido por ele sobre sua vida:

117
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Quando me entendi, eu devia ter mais ou menos 10 anos de idade, fui


para o rio Pracutuba trabalhar na extração da borracha e da castanha, de
onde a gente tirava o azeite de Andiroba e a amêndoa de Muru-Muru,
vendida no caroço. Todos os produtos depois eram exportados para
Belém. (...) Foi por essa época que eu comecei a comprar farinha para
revenda. (...) Com a renda da farinha mandei construir minha própria
embarcação à vela em sociedade com um amigo. Mas logo voltei para o
rio Piranha e fiquei trabalhando na terra com meu pai, deixando meu
sócio trabalhar com meu irmão, Chico Piranha. Comecei a comprar
mercadorias de Chaves para vender em Caviana e de lá levava banana e
borracha que comprava no rio Pacajá e na minha própria terra em
Fazendinha. Investia numa coisa, quando não estava bom passava para
outra. Quando a coisa estava fraca comecei a cortar seringa na fazenda de
minha família, mais ou menos na mesma época em que meu pai passou a
gerência da família para mim, que era o filho mais velho. (...) Trabalhei
com a borracha cinco ou seis anos. No inverno trabalhava com a semente
e no verão com a borracha. (...) Depois de um tempo parei com a
borracha e passei a trabalhar em matança de pirarucu e capivara com meu
primo Julio Correia Figueiredo no Lago Escavado, nas cabeceiras do
Pacajá, dentro da ilha Caviana. Matava e dividia a mora com o dono do
lago, o Coronel Luzinan Dias. Era o próprio dono do lago que comprava
o produto (Adolfo, Caviana, 2010)

Uma das atividades comerciais da ilha é a do marreteiro, que compra os peixes e frutos
cultivados localmente para vendê-los nas cidades e também traz mercadorias das cidades e as
revende na ilha. Em Caviana, Roberto, morador do igarapé Taxipucu, é um conhecido
marreteiro. Leva os produtos da pesca de sua família e os cultivares de outros ilhéus para
vender na “beira”, em Macapá. 58 Na cidade, ele compra mercadorias para revender na ilha

58
A beira é um mercado livre e informal realizado no cais de Macapá pelos donos de barco vindos das ilhas da
região do delta amazônico e comerciantes locais. É ali que se negociam preços, fazem-se encomendas e
compram e vendem mercadorias. Na maior parte dos casos, os comerciantes locais compram os produtos dos

118
Figura 2.14: Acima, barco de passageiros e abaixo, barco de pesca ambos de Roberto e seus filhos.

Fotos: Juliana Salles Machado

119
Juliana Salles Machado

diretamente para os ribeirinhos ou para uma pequena venda que existe no igarapé Pracutuba.
Roberto e seus filhos possuem dois barcos, um menor, para a pesca, e outro maior, para
transporte de passageiros (Figura 2.14). A rotina do barco da pesca é sair do igarapé Taxipucu
em direção a Macapá para comprar gelo. De lá eles, vão pescar em mar aberto, próximo ao
igarapé Pracutuba, fazendo uma escala em sua casa no Taxipucu para comer e descansar.
Com os isopores cheios de peixe, voltam à cidade para vendê-los e recomeçar a viagem.

O barco de passageiros segue uma rota semelhante, saindo do igarapé Taxipucu e


seguindo até a vila do igarapé Pracutuba, onde eles pegam os passageiros e compram frutas
que serão revendidas na cidade. Do Pracutuba a Macapá, fazem muitas paradas para embarcar
mais passageiros, quando compram mais produtos para revenda. O barco tem alguns viajantes
fixos, que vão buscar sua aposentadoria, e outros esporádicos, que mandam avisar Roberto
quando querem ir à cidade. Ele descreve seu trabalho:

Eu compro na ilha porco, bode, carneiro, galinha, pato, queijo e leite,


no Pracutuba e nas ilhas próximas. Trazem [se referindo à seus filhos]
gelo de Macapá para comprar peixe no Pracutuba e também pescam
com malhadeira, linha e anzol. Compro banana. Aí, faço meu giro, a
viagem do começo do mês, dos velhinhos [aposentados] e passageiros
particulares para levar para Macapá (busco passageiros no Pracutuba,
Caridade e Ubuçutuba), levam só passageiros. Quando descarregam
eles de volta em suas casas é que fazem as compras de produtos.
Agora, não é época de porco, porque a maré é baixa e os porcos vão
mariscar no baixo e não dá para juntá-los. Só no alto conseguem pegá-
los para vender. Agora é época de peixe (maio-setembro), porque está
começando a secar, o peixe baixou e dá para pescar. De outubro a
novembro, vai ficando extinta a venda do peixe. Os que continuam
são os do mar, pescada, filhote e dourada, que tem o ano inteiro. Os
que somem são os do mato, como a traíra, arçu, araiari, tamotá, gigu,
anojá, aruanã, que se pescam de maio até outubro. De outubro em

barqueiros (banana, melancia, peixe, laranja, castanha, mel, açaí, madeira), e os barqueiros compram produtos
industrializados para levar para a ilha, seja para uso próprio ou para revender aos moradores da ilha. Não se
trocam produtos e mercadorias, e sim se compram e vendem com base no melhor preço ou pelo estabelecimento
de redes de clientela fixa.

120
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

diante, eles estão muito ovados. Os associados à “Colônia de


Pesquisadores” não pescam entre novembro e janeiro, quando
recebem seguro. É nessa época que a gente larga a profissão da pesca
para comprar o porco, o bode e essas coisas. A venda é feita em
Macapá, tem uma pessoa certa, e ela compra e reparte. O que tiver, ele
compra. Compra tudo. Ele é um atravessador, repassa o produto para
as feiras que vão vender para o consumidor. O negócio é divido com
os filhos. Depois da venda em Macapá, é calculado o lucro (total
menos as despesas). A divisão do lucro é conforme a necessidade dos
filhos. A diferença é grande quando a venda é de peixe e não de porco.
O peixe é pescado pela própria família e por isso ganham mais. Mas
na cheia fica difícil pegar os peixes no mar, pois eles ficam no fundo e
eles não têm material. (Roberto, Caviana, 2009)

Além de Roberto, há outras pessoas em Caviana que levam passageiros, compram e


vendem produtos e mercadorias, como seu irmão Chico e seu sobrinho Solano, mas não
viajam com a mesma frequência que ele. Outra forma de comércio na ilha se dá por meio de
um marreteiro que vem da cidade a cada dois meses para vender objetos como cadeiras e
panelas, que os moradores podem comprar em prestações. Também se pode encomendar de
outras ilhas próximas como Marajó, de onde vêm frutas – como açaí e laranja – e madeira,
mas esse comércio não é regular. Em geral, a coleta de excedentes de alimentos do terreiro e
da floresta para venda é impulsionada pela vontade de comprar um bem de maior valor – por
exemplo, um gerador ou um motor de barco.

As relações comerciais estabelecidas com a clientela são instáveis, sujeitas à constante


avaliação em função dos preços de outros comerciantes. A revenda em Caviana pode ser sob
encomenda, no ato itinerante de “marretagem” pelos rios e igarapés, quando é feita
diretamente na casa dos ilhéus, ou ainda na casa dos marreteiros, quando alguém o procura.
As mercadorias trazidas da cidade que não são vendidas pelos marreteiros acabam sendo
usadas no consumo de seu próprio grupo doméstico. Não há diferença intrínseca entre o que
eles usam em casa e o que vendem – isso depende da necessidade. Assim, a diferença entre

121
Juliana Salles Machado

produto e mercadoria se refere antes à origem e à produção do item que à transação de


compra e venda59. Vejamos um exemplo de uso destes termos em um trecho relatado por
Adolfo: “me associei com o meu cunhado e compramos juntos uma canoa. O nome era Ilah.
Nessa canoa passou a viajar para Belém levando produtos de Caviana, como borracha, porcos
e pele de animais, e trazia mercadorias como frete para um comércio no rio Apani na
comunidade Sagrado Coração de Jesus, vendendo também mercadorias por conta própria”.

O principal critério é o local de origem, isto é, se o item provém de Caviana ou de


fora. As mercadorias, são valorizados como bens de consumo e desejados pelos ilhéus, como
podemos ver através da presença de eletrodomésticos como televisores, fogões e até
geladeiras em algumas casas riberinhas, sem que, no entanto, eles sejam ligados, já que não há
luz elétrica e os poucos moradores que tem geradores à gasolina só ligam de vez em quando,
em geral para ver o jornal ou a telenova e em seguida a desligam. A energia gerada não é
suficiente para manter um freezer ou uma geladeira, assim também o fogão a gás (também
chamado de “butano”), que dificilmente são usados, devido a dificuldade e custo de trazer um
botijão de gás para a ilha. Um dos termos locais para se referir à pessoas que possuem muitas
coisas, como as mencionadas acima, é “tá cheio de pavulagem” ou “ele é pavo”, se referindo a
vontade de se exibir aos outros, de contar histórias maiores do que elas ocorrem na realidade.
Já os itens produzidos localmente têm uma conotação de verdadeiros, e seu uso é associado à
própria noção de pertencimento à Caviana. Comer peixe, camarão com açaí, banana na
merenda ou uma boa bacaba é fazer parte da família e saber valorizar seu lugar.

Ainda com relação ao Gráfico 2.2, vê-se que o trabalho remunerado representa uma
porcentagem significativa da renda individual e familiar. Destacam-se, de um lado, as
atividades ligadas ao município de Chaves – professores, merendeiras e agentes de saúde – e,
de outro, os serviços prestados às fazendas do leste da ilha, como vaqueiros, encarregados, ou
ainda através da roçagem de terreiros e estradas. Além desses, esta categoria inclui trabalhos
mais especializados como o dos “mestres”, carpinteiros que constroem ou consertam casas,
trapiches e barcos.

59
Os termos produto e mercadoria são usados localmente para distinguir o que se compra e não é produzido pela
família daquilo que se produz no grupo doméstico e é vendido para outras famílias, marreteiros ou na cidade. As
mesmas palavras distinguem alimentos locais – plantados, pescados, colhidos ou caçados – de industrializados.
Esses termos foram discutidos mais detalhadamente por Lima (2006).

122
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Apesar de, no Gráfico 2.2, a aposentadoria na renda familiar ser pequena comparada
às demais, do ponto de vista da casa (e não do indivíduo), ela é importante, porque é regular e
possui um valor alto para os padrões econômicos ribeirinhos. A aposentadoria deu aos mais
velhos uma nova posição na casa, e é interessante observar o que acontece quando a
aposentadoria provém das mulheres. Normalmente, o pai é tido como o dono da casa,
condição que pode também ser de um avô. No entanto, vi mais de um caso em que a avó
assumia a responsabilidade e o status de dona da casa devido ao poder aquisitivo que lhe
conferia a aposentadoria, passando a ter mais poder de decisão sobre o grupo doméstico e a
família de seus filhos.

O Gráfico (2.4) seguinte trata da variedade de animais criados nas casas riberinhas.
Novamente os dados representam os valores por família, sendo que neste caso, o total de
representantes entrevistados foi 117. Portanto temos ao todo 117 famílias, das quais 26%
tinham apenas criação de gado, 23% de porcos e galinhas, 24% apenas galinhas ou patos (as
galinhas e patos não são muito diferenciados entre os ribeirinhos, que em geral são referidos
conjuntamente como “minha criação”), 21% tinham um misto de todos os animais de criação
(porcos, galinhas e gado) e 6% apenas de porcos.

Gráfico 2.4 – Gráfico com a variedade de animais criados nas casas ribeirinhas da área de pesquisa

123
Juliana Salles Machado

A criação de animais é uma categoria pouco citada pelos ribeirinhos no cotidiano, mas
que na entrevista se mostrou importante para a economia doméstica. Quase três quartos dos
entrevistados (72%) citou-a entre suas atividades. O Gráfico 2.4 mostra a porcentagem de
cada criação. O principal motivo para sua omissão pelos entrevistados na renda individual ou
familiar é que esses animais são pouco vendidos. Galinhas e patos são comumente usados
para ovos e carne; porcos e gado são tidos como forma de poupança para momentos de crise
ou para as festas de santo. Eles são bens de prestígio e são mortos como oferta aos santos.
Olívio do Pocotó foi um dos poucos entrevistados a afirmar que vendia porcos como fonte de
renda, ele disse “vendo porcos. As plantas não vendo, é para a família”, reforçando essa clara
distinção entre o plantio e a coleta de frutas e a criação, que como vimos esconde também a
importância da venda das frutas como uma importante fonte de renda para as famílias. Os
porcos são criados embaixo das casas elevadas, e o gado pode ser criado no terreiro (nesse
caso, os terreiros são mais abertos e têm menos árvores frutíferas) ou, o que é mais comum, os
ribeirinhos fazem um acordo com um fazendeiro ou o encarregado de uma fazenda para
deixar o gado pastar em suas terras. Os ribeirinhos chamam esse sistema de “meia”, se
referindo à porcentagem que o dono das terras cobra na hora da venda ou do abate, o que
ocorre quando o animal está ficando velho e vai perder seu valor, quando há na ilha notícias
de doenças que estão matando as criações – comuns no verão –, ou quando precisam de
dinheiro para alguma despesa de maior valor. É importante frisar, que ao falar de criação de
gado, estamos nos referindo a um número baixo de cabeças, que pode variar de 1 a 5, quando
os criam no entorno de suas casas e de 10 a 30 quando os têm criados nos campos no sistema
de meia com os fazendeiros. Entre as famílias ribeirinhas que possuem o maior número de
cabeças de gado na área de pesquisa, temos Roberto do Taxipucu com 12 cabeças, Domingos,
no Turezinho com 15 cabeças de búfalo, Adolfo com 29 cabeças de gado e Eusébio na
Prainha que entre búfalo e o gado (chamado localmente de “branco”) tem 20 a cabeças.

A prática econômica dos ribeirinhos é um dos fatores de agregação entre as famílias


em Caviana. Em seu artigo sobre a economia doméstica das comunidades de Mamirauá no
Amazonas, Lima ressalta um ideal de autonomia que se expressa tanto no âmbito doméstico
quanto na coletividade dos assentamentos (Lima 2006:150). Esse ideal de autonomia faria
parte, conjuntamente com a religião e com o parentesco, da “identidade comunitária” dos

124
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

ribeirinhos, expressada na noção apresentada por Lima como “comunidade de parentes”. Essa
noção de comunidade, de pertencimento a um grupo através de um ideal de autonomia é
marcado em Caviana através dos contrastes feitos pelos ribeirinhos com a vida da cidade,
como reforça Alemão ao responder porque não ia para a cidade, “Caviana basta limpar, aqui
tem tudo”. Mas, como ressalta a autora esse ideal está imbricado com parentesco, já que um
dos valores agregados aos alimentos é o fato de serem feitos pela família, na sua terra – e eu
acrescentaria, reforçando a idéia de longevidade da relação entre os parentes e o território. O
termo “comunidade de parentes” expressa bem como todos os âmbitos de coletivo ribeirinho
perpassam o parentesco como principal denominador de agregação social. Lima conclui que
“as manifestações identitárias locais mais fortes são aquelas ligadas à práxis econômica, pois
é neste contexto econômico, em que os grupos domésticos se organizam para a produção de
pessoas e dos seus meios de subsistência, que a base de sua noção particular e horizontal de
coletividade é construída” (Lima 2006:150).

Podemos entender a especificidade econômica dessas comunidades amazônicas em


paralelo com o modelo da práxis, proposto por Gudeman e Rivera (1990) para as populações
camponesas da Colômbia segundo o qual estas buscam antes a manutenção e o aumento da
base da casa do que o crescimento constante da renda. Gudeman e Rivera (1990) mostram
que, apesar de se inserir num mercado capitalista pela venda de seus cultivares, as sociedades
camponesas atuam sob outra lógica de produção. Já sobre as comunidades ribeirinhas em
Mamirauá, Lima (2006) sugere que a economia doméstica desse contexto amazônico pode ser
compreendida pela distinção local entre produto e mercadoria. Os termos são nativos e fazem
uma distinção entre os artigos que são comprados e aqueles que são vendidos (Lima
2006:152). A economia doméstica em Mamirauá, segundo Lima:

consiste na organização de atividades produtivas que resultam em uma


produção que é parte destinada ao consumo da família, parte destinada à
venda para a aquisição de mercadorias para abastecer a casa, as estratégias
adotadas para atender o consumo doméstico são informadas pelo contexto
em que se dá a troca entre a produção e a mercadoria (...) O planejamento e
a organização das atividades produtivas, as decisões tomadas quanto ao

125
Juliana Salles Machado

consumo ou a venda de produtos, e mesmo a escolha da atividade


produtiva a ser desenvolvida, são exemplos de comportamentos
econômicos que são informados pelo conhecimento da tendência dos
preços de mercado (Lima 2006:152).

Em Mamirauá, como em Caviana, os termos produto e mercadoria também


distinguem o que se produz in situ, pelo plantio, a coleta ou a pesca, do que provém da cidade,
como artigos industrializados, utensílios e ferramentas.

Mais do que entre produtos primários e industrializados, Lima (2006:148-151) destaca


a diferença entre resultar de trabalho direto ou indireto, bem como entre uma relação
monetária de compra e venda e uma de consumo direto e/ou de troca. O contexto de produção
e comércio de cultivares de Caviana é semelhante aos descritos por Lima, inclusive no que
tange às categorias produto e mercadoria. Assim como Lima, acredito que essas definições
marcam uma valorização interna de contato direto com a produção em oposição a uma relação
de compra e venda estritamente monetária. Essa seria uma valoração distinta daquela dos
produtos industrializados. Enquanto estes são tidos como modernos e muitas vezes objetos de
desejo, como as disputadas bolachas recheadas vendidas por Tereza após as missas de
domingo, os produtos da terra trazem a idéia do nosso, da família. Trata-se de um contraste
entre o externo e o interno, entre o nós e os outros – ambos sendo valorizados, mas através de
‘chaves’ de valoração distintas. Como Gudeman e Rivera (1990), associo essa valorização a
uma lógica econômica relacionada não ao acúmulo ou ao lucro, mas à permanência e ao
aumento da base da casa – nesse caso, da família ribeirinha.

A diversificação das atividades econômicas dos ribeirinhos é tida na literatura como


responsável por sua própria estruturação social e manutenção no tempo. Em Caviana, essa
diversificação é amplamente arraigada e difundida, intimamente ligada ao modo e ao ritmo de
vida ribeirinhos. A diversidade proporciona uma renda familiar pequena mas segura, e essa
segurança se assenta na flexibilidade para lidar tanto com as flutuações de preço do mercado
quanto com a instabilidade ambiental.

126
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

2.5 Os grupos domésticos e as casas

Os ribeirinhos de Caviana moram em casas feitas de tábuas de madeira, elevadas do


solo e sustentadas por esteios, que ocorrem também ao longo de grande parte da calha do rio
Amazonas (Figura 2.15). As casas podem ser construídas às margens dos igarapés e das
várzeas, os chamados baixos, perto das margens dos rios ou em lugares mais altos, nos
barrancos. Algumas estão ainda em terra firme, em tesos próximos aos igarapés. É nos tesos
que os ribeirinhos mais plantam roças e homegardens (Posey 2008), ou sítios e terreiros,
como são chamados localmente (Figura 2.16). Já quando as casas estão em várzeas inundáveis
ou na beira de um igarapé, encontramos trilhas no fundo das casas pelas quais se chega
facilmente aos tesos.

Para construir sua casa, os ribeirinhos buscam áreas que consideram “bonitas”, o que
se define por uma alta concentração de espécies vegetais “boas”, isto é, árvores úteis, seja
como fonte de alimento, matéria-prima ou sombra ou pelo seu valor estético. Essas
concentrações estão normalmente relacionadas à intervenções antrópicas anteriores, em
ocupações recentes ou antigas (pré-coloniais ou coloniais), como vemos no exemplo relatado
por Dária, filha de Tereza e Adolfo:

A gente morava na Piranha junto com os irmãos do papai, mas uma vez
ele escutou sua irmã achar ruim que os meninos tirassem muito tucumã
que era para seus porcos. Então papai pensou que precisava arrumar um
lugar cheio de árvores de fruta que seus filhos pudessem comer à
vontade. Procurou esse terreno bonito [João Brás] perto da família da
mamãe. Este terreno fica ao lado do seu irmão. Logo mudou para cá para
uma pequena casa velha que existia no terreno junto com um homem
que morava lá. Depois foram construindo sua casa e se mudaram.
Depois papai comprou uma terra em Ilha Nova num campo na margem
do rio. Se mudaram para lá onde tinham retiro, tinham gado holandês,
búfalo e cavalo. Mantiveram o sítio aqui e vinham de vez em quando.

127
Figura 2.15: Acima, grupo doméstico do igarapé Taxipucu, com casa de Roberto e Igreja de Nossa
Senhora de Nazaré à direita; ao meio à esquerda, casa de Adolfo no João Brás e à direita casa de
Constâncio no Igarapé Socó; abaixo exemplos de casas, à esquerda no Socó e à direita no igarapé Pocotó.

Fotos: Juliana Salles Machado

128
Figura 2.16: Acima, exemplos de trilhas importantes, à esquerda no João Brás, à direita no Pocotó; abaixo
à esquerda, exemplo de terreiro no João Brás e à direita terreiro sendo construído no entorno de uma casa
nova.

Fotos: Juliana Salles Machado

129
Juliana Salles Machado

Depois mamãe quis voltar para ficar perto da família. Venderam a


fazenda e ficaram no João Brás. (Daria, João Brás, Caviana, 2008)

Ainda se referindo a idéia de bonito associado às plantas vemos o relato de Maria:

O lugar é bonito, por isso escolhi [se referindo a uma praia à beira-mar
onde mora]. Eu mantenho o terreno limpo por causa da criação e das
plantas. Fica mais bonito para ela dar fruta aqui na frente. Na mata custa
muito ela movimentar. Fica muita sombra (Maria Valadares, Caviana,
2009)

Estes exemplos reforçam a associação entre o “bonito” e o manejo das plantas,


principalmente através da presença de árvores valorizadas e o espaçamento das árvores
(“estava limpo”). Como último exemplo dessa associação, temos Laura Silva, moradora do
São Raimundo, que me disse: “escolhemos aqui porque o porto era bom e tinha abacatal e
coqueiros, mas eles quebraram com a ribanceira”.

Embora as famílias tendam a permanecer na mesma área, na juventude, os homens


vivem um período de maior mobilidade. Quando um rapaz parece pronto para assumir a
subsistência da casa junto com o pai, ele busca novas experiências de vida, longe da família.
Nesse início da vida adulta, pode morar em diversos pontos da ilha e mesmo fora dela, em
casas de amigos, parentes, patrões ou mesmo embarcado. Faz vários trabalhos temporários
como marítimo em barcos de pesca ou no transporte de gado para a cidade, como vaqueiro
nas fazendas de búfalo do leste da ilha ou na roçagem de terreiros de famílias ribeirinhas.
Esporadicamente, volta à casa, sobretudo para festas e eventos familiares. Esse período se
encerra quando o jovem se casa, volta à morar com os pais e constrói sua própria casa ao
lado.60 Com o casamento, sua mobilidade diminui na escala regional. No entanto, troca
constantemente sua casa, com uma média de dez anos por casa. As mudanças se devem
principalmente ao fato da matéria-prima das casas ser perecível e precisar de renovação
periódica, mas também pode estar relacionada à fenômenos naturais (queda de barrancos, seca
e à pororoca) ou sociais (mudança de parentes). Em geral, se constrói a nova casa perto da

60
Com exceção dos empregados de grandes fazendas, que passam a morar com a mulher numa casa emprestada
pelo proprietário.

130
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

anterior – às vezes, bem ao lado, mantendo-se próximo à casa paterna. Vejamos o exemplo de
Magno, filho de Francisco Figueiredo, depois de se casar com Ruth,:

Ficamos no mesmo lugar, numa casa ao lado da casa de meu pai.


Ficamos dois anos na primeira e uns seis anos na segunda casa. Mas,
achei que tava acanhado lá e para não brigar vim para cá [Santo Antonio
– Taxipucu, mesmo rio onde se localiza a casa de seu pai], local onde a
minha bisavó morava. Escolhi aqui porque já tinha um plantio e
achamos o lugar bonito.

Segundo eles me informaram Santo Antonio já tinha bacaba, açaí, limão, lima e
jaqueira, “já estava tudo plantado”. Depois de assentado, eles foram “limpando” a área, onde
pretendem fazer uma açaizal. Também plantaram coisas novas como abacaxi, urucum, banana
e começaram uma horta. Para esta eles compraram sementes de cebolinha, batata, cenoura e
repolho na cidade e Ruth ganhou uma muda de babosa para formar um canteiro. Outras
mudas que foram usadas vieram de um sítio abandonado que fica mais acima do rio Taxipucu,
local onde havia um sítio antigo “já cerrado na beira do campo”.

Em Caviana, como em muito grupos indígenas da Amazônia, a mudança da casa não


ocorre em um único evento, mas num processo mais demorado e planejado. Durante a
permanência de uma família num lugar, há um contínuo manejo ambiental das áreas do
entorno e de outras mais distantes. Essas áreas vão sendo transformadas pela constante
limpeza e seleção de árvores, além do plantio de novas espécies e se tornam importantes
fontes de recursos para a família. Para o novo local de moradia são escolhidos lugares
previamente manejados. Quando se constrói uma nova casa, seu entorno já é conhecido, já
tem certo número de árvores úteis e seus caminhos já estão abertos. Concluída a construção
da nova casa, a anterior é parcialmente abandonada, mas continua a receber cuidados mesmo
depois de seus moradores terem saído. Ela segue sendo uma importante fonte de recursos –
como matéria-prima da própria casa ou do entorno, de onde se extraem madeira, ferramentas,
frutas, sementes e mudas. Esse processo de mudança é exemplificado pelo relato de Geralda,
hoje moradora do Taxipucu.

131
Juliana Salles Machado

Eu nasci e me criei até os nove anos de idade no Apani. Fui dada por
minha mãe à Bráulia Figueiredo [irmã de Adolfo e Roberto] e fui morar
nas Piranhas, onde fiquei aproximadamente 10 anos. Lá, me casei com o
irmão de Bráulia, Célio Figueiredo. Construí minha casa ao lado da casa
da minha cunhada e depois de já ter alguns filhos começamos à voltar
para o Taxipucu, onde ficavámos na casa de Roberto. Ia e vinha várias
vezes, até que construímos nossa casa no Taxipucu e nos mudamos.
Ainda vamos à Piranha de vez em quando, já que ainda temos uma casa
lá.
Como em diversos contextos rurais a casa “é uma prática, uma construção estratégica
na produção da domesticidade” (Marcelin 1999:36), e também “no seu conjunto, é pensada
como uma combinação, por assim dizer, da ordem da natureza com a ordem social” (idem,
p.35). Marcelin distingue dois níveis, o da “casa” e o da “configuração de casas”, que seria,
para o autor, um conjunto de casas vinculadas por uma ideologia da família e do parentesco.
No entanto, ressalta a relação indissociável entre esses dois níveis, “que conformam um
sistema de sentidos, mediante o qual a casa e a configuração se constroem” (1999:33). A
unidade social e econômica mínima mais importante em Caviana é o agrupamento ou, como
quer Marcelin a configuração de casas (Figura 2.17), que chamo aqui de grupo doméstico.
Utilizarei também o termo casa, de maneira bastante inclusiva a fim de agregar não apenas
sua edificação, mas também os arredores, seus moradores e práticas; tudo o que Marcelin
designa como “domesticidade”. O grupo doméstico em Caviana consiste numa casa principal,
a do “chefe da casa”,61 e nas casas de seus filhos homens casados, com poucos exemplos de
casas de agregados. O trabalho é dividido entre os moradores desse agrupamento e parte da
produção é deixada na casa principal. Entre os homens, essas atividades envolvem a caça e a
pesca, a roçagem da área do terreiro e a manutenção física das casas, bem como a fabricação e
manutenção dos instrumentos de trabalho e dos barcos. As saídas para o mato, seja para caçar
ou para colher produtos da floresta, são normalmente em grupo, entre irmãos, pais e filhos ou
entre primos. Da pesca, principalmente quando implica travessias mais longas, participam
grupos mais diversos, nos quais podem ser incluídos amigos, tios e cunhados. Os homens

61
A expressão designa o pai da família nuclear tanto na casa como, em alguns casos, no agrupamento doméstico.
No caso do Taxipucu, por exemplo, Roberto é considerado o chefe de todo o agrupamento de casas de seus
filhos. É ele quem define que trabalho vai ser feito e quanto recebe cada vai receber. Nenhuma decisão que afeta
o grupo é tomada sem o seu consentimento.

132
Figura 2.17: Acima, exemplos de roças sendo formadas próximo ao igarapé Socó; Ao meio roças de
banana cercadas, à esquerda no Turézinho e à direita no Taxipucu; abaixo à direita, roça de banana sem
cerca na mata no Turézinho e à esquerda, exemplo de roça recentemente abandonada no Socó.

Fotos: Juliana Salles Machado

133
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

encarregam-se de trazer os alimentos obtidos longe da área de moradia – a caça, o peixe e as


mercadorias vindas da cidade. De modo geral, aos homens cabe a relação com o exterior, o
que, no caso dos ribeirinhos, passa por sua relação com a água.

Às mulheres cumprem principalmente o preparo da caça e da pesca, o cuidado com


pessoas e bichos de estimação e criação, o cultivo de plantas do terreiro e canteiro, assim
como a coleta de alimentos e matérias-primas na floresta. O cuidado dos filhos, a limpeza da
casa e o processamento dos alimentos podem ser feitos individualmente ou com suas filhas
e/ou noras. Em geral, o compartilhamento do trabalho feminino é centrado na figura da sogra,
na casa principal. Como se trata de um sistema virilocal, as mulheres tendem a acompanhar o
marido quando se casam, indo morar perto da sogra e deixando seus parentes em igarapés às
vezes longe de seu novo grupo doméstico. Há certa disputa entre as cunhadas pela
proximidade e aceitação da sogra, bem como pelo uso da terra do marido, que é
compartilhado entre as casas.

O espaço da casa é por excelência um espaço feminino e seu entorno é caracterizado


por um alto grau de atuação antrópica, o que o transforma em um lugar bastante conhecido e
controlado. Aí podemos incluir os espaços estritamente domésticos como a casa-edificação e
o terreiro, mas também a mata do entorno, os pequenos igarapés que por vezes delimitam o
terreiro, e os caminhos entre as casas, que os ribeirinhos chamam de “estrada”. Grande parte
das atividades femininas são realizadas nesse espaço que é doméstico, em seu sentido mais
amplo.

O foco do trabalho feminino é o cuidar, o que envolve desde a busca de recursos


alimentares nas imediações da casa ou nos igarapés até a manutenção dos laços de parentesco
pelas visitas à parentes. Na busca por recursos, as mulheres pescam com rede, “matapi” e
“anzol” na beira do trapiche e no interior dos igarapés, sempre acompanhadas dos filhos
menores. No terreiro, procuram frutas, sementes e raízes, enquanto as crianças correm à sua
volta. Às vezes, entram na mata para pegar plantas que não têm no terreiro. De volta à casa,
preparam os alimentos e cozinham para toda a família. Também gastam parte do seu tempo
buscando água, limpando a casa e fazendo pequenos consertos. Para manter próximas fontes

134
Juliana Salles Machado

seguras de frutas, temperos e remédios, cuidam dos terreiros e dos canteiros. 62 Mencionei
anteriormente um relato de Magno sobre porque escolheram o local para sua moradia, agora
cito a versão de sua esposa, Ruth sobre o mesmo tema. Gostaria de ressaltar a visão do cuidar
que ela traz em sua fala, ausente na versão oferecida por Magno: “escolhemos aqui porque
tinha fruteira, mas estava cerrado, então a gente achou que tinha que limpar, porque é que nem
gente, tem que cuidar”.

As plantas cultivadas em canteiros suspensos servem não só como alimento, mas


também como remédio para a cura de doenças e proteção da moradia (Figura 2.18).
Assumindo um caráter de mediadoras entre os humanos e os não-humanos, as plantas se
tornam poderosas ferramentas nas mãos das mulheres (ver Capítulo 3 e 5). O conhecimento e
manuseio das plantas é transmitido de mãe para filha, no processo inicial de formação de um
canteiro. Em uma etapa posterior, esse conhecimento é partilhado também entre parentes,
amigas e vizinhas, através das visitas, quando as mulheres trocam mudas de plantas e
experiências.

A divisão etária no interior das casas aponta para a preponderância de dois adultos e
um variado número de crianças em cada uma, indicando tratar-se de famílias nucleares,
compostas por pai, mãe e filhos. Crianças são consideradas como tal até que comecem a
trabalhar, ou seja, até que possam contribuir para a subsistência da casa ou do grupo
doméstico. Quando se casam, os filhos homens podem ficar um ou dois anos na casa dos pais,
com sua mulher e filhos. Essa situação é vista como temporária, enquanto o marido não
constroi sua própria casa ao lado da de seus pais e arruma o terreno em volta com plantas
úteis. A nova família passa a compartilhar o espaço de entorno e a área de caça, pesca e
coleta, além de muitas vezes fazer as refeições na casa dos pais do marido.

Não há um padrão normativo para os casamentos, mas os parceiros são


predominantemente da própria ilha. “Arrumação” é o termo que designa acordos feitos para o
casamento – a escolha da esposa e as conversas entre os pais. Não há dote envolvido nos
arranjos matrimoniais; normalmente, as conversas giram em torno dos conhecimentos, da
experiência e das responsabilidades domésticas das mulheres, da paternidade de seus filhos

62
Como veremos melhor no Capítulo 3, são elas que escolhem que árvores ficam ou saem do terreiro,
acompanham e zelam por seu crescimento, tirando ervas daninhas, podando ou acrescendo “terra boa” e água.

135
Figura 2.18: Acima à esquerda e abaixo, canteiro de Tereza no João Brás; acima à direita, canteiro na
Prainha e ao meio a direita canteiro nos fundos da casa no Pocotó. Fotos: Juliana Salles Machado

136
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

(se já os têm) e de quem ficará com eles após o casamento 63. Em geral, as mães têm um papel
importante nos arranjos para o casamento dos filhos homens. Augusta, moradora do Taxipucu
e mãe de cinco filhos homens (ver Anexo 3), diz que faz a “arrumação” durante a festa de
Nossa Senhora de Nazaré, que ela e seu marido organizam, quando convidam algumas noras
em potencial para ajudar nas atividades da casa. Perguntada sobre o significado do casamento,
ela explica que, por meio dele, as mulheres “passam do poder do pai para o do marido”.
Enquanto o filho ainda está em seu poder, é responsabilidade da mãe “cuidar de tudo, comida,
roupa, tudo”; depois do casamento, essa responsabilidade para a ser da esposa, mesmo que ela
more na casa da sogra.

Embora não haja uma regra, há uma tendência à repetição do casamento entre
determinadas parentelas. Assim, por exemplo, é comum um homem se casar com a prima da
esposa do irmão ou com a cunhada do irmão. É o caso de Izete Valadares, prima de Augusta,
do Ubuçutuba, cuja irmã é casada com um irmão de seu marido, e ambas moram no terreno
do sogro (ver Anexo 4). Outro exemplo é do Taxipucu, onde todas as noras de Roberto,
casadas com seus filhos homens, são primas entre si (ver Anexo 3). Como as famílias tendem
a manter suas propriedades e permanecer no mesmo lugar, os vários casamentos entre certas
famílias acabam produzindo uma relação entre determinados lugares, como acontece entre o
igarapé Taxipucu e o Ubuçutuba, pela família de Roberto.

Mas nem sempre a virilocalidade é posta em prática. Pude acompanhar uma mulher,
Conceição, que construiu sua casa perto da de seus pais, pela falta de terreno da família do
marido. Neste caso, no igarapé Socó, a casa da filha foi construída dentro do terreno dos pais,
afastada do grupo doméstico de seu pai e irmão, sem compartilhar a área comum das
atividades cotidianas. Como vemos no mapa (Figura 2.1), a casa de seus pais, Constâncio e
Dica, fica no interior da ilha, na várzea do rio Socó. O filho homem do casal construiu sua
moradia ao lado da de seus pais. No entorno desse agrupamento, há uma área desocupada.
Entretanto, a casa de Conceição, única filha mulher, foi construída na costa da ilha, perto da

63
Nos casamentos por gravidez, muito comuns na ilha, a paternidade é questionada e posta em dúvida pela
família do homem. Como atestado de veracidade, comparam-se a data de nascimento e a que foi dada para a
relação entre seus pais. Se as data não atenderem às expectativas dos avós paternos, a esposa é devolvida a seus
pais.

137
Juliana Salles Machado

casa do irmão do seu pai. Agora, os filhos homens de Conceição passaram a construir suas
próprias casas nesse novo agrupamento.

As casas em geral abrigam também filhos de criação, crianças adotadas por uma
família que passam a viver com os filhos do casal64. Essas crianças são entregues por seus
pais quando falta comida em sua casa de origem, quando eles se separam ou porque eles não
querem/podem criá-las. Uma criança pode mudar de casa mais de uma vez, sendo que muitas
vezes, os pais voltam para buscá-las alguns anos depois, quando já dispõe de mais recursos ou
quando as crianças já são grandes o suficiente para ajudarem nos afazeres domésticos. Na
falta de recursos financeiros dos pais, a entrega à famílias mais ricas ou influentes é
considerada uma forma de amor e proteção à criança, e seus pais são respeitados por isso 65.

Há ainda a categoria dos agregados, que normalmente são pessoas adultas que moram
com uma família, mas não são seu parente. O agregado ajuda nos trabalhos domésticos, se for
mulher e, se for homem, nos trabalhos externos como a roçagem do terreiro no entorno da
casa, a caça e a pesca. É uma situação comum, mesmo nas casas consideradas mais pobres. A
situação do agregado difere da do filho de criação não só pelo caráter mais efêmero como
pelo fato de a relação não ser considerada como a de um parente. Ela se baseia em pagamento
ou troca, seja através da remuneração o trabalho, seja pela troca de favores entre famílias ou
indivíduos.

64
Na casa de Adolfo e Tereza, encontrei mais de uma vez meninos ou meninas adotadas. Essas crianças eram
dadas pelas mães e depois de alguns anos acabaram voltando para casa ou indo trabalhar em algum outro lugar.
Tereza e Adolfo já criaram pelo menos cinco crianças, sendo que cada uma delas deve ter ficado com eles de três
a cinco anos. Depois de “criadas”, é comum a mãe pedir as crianças de volta, pois elas já conseguem trabalhar e
ajudar a família.
65
Outra situação comum é a de padrinhos pedirem para ficar com o afilhado, como no caso de Niel, filho de
Reinaldo Figueiredo, que já acabou a escola em Caviana, mas quer estudar mais. Seus padrinhos moram em
Macapá; a madrinha é a filha de Francisco, seu tio-avô. Eles pediram para ficar com ele em Macapá para que o
menino continue os estudos. A situação aí é diversa, pois passa pela questão cidade-campo, mas ainda pode ser
entendida pela mesma ótica de os pais entregarem um filho a pessoas com “melhores condições de vida” – no
caso, representadas pela cidade, valorizada pelo acesso à escola, a saúde e a bens de consumo. Niel ainda não foi
morar com os padrinhos em Macapá, mas há muitas famílias que mandaram os filhos para a cidade atrás de
estudo e trabalho, como os filhos de Adolfo, que ficaram com parentes em Macapá para estudar. Destes, nenhum
voltou a Caviana, apesar de sempre comparecerem a festas e de terem se casado com outros “filhos de Caviana”.
Também Ricardo, o filho mais velho de Roberto, morou em Belém, na casa de sua tia e madrinha, Bráulia, para
estudar. Ao perceber seu desinteresse nos estudos, mandaram-no de volta à ilha, de onde não saiu mais. Apesar
desses exemplos, há uma clara distinção para quem pode mandar os filhos para a cidade, pois as famílias que os
recebem não são consideradas “pais adotivos”. Os parentes na cidade os recebem, mas os pais enviam dinheiro
mensalmente para custear sua estadia e seu estudo.

138
Figura 2.19: Acima à esquerda, terreiro no Igarapé Taxipucu, à direita no Turézinho; Ao meio, exemplos
de canteiro em outro grupo doméstico do Taxipucu, à esquerda e na prainha, à direita; embaixo, contraste
com vegetação de mata em trecho sem casas no igarapé Taxipucu. Fotos: Juliana Salles Machado

139
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

O entorno das casas tem uma vegetação menos densa, evidentemente distinta da mata
que o circunda, e é chamado terreiro. Os terreiros são considerados parte do universo
doméstico, junto com as casas. Podem variar entre terrenos com poucas árvores e grandes
clarões, comuns nos campos das margens da ilha, onde estão as fazendas de gado (Figura
2.19) e terrenos com uma grande concentração de árvores úteis, quando podem ser chamados
de “sítio”.

Um sítio pode estar no entorno da casa ou no interior da mata; pode estar em uso ou já
ter sido abandonado. O terreiro da casa de Adolfo e Tereza é considerado um sítio. Nesse
terreno, há também outro lugar dentro da mata que é chamado de sítio e fica perto do igarapé
Turezinho. Consiste numa concentração de árvores frutíferas e de outras que dão boa madeira
para construção e ferramentas. O sítio no interior da mata não é usado cotidianamente há
cerca de oito anos, mas é esporadicamente limpo e ainda identificado pela família e pelos
vizinhos. Durante esse período de relativo abandono, a família de Adolfo, assim como outras
pessoas que moravam perto, colhiam ali frutas, palmito e madeira. Enquanto persiste a
memória do dono de um sítio antigo, há um privilégio de uso baseado no parentesco. Quanto
mais vaga a lembrança de quem é o dono do sítio e, principalmente, quanto maior o descuido
com sua manutenção, maior é a probabilidade de se perder o privilégio de uso. Após o
abandono de um sítio, há um processo gradual de reintegração da área à floresta. Áreas em
diferentes estágios de abandono são identificadas pelos ribeirinhos à partir do grau de
“madureza” das plantas, como é as vezes chamado. Há diferenças entre a capoeira, a mata
nova e a mata velha. A primeira etapa de regeneração reconhecida é a capoeira que é
composta por espécies como embaúba, angá, taperebá e taboca. Em seguida, viriam açaí, pau-
mulato, urucuri, sororoca (palma) e cauaçu, formando a chamada mata nova. Quando chega a
ser mata velha, as espécies de plantas não são mais nomeadas devido à sua grande riqueza.

O espaço doméstico inclui a própria casa, os canteiros e as pessoas, mas também


alguns bichos. Esses podem ficar soltos dentro da casa ou no terreiro, ou presos por cordas,
caixas e paneiros. De modo geral, os bichos são bem tratados e alimentados. Araras,
papagaios, macacos, gatos, cachorros e jabotis são criados dentro de casa. No João Brás,
Tereza chama os papagaios de “sirimbados”, corruptela do temo “xerimbabo”, próprio ao

140
Juliana Salles Machado

ñeengatu (Fausto 2008). Já “criação” são os animais que servem de alimento – porcos,
galinhas, perus e patos. Eles são criados nos terreiros sem cerca e alimentados no verão; os
porcos procuram sua comida sozinhos e comem tanto frutas do terreiro como raízes e
sementes do mato. Ficam quase sempre perto da casa e, nas horas mais quentes do dia, se
escondem no mato das proximidades. Muitas vezes, os leitões são criados presos em caixas ou
dentro da casa, antes de ser colocados no terreiro. À noite, se prendem as galinhas em
galinheiros elevados no fundo da casa ou embaixo de paneiros de tala trançada, para não
serem pegas por outros animais.

Algumas caças pequenas são levadas para casa, como a cotia, e ficam presas com
cordas ou correntes na cozinha, onde são alimentadas e bem tratadas – isso acontece por
exemplo quando se mata a mãe do bicho durante uma caçada. Depois de crescidas e gordas, a
maioria é vendida. Às vezes se criam “peremas”66 em caixas de madeira, uma forma de
armazenar os bichos vivos para comer, trocar ou vender. Outra forma de armazenagem de
animais vivos encontrei em volta da casa de Eusébio e Marila, onde havia três buracos com
água que eles cavaram para guardar peixes que pescavam e que não iam preparar no mesmo
dia. Mas essa forma de armazenamento só pode ser utilizada para conservar os peixes por um
ou dois dias.

O grupo doméstico é também um grupo de trabalho compartilhado por parentes


coresidentes, mas outros grupos de trabalho também são formados para tarefas específicas.
Compõem-se por vizinhos, moradores de certa área do mesmo rio, cunhados, primos ou
amigos sem relação de parentesco. Quando é preciso roçar um terreno grande, tirar açaí,
construir ou fazer a manutenção do trapiche, por exemplo, esses grupos de homens se reúnem
para trabalhar, tornando a tarefa mais rápida e prazerosa. Às vezes, vão também algumas
mulheres para preparar comida e bebida para os homens, sendo o alimento fornecido por
quem pediu a ajuda. Essa prática é comum e informal, e seus participantes variam de acordo
com a época do ano e a disponibilidade de cada um. No entanto, a reciprocidade é importante:
todos os envolvidos esperam ser ajudados quando precisarem. A retribuição da ajuda não
precisa ser nos mesmos termos – pode ser em outra atividade – mas há limites, e na maioria
dos casos o trabalho realizado não varia muito. Não se pode pagar de modo nenhum – nem
em dinheiro, nem em espécie –, pois isso seria uma ofensa àqueles que trabalham sem cobrar

66
“Peremas” são pequenas tartarugas terrestres, comuns nessa parte da ilha.

141
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

pelo serviço. Mantém-se assim uma contínua relação de interdependência entre seus
membros.

2.6 A esfera da fé: os santos e as festas católicas

Apesar de não haver em Caviana nenhum padre, grande parte dos moradores da ilha é
católica, e existem várias igrejas espalhadas pelos igarapés. A única exceção é uma igreja
presbiteriana no rio Pracutuba, no sudeste da ilha. Muitas ações coletivas de Caviana estão
ligadas às festas religiosas, quando se diluem as divisões entre casas, grupos domésticos e
habitantes de determinados igarapés e novas relações sociais são criadas, solidificadas ou
rompidas. As festas de santos na área de pesquisa estão associadas principalmente a São
Sebastião e à Nossa Senhora de Nazaré, mas há muitas outras em Caviana, em ilhas próximas
e nas cidades, que os ribeirinhos frequentam, como devotos de seu santo ou como
frequentadores da comemoração.

Quase todos têm em casa um altar com imagens de santos – de papel, de barro,
porcelana ou madeira, adornadas com fitas e prendas (Figura 2.20). Rezam aos santos todos
os dias e lhes acendem velas; em seu nome erguem construções e oferecem festas. Os devotos
de um mesmo santo se juntam em ladainhas e comemorações e às vezes são chamados de
irmandades e têm uma organização mais rígida, como veremos no caso da irmandade de
Nossa Senhora de Nazaré.

Algumas pessoas oferecem todo ano uma festa a um santo, com o que passam a ser
chamados “dono do santo” – o que pode ser entendido como zelador, ou aquele que cuida do
santo, homenageando-o com festas ou construindo uma igreja e uma sede para abrigar e
cuidar das pessoas que vêm prestigiá-lo. Acompanhei o caso de Adolfo, que é dono de São
Sebastião. Ele tem uma imagem deste santo, para a qual construiu uma igreja e uma sede,
onde anualmente comemora seu dia (Figura 2.21). Segundo se conta, São Sebastião era da
região do Pracutuba, e sua imagem pertencia à família Farias. Com onze anos de idade,

142
Figura 2.20: Coletânea de imagens de santos e altares no interior de diversas casas em Caviana. Fotos:
Juliana Salles Machado

143
Juliana Salles Machado

Adolfo foi morar lá, onde se fazia a festa de São Sebastião. Mesmo sendo muito novo, foi
escolhido para presidir a festividade, e fez isso por mais de dez anos, antes de ir morar na
Fazendinha. De lá, Adolfo fundou a comunidade Frei Crescêncio, no João Brás, onde havia
comprado um terreno e pretendia construir sua casa. Adolfo conta que “antes de morrer ele [o
antigo dono do santo] falou que queria que ele [Adolfo] fosse responsável pela imagem, como
se fosse dele”, e pediu ainda que São Sebastião fosse o padroeiro da nova comunidade.
Assim, além de santo padroeiro, São Sebastião passou a ser o santo de Adolfo e, depois, um
santo de devoção na região. Em nome dele, ergueram uma igreja e uma sede no João Brás e se
dá uma festa que se inicia no dia 19 e culmina no dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião.

Além de São Sebastião, Adolfo diz ter sido dono de São João Batista, imagem que era
de seu pai. Segundo ele, seu primo, João Figueiredo, pediu a imagem ao pai de Adolfo,
pedido que este concedeu porque ele se chamava João, e era “muito prestativo” e
“considerado um filho”. As festas passaram a ser alternadas entre Adolfo e João.

Outro caso que acompanhei foi o de Roberto, que é dono de Nossa Senhora de Nazaré.
Em homenagem à ela construiu sua igreja e sede, além de ampliar sua casa para receber os
fiéis durante a festa. A imagem do altar é herança da família de sua mulher, Augusta. Roberto
não faz cultos dominicais na igreja, em que só se celebra Nossa Senhora. Esta celebração
começa em agosto, com as ladainhas, ainda esporádicas (Figura 2.22). Em setembro, elas se
tornam semanais. No início de outubro, os foliões da ladainha saem da igreja para peregrinar
pelos rios em busca de fiéis e recursos para a festa. No dia 12 de outubro, o círio começa a ir
para a igreja. As ladainhas são organizadas por um coordenador geral, chamado de mestre-
sala.

Como dono, organizador e patrocinador da festa, Roberto é o mestre-sala, ou folião-


-mor. Compondo o grupo, vêm ainda os membros antigos, Adolfo e João, e os mais jovens,
Firmo (filho de Roberto, de 21 anos) e Niel (neto de Roberto, de 11 anos, que se iniciava na
ladainha). Os membros do grupo são fixos e começam desde muito cedo a aprender a ser
foliões. Isso é importante, pois durante certo tempo, os foliões deixam suas atividades de lado
para fazer a peregrinação e só voltam para casa no dia da festa. Atualmente, a peregrinação é
curta, começando em 1 de outubro, mas, segundo eles, há peregrinações que duram meses. Os
foliões são responsáveis pela fabricação de instrumentos musicais e, o mais importante, pela

144
Figura 2.21: Imagens da Igreja de São Sebastião no João Brás e das missas dominicais da comunidade.
Fotos: Juliana Salles Machado

145
Figura 2.22: Imagens da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré no Igarapé Taxipucu e da ladainha em
homenagem à santa. Fotos: Juliana Salles Machado.

146
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

“cópia” da ladainha67. Quando estão em peregrinação, fazem as ladainhas após as refeições,


que são oferecidas ao grupo pelos donos da casa – a chamada folia. Segundo Roberto:

Na folia, a gente chegavam às casas antes do almoço, almoçava e


depois os foliões faziam os agradecimentos. A imagem da santa saía
na folia. Hoje, tem só quatro foliões – uma viola, um pandeiro, um
reque-cheque e um tambor. Em agosto e setembro, passavam muitas
imagens, muita folia; agora, já não tem mais. A peregrinação sai em
agosto, setembro e outubro. (Roberto, Caviana, 2009)

Quando chegam de volta ao igarapé Taxipucu, começam a folia depois da refeição na


casa de Roberto, caminhando de lá até a igreja, para realizar a cerimônia. No dia da festa,
quando os foliões chegam da peregrinação, ergue-se o mastro do círio dando início as
festividades. A de Nossa Senhora de Nazaré dura duas noites. Durante a celebração, fazem a
ladainha e a imagem volta para o altar, de onde só sairá no outro ano. Seguem-se ladainhas,
comidas, leilões, jogos e danças, que duram vinte e quatro horas ininterruptas, até a queda do
mastro, quando todos vão embora. Sobre a cópia da ladainha rezada para Nossa Senhora de
Nazaré no Taxipucu, reproduzida em anexo (Anexo 5).

Sobre a ladainha, Roberto conta:

Quando me entendi, eu ouvi rezarem assim. Rezadores mais antigos


sabiam de cor, não precisavam da cópia. Seu João, Seu Raimundo e
Adolfo entendem um pouco, todo ano fazem a ladainha, uma vez por
ano. Atualmente, conto com Adolfo, Seu João, Firmo e Niel. Firmo
começou entre 10 e 12 anos de idade. Niel está em seu segundo ano.
Tem que prestar atenção, porque depois morre, aí eles têm como não
perder a cópia. Começa nessa época, a ladainha [agosto]. No mês de
setembro, de vez em quando, faz uma ladainha. Depois de outubro, é
todo dia, mas cada dia em uma casa. (Roberto, Caviana, 2009)

67
A cópia é a versão escrita da ladainha que é mantida pelo coordenador e passada ao longo das gerações.

147
Juliana Salles Machado

Não se sabe ao certo como Roberto se tornou o dono da festa. Alguns dizem que ele
herdou da família de Augusta, outros, por uma promessa que teria feito à santa quando a
mulher adoeceu gravemente. O certo é que agora ele e os filhos farão anualmente seu círio,
mesmo que, em tempos mais difíceis, não consigam dar uma grande festa para acompanhá-lo.

É interessante notarmos o início desta citação, “quando me entendi”, expressão


amplamente utilizada e que dá nome a esse capítulo. “Quando me entendi, eu ouvi rezarem
assim” – com esta frase Roberto anuncia um momento importante da construção da sua
pessoa, quando ele toma consciência de sua inserção em um coletivo religioso e de que
maneira este coletivo se exercia na prática. Sua fala implica em diversas coisas: não é que as
coisas sempre foram assim, mas que essa era a forma que seus parentes rezavam e foi
justamente através desta forma que ele ingressou perceptualmente como pessoa nesse
coletivo, ou nessa “comunidade de parentes” (como citado anteriormente utilizando um termo
de Lima 2006). Essa fala nos traz à importância da religião (a ladainha, a festa dos santos,
etc.) na formação de um “filho de Caviana”, ressalta sua presença como parte constituinte da
construção da pessoa – ponto onde novamente retomamos a citação de Lima onde a autora
destaca o papel da religião, junto com o parentesco e a economia (ou mais precisamente o
ideal de autonomia econômica), como formadores de uma identidade do grupo.

Outro santo que passou nessa área foi São Benedito, que durante algum tempo ficou
abrigado na igreja do João Brás, junto com São Sebastião. São Benedito era o padroeiro do
Pracutuba; quando o rio secou, a irmandade se mudou para o Apani, que também secou,
dificultando seu acesso. Assim, decidiu-se mandar a imagem para o João Brás, num cortejo
fluvial. Três anos depois, conseguiram arrumar a capela no Pracutuba e a imagem voltou para
lá. Roberto acredita que os santos eram primos, por isso São Benedito teria ido ao João Brás
e, de tempos em tempos, eles precisam se reunir novamente. Ele conta a seguinte história
sobre esse santo:

Encontrou urupé68 no pau, no Aceituba. Levou pras crianças, na casa,


no Aceituba. Sumiu. Apareceu de novo no mesmo local. Parecia a
imagem de São Benedito. Era Milagre! São Benedito de Urupé virou
padroeiro do Pracutuba. Queria vir para cá [João Brás], conterrâneo

68
Segundo Roberto, urupé é “um negócio que dá no pau, como um cogumelo”.

148
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

era daqui. Trouxeram São Benedito de Urupé. De vez em quando,


levavam ele de volta. Querem levar de volta São Benedito e São
Sebastião fica; querem fazer sede e igreja no Pracutuba. São Benedito
é parente de São Sebastião. Aqui é a sede e a igreja de São Sebastião.
Mas São Sebastião era do Aceituba também. Primeiro, veio São
Sebastião e, depois, São Benedito veio atrás dele. Ainda não apareceu
parente de Nossa Senhora de Nazaré. (Roberto, Caviana, 2008)
Quando perguntado sobre São Benedito em outro momento, Roberto contou como era
sua festa:

São Benedito saía em março, abril, até dezembro. Em 1 o de dezembro,


o santo chegava à vila e, quando era dia 2 ou 3, o santo voltava para
onde ele ia sair para fazer o círio (ficava uma semana). Enquanto o
santo está fora, na semana antes da festa, tem a novena. O santo sai
em procissão para a igreja e aí chega e tem a missa, a ladainha e
depois começa a festa dançante (fora da igreja – a gente fecha a
igreja). Quando termina a festa dançante, derruba-se o mastro e aí tem
as últimas orações da igreja e se discute as prestações de conta com a
organização do outro ano. Os foliões são pagos pelo dono da festa,
que tira do próprio orçamento arrecadado. O folião só faz isso: dorme
cada dia numa casa, faz até 10 casas em um dia. A não ser que a
pessoa tenha alguma promessa para pagar; aí, o Santo fica. O mestre-
sala é o responsável pela comissão, vem com ordens batidas. O santo
usa uma lista, a pessoa coloca na ordem o que ela quer dar para o
santo. Tem lances para as ofertas, e quem arremata mais alto fica com
a ordem. O valor da ordem é dado para a igreja. Todo fim de semana,
começa a ladainha do santo a partir de setembro. Ele começa a sair em
1º de outubro. (Roberto, Caviana, 2009)

Outra data celebrada nessa parte da ilha é 2 de novembro, Dia de Finados, ou Dia dos
Mortos. Nos cemitérios, também chamado de “campo santo”, faz-se uma cerimônia chamada

149
Juliana Salles Machado

“Iluminação”. Na área de pesquisa, o “campo santo” fica no meio da floresta, entre o rio
Pocotó e a posse do João Brás. As pessoas acendem velas para seus familiares mortos e, do
cemitério, saem em peregrinação pela mata, com velas na mão e fazendo orações, até a igreja.

Além dos santos e seus poderes, a cosmologia dos ribeirinhos é repleta de


“Encantados” e feitiços e se manifesta em Caviana especialmente nos atos de cura. Essa
esfera é velada e pouco se fala sobre ela, mas é intensamente sentida e praticada
cotidianamente por quase todos, como veremos no Capítulo 5.

2.7 A gente, filhos de Caviana

“Nós somos filhos desta Caviana”, frase que ouvi muitas vezes durante minha estadia
na ilha. Mas para mim, uma pergunta constante era à quem se referia o “nós”? Que relação
havia entre aquelas pessoas? As ações diárias revelaram não um coletivo, mas sim um
constante processo de formação de pequenas agregações coletivas que, juntas, compunham
esse “nós” na ilha Caviana. Há uma identificação com morar junto, morar na mesma casa, no
mesmo terreno, no grupo doméstico, no mesmo rio ou na mesma comunidade paroquial. A
construção destas coletividades é instável e se faz na própria prática dos relacionamentos
interpessoais. Acredito que um caminho para compreender a complexidade de relações
socialmente significativas em Caviana seja a interconexão de esferas sociais com limites
fluidos, refletida na expressão “filhos de Caviana”. “Filhos desta Caviana” tem um sentido de
pertencimento maior e representa essa sobreposição de coletivos.

Como vimos, os vaqueiros e a relação com o campo não marcam a existência de um


outro. Essa oposição é criada com a cidade, como mostra a expressão “nós, aqui no interior”.
Os outros a que comumente se referem os ilhéus são os oriundos de Macapá ou Belém e os
paraenses em geral. Essa alteridade poderia ser ilustrada pelas relações comerciais
explicitadas anteriormente: quem compra produtos da terra (os outros, “eles”) e quem compra
mercadorias (“nós, do interior”). Essa relação tem um sentido forte, pois indica quem
participa do manejo das plantas em Caviana e quem tem acesso à esses produtos por uma rede

150
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

que não é a comercial, mas baseada na partilha entre os parentes. O comércio, é uma relação
com os outros, não com parentes. A identidade associada à produção, ao plantio, ao ato de
alimentar os parentes e de compartilhar a comida é estendida aos “filhos de Caviana” que
moram em Macapá. Os parentes que moram na ilha mandam produtos aos da cidade por
barcos como o de Roberto. Diariamente, ouvimos no rádio pedidos para que mães, pais,
irmãos e primos enviem açaí, bacaba ou banana à parentes que moram da cidade. Não são
pedidos de venda – os produtos não são pagos –, mas fazem parte do que se espera da família.
É uma afirmação de que eles ainda fazem parte de Caviana e seus familiares ficam contentes
em mantê-la.

Apesar de muitas pessoas irem morar na cidade, principalmente os jovens, há no


discurso uma negação da cidade. Os “filhos de Caviana” ou seus descendentes que moram em
Macapá sempre exaltam o aspecto natural da ilha, que consideram verdadeiro no que se refere
tanto aos alimentos quanto aos sentimentos de parentesco e às relações sociais. Aí, a ideia de
natural estar associada à condição muito valorizada de comer o que é plantado pela própria
família. Thienne é neta de Tereza e moradora de Macapá. Ela visita a ilha todo ano e recebe
de seus avós comida através do barco de Roberto, quando perguntado sobre o que é um
caboclo ela responde:

O caboclo não tem estudo, conhecimento. Ele se criou no interior, não


tem a educação que tem na cidade. Se criou no interior, não tem renda
fixa, não tem hábitos, por isso se torna inferior à cidade. Mas é aí que as
pessoas se enganam. Não tem, mas no papel, porque elas vivem bem
melhor do que na cidade. Elas são muito ricas, elas têm costume. Na
cidade não temos costume de comer todos juntos. Eles têm educação,
tiram o chapéu, comem juntos e tudo isso. (Thienne, Macapá, 2009)

Voltamos à concepção de que ser filho de Caviana é ser alimentado pelos e com os
parentes, incluindo assim a terra como parte importante dessa noção de parentesco. Embora
cada vez mais jovens e mesmo famílias inteiras se mudem para Macapá, há quem vá no
sentido contrário. É o caso da família de Roberto, em que todos os filhos vivem próximos em
Caviana. Houve duas tentativas de saída. Na primeira, ele mandou o filho mais velho,

151
Juliana Salles Machado

Ricardo, estudar em Belém. Como ele logo se “desinteressou dos estudos”, acabou por voltar
para a casa dos pais em Caviana. Em outra, mais recente, Roberto comprou uma casa em
Macapá, onde pretendia receber os produtos de Caviana e ele mesmo revendê-los na cidade.
Mas nem ele, nem sua mulher gostaram de viver na cidade e nenhum dos seus filhos se
interessou em assumir o negócio. Acabaram vendendo a casa e voltando para Caviana 69.

A migração do campo à cidade tem uma dimensão importante em grande parte das
pesquisas sobre o campesinato e é uma questão recorrente entre os próprios camponeses
(Behar 1986; Bourdieu 1962; Champaign 1975; Chiva 1958; Fortes 1969; Geertz 1967; Lewis
1951; Redfield 1969; Segalen 1980; Thomas & Znaniecki 1974; Thorner et al 1986). Em
Caviana, a migração tem mudado as relações sociais, econômicas e políticas dos ribeirinhos.
Por definição, uma comunidade rural (que, como vimos, é bastante difusa, em Caviana) não é
fechada, pois não é totalmente independente e autônoma, constituindo-se sempre em relação
com a cidade, mesmo que por oposição (Elias 1994; Mintz 1986). No entanto, muitas vezes,
tomamos as comunidades como sistemas fechados, para melhor circunscrever nosso objeto de
pesquisa e assim torná-lo mais homogêneo e analiticamente estável. Além disso, em muitos
casos, os próprios camponeses se veem como um sistema fechado, como de algum modo
podemos dizer dos ribeirinhos de Caviana. Como vimos, os limites intercomunidades da ilha
são difusos e superpostos, no entanto, se podemos afirmar com mais segurança algum
sentimento de pertencimento maior que os una, esse é o de serem “filhos de Caviana”. Essa
denominação adquire completude frente aquele de moradores das cidades.

Um olhar sobre a relação dos ribeirinhos de Caviana com as principais cidades


próximas – Macapá (AP), Afuá e Chaves, na ilha de Marajó – revela fatores importantes para
entendermos por que, para os ribeirinhos, não parece haver uma ruptura clara entre Caviana e
Chaves e Afuá, ao passo que Macapá é claramente vista como um outro. As oposições que
permeiam esses fatores poderiam ser entendidas como as seguintes:

69
Outro caso de retorno aconteceu numa família na fazenda Santana. Um homem, parente dos Figueiredo, foi
estudar em Belém, mas “não se acostumou”. Logo voltou para Caviana e foi trabalhar com o transporte e
revenda de porcos. Ao se casar com uma moradora da ilha não tendo mais terras familiares na ilha, pediu ao
sogro para morar a seu lado, na fazenda, onde construiu sua casa. Há ainda o exemplo de Ilcinea e de seus seis
filhos. Apesar de seu pai ser de Caviana, ela morava em Macapá com sua família. Resolveram voltar para
Caviana, mas sendo seu marido de Mexiana e não possuindo propriedades na ilha, foram tomar conta de um
terreno ao lado do pai de Ilcinéia. Seu marido é pescador e vive embarcado, mas vai vê-los semanalmente.

152
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

INSTITUCIONAL “NATURAL” SOCIAL


cidade acesso à instituições distanciamento na relação desconhecimento dos limites
e políticas públicas com água, terra, plantas de interação social e
(educação e saúde diversidade de atores
gratuitas)

Caviana ausência das relação próxima com água, conhecimento dos atores da
instituições ou terra, plantas interação social (relações
precariedade de sua pessoais e afetivas com todos
atuação os membros da coletividade)

Tabela 2.1 – Oposições em Caviana: a cidade na percepção ribeirinha

A partir das informações simplificadas nesta tabela, vemos que entre os fatores que
influenciam o sentimento de pertencimento do coletivo formado na ilha Caviana a
aproximação com o ‘natural’ e o conhecimento dos atores da interação social estão entre os
aspectos importantes. Podemos compreender essa oposição em termos de domesticidade
versus exterioridade, onde teríamos as plantas e a topografia, enfim os lugares, como também
fatores na criação desse sentido de pertencimento, em sentido semelhante aos atores sociais.
Como nestes últimos, nos quais a importância do conhecimento dos atores se dá pelo
estabelecimento de relações pessoais e afetivas com todos os membros desta coletividade,
também com os lugares há uma familiarização e a criação de vínculos relacionados ao
parentesco e ao sentimento de territorialidade. Com isso em mente, podemos compreender
melhor porque Chaves e Afuá parecem mais próximas da realidade de Caviana do que
Macapá, e, mais do que isso, quais são as chaves de reconhecimento para uma noção de
pertencimento dos ribeirinhos de Caviana. Enquanto em Macapá, há quase que uma negação
deste vínculo especialmente com os lugares, mas também com as pessoas 70, Chaves e Afuá
apresentam aspectos de continuidade com Caviana. Estas últimas, apesar de também serem

70
Evidentemente não se trata de uma negação por completo. Podemos encontrar na periferia de Macapá um
bairro onde quase todos são moradores ou descendentes de moradores de Caviana. Esses antigos “filhos de
Caviana” mantêm contado regular entre si e com seus parentes na ilha e buscam manter relações sociais através
de festas e casamentos. Dessa maneira tornam a cidade mais doméstica, compartilhando um conhecimento sobre
a ilha e seus parentes.

153
Juliana Salles Machado

cidades, são pequenas em sua extensão e sua paisagem ‘natural’ pouco transformada e ainda
reconhecível se comparada as cidades maiores. Lá, o relevo e a vegetação ainda são
reconhecíveis, os rios ainda estão visíveis e ainda é possível manter de certa maneira uma
distribuição espacial das casas de acordo com os laços de parentesco, replicando de maneira
não tão evidente, os grupos domésticos ribeirinhos.

Certamente, trata-se apenas de uma simplificação das inúmeras especificidades da ilha


que dão significado ao termo “filhos”: por exemplo, a possibilidade de uma subsistência
relativamente autônoma pelo plantio e manejo de espécies vegetais, pela extração de produtos
da mata, pela caça e pela pesca, em contraposição à total dependência do consumo de bens
industrializados nas cidades. Ser filho da ilha é ter nascido ali e ter sido alimentado por seus
parentes, que produziram seus cultivares na terra de seus antepassados. Em geral, quem nasce
na cidade não é considerado “filho de Caviana”, mas esse status pode mudar se a pessoa
estreitar seus vínculos com a ilha, ao conhecer bem seus igarapés e suas matas, produzir seus
alimentos e compartilhá-los com seus parentes.

Esses e outros fatores compõem a escala de referência e valores dos ribeirinhos de


Caviana. Portanto, sua visão de unidade se configura por oposição à cidade, dando à ilha um
caráter de relativo fechamento. No entanto, o termo relativo é importante, pois o modo de
vida ribeirinho está, assim como os camponeses, normalmente também associado às cidades.
Há, por exemplo, as aposentadorias retiradas todos os meses em bancos em Macapá. Além
disso, grande parte dos frutos, madeira e castanhas, produtos de plantio, manejo ou extração,
além de uma parcela da pesca de peixe e do camarão da ilha, são vendidos nas cidades.
Assim, voltamos à definição de uma relação intrinsecamente complementar cidade-campo. A
ambiguidade entre a necessidade de oposição e o estabelecimento de fronteiras de
pertencimento convivem diariamente com a de comércio.

No contexto amazônico, e particularmente no exemplo de Caviana, o movimento de


migração vem ensejando uma profunda reorganização social, sobretudo do ponto de vista dos
que ficaram e viram subitamente rompidos seus laços de parentesco ou de indivíduos ou
famílias inteiras que se mudaram para Macapá.

154
Capítulo 3:

Figura abertura capítulo 3: à esquerda, Tereza e seus canteiros no João Brás e à direita, o preparo do
alimento no Taxipucu por Cristiane. Foto: Juliana Salles Machado

155
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

3
AS MULHERES E AS PLANTAS

As mulheres não foram criadas; elas sempre existiram. A mulher


existia mesmo quando o homem ainda não havia nascido, porque a
71
mulher é a terra – ela é identificada com o solo.
Reichel-Dolmatoff 1996

este capítulo, detenho-me na sociabilidade feminina. Tendo abordado


as esferas dos coletivos predominantemente masculinos de Caviana, agora volto meu olhar
para as mulheres. Mais especificamente, exploro uma esfera muito particular de seu fazer – o
plantio. O que é plantar, nesse contexto? Por que e como essa atividade está ligada ao
universo feminino? As mulheres da ilha me contaram que plantar é “criar” e “cuidar”. Por
meio do plantio, me ensinaram que há vários níveis de significação desse cuidado. Os dados
etnográficos deste capítulo tratam da relação das mulheres com as plantas nesse contínuo ato
de cuidar. Ao cuidar, elas transformam o ambiente, reforçam redes de reciprocidade e
garantem sua condição de gente na ilha, em meio a um mundo repleto de entes não-humanos.
Da escolha das sementes e mudas à sua troca e plantio, constroem a possibilidade de sua
permanência na ilha e fabricam sua existência como seres sociais.

Como vimos na Introdução, a prática econômica das famílias ribeirinhas, assim como
sua identidade frente à sociedade nacional, são os tópicos mais frequentemente abordados nos

71
“Women was not created; women always existed, she existed already when man was not yet born. Because
women is the Land, she is identified with earth” (Reichel-Dolmatoff 1996:28).

156
Juliana Salles Machado

trabalhos acadêmicos sobre os chamados caboclos amazônicos. As comunidades religiosas, as


festas de santos e a organização dos grupos de trabalho fazem parte de um universo
predominantemente masculino, já relativamente conhecido desde pelo menos os trabalhos de
Wagley (1957) e Galvão (1975). Aí, as mulheres aparecem como mães, donas de casa e
benzedeiras, coadjuvantes de um coletivo delineado pelo discurso público masculino, sendo
sua própria forma de sociabilidade e suas redes de reciprocidade pouco enfatizadas. Os
trabalhos sobre canteiros de Murrieta & Winklerprins (2006; 2003) no livro Sociedades
caboclas amazônicas é um dos poucos que tratam de gênero em estudo sobre comunidades
ribeirinhas. Os autores tratam do pouco explorado mundo feminino e suas plantas, no entanto
abordam de forma exploratória a relação entre as mulheres, as plantas e os não-humanos.

Depois de minhas primeiras viagens a Caviana, em que predominaram os discursos


masculinos, em que acompanhei a circulação e a venda de produtos e mercadorias, conheci as
festas de santos, os líderes comunitários e os políticos locais, pude finalmente ficar em casa
com Tereza. Tereza é uma mulher de 65 anos, mãe de seis filhos, esposa e dona de casa,
católica e benzedeira. Seu trabalho cotidiano – que passou a ser o meu também – era limpar a
casa, preparar o peixe e a caça que os homens traziam do rio e da floresta, preparar o café da
manhã, a merenda da manhã, o almoço, a merenda da tarde e o jantar, bem como alimentar os
animais e cuidar das crianças e das plantas.

A literatura etnográfica é rica em associações entre as mulheres e o cultivo, seja


relacionando-as com a roça ou com as plantas cultivadas e não-cultivadas (Balée 2006a; Gow
1995; Murrieta & WinklerPrins 2006; Posey 2008; Reichel-Dolmatoff 1996; Rival 1998). Em
Caviana, elas também se identificam com o cultivo. Além das roças, mantêm em casa um
canteiro com amostras de diversas espécies de plantas – remédios, temperos, alimentos e
enfeites. Não vi nenhuma casa que não os tivesse, mesmo que muito pequeno. Os canteiros
são lugares elevados por estacas, próximos ao fundo da casa, onde as mulheres plantam. Os
mais comuns são aqueles feitos dentro de canoas velhas, mas também encontrei outros, sobre
suportes de madeira, em que se assentavam paneiros velhos, antigas panelas de barro ou de
alumínio e latas cheias de terra. Eles são cuidados no verão, quando recebem “terra boa”
retirada de lugares secos da ilha, adubo (como cascas de árvore e sementes de açaí) e são
regados diariamente. No começo dessa estação, as mulheres tiram as pragas e ervas daninhas

157
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

que os recobrem durante o inverno. Apesar de “sujos” no inverno, eles são utilizados o ano
todo, já que são suspensos e de fácil acesso, mesmo durante as cheias. É nesse espaço que as
mulheres testam algumas plantas – “a gente experimenta”, costumam dizer. Trazem mudas e
sementes do mato e de casas de parentes e amigas e testam seu plantio nesse espaço
doméstico. Uma vez “grelado” o “filho”72, algumas plantas passam para o chão, para o
terreiro, entre cercas de madeira que as protegem, ou soltas, junto com as espécies mais
antigas. As plantas são temas das conversas femininas. Acompanhei Tereza em algumas
visitas à parentes, durante as quais, depois de conversar sobre como andam as pessoas e as
marés e logo antes de irmos embora, ela acabava perguntando como estavam determinadas
plantas, se tinham “grelado” e como ela fazia para cuidar. Chamaram-me atenção seu
interesse pelas plantas aliado à onipresença dos canteiros nas casas ribeirinhas. Nessas
conversas rápidas, às vezes contavam de alguma planta ou experiência particular de plantio, e,
no fim sempre levávamos uma muda para casa.

Para compreender o significado dessa relação entre mulheres e plantas, dediquei


grande parte do meu tempo à acompanhar as visitas de Tereza à seus parentes e amigas e a
entrevistar essas mulheres. Eu perguntava sobre as formas e os locais de cultivo, o nome das
plantas e suas origens. O resultado desse levantamento etnobotânico será detalhado no
Capítulo 4.

Agora, antes de apresentar as plantas em si, discuto a relação que as mulheres têm com
elas. Durante minhas entrevistas, em meio às plantas do terreiro ou no fundo da cozinha,
ouvia repetidamente expressões como “minha planta” ou “esse filho”. Mas, seu cultivo, usos e
significados fazem parte de uma esfera pouco falada, quase nada ritualizada e algo esquecida,
perdida em meio a um trabalho fatigante. Ofuscadas pelos heroísmos marítimos, a terra, as
plantas e seu cultivo quase não apareciam nos discursos, mas foram descortinando uma
ontologia muito conhecida na etnologia ameríndia e pouco percebida entre esses outros
habitantes amazônicos, os ribeirinhos. O cotidiano feminino é tecido com discursos

72
“Filho” é o termo com que se designa a muda de uma planta; um “filho grelado” é o que efetivamente cresceu.

158
Juliana Salles Machado

silenciosos e trabalhos pouco visíveis, mas revelou-me um conhecimento que é amplamente


difundido, embora pouco formalizado. Compreendendo sua terminologia, vemos que, mais do
que cultivar plantas, as mulheres as fabricam73. Na contínua manutenção dos canteiros e
terreiros e em suas trocas de mudas e sementes, as mulheres têm um papel ativo na criação de
lugares74 e na transformação da paisagem. Sua relação com as plantas expressa uma maneira
particular de ordenar e compreender o mundo, lugar de muitas mães e de luta para continuar a
ser gente.

3.1 As mulheres e as plantas

Homem é besteira. Vai lá pra beira...


Tem um monte de filho e depois fica só.
Maria Valadares

As principais atividades das mulheres em Caviana são o criar e o cuidar. No cotidiano,


esses conceitos se confundem, mas, juntos, imputam às mulheres a responsabilidade da
criação e manutenção de pessoas, objetos, animais e plantas. Da gestação ao parto, elas criam
fisicamente gente. Do ato diário de coletar sementes, trocar mudas, plantar, colher frutos e
alimentar parentes, elas cuidam de pessoas e garantem sua subsistência. Das talas, produzem
cestos, paneiros, jamanchis; da argila, fazem panelas, vasos, incensários e cachimbos; objetos
para conter os alimentos materiais e espirituais do cuidar (Figura 3.1). Ao alimentar os
animais, suas “criações”, fortalecem o cuidar mantendo e expandindo o espaço doméstico da
casa. Ao serem fabricadas, as plantas deixam de ser mato e passam a ser “filhos”, que depois
vão cuidar da gente. Esses aprendizados são passados de mãe para filha, de sogra para nora,
de irmã para irmã e entre cunhadas e depois compartilhados entre parentes, vizinhas e amigas.

73
O verbo fabricar não é usado localmente e foi escolhido por remeter ao termo usado nos estudos ameríndios,
nos quais os índios “fabricam pessoas”, como discutido por Seeger, Matta & Viveiros de Castro (1977).
74
Uso a palavra lugares em oposição a “espaços”. Enquanto a última nos remete a uma categoria indiferenciada
e genérica, a idéia de lugar assume o status de individuação, familiarização, afeto e memória. Esse distinção é
feita por diversos autores na literatura sobre paisagem. Neste trabalho, utilizo a noção de “lugares
significativos”, de Zedeño (2008), também influenciada pelo trabalho Hirsch e O’Hanlon (1995).

159
Figura 3.1: Objetos do cuidar – Acima à esquerda, Dica trançando a tala e à direita objeto para cobrir as
canoas; abaixo à esquerda, Walica fazendo um pote cerâmico; ao meio à direita, Augusta tecendo uma
rede de algodão e abaixo à direita artefatos para fiar, como fusos de osso, cestos e algodão Fotos: Juliana
Salles Machado.

160
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

A ênfase no cuidar está, na literatura, atrelada a uma preocupação se não exclusiva,


predominantemente, feminina, como nos mostra Baier (1992) e Overing (1999). Baier (1992)
realça o cuidado e a confiança como pertencentes a um “perfil moral” feminino no que a
autora chama de “teoria moral da confiança” (Moral Theory of Trust). Ao tratar do trabalho
de Baier, Overing observa: “enquanto os homens de hoje tendem a discutir a moralidade em
termo das noções de obrigação, contrato e justiça (...) a visão das mulheres, interessadas
principalmente na moralidade relevante para a educação das crianças e para o engendramento
de relações de amor, cuidado, confiança e cooperação, é mais comunitária” (1999:83). Já a
mesma autora, ressalta que “para os Piaroa, os valores do cuidado e da confiança são
relevantes para o julgamento das ações tanto de homens quanto de mulheres, pois remetem a
concepção do que constitui um tipo aceitável de vida humana na terra” (Overing 1999:84).
Em Caviana, assim como mencionado para os Piaroa, as relações de confiança são
importantes tanto para homens como para mulheres; no entanto, a idéia do cuidar aqui é
inegavelmente mais forte entre as mulheres. Overing menciona ainda que no vocabulário
piaroa “curar, fazer, transformar e criar, são palavras que tem todas a mesma raiz” (Overing
1999:93). Apesar de distinto do contexto de Caviana, as relações do cuidar na ilha, como
veremos mais adiante, também envolvem todas essas noções.

Neste Capítulo, primeiramente, apresento a diversidade de atividades atinentes à


realidade feminina na ilha e, em seguida, passo a tratar especificamente do plantio, que
considero uma esfera emblemática do papel da mulher nessa coletividade. Em particular,
destaco aqui quatro mulheres: a já citada Tereza, seguida de Augusta, Geralda e Dica. As três
primeiras são concunhadas e não consanguíneas, casadas respectivamente com os irmãos
Adolfo, Roberto e Chico Figueiredo. A última é comadre de Tereza, que batizou seu filho
Hélio, casado com a filha de Augusta (Anexo 6).

Apesar de suas diferentes trajetórias individuais, as mulheres da família Figueiredo


foram, de certa maneira, escolhidas pela futura sogra ou cunhada para entrar no universo
doméstico da família, e depois construiram sua própria casa ao lado da de sua sogra. Nesse
sistema virilocal, as mulheres levam para sua nova esfera doméstica o conhecimento
adquirido com a mãe, as avós e as irmãs, através da rede de ensino-aprendizagem que

161
Juliana Salles Machado

estabelecem no interior da casa de origem. Trata-se de um saber fazer que é compartilhado e


depois ativado como marca de pertencimento e um meio pelo qual elas mantêm e reforçam as
relações de parentesco.

Diversos são os saberes transmitidos entre as mulheres. Matérias-primas como a


madeira e o ferro estão associadas ao universo masculino – na construção de casas, barcos,
remos e ferramentas. Já a tala, o algodão e o barro, através do trançado, da rede, da cerâmica e
das plantas estão ligados aos conhecimentos femininos adquiridos e transmitidos pelas redes
de parentesco.

O aprendizado começa muito cedo, quando, pequenas, as meninas acompanham as


atividades da mãe e das irmãs maiores, e se intensifica entre onze e treze anos. Nessa idade, as
mães se dedicam mais ao ensino das filhas. A mãe de Augusta, por exemplo, começou a
ensinar-lhe técnicas de plantio, a colheita do algodão e a fiação e tecelagem de redes aos doze
anos; aprendizado que ela hoje transmite à neta, filha de sua filha que tem oito anos (Figura
3.1). Enquanto a menina pouco aprende, por ser muito nova, Augusta prepara peças para lhe
servir de referência visual, garantindo a preservação da “forma de cada costura”. Augusta me
conta “estou fazendo um mostruário para ensinar a Nazaré. Montei o tear da rede para Nazaré
aprender. Esse trabalho é como uma folia, uma parte é bonita e uma parte ela é triste”. Trata-
se de panos sobre os quais a avó faz rendas e bordados de todos os tipos, bordando em baixo
os nomes dos pontos dados. Essas amostras, não são feitas apenas para serem bonitas, como
os enfeites das casas, mas para exemplificarem cada etapa do processo de costura, para que se
possa reproduzi-los depois. Uma das preocupações de Augusta é decorrente da falta de
interesse de sua neta pelo aprendizado. Como sua neta não mora com ela e não pode, portanto,
vê-la costurar, ela teme que sua ela não tenha referência visual quando quiser ela própria
costurar. A avó de Nete, nora de Augusta, também fazia redes, como muitas outras mulheres
no passado; no entanto, atualmente Augusta é uma das poucas da ilha que ainda as faz.

Outro trabalho muito comum entre as mulheres e ainda amplamente difundido é a tala,
cujo trançado cria pequenos paneiros de grande utilidade na casa (Figura 3.2). Apesar de
muitas pessoas trabalharem a tala, mulheres como Dica dominam com maestria essa técnica e
produzem objetos mais elaborados e com formas e funções variadas. No começo, Dica só
observava, até que, quando precisou de um paneiro, ela se pôs a desmanchar um velho que
tinha em casa e foi fazendo um novo igual. Imitava diligentemente cada trançado que

162
Figura 3.2.1: Trançados de tala de arumã feitos por Dica. Fotos: Juliana Salles Machado.

163
Figura 3.2.2: Trançados de tala de arumã feitos por Dica. Fotos: Juliana Salles Machado.

164
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

encontrava, e assim aprendeu a fazer uma grande variedade de objetos. Alguns dos trançados
da tala que pude ver são chamados por ela de olho de galega e cruari (Figura 3.2), técnicas
que permitem fazer diversas formas, com utilidades variadas.

Diferentemente da tala, um conhecimento pouco difundido nos dias de hoje em


Caviana é a produção cerâmica. Em 2006, havia apenas duas ceramistas, que ainda as
produziam; já em 2010, não se fez mais nenhum pote na ilha, e os ribeirinhos compravam
peças industrializadas no cais das cidades. Pude acompanhar a confecção do último pote de
Walica75, viúva, de 76 anos, que, logo após minha partida, teve um derrame e perdeu boa
parte dos movimentos e visão (Figura 3.3). Vi potes de Walica espalhados por grande parte da
ilha, pois seu estilo e técnica eram de fácil identificação76. Walica mora no Ubuçutuba e tem
um filho e duas filhas, uma delas, de criação. Esta foi a única a aprender o ofício da mãe, mas
não faz potes cerâmicos por conta própria, apenas auxiliando sua mãe. Após fazer um pote
cerâmica para mim, Walica me conta “aprendi com minha mãe. Era ela que fazia. Ela não me
ensinava, porque (quando era ela mocinha em vida) era ela que fazia e eu aí [indicando com o
rosto as crianças que a olhavam]. Aquilo ficava na minha cabeça. Só depois que minha mãe
morreu que eu cuidei”. A mãe de Walica utilizava cerâmicas antigas77 e cariapé78 para

75
A técnica de Walica era muito semelhante à observada em vasilhames cerâmicos encontrados em contextos
arqueológicos da região. Ela usava uma mistura de argila com diferentes qualidades plásticas, retirada do
barranco do rio próximo a sua casa, e temperava-a com cariapé retirado de árvores da floresta, às vezes bem
distantes. Moldava a base sobre pequenas tábuas de madeira e sustentava os roletes sobrepostos até a altura do
maior diâmetro do pote, quando a peça era posta no sol para secar. Uma vez seca mas ainda maleável,
acrescentava os roletes seguintes, diminuindo o diâmetro do pote ou, conforme o caso, apenas aplicando-lhe um
lábio. Durante todo esse processo, alisava as paredes internas e externas com uma semente (“caroço”). No fim,
aplicava um rolete decorativo paralelo ao lábio, sobre o qual fazia decorações paralelas digitadas. O pote voltava
para o sol e depois era queimado numa fogueira a céu aberto. A oxidação era controlada apenas com cacos e
potes cerâmicos velhos que recobriam o pote, e a temperatura de queima, pelo tipo e pela quantidade de madeira
em combustão.
76
Identifiquei o trabalho desta ceramista pela espessura da peça, pelo tratamento da superfície e pelo padrão
característico de sua decoração. Walica aplicava regularmente apenas uma forma de deoração plástica a uma
variedade de formas de potes: um rolete grosso próximo à borda com digitados que corriam perpendicularmente
pela extensão do aplique. Como só havia duas ceramistas na ilha, pude contrastar os potes de Walica com os da
ceramista do Apani, esses de espessura bem fina, sem apliques e com um tratamento de superfície mais
cuidadoso.
77
É comum as ceramistas usarem fragmentos cerâmicos como antiplástico para a produção de um novo pote.
Eles são triturados num pilão e depois peneiradas em um peneira de tala para posteriormente serem
acrescentados à pasta antes de começar a fabricação dos roletes. Em Caviana, as oleiras pegavam esses
fragmentos em sítios arqueológicos que encontravam perto de casa.
78
O cariapé é uma entrecasca de árvore cujas cinzas, ricas em sílica, são usadas como antiplástico.

165
Figura 3.3: Produção cerâmica de Walica no Ubuçutuba, 2006. Fotos: Juliana Salles Machado.

166
Juliana Salles Machado

temperar o barro. Já Walica, que ajudava no preparo dos antiplásticos, quando começou ela
própria a produzir potes cerâmicos, os preparava apenas com cariapé que buscava no mato. O
barro era retirado na beira do rio Ubuçutuba, em frente à sua casa. Aprendeu tais técnicas ao
observar e ajudar sua mãe, mas só começou a fazer suas próprias peças depois que ela morreu.
O que possivelmente virá a ocorrer com sua própria filha, após a sua morte. O conhecimento,
ao que parece, é internalizado e só é atualizado quando a mestre morre.

Os trabalhos de tecelagem, trançados e produção cerâmica nos revelam não só a


diversidade de objetos e saberes transmitidos entre as mulheres, mas também que, entre elas,
cada uma tem “o seu trabalho”. Para cada linha feminina de transmissão de conhecimento, há
uma especialidade que é passada e que cada mulher leva consigo quando se muda para o
universo doméstico do marido. O caso do Taxipucu é exemplar.

No grupo doméstico de Augusta, ela é a única que sabe tecer redes, e suas noras “não
se interessam” em aprender (ver Anexo 6). Enquanto morou na casa da sogra, Cristiane fazia
matapis e cestos de palmeira trançada, atividade que aprendeu com sua mãe e que continuou a
praticar depois. Ela não compartilhou esse conhecimento com a sogra. Outra nora e moradora
desse mesmo grupo doméstico, Nete, prima de Cristiane, também trabalha a tala e não
aprendeu a mexer com o algodão. “Esse pessoal trabalhava muito com isso, lá”, dizia Augusta
sobre o trabalho das noras, enquanto ela própria procurava chamar a atenção da neta para a
tecelagem do fio de algodão.

“Minha mãe ensinava a planta”, me conta a filha de Walica, no Ubuçutuba. O trabalho


com plantas também é transmitido nas redes femininas de parentesco. Izete, moradora do
Ubuçutuba me conta “aprendi a planta vendo minha mãe plantar”, reforçando o aspecto
mencionado acima da interiorização do conhecimento que ocorre preferencialmente através
do olhar, da imitação e do ajudar. Não há uma orientação expressa, nem uma condução do
gesto pela instrutora. Dica reclama de sua filha: “eu planto a muda e dou para ela, mas ela
deixa cerrado. Mas ela tem mão boa para plantar. Se ela caprichar muito vai ter. Mas ela não
capricha muito”. Assim, há uma preocupação com a transmissão deste conhecimento. Mas,
diferentemente das outras atividades, plantar tem uma função mais estrutural na vida das
mulheres – menos ou mais, todas plantam. Trago aqui os desenhos que me foram
presenteados em 2006 por Maiara, uma neta de Walica (Figura 3.4). Enquanto eu entrevistava
sua avô sobre o processo de produção cerâmica, Maiara, que nesta época devia ter oito anos,

167
Figura 3.4.1: Desenhos feitos por Mayara no Ubuçutuba, 2006. Acima à esquera, processamento do açai;
acima à direita, trançando a palha. Abaixo, a oleira.

168
Figura 3.4.2: Desenhos feitos por Mayara no Ubuçutuba, 2006. Acima, oleira tirando o barro;. abaixo, o
rio e a floresta.

169
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

me pediu lápis e papel e sem que eu fizesse nenhuma solicitação especial me trouxe os
cuidares femininos: a produção com as talas de arumã, a fabricação de potes cerâmicos e,
finalmente, uma cena de pesca, que mais do que a pesca em si sintetiza a noção de casa, e o
profundo conhecimento arraigado sobre as plantas. Maiara é muito nova para participar de
qualquer uma destas atividades de maneira independente, mas o detalhamento dos gestos e
matérias-primas em cada prática representadas revelam um conhecimento internalizado que
eu nem ao menos podia esperar. Reparem nos detalhes de cada árvore que margeia o rio,
nenhuma delas é igual, todas são localmente reconhecíveis e importante referenciais de
humanização da paisagem para os ribeirinhos. Plantar faz parte do cotidiano feminino, como
cuidar da casa e criar os filhos; assim, há sempre uma relação muito particular entre a mulher
e a planta, aliado a um também intenso compartilhamento extradoméstico.

“Quando me entendi, já existiam essas plantas. Minha mãe já tinha essas plantas”,
conta Veríssima. Voltamos novamente a expressão que deu origem ao título do Capítulo 2,
aqui para identificar outro aspecto importante na inserção social da pessoa, nesse caso da
mulher: a relação com as plantas. São as mulheres que cuidam das plantas – em seus
pequenos canteiros, nos grandes terreiros que circundam as casas ou mesmo nos caminhos e
sítios no meio do mato. Para algumas mulheres, essa atividade pode ser especial, e elas
passam a dedicar mais tempo e aprofundar seu conhecimento sobre esse manejo. Segundo
Dica, que, além de fazer trançados, é uma grande conhecedora de plantas, “esse negócio de
trabalhar com essas coisas [plantas] é para quem é acostumado”. Tereza, que compartilha o
gosto por plantas e por seus cuidados, diz que é uma forma de “divertimento”, “acho bonito e
sempre gostei, porque minha mãe sempre gostou de planta”.

Por que esse cuidado é importante e como faz parte de uma rede mais ampla de
significados?

As plantas exercem diversas funções úteis conforme suas espécies. Elas podem servir
como alimentos, temperos, remédios, ferramentas e enfeites, como especificaremos mais
adiante. Mas não apenas suas funções são importantes para as mulheres em Caviana, sua
produção e circulação assumem extrema importância para a população local. Como
mencionei no Capítulo 2, ser “filho de Caviana” passa também pelo consumo de alimentos

170
Figura 3.5: Croqui da casa de Tereza no João João Brás com indicação dos locais de plantio. Desenho:
Juliana Salles Machado.

171
Figura 3.6: Vista da casa do João Brás. Foto: Juliana Salles Machado.

172
Juliana Salles Machado

localmente produzidos, portanto saber plantar é valorizado como uma forma de cuidar das
pessoas da ilha, que através de diversas formas de partilha, supri-as de comida. A associação
entre o plantar e o cuidar foi abordada por Gow, ao tratar do parentesco entre os Piro na
Amazônia:

[…] a produção e a circulação de alimentos produzem pessoas, que


respondem com a memória desses atos de cuidar. Mas, igualmente,
essas atividades produtivas criam o mosaico de zonas de vegetação em
torno da aldeia […] eles são ao mesmo tempo importantes recursos
para a população local e loci do parentesco79 (1995:49).

Para entender como as plantas formam pessoas e se confundem com o parentesco em


Caviana, é preciso penetrar ao menos um pouco, nas especificidades dessa relação plantas-
pessoas, pois além da importância alimentar da produção, há outra forma de cuidar
relacionada a plantação de remédios, tema que trataremos com mais detalhe nesse capítulo.

Como se pode imaginar numa ilha amazônica, há plantas por todos os lados – no mato,
nos sítios, nas roças, nos terreiros, nos canteiros. Mas percebi que cada planta tem seu lugar e
cada lugar tem uma origem, função e/ou significado. Uma planta pode ser exclusiva das
mulheres – quando está num canteiro – ou ser compartilhada com os homens – quando está em
terreiros, sítios ou roças. Também pode estar associada à seres não-humanos, espíritos da
natureza como as mães-do-mato e as mães-dos-lugares80. Começo com uma descrição do lugar
das plantas a partir de um perspectiva da casa. Para isso, tomo a casa de Tereza, no João Brás
como exemplo (Figura 3.5). Olhando de frente, a partir do rio, não há nenhuma clareira em
volta da casa; é apenas um sobrado branco em meio a uma infinidade de árvores, que, no
entanto, são claramente distinguíveis da floresta (Figura 3.6). Diferentemente desta, ali o
espaço entre as árvores é maior, e elas são mais baixas e concentram um grande número de
palmeiras como o açaí, a bacaba e o miriti. Chegando mais perto, caminhando pelo trapiche,
vemos uma linha de flores enfeitando o barranco em frente à área inundável. Ao fundo, a
meia-parede que delimita a sala da frente da casa é emoldurada por plantas pequeninas

79
“[…] the production and circulation of food produces people. Who respond with memory of these acts of
caring. But equally these productive activities create the mosaic of vegetation zones around the village […] they
are at once important resources for local people, and loci of kinship” (Gow 1995:49).
80
A relação das mulheres com os não-humanos e as mães-do-mato e as mães-dos-lugares é discutida mais
detalhadamente no Capítulo 5.

173
Figura 3.7: Os canteiros de Tereza, João Brás. Foto Juliana Salles Machado.

174
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

penduradas do teto por cordas. No chão, algumas plantas no pé dos esteios chamam pouca
atenção. Não há plantas dentro da casa, a não ser uma velha flor de plástico vermelha que
enfeita uma mesa em um canto nunca usado da sala da frente.

Voltando à frente da casa e aguçando o olhar, vê-se, à direita, um pequeno cercado de


madeira, com plantas vistosas, onde se misturam flores e pequenos arbustos. Ainda à direita,
um pouco adiante, há algumas flores no chão, anunciando a casa de Mariana, nora de Tereza.
No fundo da casa principal, estão os canteiros. Eles ficam na lateral da casa, suspensos, perto
da bancada da cozinha, atrás das jarras de água. Há, ademais, um enorme canteiro que
desponta atrás da cozinha (Figura 3.7). Esse é formado por uma canoa velha, erguida por
pequenos esteios, que contém a terra e as plantas. Ao lado, uma pequena bancada elevada de
madeira sustenta vários paneiros, latas, baldes e vasos, cheios de terra e plantas. Aí, há plantas
de diversos tamanhos e tipos. Há poucas flores; a grande maioria é remédio ou tempero.
Envolvendo tudo isso, no terreiro em volta da casa, há muitas árvores frutíferas, “paus”81 e
arbustos. Além, há a mata. Levantando os olhos de qualquer ponto da casa ou do terreiro,
vemos despontar as enormes copas das árvores da floresta. Os limites do terreiro são
marcados pela capoeira que é uma zona de transição entre a casa (no sentido amplo) e a mata.

Em nenhuma outra casa encontrei um terreiro tão grande como o de Tereza. Os terreiros
em geral são menores, se não em extensão, na quantidade e na variedade de plantas que contêm.
Mas a disposição das plantas na casa de Tereza é a mesma encontrada em quase todas as casas
dessa parte da ilha. As flores estão sempre na frente, junto com algumas plantas de remédio
contra mau-olhado; os temperos e remédios, ao fundo, em canteiros elevados, e há pequenos
cercados espalhados pelo terreno, em meio a uma concentração de árvores frutíferas e úteis.

Essa divisão espacial reflete uma classificação das plantas no universo doméstico.
Delimitando a frente das casas, estão os enfeites, plantas que não têm uso medicinal ou
alimentar, mas são escolhidas por seu valor estético e ficam nas paredes externas. Só
encontrei plantas dentro de casa em momentos de transição, quando elas ainda estavam na
água, prestes a serem plantadas na terra. Essas plantas são flores vistosas e coloridas próximas

81
Paus são, para os ilhéus, as árvores que dão boa madeira.

175
Juliana Salles Machado

a porta de entrada ou alinhadas ao trapiche. Mais escondidas, mas também na entrada da


frente da casa, há poucas plantas de remédios, colocadas para proteger seus moradores das
maldades externas, vindas de formas diversas, como o mau-olhado de pessoas, a visita
indesejável de visagens ou de botos. Elas ficam discretamente no chão, perto dos esteios da
casa, como, por exemplo, a mucuracaá e o cipó-d’alho. Na casa de Dica, no Socó, ela e sua
nora as usam “para o boto não chegar”, mas no mesmo lugar podem ser plantados remédios
contra mau-olhado de origem humana e para afastar espíritos da água e da floresta.

Não obstante sua presença discreta na frente das casas, a maioria dos temperos e dos
remédios ficam em canteiros elevados, ao lado e fora da casa, quase sempre nos fundos, à
salvo da vista de estranhos. Neles também podemos encontrar mudas de árvores frutíferas e
plantas de chão ainda pequenas ou de outras plantas que depois irão para pequenas áreas
cercadas no terreiro para em seguida se misturarem às árvores mais antigas.

Os cercados espalhados pelos terreiros têm em geral a função de proteger mudas ainda
pequenas de árvores frutíferas contra o pisoteamente. Eles acomodam apenas uma muda. Há
no entanto, alguns exemplos, em que áreas cercadas em meio ao terreiro são feitas para
proteger pequenas plantações como a de milho. Nesse caso, o isolamento da área se deve à
presença de animais prejudiciais à sua sobrevivência e atua como forma de prevenir a entrada
de gado na área de plantio próximo a casa, protegendo assim as plantas mais frágeis.

Essa compartimentação dos espaços de plantio respeita as diferenças entre as plantas


por sua origem, espécie e uso. Mas também é regida por um princípio de visibilidade e
invisibilidade, por sua vez associado à questões de gênero e proximidade social. As plantas
ornamentais, em grande parte dispostas na frente da casa, estão voltadas para o exterior,
podendo ser vistas por todos que se aproximam da casa, sem restrição de acesso. Essa grande
visibilidade não ocorre com as plantas de mau-olhado, por exemplo, também localizadas na
entrada da casa. Estas, apesar de poderem ser vistas (já que não há nada que impeça a visão
do visitante), são colocadas em locais que não privilegiam o olhar, já que estão em geral nos
pés dos esteios, local pouco utilizado para circulação. Numa escala intermediária de
visibilidade, encontramos os cercados do terreiro, que só podem ser vistos a partir da casa e,
ainda assim, através da cerca e à relativa distância. Tal localização exige que o visitante tenha
sido aceito a adentrar a casa, de onde possam vê-los. Já adentrando o campo do invisível,
temos os canteiros, que em oposição às flores da entrada não podem ser vistos. Sua

176
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

visibilidade é condicionada pela intimidade com os moradores da casa. O acesso à diferentes


partes da casa está relacionado ao grau de intimidade do visitante com o morador. Numa
escala gradual de acessibilidade, a sala da frente é mais aberta à estranhos e a cozinha a área
mais íntima. É preciso passar pela cozinha para chegar aos canteiros, portanto sua visibilidade
(e acesso) está restrita aos visitantes mais íntimos da casa, tornando-se invisíveis aos que
chegam apenas à frente da casa ou trapiche.

O princípio da visibilidade e invisibilidade, por sua vez, está atrelado à questões de


gênero e parentesco. O espaço mais visível, a entrada da casa, é frequentado tanto por homens
quanto mulheres e apesar da manipulação das plantas ser feminina, é comum as flores
ornamentais serem presentes de homens, que a trazem de outras casas da ilha ou da cidade. Já
o acesso aos cercados é mais restrito do que à frente, pois, embora manipulados pelas
mulheres, ele em geral contêm plantas alimentícias que são muitas vezes colhidas por
homens. Este é um espaço misto, pois apesar do plantio ser feminino, a muda está localizada
em uma área predominantemente masculina, o terreiro. O terreiro concentra os alimentos-base
da subsistência e é tratado por homens e mulheres, mas com ações distintas em função do
gênero. Essas variações são, por exemplo, o plantio feminino, enquanto a roçagem e a poda
seletiva é masculina, enquanto a coleta é compartilhada. Já os canteiros são esferas
exclusivamente femininas. Apenas as mulheres manipulam os temperos e remédios. Também
sua visibilidade é predominantemente feminina, devido a sua localização próxima à cozinha,
área mais íntima da casa.

Os princípios da visibilidade e invisibilidade das plantas não assumem uma


importância em si, mas no fato deles refletirem divisões espaciais da casa e áreas distintas de
manipulação. A casa como centro principal da domesticidade é predominantemente feminina.
Contudo, dentro dela há diferenças quanto a importância de cada espaço para os homens e
para as mulheres. Os espaços são compartimentados através de domínios de gênero e
parentesco. Essa divisão está relacionada os locais de ação de homens e mulheres, e, de
acordo com a natureza dessas ações, torna o ambiente mais ou menos receptivo aos outros.
Tais divisões marcam ora a necessidade de esconder, ora a de mostrar a intimidade da casa. O
trapiche e por vezes o pequeno terraço de frente da casa é o local onde se realizam as

177
Juliana Salles Machado

negociações com “marreteiros” e se recebem visitantes estranhos. Por ser um local voltado
para o exterior, é associado ao universo dos homens. A sala da frente é também reservado a
recepção de visitantes, mais íntimos do que o trapiche, mas ainda relacionado a um aspecto
mais formal, destinado, por exemplo, a amigos mais distantes e não à parentes e amigos
próximos. É também nesse espaço que o homem realiza seu trabalho, mexendo, por exemplo,
com peças de motor, fazendo coisas em madeira e arrumando ferramentas. Assim, também
pode ser considerada uma esfera masculina. O quarto é um ambiente misto, tendendo a ser
mais feminino. Não são todas as casas que possuem quartos, muitas tem na sala o local de
dormir. Mas quando há uma compartimentação deste espaço, ele é despido de móveis, apenas
com uma rede pendurada e um local onde se acomodam as roupas, como cestos pendurados
ou cômodas de madeira. Normalmente estes locais não possuem adornos ou ornamentos de
qualquer tipo. A falta de objetos pessoais nos quartos chama atenção, já que a sala e a
cozinha, apesar da quase ausência de mobília, possuem objetos pessoais, como santinhos,
fotos, cartazes e enfeites cobrindo as paredes. A associação de gênero e visibilidade aqui
parece difícil de ser aplicada. Enfim, a cozinha, local de manuseio e ingestão de alimentos é o
local, por excelência das mulheres. É ali que elas passam grande parte do seu dia, que
conversam e recebem parentes e amigas e que realizam grande parte de seus trabalhos, seja
com costura, com a tecedura da tala, com a manufatura da cerâmica ou com o processamento
de alimentos. É ali também que se fazem os remédios. Devido a sua localização nos fundos da
casa, ela só visível àqueles convidados a entrarem, normalmente parentes e amigos. É o local
onde ocorre a partilha da comida, importante para definir a esfera do parentesco. É desse
espaço íntimo feminino que temos acesso aos canteiros, escondidos do olhar de todos.

As mulheres sempre se referem às plantas como “minhas plantas”, e as mais velhas


lamentam não ter mais força para cuidar delas, e dizem de si mesmas “não presto mais”.
Segundo Tereza, “às vezes, os homens gostam [das plantas] e pedem para as mulheres
fazerem e trazem plantas novas, mas quem cuida são as mulheres”. Dica completa: “as
mulheres cuidam; os homens derrubam; as mulheres tratam”.

As mulheres têm uma preocupação cotidiana com as plantas e atualizam


continuamente o conhecimento de seu manejo. Como o plantio é difícil em áreas inundáveis
como o entorno das casas ribeirinhas, a busca por formas de melhorar a qualidade do plantio
leva a um trabalho permanente de adubação e acréscimo de terra exógena. Esse processo

178
Figura 3.8: Os canteiros de Dica (acima) e Marli (abaixo) no Socó. Foto Juliana Salles Machado

179
Figura 3.9: Acima e à esquerda, a coleta e o processamento para consumo doméstico do açaí e à direita a
secagem dos caroços para posterior uso como adubo nos canteiros. Foto Juliana Salles Machado

180
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

motiva visitas à amigos e parentes e compõe, junto com a troca de mudas e sementes, o
compartilhamento feminino.

Um exemplo da melhoria da terra é o de Veríssima, na Prainha, uma área ruim para o


plantio, já que “quando a maré grande vem, cobre [o lugar] com areia”. Veríssima vai buscar
terra em outros locais e aduba seu canteiro pilando e misturando a terra nova com restos de
plantas secas. Outro exemplo foi quando as chuvas encharcaram a terra no João Brás e Tereza
foi ao igarapé Pocotó, onde vive seu irmão, para buscar terra amarela, que diz ser boa para o
plantio. A preocupação com a qualidade da terra também se estende aos canteiros, comumente
adubados na ilha com caroço de açaí. Coloca-se o caroço no pé de uma árvore do terreiro até
ele apodrecer; depois, ele é posto na terra do canteiro. Da mesma maneira, servem como
adubo folhas em decomposição recolhidas em praias, beiras de barranco e nos pés de árvores
(Figura 3.9).

O conhecimento das plantas e de seu manejo é importante para as mulheres manterem


os vínculos com os parentes da casa de origem após o casamento, assim como para criar e
reforçar os laços no novo grupo doméstico. Ilustrando essa afirmação, trago o exemplo da
filha de Augusta, Marli. Ela nasceu no igarapé Taxipucu, numa família em que era a única
mulher além da mãe. Como o pai é um marreteiro e a mãe não tem boa saúde, em sua casa
nunca se plantou roça e pouco se cuidava do terreiro ou do canteiro. A mãe tecia redes e
fabricava utensílios como fusos a partir de material reciclado. Marli aprendeu a fazer
artesanato, mas não a mexer com as plantas, como a maioria das mulheres da ilha. Quando se
casou com Hélio, foi morar no Socó, longe de sua família, numa casa junto à de sua sogra.
Diferentemente do igarapé em que morava, onde havia muitas casas, no rio Socó havia poucas
edificações em meio a um enorme açaizal. A família do marido e ele próprio prezavam muito
os canteiros elevados, e as mulheres tinham uma relação forte com eles; seus canteiros tinham
remédios contra doenças, feitiços e mau-olhado, além de enfeites para a casa e temperos para
a comida. Assim, Marli passou a cultivar plantas ao lado de casa, com as mudas que
inicialmente lhe haviam sido dadas pela sua sogra, Dica, e pela sua tia, Tereza. Também lhe
ensinaram a plantar e fazer remédios, e agora ela já tem seu próprio canteiro e também uma
roça, onde trabalha com o marido e as filhas. (Figura 3.8).

181
Juliana Salles Machado

De volta ao Taxipucu, onde vive a mãe de Marli, estão se formando canteiros nos
fundos das casas de suas cunhadas, Sandra, Nete e Cristiane. Primas entre si, todas
aprenderam a plantar com suas mães, no igarapé Ubuçutuba (ver Anexo 6). No Taxipucu, o
grupo doméstico dessas quatro mulheres fica num lugar suscetível a inundações, dependendo
da época do ano. Segundo Nete, “quando a maré lança, as plantas de chão morrem todas; só o
canteiro que fica”. Ela foi a primeira nora de Augusta e levou plantas da mãe e das irmãs para
formar seu canteiro. Diz que sua mãe aprendeu a lidar com plantas com sua avó, que era
índia, e que elas aprenderam a fazer remédios com um pajé no igarapé Apani 82. Quando a
segunda nora de Augusta chegou, ela também trouxe suas plantas, dadas por sua mãe, mas
contou com a ajuda da prima e cunhada Nete, com quem atualmente troca mudas. Por fim,
recém-chegada e ainda morando na casa de sua sogra, Sandra também havia aprendido a
plantar com sua mãe, mas diferentemente das outras, quando chegou ao Taxipucu, não tinha
plantas. As cunhadas e a tia do marido, Tereza, incentivaram-na a começar seu canteiro,
mesmo na casa da sogra.

A relação estabelecida pelas mulheres do Taxipucu e do Socó com as plantas se inicia


através de um processo de transmissão entre mãe-filha e entre irmãs. Em um segundo
momento, após ter o canteiro formado, passa pela troca das mudas, prática que reforça a
vinculação das mulheres agora casadas e longe de casa com o parentesco e cria novas esferas
de sociabilidade entre amigas e vizinhas, assim como na nova família do marido. Gow (1995)
abordou a relação entre as plantas e o parentesco por meio do tema da terra e da troca de
alimentos. Detenho-me um pouco nesse trabalho, pois, apesar de tratar de um contexto
diferente do de Caviana, os aspectos que apresenta para compreender a trama social dos Piro
parecem aplicar-se ao contexto do delta amazônico:

Enquanto eu aprendia sobre a paisagem local de Santa Clara, fui


ficando cada vez mais impressionado com a forma com que o
parentesco, como processo temporal, se vinculava a ela. [...] O
parentesco como mencionei é diretamente entendido pelos nativos no
meio ambiente porque está ali. Está ali porque o parentesco é criado a
partir da agência humana na paisagem [...] As relações ativas entre

82
Esse é tido como o único pajé remanescente da ilha. Esse termo não se aplica a mulheres, que são, em geral,
chamadas de “benzedeiras” ou “experientes”. Este último, podendo ser aplicado tanto a homens quanto
mulheres. Há algumas diferenças entre os termos que exploraremos no Capítulo 5.

182
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

parentes implicam paisagem, porque a ajuda recíproca que parentes


oferecem uns aos outros é a modificação da paisagem: parentes se
ajudam para transformar florestas em roças. A implicação mais radical
do parentesco sobre a paisagem é a construção de casas. Parentes se
ajudam para construir casas para que possam viver juntos [...] a aldeia
é, ao mesmo tempo, a cena do parentesco e o produto do parentesco83
(Gow 1995:47-56).

Gostaria de ressaltar alguns aspectos apontados por Gow que considero relevantes
para compreendermos o contexto do delta amazônico. Para os Piro o ambiente é entendido
como parentesco porque a relação entre os parentes implica em transformação e manejo
ambiental. Nesse contexto indígena, o acúmulo dessas ações no tempo e seus significados
criam paisagens. A base da associação entre parentesco e ambiente neste caso, está na
transformação da floresta em roças e em áreas de moradia. Das roças produziriam as comidas
verdadeiras, isto é, produzidas por eles na sua própria terra, base do compartilhamento entre
parentes. Dos locais de habitação, constroem-se casas e aldeias, moradia e espaço de
convivência de parentes. Em Caviana, a transformação da floresta também é a base da
relação entre parentes e as plantas, sendo importante os grupos de trabalho coletivo e sua
associação com os lugares. Em minha área de pesquisa, a ideia de parentesco vinculada à
paisagem se dá tanto pela ação direta de parentes que conjuntamente trabalham no manejo da
floresta para criar áreas de plantio, como as roças, quanto na construção de casas em áreas
previamente manejadas - ambas atuação dos homens. Contudo, gostaria de ressaltar outro
aspecto dessa relação, aquele mais relacionado à prática feminina. Embora haja entre as
mulheres uma esfera coletiva do plantar e colher na roça, principalmente entre mãe e filha,
nesta pesquisa trato de uma transformação mais sutil da paisagem, feita por uma pessoa com
uma planta. Mudamos apenas a escala, pois a pessoa agente da transformação entre vegetal-

83
“As I learned about the local landscape of Santa Clara, I became increasingly impressed by the way in which
kinship, as a temporal process, was bound up in it. […] Kinship as I have argued, is directly perceived by native
people in the environment because it is there. It is there because kinship is created out of human landscape
agency […] The active relationships between kin implicate landscape because the help that kin give each other is
landscape modification: kin help each other to transform forest into gardens. The most radical implication of
kinship in landscape is the act of house-building. Kin help each other to build houses so that they may live
together […] the village is at once the scene of kinship and the product of kinship” (Gow 1995:47-56).

183
Juliana Salles Machado

da-floresta e planta-doméstica não está isolada e os efeitos à longo prazo dessa relação
interpressoal na paisagem são significativos. Isto se deve, pois após esse processo individual
de transformação, o resultado é compartilhado a partir da troca de plantas entre as mulheres
em suas redes de parentesco, vizinhança e amizade. A aproximação do contexto de Caviana
com aquele tratado por Gow se dá pela idéia de que a ação humana transforma uma esfera
vegetal exterior em espaços domesticados identificados com o parentesco – no exemplo de
Gow pela produção partilhada e no exemplo de Caviana pelo conhecimento e circulação.

Outro aspecto tratado por Gow, a aldeia como produto e produtora de parentesco,
encontra paralelo em Caviana. Mas neste último contexto, não se trata de criar uma aldeia,
isto é, um centro único de convivência, mas em criar lugares de convivência, o que nesta
pesquisa chamamos de “lugares de gente”, usando um termo local. Novamente a ênfase aqui é
na ação humana na transformação de espaços não-domesticados em locais de convivência de
parentes. E por fim, a questão da alimentação, muito enfatizada entre os Piro, mas menos
aparente no contexto deltaico de Caviana. Apesar de, como mencionamos no Capítulo 2,
existir uma ideia vaga de verdadeiro associado à alimentos produzidos na ilha pelas mãos de
parentes, ela não é verbalizada e não assume a importância que Gow nos aponta no contexto
de Santa Clara. A importância da comida local em Caviana está no que ela representa, isto é,
na idéia de alimentar como cuidar, obrigação primeira dos parentes. Todos os aspectos
enfatizados em Caviana nos levam ao cuidar, cuidar de pessoas através da idéia da casa como
o espaço do doméstico, o lugar, por excelência, de gente. A partir do plantio das mulheres, a
floresta é transformada em o lugar de alguém, o lugar do parente, do parentesco com a relação
humana.

O processo de transformação do vegetal-externo à planta-doméstica mencionado


acima é oriundo da relação estabelecida entre uma mulher e uma planta. Como podemos ver
no exemplo de Tereza que me falava enquanto estávamos andando em meio as plantas do
terreiro: “ela [se referindo a uma planta] gosta dessas coisas. Aquela planta não gostou
daquele lugar, tenho que batalhar com as plantas para elas gostarem de ficar no lugar, zelar
por ela. A gente conversa com elas”. Há aqui uma conotação pessoal nesse processo
transformativo, que é expressa pelas mulheres através do uso dos termos “minha planta”.
Expressão à qual subjaz algo como ‘eu a encontrei e trouxe, eu plantei para que ela existisse
na minha casa, e agora ela está viva no meu canteiro’. Só poderemos compreender

184
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

plenamente essa relação quando tivermos em mente o que é uma planta para os ribeirinhos,
tema que discutirei um pouco adiante.

Além das plantas do canteiro, quase todos os moradores que conheci conseguem
nomear as árvores de seu terreiro e atribuindo-lhes algum significado, como de onde vieram,
quem as plantou, se dão ou deram muito trabalho etc. Esse conhecimento é compartilhado por
homens e mulheres, sendo as árvores frutíferas muitas vezes consideradas “herança dos pais”.
Diferentemente dos canteiros, cujas plantas são transmitidas de mãe para filha quando esta sai
de seu grupo doméstico, as árvores frutíferas do terreno podem estar associadas a uma
“patrilinha”. Como o sistema de moradia é virilocal e o terreno é usado por pais e filhos, as
árvores, apesar de cuidadas pelas mulheres, fazem parte de um manejo compartilhado da terra
paterna. Também são conhecidas as árvores que já estavam no terreiro antes de uma família
se mudar para o local. Quando perguntados se essas árvores influenciaram a escolha do local
de sua casa, a princípio dizem que não. A resposta para a escolha, em geral, é: “era um sítio
bonito e limpo”. Não estou afirmando tratar-se de uma busca não consciente por áreas
manejadas, mas sim, procurando entender qual é o significado desta resposta. Por isso me
pergunto o que é um sítio, para eles? Mais que uma categoria que expressa delimitação
espacial, um sítio é uma área limpa, com árvores frutíferas e úteis em geral, bastante usada
pelos ribeirinhos nos arredores de sua casa. Vemos, portanto, que há sim uma busca
consciente de áreas previamente manejadas na própria noção de sítio, o que é reforçado por
suas características de “limpeza” e “beleza”.

Examinarei o caso do João Brás. O terreno de posse de Adolfo compreende desde a


margem direita do rio Pocotó até quase o igarapé Turezinho, mas só o entorno da casa se
chama “sítio”. Por que se escolheu construir a casa nesse lugar de terras altas, banhado apenas
por um pequeno igarapé, à beira-mar e sem praia? O padrão de ocupação dos ribeirinhos
indica que mais gente habita as margens dos igarapés de médio ou grande porte, como o
Pocotó, e lugares onde se formam praias de areia branca; sendo menor o número de casas em
terras altas nas margens da ilha. Nesse caso particular, a escolha esteve relacionada à beleza
do sítio formado ali, onde já existia uma pequena casa. Entende-se por beleza aqui a
concentração de árvores úteis, sejam elas frutíferas, boas para fazer sombra, tala para

185
Juliana Salles Machado

trançados, cuias para água, lenha ou alimento para as criações ou para atrair caça ou pássaros.
Sobre esse ideal de beleza, Marli me explica que “canteiro bonito é fora das outras plantas”.
Isto é dizer, que a beleza está intrinsecamente relacionada a escolha humana, à seleção de que
plantas devem permanecer e quais devem ser retiradas – definição do próprio manejo. Assim
como a limpeza, isto é, a constante roçagem de plantas rasteiras, essa concentração de árvores
é valorizada pelas pessoas, que consideram o lugar “bonito”.

Dica nos fala sobre a escolha do local onde acaba de abrir uma nova roça: “a gente
escolhe o lugar na mata mesmo, onde a gente acha mais bonito. Porque a água bate lá e escoa,
não fica molhado. A gente observa onde dá melhor as plantas”. A beleza valorizada não é a
“natural” (como expresso no dizer de Dica “a mata lá era bruta”), mas a “cultural”, ou seja, a
que resulta da intervenção antrópica (“A gente vai tratando”, Dica) – gente busca lugar de
gente. Como veremos no Capítulo 5, isso fica mais evidente quando compreendemos a ideia
dos ribeirinhos sobre a instabilidade do estado humano frente ao mundo dos não-humanos.

Lugares de gente são, portanto, não apenas lugares de pessoas e parentes, mas são
também paisagens transformadas pelo plantio e conservação de alimentos, ornamentos e
remédios. O vínculo com a terra foi ilustrado no Capítulo 2 através do termo local “produto”,
isto é, produto do nosso trabalho, da nossa família, da nossa terra; produtos enviados como
alimentos à parentes na cidade. Gow utiliza o qualificativo “verdadeiro” para se referir aos
alimentos provenientes da própria terra dos Piro. Em Caviana o termo verdadeiro não é usado
para se referir aos alimentos produzidos localmente, mas a conotação dada aos mesmos está,
de certa forma, também presente, com por exemplo no hábito de Tereza em apenas comer as
coisas que conhece. Ela me diz que quando vai a cidade fica doente por comer aquelas coisas
e tomar aquela água. Em suas idas à cidade, leva sempre açaí, banana, camarão, porco e o que
tiver na época. Vimos na fala da neta de Tereza que mora na cidade (Capítulo 2), a
valorização do “comer junto”, mas também podemos perceber essa valorização nos constantes
pedidos de frutas dos parentes que moram na cidade. As frutas, como o açaí e muitas outras,
podem ser encontradas na cidade, no entanto é importante que a fruta venha da casa de seus
parentes, assim usam as rádios locais para manifestar esta diferença, como em um pedido que
ouvi na rádio Difusora local, relativo ao filho de uma senhora que morava em Caviana, “Mãe,
por aqui está tudo bem. Mande duas latas de açaí e banana pras crianças”. A importância de
receber o açaí da própria família, se deve ao fato desses alimentos serem preferencialmente

186
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

compartilhados entre os parentes, como uma forma de manutenção e cuidado. Mas como
veremos, o plantio de espécies alimentícias não são as únicas formas de criação de lugares84.

Para tratar da criação de lugares em Caviana, vou começar me debruçando sobre a


escolha dos locais de moradia pelos ribeirinhos. Como ocorre em toda a Amazônia, e como
mencionado no Capítulo 1, o espaço hoje ocupado pelos ribeirinhos em Caviana, em
particular no caso do João Brás, é também um sítio arqueológico datado de pelo menos o
século XVIII. Pelo que pude observar na superfície, nos barrancos expostos e nas peças que
me mostraram seus moradores, o lugar onde fica o sítio de Adolfo parece ter sido uma aldeia
indígena. Esses dados apontam para a recorrência do uso do mesmo lugar durante um largo
período. Não se trata de uma ocupação permanente, mas com intervalos (curtos ou longos);
durante centenas de anos pessoas viveram nesse lugar, no que poderíamos chamar de uma
ocupação persistente. O manejo intenso e antigo de suas plantas que se destacam na região,
foi uma forte motivação para sua escolha pelos atuais moradores, e, dada a persistência de sua
ocupação, quiçá também foi o impulsionador das ocupações que o antecederam. O manejo
ambiental deixa um marco da atividade humana e, ao mesmo tempo em que transforma o
meio, se torna um importante referencial na paisagem. Seu estado antrópico o torna um lugar
significativo, alvo de afeto e memória.

A noção de ocupação persistente nos indica que a paisagem em Caviana está


vinculada à temporalidade. A escolha de locais previamente manejados está associada não
apenas a uma seleção de plantas, mas a quem selecionou essas plantas. Quem as manejou no
passado. Espaços manejados nos indicam uma presença prévia de ocupação humana e, em
Caviana, revelam lugares de parentes e sua conservação faz parte da manutenção de um único
e mesmo processo de cuidado. Como afirmado há pouco por Gow (1995), o parentesco é um

84
Nesse ponto, apesar de já ter definido o uso do termo paisagem, sinto que são necessárias algumas definições a
fim de chamar a atenção para as diferenças entre os conceitos de espaço (space), lugar (place) e terra (land).
Segundo Zedeño (2007), espaço seria uma categoria mais abrangente, como sinônimo de terreno; já terra seria
parte desse espaço e local sobre o qual estão os recursos naturais e objetos de manufatura humana. Já lugar seria
uma parte dessa paisagem maior constituído de história, afetos e atividades rotineiras (Lane 2007:240). Cada
lugar tem qualidades distintas e são significativamente particulares derivados de suas inter-relações com pessoas
e com outros lugares (Lane 2007:240).

187
Juliana Salles Machado

processo temporal. Assim o é a paisagem (Ingold 1993, 2000). Morphy referindo-se ao


contexto aborígene australiano afirma:

As pessoas aprendem sobre seu passado ancestral simplesmente


movendo-se pela paisagem. O conhecimento que elas adquirem reflete
uma relação ativa entre o seu passado ancestral e a própria terra […]
mudanças podem ser acomodadas por seus reflexos na natureza
transformacional do passado ancestral […] o potencial para atribuir
significado a um lugar é enorme e, em Yolngu, conceitos de paisagem,
mito e história se misturam, às vezes para reforçar uma imagem do
lugar, às vezes para mostrar imagens contraditórias […] inversamente,
eventos contemporâneos podem, transformar a imagem de um lugar e
dar novos significados a eventos mitológicos” 85 (Morphy 1995: 196,
grifo nosso).

Anteriormente enfatizei a vinculação da paisagem com o parentesco através da


transformação da floresta em plantas e de sua domesticação pelas mulheres. Agora me volto
para como esse processo é concomitante a uma compreensão histórica dos espaços
transformados. O trecho citado de Morphy revela a vinculação direta que os Yolngu,
aborígenes australianos do nordeste de Arnhem, fazem entre paisagem e passado ancestral. Se
em Caviana esta vinculação não é explícita, acredito que ela pode ser percebida na idéia de
“lugares de gente”. Estes lugares, como vimos, referem-se a locais habitados anteriormente
por pessoas. Mas não estamos falando de qualquer pessoa, mas sim parentes, já que as terras
costumam ser usadas por muitas gerações, portanto essa “gente” se refere à parentes.
Poderíamos pensar nesses locais como ‘lugares de parentes’. Não obstante, a noção de
“lugares de gente” carrega em si não apenas essa vinculação com o parentesco, mas também
com um aspecto vertical, o aspecto da temporalidade. Ao reconhecerem o “grau de madureza”
da mata através das espécies vegetais, o manejo ambiental inerente aos “lugares de gente” é
também um indicador temporal. Assim o processo temporal imbuído na idéia de parentesco, é

85
“People learn about the ancestral past simply by moving through the landscape. The knowledge they acquire
reflects an active relationship between the ancestral past and the land itself […] change can be accommodated by
its reflection in the transforming nature of the ancestral past […] the potential for encoding meaning in place is
enormous, and in Yolngu conceptions of landscape, myth and history combine, sometimes to reinforce an image
of place, sometimes to present contradictory images […] conversely, contemporary events can transform the
image of a place and give mythological events new connotations” (Morphy 1995:196).

188
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

atribuído à paisagem, que é assim um resultado de inúmeras transformações históricas. Outro


ponto que quero enfatizar no trecho citado de Morphy é a atribuição de significados à lugares
específicos, chamado pelo autor de imagem de lugar. O conceito é semelhante à ideia de lugar
significativo que venho adotando ao longo deste trabalho e reforça o próprio conceito de lugar
que mencionei acima (Lane 2007). Assim um “lugar de gente” em Caviana é sempre um lugar
significativo, ou como quer Morphy um lugar onde mito e história convergem, onde um
passado ancestral (ou no caso de Caviana, dos antepassados) é ao mesmo tempo reconhecido
e transformado no presente.

Um termo local para se referir a tais lugares significativos é “paragem”. O termo nos
remete exatamente a esse processo de criação de lugares de referência para a ocupação
humana. “Paragens”, como se pode imaginar, são lugares de parada. Locais aonde as pessoas
vão e ficam algum tempo – para morar, trabalhar ou acampar. Como vimos, os lugares-para-
parar são escolhidos por ter marcas de presença humana, por conter histórias humanas. Muitas
vezes, essas histórias são muito próximas, ligadas à parentes e antepassados conhecidos, e se
misturam com o parentesco. Nesse caso, as paragens têm nomes e contornos familiares.
Outras vezes são mais distantes, e remetem a personagens menos conhecidos, como os índios
Cavianos da história de Abdom (Capítulo 1).

A ideia de “paragem” que exploro aqui pode ser interpretada como semelhante à de
emplacement; ambas contêm os aspectos de transformação ambiental que levam à criação de
paisagens familiares, enraizadas em conhecimentos ancestrais e vinculadas a um
compartilhamento simbólico e prático do parentesco. Segundo Hirsch e O’Hanlon:

Noções de “emplacement” são análogas a processos mais familiares


de seres ancestrais voltando continuamente aos lugares. No entanto,
esse mundo organizado e congelado do passado ancestral só é re-
criado em experiências pessoais, através de movimentos realizados

189
Juliana Salles Machado

por pessoas e coletividades entre lugares86 (Hirsch & O’Hanlon


1995:17).

Conforme discutimos anteriormente, paisagens incorporam em si temporalidades não


abstratas, mas relacionadas a um passado familiar. No entanto, esse passado só pode ser
acessado a partir de experiências pessoas, como nos indica Hirsch & O´Hanlon no trecho
citado. Em um contexto distinto daquele tratado pelos autores, em Caviana tais experiências
individuais assumem extrema importância para todo o processo transformativo dos espaços
em lugares e por fim em paisagens. Isto porque, como mencionamos anteriormente, o
processo se dá inicialmente, por uma mulher com uma planta. Uma experiência que só ocorre
individualmente através do ato da escolha das sementes e mudas e do plantar. Nesse sentido,
estar no lugar (emplacement) faz parte não apenas do resultado do processo de criação de
lugares (vivenciar um local de ocupação persistente, permeado de memórias e afetos
relacionado aos antepassados e sua significação atual), mas também do início do processo,
com uma experiência fenomenológica da mulher como intermediária das esferas da floresta-
externa com a casa-doméstica.

A frase dita por Maria Valadares – “Homem é besteira. Vai lá pra beira, tem um monte
de filho e depois fica só” – contém aspectos importantes para essa reflexão. Maria fala na
afinidade dos homens com a maré e com as águas, o que, por oposição, remete também à
afinidade das mulheres com a terra e com as plantas. Ao associar o abandono ou o
rompimento das relações de parentesco com a aproximação do homem com a água, ela
reforça a associação do parentesco com a terra, com um lugar, com uma paragem. Parentesco
é permanência, assim como a terra, assim como as plantas. A mesma associação faz Tereza
quando diz à filha “Tá pensando que é o quê? Moruré?” 87, em resposta à notícia de que uma
amiga que ia ser despejada e não tinha para onde ir, falava em entrar num barco e ficar
boiando com a maré. Como a de Maria, a frase de Tereza opõe a água à terra, a mobilidade à
permanência, a pesca dos homens ao plantio das mulheres – as mulheres plantam
permanência; os homens se arriscam na fugacidade. E há ainda outro ponto importante na

86
“Notions of ‘emplacement’ are analogous to more familiar process of ancestral being continually turning into
place. However, this ordered and frozen world of the ancestral past is only re-created in personal experience
through the movements made by persons and collectivities between places” (Hirsch & O’Hanlon 1995:17).
87
“Moruré” é o nome de uma planta que vive boiando na água dos rios e igarapés da ilha; às vezes, se prende na
margem, para logo em seguida se soltar.

190
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

curta frase de Maria: “ficar só”. A fluidez das águas e de seus ofícios não fixa laços de
sociabilidade. As plantas e as atividades da terra, sim. Plantar e trocar são formas do cuidar,
de permanecer no lugar como um ser social.

3.2 Das visitas às trocas

Leva a planta que, quando eu não tiver, você tem.


Geralda Figueiredo, Taxipucu, Caviana

Comecei a perceber a relação das mulheres com as plantas nas visitas que fazíamos a
amigos e parentes. Apesar da distância entre as casas, a troca de informações entre os grupos
domésticos era intensa – visitas, organização de festas religiosas, trabalhos coletivos e
negociações de compra e venda de produtos e mercadorias. Como líder da comunidade e
pessoa influente na região, Adolfo, marido de Tereza, sempre visitava parentes e amigos. Eu o
acompanhava nas visitas que pareciam destinadas à minha apresentação às pessoas da
comunidade. Numa delas, Tereza também estava e, antes de irmos embora, disse para o
anfitrião, “agora, eu vim aqui, e o senhor tem que ir lá”. Essa frase não foi casual ou sem
consequências. Em conversas cotidianas e reuniões sociais, são sempre lembradas as visitas
não retribuídas, e esse compromisso entre parentes e amigos revelou que minhas viagens com
Adolfo não se deviam exclusivamente à minha presença, mas integravam uma prática comum
e constante, entre homens e mulheres.

Quando Adolfo ficou doente, Tereza passou a fazer as visitas e mudou-as, levando-me
à casa não mais dos parentes do marido, mas de seus próprios parentes e de suas amigas,
permitindo que eu participasse de um mundo feminino antes pouco percebido. Enquanto as
visitas com Tereza se intensificavam, comecei a perceber que havia algo recorrente nas
conversas, uma sequência quase estruturada de temas e movimentos que fazíamos nas casas.
Ilustro-a com uma visita de Tereza à Dica, que é sua comadre e sogra de sua sobrinha.

191
Juliana Salles Machado

O igarapé Socó fica a aproximadamente uma hora de lancha da casa de Tereza. O


igarapé não é muito grande, e sua boca fica escondida em meio à vegetação da margem da
ilha. Um pouco antes de subirmos esse rio, avistamos um conjunto de quatro casas à beira-
mar, grupo doméstico da filha de Dica. Subindo o rio, avistamos primeiro um conjunto de
casas, na margem esquerda, e mais adiante, quando o igarapé se afunila, vemos a pequena
casa do filho de Dica. Em frente, há um grande telheiro para o barco e, unindo esse conjunto
com à casa seguinte, um grande trapiche de madeira bem conservado. A outra casa, recém-
construída, é de Dica e seu marido, Constâncio. Toda pintada de verde e branco, com uma
ampla sala na frente, três quartos que dão para a sala e uma passagem coberta que leva a uma
cozinha separada. Essa cozinha não é nova, já pertencia à antiga casa. É uma construção
grande, sem paredes e coberta por palha trançada, uma bancada de madeira e um grande barril
para armazenar água. Logo depois da cozinha, estão os canteiros, suspensos ao longo da
passarela, em seguida, um telheiro onde Dica guarda suas ferramentas e trançados de tala, um
galinheiro suspenso e a antiga casa, que ainda é usada como depósito, inclusive das suas
roupas. Depois da antiga casa, a passarela segue até uma casinha fechada, onde é o banheiro.

Ao chegar, fomos recebidas na sala da frente da casa nova. Começou uma conversa
sobre a maré. Tereza comentou que estava secando depressa e a maresia estava terrível, e
Dica concordou. Tereza então perguntou pela saúde de sua família, e ela respondeu que não
andava muito bem, mas que estava “indo, graças a Deus”. Depois, Dica fez a mesma pergunta
a Tereza, que respondeu a mesma coisa, acrescentando a dor na perna. Elas se puseram a
contar casos de doença de familiares e conhecidos, e, depois dessa conversa, em que ficamos
em pé, encostadas em bancos na sala da frente da casa, Dica nos convidou para o café, na
cozinha. Ali começou uma conversa sobre um acontecimento recente em Afuá, a festa do
vaqueiro, em que várias pessoas foram mortas. Comentaram a visita de certos parentes da
cidade que estiveram na ilha e a data da viagem do barco de Roberto à cidade. A visita durou
umas duas horas, pois tínhamos que voltar antes que a maré vazasse demais. Durante toda a
visita, elas “reparavam” o igarapé e falavam sobre a maré. Assim que ela começou a vazar,
foi dado o sinal para o fim da visita, e Tereza pediu a Dica uma muda de copaíba. Não
explicou o motivo do pedido e nem este lhe foi perguntado. Dica levou-a ao fundo da casa,
onde ficam os canteiros suspensos: lá comentaram o crescimento de algumas plantas e seus
cuidados específicos, de quem ela ganhara determinada planta e como preparar os remédios,
explicação seguida de alguma indicação de sua forma de plantio. Nesse momento, a conversa

192
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

era sussurrada, enquanto os homens estavam na cozinha, conversando e tomando café com
biscoitos. Lá do fundo da casa, Tereza saiu com a muda de copaíba, e nos despedimos.

Esse episódio revela um padrão de visita e conversa feminina que vi se repetir


inúmeras vezes, em minhas saídas com Tereza. Há basicamente três momentos nas visitas: a
recepção formal, o compartilhamento da esfera doméstica e, por fim, o pedido de uma planta.
Nem todas as visitas têm os três momentos; isso depende da relação estabelecida entre as
visitantes e a dona da casa. Muitas vezes, só Tereza era convidada a compartilhar a conversa
na cozinha, enquanto eu era servida de cafezinho na sala da frente ou até no pequeno terraço
que antecede essa sala. Algumas vezes, nem Tereza era convidada a “passar”. O pedido de
plantas também não é obrigatório, depende de quem visita quem e é motivado pela
necessidade momentânea de alguma planta. No entanto, todas as vezes em que fomos
convidadas a “passar” ou em que houve um pedido de alguma planta, o padrão foi esse.

Também a conversa em cada um desses momentos é, de certa forma, padronizada.


Normalmente, as falas são calmas, pausadas, e com vários silêncios. Entre as mais jovens, há
comentários engraçados e risos, mas, mesmo assim, eles ocorrem na esfera mais íntima da
casa, a cozinha. Como mencionei anteriormente, a cozinha é o local por excelência da
atividade feminina. Escondida dos olhos de todos, ela contém os segredos femininos do
cuidar. Isto pois contém em seus recipientes, os temperos da comida, as ervas e plantas de
remédio, as próprias panelas e jarros de barro, todos elementos importantes para o bem estar
das pessoas a quem a mulher deve zelar. Na cozinha as mulheres exercem seus conhecimentos
práticos e saberes mágicos longe de olhares alheios. É esse espaço que abriga as trocas de
conhecimento sobre as plantas de remédio. É ali que se relembram velhas misturas vindas de
antepassados e curadores e é a partir da cozinha que se tem acesso aos canteiros, receptáculo
dos produtos da transformação vegetal-exterior para planta-doméstica. É curioso observar a
localização da cozinha em uma casa ribeirinha. Ela em geral está no fundo do terreiro, no
limite entre a floresta e a área “limpa” do entorno da casa. Muitas vezes esse espaço é
separado do restante da casa, sendo ligado apenas por passarelas e tábuas de madeira. É como
se a cozinha em si fizesse parte desse processo transformativo do externo para o doméstico.
Pois não apenas as plantas passam por esse processo naquele espaço, mas também, e mais

193
Juliana Salles Machado

frequentemente até, os alimentos de origem animal, a carne de caça, cujo potencial


transformativo sobre os humanos foi tema de diversos autores nos estudos sobre populações
indígenas (Fausto 2008, 2007, 2001; Vilaça 1992; Viveiros de Castro 2002; Descola 2004).

A forma repetida das conversas femininas se iniciam ainda do lado de fora da casa ou
na sala da frente. No primeiro momento, fala-se sobre o tempo, as marés, os parentes (quem
está com quem, como estão os filhos e onde estão morando, ou ainda questões relativas à
saúde) e as viagens a Macapá (quem está na cidade, com que barco, quando volta, quem vai
depois). Quando se entra na cozinha, a conversa fica mais descontraída, com mais risadas e
menos silêncios. As vozes são mais altas e firmes, e se conversa ao mesmo tempo em que se
faz café ou lavam-se os copos que serão usados. Os assuntos agora são mais variados, mas
sempre se fala sobre quem é parente de quem, resgatando vínculos de parentesco e afirmando
o reconhecimento de novos parentes. Surgem também as fofocas, como as últimas brigas,
casamentos, separações e festas, críticas à pessoas conhecidas ou comentários sobre a beleza
de alguém – e se comentam as atividades coletivas, relembrando quem tem participado ou
faltado.

As plantas e os remédios não são mencionados nesse momento. Não se fala muito
sobre plantas. À elas se destina aquele minuto final da visita, enquanto os homens tomam o
último gole de café ou viram o barco no rio. Aí, sim, as mulheres falam baixo ou sussurram,
mesmo afastadas dos homens e das outras visitas, fora da casa, atrás da cozinha. Discutem os
nomes das plantas e para que usam cada uma e fazem observações sobre o plantio (“a terra tá
muito ruim, muito encharcada”), mas com frases cortadas que eu pouco compreendo e que me
são explicadas depois. Isso porque se referem a um conhecimento prévio que elas
compartilham, relacionado aos nomes das plantas, aos tipos de doenças, maldades e feitiços
possíveis, mas também a mulheres que conhecem suas próprias preocupações e necessidades
na relação com os não-humanos. São frases curtas, rápidas e reticentes, que somem na
passarela, enquanto entram no barco para voltar para casa, com um saquinho de planta na
mão.

Em Caviana, nas conversas padronizadas entre mulheres, contam-se os últimos casos


de encantamento, quem está com “panemeira”, fala-se da feitiçaria e de tudo o que se refere

194
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

ao mundo dos não-humanos. Discute-se como cada doença, feitiço ou “maldade”88 foi tratado
e o que cada uma faria em face do problema. A conversa é parte do compartilhamento
explicitado no ato de dar a planta.

Pergunto como funciona isso de pedir plantas, e Dica me responde: “quando enxergo,
eu peço para dar. Quando vem uma amiga, já leva ou, quando tem algum doente, eu arrumo
pra dar” (Figura 3.10). Perguntada sobre a origem das plantas de seu canteiro, Janaína da
Prainha conta que “essas plantas me deram. Eu peço das pessoas.” Tereza reforça o caráter
feminino dessa prática e acrescenta aos laços de parentesco a questão da proximidade como
item importante: “só mulher que dá. Família que gosta de plantinha, parente próximo. Na
cidade, compra, dá. Contanto que se dê bem um com o outro, porque tem parente que não”.
Pedir e dar plantas é uma forma de troca baseada nas relações de parentesco e na proximidade
das casas (fatores que normalmente estão associados) e de amizade. Após um momento inicial
de transmissão entre mães-filhas, já com seu canteiro formado e tendo experiência no
processo de transformação vegetal-planta, é que as mulheres ingressam em um sistema de
trocas. Estas são quase que exclusivamente femininas e ocorrem preferencialmente entre
mães-filhas, cunhadas, noras-sogras, comadres, vizinhas e amigas e há uma predominância de
plantas de remédios, apesar de haver também temperos e enfeites. O caráter de reciprocidade
dessa prática é reforçado na fala de Geralda para Tereza: “leva a planta, que, quando eu não
tiver, você tem”.

Em seu artigo sobre a economia doméstica em Mamirauá, um contexto também


ribeirinho na Amazônia, Lima (2006:148) trata das trocas entre os grupos domésticos,
enfatizando sua natureza não-monetária. Segundo a autora, “as doações de peixes e caças, as
ajudas no trabalho ou trocas de dias, o trabalho das parteiras e as curas de rezadores são trocas
orientadas pelo princípio da reciprocidade e expressam o modelo ideal de relações
horizontais” (Lima 2006:148) e completa afirmando que as trocas “fazem parte do código de
conduta do que seja uma ‘boa vizinhança’”. Já no que se refere aos itens alimentares, Lima
indica que “são normalmente doados e constituem o principal objeto do verbo ‘vizinhar’, que
possui o sentido de trocar alimentos regularmente” (Lima 2006:149). A troca de favores e
88
“Maldade” é um termo local para indicar feitiçarias humanas e não-humanas feitas em alguém. Para uma
definição mais detalhada de seu contexto de aplicação ver Capítulo 5.

195
Figura 3.10: Exemplos de troca de plantas de remédio entre mulheres ribeirinhas de Caviana. Fotos:
Juliana Salles Machado.

196
Juliana Salles Machado

trabalho, assim como a idéia de “vizinhar” exposta pela autora está presente também em
Caviana e se estrutura de forma distinta da troca de plantas aqui enfatizada. Enquanto a
partilha alimentar praticada pelos ribeirinhos tende a se aproximar do que Sahlins (1972)
chamou de “reciprocidade generalizada”, a troca de plantas de remédio entre mulheres da ilha
estaria entre esta e a “reciprocidade equilibrada”. A reciprocidade generalizada refere-se a
ações de compartilhamento, hospitalidade, ajuda, generosidade e doação e segundo seu
propositor, trata-se de uma assistência dada que, se possível e necessária, será retornada. Está
ligada às obrigações de parentesco. No entanto, é importante ressaltar, como nos lembra o
autor, que isso não implica na ausência de contrapartidas, a diferença é que essas não são
estipuladas por tempo, quantidade e qualidade, isto é “a expectativa de reciprocidade é
indefinida” (Sahlins 1972:194). Em Caviana, a partilha de alimento é uma forma de
generosidade e uma obrigação familiar. Nestes casos, o retorno pode demorar muito tempo e
vir em diversas formas, como a ajuda em um trabalho manual, carona em alguma viagem de
barco ou apoio à algum membro doente da família. No entanto, com a troca de remédios, se
dá de maneira distinta. Apesar de não se tratar de uma troca direta, isto é, uma troca de coisas
equivalentes com um retorno imediato, essa forma de reciprocidade é distinta da partilha
alimentar tratada acima. Isto se deve, pois, a qualidade da coisa trocada deve ser mantida, isto
é, ao se dar uma planta de remédio, espera-se que, quando necessário, se receba uma planta de
remédio, que pode ou não ser da mesma espécie, mas tem genericamente a mesma função
como remédio. Essa forma é apontada por Sahlins (1972) como menos pessoal do que a
reciprocidade generalizada, contudo, em Caviana essa forma de troca é extremamente pessoal
e está relacionada com os laços de parentesco, amizade e proximidade, em termos
semelhantes ao mencionado por Sahlins (1972:197): “[...] um termo espacial, co-residencial
afeta a medida da distância do parentesco e, portanto, o tipo da troca”89.

Em outro episódio, Dica me mostra um galho, sua muda, e diz “os velhos passados
[seu pai e sua mãe] já ensinaram, e depois a gente faz e dá certo”. O ato de plantar está
sempre associado aos velhos, aos antigos e, às vezes, aos índios. Geralda me conta também
que: “tem umas velhas que gostavam de plantar muito”. A antiguidade do hábito de plantar é
valorizada, e suas formas de continuidade são lembradas na transmissão do conhecimento
pelas redes femininas de ensino-aprendizagem, normalmente provindas das mães e avós,

89
“[...] a spatial, coresidential term affects the measure of kinship distance and thus the mode of exchange”
(Sahlins 1972:197).

197
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

como no caso de Geralda, que aprendeu a plantar com a mãe, como esta havia aprendido com
sua avó. Há uma preocupação constante com a manutenção dessa atividade, como expressa
sua frase de Tereza, “eu trabalho para não perder esse filho”, termo que reforça a associação
entre plantas e parentesco. Plantar é uma forma de continuar perto dos parentes, e trocar, uma
forma de perpetuar o plantio e assim o parentesco, assim como expandir sua interação social.
Esse aspecto de continuidade das plantas e pessoas é enfatizado por Rival, sobre a vida social
das árvores:

[…] a contribuição simbólica de outras formas de vida,


particularmente as plantas, cuja significação social e metafísica parece
não estar pautada na definição de uma distinção absoluta entre
natureza e cultura, mas ao contrário, em reafirmar a continuidade das
espécies biológicas no interior do mundo vivido […] árvores e plantas
são um modelo natural perfeito para as nossas conexões
genealógicas90 (Rival 1998:11).

No trecho citado, Rival apresenta as árvores como suportes visuais de um processo


temporal, devido sua longevidade, criando assim um paralelo com as genealogias humanas.
Gostaria de aproximar esta ideia com a noção de “sítio” dos ribeirinhos de Caviana
mencionado anteriormente. Com um terreno “limpo” como nos “sítios”, cada árvore passa a
ter um papel de destaque na paisagem, tornando-se uma referência no espaço e sendo alvo de
afeto e memória. À elas se associam histórias pessoais e familiares que tornam o lugar
significativo. O reconhecimento simbólico de cada lugar é passado por diversas gerações que
o mantêm e o ocupam de maneira intermitente. A metáfora das árvores como índices
genealógicos se coaduna com nossa noção de lugar de gente e deve ser entendida como
resultado de uma forma de ensino-aprendizagem passado através de gerações de “filhos de
Caviana”. Aprendizado este que passa também pelo compartilhamento do conhecimento
acerca das plantas pelas mulheres e culmina na percepção de estar em um lugar ancestral.

90
“[…] the symbolic contribution of other life forms, particularly plants, whose social and metaphysical
significance does not seem to lie in drawing an absolute distinction between nature and culture, but on the
contrary, in reaffirming continuity of biological species within the living world […] trees and plants make
perfect natural models for genealogical connections” (Rival 1998:11).

198
Juliana Salles Machado

Apesar de se trocarem também mudas de plantas alimentícias, estas não têm o mesmo
estatuto dos remédios, pois fazem parte de uma esfera compartilhada com os homens. Como
disse antes, as árvores frutíferas são consideradas herança de família – como parte da
concessão de uso da terra do pai do marido ou como continuidade das obrigações paternas e
maternas para com a subsistência dos filhos – e integram sua base econômica. Assim, sendo
antes um presente que objeto de troca, as frutas podem ser pedidas, dadas ou enviadas, mas,
em geral, para comer, e não para plantar. Entre as mais comuns, estão a laranja, a manga e o
açaí. Tereza levou manga para seu irmão Domingos, quando fomos visitá-lo; Adolfo levou
um saco de laranjas quando foi ao Taxipucu visitar o irmão. Esse ato de dar inclui homens e
mulheres e é aberto – isto é, sem conter, o aspecto de segredo. Ao contrário, é tido como um
gesto de generosidade despretensiosa e por isso é feito abertamente. A diferença entre os atos
de dar e receber plantas alimentícias e as de remédio é fundamental em Caviana. Trata-se de
discernir as plantas para humanos daquelas relacionadas aos não-humanos. Os atos de
generosidade como parte das obrigações de parentesco estão relacionados exclusivamente aos
alimentos, aos frutos. Dá-se o produto final de um plantio, como o exemplo da laranja
mencionado acima, e não uma semente ou muda de uma planta alimentícia. Trata-se de um
registro sociológico, uma relação entre humanos, em geral engajados em uma relação de
obrigações relacionada ao parentesco e à proximidade espacial. Como mencionei, aqui não há
uma expectativa de retorno na mesma espécie e nem em um tempo definido, há sim a
expectativa de manutenção de um sistema de relações previamente estabelecido. Já quando as
mulheres trocam remédios – e quero enfatizar a nomenclatura troca nesse caso e partilha no
caso dos alimentos –, além de criar um compartilhamento do conhecimento entre as mulheres
envolvidas, está-se lidando com um registro cosmológico. Isto porque o conhecimento que é
compartilhado e a razão do plantio e da troca é a manutenção das relações entre humanos e
não-humanos. Discutiremos esse aspecto mais adiante.

A muda que Dica levou a Tereza, por exemplo, não é considerada como fruto de um
ato de generosidade e nem se espera um retorno imediato. O que se espera é que Tereza
mantenha seu canteiro vivo e possa também fornecer mudas para Dica e outras mulheres,
quando elas precisarem. A troca de plantas não cria uma obrigação apenas entre estas duas
mulheres, mas seu engajamento num coletivo que mantêm vivas as espécies importantes para
elas e, com isso, preserva o conhecimento dos antepassados e garante sua permanência na
ilha. Trata-se de uma cadeia do cuidar, um elo entre mulheres na luta pela permanência de sua

199
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

família, de seus parentes e amigos na terra e, como veremos no Capítulo 5, para seguir sendo
gente, para continuar pertencendo a esse lugar. Trata-se, portanto, de uma relação de
interdependência: “as pessoas, em outras palavras, estão tão entrelaçadas com a vida das
plantas quanto as plantas na vida das pessoas” 91 (Ingold 1993:167-168).

Certa vez, fui com Tereza visitar Veríssima Valadares, de 67 anos, na Prainha. Antes
de chegarmos lá, porém paramos na casa de Alcinéia, de onde Tereza levou cebolinha e uma
folha de pariri. De lá chegamos à Prainha, onde conversamos e tomamos café na entrada da
casa. Nessa ocasião, não fui convidada a entrar na cozinha.

A casa de Alcinéia, onde paramos inicialmente, fora recentemente construída, tendo


sido erguida em uma área considerada “nova”. Sua família morava em outra área no mesmo
terreno, e quando se mudaram para lá pela primeira vez já havia árvores frutíferas como
mangueira, soveira, jambeiro, coqueiro, limoeiro, açaizeiro, jambuzeiro e goiabeira. Apesar
disso se mudaram para o local atual, pois o primeiro “dava muito atoleiro”, mas continuam
mantendo e colhendo seus frutos. O quintal (ou terreiro) estava sendo preparado, com
algumas árvores cortadas e queimadas através da técnica da coivara e os caminhos de acesso a
outras casas e lugares sendo marcados através do manejo e limpeza de seu entorno. Mudas de
árvores eram trazidas de sua casa anterior, assim como da Prainha, casa de sua mãe. O local
fora escolhido por estar à beira-mar e próximo do terreno do pai de Alcinéia, já que seu
marido não possui família na ilha e vive embarcado. Alcinéia estava em um momento
importante de formação do lugar da casa, escolhendo quais plantas iriam conformar seu
quintal e seu canteiro. Assim recebeu plantas de sua mãe e tias. Tereza apreciou o plantio da
filha de sua comadre e pediu dois exemplares de planta, reforçando assim o ingresso de
Alcinéia na rede de trocas e tornando explícita sua satisfação com o plantio da mesma.

Já a casa da filha do irmão de seu marido, Janaína, fica no grupo doméstico de seu
sogro. Seu canteiro é pequeno e suas mudas foram quase todas dadas por sua mãe, moradora
do igarapé Ubuçutuba, sendo apenas duas as plantas dadas por sua cunhada. Ao chegarmos
em sua casa, Tereza foi solicitada a benzer seu filho que estava doente. Tereza não levou

91
“[…] the people in other words are as much bound up in the life of the tree as is the tree on the life of people”
(Ingold 1993:167-168).

200
Juliana Salles Machado

consigo nenhuma planta para isso, e solicitou uma folha de cipó-d´alho que Janaína possuia
em seu canteiro. A benção foi inteiramente realizada com a folha em sua mão. A continuidade
da cura é dada pelo uso de plantas de remédio diretamente sobre o corpo doente, através dos
chamados “banhos”, como veremos no Capítulo 5. A planta utilizada para benzer, nesse caso,
serve como instrumento de cura relacionado à sua origem não-humana, mesma origem
atribuída à doença da criança. Enquanto a benzedeira pode estabelecer um diálogo com os
não-humanos diretamente através de seu “dom”, a planta se torna o instrumento dessa
intermediação e da cura de um terceiro. Assim o poder da planta, advindo de sua origem e
relação com as mães da natureza, até então inerte e inofensiva é ativado pela figura da
benzedeira, que a usa para afastar “aquilo” do corpo da pessoa. O mesmo efeito é esperado
dos remédios de planta usados nos banhos. No exemplo de Janaína temos, assim a conjunção
de diversos fatores relevantes para compreendermos a troca e o uso das plantas tanto como
registro sociológico, como cosmológico; ao mesmo tempo como meio de manutenção de
relações de pertencimento social e de diálogo com o mundo não-humano.

Outro exemplo etnográfico da troca de plantas vem de Augusta do Taxipucu. O dia


amanhecera com “terral”92 e ninguém da comunidade veio para rezar, tendo a missa sido
realizada apenas entre os membros da casa do João Brás. Depois do almoço, no entanto,
chegaram Roberto e Augusta e saímos para o Socó. Encontramos Marli na cozinha,
preparando mingau para a filha mais nova. Depois de conversarmos um pouco, Augusta
perguntou à filha se ela tinha manjerona d’angola, que é remédio para mau-olhado e “essas
coisas”, e também pediu pimenta malagueta, para o mesmo fim. Pegou as plantas e pôs em
um saco plástico. Tomamos um café e fomos embora antes de a maré baixar. Quando
voltamos para o João Brás, Augusta pediu a Tereza pucá (cipó-pucá), que é bom para
derrame, e jucá, que é bom para o rim e para o intestino. Pegou suas plantas, tomou um café, e
voltou com o marido e neto para o Taxipucu.

Neste exemplo, vemos que o padrão da visita é mantido entre Augusta e a cunhada. Já
o mesmo não aconteceu com Marli, sua filha, que não fez uma recepção formal, e fomos
direto à cozinha. Também na casa de Marli, a formalidade comum à troca de mudas (quando
as mulheres se retiram da vista dos demais para conversarem e trocarem as plantas) foi
dispensada. Nessa ocasião, a retirada da muda ocorreu no meio da visita, diante do pai e das

92
O termo é usado para se referir a grande intensidade de chuva.

201
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

netas, quando mãe e filha saíram para o canteiro. Mas mesmo sem o elemento do segredo, o
motivo do pedido não foi mencionado na cozinha.

Vi apenas dois casos de plantas serem dadas sem terem sido pedidas. No primeiro,
perguntei à Tereza por uma planta que vi num pote de água perto do lugar onde se lavam
roupas, no fundo da casa, e ela me contou que tinha ganhado, sem pedir, da comadre Maria
Luz, do Pocotó – e era a mesma manjerona d’angola que Augusta procurava dias antes, na
casa de Marli. Embora eu não tenha visto a planta ser entregue à Tereza um dia antes, um
casal viera do Pocotó para que ela benzesse seu bebê, que estava doente, e isso me lembrou a
fala de Dica – quando ficava sabendo que alguém estava doente, dava um jeito de mandar a
planta. Assim, apesar de a troca ser feita usualmente nas visitas, o ato de cuidar prevalece
mesmo na impossibilidade de um encontro entre as mulheres, pela intermediação de outros
parentes e amigos.

A outra planta que Tereza ganhou sem pedir foi num domingo de reza no João Brás.
Depois da reza e do bingo, quando todos estavam tomando café na cozinha e comprando
biscoites recheados que Tereza trazia da cidade para vender, sua cunhada Geralda lhe levou
uma muda de buchinho para ela dar a Adolfo, dizendo que era boa para “baque”93, e o chá
também era bom para sinusite, para fazer inalação e pingar no nariz. Geralda mantinha essa
planta nas Piranhas, campo afastado onde ainda tem uma casa abandonada a que vai de vez
em quando. Nessa mesma ocasião, mas em outro momento, Augusta pediu à Tereza um
quebra-pedra para o filho solteiro, que estava com gastrite. Ela queria os ingredientes para
fazer o remédio, mas ainda lhe faltava essa planta.

Não se pedem plantas a qualquer pessoa, mas a uma rede de amigas e parentes que
compartilham seu conhecimento sobre a utilidade da planta. O ato de plantar está associado ao
ato de cuidar; ao trocar com alguém, essas mulheres estão também cuidando dessa pessoa,
fazendo parte de um esforço coletivo de proteção e apoio, reforçando as obrigações de
parentesco, criando novos vínculos e expandindo o ato doméstico do cuidado para o âmbito
coletivo.

93
Expressão local para se referir a uma lesão no corpo.

202
Juliana Salles Machado

O que estou chamando de troca é o contínuo ato de pedir e dar plantas entre as
mulheres em Caviana; o termo é assim usado no seu sentido extenso para enfatizar o aspecto
de reciprocidade dessa relação. As mulheres da ilha não chamam sua prática de troca e nem a
reconhecem como um sistema organizado; no entanto, do ponto de vista do analista, essa
prática une as mulheres em uma expectativa de reciprocidade. Há dois momentos distintos na
relação da mulher com as plantas. Em um primeiro momento, a mulher aprende o plantar e
seu potencial transformativo através da rede doméstica de ensino-aprendizagem, que é, em
grande parte, realizada através da mãe e das irmãs, mas pode, em alguns casos, vir também da
sogra. Essa aprendizagem do plantar é internalizada e exercida apenas ao ajudar a sua mãe.
Assim que se casa, a mulher sai de seu ambiente doméstico para morar com sua sogra. Neste
momento ela passa por um período de formação do seu próprio canteiro, já que até então
apenas ajudava sua mãe a manter o dela. Nesse momento, há a trasmissão de mudas de sua
mãe ou irmãs para ela, que as leva consigo em seu novo lar. Nesse momento inicial a mãe (e
por vezes a sogra) continua exercendo um papel importante, pois reforça os ensinamentos
acerca das formas de plantio e contribui com as primeiras mudas de plantas para esse canteiro
em formação. Apesar da grande quantidade de plantas originadas por essa forma de
transmissão, ela é temporalmente curta. Uma vez tendo o canteiro formado e já tendo feito,
portanto, sua coleção de plantas familiares, a mulher passa a trocar efetivamente as suas
plantas com outras mulheres, como suas cunhadas, primas, amigas, vizinhas, mas também
mantêm a relação com sua mãe e sogra – agora já na forma de troca e não mais transmissão
como no momento anterior. A importância da família nas trocas é evidenciada nas análises
descritivas que apresento no Capítulo 4, já que numericamente as plantas oriundas do
processo de formação do canteiro se sobressaem. No entanto, gostaria de ressaltar o papel das
vizinhas e amigas nessa rede de trocas que, se não é quantitativamente representativo (ver
Capítulo 4) devido principalmente a grande escala temporal em que ele se encontra em
contraposição ao processo inicial de formação do canteiro, ele assume importância como
forma de criação de laços de afinidade entre as mulheres. Com o processo de circulação das
plantas, não há uma busca explícita por um nivelamento entre os canteiros, isto é, nem todas
as mulheres possuem as mesmas plantas em seus canteiros. No entanto, há uma tendência à
repetição das mesmas plantas entre as mulheres da mesma rede de trocas. No entanto, a
introdução constante de coisas novas cria um traço muito particular à cada um dos canteiros.
Busca-se sempre um novo plantar, que pode ser decorrente da morte de plantas de seu

203
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

canteiro devido ao sol excessivo ou às chuvas e alagamento, ou por uma vontade própria de
sua dona em experimentar coisas novas. Com a idade as mulheres tendem a aumentar este
patrimônio, isto é sua coleção de plantas tende a aumentar devido ao tempo de participação
nas redes de troca e experiência no cultivo. Mas esta tendência depende muito do grau de
mobilidade da família (quantas casas a família se mudou), empenho e vontade de plantar da
dona e capacidade de troca com outras mulheres.

3.3 As plantas: familiarizar para cuidar

Ao longo deste capítulo, procurei mostrar a relação que se estabelece entre as


mulheres por meio das plantas. É chegada a hora de me perguntar por que as plantas, já que,
como nos lembra Rival, “árvores e florestas não são categorias dadas naturalmente, mas
resultam de um desdobramento dialético de processos históricos e ecológicos” 94 (Rival
1998:24). Então, o que são plantas para as mulheres de Caviana? Não foi preciso perguntar
nas entrevistas, pois a resposta foi se delineando ao longo da pesquisa. O termo era usado
indiscriminadamente nos terreiros, nos sítios e nas casas, mas, fora dali, na mata, pouco se
ouvia. Ouvia-se mato, cerrado e capoeira, mas só esporadicamente alguma referência a
planta. Essa distinção me fez questionar o que, então, era uma planta. Minha primeira
hipótese associou as plantas à utilidade, por causa das chamadas ‘plantas úteis’. Mas muitas
espécies frutíferas utilizadas pelos ribeirinhos não são denominadas plantas, assim como
exemplares que nasciam nos terreiros são ditos “do mato” ou “grelo da natureza”. O termo
planta se aplica apenas àquelas espécies vegetais que tinham sido ou eram alvo de alguma
forma de relação com as pessoas, pelo cultivo, pela podas, pela limpeza ou pelo plantio.
Assim, quase todas as árvores dos terreiros são plantas, assim como aquelas encontradas nos
canteiros e nas roças. Planta é, portanto, a que foi exposta a uma relação com uma pessoa
humana. As plantas são o resultado dessa relação. As outras são “mato”, que não é

94
“[...] trees and forests are not naturally given categories, they result from the dialectical unfolding of historical
and ecological processes” (Rival 1998:24).

204
Juliana Salles Machado

indiferenciado, pois se distingue pelo lugar onde está, pelo grau de “madureza” 95 e por sua
utilidade particular. Mas, ainda assim, mato.

Em seu trabalho sobre os Tukano, Reichel-Dolmatoff menciona o ato de as mulheres


colherem sementes na floresta, chamando atenção para o dualismo entre o interno e o externo:
“coletar sementes para plantar é chamado de ‘sementes-isoladas-para-levar’ [...] a expressão
se aplica à plantas e à mulheres [...] no caso das plantas, refere-se ao fato das sementes que
alguém pode coletar agora, não estarem contaminadas pelo exterior”96 (Reichel-Dolmatoff
1996:80, grifos nossos). Há, portanto, um fator negativo e perigoso na floresta, em oposição à
casa e à esfera doméstica das pessoas. Mas há também algo positivo e potencial (por isso é
colhido), que pode ser isolado e levado para o mundo doméstico. Mas a palavra
“contaminadas” dá a entender que há um risco nessa ação. Vejamos um exemplo de Caviana.

As plantas encontradas no meio da mata são sempre atribuídas a alguém – índios,


bichos ou caçadores que passaram. Como no exemplo de Tereza sobre o Marizeiro, “nós
comemos a fruta, que é gorda e muito agradável. Os bichos comem todo, a cotia, a paca, o
guariba. Tem branco e vermelho. É uma árvore rara, foi plantada pelos índios”. Sobre o
“urucuzeiro”, Tereza me diz “ele é usado para decorar a comida. Os índios usam para fazer as
pinturas deles, deve ser coisa dos índios”. Já em seu sítio em meio à mata, Dica tem uma
mangueira à quem apelidou de Pombinha, “porque a fruta é pequena”. Lembra que “foi o
finado Borges que me deu, mas já tem semente espalhada por aí”. Na mesma visita a seu sítio,
estive acompanhada por Tereza que pegou uma semente de cedro e pediu a Dica para levá-la,
dizendo “quero ver se isto grela. Isso é perigoso para grelar”.

Já dentre o terreiro, ouvimos a cada planta uma explicação, como por exemplo,
quando estava andando no terreiro com Tereza. Avistando o abacaxi ela falou “esse o Gito
[seu filho] trouxe de um igarapé longe daqui”; para o eucalipto, “eu plantei com a muda que a
minha filha deu lá de Macapá”; “o café Adolfo trouxe a semente de presente”, e o coqueiro,
ela mesmo trouxe a muda de um terreno onde eles têm casa em Chaves. Ao andar pelos
terreiros e ao lado dos canteiros das casas riberinhas, o que mais ouço são nomes de pessoas e
lugares de onde as mudas e sementes vieram. Dica atualmente tem 20 pés de laranja em seu

95
“Madureza” foi o termo usado por Roberto para indicar o estágio de amadurecimento das plantas; distinguindo
especialmente aquelas que surgem logo após o desmate, seguida das capoeiras, já quando a vegetação se
adensava, e a formação de matas secundárias.
96
“To collect seeds for planting is called 'seeds-isolate-to take' [...] the term can be applied to plants or to women
[...] In the case of plants, what is referred to is the seeds one can collect now, are not contaminated from the
outside” (Reichel-Dolmatoff 1996:80).

205
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

sítio e ela lembra que a primeira muda veio de “uma laranja da beira, veio do tio Pedro de
Oliveira, que ganhou dos parentes dele 12 árvores”. Dica, diferente da maior parte das
mulheres desta parte da ilha, tem um passado de viagens, quando morou em Marajó e outros
lugares devido à morte de seus pais. Ela lembra sua história através de uma árvore de castanha
do Pará. Atualmente possui 14 árvores desta espécie no seu sítio e as mudas foram trazidas do
Jarí, onde fez “a muda da natureza”.

O estranhamento de Tereza e Cristiane ao ver determinadas plantas no interior da


floresta quando fomos fazer uma caminhada para procurar um sítio antigo revelava quais
plantas elas associavam sempre a um plantio humano, buscando o seu dono. “No meio do
mato, de vez em quando, tem cupuzeiro, tem cutitiribá. Não sei como foi parar lá, porque é lá
dentro”, disse Cristiane, quando visitávamos o sítio abandonado do Turezinho. Estas plantas
estão sempre associadas a alguma forma de manejo, como vemos na fala de Cristiane:
“cacaueiro e cupuzeiro tem muito lá pelas beiras daquele igarapé, ali era muito limpo”.
Também Tereza expressa essa surpresa ao encontrar determinadas árvores muito valorizadas
por eles soltas no meio da floresta: “tem certas árvores que são muito raras, não sei como
vieram”. Essas plantas fariam oposição àquelas chamadas de “natural da terra” ou “nativa da
terra”. O açaí é um caso dúbio, pois não é chamado de planta, em geral é tido como “grelo da
natureza”, mas sua proliferação está associada sempre ao manejo humano – pequenos
adensamentos são índices evidentes de ocupação humana prévia. Já, ao caminhar na floresta
encontramos poucas palmeiras de açaí espalhadas. Esta associação de interdependência entre
o açaí e os ribeirinhos (já que é a principal fonte de alimentação dos ribeirinhos junto com o
camarão e o peixe) é retratada por Cristiane quando avistamos uma palmeira de açaí isolada
no interior da floresta, “tenho pena da açaizera, ela ta lá no meio do mato”.

O processo de tornar-se planta passa pelo cuidado, esfera associada às mulheres por
meio dos atos de plantar, adubar, regar, tratar, limpar, podar e colher, e se materializa nos
canteiros, sítios e terreiros. Nesse processo, não se tornam apenas plantas, mas plantas de
alguém, mesmo que esse alguém seja indeterminado. Assim, cuidar, tratar, limpar e colher são
também atos de transformação – de mato para planta. Há um sentido de individuação no ato
da transformação; de mato genérico, entra-se numa relação com um indivíduo específico
(“minha planta”), criando uma relação “pessoal” entre uma planta e uma pessoa. O uso do

206
Juliana Salles Machado

possessivo indica também uma relação de familiaridade, que é mais clara na designação
“filhos” com que as mulheres se referem às suas mudas.

Poderíamos fazer aqui um paralelo com o que Fausto (2008) chamou de “relação de
maestria”, e com sua noção de “predação familiarizante” (Fausto 2008:333), na qual “relações
predatórias convertem-se em relações assimétricas de controle e proteção”. No universo
indígena da Amazônia é comum encontrarmos termos para identificar relações de “controle
e/ou proteção” e de “engendramento e/ou posse” entre humanos e não-humanos e entre
pessoas e coisas. O autor descreve esse universo ameríndio como um “mundo de donos e o
dono como modelo da pessoa magnificada capaz de ação eficaz sobre esse mundo” (Fausto
2008:330). No entanto, observa que o traço importante dessa relação é a assimetria, sendo os
donos os controladores e protetores de suas criaturas e assim responsáveis pela sua
reprodução e mobilidade. A assimetria implica não só controle, mas cuidado. Na relação
observada entre as mulheres e suas plantas em Caviana, a relação de maestria se dá ao mesmo
tempo pela individuação e pela socialização, resultando na transformação do mato em planta,
i.e. em “filhos” de alguém. Quando tomamos a relação plantas-mulheres como uma de donos,
envolvemos as plantas na categoria das relações sociais entre pessoas (humanas) e assim
também em suas relações de parentesco.

Nas noções indígenas de dono-mestre na Amazônia, a “assimetria da relação de


maestria é muitas vezes concebida como uma forma de englobamento e pode-se expressar
como uma relação conteúdo-continente” (Fausto 2008:334). Uma das imagens mais
recorrentes dessa relação conteúdo-continente é fornecida pelo ato de manter animais
cercados ou em caixas, prática que, como vimos, também ocorre em Caviana. Mas o que são
os canteiros, ou os cercados nos terreiros, se não caixas que delimitam e diferenciam seu
conteúdo do universo que o cerca? Com os canteiros e cercados, as mulheres em Caviana
distinguem espaços de domínio entre pessoas-parentes e o mato. Temos, então, uma oposição
entre as pessoas e o mato, e a necessidade de uma relação assimétrica entre suas partes. Por
que há tal necessidade? Como veremos melhor no Capítulo 5, para os ribeirinhos, a natureza é
um domínio não-humano, e suas esferas animais, vegetais e topográficas são protegidas e
cuidados por donos ou “mães”. De modo similar ao que Reichel-Dolmatoff (1996) mostrou
para os Tukano sobre o local de coleta de sementes pelas mulheres, em Caviana o exterior é o
domínio dos donos não-humanos, e ele tem o poder de contaminar, por isso deve ser domado
e mantido sob a influência de sua nova dona ou ‘mãe’.

207
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

A ideia de mãe com que os ribeirinhos se referem à figura não-humana protetora do


mato não é incomum na amazônia e foi tratada por Descola (2004) quando pesquisando entre
os Achuar:
No espírito dos Achuar, habilidade técnica não pode ser dissociada da
capacidade de criar um ambiente intersubjetivo, no qual relações
reguladas se desenvolvem de pessoa a pessoa; entre o caçador, os
animais e os espíritos que regulam a caça, e entre as mulheres, as plantas
e as roças (gardens) e o personagem mítico que gerou as espécies
cultivadas e quem, hoje em dia, garante sua vitalidade. Longe de se
reduzirem à prosaicos fornecedores de lugares-de-comida, a floresta e as
áreas destinadas à cultura constituem um estágio de sutil socialidade na
qual, dia após dia, os seres, nos quais apenas a diversidade da aparência e
a falta de linguagem realmente os separa dos humanos, são seduzidos. No
entanto, as formas dessa socialidade diferem quando se tratando de
plantas e animais. Maestrinas das roças (gardens), para a qual dedicam a
maior parte do seu tempo, as mulheres se voltam às plantas como às
crianças as quais devem ser conduzidas para a maturidade com mãos
firmes. Essa relação maternal é inspirada explicitamente na proteção
(guardianship) exercida por Nunkui – o espírito das roças (gardens) –
nas plantas que uma vez ela criou”97 (Descola 2004:69).

Tal visão da criação das plantas por uma figura maternal e a sua manutenção pela ação
direta de cultivo das mulheres é muito importante em Caviana. Nesse contexto, no entanto,
podemos expandir a ideia de uma figura protetora não apenas às roças, mas também às casas

97
“In the spirit of the Achuar, technical ability cannot be dissociated from the capacity of creating an inter-
subjective environment, in which regulated relationships develop from person to person; between the hunter, the
animals and the spirits ruling the hunt, and between the hunter, the animals and the spirits ruling the hunt, and
between women, the plants of the garden and the mythical character who engendered the cultivated species and
who, even today, ensures their vitality. Far from reducing themselves to prosaic food suppliers of food-places,
the forest and the areas destined for culture constitute the stage of a subtle sociality on which, day by day,
beings, which only the diversity of appearance and lack of language really separate from humans, are seduced.
However, the forms of this sociality differ when dealing with plants and animals. Mistresses of the gardens, to
which they dedicate most of their time, women turn to the cultivated plants as to the children who have to be led
to maturity with a firm hand. This maternal relationship is inspired explicitly from the guardianship exercised by
Nunkui – the spirit of gardens – on the plants she once created” (Descola 2004:69)

208
Juliana Salles Machado

(aqui incluindo não apenas a edificação, mas todo o seu entorno com seus quintais plantados e
canteiros), sítios, caminhos e lugares significativos em geral. A idéia por trás disso é que não
há uma natureza por si, mas sim em uma relação de domesticidade. A natureza seria assim,
“sempre o domus de alguém” (Fausto 2008:339). Entre os grupos indígenas a figura materna é
raramente encontrada na figura de “donos” na acepção de Fausto e parece também não ser
comum nas relações de domínio existentes na noção de dono-mestre. Não obstante, um dos
exemplos em que grupos indígenas utilizam a figura materna, associada ao sentido de dono
proposto por Fausto, é entre os povos do norte do Amapá, como mencionamos anteriormente,
os Palikur, Galibi-Marworno, Galibi do Oiapoque e Karipuna. O termo é usado para se referir
à cobra grande, importante figura mítica da cosmologia indígena. Segundo a descrição da
autora (Vidal 2007:15) no mito palikur da cobra grande os índios se referem ao casal de
cobras como mãe e pai. Tal referência assume uma importância ainda maior para nossa
discussão pelo estatuto da cobra grande na cosmologia palikur, conforme explicitada no
trecho abaixo:

No Amapá, entre os grupos do Uaçá, existem vários tipos de cobra, sendo


a cobra grande o paradigma de todas elas. A cobra mitológica aramari é
a mais perigosa, um monstro canibal eliminado graças às estratégias de
um índio herói. Às vezes os índios dizem que a cobra é o dono de todas
as outras espécies animais ou mesmo vegetais (Vidal 2007:31).

A relação de dono da cobra grande com relação aos outros seres é exemplar dessa
relação assimétrica, em que o jogo de poderes entre os domínios humanos e não-humanos é
exercido. Segundo Vidal (2007:33) há um tipo de cobra grande chamada pelos índios em
português de “mãe-d´água”; mesmo nome usado pelos ribeirinhos em Caviana para designar a
mãe protetora dos rios, águas e animais aquáticos em geral. Entre os Galibi-Marworno, há
ainda o uso de termos como “mãe-das-piranhas” e “mãe-dos-jacarés” para se referir a estes
entes protetores. Vidal indica que se os índios do Uaçá usam o termo “rei” ou “dono” em
português, em patoá (língua geral da região) eles usam o termo do parentesco “pai”. O uso
dos termos do parentesco (mãe/pai) neste contexto indígena, diferente dos demais contextos
mencionados para o Xingu, por exemplo, aparece de forma semelhante aquela utilizada pelos
ribeirinhos de Caviana, especialmente na relação de atribuição de maternidade/paternidade
entre seres não-humanos e humanos (ou metafiliação, para usar o termo de Fausto). Em

209
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Caviana também encontramos a figura das mães não-humanas, donas de bichos, lugares e
plantas, mas, como vimos, há também a (meta-)adoção destes filhos por uma (meta-)mãe
humana. Há aqui uma inversão dos papéis do mito Palikur, enquanto a cobra adota um
humano como seu filho e o usa na busca de alimentos, em Caviana as mulheres humanas
exercem o papel de mãe para os filhos destes entes poderosos.

Segundo Fausto (2008:351), a noção de dono-mestre pode ser entendida como a de


uma adoção, uma “metafiliação” ou uma “filiação incompleta”. Nessa relação, o “substrato da
inimizade é obviado, mas não inteiramente neutralizado” (Fausto 2008:352). Para entender
melhor essa relação no caso das plantas, podemos voltar ao exemplo do xerimbabo, espíritos
animais auxiliares que apesar da associação com seu mestre permanecem sempre um outro
(Fausto 2008:352). No contexto de Caviana, as plantas são artefatos fabricados cujo substrato
“mato” – sua potência bruta –, permanece não humano e “natural”. Sendo aqui a natureza o
domus de mestres (“mães”) não-humanos poderosos, o mundo vegetal lhes pertence e é
afetado por eles. A ideia de maestria associada às plantas não é exclusiva aos ribeirinhos de
Caviana. Embora seja pouco explorada, ela existe em quase todos os casos dessa relação nos
grupos indígenas, como vimos em Descola sobre os Achuar (Descola 2004). Novamente o
caso dos índios do Uaçá, especialmente os Palikur apresentam forte semelhança com o
contexto de Caviana. No mito da cobra grande, a cobra é responsável pelas curas, por fazer os
remédios, segundo Vidal (2007:43) ela é “responsável por uma função terapêutica”. A visão
da cobra benéfica, terapêutica, é associada à cobra-macho entre os Palikur e à cobra-fêmea
entre os Galibi – no entanto, o mito é atribuído aos Palikur, mesmo pelos Galibi. No mito, “a
cobra-fêmea dá banhos de ervas ao menino [humano], recém-chegado e limpa toda a casa
para afastar o cheiro ‘humano/macaco’ que poderia aguçar o apetite por carne da cobra-
macho” (Vidal 2007:56). Este poderoso ente, que entre muitos povos indígenas representa o
mito de origem, o mito de gênese indígena ou o mito das migrações (Vidal 2007:31), assume
a mesma noção de mãe, que encontramos entre as mulheres e as mães não-humanas em
Caviana. A importância de cura através das plantas e sua associação com a figura materna
encontra entre os grupos indígenas do norte do Amapá outra figura proeminente, a árvore-
xamã. Segundo Vidal (2007:42): “Há vários mestres invisíveis de um xamã, responsáveis por
sua iniciação no traquejo com os seres do outro mundo. Uma cobra muito venenosa e

210
Juliana Salles Machado

poderosa, a aramari, pode ser um desses mestres. Outros mestres são certas árvores-xamã,
muito potentes, entre elas o tawene”. Os usos de sua seiva ou leite são usados como remédios
e/ou venenos, dependendo da dosagem. As plantas aqui assumem uma agência própria,
através através de sua forma potencializada de árvore-xamã, que poderíamos aproximar com a
figura antropomorfa de Caviana através da “mãe-do-mato”. No entanto, esta aproximação
merece várias ressalvas, já que no contexto de Caviana apesar dessa figura ser usualmente
indicada como protetora do mundo vegetal, em alguns casos ela é apresentada como ente mais
genérico, que cuidaria também dos animais, incorporando todo o domínio da floresta. Além
disso, a figura de Caviana, como veremos no Capítulo 5, é antropomorfa, não possuindo
assim seiva em seu corpo – contudo, está associada à elas indiretamente pois estes são
encontrados em suas “filhas” árvores.

Em Caviana, a fabricação da planta através do controle de seu substrato mato se refere


a um plano cosmológico relativo à disputa entre humanos e não-humanos. Uma vez
transformada em planta pelas mulheres, através do processo já descrito, ela passa a poder ser
manipulada pelas pessoas. Sua forma de manipulação é sempre individual e acarreta uma
relação pessoal com uma planta, como revelam as expressões “minha planta”, “meu filho”.
Uma vez individualizada, a planta-pessoa passa a ser trocada com os parentes de seu dono,
que vão agregando e somando suas relações particulares de domínio e, assim, compondo um
agregado pessoa-planta-pessoa, em que a planta está imbuída da própria relação estabelecida
por sua dona (por exemplo, “quem me deu essa planta foi Cristiane, e era um filho de
Tereza”).

Essa sobreposição de relações e afetos agregada a uma planta engendra em torno de si


um compartilhamento de saberes de manejo e de uso. Como as trocas se fazem normalmente
entre parentes, mais de uma planta é passada entre as mesmas pessoas, compondo um
agregado de plantas, saberes e pessoas imbricadas em seu lugar de moradia e plantio.
Portanto, podemos dizer que se forma um coletivo planta-pessoa-saber-lugar, esferas
interligadas que compõem a sociabilidade feminina na ilha. Esses coletivos são
potencializados por sua relação com o domus não-humano do mato e poderiam ser entendidos
pela noção latouriana de híbridos, entre natureza e cultura, e usados como metáfora para as
chamadas geografias híbridas (Whatmore 2002)98. O coletivo formado pela associação de um

98
Whatmore (2002) trata no campo da geografia e das teorias sociais, das relações entre humanos e não-
humanos que permeiam o espaço e tecem a geografia. A partir do termo ”geografias híbridas” chama atenção aos

211
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

saber particular, uma planta, um lugar e pessoas, pode, como um híbrido, possuir agência.
Nesse sentido, sua agência representaria “a capacidade coletiva de ação por humanos e não
humanos”99 (Jones & Cloke 2008:85) na manutenção de pessoas e parentes e na formação de
lugares de gente.

fatores e matérias ecológicas que compõem a vida social, enfatizando como essas relações são constituídas e
contestadas.
99
“[agency represents] the collective capacity for action by humans and nonhumans” (Jones & Cloke 2008:85).

212
Capítulo 4:

Figura abertura capítulo 4: Final de tarde no grupo doméstico de Roberto no Taxipucu. Foto: Juliana
Salles Machado

213
Juliana Salles Machado

4
UM OLHAR SOBRE AS PLANTAS
E A TROCA

manutenção do terreiro e do canteiro no entorno das casas


ribeirinhas é, como vimos no Capítulo 3, fundamental no universo feminino. O plantio e o
manejo das espécies vegetais fazem parte de um esforço coletivo das mulheres para imprimir
certa permanência territorial à paisagem da ilha. Como permanência territorial me refiro a um
processo de longo prazo de transformação e domesticidade100 da paisagem, reconhecível
socialmente ao longo de diversas gerações. A importância das plantas no contexto ribeirinho
está intimamente ligada à temporalidade, ao pertencimento a um lugar já usufruído por
parentes há muito tempo. Grande parte das plantas dos terreiros já estavam no local quando as
famílias chegaram para construir sua casa. Mais do que isso, esse conjunto de espécies
concentradas foi um critério para a escolha do lugar de moradia. Um levantamento das plantas
no entorno das casas indicou um adensamento artificial de espécies consideradas úteis pelos
ribeirinhos – valorizadas por determinadas funções: alimentar, como as árvores frutíferas e as
que atraem caça; fornecer matéria-prima como palha e madeira; decorar a casa, como as
flores, ou pertencer ao mundo encantado, como as inúmeras ervas que lhes dão proteção e
lhes fornecem remédios.

100
Uso o termo domesticidade ao invés de domesticação para diferenciar este processo sociológico e
cosmológico do tornar doméstico do sentido estritamente botânico do termo, em que há um processo de
transformação genética da planta silvestre para a domesticada.

214
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

As atividades das mulheres no entorno da casa consistem principalmente em manter


essa diversidade, evitando a invasão de espécies não desejadas. Além das que encontram no
lugar, outras plantas são introduzidas, como café, laranja, flores e remédios, entre muitas
outras. Os canteiros suspensos já foram estudados por alguns autores (Murrieta &
WinklerPrins 2006, 2003), sobretudo como fonte de temperos e remédios, mas diferente
destes autores, nesta pesquisa enfoco as formas de circulação das plantas (alimentos e
remédios), sua relação com o parentesco e seu papel na formação de um sentido de
territorialidade. O resultado dessa abordagem levou a um aspecto pouco enfatizado na
literatura relacionado ao significado do cultivo das plantas. Caviana nos revelou que seus
canteiros são um importante mediador entre a floresta e a casa, entre homens, mulheres e
entre o domínio não-humano, concorrendo para criar e reforçar redes de reciprocidade.

Em Caviana, as mulheres se ocupam dos canteiros durante o ano todo e, como em


outros lugares da Amazônia, cultivam uma grande variedade de plantas. Mas essas pequenas
redomas têm espaço para novas plantas, colhidas na floresta ou recebidas de presente durante
as visitas. As plantas são alvo de cuidados especiais e suas novas donas, nos termos da ilha,
travam “batalhas” para que elas adaptem ao novo lar. Quando passam por essa etapa, podem
ficar no canteiro, com os temperos e remédios já conhecidos, ou ir para o chão, juntando-se às
antigas espécies do terreiro.

Enquanto nos Capítulos 2 e 3 enfatizei os aspectos sociológicos dos ribeirinhos de


Caviana, neste, apresento análises quantitativas do levantamento das plantas realizado nas
casas e seus entornos. Para compreender a doação e a recepção de plantas, bem como o
funcionamento dessa rede de trocas, entrevistei mulheres de todas as casas da área de
pesquisa, registrando o nome das plantas, o lugar de plantio e a origem de cada uma. Aqui,
faço uma análise estatística dos dados coletados, o que me permitiu perceber padrões de
distribuição e circulação das plantas, principalmente no que se refere a como se dá a
circulação das plantas, se há uma diferença entre alimentos e remédios e quem participa desta
rede (Figura 4.1).

A quantificação das plantas e o mapeamento das redes de troca foram feitos a partir da
identificação das casas. Cada casa está relacionada a mulheres que ativamente conhecem,

215
Figura 4.1: Exemplos de mulheres em entrevista sobre as plantas em seus terreiros e canteiros, Caviana.
Fotos: Juliana Salles Machado.

216
Juliana Salles Machado

plantam, cuidam e trocam essas plantas. Na grande maioria das casas analisadas, só uma
mulher tinha essa função, podendo ser ou não ajudada por uma filha ou nora.

Os resultados obtidos a partir da coleta de dados relativos às plantas foram sintetizados


na tabela encontrada no Anexo 4. Ainda em anexo, apresento uma listagem com todas as
plantas mencionadas nas tabelas anteriores e os seus códigos correspondentes, que serão
usados nas análises. Para identificar as casas foram usadas siglas alfa-numéricas, a descrição
de seus moradores e demais informações sobre localização e dados sócio-econômicos de cada
uma das 48 casas podem ser encontradas em anexo (Anexo 8).

Os locais de manejo das plantas variam, incluindo tanto áreas atualmente ocupadas
como outras já sem utilização contínua. Dentre as áreas ocupadas, temos o entorno das casas
(incluindo aqui o terreiro e o canteiro), as roças, os sítios e os caminhos. Já entre as
abandonadas, contam-se antigas habitações ou roças, que podem ser mais ou menos recentes.
Através de um levantamento arqueológico, constatei que os ribeirinhos usam muitos sítios
arqueológicos do período pré-colonial e colonial (Figura 4.2), seja reocupando efetivamente o
mesmo lugar, com os cemitérios e algumas habitações, seja como fonte de recursos – matéria-
prima como argila, palha e madeira, ou alimentos como castanha, açaí, pupunha etc. Os sítios
arqueológicos têm para as famílias ribeirinhas dois papeis principais: são espaços de moradia
e, ao mesmo tempo, ilhas de recursos101.

Os dados da pesquisa mostram um intenso manejo ambiental dos ribeirinhos, mas,


mais do que isso, revelam uma percepção e concepção muito particulares da paisagem. Como
vimos no Capítulo 3, a ocupação de lugares previamente antropizados 102 não é desprovida de
um novo processo de significação do local, que é novamente manejado em termos de seu
conteúdo ecológico, mas também de sua capacidade de gerar novos afetos e significados. A
forte ligação identitária que é estabelecida na relação entre o parentesco e a paisagem leva a
um constante processo de memorialização desses espaços, instituindo-se um diálogo entre o
presente e o passado. Pessoas e plantas estabelecem uma relação complexa de significação e
pertencimento que tece sua memória ao mesmo tempo em que marca a paisagem.

101
Para uma discussão sobre as “ilhas de recursos” ver Posey 2008, 1998.
102
Muitas áreas escolhidas pelos ribeirinhos para construir sua casa ou seu terreiro foram anteriormente
ocupadas por humanos. Essa ocupação é reconhecida pela presença e/ou densidade de plantas consideradas úteis,
atribuída à intervenção humana – foram lugar de alguém, sendo esse alguém reconhecido (como um parente) ou
tendo uma ancestralidade genérica, como a designação de uma origem “dos índios”.

217
Figura 4.2: Exemplos de reocupação de sítios arqueológicos por famílias ribeirinhas. Acima: cemitério
indígena (detalhe de fragmentos cerâmicos de urnas funerárias) sob cemitério histórico e atual; abaixo à
esquerda, urna funerária indígena ao lado de trilha usada pelos ribeirinhos; abaixo à direita, saque de
urnas funerárias arqueológicas por estrangeiros em área próxima ao terreiro de uma família ribeirinha.
Fotos: Juliana Salles Machado.

218
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

4.1 Análise dos dados coletados

O manejo das plantas pelas mulheres ribeirinhas se dá a partir de diferentes áreas de


plantio, direta ou indiretamente ligadas à unidade doméstica. Em cada casa apenas uma
mulher é responsável pelo plantio, sendo eventualmente ajudada por uma nora ou filha. Ela
possui um canteiro próximo a área edificada da casa e um terreiro, localizado em seu entorno.
Os canteiros, como vimos anteriormente, são pequenas plantações realizadas em canoas e
tábuas suspensas próximas à cozinha. Já os terreiros consistem em extensas áreas em volta das
casas, repleta de árvores frutíferas ou úteis como para o fornecimento de madeira para
construção, tintas, antiplásticos, resinas, e matérias-primas para o uso cotidiano em geral.
Além dessa esfera direta da casa, as mulheres possuem áreas para o plantio de espécies de
ciclo curto, como as roças, e, por vezes, de sítios florestais com uma grande variedade de
plantas perenes. As famílias utilizam ainda antigas zonas de plantio, aqui chamadas de ‘áreas
abandonadas’, para a coleta de frutos e matéria-prima, assim como mudas e sementes. Estas
são resultado de antigas moradias e roças ou sítios que deixaram de ser considerados como
parte da casa atual, mas continuam sendo uma importante fonte de recursos.

Para compreendermos os gráficos a seguir devemos ter em mente que todos os dados
foram coletados por casa (unidade agrupante). Isso se deve ao fato da casa ser a unidade
mínima de trabalho, onde reside a mulher geralmente responsável pelo plantio. Além disso,
como vimos anteriormente o termo “casa” é entendido não apenas como uma edificação, mas
inclui também o quintal (ou terreiro para usar o termo local) e o canteiro, assim como está
relacionado com outras áreas de plantio geralmente mais distantes desse núcleo, como as
roças e até alguns sítios. Cada casa usufrui e manipula todos esses espaços, além de outras
áreas abandonadas (em geral antigas residências da família) e caminhos (chamados
localmente de “estradas”). Os dados coletados indicam a presença de cada espécie por área de
plantio, e não o número absoluto de indivíduos de cada planta por área. Ou seja, cada espécie
é contabilizada apenas uma vez, independentemente da quantidade que haja dela em cada

219
Juliana Salles Machado

local de plantio. Trata-se de uma observação importante se considerarmos a dimensão de cada


área de plantio, como, por exemplo, a variação entre um pequeno canteiro plantado em uma
canoa e um terreiro com vários quilômetros de extensão.

Quando perguntados sobre o uso de outras áreas, as mulheres entrevistadas só


mencionavam as áreas abandonadas quando seu manejo ainda estava em curso. Assim, o
questionário documenta uma espécie de foto instantânea da memória das entrevistadas acerca
da distribuição e da diversidade de espécies vegetais.

Inicio com o Gráfico 4.1 que representa a variedade de plantas por local de
implantação. Para essa análise inicial foram comparadas quantas espécies de plantas foram
identificadas em cada área de plantio juntando todas as casas entrevistadas.

Gráfico 4.1 – Presença de plantas por local de implantação

O gráfico nos indica que o terreiro concentra a maior variedade de espécies. Ele é
também a maior área em extensão de plantio. O terreiro, junto com o canteiro, compõe o
repertório direto de recursos da casa, concentrando juntos, como nos indica o gráfico, quase

220
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

60% das espécies de plantas usadas pelos ribeirinhos. Já o canteiro sendo a menor unidade de
plantio, normalmente compostos por uma ou duas canoas suspensas por troncos, abrigam um
percentual considerável de 25% das espécies. Fora da unidade doméstica mais ainda ligada à
ela temos a roça com 27%. Porcentagem surpreendente para locais com tamanhos variados e
pouco valorizados localmente. Quando perguntados sobre as roças, grande parte das famílias
dizia “não trabalho com isso”. Também não pareciam atribuir nenhuma importância
econômica ou de subsistência à elas, me indicando estes serem locais de plantio apenas para
melancia, banana e ocasionalmente milho – sendo este último raramente utilizado na
alimentação das pessoas e sim para a ração dos animais de criação. No entanto, durante as
entrevistas mais estruturadas, com a aplicação dos questionários, os dados se mostraram um
tanto diversos. A porcentagem das espécies vegetais encontradas em roças representa um
número bastante significativo tendo em vista o discurso da população local, que
majoritariamente indica ali apenas a presença de banana e melancia. Por fim, as áreas
abandonadas apresentam 15%, frequência relativamente baixa para a intensidade de uso
dessas áreas. Essa categoria, no entanto, apresenta alguns problemas, pois contempla uma
grande diversidade de espaços, como antigas casas, roças, sítios e caminhos, e por isso pode
não ter sido reconhecida como “categoria” durante a entrevista. Outra hipótese para
interpretarmos tal porcentagem é que a intensidade de uso dessas áreas se dá através de uma
baixa variedade de espécies usufruídas pelos ribeirinhos, hipótese que é reforçada pela
observação da intensa atividade dos ribeirinhos no manejo desses espaços.

Para compreendermos melhor as diferenças entre as áreas de plantio, nos voltamos


para o Gráfico 4.2, que além de exemplificar a variedade de espécies por área de plantio,
correlaciona tais informações às casas as quais estão vinculadas. O Gráfico 4.2 trata, portanto,
da distribuição das plantas por casa. Nesse gráfico para cada casa (identificada pelas siglas
H1, H2, H3, e assim por diante) foi contabilizado o número de espécies presentes por área de
plantio103. Por exemplo, a casa 1 (H1) indicou possuir 24 variedades de plantas na roça, 33 no
canteiro, 24 no terreiro e 20 nas áreas abandonadas; enquanto a casa 2 (H2) apresentou apenas
3 variedades de plantas na roça, 6 no canteiro, 33 no terreiro e 47 em áreas abandonadas, e

103
É importante observar que a presença de cada espécie nas distintas áreas de plantio foi contabilizada como
resultado das entrevistas realizadas em cada casa e não através do reconhecimento das espécies in situ.

221
Gráfico 4.2:
Variedade de plantas por áreas de plantio
N = 1.098

roça canteiro terreiro áreas abandonadas

H1 H2 H3 H4 H5 H6 H7 H8 H9 H10 H11 H12 H13 H14 H15 H16 H17 H18 H19 H20 H21 H22 H23 H24 H25 H26 H27 H28 H29 H30 H31 H32 H33 H34 H35 H36 H37 H38 H39 H40 H41 H42 H43 H44 H45 H46 H47 H48

222
Juliana Salles Machado

assim por diante. Tais dados foram coletados para as 48 casas documentadas na pesquisa,
sendo analisadas as quatro áreas distintas de plantio em cada uma delas. O resultado desse
cruzamento de dados gerou uma amostra de 1.098 indivíduos, dispostas conforme o gráfico ao
lado.

No Gráfico exposto (Gráfico 4.2), vemos uma tendência a uma maior variedade de
plantas no terreiro (representado pelas colunas verdes). No entanto, há algumas inversões
importantes que devemos analisar com maior detalhe. Iniciaremos com os casos nos quais a
variedade de plantas no canteiro é maior do que todas as áreas plantadas em terreiros, para
isso recortamos o gráfico para melhor visualização das casas onde isso ocorre.

Gráfico 4.2.1: Detalhamento das casas com maior variedade de plantas em canteiros

A casa 1 pertence a Dica e Constâncio e fica no igarapé Socó. Como mencionamos no


capítulo anterior, Dica é uma das maiores especialistas em plantas, ela possui a maior reserva
de mudas e sementes da ilha e também é a que possui o maior número de roças. O excedente
de sua produção é comercializado para Caviana e Macapá e de seus canteiros, plantas de
remédio são distribuídas para diversos locais da ilha. Além disso, outro fator que contribui
para os valores do terreiro serem menores do que os do canteiro, mesmo que o primeiro ainda
seja alto, é que sua casa está localizada em uma área alagada. Assim o plantio de árvores no

223
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

entorno é extremamente difícil. O seu terreiro é substituído por um sítio afastado na terra
firme. A casa 1 é assim de fato uma exceção e apresenta um valor alto para todas as áreas de
plantio.

Tanto a casa 4 quanto a 6 e a 30 estão localizadas em praias à beira-mar e fazem parte


de grupos domésticos maiores. Para a casa 30, tal resultado se deve a não contabilização das
plantas do terreiro durante a entrevista. Já para a casa 4 e a 6, apesar dos canteiros serem
predominantes, a diferença entre os valores não é muito grande. Restam-nos as casas 22 e 46.
A primeira está situada na Ilha Nova, uma área de campo onde é difícil o plantio de árvores
perenes. Além disso, seus moradores estão há pouco tempo no local, o que é comum em casas
construídas em áreas de campo onde seus habitantes costumam ficar pouco tempo em cada
casa. Em geral, eles são contratados como empregados das fazendas sendo responsáveis por
cuidar do gado e do acesso à área da fazenda. Como empregados nos retiros, eles tem que se
mudar de acordo com as necessidades do fazendeiro que o empregou, não estabelecendo
muito vínculo com o local de moradia. Situação bastante distinta dos moradores dos igarapés
em meio à mata. Para estes a mudança de residência é um processo lento que ocorre com o
manejo prévio das plantas no local escolhido para a nova moradia. Depois de “formado” o
terreno novo é que se passa a construir a casa, dando continuidade ao plantio da área do
entorno e canteiro.

Finalmente a casa 46, está localizada na entrada do igarapé Socó e pertence a


Raimundo, neto de Dica. A casa de Raimundo faz parte do grupo doméstico de seus pais, que
moram na casa ao lado. Trata-se de uma casa recém-construída à beira-mar. Construíram sua
casa em um antigo terreiro de Dica e atualmente estão fazendo mudas de plantas frutíferas que
irão plantar no terreiro, assim como de remédios. A mulher de Raimundo, Ana Patricia,
recebe mudas de sua sogra, de sua mãe e as busca em áreas abandonadas. Juntos eles mantém
duas roças, onde Ana Patricia trabalha próxima a sogra.

Os dados da casa 46 não revelam uma anomalia com relação à tendência mais geral de
maior diversidade nos terreiros e canteiros, mas sim os diferentes estágios de manejo de
acordo com a etapa de vida de seus moradores. Casais recém-casados moram com os pais do
marido e a esposa ajuda no plantio e manutenção das plantas da sogra, podendo

224
Juliana Salles Machado

eventualmente iniciar um pequeno canteiro seu. Assim que constroem sua casa passam uma
fase de busca de mudas em áreas abandonadas para “formar” seu terreiro, assim como de
plantas de remédio através de sua mãe, cunhada e sogra. Quando possuem roça, ela começa a
ser aberta ainda na casa da sogra, ou logo que o casal se muda para a casa nova. Com o passar
dos anos, o perfil de uso de plantas muda, com um aumento da variedade de plantas no
terreiro e no canteiro e uma diminuição da importância das áreas abandonadas.

As outras duas inversões com relação a tendência geral de maior variedade de plantas
no terreiros, se referem a casa 2, onde predomina o uso das áreas abandonadas e as casas 15 e
40, nas quais as roças exercem o papel mais importante na diversificação das espécies
utilizadas.

A casa 2 é de Tereza e Adolfo no João Brás. Como vimos o papel de Tereza na troca
de plantas é muito importante e é surpreendente o maior valor ser o de áreas abandonadas. No
entanto, se olharmos o valor do terreiro ele também é bastante alto. Já o motivo da
sobreposição das áreas abandonadas com os terreiros é devido a extensão da propriedade de
Adolfo. O João Brás é um terreno comprado e não uma herança familiar por uso, como é o
caso na maior parte dos exemplos analisados. Adolfo adquiriu uma grande propriedade e
devido a sua extensão e da impossibilidade de sua família usufruí-la inteiramente, Adolfo
cedeu o uso da terra para diversas famílias que não possuem propriedades na ilha. Tais
famílias criaram seus próprios terreiros, sítios e roças e com o tempo as abandonaram. Por ter
posse da terra, Adolfo atualmente tem a prerrogativa de uso dessas áreas manejadas e
abandonadas que servem como importante fonte de recursos tanto para o consumo direto de
sua família como para a venda de excedentes.

Finalmente chegamos às casas cujos valores mais altos referem-se às plantas


encontradas nas roças. As exceções de maior destaque são a casa 15 e a casa 40. A última está
localizada em uma área de campo em São João da Caridade. Devido a dificuldade de plantio
de terreiros nesses locais, as roças apresentam-se como uma possibilidade para a geração de
alimentos e fontes de renda para as famílias. Em geral, as famílias que habitam o campo e que
cultivam roças, as fazem, fora do terreno da fazenda, nas áreas de mata próximas, ou ainda em
terrenos de sua família, aonde vão eventualmente plantar, colher e manter suas plantações. Já
a casa número 15 está localizada em uma área de praia em São Raimundo. Trata-se de um
agrupamento composto por três casas. Esse grupo não possui muita participação nas redes de

225
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

troca de plantas e apresenta certo afastamento social em relação ao restante da comunidade.


Muitos atribuem à família pequenos furtos e criticam abertamente a sua atividade de extração
de palmito. A importância da roça, nesse caso, parece ser para o abastecimento do grupo
doméstico, suprindo o que poderia ser o papel dos parentes em uma rede de trocas e partilha
de alimentos.

Permitam-me ater-me brevemente ao plantio de roças na ilha. Vimos anteriormente


que o discurso local aponta para a pouca importância dessa forma de plantio na subsistência
dos ribeirinhos. Sabemos ainda que, apesar desse discurso, as roças concentram um percentual
considerável na variedade de plantas utilizadas pelos ribeirinhos. Mais do que isso, vemos no
gráfico 4.3 que a presença do plantio de roças nas casas entrevistadas chega a 65%. Portanto,
a roça tem sim um papel fundamental na economia doméstica da comunidade analisada e
contribui para o repertório de plantas usadas na ilha. Tendo isso em vista, devemos considerar
o discurso local como uma forma de desvalorização dessa atividade, um discurso que parece
priorizar o plantio de árvores perenes e de grande porte junto à casa antes do que aquelas
colhidas longe da área doméstica. Poderíamos fazer essa oposição de valoração com relação
às árvores perenes do sítio ou terreiro com aquelas de ciclo curto na roça. No entanto, como
vemos na tabela de plantas presentes na roça, essa área de plantio também concentra árvores
frutíferas. Junto à banana, melancia, mamão e batata, entre outras plantas, encontramos
abacateiros, cupuzeiros, laranjeiras e uma série de árvores que associaríamos primeiramente
aos terreiros. Assim, só nos resta compreender esse discurso como relacionado a proximidade
e distância da unidade doméstica.

No próximo gráfico, usei as espécies de plantas (com um total de 243 espécies) no


eixo X, retirando sua associação com casas específicas. Dessa forma, os valores do eixo Y
representam a soma da quantidade de plantas presentes na totalidade das casas entrevistadas.
A distribuição das espécies é feita por áreas de plantio (Gráfico 4.4). Esse gráfico indica o
número de espécies vegetais104 por áreas de plantio (roça, terreiro, canteiro ou área
abandonada).

104
Indicados pela sigla P seguida de um número; o nome correspondente pode ser encontrado na tabela em
anexo.

226
Juliana Salles Machado

Gráfico 4.3: Presença de roças nas casas.

Nesta distribuição, fica patente que, apesar de haver um grande número de espécies
conhecidas e utilizadas, poucas plantas ocorrem em mais de cinco casas. O Gráfico 4.4 mostra
quais plantas são as mais trocadas entre as mulheres. Como estamos tratando da presença de
uma determinada espécies por casa e área de plantio e não a quantidade de plantas de uma
única espécies nesses locais, os valores apontados no eixo Y, indicam também quantas
casas/áreas de plantio utilizam cada planta. Assim, se contarmos apenas os valores acima de 5
(que consequentemente representaria 5 casas ou áreas de plantio), temos a presença de 17
variedades de plantas para o terreiro, 13 para a roça e os canteiros e 7 para as áreas
abandonadas. Tendo em vista a forma usual de circulação das plantas ser através da troca,
assumi que a presença de uma mesma planta em mais de cinco casas seria um indicador dessa
forma de interação entre as mulheres. Nesse sentido, a distribuição acima mencionada
indicaria que se troca aproximadamente o mesmo número de espécies de cada área de plantio
(roça, terreiro e canteiro), sendo que há uma ligeira predominância das plantas do terreiro.
Exceção feita às plantas oriundas de áreas abandonadas, que são muito pouco trocadas. No
entanto, varia muito o número de casas que possui cada planta; as de terreiros estão em muito
mais casas, indicando a existência de um compartilhamento mais amplo dessas espécies,
envolvendo também um número maior de indivíduos.

227
Variedade de plantas por local de implantação
N = 1.098

30

25

20
Quantidade de casas com ocorrêncida de plantas

canteiros

15 roças
terreiros
áreas abandonadas

10

0
P1 P3 P5 P7 P9 P11 P13 P15 P17 P19 P21 P23 P25 P27 P29 P31 P33 P35 P37 P39 P41 P43 P45 P47 P49 P51 P53 P55 P57 P59 P61 P63 P65 P67 P69 P71 P73 P75 P77 P79 P81 P83 P85 P87 P89 P91 P93 P95 P97 P99 P101 P103 P105 P107 P109 P111 P113 P115 P117 P119 P121 P123 P125 P127 P129 P131 P133 P135 P137 P139 P141 P143 P145 P147 P149 P151 P153 P155 P157 P159 P161 P163 P165 P167 P169 P171 P173 P175 P177 P179 P181 P183 P185 P187 P189 P191 P193 P195 P197 P199 P201 P203 P205 P207 P209 P211 P213 P215 P217 P219 P221 P223 P225 P227 P229 P231 P233 P235 P237 P239 P241 P243

228
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Se agora nos voltarmos para as plantas que ocorrem entre os valores 5 e 10, ou seja,
que ocorrem entre 5 e 10 casas ou áreas de plantio, temos apenas 13 plantas tanto nas roças
quanto nos canteiros. Já acima de 10 casas ou áreas de plantio, há apenas três plantas para as
roças e uma para o canteiro. Isso significa que a rede de circulação de roças e canteiros é
menor do que a dos terreiros, e a das roças é ligeiramente maior que a dos canteiros.

O conjunto dos gráficos e dados expostos até o momento nos permite elencar algumas
considerações importantes quanto à diversidade e ao número de espécies vegetais:

 terreiros, canteiros e roças têm aproximadamente o mesmo número de espécies


sendo trocadas;
 na maioria dos casos, terreiros, canteiros e roças têm espécies diferentes, sendo que
esta última pode conter um misto de espécies encontradas nos dois primeiros;
 as plantas encontradas nas áreas abandonadas são encontradas com menos
frequência nas redes de troca;
 há diferença na escala das redes de troca de plantas de terreiros, canteiros ou roças:
- os terreiros têm o maior número de casas envolvidas na troca de plantas;
- a troca de espécies plantadas em roças é ligeiramente maior do que a dos
canteiros.

Os gráficos sobre o uso das plantas, que apresentarei a seguir, nos permitirão
compreender melhor essas diferenças e a própria rede de trocas. Sintetizei os usos das plantas
em Caviana em quatro categorias gerais: alimento, remédio, ornamento e matéria-
-prima105. O Gráfico 4.5, sobre os usos gerais das plantas, indica que 68% das plantas
cultivadas são consideradas alimento, enquanto 19% são remédio e apenas 7% e 6%,
ornamento e matéria-prima, respectivamente. Considerando a disparidade entre o tamanho das
áreas (principalmente dos canteiros em relação aos terreiros e às roças), é importante
avaliarmos a distribuição interna de cada uma dessas categorias. Enquanto os alimentos
compõem 83% dos terreiros, 66% das roças e 54% das áreas abandonadas, representam

105
É importante observar que muitas plantas apresentavam mais de uma forma de utilização. Nestes casos, optei
por contabilizar as plantas apenas uma vez, de acordo com sua função principal, isto é, aquelas mais utilizadas
pelos ribeirinhos. No entanto, a diversidade de funções para cada planta pode ser encontrada na tabela em
Anexo.

229
Juliana Salles Machado

apenas 32% nos canteiros – e cabe lembrar que a categoria inclui plantas usadas no
processamento de alimentos, como os temperos. Já os remédios representam 47% das plantas
dos canteiros, 33% das roças, 14% das áreas abandonadas e apenas 6% dos terreiros. As
matérias-primas estão concentradas nas áreas abandonadas (32%) e aparecem pouco nos
terreiros (6%). Os ornamentos têm mais espaço nos canteiros (21%) e menos nos terreiros
(5%).

Gráfico 4.5 – Uso geral das plantas

Gráfico 4.6 – Uso das plantas por lugar de plantio

230
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Distinto da série de gráficos anteriores, estes últimos não tratam da riqueza de plantas
em cada área de plantio e sim as diferenças no uso de cada área. A partir deles (Gráfico 4.5 e
4.6) podemos concluir que:

 os terreiros são espaços predominantemente voltados para a alimentação, mas


providos de um pequeno estoque de matéria-prima, ornamentos e remédios.

 as roças são áreas também voltadas para a alimentação, mas com uma provisão
substancial de remédios.

 as áreas abandonadas são importantes fontes de alimentação e também a principal


fonte de matéria-prima, além de possuir remédios.

 os canteiros são a principal fonte de remédios e ornamentos, mas também incluem


uma pequena porcentagem de alimentos.

Temos, portanto que todas às áreas são multifuncionais, isto é, possuem uma gama
variada de plantas capazes de suprir uma família com remédios, alimentos, matéria-prima e
ornamentos. No entanto, apesar dessa diversidade podemos perceber uma tendência de uso
maior em cada uma delas. De um modo geral, podemos dizer que os terreiros são os espaços
dos alimentos (principalmente frutos de árvores perenes); as roças espaços de alimentos
advindos de plantas de ciclo curto; áreas abandonadas seriam os locais para a busca de
matérias-primas e os canteiros a fonte principal de remédios e ornamentos.

Aliando os dados quantitativos as observações qualitativas feitas em campo, podemos


detalhar um pouco mais a listagem apresentada acima. Começamos com o terreiro. Como já
vimos, o terreiro, também chamado de “quintal” na literatura (ver Murrieta & WinklerPrins
2006; Lima 2006) fica no entorno da casa e exerce um papel importante na renda familiar, já
que seus frutos e materiais servem tanto para o autoconsumo como para a venda de
excedentes. Sua localização junto à unidade doméstica, facilita o manejo e coleta de recursos
na área, mesmo em épocas de difícil circulação. Tal acessibilidade explica a presença das
matérias-primas nesses locais. Já os ornamentos estariam mais associados ao que muitos
autores chamaram de “jardins” (Murrieta & WinklerPrins 2006), área que se localiza
preferencialmente na frente da casa e onde ficam as flores, que anteriormente indiquei como

231
Juliana Salles Machado

área de maior visibilidade e acesso. Os remédios assumem também um papel importante nos
terreiros, assim como nas roças e áreas abandonadas.

PROVENIÊNCIA DAS PLANTAS Diferente dos canteiros


HM mãe do marido mulher família do marido
HZ irmã do marido
que são os seus locais
HZD filha da irmã do marido preferenciais de plantio, quando
HFBW mulher do irmão do pai do marido
encontrados em outras áreas
ZHM irmã da mãe do marido
HF pai do marido homem assumem um papel estratégico na
HCO primo do marido
cura. Localizados em terreiros,
HAU tio do marido
M mãe mulher família de ego roças e áreas abandonadas eles
Z irmã
ajudam a transformar e manter o
MZ irmã da mãe
D filha local afastado de encantados,
CO prima entes da floresta e maldades de
AU tia (quando não foi diferenciado FZ e MZ)
ZD filha da irmã
uma maneira geral. A idéia aqui é
FZ irmã do pai que eles sejam cultivados nos
BD filha do irmão
canteiros próximos a casa e,
S filho homem
F pai depois de “domesticados” (no
B irmão
sentido social/cosmológico da
ZS filho da irmã
MF pai da mãe domesticidade) a partir do
MB irmão da mãe
processo de transformação
FF pai do pai
FB irmão do pai descrito no capítulo 2, passam a
DH marido da filha homem afins ser aplicados como ferramentas
ZH marido da irmã
CU comadre mulher
de proteção e cura dos lugares.
BW mulher do irmão Por isso sua presença pode ser
SW mulher do filho
encontrada em quase todas as
NE vizinho
FR amigo áreas de plantio, mesmo que em
O outro
pouca quantidade. Áreas
BO compra
BE benzedeira afastadas no meio da floresta
Outros
AS área abandonada como as roças, são as mais
NAT natural
DR não lembra
perigosas e a presença constante
de remédios é fundamental para
Tabela 4.1 – Legenda da proveniência das plantas que seus donos possam continuar

232
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

a trabalhar naquele lugar.

Por fim, analisamos o último conjunto de gráficos (Gráficos 4.7, 4.8, 4.9 e 4.10)
relativos à proveniência e aos doadores das plantas. As siglas adotadas para essa etapa da
análise podem ser encontradas na tabela ao lado. Trata-se de doadores pertencentes à família
da dona da planta (ego) e de seu marido, assim como afins, amigos, vizinhos e também outras
formas de proveniência da planta, como a compra, a coleta de mudas da floresta, etc. Como
família, estou me referindo não apenas aos pais, mães e irmãos, mas também aos cunhados,
cunhadas, noras e todos aqueles incluídos no que os ribeirinhos chamam de família. Não está
incluído nesta noção, no entanto, o compadrio, já que apesar de serem chamados de parentes
localmente (incluindo, portanto, as relações de afinidade nesse conceito), em geral, eles não
são incluídos quando os ribeirinhos se referem à sua família.

A análise da proveniência das plantas mencionadas se mostrou relevante ao


percebermos como a informação da origem de cada muda era mantida na memória das
mulheres entrevistadas. Assim, a cada planta indicada, as mulheres foram questionadas a
respeito de onde elas tinham trazido a muda e quem a havia dado. Ao registrar tais
informações percebi existir uma diferença entre algumas plantas, já que enquanto algumas
tinham sua origem e uma doadora facilmente lembradas, a trajetória de outras era
desconhecida. Tendo tal diferença em vista, analisarei primeiramente as categorias de uso de
plantas por proveniência desconhecidas. Meu intuito com isso é entender se existe algum
padrão perceptível entre as plantas que as mulheres entrevistadas não se lembravam mais de
sua origem. Todos os cruzamentos de dados para essa etapa da análise foram feitos através
das categorias de usos (alimento, remédio, matéria-prima e ornamento), conforme
exemplificado anteriormente. A categoria com maior frequência de desconhecimento de sua
origem é a de alimentos, com 76%. Isto é importante tendo em vista que os alimentos
apresentam a maior dispersão espacial e diversificação de espécies e compõem em grande
parte os terreiros e as roças. As categorias de remédio e matéria-prima apresentaram
freqüências baixas, em torno de 10% e os ornamentos apenas 5% representando assim a
categoria mais lembrada pelas mulheres.

233
Juliana Salles Machado

Gráfico 4.7 – Doador desconhecido por uso de plantas

A análise das porcentagens de plantas com maior índice de desconhecimento nos


indica o que é importante ser lembrado e o que pode ser esquecido. Esta análise nos ajuda a
entender a valoração dada à trajetória da planta e se existe ou não significados associados à
esses atos. Com isso, podemos inferir que apesar dos alimentos serem amplamente
compartilhados entre pessoas, ele não é importante de ser recordado, pelo menos no que se
refere à pessoa que doou. Se associarmos esse dado à análise econômica que vimos
anteriormente no capítulo 2, podemos propor que o compartilhamento de alimentos seja talvez
um pressuposto para definir o que é família e, nos termos de Lima (2006), do “vizinhar”.

Já os ornamentos e as plantas de remédio e matérias-primas apresentam um alto índice


de memória. Isto é dizer que em geral as mulheres recordam sua origem e, devo acrescentar,
sua história. Também Murrieta & WinklerPrins (2006) chamaram atenção para este aspecto,
quando trataram das plantas dos jardins e quintais (aqui denominadas de canteiros e terreiros):

algumas plantas possuíam estórias sobre a sua origem, utilidade e papel


que desempenhavam segundo a perspectiva de cada mulher. Tais
interpretações estavam quase sempre associadas a alguma referência ou
ocasião de relevância emocional, função medicinal ou econômica, ou
simplesmente ao seu apelo estético. Desempenhavam também um

234
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

importante papel nas redes de reciprocidade feminina entre as unidades


domésticas, tanto em São Benedito como entre outras comunidades.
Presentes dados em visitas eram geralmente plantas e frutas. Quase
sempre, estes eram retribuições de visitas recebidas previamente, ou
símbolos de amizade que marcavam o começo de uma nova relação ou
mantinham os laços de uma antiga (Murrieta & WinklerPrins 2006: 285).

A importância da memória da origem das plantas é um dos argumentos-chave desta


pesquisa. Mas gostaria de ressaltar que há diferenças entre as plantas. O gráfico indicou que
os ornamentos são os mais lembrados, seguidos da matéria-prima e dos remédios. A
informação dada pelas mulheres sobre a origem das plantas era, em geral, o nome da antiga
dona da planta e não os locais de origem da coleta. Para tornar os dados comparáveis, ao invés
de utilizar os nomes das doadoras de plantas, classifiquei-as a partir do gênero e de seu
pertencimento à família da “dona” da planta (ego), da família de seu marido, ou ainda à outras
categorias, como a de vizinho, amigo, ou oriundas de benzedeiras locais ou ainda aquelas
compradas na cidade (todas apresentadas na Tabela 4.6).

É importante entendermos que cada uma das categorias de plantas (ornamento,


matéria-prima, remédios e alimentos) possui funções diferentes e geram significados distintos
entre as mulheres e sua distribuição entre as casas também se apresenta diversa. Vejamos cada
uma delas.

Há uma diferença fundamental entre as categorias de plantas que são lembradas.


Enquanto a lembrança da origem das plantas de matéria-prima está relacionada à “natureza”
de maneira genérica como principal fonte de proveniência, o mesmo não ocorre com os
remédios e com os ornamentos. Vejamos no Gráfico 4.8 a origem das plantas que fornecem
matéria-prima:

235
Juliana Salles Machado

Gráfico 4.8: Origem das plantas que fornecem matéria-prima

Temos, portanto que a origem das matérias-primas não está relacionada a um presente
de um parente ou um amigo e sim oriunda da “natureza” de um modo geral106. As mulheres
retiravam essas mudas de áreas abandonadas (ver tabela) ou já as encontravam nos novos
terrenos. Assim elas não fazem parte de uma rede de reciprocidade atual, mas uma relação das
mulheres com os espaços previamente manejados. Elas diferem daquelas desconhecidas, pois
marcam plantas que são importantes para as mulheres como referencial de “lugares de gente”.
São assim, plantas valorizadas por sua utilidade e que são procuradas em áreas anteriormente
antropizadas e possuem um papel importante na escolha dos novos locais de habitação.

Já os ornamentos parecem ser os mais lembrados. O que podemos entender com certa
facilidade uma vez que estão associados geralmente a presentes oferecidos por parentes e
amigos quando de uma visita, ou ainda por maridos e namorados. Eles têm um lugar especial
na entrada da casa, e, como vimos no capítulo 3, estão localizados em locais com grande
visibilidade, para serem vistos por todos. A importância estética dos ornamentos já foi alvo de
pesquisa por Murrieta & WinklerPrins (2006), segundo os quais “as flores parecem assumir
para as mulheres um caráter mais emocional do que outras plantas” (2006:288). O aspecto da
visibilidade também é enfatizado pelos autores através de uma de suas colaboradoras “um

106
Os termos usados localmente para atribuir essa origem natural são “grelo da natureza”, “filho natural da terra”
ou “vem da natureza mesmo”.

236
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

jardim diz muito sobre quem o mantém e tem um impacto especial sobre as primeiras
impressões das pessoas que visitam a casa, principalmente entre as mulheres” (Murrieta &
WinklerPrins 2006: 285). Os ornamentos, são presentes e apesar de também serem trocados
os significados dessa forma de troca parecem distintos daqueles relacionados as plantas de
remédio.

Dentre a proveniência das plantas de remédio, apenas 7% estavam relacionados a


“natureza” contra um total de quase 70% de nomes de pessoas, conforme explicitado no
gráfico abaixo.

Gráfico 4.9: Origem de plantas de remédio.

O que se lembra e o que se esquece sobre cada planta, nos indica que, diferente do restante
das categorias de matéria-prima e alimentos, as plantas de remédio estão associadas à relações
pessoais femininas. Para participar da troca de plantas de remédio é importante manter na
memória quem a deu. Isso revela a importância na manutenção das trocas, pois a importância
dessa informação está relacionada a necessidade de retorno da planta e/ou na participação de

237
Juliana Salles Machado

relações de cooperação. Para melhor compreendermos de que forma essa rede de trocas é
mantida, vejamos os gráficos sobre os doadores.

Conforme mencionei no capítulo 3, a análise descritiva contempla as diversas etapas


das plantas nos canteiros e terreiros. No caso específico dos canteiros, onde estão localizados
preferencialmente os remédios, isto quer dizer que a análise quantitativa dos dados achata
processos temporais distintos, como o processo de formação do canteiro e sua etapa posterior,
quando com o canteiro pronto, as mulheres passam a trocar suas mudas. Como indiquei no
capítulo anterior, há uma diferença entre como as plantas são passadas em cada uma destas
etapas, além de quem participa delas. Como o processo de formação representa o período de
maior acréscimo de plantas nos canteiros, ela vai ser quantitativamente mais representada
nesta análise, como documento da origem deste mesmo, apesar de sua escala temporal ser
muito menor do que a etapa subsequente. Na etapa seguinte, o canteiro já se encontra repleto
de plantas. Com sua troca, há uma diversificação de personagens associados às plantas. No
entanto, devido à sua larga escala temporal e proporção relativamente menor na variedade de
plantas contidas no terreiro, ela é quantitativamente pouco representada nesta análise.

Gráfico 4.10 – Distribuição do uso de plantas por família e gênero

238
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

O Gráfico 4.10 indica que, independentemente do uso da planta, as mulheres da


família da “dona” compõem a maioria das doadoras. Já os homens da família de ego
apresentam aproximadamente a mesma frequência de doação que as mulheres da família de
seu marido, realçando a importância do gênero (mulheres) e da família da mulher. Enquanto a
sogra está presente, o marido apresenta uma participação muito baixa.

Vimos, portanto, que as mulheres são as participantes mais ativas na transmissão nas
redes de troca e que, mesmo entre os homens, a participação está relacionada à relação de
parentesco com a mulher que planta (ego). Vimos no Capítulo 3 a relação das mulheres com
as plantas e como essa prática do plantar está associada ao cuidar, uma lógica particularmente
feminina relacionada à educação dos filhos e ao seu papel na manutenção da domesticidade.
Agora, o que esses dados nos indicam é que além da sua relação com o plantio, também são
as mulheres que atuam na circulação das plantas. Isto não é trivial, tendo em vista o papel
geralmente atribuído aos homens no que tange à mobilidade. Mesmo em Caviana, a
dificuldade de transporte e a associação masculina com os barcos e a água nos levaria a
associar qualquer forma de distribuição ao domínio masculino (Figura 4.3). Mas esses dados
quantitativos nos mostram ao contrário, o fato das mulheres assumirem um papel importante
na circulação das plantas. Trata-se, portanto de dois processos: a relação entre mulheres e
plantas através do próprio plantar e uma vez estabelecidas em seus canteiros e terreiros, a
troca desses espécies com parentes, amigos e vizinhos (Figura 4.4). Vimos ainda que cada
tipo de planta tem uma forma de distribuição distinta e que há para as mulheres diferenças de
valoração e memória em cada uma delas. Agora, é importante, portanto separar a análise dos
doadores por tipo de planta. Assim nos próximos dados analiso o que é dado por quem, isto é,
que tipos de planta são dadas por que parte da família ou de outros doadores (Gráfico 4.11).
Todas as pessoas contabilizadas como doadoras podem ser encontradas nas tabelas acima
apresentadas, assim como no detalhamento dos gráficos que apresentarei em seguida. As
abreviações usadas podem ser encontradas na legenda (ver Tabela 4.6).

239
Juliana Salles Machado

Gráfico 4.11 – Doadores de alimentos

Gráfico 4.12 – Doadores de remédios

Na categoria de alimentos (Gráfico 4.11), os maiores doadores são os homens e as


mulheres da família de ego, com 33% e 29%, respectivamente, sendo o restante um misto de
vizinhos, amigos e membros (sobretudo mulheres) da família do marido. Já na categoria
remédios (Gráfico 4.12), cresce consideravelmente a importância das mulheres da família de

240
Figura 4.3: Exemplos de homens nos barcos de médio porte usados para o comércio de produtos e
mercadorias na ilha e nas cidades prróximas. Fotos: Juliana Salles Machado.

241
Figura 4.4: Exemplos de homens, mulheres e crianças nas canoas, chamadas localmente de cascos ou
montaria, transporte mais utilizado no interior e margens da ilha. Fotos: Juliana Salles Machado.

242
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

ego, com 45% das ocorrências, assim como da família de seu marido, com 26%. Os homens
da própria família de ego representam apenas 13% dos doadores, perto dos amigos, com 10%.

Se aliarmos tais dados, aos anteriormente apresentados, reforçamos a hipótese


apresentada de uma distinção entre as plantas alimentícias e as de remédio. Entre os alimentos
vemos o que poderíamos chamar de compartilhamento entre os pais e as filhas. Assim quando
a filha se casa e sai de casa para morar com o marido próximo a sua sogra, sua família
(homens e mulheres) continua a abastecendo de comida. Já entre os remédios percebemos ser
mais importante a questão do gênero. Aqui temos a transmissão de plantas entre mulheres, em
geral da mesma família (da família de origem da dona) sendo também importante a
participação das mulheres da família do marido que a recebem em um novo espaço. Há,
portanto, de um lado, o compartilhamento de alimentos, plantados majoritariamente em
terreiros, e, de outro, uma rede de transmissão, em um primeiro momento e de troca, em um
segundo, dos remédios, plantados majoritariamente nos canteiros. Além disso, a transmissão e
a troca de remédios entre mulheres aparece como significativa para a dona de plantas, já que
ela é mais lembrada do que a relação estabelecida entre homens e mulheres através da
circulação de alimentos.

Gráfico 4.13 – Distribuição do uso de plantas doadas por mulheres

243
Juliana Salles Machado

Antes de aprofundar essa afirmação, vejamos o detalhamento dos dados acerca dos
doadores de plantas segundo categorias de parentesco (Gráfico 4.13). No Gráfico 4.13 vemos
que a transmissão de remédios é a mais frequente entre as mulheres e está concentrada na mãe
e na sogra, sendo seguida, com frequência muito menor, da filha, tia e cunhada. Ainda na
esfera feminina, os alimentos e ornamentos são mais diversificados, sendo doados pela sogra,
mãe, tia materna, primas e filhas. Já os doadores masculinos são praticamente dois (Gráfico
4.12): o pai e o tio materno envolvidos na troca de alimentos, com uma muito tímida inclusão
do sogro. Já entre os remédios, o pai concentra a transmissão quase exclusivamente, com uma
pequena participação do cunhado (marido da irmã).

Gráfico 4.14 – Distribuição do uso de plantas doadas por homens

A análise dos dados coletados apresentados nos gráficos acima confirmou a relação
prioritariamente feminina com as plantas, discutida no Capítulo 3. Mais do que isso, os dados
indicaram as diferenças existentes entre as plantas, os seus locais de plantio e as pessoas
envolvidas. O compartilhamento dos alimentos se mostrou mais diverso por incluir um maior
número de tipos de plantas e por abarcar uma área mais ampla do que a circulação das plantas
de remédio. Também nessa esfera percebemos a presença masculina e os doadores mais
diversos, entre homens e mulheres. Tais informações aliadas à ausência de uma valoração da

244
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

memória da doação, nos remetem a uma partilha da comida que ocorre entre parentes e é
comum em toda a Amazônia ribeirinha. Ela difere em qualidade da troca existente entre os
remédios. Com circulação menor e mais restrita às mulheres, sua troca parece ser mais
valorizada e lembrada e não uma prerrogativa da família. No Capítulo 3, apontei como o
plantar faz parte de uma rede de ensino-aprendizagem passada de mãe para filha, ou entre
irmãs no interior de seu contexto doméstico. Esta aprendizagem é internalizada enquanto a
filha ajuda a mãe no cuidar de seu canteiro. Quando se casa e passa para o grupo doméstico
do marido, a filha pode finalmente exercer seu conhecimento sobre as plantas através da
formação de seu canteiro. Neste momento temos o início da formação de seu canteiro, o qual
as plantas são transmitidas em geral de mãe para filha, e entre irmãs, processo bastante
documentado e registrado através das análises feitas neste capítulo, quando a mãe de ego
assumiu maior destaque como provedora de plantas. Também neste momento, podemos ter a
participação da sogra e até mesmo das cunhadas, que podem colaborar para a formação do
novo canteiro da recém-chegada. Uma vez formado o canteiro, sua dona passa a poder
integrar uma rede mais ampla e variada de reciprocidade feminina, esta pouco exemplificada
quantitativamente, devido a sua larga escala temporal, contudo ainda visível através da
presença das vizinhas, comadres, benzedeiras e amigas. Neste momento, já longe de sua
família e inserida no grupo doméstico de seu marido, a troca atua no estreitamento dos laços
com a nova família e também como forma de criação e expansão de uma rede de
sociabilidade inedependente de sua mãe. Ela figura-se como uma rede de apóio mútuo e
compartilhamento de um conhecimento especializado que a mulher consegue manter longe do
suporte materno.

Em Caviana, o padrão de residência está centrado dos ribeirinhosnas margens dos rios
e igarapés ou em tesos não inundáveis e em várzeas sazonalmente alagadas. Como discuti no
Capítulo 2, os homens detêm o conhecimento e o domínio do transporte fluvial (barcos
médios a grandes), com exceção das canoas, chamadas localmente montaria, a que as
mulheres têm acesso. O dito domínio masculino do transporte restringiria o acesso das
mulheres não só ao contato externo, mas principalmente sua circulação no interior da ilha. A
literatura sobre comunidades com padrões de residência virilocal reitera o rompimento das
redes de sociabilidade da mulher com sua família depois do casamento, assim como a

245
Juliana Salles Machado

literatura sobre sistemas de troca normalmente estão voltadas para o universo masculino,
sobretudo as trocas cerimoniais (Strathern 1988; Graeber 2001). Na Amazônia, este é
claramente o caso do sistema do alto Rio Negro (Reichel-Dolmatoff 1996; Hugh-Jones 2001).
Os dados de Caviana nos mostram que, por meio da rede de trocas de plantas entre as
mulheres, elas mantêm a sociabilidade com seus parentes, mesmo em contexto virilocal. Mais
do que isso, a troca ensejou a construção de uma rede de reciprocidade independente dos
coletivos masculinos, estes últimos pautados em grupos de trabalho, comércio de mercadorias
com a cidade e política em geral.

246
Capítulo 5:

Figura abertura capítulo 5: Tereza à luz do lampião. Foto: Juliana Salles Machado

247
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

5
PLANTAS QUE CURAM:

UM OLHAR PARA OS OUTROS

“Você foi de manhã para a beira do igarapé


e agora já quase meio-dia e você não voltou.
Parece encantado.” (Tereza, João Brás)

este capítulo, exploro um ponto crucial para as mulheres da ilha


Caviana: o que são os remédios e por que trocá-los. Para as comunidades ribeirinhas de
Caviana, a ilha e suas florestas são habitadas e protegidas por mães-dos-lugares, que assumem
diversos nomes como mãe-do-mato, mãe-da-floresta, mãe-d´água e mãe-dos-bichos. Esses
entes poderosos intervêm nas relações entre os bichos, as plantas, os homens, os “encantados”
e os aspectos topográficos em geral. Seres semelhantes são bastante conhecidos na Amazônia
indígena, mais conhecidos como “mestres” e foram alvo de inúmeras pesquisas,
especialmente àqueles ligados aos animais (veja, por exemplo, Chaumeil 1990; Fausto 2001,
2007, 2008; Galvão 1975; Gow 1995; Reichel-Dolmatoff 1996; Yanomami 1991). Dentre
estes contextos ameríndios, cito um trecho do trabalho de Gow entre os Piro, no qual é
retratada a relação estabelecida entre os humanos e esses seres:

248
Juliana Salles Machado

Além das paisagens dos humanos vivos e mortos, e incorporando-os,


estão de forma geral os agentes supremos, os “donos” e as “mães” da
floresta e do rio. Esses agentes, descritos como anacondas gigantes ou
como lindos e altos forasteiros brancos, criam e mantêm os domínios
ribeirinhos e da floresta […] Para viver, os humanos devem invadir
esses espaços ao caçar, pescar, viajar e especialmente na criação de
paisagens específicas nas vilas e roças. Como resposta, os seres
poderosos se voltam contra os humanos por meio de doenças e mortes.
Apesar de a feitiçaria humana ser o diagnóstico mais comum para
doenças severas e fatais, o poder de matar deriva, em última instância,
desses seres poderosos, seja diretamente ou pela mediação de um uso
xamânico desse poder107 (Gow 1995:54-55).

Apesar do trecho citado de Gow estar relacionado a um contexto indígena, ele poderia
ser facilmente aplicado aos ribeirinhos de Caviana. O termo mais corrente em Caviana para se
referir a esses agentes supremos é “mãe”. Segundo Tereza “todo lugar tem uma mãe, tem seu
dono. Ela pode fazer mal para a gente. Pode dar uma febre, até levar ele com ela. (...) É a
mesma mãe dos bichos e das plantas”. Há, entre eles, a mãe-do-mato, a mãe-dos-bichos e a
mãe-d´água. A referência à figura materna em Caviana seria correspondente àquela de
“dono”, conforme demonstrado na fala de Tereza acima (e na discussão sobre o tema no
Capítulo 3), ou ainda de “mestre”, termo mais comumente utilizados nos contextos indígenas.
A associação entre as figuras de mães e os “donos” ou “mestres” fica evidente no contexto
indígena do norte do Amapá, entre os já mencionados grupos indígenas Palikur, Karipuna,
Galibi-Marworno e Galibi do Oiapoque108. Entre eles a cobra mitológica (também referida no

107
“Beyond the landscapes of the living and dead humans, and encapsulating them, are the generalized by the
supreme agents, the ‘owners’ and ‘mothers’ of the forest and river. These agents, variously described as giant
anacondas and as beautiful tall white foreigners, create and maintain the forest and riverine domains […] In
order to live humans must invade these spaces in hunting, fishing, travel, and especially in the creation of
specific landscapes of villages and gardens. In response, the powerful beings inflict humans with sickness and
death. Although human sorcery is the commonest diagnosis for sever or fatal illness, killing power ultimately
derives from these powerful beings, whether directly or through the medium of shamanic use of these powers”
(Gow 1995:54-55).
108
O primeiro pertence ao tronco linquistico arawak, enquanto os dois últimos karib. Os Karipuna, atualmente
são falantes do Patoá, língua geral do norte do Amapá, mas sua formação é heterogênea oriunda da mistura de
populações ribeirinhas da região deltaica do rio amazonas e do salgado paraense e os índios do Uaçá.

249
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

relato de Gow como “anacondas gigantes”) representa um mito de origem, de gênese ou ainda
de migração. Conforme mencionamos no Capítulo 3, há muitos tipos de cobra, sendo que uma
delas é chamada pelos índios em português como “mãe-d´água”, mesmo termo usado pelos
ribeirinhos da ilha. A referência materna à cobra é reforçada no mito, onde um casal de cobras
adota um humano que os chama de “pai” e “mãe”. A referência materna é usada ainda entre
os Galibi para se referir à mães de bichos como a “mãe-da-piranha” e a “mãe-do-jacaré”,
mostrando um uso do termo muito semelhante àquele apresentado em Caviana.

Na ilha, estes entes também surgem na forma de uma figura chamada de mãe-do-
lugar, denominação que, como nos fala Tereza, representa “a mesma coisa” que as mães dos
bichos, mato e da água; ou seja, é um ente que representa de forma genérica todas as mães.
Adotarei esta denominação para me referir a todos esses entes protetores, tanto da terra como
das águas. A ideia de existir uma mãe-do-lugar, conforme essa designação local é interessante
já que um lugar é um espaço que agrega um conjunto específico de coisas, seres e
características topográficas. Eles podem ser a curva de um rio, um barranco seco, um clarão
na floresta; quase todos os espaços são potencialmente lugares. Mas eles só se tornam assim
designados quando são alvo de afeto e histórias pessoais e familiares, ou ainda relacionados a
histórias ancestrais, “dos antigos”. Novamente aqui retomo o contexto do norte do Amapá, já
que o mito da cobra grande está intrinsecamente arraigado à paisagem, como vemos no trecho
citado de Vidal (2007:33):

Ainda com relação a paisagem, um certo número de cobras (...)


é “dono” de algum lugar. Elas vivem de preferência nos poções
dos rios, onde a água é limpa e onde podem atrair para o fundo
os humanos desprevinidos e transformá-los em “encantados”.

A referência aqui é a água, como local privilegiado de ação da cobra. No entanto, a


idéia de que um ser poderoso e protetor é “dono” e portanto, zelador de lugares é muito
semelhante à observada em Caviana. Local onde também as águas são a principal referência
do mundo encantado e dos poderes de captura, mas onde também a referências de figuras da
floresta com poderes parecidos.

250
Juliana Salles Machado

Como ressaltou Gow no trecho mencionado anteriormente, para viver os humanos


invadem esses espaços, transformando-os e afetando a paisagem e a fauna que ali reside. Tais
atitudes desafiam esses agentes poderosos que, por sua vez, respondem com doenças e mortes
àqueles que os perturbam. Para ser habitado por humanos, isto é, para que uma família ou
uma pessoa possa construir ali sua casa – derrubar árvores, espantar e matar espécies animais,
mudar o curso de pequenos rios ou interferir na conformação de um teso –, o lugar precisa ser
cuidado. Cuidar não extingue a existência dos agentes poderosos, mas estabelece uma forma
de negociação entre os humanos interessados em ocupar o espaço e os “encantados”, termo
local para se referir aos seres não-humanos, aos quais esse local pertence. Cuidar de um lugar
implica em fazer seu manejo de forma respeitosa, mantendo algumas plantas já existentes e
inserindo outras, normalmente consideradas plantas de remédio, especialmente selecionadas e
recebidas de familiares e amigos109. Quando a cura é para a construção de uma casa, usam-se
também imagens de santos (para exemplo semelhante ver Wagley 1957), banhos de sal grosso
e a exposição de dentes de alho. A água benta serve à cura tanto de casas como de roças,
complementando a defumação. O cuidar se configura como o cumprimento de uma ética na
relação entre humanos e não-humanos, no qual os primeiros aceitam praticar o manejo, a caça
e a exploração dos recursos naturais de forma moderada em troca de não serem alvos dos
poderes nocivos dos últimos. Além do uso respeitoso dos recursos, há entre os ribeirinhos de
Caviana, uma dedicação contínua às plantas de remédio, sendo esse aspecto o de maior
interesse em minha pesquisa. Sua ausência nos lugares permitiria sua retomada pelos agentes
poderosos, tornando-os novamente uma ameaça aos humanos, causando doenças e mortes.

As plantas de remédio são trazidas das casas dos ribeirinhos, onde as mulheres as
cultivam em canteiros ou plantadas no entorno de suas casas. Ao longo desta tese, tratei de
analisar as relações estabelecidas entre as mulheres e as plantas em Caviana, não em termos
de sua estrutura ecológica ou econômica, mas como fonte de significados sociais e
simbólicos. Enfatizei assim a importância desta relação como parte constitutiva da dinâmica
social na ilha, especialmente entre as famílias e a comunidade. Afastei-me, portanto, de uma
perspectiva agroflorestal pautada no manejo ambiental para focar minha atenção aos
significados atribuídos à essa prática. O contexto feminino do plantar me levou a uma nova

109
A idéia de uma ética na relação dos humanos com não-humanos já foi exposta de maneira diversa por
diversos autores, entre os quais, por exemplo, Reichel-Dolmatoff, através da ideia de um “equilíbrio” da natureza
entre os Desana (1996) ou por uma “ética da moderação” conforme citada por Fausto (2001, 2007) e Descola
(2004, 1986) ao tratar especificamente da relação entre humanos e animais.

251
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

chave interpretativa baseada na idéia do cuidar. Este cuidar, que segundo Baier (1992), faz
parte da dinâmica social prioritariamente feminina, baseada na experiência materna, no papel
das mulheres com seus filhos e com suas casas. Essa associação do cuidar ao modelo materno
se mostrou fundamental para entendermos a sociabilidade feminina em Caviana, já que
norteia grande parte das relações entre humanos e entre estes e os “encantados”. A partir da
noção do cuidar podemos compreender a casa ribeirinha, a família e a própria idéia de
coletivo na ilha. Ao propor um modelo feminino do cuidar, Baier propõe uma dualidade entre
uma ética pautada nas noções de obrigação, contrato e justiça e outra pautada no amor, no
cuidado e na cooperação. Tais “perfis morais” contrastantes estariam relacionados a uma
questão de gênero: enquanto o primeiro seria inerente aos homens, o último estaria
relacionado às mulheres. Essa esfera moral feminina estaria diretamente relacionada a seus
interesses na educação e criação de seus filhos (associação que serviu de inspiração às
chamadas “culturas gerativas” de Overing 1999). Overing (1999) destaca que tais valores
morais levam a uma dinâmica social pautada “mais pela ênfase sobre o informal e o íntimo,
do que sobre a regra e sua obediência” (Overing 1999:82). Ainda nesse sentido, Baier chama
atenção para o fato dessa ética do cuidar acrescentar um viés mais comunitário à socialidade
feminina. Em Caviana, a idéia do cuidar é revelada na relação dos “encantados” com a
floresta, as águas, os animais e os lugares em geral, pelas denominações que invocam a
maternidade, como as já mencionadas mães-dos-lugares. Essa figura materna tem como alvo
de seu afeto e cuidado seus filhos, os vegetais, animais e aspectos topográficos em geral.

O cuidar revelou-se no curar, noção privilegiada na relação das mulheres e as plantas.


A cura foi entendida, portanto, como um ato do cuidar e foi usada como ferramenta na
compreensão da relação das plantas com as mulheres, que se mostrou ser também uma relação
com o outro. É através da análise da cura, de seus personagens e implicações, que encerro
essa tese.

252
Juliana Salles Machado

5.1 Os outros

Em Caviana, encontramos seres “encantados” que povoam a terra junto com as


plantas, as pessoas, os rios e os animais. Esses entes não-humanos assumem formas de gente,
mas não são gente e são retratados em inúmeros contextos ribeirinhos (Galvão 1975),
apresentando semelhanças com entes afro-brasileiros (Pacheco 2004) e indígenas (Vidal
2007; Gow 1995, Reichel-Dolmatoff 1996, Fausto 2001, entre outros), recebendo, assim, as
mais diversas denominações. Eles têm em comum a representação de uma figura protetora,
como “donos”, “mestres” ou “mães”, que zela pelos animais, vegetais e aspectos topográficos
em geral. Entre eles e os humanos há uma ética traduzida pela moderação e respeito nos atos
de manejo ambiental, extração e predação. Tratando dos Piro, no oeste amazônico, Gow diz
sobre esses seres– aos quais se refere, por exemplo, como “forest-person” [pessoa-floresta] ou
“river-person” [pessoa-rio]: “[…] são pessoas no discurso, porque são agentes morais e
passíveis de conhecimento, mas não estão sujeitos ao nascimento e à morte; eles geram e
mantêm espaços por meio de seu conhecimento aterrorizante”110 (Gow 1995:55).

Em Caviana, “encantado” é a categoria genérica usada para se referir à todos os entes,


seja na figura das “mães” e seus “bichos” auxiliares, ou ainda os espíritos de pessoas mortas.
O termo “encantado” faz parte da chamada “religião dos encantados” definida como “uma
realidade mágico-religiosa” (Pacheco 2004:8), tendo como característica geral uma “ênfase
nos aspectos terapêuticos” (Pacheco 2004:15). “Visagem” é o termo mais comumente usado
para se referir à percepção da presença de um “encantado”, sendo assim uma categoria
alusiva. Os “encantados” fazem barulhos, choram, nadam, remam barcos, enfim, fazem as
mesmas coisas que os humanos. Marli, filha de Maria Augusta, conta que, toda vez que vai
pescar na cabeceira do rio, ouve alguém remando uma canoa atrás da sua. Ela teme o barulho
e não olha para trás, para que eles não a empurrem ou a puxem da canoa. Ver vultos é comum
e quase sempre associado às visagens, sobre as quais diz Tereza que, “se mexer com ele, ele
enforca e mata”.

110
“[…] they are ‘people’ in the discourse because they are moral and knowledgeable agents, but they are not
subject to birth or death, they generate and maintain space through their awesome knowledge” (Gow 1995:55).

253
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Outra denominação comum é “assoviador”, termo que designa a presença de um ente,


neste último caso através da audição. Severiano é atualmente vaqueiro em uma fazenda na
Ilha Nova e nos dá um exemplo desta categoria de percepção quando conta o ocorrido após
terem encontrado e retirado da terra uma urna funerária (chamada localmente de igaçaba):

Meu pai tinha visto logo cedo aquele movimento, pessoal aqui chama de
visagem, assoviador. Quando foi assim umas duas horas e cachorro
começou a latir e pegaram assim tipo um pau e bateram na porta da casa.
Pah! E o cara boiou-se lá e todo mundo se acordou. Papai disse, isso aí
deve ser o dono daquela igaçaba que não ficou satisfeito com nós e
quando foi no outro dia nos colocamos de novo lá no mesmo lugar, no
buraco. Jogamos terra em cima e nunca mais vimos nada. (Severiano,
Ilha Nova, Caviana, 2006)

Os relatos acerca dessa cosmologia ribeirinha são fragmentários e me foram


apresentados nos últimos anos da pesquisa, não tendo sido possível me aprofundar neste
âmbito. Não obstante, apresentarei os dados cosmológicos obtidos, dando especial ênfase as
curas praticadas pelas mulheres como resposta aos poderes mágicos humanos e aqueles
provenientes dos encantados.

Entre os “encantados” temos a figura das “mães” que podem estar relacionadas ao
mato, às águas, aos bichos e aos lugares. Dentre estas, a “mãe-do-lugar” é a categoria mais
abrangente, pois ao cuidar dos lugares ela associa tanto a floresta e os animais, quanto as
águas. Depois da “mãe-do-lugar”, a “mãe-do-mato” parece ser a categoria mais usada pelos
ribeirinhos. Ela vive no interior da floresta e a protege contra os humanos que a destroem com
a caça excessiva ou por desnecessárias derrubadas de árvores. Como ente antropomorfo, ela
pode ser vista no meio do mato, numa caça, durante o trekking, na limpeza da roça, na busca
por alimentos ou em sítios antigos. Normalmente se apresenta em forma de mulher, mas há
sempre um índice de que não é gente de verdade, pois sua forma nunca é completamente
humana. Roberto, por exemplo, me relatou tê-la encontrado uma vez e soube identificá-la,
pois ela tinha cabelos de fogo e depois ela teria corrido para o interior da floresta. Ela pode
capturar pessoas e deixá-las presas na floresta durante dias e até matá-las ali de fome e sede.

254
Juliana Salles Machado

Este ente poderoso atua também através de bichos e plantas, no entanto, a figura mais
usualmente associada aos bichos é a “mãe-dos-bichos”, mais relacionada à caça. Os bichos
sob sua influência têm o poder de lançar feitiços contra os humanos, conhecidos como
“flecheiros”, como consequência do não cumprimento da ética da sua relação com os
humanos, como, por exemplo, alguma maldade desnecessária aos animais na hora da caçada
ou a sobrecaça, isto é caçar mais animais do que o necessário para alimentação da família ou
grupo. Um “flecheiro” pode resultar numa “panema”, ou o azar do caçador, que não
conseguirá caçar nada, ou até em seu adoecimento, quando ele pode ficar fraco, emagrecer e
até morrer. Aos bichos, também estão associados aspectos de gente, como quando Tereza fala
que “capivara grita igual gente”. Nesses casos, todos ficam dentro de casa, pois caso contrário
morreriam, como assegura Tereza “sai de dentro de casa para morrer”.

Esta subjetividade entre os bichos é amplamente documentada entre os grupos


indígenas amazônicos (Viveiros de Castro 2002; Fausto 2001; Vilaça 2002, 2006; Lima 2005;
Reichel-Dolmattoff 1996; Descola 2004, 1986) e assume inúmeras formas conforme o local e
etnia. Já entre as plantas, este potencial de subjetividade é muito pouco conhecido. As plantas
possuem uma agência secundária (Gell 1998, 1999), no entanto, elas contêm em si
capacidades agentivas provindas de seu substrato original e da relação com os entes poderosos
do qual são filhos. Essas capacidades podem ser ativadas através de remédios e rituais de
cura, que são ensinados pelos “encantados” para os curadores humanos.

O termo “mãe d´água” é muito também usado em Caviana, apesar de em geral, eles
usarem a figura da “mãe-do-lugar” ao falarem sobre os aspectos mágicos dos bichos da água,
como, por exemplo, o boto (para mais discussões sobre botos ver Slater 1994) ou a cobra
grande (para mais discussões sobre a cobra grande ver Vidal 2007) – ambos seres que
abordarei com mais detalhe abaixo. Dentre os “encantados” encontramos ainda os espíritos de
pessoas mortas, que podem ser parentes ou figuras desconhecidas para as quais os ribeirinhos
usam uma atribuição genérica como “índio” ou “caboclo”. Sobre essa atribuição aos índios,
podemos ver o exemplo citado acima de Severiano e a urna funerária. Segundo ele: “naquela
época eu ainda era criança, não entendia nada, mas meu pai falou que era dos índios, dos
cabanos, como eles chamam”. João Brito, me conta que a Jandira, índia que se casou com um
branco na narrativa histórica da ilha (ver Capítulo1), “aparece nos campos de Monte Alegre
nos dias de lua cheia”. À esses espíritos das pessoas falecidas não é atribuída nenhuma

255
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

feitiçaria específica. Aliado à estes seres, temos também os santos católicos, que em geral não
figuram entre as visões de “encantados”, as chamadas “visagens”, no entanto estão sempre
presentes nas curas e rezas.

Em comum todos os “encantados” tem a capacidade de apresentar-se sob uma forma


quase humana. As “mães” aparecem sempre na forma de mulheres, enquanto os bichos podem
ser também homens, assim como os espíritos de pessoas mortas. São raros os casos de
pessoas que viram esses entes de forma direta, em geral, os relatos apontam para sua
percepção através dos sons (como vozes que chamam seu nome, barulhos de pegadas, de
remos na água, etc.) e de quase-visões. Estes entes poderosos “podem ser vistos em qualquer
lugar e em qualquer hora, mas, quando fogem, sempre vão ou para o mato, ou sobem os
igarapés”, segundo conta Roberto. Mas os “encantados” afetam a vida ribeirinhas
principalmente através de seus poderes mágicos, as chamadas “maldades”. Maldades se
referem a uma ampla gama de ações que os humanos podem sofrer, desde ficarem doentes,
até terem seus animais domésticos mal tratados, sua pesca solta ou estragada. Outros atos
comuns de serem considerados como maldades destes seres são tirar coisas do lugar na casa,
pregar susto em seus moradores, como mexer a rede enquanto estão dormindo, até coisas mais
graves, onde há uma perda de funções vitais, como tirar momentaneamente a voz das pessoas
ou ainda enrijecer seus músculos de forma que não consigam se movimentar por um tempo,
até a captura completa da pessoa. Os “encantados” podem fazer “maldades” diretamente na
forma de feitiços, mais comuns entre as figuras das “mães” ou através dos “flecheiros” e
“mau olhados”, em geral dos bichos. Nem todos os animais possuem esta capacidade mágica,
apenas os bichos, aqueles que mandado por suas “mães” protetoras, podem atingir os
humanos. Outra esfera mágica é a feitiçaria humana, que também é chamada de “maldade” ou
ainda de “coisa feita”. Esta apesar de ser feita por humanos, se utiliza dos poderes mágicos
dos “encantados” para fazê-lo através dos experientes, pessoas capazes de estabelecer uma
relação com estes entes.
Ao longo deste capítulo tratarei da relação destes outros com os ribeirinhos, através de
suas capacidades de agir contra (no caso dos feitiços e flecheiros) e a favor (no caso da cura
pelas plantas) dos humanos. Proponho que a capacidade de interagir com os humanos se dá
através de sua condição antropomorfa, seguindo uma oposição entre o parecer e o ser gente

256
Juliana Salles Machado

feita por eles. No entanto, os ribeirinhos jamais formulam os animais como humanos ou
pessoas (a não ser para o caso específico do boto). Trata-se sempre de uma relação dúbia e
instável, um estado de “quase gente” ou “como gente”, condição aferida através quase-visões
e quase-audições.

No caso particular dos botos temos figuras permanentemente ambíguas, meio bicho,
meio gente (Slater 1994) e que, diferente dos outros animais, parecem possuir uma capacidade
agentiva direta, independente de sua “mãe”. O boto é amplamente conhecido em toda a
amazônia, especialmente entre os contextos ribeirinhos, como figura “mágicas” e
“encantadas” (Slater 1994). Em Caviana ele assume uma figura humana e tem poderes
semelhantes aos dos bichos – pode lançar flecheiros, ou feitiços, como a paralisia da fala e
dos músculos, ou fazer com que a pessoa fique fraca, doente e chegue a morrer. Slater
(1994:45) associa-os à chamada “magia negra” (black arts), nas quais eles seriam auxiliares
dos humanos nas feitiçarias. Segundo Tereza, “o boto vira homem, parece homem mesmo,
mas dá para saber que é boto, porque tem furo na cabeça que joga água”. Essa transformação
em homem ou mulher, é marcada em vários relatos trazidos por Slater (1994), que atribui sua
origem a uma “cidade encantada” (enchanted city) que estaria localizada no fundo das águas
(p.45). Em Caviana, diferentemente dos bichos, o boto prega peças na casa das pessoas: muda
as coisas de lugar, prende os cachorros em cestos de palha ou balança a rede, como aconteceu
com Flávio, no Taxipucu, único caso que ocorreu durante minha estadia na ilha. Ao tomar a
forma de um homem, um boto pode namorar e ter filhos com mulheres; em forma de mulher,
pode fazer um homem se apaixonar e levá-lo para o fundo do rio. Mas, como as figuras das
“mães”, apesar da sua forma humana, o boto também sempre tem um indício de que não é
gente – por exemplo, um órgão genital excepcionalmente grande.

Distinto dos botos, as cobras grandes em Caviana não se apresentam na forma de


gente, mas são entes mágicos poderosos muito temidos pelos ribeirinhos. Há inúmeras
histórias sobre elas, como elas são, onde moram, como atraem pessoas e sobre seus poderes
mágicos que podem, por exemplo, produzir tempestades e maresia – referência também
encontrado no mito Palikur, onde elas fazem “estrondos igual trovão” (Vidal 2007:15). A
maioria não duvida da sua existência, “elas existem mesmo” e entre alguns outros, a dúvida é
sempre confirmada por um caso ocorrido com um parente próximo, ou vivido por ele próprio.

257
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Cito dois relatos sobre a cobra grande que me foram contados no Pracutuba. O segundo foi
contado por Teotônio e se referem a família de Adolfo e Roberto Figueiredo.

Eu convidei meus primos e fomos pescar no Pacoval de caniço e aí


chego lá em um porto e nos começamos a quebrar lenha para fazer o
fogo para fumaçar para espantar o carapanã. E naquela zoada da
quebração pau, ela não tava certamente longe de lá, ouviu. O meu,
coitado, ia ser a vítima certamente. Mas ele não quis. Tava lá no igarapé
grande e nos tava no outro igarapé por nom furo. Que lá eu comecei a
pescar, mas aí de repente veio aquilo no meu sentido (...) quando nos
sentamos para pescar. Aí eu ouvi aquele orro e essa época não tinha
gado nessa região e aí eu ouvi aquele orro daquele bicho. (...) Aí eu
ainda sentei no porto e ainda coloquei umas duas vezes o anzol mas aí
mesmo veio uma coisa e disse para mim ir embora, para eu rapar. Aí eu
chamei, eram meus compadres de fogueira: – compadre Preto,
Compadre Berato, vamos nos embora, que isso não é boa coisa, é cobra
e ela ta perto de nós porque ela olhou o movimento da quebração de pau
para fazer fumaça. Aí atravessamos o igarapé o igarapé de onde nos tava
e fomos embora para casa que ia uma boa distância (...) e quando nos ia
no meio daquele caminho zoou um grande tempo com muito trovão e
relâmpago e nós chegamos. Agora eu fico pensando certas horas, de que
tamanho está esse bicho, se existe ta muito enorme, e se existe, aonde
está? Sei que está aí para cima desse rio, Pacoval. (Deodora, Pracutuba,
2006)

O relato de Deodora reforça esse caráter da quase-visão e da sua percepção por meio
da audição. Também nos mostra a associação desse animal mágico com as águas, seja pelo
local de sua morada, o grande igarapé, ou pela sua capacidade de agir com o “tempo”, isto é,
de produzir chuva, trovões e raios. Entre os ribeirinhos há sempre uma “certeza” da sua
existência e a discussão gira em torno de qual está o seu tamanho e onde ela está agora.

258
Juliana Salles Machado

Eu posso dizer que sim porque meu pai viu neste rio [Pracutuba] logo
acima, na curva do igarapé velho que chamava-se aiwawa. (...) quando
meu pai e um outro sobrinho dele que já estava rapaz vinha atravessando
tinha cessado um enorme tempo, porque esses bichos, é uma coisa que
parece mentira, mas é verídico, elas tem a formalidade de chamar,
abulharem uma tempestade dessas, de mundiar também, essa jibóia. Se a
pessoa estiver ali na beira da ilha e tudo isto aqui é rio, é fundo, e ela
bóia aqui ela tem probabilidade de captar essa pessoa que está na beira
da ilha, demora vem de lá dizendo que é um pau de lenha e ele tava
querendo amarrar o pau e morrer. (Teotônio, Pracutuba, 2006)

O trecho de Teotônio reforça a associação com a água, trazendo agora o fundo do


igarapé como uma associação importante. O perigo constante volta a ser a captura da pessoa,
feita através de seus poderes mágicos. Já o relato que se segue é mais direto, exemplificando a
morte de alguns homens pela cobra grande.

Aqui acima um bocado, abaixo da caridade um pouco. Então há nesse rio,


contavam meus avós e meu pai e muitas pessoas daquela época, que a
cobra grande lá devorou os filhos de um cidadão que se chamava Firmo
Figueiredo [pai de Adolfo]. Ele tinha oito filhos, quatro deles a cobra
papou. Lá no Pacajá, engoliu eles lá e ia botar na praia na beira por onde
andam os barcos. Até um camarada nos contou uma vez. O primeiro que
ela papou, ele saiu de casa conversando coma esposa dele (...) a senhora
trouxe o tição para ele e ele acendeu [o “cachimbão de barro”] , começou
a dar umas baforadas e logo abaixo do porto da casa dele tinha uma
enseada onde tinha um tabocal arreado para cima do rio, mas ele sabia
que a desgraçada já estava lá de baixo daquele tabocal só visando ele (...)
a mulher recebeu de volta o tição e saiu, andou um pouco e lembrou-se e
ficou olhando para ele, daí nisso a montaria vai descendo só mesmo ao
leu da correnteza do rio, que ela viu quando a montaria entrou debaixo da
rama daquele tabocal. Ela viu só a montaria empinar de repente. Assim
que ela olhou, cadê o marido? Todo mundo procurando, nada, já estava no
bucho da cobra grossa e foram achar ele já com 24 horas após, acharam

259
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

ele na praia, na beira. Ela já tinha vomitado ele lá, porque ele estava de
roupa, ela engoliu com roupa e tudo e a barriga não suportou. Chegou lá
fora na baia, ela vomitou ele. E depois dele foram três, quatro filhos do
finado Firmo Figueiredo. A cobra grossa que boiou lá nesse rio Pacajá.
(Teotônio, Pracutuba, 2006)

A cobra grande apresenta-se aqui como um ente poderoso do mundo das águas que
tem o poder de capturar pessoas e levá-las para o fundo dos igarapés, assim como manipular
forças da natureza. Histórias da cobra grande são ouvidas em muitos contextos amazônicos,
mas gostaria de chamar especial atenção ao mito Palikur (Figura 5.1). Meu interesse particular
nesta versão mítica se deve a principalmente três motivos: primeiro, é um grupo arawak,
tronco linguistico atribuído aos índios que habitavam a ilha Caviana no período colonial e que
a população ribeirinha apresenta diversos aspectos de continuidade discutidos ao longo deste
trabalho; segundo, este grupo indígena está assentado em um local geograficamente próximo
ao contexto insular de Caviana; e finalmente, o aspecto mais importante, o mito da cobra
grande do norte do Amapá, apresentou inúmeras semelhanças com os fragmentos da
cosmologia ribeirinha que exploro nesta pesquisa. Já mencionei anteriormente, no Capítulo 3
e na introdução deste capítulo, que os Palikur utilizam do termo “mãe” para se referir a
relação de dono/mestre com os bichos, termo que, como vimos, é amplamente usado em
Caviana. A associação entre os dois contextos, não se dá apenas através de uma referência ao
parentesco para definir essa relação. Na versão dos povos do Uaçá, há sempre uma cobra
benéfica, terapeutica, que domina as curas com plantas e cuida da casa e da saúde das
“pessoas” através de banhos, curas e remédios de planta. Chamada pelo índio-herói de mãe,
ela concentra o ideal da mulher-mãe de Caviana.

Nos relatos que trouxe da ilha, as cobras estão sempre associadas a histórias pessoais
ou familiares. No entanto, apesar da história narrada por Teotônio sobre o ataque da cobra
grande sobre os quatro irmãos de Adolfo, este último nunca me falou muito da cobra. Quando
o questionei sobre o assunto, ele me falou que havia quatro cobras grandes na ilha, que
cobriam a extensão praticamente inteira dos rios e moravam nas suas partes mais fundas. Elas
sempre apareciam e capturavam pessoas, no entanto, duas delas “já morreram”. Sua morte,

260
Figura 5. 1: Acima, cobras grandes sendo flechadas ao sairem da armadilha construida dos Humanos
(apud Vidal 2007); abaixo, foto do banco que representa a cobra Kadaykahu (apud Vidal 2007).

Fonte: Vidal 2007.

261
Juliana Salles Machado

segundo Adolfo, ocorreu em um evento recente no canal perigoso, abaixo da ponta da


Caridade, quando de uma grande explosão feita pela Petrobrás em busca de petróleo na
região. A modernidade matou a cobra grande. As outras duas, desde então não foram mais
vistas na ilha, mas Adolfo acredita que “devem ter ido para o mar”. Vidal (2007:37), ressalta
que também entre os Palikur “A cobra grande precisa ser morta. Ela está inserida em uma
outra dimensão”. E acrescenta: “uma vez a cobra grande eliminada, o índio-herói, encantado,
e o filho da cobra se dirigem para o mar. Vão viver no oceano, mas em um lugar definido
como um “lago”. Estamos, evidentemente, no outro mundo, no fundo do oceano, onde há
gente, cidades, sol, lua e saúva, como no mundo daqui” (Vidal 2007:34).

5.2 A gente que cura, as plantas da cura

“Curador é um termo genérico para aqueles que se dedicam à diversas modalidades de


tratamento de doenças e perturbações, podendo em muitos casos ser sinônimo de pajé”
(Pacheco 2004: 43) – assim define Pacheco na introdução de sua tese sobre a pajelância e a
cura no Maranhão. O autor define a pajelância como uma mistura heterogênea de “elementos
do catolicismo popular, das culturas indígenas, do tambor de mina, da medicina rústica e de
outros componentes da cultura e da religiosidade populares do Maranhão” (Pacheco 2004:43).
Há apenas um pajé em Caviana, apesar de outros serem conhecidos em cidades vizinhas e
fazerem parte da memória local. Não obstante, há pessoas com poderes de cura. Estas podem
tanto ser representadas pela figura dos “médicos da cidade quanto pelos agentes terapêuticos,
para usar o termo de Pacheco, como as parteiras, benzedeiras e experientes. Os remédios e as
plantas que as benzedeiras e as experientes usam são parte importante dos processos de cura.
O termo “remédio” é utilizado tanto para medicamentos industrializados vendidos nas
farmácias de Macapá e Belém, os chamados “remédios de farmácia”, de pouca circulação na
ilha, quanto para determinadas plantas e misturas de plantas manipuladas pelas mulheres, os
“remédios de planta”. São elas: abre-caminho, afasta-espírito, alecrim, alfazema, alho, amor-
crescido, anador, apeí, aranha-rica, arruda, babosa, borboleta, boldo, brasileira, cebalena, cabi,
caneleira, capim-marinho, capim-santo, capitu, catinga-de-mulata, cipó-d’alho, citronela,
cominho, copaíba, corrente de cigana, cravo, cueira, cuia-mansa, desinflama, favaca,

262
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

flecheiro, folha-de-cuia, gengibre, hortelãzinha, japana, jiboinha, manjerona d’angola,


manjericão, marupá, marupazinho, mastruz, matá-pastinho, matruxe, medelha, papagainho,
pariri, pau-de-angola, pega-rapaz, pião-pajé, pimenteira, pirarucu, pombinha, sabugeuira,
terramicina, trevo-roxo, uriza, urubu-caá e vim-de-cá111.

A procura por ambos se baseia nos “processos de busca de saúde” (Pacheco


2004:153), no desejo de tratamento de doenças ou perturbações. Para Tereza “a benzeção
afasta aquilo do corpo da pessoa. Eu assopro para espantar e uso sempre um planta de
remédio. Eu escolho a planta pelo tipo da doença”. Segundo Pacheco, uma perturbação pode
ser definida como:

problemas físicos (dores, febres, partes do corpo inchadas, feridas que


não saram, perda de peso, gravidez complicada ou qualquer tipo de
disfunção orgânica); problemas comportamentais (inquietações, visões,
depressão, insônia, alcoolismo ou qualquer tipo de comportamento
considerado anômalo, problemas afetivos e emocionais (relacionamentos
em crise, falta de parceiros, brigas de família), problemas de trabalho
(desemprego, problemas na roça ou na pesca, comércio com poucos
clientes), falta de sorte crônica (também conhecida como panema ou
panemice112), objetos perdidos ou roubados (Pacheco 2004:151).

Poderíamos adotar o mesmo termo em Caviana, já que todos os itens elencados são
motivo de busca pela cura em Caviana. Essa busca se dá tanto pela procura dos poucos
agentes de saúde presentes na ilha 113, como pela única benzedeira atuante na área de pesquisa.
Fora da área de pesquisa, há um pajé que mora no rio Apani, mas devido à seca nesta região
sua casa se tornou de difícil acesso aos ribeirinhos de outras partes da ilha. Dessa forma, em
caso de perturbações mais complicadas, os ribeirinhos buscam os “experientes” de outros

111
Estão listadas todas as plantas consideradas de remédio. Para mais informações sobre os locais de cultivo,
função, etc. ver tabelas apresentadas acima.
112
Em Caviana, o termo usado seria “panema” ou “panemeira”.
113
Há apenas um agente de saúde na comunidade, localizado no rio Taxipucu, mas esse não possui posto de
atendimento e normalmente não tem muitos remédios e não possui formação de enfermagem. Há um posto de
saúde na comunidade vizinha, no rio Ubuçutuba, mas este também possui poucos remédios. O agente de saúde
responsável, um senhor de bastante idade, acabou aprendendo os remédios de planta, para poder atender a
comunidade que vinha procurá-lo em busca da cura por “remédios de farmácia”.

263
Juliana Salles Machado

locais, geralmente em Afuá (cidade próxima, localizada na ilha de Marajó). Pacheco


(2004:19) distingue a benzedeira e a experiente, respectivamente entre aquela que cura
“através de orações” e outra “que possui certos poderes espirituais, mas não é possuído pelas
entidades (encantados); é reconhecido pela comunidade como alguém que entende das coisas,
e geralmente benze, faz remédios do mato”.

Esta fusão de aspectos religiosos e populares é encontrada em quase todo o norte e


nordeste e mistura elementos da feitiçaria afro-brasileira, do catolicismo, e do xamanismo
indígena (Pacheco 2004; Alvarenga 1949). Caviana se enquadra, pois nesse contexto; não
obstante, há um ponto fundamental de discordância com relação à maioria das expressões
religiosas mencionadas: nesta ilha amazônica não há no processo de cura transe ou possessão.
Tal ausência, já fora observada por Galvão ao tratar das benzedeiras em uma comunidade
ribeirinha do baixo Amazonas:

as rezas, ou orações, que usam, diferem daquelas do ritual católico no


sentido que não constituem invocações ou meios de comunicar-se com a
divindade, mas possuem em si próprias o poder de cura. A forma e o
conteúdo das rezas varia segundo o praticante e a situação específica para
que são destinadas. Há rezas para ossos quebrados, para gripe, para dor
de cabeça, para dor de dentes, etc. O tratamento desses pequenos males é
feita pelas benzedeiras que, de pé, recitam durante largo tempo a reza
apropriada, acompanhando a oração com repetidos sinais da cruz sobre a
parte afetada do corpo do paciente para que sejam realmente eficientes
(Galvão 1976:89).

De acordo com o trecho citado, podemos inferir que as curas das benzedeiras naquele
contexto ribeirinho também não passam pela possessão. A eficiência desse processo estaria
para Galvão no próprio ritual, através do reconhecimento coletivo das pessoas de seus gestos
e das palavras por ela proferidas. A ideia de cura pelo próprio ritual e não por um sistema
maior de crenças que lhe subsidiaria, é também abordada por Pacheco, para quem sua eficácia
estaria no “proferimento performativo”, isto, é, no “reconhecimento de que as palavras podem
realizar coisas” (Pacheco 2004: 21). As curas realizadas pela benzedeira da comunidade
analisada, Tereza, não envolvem nenhum processo de possessão ou transe. Ela inicia com o
diagnóstico da doença e se segue com as orações e remédios, mesmo processo relatado para o

264
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

contexto do baixo amazonas estudado por Galvão (1975). Contudo, um elemento pouco
enfatizado por este autor, como também por Pacheco, é o uso das plantas pelos curadores, não
apenas para benzer, mas também para a continuidade desse processo através da prescrição de
remédios aos pacientes. Ambos os autores atestam a presença de plantas de remédio como
parte integrante dos processos de cura entre os mais diversos curadores (aí inclusos os pajés);
no entanto, pouco dizem sobre o por que do uso das plantas.

Tereza é frequentemente procurada pelos ilhéus que buscam na figura da benzedeira a


cura para seus males (Figura 5.2). O processo de cura se inicia quando uma família procura
Tereza em sua casa ou, em casos mais graves, a chama por intermédio de recados dados por
parentes para que vá a casa do doente. Este ou seus parentes explicam o ocorrido, indicando o
local do corpo que está ruim ou contando suas aflições. A benzedeira então analisa o paciente,
busca uma planta de remédio nos fundos da casa e começa uma série de rezas que são
murmuradas em frente ao doente. Em todos os processos que acompanhei, o doente ficava
sentado (se criança, no colo da mãe) e Tereza em pé diante dele. Quando se tratava de uma
doença em alguma parte do corpo, o gestual e as orações eram feitas por mais tempo naquele
lugar – semelhante ao que Pacheco (2004) chama de “mirada” nos processos de cura na
pajelância maranhense, no entanto, aqui não há a utilização do copo e, como já ressaltei, a
curadora não entra em transe. O sopro de Tereza também é parte de sua performance, aliado à
movimentos que poderiam ser relacionados à extração de algo de dentro do corpo e o seu
fechamento com a planta e um sopro final.

Para benzer em Caviana, não há um preparo prévio, nem uma ritualização maior com
o uso de vestimentas próprias, música ou a participação de outros membros da comunidade.
Benzer é um ato mais intimista, realizado basicamente entre a benzedeira e o doente, podendo
estar presente também algum outro membro da família de ambos. O único objeto utilizado na
cura é um ramo de planta de remédio, podendo também ser utilizada água benta114. Após o
fim da reza é feito o sinal da cruz e a benzedeira receita ao doente um remédio de planta que
deve ser aplicado através de banhos, massagens ou via oral. Em alguns casos são receitados

114
A água é benzida pelos padres quando fazem suas visitas à ilha. No caso de Tereza, ela costuma pedir ao
padre para benzer um grande balde de água. Essa água benta e armazenada e posteriormente usada por ela para
benzer. Ele me conta que sempre tem água benta guardada para caso haja necessidade.

265
Figura 5.2: Tereza benzendo criança doente com planta de remédio. Fotos: Juliana Salles Machado.

266
Juliana Salles Machado

remédios de farmácia, e Tereza me conta que também mistura remédios de farmácia com
remédios de plantas. Tereza não fornece remédios à seu paciente, apenas os prescreve e
seus pacientes vão posteriormente procurá-los entre os seus parentes e amigos. Após o
processo de cura o doente ou seu parente paga a benzedeira com dinheiro. Não há um valor
estipulado já que para benzer Tereza não cobra nada. No entanto, cada família dá o que pode
dependendo da situação e da gravidade da doença tratada pela benzedeira.

Em Caviana, além de benzer, as benzedeiras ensinam seus doentes a manipular


determinadas plantas para fazer remédios que devem ser tomados depois do tratamento inicial
em suas próprias casas. Tereza diz que aprendeu a fazer esses remédios com sua irmã, que é
uma experiente que mora em Afuá. Mas em conversa com os moradores da comunidade, eles
me disseram que essas receitas são frutos do diálogo de Tereza com os encantados. Perguntei
a algumas mulheres qual é a diferença entre a experiente e a benzedeira; todas responderam
que a experiente é a que fala com os encantados. Juntos santos e encantados atuam como
entes de cura. Os encantados, segundo Tereza, “ensinam os remédios e às vezes ensinam
remédios difíceis, que a gente nunca viu”. Ainda segundo Tereza, gente encantada “é dos
antigos, é do começo dos tempos, da época de Adão e Eva”, associando-os assim a um tempo
das origens, ou como quer Vidal no trecho abaixo, um tempo mítico, no qual estes seres
poderosos conviviam com os humanos, que, no entanto assume um aspecto atemporal na
medida em que as curadoras dialogam com estes seres hoje.

Segundo Vidal (2007:32) sobre os povos indígenas do norte do Amapá:

O tempo mítico é um tempo em que acontecimentos passados


continuam presentes como paradigma, que pode ser referido
como ‘antigamente’ ou ‘naquela época’. (...) o tempo do outro
mundo é um outro registro, de uma natureza diferente (...) ‘outro
tempo’ é sinônimo de outro mundo, ou ‘o mundo dos
invisíveis’. Ele é abrangente e permite incorporar ao
conhecimento indígena o novo, sejam elefantes, sereias, cavalos,
objetos introduzidos pelo contato, técnicas, e mesmo, pelo
menos entre os Galibi-Kali´na, Jesus e a fé cristã: tudo já existia
nesse tempo e precisava apenas ser revelado e aparecer
concretamente (Vidal 2007:32)

267
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Vidal chama atenção como estas concepções de tempo não são excludentes,
permitindo a incorporação de novos agentes, novos fatos e servendo de base de sustenção para
interpretações diferenciadas. Este é o mesmo tempo à que Tereza se refere, um tempo que é
ao mesmo tempo ligado aos acontecimentos do passado, como a referência à Adão e Eva, mas
pode ser acessado no presente através do domínio do invisível, dos encantados e entes aos
quais as curadoras, como ela tem acesso. Retorno nesse ponto mais uma vez às palavras de
Vidal sobre o Uaçá, pois os contextos apresentam inúmeros paralelos e acredito que o
contexto indígena documentado no Amapá, possa nos ajudar a entender a cosmologia
ribeirinha em Caviana. Indagando a um índio sobre o tempo mítico Vidal (2007:29) fala: “se
este é o tempo do mundo real, o tempo do outro mundo, onde vivem os ‘bichos’, os
encantados e os Karuãna, não é real também?” A resposta obtida por ela foi: “sim é real. Mas
para Eles, não para nós, porque é invisível, nós não sabemos enxergá-lo, só o pajé. Eu sei
contar, mas não tenho força, não me comunico com Eles”.

Como vimos nos capítulos anteriores, todas as mulheres de Caviana mantêm pequenas
reservas de remédios em seus canteiros e sabem uma ou outra receita para sua fabricação a
partir da mistura de plantas. Algumas mulheres concentram mais espécies e outras sabem
mais sobre seu poder de cura. As primeiras são especialistas em plantas e tornam-se centros
de difusão, como Dica; sendo frequentemente visitadas por outras mulheres da ilha em busca
de matérias-primas para seus remédios. Seu conhecimento normalmente advém de sua mãe ou
de sua sogra e é transmitido às suas filhas ou noras. Já as últimas são as chamadas
“benzedeiras”, como Tereza, ou “experientes”, como sua irmã Nicota que mora em Afuá, que
detêm o conhecimento sobre as plantas e seus usos; ou ainda, distante da comunidade Frei
Crescêncio, o pajé Raimundo. Estes três curadores são visitados e chamados para realizar
curas e indicar quais plantas devem ser usadas e como agir para manter a pessoa curada. Fui
conhecer Nicota, a experiente. Na conversa, ela revelou que já aos sete anos percebeu que
tinha nascido com o dom e conta:

Eu desmaiava e começa a ver vultos, mas não tinha medo. Fiz uma
viagem para baixo da Caridade, em Caviana, e aí eles me apanharam
na embarcação, no meio do tempo [sob chuva forte], e voltaram para

268
Juliana Salles Machado

São João. Minha tia entendia da gaita – ela era parente da minha mãe
–, e me levaram para uma experiente, mas não deu jeito. Depois, me
levaram para Belém, para endireitar, mas não deu jeito. Me levaram
então para o Piarauara, e ele endireitou. Fez um trabalho, e foi três
vezes até que consegui entender eles e eles me entenderem. São
aqueles que se encantaram, que vão ser experientes; tem aqueles que
os caboclos chamam. Os encantados que ensinam os remédios. Os
encantados e santos andam juntos. Os banhos servem para afastar os
espíritos, o mesmo que a defumação feita nas casas.

As experientes têm o dom de conversar com os encantados. Segundo o trecho citado


acima, experientes “são aqueles que se encantaram”, indicando assim um movimento cíclico
entre humanos e encantados e reforçando a instabilidade de ambas condições. É pela
mediação entre os humanos e os encantados que as experientes desvendam o que atinge as
pessoas e os lugares e como tratá-los. Essa conversa, no entanto não se dá, como no caso dos
pajés nas religiões afro-brasileiras, ou ainda no xamanismo indígena, os quais se utilizam da
possessão ou transe, respectivamente (Pacheco 2004). No entanto, não foi possível identificar
como se dá esta conversa. Nicota a descreve como uma forma de compreensão mútua entre
ela e os encantados, como no detalhe do trecho “consegui entender eles e eles me
entenderem”. Ao que parece, ela não ocorre nos sonhos, como entre vários grupos indígenas,
mas ocorre durante suas rezas sem terem seu estado de consciência alterado. No entanto,
como me relatou Nicota, a percepção do dom de conversar com os entes não-humanas passa
por desmaios e dores de cabeça, sinais de alterações da percepção. Contudo, tais alterações
não parecem ser indicadores de uma entrada do ente em seu corpo, como no caso dos ritos de
possessão. Tal distinção fica evidente no final do trecho citado acima, “são aqueles que se
encantaram, que vão ser experientes; tem aqueles que os caboclos chamam”, no qual Nicota
parece diferenciar o que ela faz daqueles que “chamam caboclos”, isto é, daqueles que
invocam espíritos encantados, ao que nos parece ser uma referência a um ato de possessão.
Ainda neste relato, Nicota diz “são aqueles que se encantaram, que vão ser experientes”,
sugerindo que esses espíritos posteriormente virariam gente como ela, capazes de manter um
contato com a sua origem, isto é com os encantados.Trata-se, pois, de ver e ouvir o invisível.
Em uma conversa na casa do pai de Cristiane na Prainha, ela reforça esta distinção entre o que

269
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

chama de “caboclo” e as benzedeiras e experientes, dando a entender que os “caboclos”


chamariam os encantados, no sentido da possessão do corpo dos caboclos por estes espíritos,
ela diz “O Brancão virou caboclo e está querendo virar encantado”. Referindo-se ainda ao
constante perigo de uma transformação total daqueles que estão em contato com estes entes.
Roberto usa a expressão “tá batendo maracá”, para se referir a forma que os “caboclos”
chamam os encantados. Tais dados surgiram no final desta pesquisa e de forma muito
fragmentada, não sendo possível me aprofundar sobre este aspecto. Não obstante a falta de
dados, as benzedeiras e as experientes de Caviana diferem ainda dos herbalistas e/ou raizeiros,
já que estes não se figuram como mediadores entre as esferas humanas e não-humanas, por
não terem contato direto com estes entes.

Voltemos aos remédios de planta. As formas de utilização de cada uma são muito
diferentes, mas as mais comuns são os chás para beber, a mistura de plantas com álcool, água
benta, cachaça ou azeites como o de andiroba e copaíba, usados para banhos, ou ainda
plantadas em vasos, canteiros e terreiros em volta das casas ou queimadas para defumá-las.
Como mencionamos, as funções variam entre a cura de doenças comuns (diarreia e vômito,
inflamações, dores e febre) até as mais graves como derrame, dengue e malária, entre muitas
outras. As curas também agem contra as “maldades”; elas curam “flecheiros” de bichos e
feitiços de “mães-do-mato”, feitiços humanos, e “panema”, entre outros. Há ainda uma outra
forma de cura relacionada ao tratamento dos lugares.

Cada tipo de doença ou perturbação apresenta uma sintomatologia distinta: vômito,


diarreia, dores e febre são entendidos como sinais de feitiços (humanos e de “encantados”) ou
outras formas de “maldade” (como mau olhado) e são tratadas com “remédios de planta”,
através de chás e banhos. Quando o problema persiste, as benzedeiras ou experientes são
procuradas. Os remédios de farmácia também são usados, mas eles só curariam os sintomas,
já que o corpo só é plenamente curado quando se trata a “maldade” ou a “coisa” que a está
prejudicando, tarefa dos curadores. A cura é feita através da ação da experiente ou benzedeira,
como intermediária dos poderes de entes e das plantas. Segundo Tereza, benzer afasta
“aquilo” do corpo da pessoa, e ela “assopra para espantar e sempre usa planta de remédio”.
Ela escolhe “a planta pelo tipo de remédio”. Tereza diz ainda que o Preto Velho, antigo

270
Juliana Salles Machado

morador do Turezinho, é que era pajé e benzedor: “ele benze e ensina remédio”. Pergunto
pela diferença entre o pajé e ela, benzedeira, e ela responde: “a diferença não é nenhuma, mas
eu não sou pajé”.

As plantas agem nesse processo através da ativação, pelas curadoras, de seu substrato
não-humano original. As plantas sendo vegetais são filhas das “mães-do-mato” ou da “mães-
dos-lugares” e contêm em si poderes terapêuticos relacionados a sua origem. No entanto,
possuem pouca agência, ou uma agência secundária (1998, 1999), e não assumem uma forma
antropomorfa, ou seja, não conseguem por si só utilizar seus poderes (há algumas exceções
como as plantas contra mau-olhado plantadas no esteio das casas). Os vegetais, ao serem
domesticados pelas mulheres em seus canteiros se tornam uma espécie de filhos adotivos, as
mulheres então ativam seus poderes terapêuticos através da fabricação de remédios, tornando-
os assim fundamentais no processo de cura.

5.3 As Doenças e Perturbações

Acompanhei algumas ações terapêuticas de Tereza, dos quais descrevo duas, uma em
sua casa e uma na casa do doente. No primeiro exemplo, um casal chegou à casa de Tereza
com seu filho doente. A busca de cura de crianças é a mais comum e Tereza é muito
requisitada para isso. Tereza recebeu o casal e seu filho na sala da frente de sua casa e
perguntou o que acontecia com a criança. A mãe explicou que o bebê ainda pequeno sofria de
vômitos e diarreia. Tereza ficou quieta um momento e em seguida foi buscar uma folha em
seu canteiro. Quando retornou a sala, a mãe colocou o seu filho no colo, enquanto o pai estava
sentado em um banco mais afastado. Tereza iniciou com repetidos sinais da cruz na criança,
enquanto segurava em sua mão direita a folha de remédio. Continuou a repetir os gestos do
sinal da cruz, começando pela cabeça e descendo pelo corpo, demorando-se mais na região da
barriga. Enquanto fazia os sinais, murmurava rezas pouco compreensíveis. Apenas alguns
nomes de santos eram invocados em um tom mais alto e claro. Assoprou a cabeça do bebê
algumas vezes e dessa maneira encerrou o ato de cura. Receitou para a mãe um remédio de
planta que ela deveria misturar com o leite do peito e dar para o bebê tomar três dias. A

271
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

família então entrou para a cozinha e tomou um café com Tereza e Adolfo e pagou a
benzedeira com duas moedas de um real.

Na mesma semana ocorreu uma outra cura semelhante na casa de Tereza, mas neste
caso tratava-se de uma mulher adulta que sentia dores fortes na coluna e no quadril. Tereza
também a benzeu na sala da frente, logo antes do almoço. Tanto a família com a criança
doente quanto a mulher viviam próximo ao igarapé Ubuçutuba no extremo oeste da ilha, já no
fim da área considerada como da comunidade Frei Crescêncio. A grande maioria dos
membros da comunidade acredita que Tereza é uma boa benzedeira, capaz de curar uma série
de doenças. Mas também dizem que atualmente na ilha não existem mais pajés poderosos
como antigamente. Um exemplo disto é o ocorrido no igarapé Taxipucu quando Tereza tentou
curar uma “maldade” de uma mulher duas vezes, os sintomas sumiram temporariamente, mas
retornaram depois de certo tempo. Tereza então orientou a mulher e seus parentes a
procurarem um experiente em Afuá, pois a “coisa ruim” era muito forte. Também esta não
teve sucesso e a família acabou por trazer um Pajé, Raimundo, de uma parte distante da ilha.

Entre os atos de cura praticados por Tereza, é comum o tratamento de ferimentos e


batidas, localmente chamados de “baque”. Nesses casos é preciso “puxar” o local
traumatizado, ou seja, fazer uma espécie de massagem com remédios e unguentos à base de
plantas. Não é preciso uma benzedeira para “puxar um baque”, mas as benzedeiras em geral
também o fazem. Não se trata de um processo de cura baseado em rezas, e não há a mesma
performance frente ao doente ou à área machucada. Nesse caso é só aplicado o remédio; o que
difere esse processo de uma aplicação usual é que apenas algumas pessoas são tidas como
boas para “puxar”. Estas sabem qual remédio deve ser usado e como aplicá-lo, identificando a
forma correta de massagear o local. É comum encontrarmos uma pessoa boa de “puxar” em
cada grupo doméstico. No Taxipucu, por exemplo, das seis casas ocupadas em um grande
agrupamento, apenas uma sabia “puxar”: tratava-se de um homem que posteriormente veio a
se tornar um “agente de saúde” do governo. Durante minha pesquisa eu fui considerada boa
para “puxar”, isto porque eu tinha remédios (“de farmácia”) adequados para curar os
machucados, e aplicava-os ora com massagem, ora através de curativos. Creio que um dos
aspectos importantes para que eu fosse reconhecida como alguém que sabe “puxar” foi eu ter

272
Juliana Salles Machado

tratado uma ferida de Adolfo, marido de Tereza. Adolfo é um senhor muito respeitado e
querido por todos e nos últimos anos de minha pesquisa estava muito fraco e vivia doente.
Como morei na casa dele comecei a tratar um ferimento que ele tinha na orelha e depois um
“baque” oriundo de uma queda no salão ao lado de sua casa. A comunidade estava
preocupada com ele e queriam levá-lo à cidade (o que eu também recomendei), mas ele não
queria. Portanto usei os meus medicamentos e o pouco conhecimento que tinha para tentar
tratá-lo. Sua melhora impressionou alguns membros da comunidade, que passaram a comentar
a cura e por vezes fui solicitada a “puxar” alguns baques, como um na perna de Marli do
Socó.

O termo “puxar” dá a ideia de tirar algo de dentro do corpo. Tereza também é


reconhecida por saber “puxar”, atividade que realiza desde pequena e que aprendeu com a
mãe, que também cuidava de doentes. Ela conta que, quando conseguia curá-los, seu pai a
chamava de feiticeira. Essa ideia nos remete ao que Pacheco (2004) se refere como modelo
etiológico-terapêutico, ou modelo ontológico, que é compartilhado entre os curadores em
geral e os biomédicos, segundo o qual:

existe, em primeiro lugar, um “ser” da doença, no sentido de que a


doença é algo que tem uma existência objetiva; em segundo lugar, a
doença é isolável e tem nome, a terapêutica sendo, portanto objetiva; em
terceiro lugar, a doença é exógena, ou seja, é um acidente devido à ação
de um elemento estranho, e não parte do próprio sujeito; finalmente, a
doença é a presença de algo, e não a ausência de algo (como no caso de
certas culturas indígenas em que a perturbação resulta do roubo de alma
do doente) (Pacheco 2004:156).

Nesse sentido, poderíamos entender a ideia da cura através do “puxar” como algo que
o curador de fato esteja tirando da pessoa doente – este algo sendo estranho ao seu corpo e o
responsável pelo seu mal estar. Esse processo simples de cura, no entanto, difere do que a
benzedeira faz. Enquanto a ferida pode ser curada por bons puxadores, se ela persiste, isto é,
se apesar do tratamento ela “não quer fechar” ou se ela se torna crônica, então o caso passa a
ser da benzedeira. Isso porque, feridas que não cicatrizam ou perturbações crônicas são
indicadores de “coisas feitas”, “quebranto” ou “maldades”, semelhantes ao que Pacheco
(2004) chama de “doenças de pajé” (em oposição à doenças normais ou comuns). Nestes

273
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

casos, os ribeirinhos buscam tratamento com a benzedeira e se não for suficiente com uma
experiente. “Coisas feitas” e “maldades” são, em geral, oriundas de feitiçarias humanas de
forma direta ou através do intermédio de algum experiente. Conforme Gow nos indica, apesar
da feitiçaria ser humana “o poder de matar deriva, em última instância, desses seres
poderosos” (Gow 1995:54-55), se referindo aos entes da floresta e das águas. Em Caviana, o
poder usado pelos humanos seja na aplicação de feitiços (referidos localmente como “coisas
feitas”, “quebranto” e “maldades”) como para a sua cura (através da figura da “benzedeira” e
da “experiente”) também é exógeno, isto é, também advém da esfera não-humana. Este outro
é, no entanto, um conjunto de entes (os “encantados”) que concentram múltiplos poderes.

Não há uma distinção clara entre bichos e animais, já que toda essa cosmologia é
apresentada de forma lacônica e fragmentária. No entanto, podemos inferir uma diferença
entre tais categorias, já que apenas os bichos são capazes de manipular poderes contra os
humanos. Tereza explica que “bicho não dá mau olhado, ele flecha, assombra, espanta. Bicho
flechou, assombrou, espantou. Dá febre e, se não tiver trato, leva as pessoas para o buraco. Às
vezes, você não vê o bicho, passa perto dele, e ele assombrou”. Há também uma associação
com um ente específico, como com a “mãe-dos-bichos” que são suas protetoras e fonte de
seus poderes. Tais poderes e capacidades são apenas pertencentes aos bichos, situações para
as quais não é usado o termo animal. Portanto, os animais seriam aqueles seres da natureza
desprovidos de poderes subjetivos, enquanto os bichos estão relacionados diretamente aos
entes na forma de “filhos” e tem poderes que podem ser usados contra os humanos. Fausto
(2008, 2007, 2001) trata de uma diferenciação semelhante para o contexto indígena do Xingu,
propondo que bicho seria um animal-gente, assumindo assim uma posição de quase gente.
Sendo a figura das “mãe-dos-bichos” antropomórfica e os bichos sendo seus filhos,
poderíamos também associar essa capacidade agentiva dos bichos em Caviana como uma
forma semi humanizada.

Esses entes podem atuar de diversas maneiras, sendo os “flecheiros” e as chamadas


“visagens” as mais comuns. Os “flecheiros” são diversos tipos de feitiço e mau-olhado
atribuídos a bichos que, através de suas “mães” assumem poderes para realizar essas
“maldades”. A “maldade” mais comum feita pelos bichos é o mau olhado que causa

274
Juliana Salles Machado

“panema”, ou seja, uma falta de sorte crônica (não exclusivamente na caça). Já as “visagens”,
são assédios de encantados em geral não causam panema, elas aplicam sustos, fazem
brincadeiras (como trocar os objetos de lugar, sumir com objetos, maltratar animais
domésticos) e em casos extremos, podem deixar a pessoa doente (os sintomas mais comuns
são fraqueza, perda de peso, palidez, apatia) e causar a sua morte. Todas as “coisas feitas”,
“quebrantos” e “maldades” tem cura, desde que, como nos apontou Pacheco (2004:236) se
encontre alguém com poderes maiores do que aqueles de quem realizou o serviço.

Com as crianças, acontece o quebranto, que causa “vômito, disenteria e febre e pode
até morrer. Com fome e quase de jejum, é pior”. Segundo Tereza, quebranto é “quando
alguém olha demais e fala que é muito bonito, que queria igual. Quando essa pessoa tem
alguma maldade no olhar, dá quebranto na criança, que pode até morrer”. Explicou ainda que
“olho gordo, quem dá é gente, e não bicho; o do bicho é diferente”. Quando vai benzer ela
sabe se o mal é de gente ou de bicho: “Os dois são perigosos e podem matar, dependendo da
força de quem deu e de se a pessoa souber ou não curar”.

Tendo em vista a influência indígena no cotidiano e cosmologia ribeirinho, vejamos


um exemplo indígena sobre como ocorre a cura de doenças. Entre os Parakanã, em um
contexto tupi guarani, os animais predadores são auxiliares dos pajés mais poderosos. Tais
espíritos auxiliares “aparecem como os entes que ajudam na cura, e que estão ligados de
modo mais estreito ao pajé, servindo-lhe de intermediários ou mensageiros para chamar os
espíritos mais distantes” e Fausto completa “conforme o grupo, o xamã pode possuir controle
sobre uma ou ambas as classes de espíritos, mas a segunda costuma ser a dos xerimbabos
mais bem domesticados, quase filhos adotivos, com os quais se estabelece uma identidade
mais forte. Daí serem amiúde glosados como espíritos familiares” (Fausto 2001:339).

As curas das benzedeiras parecem semelhantes à idéia de “espíritos auxiliares” do


contexto indígena. Em Caviana a figura do pajé seria substituída pela da benzedeira ou
experiente, que estabeleceria um diálogo com alguns espíritos que a ajudam na cura e
ensinam-lhe os remédios. Cada benzedeira possui um ente, em geral um Santo, com quem tem
mais afinidade e o qual é invocado durante as rezas. Ele ajuda na cura e serve de
intermediário para chamar outros entes. Os entes usados na cura são figuras católicas como os
santos, tidos como poderosos e do bem. Estas figuras aparecem com as mesmas funções ou
papéis exercidos pelos xerimbabos ou espíritos auxiliares na cultura ameríndia. Há, no

275
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

entanto, uma diferença fundamental, no xamanismo há a saída da alma do xamã através de um


estado alterado de transe ou durante o sonho, quando se entra em contato com um espírito
animal. No caso das benzedeiras e experientes, não parece haver a entrada ou a saída da alma,
assim como o espírito auxiliar permanece externo a sua pessoa. Como se dá a forma de
contato entre a curadora e seu espírito auxiliar e/ou santo, não está clara, como mencionei
anteriormente. Ao que parece a dimensão dos encantados e dos santos não está em outro
lugar, para o qual a alma da curadora teria que viajar, como nos fundos dos rios como é
comum nas religiões afro-brasileiras e também ameríndias; mas ela conviveria com a
dimensão humana, sendo apenas acessível a pessoas que tenham o dom de os enxergar ou
ouvir.

Gostaria de retomar a oposição mencionada acima, entre as categorias de doenças


onde há a presença e aquelas onde há a ausência de algo no corpo do doente. Segundo Fausto
sobre os Parakanã: “em quase todos os grupos amazônicos encontramos duas grandes
categorias básicas de doença, fundadas em uma concepção dual dos constituintes da pessoa:
há enfermidades causadas pela introdução de uma objeto patogênico no corpo e doenças que
resultam da exteriorização, perda, rapto de um componente imaterial, normalmente concebido
como um princípio vital e/ou de singularização da pessoa” (2001:337). Em Caviana, como
mencionamos, grande parte das doenças são tratadas a partir da noção da presença de objetos
estranhos no corpo e a sua cura, nesses casos, seria a partir da ideia da retirada deles do corpo
do doente. No entanto, há alguns exemplos, considerados mais graves pelos ribeirinhos, onde
ocorre o contrário. Eles normalmente são frutos das “visagens” e estão relacionados ao
assédio de entes poderosos vindos das águas, mas também podendo ser oriundos do interior
da floresta. Quando perguntados por que têm medo das visagens, em geral as respostas dos
ribeirinhos são “elas levam a gente lá pro fundo do igarapé” ou “leva para o meio do mato”.
Um exemplo elucidador, é o caso relatado por Tereza sobre uma de suas filhas. Inês começou
a ter visagens no meio da noite, ela ouvia alguém a chamar na beira do rio e quase que
hipnotizada ia se dirigindo para a beira. Sua mãe tinha que ficar atenta e não permitir que ela
saísse. Segundo Tereza eles estavam a chamando e se ela fosse eles a levavam para o fundo
do rio. Situação semelhante ao medo expresso por Marli no Socó. Sempre que sai à noite na
canoa para pescar, ela escuta alguém remando em uma canoa atrás, mas não tem coragem de

276
Juliana Salles Machado

olhar para trás, pois, segundo ela, não se deve olhar de frente para a visagem. Perguntada o
que poderia ocorrer se olhasse, ela me disse que ele poderia virar a canoa e levá-la embora.
Esses e outros exemplos se referem a um ser antropomórfico associado em geral à água, mas
por vezes à floresta. Eles também são referidos como encantados, mas não estão associados à
pessoas falecidas. As visagens despertam o medo de que haja um rapto das pessoas pelo ente
antropomorfizado. Se uma pessoa começa a ter visagens muitas vezes, isto é, se é assediado
frequentemente por estes espíritos em forma de gente, ela começa a adoecer. Os sinais
comuns são aqueles já mencionados, como a fraqueza, a perda de vitalidade e peso e apatia,
sintomas que, se não forem tratados, podem levar a morte.

Um dos exemplos tidos como graves em Caviana é o de Flavio no Taxipucu. Desde


que construiu sua casa nova, no grupo doméstico de seu pai, ele teve visagens. Elas não
aparecem para sua esposa nem para seu filho pequeno, apenas para ele. A descrição que ele
faz é de uma mulher branca e alta saindo da beira do igarapé e vindo em direção à sua casa.
Ele escuta batidas nas janelas e sente mexerem na sua rede. Também já aconteceu de terem
posto um balde na cabeça do seu cachorro, soltarem as amarras do matapí de sua esposa ou
ainda trocarem os nós de sua amarração. O assédio foi ficando cada vez mais frequente e
Flávio foi perdendo peso e sua força. Enquanto estive lá ocorreu algo que todos consideraram
muito perigoso. Flavio estava deitado na rede sozinho em casa, enquanto sua esposa e filho
estavam na casa de seus pais. Ele estava dormindo quando sentiu a sua rede ser balançada
violentamente. Ele quis gritar e pedir socorro, mas tinha perdido a voz. Em seguida, quis se
levantar, mas também o seu corpo não se movia. Ele tinha perdido toda mobilidade. Seus
parentes, que se encontravam na casa de seu pai Roberto que fica no mesmo grupo doméstico,
mas do outro lado do terreiro, ouviram um barulho alto de “pancada” e saíram para ver o que
era. Encontraram Flavio ainda deitado na rede sem se mexer. Aos poucos ele foi recuperando
o movimento. Após esse dia, a família de Flávio foi morar temporariamente na casa de seu
pai, enquanto ele servia de ‘isca’ para que seus irmãos armados pudessem matar a visagem.
Todos acreditavam se tratar de um boto, que se transformava em mulher. Iriam tentar matá-lo
enquanto ainda estivesse em transformação na beira do igarapé. Nessa noite, eu fiquei com a
família de Flavio na casa de seu pai, enquanto dois de seus irmãos passaram a noite em cima
das árvores que ficavam na beira do rio ao lado do caminho para a casa de Flávio. De
madrugada, quase de manhã, ouvimos tiros. Eles acharam que acertaram o boto, mas não

277
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

encontraram seu corpo. Perguntada sobre o caso, Tereza diz triste “eu falei, mas eles não
cuidam...”.

Perguntei a Tereza por que as casas do Taxipucu estavam tendo tantos problemas com
os encantados. Tereza explica-me:

Olha, lá é um lugar perigoso. O rio é perigoso porque ele é central.


Vai até o centro da ilha. Lá passa muita gente, a cada barco com
passageiro, gente passa, entra na casa. Não é bom. E ninguém cuida.
[...] cada lugar tem sua mãe, a mãe de cada lugar – não é a mesma
coisa que a mãe-do-mato. Como uma mãe que cuida de seu filho, ela
protege, zela o lugar e, quando acha que não estão tratando bem o
lugar, ela fica brava, e acontece essas coisas. Quando alguém chega no
lugar, tem que pedir licença para entrar e para construir sua casa,
respeitando o lugar. É preciso fazer muita defumação e curar o lugar.
Pode ser com água benta, com planta, vinagre, sal. Cuidar da sua casa
não é só limpar e consertar as coisas – é cuidar para permanecerem no
lugar como sua casa, curando o lugar com constantes defumações,
cuidado e seleção de plantas e banhos. Lá no Taxipucu, ninguém
cuida. Só fazem quando acontece alguma coisa e depois deixam de
mão. Não pode, tem que cuidar constantemente. Porque não é só
rezar, Deus disse que ele ajuda, mas todo mundo tem que fazer a sua
parte. As curas são a parte do trabalho do homem perante Deus para
manter-se vivo e bem.

Ela explica ainda que “as plantas são as fontes das curas dos lugares, assim como das
pessoas; elas apaziguam os espíritos”. Os poderes que perturbam a saúde e a sanidade das
pessoas podem ter diversas origens, como a mãe-dos-lugares, a mãe-dos-bichos e as pessoas.
Benzedeiras, pajés e experientes podem identificar a origem e podem curar ou não os males
do doente, dependendo de seu conhecimento e habilidade. Tereza diz que sempre curou e
cuidou de sua casa. Mesmo assim, duas filhas suas foram “atentadas”. Conta que elas “não

278
Juliana Salles Machado

podiam chegar perto do igarapé, que à noite não podiam dormir e queriam sair correndo para
o meio do mato ou se jogar no igarapé. Era preciso curá-las e segurá-las em casa”. A mãe-d-
lugar e o próprio lugar estão associados ao igarapé; dele vêm a força e as características de
suas mães e dos espíritos. Nas palavras de Tereza: “Igarapés profundos e grandes como esses
centrais, que passam por muitos lugares e matas e têm muitos bichos, são muito poderosos e
perigosos”.

Exemplos como este reforçam a existência desses dois tipos de doenças também entre
os ribeirinhos de Caviana. Assim, mais do que uma dicotomia entre curas para o corpo ou
para o espírito, teríamos uma para a presença de objetos estranhos ao corpo (“objetos
patogênicos”), como nos casos mais evidentes relacionados aos flecheiros de bichos, mas
também o mau olhado e a feitiçaria sempre referidos como coisas (“coisa feita”) que devem
ser tiradas do corpo (“tira a coisa ruim”); e outra para a ausência da vitalidade da pessoa,
como aqueles relacionados aos encantados e visagens (como no caso da perda dos
movimentos, da fraqueza, da perda da voz, etc.). Para ambos, as curas passam pelas
benzedeiras e experientes e com maior dificuldade pelos pajés. Os sintomas de cada um são
parecidos aos que Fausto (2001) menciona para os grupos indígenas: “a sintomatologia dessas
categorias de enfermidades também costuma ser diversa: dor em locais determinados, nos
casos diagnosticados como introdução de objetos patogênicos; mal-estar geral, febre sem
razão aparente, desânimo, tristeza; em suma, perda de vitalidade, nos casos de soul loss”
(Fausto 2001:337). No entanto em Caviana, não parece haver uma figura como o ser
antropofágico das cosmologias indígenas, responsável por “comer” ou “retalhar” o interior
das pessoas. O processo de perda da vitalidade não é explicado pelos ribeirinhos, apenas é
indicado como uma forma de rapto da pessoa, em geral associado ao meio aquático.

Como no exemplo de Flavio do Taxipucu, uma cura malfeita recai sobre o morador ou
os moradores (homens ou mulheres, dependendo do espírito que flechou – quando oriundo de
um bicho - ou enfeitiçou a pessoa – no caso de um encantado ou feitiçaria humana). O
diagnóstico é dado pelo curador e uma vez identificado, as pessoas e os lugares à ela
associados, como sua casa, terreiro e roça, são tratados com contínuos atos de cura e uso de
remédios. Nesse caso, o mais comum são os banhos, as defumações e o plantio de
determinadas espécies nos espaços afetados. Normalmente, essas doenças exigem tratamento
prolongado, que são constantemente repetidos pelas mulheres. Elas devem proteger a casa,

279
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

mantendo-a livre de maldades e feitiços e garantindo o espaço entre os entes do mato. Para
tanto, elas mantêm uma constante rede de troca de plantas entre seus familiares e amigos.

A rede de trocas é uma esfera de apoio mútuo e sua manutenção é importante para os
processos de cura das casas e das pessoas. Ao mesmo tempo, ela também tem a função de
controle, pois integrá-la implica em saber quem tem quais plantas e quais conhecimentos
sobre doenças, perturbações e curas. Tal conhecimento permite um controle sobre quem faz
ou tem o potencial de lançar feitiços ou conversar com os encantados. Apesar da pouca
importância dada pelos homens a tudo que se refere às feitiçarias humanas (chamadas de
“besteiras”) e aos remédios de planta, muitas vezes são os homens que transportam as plantas
de uma casa para outra – já que são eles que pilotam os barcos –, e, como vimos no exemplo
de Flavio no Taxipucu, foram os homens que saíram à noite à caça dos encantados. Entre os
homens as visagens e os flecheiros de bichos e panemas são os mais temidos, e muitos
seguem atos de prevenção e cura e restrições alimentares, principalmente àquelas relacionadas
as carne de caça, assim como cobram de suas mulheres as curas no caso de doenças e
“maldades”.

A “panema” ou “panemeira” é comum entre os caçadores e é identificada pela


dificuldade que ele tem para caçar. Quando isso acontece, o homem procura alguém para
curá-lo. Um banho conhecido para tratar panemeira é a mistura de buchinha-do-mato com
aningapara e coratá. Além de lavar o corpo com esse remédio de planta, o homem lava
também sua linha e sua espingarda. Em Caviana, acredita-se que, se uma mulher grávida
dorme muito, ela provoca panema no caçador e, se ela comer carne de caça sem curá-la, deve-
se tratar também o caçador. Nesse caso, é comum a grávida embrulhar o calcanhar do caçador
com a bainha de sua saia e morder. No entanto, quando a grávida não quer que ele se cure, ele
mesmo pode passar pimenta malagueta em seus braços e nuca para poder voltar a caçar. Outro
tratamento conhecido para a carne da caça é que depois de comê-la se guarde o osso do bicho
para fazer um chá. Assim, tornam a caça comestível.

Mas a panema pode estar associada a outros contextos que não o da caça. Um exemplo
é a do fogo que as mulheres mantêm sempre acesso na cozinha. Elas dizem que é para evitar a
panema, isto é, para não ficar sem comida nem felicidade. Acredita-se que o calor do fogo e

280
Juliana Salles Machado

das pessoas é que mantém a casa em pé. Enquanto uma casa velha tiver gente e fogo, não cai;
se as pessoas saírem, ela cai. No caso de mulheres grávidas que pegam panema por ter
comido carne de caça sem antes de torná-la comestível, há várias formas de tratamento. Uma
delas é assar o fígado do animal caçado e mascá-lo com pimenta malagueta, e depois jogá-lo
para um cachorro comer.

5.4 A feitiçaria humana

Por serem as responsáveis pela cura de sua família e de sua casa – portanto, mais
próximas do mundo não-humano –, as mulheres também são tidas como potencialmente
perigosas. Muitos feitiços são atribuídos às mulheres de outras casas, normalmente atingindo
homens. Suas motivações são diversas, mas a grande maioria tem relação com um namoro
rompido, um casamento não realizado ou um filho não reconhecido. Acredita-se que elas
façam feitiços ou se valham de experientes para fazê-los. É papel da esposa ou da mãe
prevenir e curar esses feitiços lançados contra seu marido ou filho. Se ela falhar, uma
benzedeira ou experiente vai realizar a cura, mas é sua função manter a pessoa bem depois de
tratada. Curas, feitiços, trocas de plantas e todas as etapas envolvidas nesses processos são
pouco faladas em público. A troca de informações sobre quem está com qual doença ou
perturbação e quem precisa de que planta para curá-la é intensa entre as mulheres e
normalmente acontece no fundo da cozinha ou perto dos canteiros, lugares que os homens
pouco vão. O perigo associado ao conhecimento das plantas e ao papel das mulheres como
mediadoras entre humanos e não-humanos fica evidente nos grupos domésticos maiores, em
que há uma desconfiança generalizada entre as mulheres. Foi na relação entre as cunhadas é
que encontrei mais tensão e onde as acusações de feitiçaria foram mais frequentes. Essa
situação é agravada com a entrada de uma nova mulher no grupo doméstico. Neste momento,
ela ainda mora na casa de sua sogra e sua aceitação na casa é questionada pelas noras mais
antigas, que colocam em dúvida suas “verdadeiras intenções” com relação ao marido e à
família. Há suspeitas de feitiçaria e dúvidas quanto à paternidade de seus dos filhos. A
desconfiança ocorre entre as cunhadas, que, em geral, são primas entre si, mas ela nunca é
comentada com a sogra ou o sogro. Veríssima, prima de Tereza me disse “papai dizia que

281
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

Tereza é feiticeira”. As mulheres influenciam seus maridos a partilhar dessa desconfiança,


fazendo com que os homens casados pouco se aproximem da nova cunhada.

Um exemplo que acompanhei é o de Rosa,115 que acabara de ingressar num grupo


doméstico e sofreu a desconfiança de suas cunhadas e de seus maridos. Suas cunhadas
desconfiavam de que Rosa praticava feitiçaria. Tal desconfiança estava associada ao pai de
Rosa que sabia fazer orações ruins e feitiçaria. Segundo suas cunhadas, quando Rosa se casou,
seu pai teria enviado-lhe as orações escritas. Um dos irmãos casados, Sérgio, diz ter visto tais
orações, e que o pajé que foi tratá-la jogou-as no mar. No entanto, dizem que isso não
adiantou, pois Rosa já as teria decorado de tanto repeti-las com o pai.

Além da acusação de feitiçaria Rosa também apresentava sintomas do que foi me


descrito como “coisa ruim”. No dia em que cheguei a Caviana, me contaram que, quando
chegou à casa da sogra, Rosa “teve uma coisa e começou a forcejar”, e três homens
precisaram segurá-la, para que não mordesse e avançasse nas pessoas. Seus membros tremiam
e ela fazia muita força. Tentaram acalmá-la, mas não conseguiram e então mandaram chamar
uma benzedeira. Conta-se que, quando esta chegou perto, ela avançou como uma cobra, com
a boca aberta para mordê-la. A benzedeira segurou-a pelos cabelos e a curou com rezas e
plantas, até que conseguiu fazê-la dormir. Depois me contou que um espírito mal tinha
tomado conta dela. Isso voltou a acontecer outras vezes, até que levaram Rosa a um
experiente de Afuá, pois a benzedeira dizia que “não podia com ela”. O experiente curou-a
novamente e ela ficou bem algum tempo, mas, mais tarde, voltou a ter problemas. Quando
voltou para casa, depois de mais uma viagem a Macapá, o sogro de Rosa, mandou chamar um
pajé muito forte, morador do rio Apani, em Caviana. Este finalmente conseguiu curá-la. Não
obstante, Rosa me disse que não pode fazer força, que começa a vomitar sangue e por isso é
vista como “doente” na casa de sua sogra, que em função de sua condição não a faz trabalhar
tanto nos afazeres domésticos. Suas cunhadas, no entanto, suspeitam de que ela não esteja
doente como alega, mas que está fingindo para não precisar trabalhar, e de que toma vinagre
para abortar e vomitar sangue na frente dos outros. A não participação de Rosa no trabalho de
casa também é criticada; dizem suas primas que, na casa de seus pais, ela trabalhava muito e,

115
Especialmente neste episódio, os nomes em itálico são fictícios, protegendo-se a privacidade das envolvidas.

282
Juliana Salles Machado

depois que foi para o Taxipucu, não fez mais nada. Acusam-na de se aproveitar do fato de a
família do marido ter “muita coisa”.

Aliado às acusações de feitiçaria, muito mal vistas no grupo doméstico e na


comunidade em geral, há também uma desconfiança geral de que o filho de Rosa (motivo
pelo qual se casou) é de outro pai, um homem com quem ela era vista antes de ir ajudar em
uma festa religiosa à convite de seu futuro sogro. Todos estão secretamente calculando a data
da concepção da criança para confirmar sua paternidade. Suas cunhadas dizem ainda que
Rosa não ficou menstruada desde que chegou à casa, o que seria indício de que ela já estava
grávida.

Praticar feitiçaria é considerado muito grave em Caviana, mas as acusações são muito
comuns. Foi por intermédio das acusações que obtive grande parte das informações sobre a
feitiçaria na ilha. Elas ocorrem em geral entre mulheres e pode ser feito pela própria pessoa
ou ser encomendado a alguma experiente. Em geral os feitiços são feitos através de orações e
rezas e, ao que parece, não são utilizadas plantas nesse processo. Os feitiços são feitos por
mulheres, mas podem ter como alvo homens e mulheres e são geralmente motivados por
ciúmes. É comum encontrarmos acusações de feitiços entre mulheres coresidentes e que são
concunhadas.

5.5 As plantas e os lugares de gente

No mundo dos ribeirinhos de Caviana, como vimos ao longo dos últimos capítulos, há
um esforço contínuo para permanecer gente, isto é, para não ser transformado em outra
espécie de gente pelos seres não-humanos. Por isso se curam os lugares e as pessoas.

Essa transitoriedade do ser gente fica evidente na ambiguidade do estatuto dos


encantados. Os botos parecem gente, mas têm buracos na cabeça para respirar; as mães-do-
mato “são que nem gente”, os encantados “aparecem na forma de gente” e as próprias
visagens, que se não assumem forma humana completa, reproduzem seus sons, como os gritos
de pássaros que parecem gente e o barulho de gente remando e tirando água da canoa. Os

283
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

encantados, as visagens, o assoviador – toda a esfera não-humana é um risco para o estado de


humanidade, de ser gente. Podem levar a pessoa com eles, ao estado de só parecer gente,
quando, portanto, deixa-se de ser gente.

As plantas fazem parte dessa relação. Para se manter gente e afastar o perigo de se
encantar, as mulheres plantam remédios no pé dos esteios, impedindo que as visagens e os
encantados se aproximem. No canteiro, plantam-se remédios, quase todos para curar males
como mau-olhado, feitiço e flecha de bicho. As plantas também curam sintomas físicos como
diarreia, inflamação e vômitos, mas, na concepção ribeirinha, também esses estão ligados ao
sobrenatural. Pequenas ações como dizer alguma coisa, voltar de uma caçada ou do mato –
tudo pode ser perigoso, tudo pode acarretar alguma doença ao corpo.

A escolha de plantas para o terreiro não está diretamente ligada à subsistência, mas à
criação e manutenção de um “lugar de gente”, à constituição de uma “casa de gente”. Essa
responsabilidade impõe às mulheres uma preocupação constante com o cuidado para que a
área esteja sempre limpa, as árvores estejam espaçadas e, principalmente, que esse seja um
lugar de “plantas”, isto é, um produto de gente. Trata-se de traçar um limite entre o espaço de
gente e o mato, domínio das incertezas, dos bichos, dos “não gente”, do sobrenatural, do
medo. E também o mato tem sua outra face, de potencial – é o lugar onde as pessoas se
aventuram em busca de novas espécies para fazer remédios, de caça e de matérias-primas para
seu uso cotidiano.

As plantas curam. Elas não são ameaças. Mas como elas curam? Antes de ser plantas,
elas eram mato, pertenciam à esfera dos não-humanos. Quando as capturam, as mulheres
tiram-nas desse domínio por meio de uma “batalha” – a batalha entre permanecer mato (sob o
domínio dos não-humanos) ou se tornar planta (sob domínio da gente). Ao se tornar plantas,
deixam de estar sob este domínio, mas contêm aspectos desse poder oriundo do domínio do
sobrenatural. O ato é de domesticação não de uma espécie vegetal, mas do outro. Mas há
pouca agência, ela assume a forma de uma agência secundária (Gell 1998, 1999). Por isso,
individualmente, não são ameaças ao estatuto de estar gente. Como os bichos, que, embora
domesticados, não deixam de ser bichos, também as espécies vegetais, embora passem de

284
Juliana Salles Machado

mato a planta, continuam sendo ligadas ao seu substrato de origem. Assim, as mulheres
domesticam algo que não lhes pertence, mas pertence ao mundo não-humano.

A cosmologia ameríndia oferece poucos exemplos de poderes não-humanos


relacionados ao mundo vegetal, no entanto entre os povos do Uaçá podemos encontrar não
apenas a representação da cobra mítica como uma mãe benéfica com poder terapêutico de
cura através das plantas, mas também a figura de uma árvore-xamã. Esta possui entre os
Palikur um poder ambíguo de cura ou envenenamento, dependendo da “dose certa” de uso da
sua seiva. À ela também estão associados o poder de cura humana e é através dela que os
humanos se tornam capazes de se comunicar com o chamado outro mundo. Segundo a
tradição do Uaçá (Vidal 2007:55), “para virar pajé, peça a um índio para levá-lo até um
tawene [árvore-xamã], mas não coma peixe antes de tomar o leite puro da árvore xamã”.
Aqui, como em Caviana, as plantas são o elo de intermedição entre humanos e não-humanos,
através de seus poderes de cura.

A batalha de familiarização das plantas em Caviana é pessoal, feita em cada casa, por
cada mulher (“minha planta”). Mas a rede de trocas é social. As plantas são compartilhadas
nessa rede e, além da posse individual, tornam-se constructos sociais (“planta nossa”). Se
opondo ao receio do desconhecimento expressos nas falas de Tereza, “não se sabe quem é” e
“não se sabe da onde veio”, ser gente em Caviana é ter parente, é ter história, enfim é ser da
ilha ou “filhos desta Caviana”. Socializar as plantas é torná-las também um domínio do
parentesco. Trata-se de transmitir de geração a geração o conhecimento de familiarizar o
poder sobrenatural, domesticando-o por transformá-lo de mato em planta.

As plantas têm, portanto, um papel fundamental na relação entre humanos e os


encantados. Mas esta condição não é dada. Ela é adquirida e negociada caso a caso, na batalha
travada entre as mulheres e cada uma de suas plantas de remédio. Uma batalha vencida
significa mais uma porta aberta no diálogo entre as mulheres e os seres não-humanos.

Sabemos agora o papel das plantas. Mas por que a troca? Vimos, nas análises sobre as
plantas, que há formas distintas de reciprocidade – aquela relacionada aos alimentos e a de
remédios. A primeira é amplamente realizada na ilha e consiste principalmente no
compartilhamento de alimentos entre mãe-pai/filha-filho, irmão-irmã/irmão-irmã e entre
cunhados(as). A partilha de alimentos permite tanto a diversificação do que se planta em cada

285
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

casa como uma rede familiar de apoio mútuo. Ela é importante na subsistência e na economia
familiar, mas não tem um valor simbólico agregado. Os doadores não necessariamente são
lembrados. Há uma expectativa de retorno, mas apenas de alimento. A circulação de
alimentos ocorre principalmente nas esferas do parentesco, mas não parece criar uma nova
esfera de sociabilidade. Trocar plantas de remédio é diferente.

Ao trocar plantas de remédio, as mulheres compartilham também seus usos. Mais do


que aprender novas fórmulas de manipulação, elas sabem quais são as disputas com o mundo
não-humano. Há um interesse geral em quem curou o quê e como, apesar de este discurso ser
velado. Há um reconhecimento entre as mulheres de quem tem mais poder de cura, que é
consolidado na atribuição do qualificativo benzedeira, curandeira ou experiente. A
aproximação das mulheres com os encantados também lhes confere o poder de lançar feitiços,
ou “coisa feita”, “maldade”. Potencialmente, qualquer mulher pode lançar feitiços, mas esse
ato é temido e socialmente reprovado. Uma vez lançado o feitiço, normalmente contra um
homem, sua mulher ou sua mãe deve curá-lo ou chamar alguém que consiga fazê-lo. Já as
plantas, ao contrário de suas donas, não estão associadas aos feitiços, mas à cura. A troca de
plantas de remédio é como uma aliança feminina para proteção da casa, da família e dos
parentes, para que possam permanecer gente e conviver socialmente.

286
Capítulo 6:

Figura abertura capítulo 6: Pôr do sol no Taxipucu Foto: Juliana Salles Machado.

287
Juliana Salles Machado

6
E DO QUE NOS FALAM AS PLANTAS?
Lugares são reconhecidos como processos temporais em que
todos os tipos de trajetória – de pessoas, de não humanos,
econômica, tecnológica, de ideias etc. – chegam, ou são trazidos,
para compor formações duradouras, mas também em constante
mudança, que se assentam em padrões distintivos de lugares, mas
que estão ainda inteiramente conectados com o mundo mais
amplo.116
Jones & Cloke

inha busca inicial por continuidades entre um passado indígena e


um presente ribeirinho em Caviana através de aspectos tecnológicos da produção cerâmica se
primeiramente pareceu malogrado, ao final não se mostrou de todo abandonado. Ao tratar da
relação entre as mulheres e as plantas, suas formas de manejo e seus significados sociais,
também recriei esse diálogo entre passado e presente. Mudei apenas meu objeto do pensar,
mas este também me aproximou da perspectiva das mulheres e principalmente de uma
realidade repleta de historicidade. Ao longo desta tese busquei entender primeiramente por
que o manejo ambiental é uma pratica importante para os ribeirinhos não apenas
economicamente, mas também social e simbolicamente. Ele se torna um referencial cultural
na medida em que revela a longevidade do uso da terra. Temporalidade que se funde com o
parentesco na formação de lugares que chamamos de significativos. É nisso que se
fundamenta o conceito de “lugares de gente”, expressão nativa que traz consigo não apenas o
reconhecimento do manejo antrópico de nichos da floresta, mas uma vinculação pessoal e

116
“Places are recognized as temporal processes where all manner of trajectories – of people, non-humans,
economies, technologies, ideas and more – come, are brought or are thrown together to assemble enduring, but
also changing, formations which settle out into distinctive patterns of places, yet which are still fully networked
into the wider world” (Jones & Cloke 2008:87).

288
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

afetiva com os lugares. Seu uso é a expressão maior do que Zedeño propõe como
territorialidade, isto é, o sentimento de pertencimento e vínculo a um lugar; sentimento que
fundamenta seu direito de uso e leva à disputas sobre seu acesso e usufruto. Este sentimento é
a base da formação de territórios. Apesar da delimitação espacial restrita da área de pesquisa,
focado em uma única comunidade, percebemos que a noção mais forte desse sentido de
pertencimento, está, não em uma única comunidade, mas sim nas relações entre comunidades
que compõem juntas um coletivo chamado de “filhos de Caviana”. Caviana é o território.
Extrapolando os limites das comunidades e micro-regiões, é ao todo da ilha Caviana que o
sentimento de pertencimento e a necessidade de permanência é mais forte. A grande
mobilidade de seus moradores entre os campos, matas e igarapés se dá, assim, não como
mudanças entre novas áreas, mas sim como formas de vivenciar partes integradas de um todo.
Essa pesquisa nos leva, portanto a vislumbrar um aspecto do fenômeno da territorialidade,
aquele viés mais íntimo, a relação entre uma pessoa e uma planta, que posteriormente se
expande e complexifica nas redes de troca de plantas e resignificação social das paisagens. Ao
longo dessa tese percorri o trajeto dessa relação tentando compreendê-la tanto no que se refere
ao seu componente temporal, quanto à rede de implicações na qual ela é socialmente
reconhecida e compartilhada. Ao traçar esse percurso descobrimos tratar-se de um valor
profundamente arraigado na socialidade feminina, o cuidar.

Os caminhos do cuidar

Ao longo desta pesquisa vimos que em Caviana, os papeis sociais são essencialmente
marcados pelo gênero e pela idade. Mesmo que complementares, a esfera feminina e a
masculina refletem práticas e conhecimentos distintos. Essa dualidade complementar é
marcada principalmente pelo campo da domesticidade. Ao trazer a ideia do “tornar
doméstico”, quero reforçar a associação das mulheres com alguns conceitos-chave, como o da
familiarização, da permanência e do controle, mas também o do fabricar e do cuidar. Os
homens não estão ausentes na construção dessa domesticidade, no entanto, à eles cabe

289
Juliana Salles Machado

também o novo, o fugaz, o enfrentamento, que se não mais o fazem na guerra, o conquistam
na caça, na abertura da mata, no domínio das águas e na exposição urbana. Permanência e
mudança, como sabemos, andam sempre juntas; assim como, por exemplo, é necessário abrir
novas áreas para que elas possam ser cuidadas e familiarizadas.

Retomarei de maneira sintética as discussões apresentadas em cada um dos capítulos


para tornar mais evidente como eles integram essa trajetória do cuidar na formação de lugares
de gente. A literatura amazônica sobre comunidades ribeirinhas sempre esteve vinculada a sua
relação com o meio ambiente, desde sua formulação inicial, geralmente atribuída a Wagley
(1957) e Galvão (1975), até os estudos mais recentes de sustentabilidade (Lima 2006, 2004;
Brondízio 2006, 2004). No entanto, esse viés oscilou entre uma perspectiva mais ecológico-
determinista, como nos casos de Wagley e Galvão, para os quais o ambiente amazônico seria
um “empecilho” determinante ao pleno desenvolvimento cultural dessas sociedades, para uma
construção mais positiva dos ribeirinhos, na qual eles assumem a capacidade de transformar
esse meio através de seu manejo e tornam-se modelos de sustentabilidade (Brondízio 2006,
2004; Lima 2006, 2004) para uma época ávida por alternativas ecológicas que conjuguem a
existência humana com a preservação ambiental. A especificidade do contexto amazônico nas
discussões antropológicas foi ressaltada por autores como Nugent (1993, 2006), para quem a
quase invisibilidade dos amazônidas não-indígenas (chamado pelo autor também de
camponeses históricos) na literatura acadêmica é decorrente de uma visão a-histórica de uma
Amazônia predominantemente natural em vês de social (Nugent 1993). Felizmente, com o
aumento e diversificação das pesquisas esse quadro está começando a se modificar e o
pristine myth vai sendo gradualmente desarraigado para em seu lugar ser construído não mais
uma única Amazônia, mas sim uma noção mais fluída e complexa de amazoneidade 117
(Nugent 2006).

Contribuindo para essa (des)construção vemos surgir trabalhos que se voltam para o
significado desse manejo ambiental para as sociedades ribeirinhas, principalmente em termos
econômicos (Lima 2006, 2004 Barretto-filho 2006 e Castro 2006) e ecológicos (Brondízio
2006, 2004; Brondízio et al 1994; e Futemma 20006), mas também históricos (Nugent 2006,
1993; Harris 2006, 2005, 2000, 1998). Nessa mesma linha, encontram-se também os raros

117
O termo amazoneidade é usado por Nugent(2006:43) para se contrapor as “diversas versões oficiais da
Amazônia”, enfatizando que as versões locais ou regionais “não dependem de qualificações formais, mas
daquelas conferidas por ser um agente ativo num campo social em movimento”.

290
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

estudos de gênero com os trabalhos de Siqueira (2006) e Murrieta & WinklerPrins (2006,
2003). Minha pesquisa busca trazer à literatura amazônica, novos dados para melhor
compreender essa diversidade. Trilho aqui os caminhos abertos por outros autores de um
presente ribeirinho repleto de história e uma vinculação com o entorno natural essencialmente
significativa – assim partilho da ideia de uma floresta cultural (Balée (1989, 1994, 2006 a e
2006b; Balée e Erikson 2006; e Posey 2008, 1988; Posey e Balée 1989), que conforme seus
propositores marca a transformação da floresta através da ação humana, mas também reforço
a idéia de que tal antropização é também um constructo histórico (Balée 2006b, 1998; Fausto
e Heckenberger 2007; Heckenberger 2000, 2001; Heckenberger e Franchetto 2001,
Heckenberger et al 2003).

Ampliando a noção de floresta cultural proposta por Balée (1989, 1994, 2006a e
2006b), vemos aqui a versão mais intimista do processo de humanização da floresta, por meio
do foco na relação entre as mulheres e suas plantas. Inspirada nos trabalhos precursores de
Murrieta & WinklerPrins (2006, 2003), busquei na vida cotidiana das mulheres com o cultivo,
o significado desse manejo ambiental.

No Capítulo 1, apresentei os dados históricos conhecidos para a ilha, incorporando as


pesquisas pioneiras de Nimuendaju na década de 1920 (Nimuendaju 2004, 2000) e as
subsequentes de Meggers & Evans, já no fim da década de 1940 (1957). Apesar das várias
discordâncias entre eles detalhadas ao longo do capítulo, há uma atribuição consensual a uma
ocupação arawak na ilha, ocupação esta que foi documentada à época do contato através de
mais de um cronista. Esta ocupação pode ter sido mais antiga, pré-colonial que teria persistido
até o contato, hipótese que reforçaria o modelo de dispersão arawak proposto para a região
(Heckenberger 2005). Entre os grupos arawak que ocuparam Caviana, encontram-se os Aruã,
grupo historicamente documentado, mas que desapareceram no início do século XIX (Vieira
1951; Acuña 1941; Daniel 1976; Betendorf 1910) e possivelmente outro grupo, cuja cerâmica
alguns autores chamam de “Caviana” (Rostain 2001), possivelmente retratada pela narrativa
local como os “Cavianos” (Abdom s/d). Ainda no que tange à ocupação colonial da ilha,
todos os autores afirmam que esta teria tido sua origem no continente (atual Amapá) e que

291
Juliana Salles Machado

depois da colonização da ilha, em uma época de muitas guerras e alianças, esses grupos
teriam retornado ao norte do continente.

Trabalhando em um contexto indígena no norte do estado no Amapá, no Uaçá, Vidal


(2007) discute a cobra grande mítica dos Palikur, grupo arawak da região. A autora ressalta,
que enquanto a cobra grande representa um mito de origem ou de gênese para alguns grupos,
ela parece estar relacionada a um mito da migração entre os Palikur. Se questionado sobre o
significado da cobra neste mito, a autora escreve:

Mas será que não poderia [a cobra grande] também representar


um povo mais antigo instalado na região, como os Marworno,
por exemplo, ou os Aruã? Quase nada se sabe sobre a proto-
história e mesmo história daquela região. O que leva a esta
indagação é o fato da cobra grande, entre esses povos, não se
caracterizar como um mito de origem da humanidade. A
humanidade já existia. (...) Em resumo, para os Palikur, o mito
da cobra grande está associado a um processo de deslocamento
populacional (Vidal 2007:37)

A aproximação entre estes dois contextos foi pouco desenvolvida e, ao final deste
trabalho, se configura como uma nova hipótese de pesquisa. No entanto, apesar da
cosmologia ribeirinha abordada nesta pesquisa apresentar-se de forma fragmentária, os
paralelos traçados entre os dois contextos são muitos, como abordei ao longo dos capítulos
desta tese.

Vimos no Capítulo 2 que a vida cotidiana dos ribeirinhos é construída pelo ritmo das
águas (Harris 2005, 2000, 1998), quer dizer que, diferente de ser determinado por um meio
externo e opressor, esse entorno é internalizado e a partir dessa relação é que se constrói a
socialidade ribeirinha. Nessa relação baseia-se sua prática econômica pautada na venda e
compartilhamento de excedentes de frutas e produtos da floresta e da pesca (Lima 2006,
2004). Também nessa relação se escolhem os locais de moradia e circulação. Nesse mesmo
ritmo, se agregam grupos de trabalho, devotos de santos. Tudo feito junto ao “reparar” da
maré que seca ou alaga a terra. Terra esta, constantemente transformada pela ação humana
através das podas seletivas, roçagem de plantas rasteiras, adubação e plantio (Brondízio 2006,

292
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

2004). Transformação que se inicia em gestos pouco visíveis praticados cotidianamente pelas
mulheres em suas casas, ao trazerem sementes e mudas da floresta e da casa de parentes e
amigas e plantarem-nas em seus canteiros (Murrieta e WinklerPrins 2006, 2003). Esse
cuidado com o plantio é feito individualmente e seu resultado posteriormente socializado
através de uma rede de trocas de plantas.

A vida das mulheres em Caviana está baseada em uma prática do cuidar inspirada no
modelo materno, conforme proposto por Baier (1992) e, posteriormente discutida por Overing
(1999) para o contexto amazônico indígena como discutido no Capítulo 3. Assim as mulheres
cuidam de seus filhos, de seu marido, de sua casa, de seu grupo doméstico, mas também de
suas plantas. Esse cuidado com as plantas é o objeto dessa tese. Ao acompanhar as visitas
feitas por Tereza à seus parentes e amigas presenciei um cotidiano de troca de mudas e
compartilhamento de um conhecimento relacionado ao seu plantio e aos seus usos. Mas longe
de um discurso sobre lucro, sustentabilidade ou dietas alimentares, o que encontrei nessas
conversas foi um registro cosmológico fruto de uma ontologia mais comumente atribuída a
uma Amazônia indígena.

Conhecida entre os estudos sobre ribeirinhos, encontramos a dimensão dos


encantados, esfera religiosa-mágica onde se encontram entes do catolicismo e nas crenças
afro-brasileiras, assim como entre os grupos indígenas. Chamadas por vezes de “Encantaria
Brasileira” ou ainda “religião dos Encantados” (Pacheco 2004), essa conjunção de entidades
celeste e entes da floresta e das águas compõem a “Pajelância Cabocla” (Pacheco 2004; Boyer
1999). Apesar das muitas semelhanças e da influência das curas praticadas pelos
afrodescendentes no nordeste, como aquelas descritas no Maranhão por Pacheco, a pajelância
cabocla tem sua maior influência na cosmologia indígena (Boyer 1999). Tanto a pajelância
quanto o xamanismo amazônico agem através da cura, nos aspectos terapêuticos da saúde. No
entanto, em Caviana essa dimensão mágica não passa por um dos pontos focais da pajelância,
que é o da possessão ou transe. Na pajelância afro, a cura é feito pelo pajé enquanto ele se
encontra possuído por um espírito (celeste ou associado ao mundo das águas). Em Caviana, a
cura é feita através da benzedeira ou experiente com o uso de rezas e orações, além de plantas
de remédio. O uso de plantas e remédios também ocorre na pajelância, mas foi alvo de poucos

293
Juliana Salles Machado

estudos no que tange a sua eficácia-mágica. Os moradores contam sobre a existência de pajés
em tempos antigos, no entanto, atualmente só existe um pajé na ilha, pouco atuante por morar
isolado em uma parte distante e de difícil acesso. Pode ser que anteriormente em Caviana, os
rituais de cura dos pajés, fossem realizados pela possessão, como os são aqueles praticados
em cidades como Belém (Boyer 1999). No entanto, a ausência desse momento, me levou a
buscar a compreensão da cura, não apenas na performance do benzer, mas principalmente no
uso das plantas como remédios.

Através de um levantamento, no qual apresentei os resultados no Capítulo 4, pudemos


compreender quais são os locais preferenciais de plantio das mulheres e quais são as
diferenças entre eles em termos de diversidade de espécies, usos e origem das plantas. Para
cada casa da área de estudo foram coletados dados sobre esses aspectos que posteriormente
serviram de base para uma análise estatística descritiva. Seus resultados, conforme detalhado
naquele capítulo, indicaram a presença de quatro áreas: os terreiros, os canteiros, as roças e as
áreas abandonadas. De maneira geral, os terreiros são as áreas do entorno das casas dos
ribeirinhos, comumente chamados de quintais ou jardins na literatura. Eles são compostos em
grande parte por árvores perenes e frutíferas, mas também dispõe de um pequeno estoque de
madeiras para construção (chamadas localmente de “paus”) e plantas de remédio. Os
canteiros, localizados dentro dos terreiros, nos fundos ou ao lados das casas, são os domínios
por excelência do plantio de remédio e temperos. As roças, locais de cultivo de ciclo curto,
aqui pouco usadas para o plantio de mandioca, comum ao longo de toda a calha do rio
amazonas, mas sim para o milho, a banana e a melancia. Mas o local é permeado de árvores
perenes (em geral que já se encontravam lá quando da abertura da roça) e sempre contém uma
pequena porcentagem de remédios. Ao final, as áreas abandonadas, categoria bastante diversa
que não reflete uma terminologia nativa como os outros, mas se refere a todas as áreas que já
foram anteriormente utilizadas pelos humanos como casas, caminhos, roças e terreiros, mas
que atualmente não estão sendo usadas cotidianamente. Essas áreas, no entanto, servem como
ilhas de recursos (Balée 1998, 1994; Posey 2008, 1998) para as famílias ribeirinhas. Em geral
uma casa possui além das três áreas de plantio acima mencionadas, duas áreas mais afastadas
que costumam manejar. Esse manejo de áreas abandonadas é, no entanto, bastante
heterogêneo e sua intensificação está relacionado à fase em que a família se encontra. Isso
ocorre, pois, como mencionamos no Capítulo 2 e no Capítulo 4, uma mudança de casa é,
nesse contexto amazônico, um processo lento. Inicia-se com a escolha de um novo local de

294
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

moradia, em geral de áreas previamente habitadas ou sítios abandonados. Em seguida esse


local passa por um lento processo de limpeza com o uso da queima ou roçagem do terreno
para a retirada de plantas rasteiras. Em seguida, se dá o processo de poda-seletiva e plantio de
novas espécies, em geral trazidas na casa atual do morador. Nesse ponto, a família já pode se
mudar para a nova área, mantendo, contudo, um retorno constante à antiga casa para a busca
de matérias-primas que são aproveitadas, como para a coleta de frutos, mudas e sementes.

As análises dos dados acerca das plantas indicaram que em todas as áreas de plantio há
plantas de remédio, em menor ou maior quantidade. Atribuí isso ao fato da necessidade da
cura desses lugares para que possam ser utilizados pelas pessoas. Retomemos à cosmologia.
Os ribeirinhos acreditam que a floresta e as águas possuem mães que as protegem, elas são as
chamadas mãe-do-mato, mãe-dos-bichos, mãe-d´água ou, em Caviana em particular, mãe-
dos-lugares. Conforme indicado por Gow (1995) para o contexto indígena dos Piro, para abrir
uma nova área é necessário derrubar árvores, queimar, plantar, enfim, enfrentar esses entes
não-humanos, que respondem com doenças, “maldades” (para usar um termo de Caviana) e
mortes. O mesmo ocorre em Caviana. Assim para abrir essas novas áreas e depois para que
possam continuar a usufruí-las, os ribeirinhos plantam remédios específicos que são tidos
como capazes de curar o lugar. Curar o lugar é tido aqui como um ato de cuidar, e esse cuidar
é uma forma de compensar os danos causados as mães-dos-lugares, que respondem à esse
cuidado não causando doenças a seus ocupantes.

No capítulo 3 me dediquei a entender como essas plantas agem na esfera de cura


mágica dos ribeirinhos. Como mencionado por Reichel-Dolmatoff (1996) entre os Desana, as
sementes (e eu acrescento, os vegetais em geral para Caviana) encontradas no interior da
floresta são vistas como pequenos receptáculos do exterior, isto é, partes de um outro (nesse
caso, não-humano) que se pode levar. Essa ideia é interessante e pode ser aplicada a Caviana,
no seguinte sentido: sendo filhos de mães não-humanas, os vegetais carregam em si esse ethos
mágico poderoso. No entanto, distinto dos animais que podem assumir por vezes esses
poderes de forma ativa, como através dos chamados “flecheiros” e que são amplamente
conhecidos na literatura indígena da Amazônia, as plantas não possuem essa agência. Este
poder está de certa forma encapsulado e só pode ser ativado através da agência humana, papel

295
Juliana Salles Machado

que as mulheres assumem ao trazê-las para sua casa. Processo esse exteriorizado pelo uso da
denominação de mato para planta, que marca a passagem do vegetal de sua mãe não-humana
para sua mãe adotiva humana. Esse conceito se assemelha ao que propõe Fausto (2008) para
a relação de dono que os xamãs exercem sobre seus espíritos auxiliares, nesse caso animais.
Ao adotar essas plantas as mulheres também podem usufruir desses poderes que são ativados
na fabricação de remédios e usados tanto nos processos de cura feitos pelas benzedeiras e
experientes, como nas ações cotidianas das casas entre as mulheres. O conhecimento sobre a
fabricação dos remédios vem do diálogo estabelecido entre as benzedeiras e experientes com
esses entes poderosos, genericamente chamados de Encantados. São eles que ensinam os
remédios que são posteriormente ensinados pelas benzedeiras paras as mulheres da ilha.

Ao longo dos capítulos da tese trouxe exemplos do contexto indígena do Uaçá sobre
principalmente dois aspectos relativos ao mito Palikur da cobra grande: um relacionado à
imagem a cobra-fêmea como benéfica, como curadora e conhecedora de plantas, a partir das
quais faria remédios e banhos para curar o índio-herói; e outra relacionada a associação feita
entre a cobra e a idéia de “mãe” – associação que tem origem tanto na denominação do índio-
herói para a cobra que o “adotou”, quanto nas formas de denominar os próprios entes, como
por exemplo, o uso termo mãe-d´água para se referir a um tipo específico de cobra encantada
e também uma forma de se referir ao seu papel de protetora perante os seus bichos auxiliares,
como “mãe-do-jacaré” ou “mãe-da-piranha”. Apesar do uso de um termo de parentesco não
ser um marcador claro de semelhança entre este contexto indígena e Caviana, seu uso não é
comum entre os grupos indígenas, que em geral recorrem aos termos “donos”, “mestre” e
raramente “pai”. Outro fator que corrobora uma possível aproximação entre a cosmologia
ribeirinha e aquela dos povos do Uaçá são as representações gráficas da cobra, que como
vimos na Figura 5.1 e também agora nas Figuras 6.1 e 6.2, apresentam grande semelhança
com os padrões incisos nos remos feitos por Gaiapó, morador do Ubuçutuba. Ainda no
contexto indígena do Uaçá, temos outra figura que associa o poder não-humano a cura através
das plantas, é a árvore-xamã. Pouco documentada na etnografia amazônica, este ente traz em
comum ao contexto de Caviana, a idéia de que as plantas possuem sua eficácia de cura pelos
poderes sobrenaturais.

Para manter o conhecimento fundamental para o viver na ilha, as mulheres trocam


suas plantas e seus saberes, mantendo uma rede constante na qual mantêm vivas e próximas

296
Figura 6.1: Remos inacabados de Caviana, com detalhes dos motivos possivelmente atribuídos a
representação da cobra, gravados no cabo. Fotos Juliana Salles Machado.

297
Figura 6.2: Kuahi – marca do banco do Jacaré (apud Vidal 2007). Fonte:Vidal 2007

298
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

uma ampla gama de remédios. No capítulo 4, mostrei como essa troca se diferencia daquela
feita entre as plantas de alimentos, esta mais relacionada a um compartilhamento alimentar e
uma obrigação familiar. Já o plantio de remédios e sua fabricação estão relacionados a um
conhecimento transmitido em geral matrilinearmente e sua troca uma forma de manutenção e
fortalecimento de um coletivo feminino.

O diálogo com os “encantados” e o conhecimento de sua cura através das plantas, abre
também as portas para a realização de feitiços humanos em Caviana. Estes não são
exclusivamente femininos, mas em sua maioria estão associados às mulheres, como vemos no
Capítulo 5. Os feitiços humanos, assim como aqueles praticados por entes não-humanos,
como os “flecheiros” de bichos, as visagens e outros são temidos por todos e fazem parte do
cotidiano ribeirinho. A acusação de feitiçaria é velada e sua identificação é restrita as
benzedeiras que indicam a origem dessas “coisas feitas” e ensinam sua cura. Essas mães e
esposas são responsáveis pela boa saúde de suas casas, filhos e maridos. A responsabilidade
maternal passa também por esse aspecto mágico, já que são elas que devem curar suas casas
com plantas de remédio e dar os “banhos” de cura nas pessoas que devem zelar. São elas
enfim que cuidam das pessoas.

Chegamos novamente ao cuidar. Um cuidar que se dá tanto na esfera material –


plantando alimentos, produzindo comida, educando seus filhos e tornando seu habitat bonito e
conhecido, isto é doméstico – quanto ao mágico, domesticando poderes e curando seus
familiares e sua casa, no sentido mais amplo. Às mulheres enfim cabe o cuidar das pessoas,
fabricando sua domesticidade e ampliando sua socialidade em um mundo onde as fronteiras
entre humanos e não-humanos é fluída e transitória.

299
Juliana Salles Machado

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACUÑA, CRISTOBAL 1941. Novo Descobrimento do grande rio das Amazonas. In Gaspar
de Carvajal, Alonso de Rojas e Cristobal de Acuña: Descobrimentos do Rio das
Amazonas, Ed. and trans. C. Melo-Leitão, Companhia Editora Nacional, São Paulo,
p.126-294.
ADAMS, CRISTINA, RUI MURRIETA & WALTER NEVES 2006. As Sociedades
Caboclas Amazônicas: modernidade e invisibilidade. In ADAMS, CRISTINA, RUI
MURRIETA & WALTER NEVES (Orgs.) 2006 Sociedades Caboclas Amazônicas.
Modernidade e Invisibilidade. São Paulo, Annablume: FAPESP, p.15-32.
ADAMS, CRISTINA, RUI MURRIETA & WALTER NEVES (Orgs.) 2006.. Sociedades
Caboclas Amazônicas. Modernidade e Invisibilidade. São Paulo, Annablume:
FAPESP.
ALDENDERFER, M. 2006. Cultural landscapes in the ancient Andes: archaeologies of place.
In Jerry D. Moore. Journal of the Royal Anthropological Institute 12(4): 961-963.
ALENCAR, EDNA FERREIRA 2002. Terra Caída: Encantos, Lugares e Identidades. Tese
de Doutorado, Universidade de Brasília.
ARHEM, KAJ 1998. Powers of place: landscape, territoriality and local belonging in
Northwest Amazonia. In Locality and belonging. Edited by N. Lovell. London:
Routledge.
ARRUTI, JOSÉ MAURICIO 2007. Eduardo Galvão: Índios e Caboclos. Annablume, São
Paulo.
ASHMOR, WENDY & KNAPP, A. BERNARD 1999. Archaeologies of Landscape:
contemporary perspectives. Blackwell, Malden, Mass.
BAIER, ANNETTE C. 1992. Trusting People. Philosophical Perspectives, Ethics, Vol. 6,
pp.137-153.

300
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

BAKX, KEITH STANLEY 1986. Peasant formation and capitalist development: the case of
Acre, South-West Amazônia. University of Liverpool, Liverpool, xv,432 p.
BALÉE, WILLIAM 2006a. The Research Program of Historical Ecology. Annual Review of
Anthropology. 35(1): 75-98.
2006b. Transformação da paisagem e mudança da língua: um estudo de caso em ecologia
histórica amazônica. In ADAMS, CRISTINA, RUI MURRIETA & WALTER
NEVES (Orgs.) Sociedades Caboclas Amazônicas. Modernidade e Invisibilidade.
São Paulo, Annablume: FAPESP, p. 45-66.
1998. Advances in historical ecology. New York, Columbia University Press.
1994. Footprints of the forest: Kaa´por ethnobotany – The historical ecology of plant
utilization by an Amazonian People. New York: Columbia University Press.
1989. The culture of Amazonian forests. In D. A. Posey and W. Balée (eds.), Resource
Management in Amazonia: indigenous and folk strategies. Bronx: The New
Botanical Garden. pp. 1-21.
BALÉE, WILLIAM L. AND CLARK L. ERICKSON 2006. Time and complexity in
historical ecology: studies in the neotropical lowlands. New York, Columbia
University Press.
BARNARD, ALAN & GOOD, ANTHONY 1984. Research Practices in the Study of
Kinship.Academic Press, London.
BARRETO, CRISTIANA & MACHADO, JULIANA S. 2001. Exploring the Amazon,
Explaining the Unknown: Views from the Past. In McEwan, Barreto e Neves.
Unknown Amazon: Culture in Nature in Ancient Brazil, The British Museum Press,
London, Chap.10: 232-251.
BASSO, ELLEN 1988. Speaking with names: language and landscape among the Western
Apache. Cultural Anthropology 3: 99-130.
BATISTA, MÉRCIA REJANE RANGEL 1991. De caboclos da Assunção a índios Truká:
estudo sobre a emergência da identidade étnica. Rio de Janeiro: UFRJ, 229 f.
BEHAR, RUTH 1986. Santa Maria del Monte: the presence of the past in a Spanish village.
Princeton: Princeton University Press.

301
Juliana Salles Machado

BENSA, ALBAN 1998. Da Micro-História a uma antropologia crítica. In: REVEL, Jacques
(Org.). Jogos de Escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, pp.
39-76.
BETENDORF, J. 1910. Chronica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do
Maranhão. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 72(1), Rio de
Janeiro.
BOURDIEU, P. 1996. A economia das trocas lingüísticas. O que falar quer dizer. Edusp,
São Paulo.
1962. Celibat et Condition Paysanne. Étude Rurales 5-6: 32-109.
BOYER, Véronique 1999. O Pajé e o Caboclo: de homem a entidade. Mana 5, n. 1, pp. 29-
56.
BRONDIZIO, EDUARDO S. 2006. Intensificação Agrícola, identidade econômica e
invisibilidade entre pequenos produtores rurais amazônicos: caboclos e colonos
numa perspectiva comparada In ADAMS, CRISTINA, RUI MURRIETA &
WALTER NEVES (Orgs.) 2006 Sociedades Caboclas Amazônicas. Modernidade e
Invisibilidade. São Paulo, Annablume: FAPESP, p. 195-236.
2004. Agriculture Intensification, Economic Identity, and shared Invisibility in Amazonian
Peasantry: Caboclos and Colonists in Comparative Perspective. Anthrosource, vol.
26, no. 1 & 2.
BRONDIZIO, EDUARDO S., MORAN, EMILIO, F., MAUSEL, PAUL & YOU WU 1994.
Land Use Change in the Amazon Estuary: Patterns of Caboclo Settlement and
Landscape Management. Human Ecology, Vol.22, No. 3, p.249-279.
BRUBAKER, R. & COOPER, F. 2000. Beyond identity. Theory and Society, 29, p. 1-47.
BUENO, LUCAS 2007. Variabilidade Tecnológica nos sítios Líticos da Região do Lajeado,
Médio Rio Tocantins. São Paulo: Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia.
Universidade de São Paulo.
CARVAJAL, GASPAR 1941. Relação do Novo Descobrimento do Famoso Rio Grande que
Descobrio por grande Ventura o Capitão Francisco de Orellana. In Gaspar de
Carvajal, Alonso de Rojas e Cristobal de Acuña: Descobrimentos do Rio das
Amazonas. Ed. And trans. C. Melo-Leitão, Companhia Editora Nacional, São Paulo,
11-79.

302
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

CASTRO, FABIO DE 2006 Economia familiar cabocla na várzea do Médio-Baixo


Amazonas. In ADAMS, CRISTINA, RUI MURRIETA & WALTER NEVES (Orgs.)
2006 Sociedades Caboclas Amazônicas. Modernidade e Invisibilidade. São Paulo,
Annablume: FAPESP, p.173-194.
CHAMPAIGNE, PATRICK 1975. La restructuration de l´espace villageois. Actes de la
Recherche 3, pp. 43-67.
CHAUMEIL, JEAN-PIERRE 1990. Les Nouveaux chefs : pratiques politiques et
organisations indigenas en Amazonie Peruvienne. Problemes d´Amerque Latine, 96 :
983-113.
CHERNELA, J. 1986. "Os Cultivares de Mandioca (Tucano)." In SUMA: Etnológica
Brasileira, Vol. I, Etnobiologia, pp. 151-158. Berta Ribeiro, ed. Rio de Janeiro. Pp
151-158
CHIPNICK, MICHAEL 1991. Quasi-Ethnic Groups in Amazonia Ethnology 30, n. 2, pp.
167-182.
CHIVA, I. 1958. Rural Communites: Problems, Methods and Types of Research.” Reports
and Papers in the Social Sciences, UNESCO, 10.
COSTA, LUIZ E FAUSTO, CARLOS 2011. The Return of the Animists: recent Studies of
Amazonian Ontologies. Manuscrito.
CRUMLEY, CAROLE L. 1994. Historical ecology: cultural knowledge and changing
landscapes, Santa Fe, N.M.[Seattle]: School of American Research Press.
Distributed by the University of Erickson, C.
1995. Archaeological Perspectives on Ancient Landscapes of the Llanos de Mojos in the
Bolivian Amazon. In P. Stahl, Archaeology in the American Tropics: Current
Analytical Methods and Applications. Cambridge, Cambridge University Press: 66-
95.
DANIEL, J. 1976. Tesouro Descoberto no rio Amazonas. Separata dos Anais do Museu
Nacional, 95, 2 vols.
DAVID, BRUNO e THOMAS, J. 2008. Handbook of Landscape Archaeology. World
Archaeological Congress, Research Handbooks in Archaeology.

303
Juliana Salles Machado

2008. Introduction In David, Bruno; Thomas, Julian. Handbook of Landscape Archaeology.


Left Coast Press, California, p.27-43.
DENEVEN, WILLIAM 2001. Cultivated Landscapes of Native Amazonia and the Andes:
triumph over the soil. Oxford: Oxford University Press.
DESCOLA, PHILIPE 2004. Ecology and Cosmoly in Amazonia. In Barreto e Grupioni.
Amazonia, Native Traditions. BrasilConnects Cultura & Ecologia, Beijing, p. 67-80.
1986. La nature domestique: symbolisme et praxis dans l’écologie des Achuar. Paris: Editions
de la Maison des Sciences de l’Homme.
DOVE, MICHAEL e CARPENTER, CAROL (Orgs) 2008. Environmental Anthropology. A
Historical Reader. Oxford: Blackwell.

DURKHEIM, ÉMILE 1989. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulinas.
DYKE, RUTH VAN 2008. Memoru, place and memorialization of Landscape. In David,
Bruno; Thomas, Julian. Handbook of Landscape Archaeology. Left Coast Press,
California, p.277-284.
ELLEN, ROY 2006. Ethnobiology and the Science of Humankind. London: Blackwell
Publishing: Royal Anthropological Institute.
ELIAS, NORBERT 1994 (1965). Introduction. A theoretical essay on established and
outsider relations. In: The Established and the Outsiders, por Norbert Elias & John
Scotson, XV-LII. London: Sage.
ESCOBAR, ARTURO 2001. Culture sits in places: reflections on globalism and subaltern
strategies of localization. Political Geography 20:139–174.

EVANS-PRITCHARD, EDWARD 2005. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e


das instituições políticas de um povo nilota. São Paulo: Perspectiva.
FAUSTO, CARLOS 2008. Donos Demais: Maestria e Domínio na Amazônia. Mana 14(2):
329-366.
2007. Feasting on People. Eating animals and Humans in Amazonia. Current Anthropology.
Volume 48, number 4, August, pp. 497-530.
2001. Inimigos Fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia, Edusp, São Paulo.
2000. Os Índios Antes do Brasil. Coleção Descobrindo o Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora.

304
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

FAUSTO, CARLOS; FRACNCHETTO, BRUNA; E MONTAGNANI, TOMMASO 2011.


Les Formes de La Mémoire. Art Verbal et Musique chez les Kuikuro Du haut-Xingu
(Brésil). L´Homme, 197, pp.41-70.
FAUSTO, CARLOS. e HECKENBERGER, MICHAEL. J. (Org.) 2007. Time and Memory in
Indigenous Amazonia: Anthropological Perspectives. 1. ed. Gainesville: University
Press of Florida.
FAUSTO, CARLOS. E MICHAEL HECKENBERGER 2007 Introduction: Indigenous
History and the History of the “Indians”. In: C. Fausto & M. Heckenberger, 2007
Time and Memory in Indigenous Amazonia: Anthropological Perspectives. 1. ed.
Gainesville: University Press of Florida.
FLINT, K. AND H. MORPHY 200. Culture, landscape, and the environment. Oxford
[England] ; New York, Oxford University Press.
FORTES, MEYER 1969 (1958). Introduction. In: The Developmental Cycle in Domestic
Groups, por Jack Goody, 1-14. Cambridge: Cambridge University Press.
FURTADO, LOURDES GONÇAVES 1993. Pescadores do rio Amazonas. Um estudo
antropológico da pesca ribeirinha numa área amazônica. Museu Paraense Emílio
Goeldi. Belém.
FUTEMMA, CÉLIA. 2006. Uso e acesso aos recursos florestais: os caboclos do Baixo
Amazonas e seus atributos sócio-culturais. In ADAMS, CRISTINA, RUI
MURRIETA & WALTER NEVES (Orgs.) Sociedades Caboclas Amazônicas.
Modernidade e Invisibilidade. São Paulo, Annablume: FAPESP, p. 237-260.
GALVÃO, EDUARDO 1979. Encontro de Sociedades: índios e brancos no Brasil. Paz e
Terra, Rio de Janeiro.
1975. Santos e Visagens: um estudo da vida religiosa de Itá Amazonas. Nacional, São Paulo
GEERTZ, CLIFFORD 1967. Form and Variation in Balinese Village Structure. In: Peasant
Society A Reader, por May N. Diaz & George M. Foster Jack M. Potter, 255-278.
Boston: Little, Brown and Company.
GELL, Alfred. 1999. The art of anthropology: essay and diagrams. London: The Athlone
Press. pp.187-214.
1998. Art and Agency. An Anthropological Theory. Oxford: Claredon Press.

305
Juliana Salles Machado

GENETTE, GÉRARD 1972. Fronteiras da narrativa. In Análise Estrutural da Narrativa.


Petrópolis: Editora Vozes. Pp. 255-274.
GOFFMAN, ERVING 1967. Interaction Riutal. Essays on Face-to-Face Behaviour. New
York: Anchor Books.

GOMES, DENISE 2001. Santarém Symbolism and Power in the tropical forest. In:
McEWAN, Colin; BARRETO, Cristiana; NEVES, Eduardo (Eds.). Unknown
Amazon: culture in nature in Ancient Brazil. Londres: The British Museum Press, pp.
134-155.
GOODY, J. 1987. The interface between the oral and the written. Cambridge: Cambridge
University Press.
GOULDING, M., N. J. H. SMITH, ET AL. 1996. Floods of fortune: ecology and economy
along the Amazon. New York, Columbia University Press.
GOW, PETER 1997. O Parentesco como consciência humana: o caso dos Piro. Mana 3(2):39-
65.
1995. Land, People and Paper in Western Amazonia. In E. H. a. M. O'Hanlon, The
Anthropology of Landscape: Perspectives on Place and Space. Oxford, Clarendon
Press.
GRAEBER, DAVID 2001. Toward an Anthropological Theory of Vale. The false coin of our
own Dreams. Palgrave Press.

GUAPINDAIA, VERA 2001. Encountering Ancestors: the Maracá Urns. In: McEWAN,
Colin; BARRETO, Cristiana; NEVES, Eduardo (Eds.). Unknown Amazon: culture in
nature in Ancient Brazil. Londres: The British Museum Press, pp. 156-175.
GUDEMAN, S. & RIVERA, A. 1990 Conversations in Colombia. The Domestic Economy in
Life and Text. Cambridge: Cambridge University Press.
HANKS, W. 1987. Discourse Genres in Theory of Practice. American Ethnologist 14 (668-
692).
HARRIS, MARK 2006. Presente ambivalente: uma maneira amazônica de estar no tempo. In
ADAMS, CRISTINA, RUI MURRIETA & WALTER NEVES (Orgs.) Sociedades
Caboclas Amazônicas. Modernidade e Invisibilidade. São Paulo, Annablume:
FAPESP, p.81-108.

306
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

2005. Riding a Wave: embodied Skills and Colonial History on the Amazon Floodplain.
ETHNOS, Vol.70:2, june,197-219.
2000. Life on the Amazon: the anthropology of a Brazilian peasant village. Oxford: Oxford
University Press.
1998. The Rythm of Life on the Amazon Floodplain: Seasonality and Sociality in a Riverine
Village. The Journal of the Royal Anthropological Institute, Vol.4, No.1, March, 65-
82.
1998. What it means to be Caboclo: some critical notes on the construction os Amazonian
caboclo society as an anthropological object. Critique of Anthropology 18, n. 1, pp.
83-95.
HARTMANN, TECLA 2000. Cartas do Sertão. De Curt Nimuendaju para carlos Estevão de
Oliveira. Museu Nacional de Etnologia. Assírio & Alvim.
HECKENBERGER, M. J.; RUSSELL, J. C.; FAUSTO, C.; TONEY, J. R.; SCHMIDT, M. J.;
PEREIRA, E. ; FRANCHETTO, B.; KUIKURO 2008. A Pre-Columbian Urbanism,
Anthropogenic Landscapes, and the Future of the Amazon. Science, v. 321, p. 1214-
1217.
HECKENBERGER, MICHAEL 2005. The Ecology of Power.Culture, Place and Personhood
in the Southern Amazon, AD. 1000-2000, Routledge, New York.
2001. Estrutura, história e transformação: a cultura Xinguana na longue durée, 1000-2000d.c.,
In Franchetto, B. E Heckenberger, M. (Org.), Os povos do Alto Xingu História e
Cultura, Editora UFRJ, Chap.1: 21-62.
HECKENBERGER, MICHAEL & FRANCHETTO, BRUNA 2001. Introdução: História e
Cultura Xinguana. In Franchetto, B. E Heckenberger, M. (Org.), Os povos do Alto
Xingu História e Cultura, Editora UFRJ, p.7-20.
HECKENBERGER, M., A. KUIKURO, O. T. KUIKURO, M. SCHMIDT, C. RUSSEL, C.
FAUSTO E BRUNA FRANCHETTO 2003. Amazonia 1492: Pristine Forest or
Cultural Parkland? Science vol. 301, fasc. 5640, pp. 1710-1714.
HECKENBERGER, M. J. ; NEVES, E. G. Amazonian Archaeology. Annual Review of
Anthropology JCR , v. 38, p. 251-266, 2009.

307
Juliana Salles Machado

HECKLER, S. L. 2004. Tedium and creativity: the valorization of manioc cultivation and
Piaroa women. Journal of the Royal Anthropological Institute 10(2): 241-259.
HIRSCH, ERIC, AND MICHAEL O’HANLON 1995. The anthropology of landscape :
perspectives on place and space. Oxford studies in social and cultural anthropology.
Oxford, New York: Clarendon Press.

HUGH-JONES, STEPHEN 2001. The Gender of some Amazonian Gifts: An Experiment


with a an Experiment.In T.Gregor & D. Tuzin (eds.), Gender in Amazonia and
Melanesia, pp. 245-278. Berkeley: University of California Press.

IBGE 1987.Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mapa Etno-Histórico de Curt


Nimuendaju. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística;
Fundação Nacional Pró-Memória.
INGOLD, TIM 2001. Beyond art and technology: the anthropology of skill. In: M.B. Schiffer
(ed.) Anthropological Perspectives on technology. Albuquerque, University of New
Mexico Press.
2000. The Perception of the Environment: Essays on Livelihood, Dwelling and Skill. London,
Routledge.
1993. The temporality of landscape. World Archaeology 25 (2), 152-74.
ISNARDIS, ANDREI 2004. Lapa, Parede, Painel - Distribuição geográfica das unidades
estilísticas de grafismos rupestres do vale do Rio Peruaçu e suas relações
diacrônicas (Alto Médio São Francisco, Minas Gerais). São Paulo: Dissertação
Mestrado. Museu de Arqueologia e Etnologia. Universidade de São Paulo.
JACKOBSON, R. 1981. Selected Writings III. Poetry of Grammar and Grammar of Poetry.
Stephen Rudy (Ed.) The Hauge: Mouton.
JONES, OWEN; CLOKE, PAUL 2008. Non-Human Agencies: trees in place and time. In
Knapett, Carl; Malafouris, Lambros (Eds.). Material Agency. Towards a non-
anthropocentric approach. Springer: New York, pp. 79-96.
KÜCHLER, SUSANA 1993. Landscape as Memory: The Mapping of Process and its
Representation in Melanesian Society, in Landscape: Politics and Perspectives.
Edited by B. Bender, Providence: Berg. pp.85-107.
KÜCHLER, SUSANA & MELION, WALTER (Eds.) 1991. Images of Memory. Washington.

308
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

LA CONDAMINE, C. M. 1992. Viagem pelo Amazonas 1735-1745. Nova Fronteira, Rio de


janeiro, EDUSP, São Paulo.
LAHELMA, A. 2005. Between the Worlds. Rock Art, Landscape and Shamanism in
Subneolithic Finland." Norwegian. Archaeological Review 38(1): 29-47.
LANE, PAUL. J. 2008. The use of Ethnography in Landscape archaeology. In David, Bruno;
Thomas, Julian. Handbook of Landscape Archaeology. Left Coast Press, California,
p.237-244.
LARRABEE, Mary J. 1993. An ethic of care: feminist and interdisciplinary perspectives.
New York: Routledge.
LATHRAP, DONALD. 1970. The Upper Amazon. London: Thames & Hudson.
LATOUR, BRUNO 2005. Reassembling the Social. An Introduction to Actor-Network-
Theory. Oxford University Press.
1993. We have never been Modern. Cambridge: Harvard University Press.
LEACH, E. R. 1996 Sistemas Políticos da Alta Birmânia. Um estudo da estrutura social
Kachin. Edusp, São Paulo.
LEMONNIER, P. 1986.The study of material culture today: toward an anthropology of
technical systems. Journal of Anthropological Archaeology, 5:147-186.
1992. Elements for an Anthropology of Technology. Michigan, Museum of Anthropological
Research (88), University of Michigan, 1-24 and 79-103.
LENTZ, D. L. 2000. An imperfect balance: landscape transformations in the Precolumbian
Americas. New York,Columbia University Press.
LEROI-GOURHAN 1971 [1965]. Evolução e Técnicas. I – O Homem e a Matéria. Edições
70, Lisboa, Portugal.
LÉVI-STRAUSS, C. 1989. O pensamento selvagem. Campinas, Papirus Editora, pp.15-49.
LEWIS, OSCAR 1951. Life in a Mexican Village: Tepoztlán Restudied. Illinois: University of
Illinois Press.
LIMA, DÉBORA M. 2006. A economia doméstica em Mamirauá. In: Sociedades Caboclos
Amazônicas Modernidade e Invisibilidade, por Rui Murrieta & Walter Neves
Cristina Adams, 145-173. São Paulo: Annablume.

309
Juliana Salles Machado

2004. Ribeirinhos, pescadores e a construção da sustentabilidade nas várzeas dos rios


Amazonas e Solimões. Boletim Rede Amazônia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 57-66.
1999. A construção histórica do termo caboclo. Sobre estruturas e representações sociais no
meio rural Amazônico. Novos Cadernos do NAEA, v. 2, n. 2, p. 5-32.
LIMA, DÉBORA M. & ALENCAR, EDNA FERREIRA 2001. A lembrança da História:
memória social, ambiente e identidade na várzea do Médio Solimões. Lusotopie
Paris, p. 27-48.
LOPES, KUIS OTAVIO DO CANTO 1998. Várzea e varzeiros: ávida de um lugar no baixo
amazonas. Dissertação de Mestrado Geografia Humana, USP, São Paulo.
LOPES, MANUEL DE JESUS MASULO DA 1999. Caboclos-ribeirinhos da Amazônia: um
estudo da organização da produção camponesa no município do Careiro da Várzea,
AM. Dissertação de Mestrado geografia Humana, USP, São Paulo.
LOUREIRO, VIOLETA R 2002. Amazônia: uma história de perdas e danos, um futuro a
(re)construir. Estudos Avançados 16(45):107-121.
LYONS, J. 1977. Semantics. Vol. I e II. Cambridge: Cambridge University Press.
MACHADO, JULIANA S. 2010. Espaços antropizados: entendendo os processos de
reocupação de sítios arqueológicos a partir de uma visão etnoarqueológica. In
Pereira, E. (org.) Arqueologia Amazônica, MPEG, Belém.
2009. Arqueologia e História nas construções de Continuidade na Amazônia. Boletim do
Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v.4, n.1, p.57-70, jan-abr.
2009. Filhos de Caviana. Memorial de Qualificação I, PPGAS.
2008. Paisagem, Memória e Tecnologia entre Comunidades Amazônicas. Relatório de
Campo, Rio de Janeiro: PPGAS - MN.
2007. Memória, Paisagem e Tecnologia entre comunidades amazônicas. Projeto de
Doutorado, PPGAS.
2005. Montículos Artificiais na Amazônia Central: um estudo de caso do sítio Hatahara,
Amazonas. Dissertação de Mestrado, MAE/ USP.
MALINOWSKI, B. 1975. La cultura [1931]. In: Kahn, J.S. (Org.) El concepto de cultura:
textos fundamentales. Barcelona, Editorial Anagrama, 85-127.
MARCELIN, LOUIS HERNS 1999. A Linguagem da casa entre os negros no recôncavo
Bahiano. MANA 5(2): 31-60.

310
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

MAUÉS, RAYMUNDO HERALDO 1999. Uma outra “invenção” da Amazônia: religiões,


histórias, identidade.Belém: Cejup.
MEGGERS, BETTY & EVANS, CLIFFORD 1996 [1ºed: 1971]. Amazônia: man and culture
in a counterfeit paradise (2nd ed.). Chicago: Aldine.
1957. The Islands of Mexiana and Caviana. In Archaeology at the Mouth of Amazon.
Smithsonian Institution. Bureau of American Ethnology, Bulletin 167, Washington,
425-555.
MEGGERS, BETTY J. 1995. Amazonia on the Eve of European Contact: Etnohistorical,
Ecological, and Anthropological Perspectives. Revista de Arqueología Americana, 8,
91-115.
MENEZES, RENTA DE CASTRO 2004. A Dinâmica do Sagrado: rituais, sociabilidade e
santidade num convento do Rio de Janeiro. Relume Dumará: Núcleo de
Antropologia da Política.
MIGLIANO, ANDREA BAMBERG 2000. Amazônia: interações ecológicas e estratégias
adaptativas dos caboclos do Médio Solimões. USP, São Paulo, Dissertação de
Mestrado Biologia, USP, São Paulo.
MIGNOLO, W. 2000. Local histories/global designs : coloniality, subaltern knowledges, and
border thinking. Princeton, N.J., Princeton University Press.
MINTZ, S. 1986 (1985). Sweetness and Power. The Place of Sugar in the Modern World.
New York: Penguin Books. Pp. 215-256.
MORPHY, H. 1995. Landscape and the reproduction of the ancestral past. In Eric Hirsch &
Michael O’Hanlon (eds.) The anthropology of landscape. Perspectives on Place and
Space. Oxford, Clarendon Press, pp 184-209.
MORRIS, ROSALIND C. 1995. Theory and the The New Anthropology of Sex and Gender.
Annual Review of Anthropology. Vol. 24, pp. 567-592.
MOTTA-MAUÉS, M.A. 1993. “Trabalhadeiras” & “Camaradas”: relações de gênero,
simbolismo e ritualização numa comunidade amazônica. Belém: Editora
Universitária UFPA.

311
Juliana Salles Machado

MURRIETA, RUI SERGIO S., DUFOUR, DARNA L. & SIQUEIRA, ANDREA, D. 1999.
Food Consumption and Subsistence in Three caboclo Populations on Marajó Island,
Amazonia, Brazil. Human Ecology, Vol.27, No.3, pp. 455-475.
MURRIETA, RUI & WINKLERPRINS, ANTOINETTE 2006. “Eu adoro flores!”: gênero,
estética e experimentação agrícola em jardins e quintais de mulheres caboclas, Baixo
Amazonas, Brasil. In ADAMS, CRISTINA, RUI MURRIETA & WALTER NEVES
(Orgs.). Sociedades Caboclas Amazônicas. Modernidade e Invisibilidade. São Paulo,
Annablume: FAPESP, p. 277-294.
2003. Flowers of Water: Homegardens and Gender Roles in a Riverine Caboclo Community
in the Lower Amazon, Brazil. Anthrosource, Vol.25, No.1.
NELSON, M.C. 1991.The Study of technological organization. In: M.B. Schiffer (Ed.)
Archaeological Method and Theory (3): 57-100.
NEUPORT, A. M. 2000. Clays of Contention: An Ethnoarchaeological Study of Factionalism
and Clay Composition, Journal of Archaeological Method and Theory, Vol. 7, No. 3:
249-272.
NEVES, EDUARDO G. 2010. Archaeological Cultures and Past Identities in Precolonial
Central Amazon. In: Alf Hornborg; Jonathan Hill. (Org.). Ethnicity in Ancient
Amazonia: Reconstructing Past Identities from Archaeology, Linguistics, and
Ethnohistory. Boulder: University of Colorado Press.
2009. Warfare in Pre-Colonial Amazonia: When Carneiro Meets Clastres. In: Axel Nilsen;
William Walker. (Org.). Warfare in Cultural Context: Practice Theory and the
Archaeology of Violence. Tucson: University of Arizona Press, v. , p. 139-164.
2007. El Formativo que nunca terminó: la larga história de la estabilidad en las ocupaciones
humanas de la Amazonía Central. Boletín de Arqueología PUCP, v. 11, p. 117-142.
2005. Comment on Ethnogenesis, Regional Integration, and Ecology in Prehistoric
Amazonia: Toward a System Perspective. Current Anthropology, v. 46, n. 4, pp. 610-
611.
1999. Changing Perspectives in Amazonian Archaeology, In, Politis, G. & Alberti, B. (eds.),
South American Archaeology, London: Routledge, pp.216-243.
NEVES, EDUARDO G., PETERSEN, JAMES B., BARTONE, ROBERT N. & SILVA,
CARLOS A. 2003. Historical and Socio-cultural Origins of Amazonian Dark Earths.

312
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

In Lehmann, J. Et al (eds), Amazonian Dark earths Origin Properties Management.


Kluwer Academic Publishers, Dordrescht, The Netherlands, pp.29-50.
NIMUENDAJU, CURT 2008 [1926]. Les Indiens Palikur et leurs voisins. Encyclopédie
palikur nº1. Presses universitaires d´Orléans.
2004. In Pursuit of a Past Amazon. Archaeological Researches in the Brazilian Guyana and
in the Amazon Region. Per Sternberg (Ed.), Ethnological Studies, 45, Göteborg.
2000. Cartas do Sertão. De Curt Nimuendaju para carlos Estevão de Oliveira. Apresentação
e notas Thekla Hartmann. Museu Nacional de Etnologia. Assírio & Alvim.
NUGENT, STEPEHEN 2006. Utopias e distopias na paisagem social amazônica. In ADAMS,
CRISTINA, RUI MURRIETA & WALTER NEVES (Orgs.) Sociedades Caboclas
Amazônicas. Modernidade e Invisibilidade. São Paulo, Annablume: FAPESP, p.33-
44.
1993. Amazonian caboclo society: an essay on invisibility and peasant economy. Providence,
RI: Berg.
OLIVEIRA JUNIOR, PAULO HENRIQUES BORGES 1991. Ribeirinhos e roceiros: gênese,
subordinação e resistência camponesa em grupos, PA. Dissertação de Mestrado
Geografia Humana, USP, São Paulo.
OLIVER, JOSÉ 2001. The Archaeology of forest foraging and agricultural production in
Amazonia. In MCEWAN, COLIN, BARRETO, CRISTIANA e NEVES,
EDUARDO (Eds.). Unknown Amazon, Culture in Nature in Ancient Brazil. Londres:
British Museum Press, pp. 50-85.
OVERING, JOANNA 1999. O elogio do cotidiano: a confiança e a arte da vida social em
uma comunidade amazônica. Mana. Estudos de Antropologia Social, 5(1):81-107.
PACE, RICHARD 1997. The Amazon Caboclo: What’s in a name? Luso-Brazilian Review.
Vol. 34, no.2: 81-89.
PACHECO, GUSTAVO DE BRITTO FREIRE 2004. Brinquedo de Cura: um estudo sobre a
pajelança Maranhense. Rio de Janeiro: UFRJ.
PARKER, E. 1983. Resource Exploitation in Amazonia. Ethnoecological examples from four
populations.

313
Juliana Salles Machado

PEREIRA, EDITHE 2001. Testimony in Stone: Rock Art in the Amazon. In: McEWAN,
COLIN; BARRETO, CRISTIANA; NEVES, EDUARDO (Eds.). Unknown Amazon:
culture in nature in Ancient Brazil. Londres: The British Museum Press, pp. 214-
231.
PETERSEN, JAMES, NEVES, EDUARDO & HECKENBERGER, MICHAEL 2001.Gift
from the past: Terra Preta and Prehistoric Amerindian Occupation in Amazonia, In
Unknown Amazon, Culture in Nature in Ancient Brazil, McEwan, C.Barreto and
Eduardo Neves, eds. London: British Museum Press.
PFAFFENBERGER, B. 1992. Social anthropology of technology. Annual Review of
Anthropology 21: 491-516.
2001. Symbols do not create meanings – Activities do: Or, Why symbolic anthropology needs
the anthropology of technology. In: M.B. Schiffer (Ed.) Anthropological Perspectives
on technology, Albuquerque, University of New Mexico Press.

POLITIS, GUSTAVO 1995. Moving to Produce: Nukak Mobility and Settlement Patterns in
Amazonia. World Archaeology, v. 27, n. 3, p. 492-511.
POSEY, DARELL 2008. Indigenous Management of Tropical Forest Ecosystems: the case of
the Kayapó Indians of the Brazilian Amazon. In DOVE, Michael e CARPENTER,
Carol (Orgs.). Environmental Anthropology. A Historical Reader. Oxford:
Blackwell, p. 89-101.
1998. Diachronic Ecotones and Anthropogenic Landscapes in Amazonia: Contesting the
Consciousness of Conservation. Advances in Historical Ecology. W. Balée. New
York, Columbia University Press, pp.104-118.
POSEY, DARREL & WILLIAM BALÉE (ED.) 1989. Resource Management in Amazonia:
indigenous and folk strategies. New York: The New York Botanical Garden.
PRANDI, REGINALDO (Org). 2001. Encantaria Brasileira: o livro dos mestres, caboclos e
encantados. Pallas, Rio de Janeiro.
RAFFLES, H 2002. In Amazonia: a natural history. Princeton, N.J.: Princeton University
Press.
1999. “Local Theory”: Nature and the making of an Amazonian Place. Cultural
Anthropology, Vol.14, No.3, pp.323-360.
REDFIELD, ROBERT 1969. Peasant society and culture: an anthropological approach to
civilization. Chicago: The University of Chicago Press, vii, 163 p.

314
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

REICHEL-DOLMATOFF, GERARDO 1996. The Forest within. The world-view of the


Tukano Amazonian Indians. Themis Books, 1996.
REYNOLDS, M. J. 2003. Thriving at the edges: Agency, identity, and adaptation in the
Brazilian Amazon.Chicago, IL, The University of Chicago.
RIVAL, LAURA M. 1998. The social life of trees : anthropological perspectives on tree
symbolism. Oxford, UK ; New York: Berg.
RODRIGUES FERREIRA, A. 1974. Viagem Filosófica pelas Capitanias do grão pará, Rio
Negro, Mato Grosso e Cuiabá 1783-1792. Memórias, Antropologia, Rio de Janeiro.
RODRIGUES, C. I. 2006. Caboclos na Amazônia: a identidade na diferença. Novos Cadernos
NAEA, V.9, No.1, june, 119-130.
ROOSEVELT, ANNA 1991. Moundbuilders of the Amazon: Geophysical Archaeology on
Marajó Island, Brazil, San Diego: Academic Press,.
ROSALDO, RENATO 1980 Ilongot Headhunting 1883-1974. A Study in Society and History.
Stanford University Press. Stanford, California.
ROSTAIN, STEPHEN 2011. Que hay de Nuevo al norte. Apuntes sobre el Aristé. Revista de
Arqueologia. Sociedade de Arqueologia Brasieleira, São Paulo, 24(1):10-31.
SAHLINS, MARSHALL 1985. Islands of History. Chicago: The University of Chicago
Press.

1981. Historical Metaphors and Mythical Realities. Ann Arbor: The University of Michigan
Press, 1981.
SANTOS-GRANERO, FERNANDO 1998. Writing History into the Landscape: Space, Myth,
and Ritual in Contemporary Amazonia. American Ethnologist 25:128-148.
SCHAAN, DENISE P. 2004. The Camutins Chiefdom, PHD Thesis, University of Pittsburgh,
Pittsburgh.
SCHADEN, FRANCISCO, S.G. 1963. Índios, Caboclos e colonos: páginas de etnografia,
sociologia e folclore. Revista de Antropologia, 1, são Paulo. 1949. Índios e
Caboclos: páginas de etnografia e folclore.Departamento de Cultura, Separata da
Revista do Arquivo Municipal, 125, São Paulo.

315
Juliana Salles Machado

SCHIFFER, MICHAEL B. & SKIBO, JAMES 1992. Theory and Experiment in the Study of
technical change. In: M.B. Schiffer (Ed.) Technological Perspectives on Behavioral
Change. Tucson, University of Arizona Press, 40-76.
1997. The explanation of artifact variability. American Antiquity, 62(1): 27-50.
SCHIFFER, MICHAEL B. 2001. The explanation of long-term technological change. In:
M.B. Schiffer (Ed.)Anthropological Perspectives on technology. Albuquerque,
University of New Mexico Press, 215-236.
1972. Archaeological Context and Systemic Context. American Antiquity, 37(2): 156-165.
SEGALEN, M. 1980. Mari et Femme dans la Societé Paysanne. Paris: Flammarion.

SIGAUD, LYGIA 1996. Apresentação. In: LEACH, E. Sistemas Políticos da Alta Birmânia.
Um Estudo da Estrutura Social Kachin. São Paulo: EDUSP, pp. 9-45.
SILVA, FABÍOLA A., 2003. Cultural Behaviors of Indigenous Populations and the
Formation of the Archaeological Record in Amazonian Dark Earth: The Asurini do
Xingu Case Study. In: LEHMANN, Johannes; KERN, Dirse; GLASER, Bruno;
WOODS, William (Orgs.). Amazonian Dark Earths. Origin, Properties,
Management. Norwell: Kluwer Academic Publishers, pp. 373-385.
2000. As Tecnologias e seus Significados. PHD Thesis, Universidade de São Paulo.
SILVA, ORLANDO SAMPAIO 1996. Índios e Caboclos: estudo da obra de Eduardo Galvão.
Tese de Doutorado PUC, São Paulo.
SILVA, TATIANA LINS 1980. Os Curupiras foram embora: economia, política e ideologia
numa comunidade amazônica. Rio de Janeiro: UFRJ, . 188f.
SILVIUS, KIRSTEN M; BODMER, RICHARD & FRAGOSO, JOSE M. V. 2004. People in
Nature. Wild Life Conservation in South and Central America. Columbia University
Press: New York
SIQUEIRA, ANDREA 2006. Mulheres, relações de gênero e tomadas de decisão em unidades
domésticas caboclas do estuário amazônico. In ADAMS, CRISTINA, RUI
MURRIETA & WALTER NEVES (Orgs.) 2006 Sociedades Caboclas Amazônicas.
Modernidade e Invisibilidade. São Paulo, Annablume: FAPESP, p. 261-276.
SKIBO JAMES & SCHIFFER, MICHAEL B. 2001. Understanding artifact variability and
change: a behavioral framework. In: M.B. Schiffer (Ed.) Anthropological
Perspectives on technology. Albuquerque, University of New Mexico Press, 139-
150.

316
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

SLATER, CANDACE 2002. Entangled Eden: visions of the Amazon. Berkeley: University of
California Press.
1994. Dance of the dolphin: transformation and disenchantment in the Amazonian
imagination. Chicago: University of Chicago Press.
SMITH, N. J. H. 2002. Amazon sweet sea: land, life, and water at the river's mouth. Austin,
University of Texas Press.
STRATHERN, MARILYN 2004. The Whole Person and its Artifacts. Annual Review of
Anthropology. Vol. 33, pp. xiv, 1-19.
1988. The Gender of the Gift.Problems with Women and Problems with Society in Melanesia.
Berkeley: Los Angeles: London: University of California Press.
STEWARD, PMELA & STRATHERN, ANDREW 2003. Landscape, Memory and History:
anthropological perspectives.
SURRALLÉS, ALEXANDRE & HIERRO, PEDRO GARCIA (eds) 2005. The Land Within.
Indigenous Territory and the Perception of the Environment. IWGIA, Copenhagen.
TEDLOCK, D. 1983. The spoken Word and the work of Interpretation. Philadelphia:
University of Pennsylvania Press.

THOMAS, NICHOLAS 1989. Out of Time. History and Evolution in Anthropological


Discourse. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 102-122.
THOMAS, W. I. & ZNANIECKI, F. 1974. The Polish Peasant in Europe and America. New
York: Octagon Books.
THORNER, DANIEL, KERBLAY, BASILE & SMITH, R. E. F. 1986.The theory of peasant
economy. Madison: The University of Wisconsin Press, 316 p.
TILLEY, CRISTOPHER 2008. Phenomenological Appraches to Landscape ASrchaeology. In
David, Bruno; Thomas, Julian. Handbook of Landscape Archaeology. Left Coast
Press, California, p.271-276.
TORENCE & VAN DER LEEUF 1989. Introduction: What´s new about innovation? A
closer look at the process of innovation. London, Unwin Hyman.
TRUJILLO-C., WILLIAM; GONZALEZ, VITOR H. 2011. Plantas medicinales utilizadas
por tres comunidades indígenas em El noroccidente de La Amazônia colombiana.
Mundo Amazônico, 2, pp. 283-305.

317
Juliana Salles Machado

UCKO, PETER & LAYTON, ROBERT. (Eds) 1999. The Archaeology and Anthropology of
Landscape: shaping your landscape. Routledge, London.
URBAN, GREG 1986. Semiotic function of Macro-Paralelism. In: Joel Sherzer and Greg
Urban (eds.), Native American Discourse. NY: Mouton de Gruyter. P. 25-68.
VIDAL, LUX 2007. A Cobra-Grande: uma introdução à cosmologia dos Povos indígenas do
Uaçá e Baixo Oiapoque – Amapá. Rio de Janeiro: Museu do Índio.
VIDAL, SILVIA M. 2000. Kuwé Duwákalumi: The Arawak Sacred Routes of Migration,
Trade, and Resistance. Ethnohistory, 47:635-667.
VIEGAS, SUSANA DORES DE MATOS 2003. Socialidades Tupi: identidade e experiência
vivida entre índios-caboclos (Bahia/Brasil). Coimbra: Universidade de Coimbra,
Faculdade de Ciências e Tecnologia, 13, 423, pp. xxxiiip.
VIEIRA, A. 1951. Obras Escolhidas, Vol. V – Em Defeza dos Índios. Livraria Sá da Costa
(Obras Várias III), Lisboa.
VILAÇA, APARECIDA 2006. Quem somos nós. Os Wari´encontram os brancos. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ.
2002. Making kin out of others in Amazônia. JRAI, 8:347-365.
VIVEIROS DE CASTRO, EDUARDO B. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem. São
Paulo: Cosac & Naify.1996. Images of nature and society in Amazonian ethnology.
Annual Review of Anthropology, 25:179-200.
WAGLEY, CHARLES 1961. Os índios Tenetehara: uma cultura em transição. MEC, Rio de
Janeiro.
1957. Uma Comunidade Amazônica: um estudo do homem nos trópicos. Companhia Editora
Nacional, São Paulo. 1957 Uma Comunidade Amazônica: um estudo do homem nos
trópicos. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
WHATEMORE, SARAH 2002. Hybrid geographies: natures, cultures, spaces. University of
Oxford Press.
WHITEHEAD, N. 1998. Indigenous Cartography in Lowland South America and the
Caribbean. In D. Woodward and G. M. Lewis. The History of Cartography:
Cartography in the Traditional African, American, Arctic, Australian, and Pacific
Societies. Chicago, IL, Chicago University Press. 2: 301-326.
WOLF, E. 2003. Closed Corporate Peasant Communities in Mesoamerica and Central Java.
In: Peasant Society: a reader, por Potter et al., 145-164. Boston: Little Brown.

318
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico

YANOMAMI, DAVI KOPENAWA 1991 A Yanomami Leader Speaks: a message from Davi
Kopenawa Yanomami. Anthropology Newsletter, American Anthropological
Association, Washington DC, 32 (6):52.
ZALUAR, ALBA 1974. Os homens de Deus: um estudo comparativo sobre o sistema de
crenças e práticas do catolicismo popular em algumas áreas do Brasil rural. Rio de
Janeiro: UFRJ.
ZEDEÑO, MARIA NIEVES 2008. The Archaeology of Territory and Territoriality In David,
Bruno; Thomas, Julian. Handbook of Landscape Archaeology. Left Coast Press,
California, p. 210-217.
ZEDEÑO, MARIA NIEVES; BOWSER, BRENDA (Eds.) 2009. The archaeology of
meaningful places. University of Utah Press.

319
Anexos

320
Anexo 1

“Caviana” 1

Alcindo Abdom

[Abertura Geral]

1 A ilha Caviana, a linda sereia do soneto do compositor e poeta, o capixaba “Mosar Bicalio”.

[Bloco 1]

2 Essa ilha era habitada pelos índios Caviana, que pela suas aparências deveriam descender do povo
Espanhol dado a cor de seus cabelos e suas peles, esses viviam de caça e pesca;

3 Até que pelos anos de 1796 chegou em uma das enseadas dessas ilha, um português chamada Pedro
Corrêa de Brito, enseada essa de Porto Manso, tendo em frentes três pequenas ilhas, que dado as tidas
terem grande quantidade de aves, da qual a maior quantidade eram chamadas marrecas, logo apelidada de
ilhas das Marrecas. Pedro era um português de estatura média, porém forte e de uma vontade imensa de
se tornar senhor possuidor de uma imensidão de terras.

4 Assim ao chegar nessa ilha tratou de fazer amizades com os índios Cavianos; e tendo se feito
acompanhar de seu primo Isidora Carvalho de Brito e da sua mulher e seus filhos e outro português
chamado Venceslau Firmo Figueiredo, cada um dos componentes levando seus escravos em média seis
para cada um, esses eram para todos os serviços, inclusive remeiros do pequeno barco com capacidade
para 10 toneladas de peso, quando não tinha vento para arrastar o barco, os escravos serviam de seus
remos denominados Paia, para continuar a viagem, assim foram fixadas as residências dos três primeiros
aventureiros que abordaram a rica ilha e denominado o local domo São Pedro. Os barracos foram
construídos com a própria madeira existente na ilha. Essas madeiras chamadas Anoirá e Pau Mulato:

5 Pedro com as amizades feitas com os indígenas dando presentes de lenço de cor encarando, miçangas e
outras bijuterias sendo para os mais graduados como sejam o Tuxana denominado Batú e curandeiro
Touro Preto. Foi presenteado com duas facas de fabricação inglesa e para a índia Jandira, essa de cabelos
ruivos e olhos esverdeados a mais bonita da tribo foi lhe dado por Pedro, vestidos encarnados, brincos e
sandálias e meses depois, após a chegada dos aventureiros se tornou companheira de Pedro.

6 E assim Pedro foi buscando em Belém do Pará outros colonos que se submetiam a Pedro nos trabalhos
de colonização, em outras viagens para Belém do Pará, através dos estreitos de Breves eram levados para
ilhas, gado Vacum Cavalares, caprinos, porcos e aves domésticas, que distribuíam com os colonos,
ficando o senhor Pedro com os direitos de vender os animais já produzidos e para corte;

7 Que no valor da venda eram feitos beneficiamentos da comunidade do qual os indígenas trabalhavam
duro para o senhor Pedro, dado Jandira já se achar com um bebê nos braços, filho de Pedro: Assim a ilha
foi sendo povoada por mais colonos portugueses e escravos;

8 Pois achavam que descobriram um paraíso banhado de águas doces. Essa ilha além de ser fértil possuía
uma imensidão de animais de espécie como sejam: capivara, veado, porco do mato, animais de casco e
Peixe-Boi, pirarucu, aves de muitas espécies e verdes campos apropriado para a criação de animais
domésticos, e parte Norte da ilha era impressionante a quantidade de jacarés, esse nome dado pela gíria
indígena e por nós crocodilo. As suas carnes e ovos eram apreciados pelos indígenas.

9 Assim se tornando um paraíso tanto para os primitivos como para os colonos, que viviam no
entrosamento de trabalho e amizades tanto assim que a esposa e filhas de Isidoro que eram de formação
católica, se tornaram professores no ensinamento de religião católica ao povo indígena e Pedro ergueu
uma grande cruz e construiu um templo de orações a onde se reuniam colonos e indígenas aos domingos

1
O texto foi integralmente reproduzido, mas as divisões apresentadas e algumas correções ortográficas
são de minha responsabilidade.

321
para prestarem cultos as coisa divinas, e assim continuavam a paz e tranqüilidade entre índios e colonos
que foram se casando e moda índia, filhos de colonos com filhas de indígenas, foi se tornando populosa;

10 A sereia da Foz do Amazonas que, que se limita pelo sul com a ilha de Marajó, com o Norte, com as
ilhas de Viçosa e Ciríaca, e com o nascente com a ilha de Mexiana, formando o arquipélago amazônico;

11 Aonde reinava a paz de um povo que só conhecia o trabalho, a caça e a pesca, agricultura e a criação
de animais domésticos, tendo como troféu o melhor caçador indígena. Só tendo como lazer a festa, os
estilos indígenas e africanos. Esses afrobrasileiros promoviam festas de São João, São Pedro, ao som dos
batuques e tambores indígenas e as danças de roda.

[Abertura 2]

12 Essa tranqüilidade foi quebrada uma certa manhã ensolarada/ 13 com a chegada de uma caravela que
erguia uma bandeira de nacionalidade Francesa tripulada por homens armados de facões, espadas e
garruchas carregadas pela boca;

[Bloco 2]

14 Desembarcando uma parte da tripulação, fizeram ciente Pedro Correa de Brito através de um homem
falando português que iria ocupar a ilha, hasteando uma bandeira francesa.

15 E Pedro meditando alguns minutos respondeu ao tal homem que ia conversar com os colegas colonos
e o tuxana dos índios Cavianos, assim titulados para que não houvesse grandes lutas, e no dia seguinte iria
a borda levar a resposta das conversações para o comandante da nave;

16 que com desconfiança o chefe e os marujos aceitaram a proposta porque Pedro com a maior habilidade
tratou os marujos oferecendo queijo, pássaros denominados jaburus, que tem uma carne saborosa, para os
mesmos banquetearam a borda.

17 E Pedro entrou logo em conversação com o seu sogro o tuxana Batú e o curandeiro Touro Preto,
combinado como seus guerreiros e os colonos receberiam os marujos em terá no dia seguinte, teriam a
vantagem da surpresa para o combate.

18 Pedro mandaria uma igarité convidando para o desembarque, assim foi no dia seguinte mandando para
a bordo a igarité levar o convite que foi aceito pelo comandante. Esse como medida de precaução mandou
seu subcomandante e uma parte da tripulação dar o desembarque,

19 que ao chegar em terra foram logo desarmados, os que sobraram com vida foram aprisionados, e suas
armas serviram para armar mais voluntários que avisados foram chegando das fazendas Tachipurú, Monte
Alegre e Piranhas formando um bastante pelotão de combate.

20 Tendo um índio, filho de Tuxaua que pretendia substituir seu pai procurou o chefe Pedro expondo seu
plano para Pedro:

21 Pretendia nadar até aonde se achava ancorado o Galeão, e com sua faca amolada que fora presenteada
pelo próprio Pedro. Abriria um rombo na embarcação e cortaria a amarra da mesma, deixando a mercê
das correntezas;

22 que na noite anterior tinha ido observar que certa hora todos a bordo se achavam dormindo, ai
colocava seu plano em ação, não tinha falado ainda ao grande chefe Pedro, com receio de que Pedro se
contrariasse.

23 Porém como Pedro tinha receio por ter o número inferior de combatentes para a defesa, e como tinha
sido ferido meditou porque não gostava desse tipo de defesa, gostava do combate limpo e leal, mas se
achava gravemente ferido concordou;

24 Pois logo dois meses após o acontecido veio a falecer, não tendo o curandeiro Touro Preto e nem um
prático em enfermagem, o português Joaquim Albuquerque da Silva conseguido salvá-lo a noite;

25 Batú filho esperou que tudo se achasse em silêncio fazendo de uma tora de aminja bóia salva-vida,
nadou para o Galeão que achava-se ancorado entre a ilha Caviana e as três ilhas denominadas Marrecas.

322
26 Batú filho, chegando logo ao Galeão esperou cerca de uma hora até constatar que a tripulação se
achava dormindo, começou a operação mergulho. E trabalhando com sua faca conseguiu dentro de uma
hora abrir um buraco de 25 cm de comprimento por 10 cm de largura, junto a Carkinga do Galeão;

27 Pois essa região seria impossível ser ouvido o maruja das águas, assim descobrindo a operação pois só
foi apropriada pela embarcação pois as madeiras que hoje constrói-se embarcação chamam-se Piquiá,
Itaúba, Acapú, seria inteiramente impossível esse tipo de trabalho, ou pelo mesmo muito demorado para
ser feito com uma faca.

28 Batu em seguida cortou a amarra de piçaba do Galeão nadando com muito cuidado em
silenciosamente de volta para a ilha;

29 amanhecendo dormindo no celeiro do seu cunhado Pedro Corrêa de Brito, e pela manhã verificaram
que a caravela não estava mais ancorada no local que anteriormente se achava.

30 Pedro mandando uma igarité a remo espionar onde se achava o Galeão que foi visto afundando longe
no meio do canal entre a ilha Caviana e uma praia que hoje denominada Camaleões;

31 para o bem estar dos colonos e indígenas, houve uma pequena tempestade que se calcula que a
tripulação querendo salvar-se nas balieiras pereceram afogados antes de chegar na praia pelas grandes
ondas que se fizeram com a tempestade;

[Abertura]

32 chegando essa notícia ao conhecimento do Governador debelem do Pará, através do intendente de


Chaves que pedia anexação da ilha Caviana como distrito de Chaves e com o falecimento de Pedro
Correa de Brito o Governador de Belém do Pará;

33 querendo agraciar o moço recém-chegado de Portugal, descendente da nobreza portuguesa, Afonso


Gomes da Costa, pois o mandou como senhor dono da ilha, como juiz e representante do Governo, com
carta branca para fazer e desfazer.

[Bloco 3]

34 Esse feudal era possuidor de uma soma elevada de valores e conseguindo uma leva de escravos
dirigiu-se para a ilha, tomou posse e construiu uma bela residência chamada Vera Cruz;

35 Iniciou uma espécie de reinado, e como era um homem de princípios religiosos era um bom homem,
honesto e um bom condutor, que cuidou logo de criar meios de alfabetizar nem só os filhos dos colonos,
dos escravos e dos indígenas,

36 Assim foi se povoando mais sua ilha, que trazendo mais colonos de origem portuguesa que se
chamavam Diogo Pinto de Sousa, João Alberto Furtado, Augusto Sérgio de Oliveira Brito, João Corrêa;

37 E assim viviam em clima de paz e tranqüilidade.

[Abertura]

38 Até que foi mandado para Vila de Chaves, de onde os viventes da ilha Caviana eram municipalistas.

[Bloco 4]

39 Esse homem que veio como intendente da Vila Chaves, chamava-se Judas Capistrano que se fazia juiz,
senhor e ditador;

40 Homem esse de instintos maus e de uma ganância incalculável, pois não só continha com que já tinha,
passou a explorar os viventes da ilha Caviana, que teria de obedecer os desejos do senhor intendente
Capistrano;

41 Que gozava de grande prestígio junto os bajuladores do Governador de Belém do Pará, Esse prestígio
a custa de ricos presentes, assim como muitos asseclas que viviam sobre suas ordens;

42 Capistrano, achando que Afonso Gomes da Costa estava se tornando uma espécie de Rei da Ilha;

323
43 Dando aos índios Cavianos, que estavam em comum acordo com os colonos dado a intrusão como
sejam casamentos das filhas de índios com filhos de colonos, assim como filhos de colonos com moças
índias;

44 Tanto que Afonso Gomes da Costa tornou para sua esposa a índia Sussuarana na qual passou a se
chamar Servina da Costa;

45 E com essa função Afonso Gomes da Costa e Isidoro de Brito eram senhores que se reuniam em
assembléia;

46 Quando necessário se fazia tomar qualquer decisão sobre os destinos de algum colono que cometia
qualquer erra, esses dois homens eram os que condenavam ou absorviam os demais residentes, após
passarem pelas sentenças que eram sempre quando condenados, eram sujeitos a trabalho por dois a seis
meses. Conforme o caso; isso até os indígenas estavam sujeitos a essas penalidade;

47 Pois não tinha havido nenhum caso de homicídio ou furto, corriam em amplo progresso, os moradores
da ilha;

48 Capistrano, sabendo que a prosperidade da ilha poderia lhe causar contrariedades, criou uma lei que o
distrito teria que pagar tributo para a Vila de Chaves que era cabeça da comarca proibindo ainda até
fazerem transações comerciais com o povo da próxima Vila de Afuá, dificultando a prosperidade daquela
gente ordeira e trabalhadora.

[Abertura]

49 Até que um dia o destino quis proteger essa gente, pois Capistrano foi morto por filho e sobrinho de
fazendeiro que tinham sido mortos, passando as fazendas para Capistrano, até que fora morto.

50 Assim voltando a paz na vila de Chaves e com bons entrosamentos entre o novo intendente de Chaves
o Sr. Antonio Goia de Delcarme e Afonso Gomes da Costa, as duas localidade progrediram;

[Bloco 5]

51 tanto que chegou ao ponto de Afonso Gomes da Costa resolveu lotear a ilha entre os colonos;

52 dando a Venceslau Figueiredo, a parte do nascente da ilha compreendendo do Igarapé Piranha, nome
esse dado pelos indígenas até o igarapé Pacutuba [Pracutuba], nome esse também indígena;

53 e para Sérgio Augusto de Oliveira Brito, a parte norte da ilha compreendido do furo do Guajuru
rodando até a ponta do Espírito Santo, nome esse denominado por Afonso Gomes da Costa, aonde existe
um igarapé por nome Carmo, aonde Sérgio localizou sua residência;

54 dando ainda para João Alberto Furtado a parte da ponta de Rio Ubussutuba [Ubuçutuba], nome esse
indígena, até o igarapé faxipucú [Taxipucu];

55 dando ainda para Isidoro de Brito da margem direta de que sobre o igarapé faxipucú [Taxipucu], até o
lugar denominado por ele Afonso Gomes da Costa, até o lugar Monte Alegre;

56 essas doações foram feitas para que evitasse de os vendedores ambulantes que começaram a introduzir
na ilha, vindo embarcações a vela que eram tripuladas por escravos que serviam de remeiros para quando
faltava vento, assim seria difícil os invasores ambulantes negociarem com bebidas alcoólicas para com os
indígenas e escravos.

57 Afonso Gomes da Costa criou uma pequena polícia aramada com espingarda de carregação pela boca,
tendo como professor de tiros o Capitão Batista, um português calmo e sábio que viera de Portugal, a
pedido de Afonso Gomes da Costa;

58 que por pouco a ilha não caiu na mão de um dos navegadores ambulantes por nome Fontele;

59 pois já tinham escapados de um navegador francês que tendo chegado em um Porto da ilha na parte
norte chamado Caloau, trazendo uma guarnição bem armada.

[Abertura]

324
60 Assim Afonso Gomes da Costa, preocupado em defender a ilha dos navegadores e mercadores, ainda
teria que expulsar os franceses.

61 Assim criou uma pequena força comandada por Coronel Batista que sob induzir os marujos franceses
para dentro da mata e com a prática dos índios e colonos foi fácil o combate para os defensores da ilha
restando uma pequena parte de marujos que retornaram para a embarcação francesa que logo cuidaram de
fazer-se ao largo da ilha, pois Batista seu pelotão ainda permaneceu vários dias com parte de colonos e
escravos que permaneceram no local já descritos;

62 Tendo ficado um homem como prisioneiro que rendeu-se e com o tempo tornou-se amigo de Afonso
Gomes da Costa e dos colonos,

[Bloco 6]

63 Por ser médico e ainda casando-se com a índia Caviana chamada Piaçoca aonde tiveram uma filha
chamada Arlete nome esse francês que apelidada Aracari, nome esse indígena.

64 Essa apaixonou-se pelo filho de Isidoro Carvalho de Brito;

65 Essa união não aceita pelos familiares de ambas as partes, de onde começou um conflito entre as duas
partes dividindo os indígenas em duas forças, e começando uma luta de mortes;

66 Porém saindo vencedor, Isidoro Brito, que também contava com a força dos colonos;

67 Porém essa luta quase que extermina com a tribo dos Cavianas ou melhor, os pacatos índios Cavianos
que esses por volta de 1925 ainda tinha os lavradores descendentes de uma índia de nome Sussuarana e de
Isidoro Brito;

68 Dizem os antigos que essa indígena tornou-se uma lenda na nela ilha, que nas noites de lua cheia
aonde era a fazenda Monte Alegre, aparece uma índia com a voz de tenora cantando uma canção em
língua indígena e em português, sendo acompanhada de tambores rufenios;

69 Tanto que um caboclo Sérgio que morreu em 1930 contando 104 anos de idade, contava que quando
tinha 20 anos de nascido, ia todas as sextas-feiras para as proximidades da antiga fazenda Monte Alegre
ouvir as ditas canções aonde Sérgio aprendeu um trecho da canção que era cantada em português:

70

I
As horas mortas da noite
A lua brilha no mar,
As ondas beijando as praias,
Dormes no lindo luar.

II
Sei que de mim não te lembras,
Quando daqui te ausentares,
Meu coração se apaixona,
Quando partir e me deixar.

[Abertura]

71 Esse caboclo Sérgio, que também se acha enterrado no cemitério da fazenda Monte Alegre, era de uma
descendência de colonos e indígenas:

72 Hoje essa ilha é cheia de fazendas de criação de gado vacum, bubalinos e cavalares e,

73 Por cerca de 1950, o pai do autor desta história possuía uma fazenda de criação de gado num lugar
denominado São Pedro,

[Bloco 7]

325
74 Aonde apareceu um casal de americanos do Norte, com uma autorização do governo federal para
pesquisa de coisas indígenas;

75 Aonde efetuaram uma escavação nesse lugar denominado Monte Alegre, no outro lugar denominado
Teso do Arapapá que eram destinados aos enterros, tanto de colonos como de indígenas;

76 E sendo retirado cerca de 200 sacolas de restos mortais de índios e utensílios de caça e pesca dos
indígenas, essas sacolas forma embarcadas para serem levadas para New York via Macapá;

77 Há uma pergunta no ar, seria somente utensílios de índios que continham as ditas sacolas?

[Abertura]

78 Vamos a história!

79 Essa ilha foi bem denominada pelos escritor capixaba Mozar Bichalo como sereia do Amazonas,
porque em uma certa época do inverno pelos dias de lua cheira dá uma grande onda na Costa Leste;

[Bloco 8]

80 Ondas essas denominadas Pororoca que cerca de meia hora antes delas surgirem, há uma espécie de
cântico que se misturam, os cânticos das saracuras aritauã que embreasse os caboclos residentes na
redondeza e quando passam as ondas deixam um marujar sonoro parecendo assim irem com saudades
distanciar-se da ilha;

81 Que ainda é conhecida como reserva ecológica, porque ainda existem uma grande quantidade de
animais peixes denominados Peixe-Boi, Pirarucú, Tucunaré em grande quantidades nos igarapés
denominados Papajá, Taxipurú e lagos denominados escarpados. Tuiuiú, Massarico, Pocotó e seus
campos verdes perfumados por flores de Carobeiras, Ingá Xixica e pelas cores dos pássaros denominados
Jaburús, Colheira, Guará Tuiuiu como já falamos das quantidades e espécies de jacarés como seja Jacaré
Açu, Tinga, Uma Corôa que essa espécie de Corôa foi denominado pelos colonos por serem rajadas de
preto e branco sendo o Tinga é de cor amarelo claro e a carne e seus ovos são prediletos dos indígenas.

[Bloco 9]

82 E por falar em indígena, o autor deste livro conheceu um casal denominado Manoel Gomes e Efigênia,
falecidos em 1940, ambos descendentes dos índios Cavianos;

83 Ele faleceu com cerca de 110 anos e ela com cerca de 95 anos;

84 Contavam que quando se uniram, viveram de pesca e agricultura e na certa noite de lua, estavam
pescando na sua igarité, e viram quando os remanescentes dos índios Cavianos saíram em suas pirogas a
remo;

85 Piroga nome da embarcação fabricada pelos índios;

86 E pela conversação dos índios Cavianos que ela falava sobre os mesmos iam a procura de novas terras,
onde pudessem viver tranqüilos, sem a intercessão do homem branco, os índios sabiam haver na terra
geral lugares aonde poderiam estabelecer-se e na cabeceira do Calçoene,

[Bloco 10]

87 O autor dessa história convida aos que lerem essa, façam um minuto de silêncio em memória desses
heróis anônimos e dos bravos aventureiros que muito deve a Pátria Brasileira à eles e as seus filhos, pela
força de seus braços, povoar e colonizar o solo brasileiro que a mãe natureza os deu. Quem nos dera que
os homens de hoje, Presidente da República, Senadores, Homens de lei, possuíssem a corajosa força de
vontade desses heróis.

[Bloco 11]

88 Caviana a sereia do autor que sente-se feliz de ter nascido em 18.08.1918 nessa ilha;

326
89 Pois, Marajó, Caviana e Mexiana formam o arquipélago hipotético da Grã Região Americana que de
um lado tem a cidade de Belém do Grão Pará do saudoso Joaquim Cardoso de Magalhães Barata e de
outro o rico Estado do Amapá de Januari Nunes e Governador Anibal Barcellos.

[Fechamento]

90 Caviana, Caviana, Caviana.

91 O autor deste pede que lhes seja perdoado alguns erros, pois conhecer como é dos romances de
Alexandre Dumas, Emile Zola, Humberto de Campos, Olavo Bilac, que um deles com o erro em alma
gentil que te partiste, foi celebrizado.

327
ANEXO 2

QUESTIONÁRIO 1: ECONOMIA E ASSENTAMENTO

ITEM VARIÁVEL
1 localização de cada indivíduo nas redes de identificação nos diagramas
parentesco genealógicos
2 sexo feminino ou masculino
3 número de identificação da casa alfa-numérico
4 nome do lugar onde fica a casa nominal
5 tipo de assentamento margem alagada de igarapé
margem seca de igarapé
costa da ilha
campo natural
6 forma de agrupamento das casas configuração de casas – mais de
três casas
grupo doméstico – até três casas
casa isolada
7 roças presença ou ausência
8 terreiros presença ou ausência
9 canteiros presença ou ausência
10 uso de áreas abandonadas presença ou ausência
11 criação de animais gado
porcos
galinhas
patos
12 pesca consumo doméstico
venda
13 posse de embarcações canoa
barco pequeno
barco médio
barco grande
14 atividades rentáveis/ remuneração remuneração mensal
venda de produtos da roça
venda de pescado
atividade mista
Tabela com questionário sobre economia e assentamento

328
FAMÍLIA FIGUEIREDO

1 2 17 16

119 3 149 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

116 115 112 111 150 120 121 122 123 124 125 126 127 155* 155* 154 153 152 151 150 18 19 20 21 22 23 24 25 26

114 113 128 129 130 131 132 133 134 135 136 137 138 139 167 156 157 158 159 160 161 162 163 164 165 166 57 56 60 61 62 64 63 66 65 67 42 41 44 43 46 45 47 49 48 50 51 52 35 36 33 34 28 29 27 31 32 30 37 38 85 84 83 82 81 80 79 78 77 76 75 74 72 73

118 117 144 143 142 141 140 168 169 170 171 172 173 174 175 176 177 178 179 58 59 69 70 71 68 54 55 53 40 39 109 108 107 106 105 104 103 102 101 100 99 98 96 97 94 86 87 88 89 90 91 92

110 95 93
148 147 145 146

Mulher Homem Sexo não informado Falecido

1. Braulia Correia da Boa Morte, Fazendinha 32. Velha 63. Frederico, Taxipucu 94. Emerson, Macapá 124. Inês Correia de Figueiredo 155. Daniel Nascimento Rodrigues
2. Augusto Firmo Figueiredo, Fazendinha 33. Everaldo Figueiredo, Taxipucu 64. Edgar, Taxipucu 95. Tamires, Macapá 125. Tertuliano Correia de Figueiredo 156. Ana Maria Rodrigues dos Santos
3. Samuel Correia de Figueiredo 34. SN – Divorciado 65. Flavio, Taxipucu 96. Estefani, João Brás 126. Eustaquelino Correia de Figueiredo 157. Rose Rodrigues dos Santos
4. Noé Correia de Figueiredo 35. Renilda Figueiredo 66. Cristiane, Taxipucu 97. Adolfo Filho, João Brás 127. Olzinda Nascimento Rodrigues 158. Manuel Rodrigues dos Santos
5. Manuel Correia de Figueiredo 36. Janio 67. Firmo, Taxipucu 98. José Celestino Júnior, Macapá 128. Reinaldo Rodrigues Figueiredo 159. Waldir Rodrigues dos Santos
6. Luzinan Correia de Figueiredo 37. José Figueiredo 68. Robson, Taxipucu 99. William 129. Maria Rodrigues Figueiredo 160. José Rodrigues dos Santos
7. Gabino Correia de Figueiredo 38. Zilma 69. Filho de Reinaldo 100. Iasmim, Macapá 130. Paulo Rodrigues Figueiredo 161. Lauro Rodrigues dos Santos
8. Tertuliano Correia de Figueiredo 39. Vanessa 70. Filho de Reinaldo 101. Ana Tereza, Macapá 131. Marina Rodrigues Figueiredo 162. Maria Rodrigues dos Santos
9. Dina Correia de Figueiredo 40. Nubia 71. Filho de Reinaldo 102. Aline, Macapá 132. Donato Rodrigues Figueiredo 163. Elísia Rodrigues dos Santos
10. Ambrosio Correia de Figueiredo 41. Rosária Figueiredo, Macapá 72. Angela dos Santos Figueiredo, Macapá 103. Mateus, Macapá 133. Elvira Rodrigues Figueiredo 164. João Rodrigues dos Santos
11. Ignacio Correia de Figueiredo 42. Placido de Paula, Divorciado, Macapá 73. Carlos dos Santos Figueiredo, Divorciado, Macapá 104. Marcos, Macapá 134. Alvaro Rodrigues Figueiredo 165. Aelson Rodrigues dos Santos
12. Ester Correia de Figueiredo 43. Magno Figueiredo, Taxipucu 74. Adolfo Correia de Figueiredo Filho, João Brás 105. Camila, Macapá 135. Miracy Rodrigues Figueiredo 166. Zuleide Rodrigues dos Santos
13. Venceslau Correia de Figueiredo 44. Ruth Brito, Taxipucu 75. Mariana, João Brás 106. Darlon,Macapá 136. Izaura Rodrigues Figueiredo 167. Abiatá Rosário dos Santos
14. Camilo Correia de Figueiredo, Fazenda João Batista 45. Soleim Figueiredo, Taxipucu 76. José Celestino dos Santos Figueiredo, Macapá 107. Juciclei, Macapá 137. Darcy Rodrigues Figueiredo 168. Elione Figueiredo dos Santos
15. Inês Coutinho de Figueiredo 46. Idacira Brito, Taxipucu 77. Waldete Melo, Divorciada, Macapá 108. Dacio, Macapá 138. Jacó Rodrigues Figueiredo, Ponta da Caridade 169. Tatiane Figueiredo dos Santos
16. Guilhermina Coutinho de Almeida, São Joaquim - Marajó 47. Iací Figueiredo, Macapá 78. Maria Inês dos Santos Figueiredo, Macapá 109. Jucilei, Macapá 139. Dulcelinda dos Santos, Ponta da Caridade 170. Ivanildo Figueiredo dos Santos
17. Americo Coutinho, São Joaquim – Marajó 48. Vanusa Figueiredo, Taxipucu 79. Rivaldo Gomes, Macapá 110. Henry Gabriel, Macapá 140. Orzinda Nascimento Rodrigues Neta 171. Marcione Figueiredo dos Santos
18. Maria Augusta, Taxipuxu 49. Ralf, Taxipucu 80. Gracinda dos Santos Figueiredo, Macapá 111. João Correia de Figueiredo 141. Zeni dos Santos Figueiredo 172. Maria Marta Figueiredo dos Santos
19. Firmo Figueiredo (Roberto), Taxipucu 50. Francisco Figueiredo, Macapá 81. Edmilson Borges de Melo, Macapá 112. Maizede do Rosário Figueiredo 142. Adamor dos Santos Figueiredo 173. Marciele Figueiredo dos Santos
20. Francisco Coutinho de Figueiredo, Taxipucu 51. Janaína Figueiredo 82. Camilo dos Santos Figueiredo, Macapá 113. Abel Figueiredo, Macapá 143. Zenide dos Santos Figueiredo 174. Delson Figueiredo dos Santos
21. Maria Francisca Pacheco Figueiredo, Taxipucu 52. Claudio de Almeida Valadares 83. Rosemeire Lacerda, Macapá 114. Ilda Maria Figueiredo de Paula, Macapá 144. Ivanildo Figueiredo dos Santos 175. Eliege Figueiredo dos Santos
22. Célio Figueiredo, Taxipucu 53. Jaime, Santa Maria 84. Daria dos Santos Figueiredo, Macapá 115. Placido de Paula e Souza 145. Heitor 176. Walmir Figueiredo dos Santos
23. Geralda Souza Figueiredo, Taxipucu 54. Lucas, Taxipucu 85. Manuel do Socorro, Divorciado, Macapá 116. Florentina da Gama Figueiredo 146. Shirley 177. José Luiz Figueiredo dos Santos
24. Pedro de Almeida Figueiredo 55. Solano, Taxipucu 86. Tiene, Macapá 117. Waldecí Figueiredo, Macapá 147. Thierry 178. Marcia Figueiredo dos Santos
25. Adolfo Correia de Figueiredo (1933), João Brás 56. Marlí Valadares Figueiredo, Socó 87. Ronelson, Macapá 118. Ivanilza 148. Jerry 179. Cledison Figueiredo dos Santos
26. Tereza Santos Figueiredo, João Brás 57. Elígio Souza Ferreira, Socó 88. Adrielson, Macapá 119. Benigna Correia da Boa Morte (descendente de 149. Ana Soares de Santos 180. Odila Correia de Figueiredo
27. Zazá Figueiredo, Macapá 58. Nazaré, Socó-Taxipucu 89. Anderson, Macapá escravos africanos, nome vem do Padrinho) 150. Waldizia Correia de Figueiredo
28. Rosilene Figueiredo 59. Simone, Socó 90. Rodrigo, Macapá 120. Eusébio Correia de Figueiredo 151. Laercio Correia de Figueiredo
29. Paulinho Figueiredo 60. Reinaldo, Taxipucu 91. Adelson, Macapá 121. Macrina Correia de Figueiredo 152. Nelson Correia de Figueiredo
30. Rosa Figueiredo, Piranha 61. Dejanete, Taxipucu 92. Jana, Macapá 122. Julio Correia de Figueiredo 153. Durvalina Correia de Figueiredo
31. Carmito Figueiredo 62. Ricardo, Taxipucu 93. Renan, Macapá 123. Balbino Correia de Figueiredo 154. Maria Ninfa Correia de Figueiredo

329
Anexo 4:
Plantas em Caviana
ID Nome local Habitat Proteção Cultivo Usos Reutilização
P1 Abacateiro T Y Y FO; CM Y
P2 Abacaxi H Y Y FO; CM
P3 Abiu T Y Y FO; CM
P4 Abre‐Caminho H Y Y ME Z
P5 Açaí P Y Y FO; CM Y
P6 Açaí Branco P Y N FO
P7 Acerola P Y I FO
P8 Afasta‐espírito H Y Y ME BW
P9 Alamanda H Y Y OR NAT
P10 Alecrim H Y Y ME
P11 Alface H Y FO BO
P12 Alfavaca H Y Y ME
P13 Alfazema H Y ME DR
P14 Algodão S Y Y FO NAT
P15 Alho Y Y RM
P16 Amelindra H Y OR HM
P17 Amanã Y N
P18 Ameixa Y Y FO; CM Y
P19 Amor Crescido H Y Y ME
P20 Anador S Y Y ME
P21 Andiroba T Y N WO; ME; CN; OR Y
P22 Apeí H Y Y ME HA
P23 Araticu T Y Y FO N
P24 Aranha‐Rica H Y ME F
P25 Arnica H Y Y ME
P26 Arruda S Y Y ME
P27 Árvore da felicidade S Y Y OR D
P28 Aucuúba T Y N WO NAT
P29 Azulzinha H Y Y OR CO
P30 Babosa H Y Y ME
P31 Bacabeira P Y Y FO; CM; FI; HU Y
P32 Bacabi P Y Y FO
P33 Baleira T Y N Y
P34 Bambu H Y Y OR M CO
P35 Banana S Y Y FO; CM
P36 Bananeira‐de‐Salão H Y Y OR CO
P37 Batata H N Y FO; CM
P38 Batata Doce H N Y FO; CM
P39 Baratinha H Y Y OR HZD
P40 Biribá Y Y FO; CM
P41 Boa‐noite H Y Y OR A
P42 Boca de lobo H Y Y OR Z
P43 Boldo H Y Y ME
P44 Bolsa de Rainha H Y Y OR Z
P45 Borboleta H Y Y ME M
P46 Brasileira Y ME
P47 Brinco de Negra H Y Y OR DR
P48 Brinco de Noiva H Y Y OR HZ
P49 Buçú P AS Y FI AHF

330
P50 Cabí Y Y RM
P51 Cacau T Y N FO Y
P52 Cactus H Y Y ME Z
P53 Café T Y Y FO
P54 Cajueiro T Y Y FO; CM Y
P55 Cajurana
P56 Caldo de Limão Y
P57 Cama de Menino OR
Jesus
P58 Cana‐de‐Açucar S Y Y FO DR
P59 Caneleira T Y Y FP FR
P60 Canindá I
P61 Capim‐marinho H Y Y RM; ME MZ
P62 Capim‐santo S Y Y ME NE
P63 Capitú H N Y ME DR
P64 Cará T Y Y FO; CM
P65 Carambola T Y Y FO
P66 Castanha do Pará T Y Y FO; FP; ME Y
P67 Castanhola T Y Y FO Z
P68 Catinga de Mulata H Y Y RM; ME
P69 Capim‐marinho H Y Y RM; ME
P70 Capim Santo H Y Y ME CU
P71 Capitiú
P72 Cauaçu T Y N Y
P73 Cebalena H Y Y ME N
P74 Cebola H Y Y FP F
P75 Cebolinha H Y Y FP
P76 Cedro T Y N WO; ME; CN; Y
P77 Cenoura H Y Y FO BO
P78 Chama Y
P79 Chicória H Y Y FP
P80 Cidro H Y Y OR DR
P81 Cipó‐D´alho V Y Y RM
P82 Citronela H Y Y ME
P83 Copaíba T Y Y MI
P84 Coqueiro P Y Y FO; CM; FI Y
P85 Corrente de Cigana H Y Y OR CO
P86 Cravo Y Y ME
P87 Crota H Y Y OR DR
P88 Cominho H Y Y RM; ME
P89 Copaíba T Y Y ME
P90 Couve H Y Y FP BO
P91 Crista de Galo H Y Y OR BO
P92 Cuia ‐Mansa Y ME
P93 Cuiaraneira T Y N WO Y
P94 Cuieira T Y N TO Y
P95 Cupuzeiro T Y Y FO; CM Y
P96 Cutitiribá T Y N FO Y
P97 Dendê T Y N OR
P98 Desatrapalha H Y Y OR ZS
P99 Desinflama H Y Y ME
P100 Dinheiro‐em‐Penca H Y Y OR SW
P101 Elixir‐paregórico H Y Y ME

331
P102 Embaubeira T Y N HU Y
P103 Espada de São Jorge H Y Y OR ZD
P104 Favaca H Y Y ME
P105 Flecheiro H N Y ME DR
P106 Flor Roxa H Y Y OR DR
P107 Flor Rainha H Y Y OR CU
P108 Foguetão H Y Y OR DR
P109 Folha‐de‐Cuia H N Y ME DR
P110 Fortuna H Y Y ME
P111 Fruta‐pão T Y Y FO; CM
P112 Gengibre H Y Y FP; ME MF
P113 Genipapo T Y N FO NAT
P114 Glofita H Y Y OR COW
P115 Goiabeira T Y Y FO; CM Y
P116 Graviola T Y Y FO Y
P117 Guarumã S Y N FI; TO Y
P118 Hortelã Grande H Y Y ME
P119 Hortelãzinha H Y Y ME
P120 Hortência H Y Y OR CO
P121 Inajazeiro P Y N FO Y
P122 Ingazeiro T Y N FO; HU Y
P123 Jacarandá T Y N WO
P124 Jambeiro T Y Y FO Y
P125 Jambeiro branco T AS Y FO
P126 Jambuzeiro Y N Y
P127 Japana H Y Y ME
P128 Jaqueira T Y Y FO; CM
P129 Jasmim H Y Y OR Z
P130 Jenipapeiro Y Y FO; CM
P131 Jerimum V Y Y FO; CM
P132 Jiboinha Y ME
P133 Juruzeiro T Y Y FO DR
P134 Jutaí T Y Y Y
P135 Laço‐de‐amor H Y Y OR CO
P136 Laranjeira T Y Y FO; CM Y
P137 Laranja da terra T Y Y FO
P138 Lima T Y Y FO
P139 Limoeiro T Y Y FO; CM Y
P140 Limão‐Caiena T Y N FO
P141 Limão‐cidra T Y Y FO
P142 Loucura H Y Y OR DR
P143 Macacaúba T Y N WO; CN; Y
P144 Macaxeira S Y Y FO; CM
P145 Mamão T Y Y FO; CM
P146 Mandioca S N y FO; CM
P147 Mangueira T Y N FO; CM Y
P148 Manjericão H Y Y RM; ME
P149 Manjerona H Y Y ME
P150 Manjerona de Angola H Y Y ME
P151 Marajá T CEM Y FO
P152 Maracujá V Y Y FO; CM
P153 Margarida H N Y OR

332
P154 Mari‐Mari T Y Y
P155 Marizeiro T Y N FO Y
P156 Marupazinho H Y Y ME
P157 Marupá T Y Y WO; CN
P158 Mastruz H Y Y ME N
P159 Matá‐pastinho H N Y ME DR
P160 Matruxe H Y Y ME
P161 Maúba T Y N WO Y
P162 Medalha H Y Y ME ZHM
P163 Melancia Y Y FO; CM
P164 Mexirica T Y Y FO
P165 Milho S Y Y FO; CM
P166 Milindra H Y Y OR DR
P167 Miritizeiro P Y N MI
P168 Mortinha S Y Y FO DR
P169 Mucajá T AS Y FO
P170 Mucura‐caá H Y Y RM; ME
P171 Muruci T CEM Y FO
P172 Muru‐Muru T Y N Y
P173 Onze horas H Y Y OR DR
P174
P175 Pacapiá T Y N WO;TO; HU
P176 Pampulha I
P177 Papagainho Y ME
P178 Pariri H Y Y ME NAT
P179 Patauá P Y N FO
P180 Paticholim N
P181 Patre‐amada H Y Y OR A
P182 Pau‐de‐Angola H Y Y ME DR
P183 Pau‐eucalipto T N Y CN
P184 Pau‐mulato T Y N WO; CN
P185 Pega‐rapaz H Y Y ME CO
P186
P187 Pião‐pajé H Y Y ME HZ
P188 Pião‐roxo H N Y ME
P189 Pimenteira S N Y FP
P190 Pimenta‐cheirosa S Y Y FP
P191 Pimenta‐malagueta H Y Y OR DR
P192 Pimenta‐periquitinha H Y Y FP; ME
P193 Pimentão S Y Y FP
P194 Piquiarana T Y N WO; CN; FO
P195 Pirarucu H Y Y ME
P196 Piriquitinho de planta Y
P197 Pitaiqueira Grande N
P198 Pracaxi T Y N WO; CN; OR Y
P199 Pracuuba T N N WO
P200 Primavera V Y Y OR ZHM
P201 Princesinha H Y Y OR FR
P202 Pombinha H Y Y ME NAT
P203 Pupunha P Y Y FO; CM Y
P204 Quebra‐pedra H Y Y ME
P205 Rabo‐de‐raposa H Y Y OR FR

333
P206 Rainha OR
P207 Repolho H Y Y FO BO
P208 Rosa Menina Y
P209 Roseira H Y Y OR DR
P210 Sabugueira H Y Y ME
P211 Saída de Baile H Y Y OR F
P212 Samambaia H Y Y OR Z
P213 Sapucaia T Y N WO; CN; FO Y
P214 Seringueira T Y N CN; CM; WO Y
P215 Sororoca Y N FR Y
P216 Soveira T Y Y FO Y
P217 Sucena N
P218 Sucupira Y Y
P219 Suspiro H Y Y OR DR
P220 Tajá do Sol Y
P221 Tajazinho Y
P222 Tamarindo T Y N Y
P223 Tangerina T Y Y FO; CM Y
P224 Taperebá P Y N FO; HU Y
P225 Taperebazinho Y
P226 Tentero
P227 Terezinha H Y Y OR DR
P228 Terramicina H Y Y ME
P229 Tomate FO; CM
P230 Trevo Roxo P Y Y ME
P231 Tucumã P Y Y FO; CM Y
P232 Ubuçu P Y N FI
P233 Ucuubeira T Y N WO
P234 Uriza H Y Y RM; ME
P235 Urubu‐caá H Y Y ME
P236 Urucuri P Y N FI; HU; MI Y
P237 Urucum S Y N FP
P238 Vestido de Noiva H Y Y OR A
P239 Vim‐de‐cá H N Y ME DR
P240 Vinagreiro S Y N FO
P241 Virola T Y N WO
P242 Viuvinha H Y Y OR CO
P243 Sabugueira H Y Y ME

334
LEGENDA Anexo 5
ID
Nome
Sexo
Mulher F
Homem M
Código da casa
Alfa numérico H1
Falecido D
Localização
Costa da Ilha IC
Margem seca DR
Margem alagada FR
Campos naturais NF
Tesos florestados FH
Classificação da localização da casa
Uma única casa isolada IS
<3 casas – grupo doméstico DG
>3 casas, grupos extra‐domésticos ‐ House compounds HC
Sem casa ou acampamentos NH
Falecido D
Roça (R), Terreiro (T), Canteiro (C ) e sítio abandonado (AS)
Sim Y
Não N
Criação de animais
Porcos P
Galinhas e‐ou patos CH
Gado CO
Outros O
Porcos e Galinhas PC
Porcos, Galinhas e Gado PCC
Pesca
Consumo doméstico HC
Comercial CM
Barcos
Canoa C
Barco de pequeno a médio SM
Barco grande LB
Renda
Venda de Frutas e‐ou peixe F
Crafts C
Revenda de Produtos industrializados IP
Miscellaneaous MI
Remuneração AS
Aposentado R

335
Anexo 5: Nomes de pessoas, casas e prática econômica
ID genograma nome sexo casa Nome local Local classe R T C AS criação pesca barco comércio
1 T01 Braulia Correia da Boa Morte F D Fazendinha
2 T01 Augusto Firmo Figueiredo M D Fazendinha
3 T01 Samuel Correia de Figueiredo M D
4 T01 Noé Correia de Figueiredo M D
5 T01 Manuel Correia de Figueiredo M D
6 T01 Luzinan Correia de Figueiredo M D
7 T01 Gabino Correia de Figueiredo M D
8 T01 Tertuliano Correia de Figueiredo M D
9 T01 Dina Correia de Figueiredo F D
10 T01 Ambrosio Correia de Figueiredo M D
11 T01 Ignacio Correia de Figueiredo M D
12 T01 Ester Correia de Figueiredo F D
13 T01 Venceslau Correia de Figueiredo M D
14 T01 Camilo Correia de Figueiredo M D Fazenda João Batista
15 T01 Inês Coutinho de Figueiredo F D
16 T01 Guilhermina Coutinho de Almeida F D São Joaquim - Marajó
17 T01 Americo Coutinho M N São Joaquim – Marajó
18 T01; T03 Maria Augusta Valadares Figueiredo F H11 Taxipuxu FR HC N Y N N CO HC LB MI
19 T01; T03 Firmo Figueiredo (Roberto) M H11 Taxipucu FR HC N Y N N CO HC LB MI
20 T01; T03 Francisco Coutinho de Figueiredo M H24 Taxipucu FR HC N Y N N CO HC LB MI
21 T01 Maria Francisca Pacheco Figueiredo F H24 Taxipucu FR HC N Y N N CO HC LB MI
22 T01 Célio Figueiredo M H25 Taxipucu DR IS Y Y Y Y PCC HC LB MI
23 T01 Geralda Souza Figueiredo F H25 Taxipucu DR IS Y Y Y Y PCC HC LB MI
24 T01 Pedro de Almeida Figueiredo M D
25 T01; T02 Adolfo Correia de Figueiredo (1933) M H2 João Brás IC DG N Y Y Y PCC HC SM F
26 T01; T02 Tereza Santos Figueiredo F H2 João Brás IC DG N Y Y Y PCC HC SM F
27 T01 Zazá Figueiredo F N Macapá
28 T01 Rosilene Figueiredo F
29 T01 Paulinho Figueiredo M
30 T01 Rosa Figueiredo F Piranha
31 T01 Cornélio da Silva (Carmito?) M N Piranha
Figueiredo
32 T01 Velha F
33 T01 Everaldo Figueiredo M Taxipucu
34 T01 SN – Divorciado M N
35 T01 Renilda Figueiredo F
36 T01 Janio M
336
37 T01 José Figueiredo M
38 T01 Zilma F
39 T01 Vanessa F
40 T01 Nubia F
41 T01 Rosária Figueiredo F N Macapá
42 T01 Placido de Paula, Divorciado M N Macapá
43 T01 Magno Pacheco Figueiredo M H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
44 T01 Ruth de Souza Brito F H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
45 T01 Soleim Figueiredo M H16 Taxipucu FR HC
46 T01 Idacira Brito F H16 Taxipucu FR HC
47 T01 Iací Figueiredo F N Macapá
48 T01 Vanusa Correia de Figueiredo F H16 Taxipucu FR HC
49 T01 Cristian Ralf de Almeida Lima F H16 Taxipucu FR HC
50 T01 Francisco Figueiredo F H17 Taxipucu FR HC
51 T01 IGUAL A 233 F
52 T01 Claudio de Almeida Valadares M
53 T01 Jaíme Figueiredo Valadares M N Santa Maria
54 T01 Lucas Brito Figueiredo M H16 Taxipucu FR HC
55 T01 Solano Brito Figueiredo M H16 Taxipucu FR HC
56 T01; T03 Marlí Valadares Figueiredo F H9 Socó FR DG Y Y Y Y N HC LB F
57 T01 Elígio Souza Ferreira M H9 Socó FR DG Y Y Y Y N HC LB F
58 T01 Nazaré Figueiredo Ferreira F H9 Socó FR DG Y Y Y Y N HC LB F
59 T01 Simone Figueiredo Ferreira F H9 Socó FR DG Y Y Y Y N HC LB F
60 T01; T03 Reinaldo Figueiredo M H10 Taxipucu FR HC N Y Y N CH CM SM F
61 T01; T03 Dejanete Figueiredo F H10 Taxipucu FR HC N Y Y N CH CM SM F
62 T01; T03 Ricardo Figueiredo M H11 Taxipucu FR HC N N N N N N LB AS
63 T01; T03 Frederico Figueiredo M H11 Taxipucu FR HC N Y N N N N N MI
64 T01; T03 Edgar Figureiredo M H11 Taxipucu FR HC N Y N N N N SM MI
65 T01; T03 Flavio Figureiredo M H12 Taxipucu FR HC N Y Y Y CH CM LB F
66 T01; T03 Cristiane Figueiredo F H12 Taxipucu FR HC N Y Y Y CH CM LB F
67 T01; T03 Firmo Figueiredo Filho M H11 Taxipucu FR HC N Y N N N N SM MI
68 T01; T03 Robson Figueiredo M H12 Taxipucu FR HC N Y Y Y CH CM LB F
69 T01; T03 Niel Figueiredo M H10 Taxipucu FR HC N Y Y N CH CM SM F
70 T01; T03 Josiel Figueiredo M H10 Taxipucu FR HC N Y Y N CH CM SM F
71 T01; T03 Nataniel Figueiredo M H19 Taxipucu FR HC
72 T01 Angela dos Santos Figueiredo F N Macapá
73 T01 Carlos dos Santos Figueiredo M N Macapá
74 T01 Adolfo Correia de Figueiredo Filho M H28 João Brás IC DG N Y Y Y N HC C F
75 T01 Mariana Melo da Silva F H28 João Brás IC DG N Y Y Y N HC C AS
337
76 T01 José Celestino dos Santos M N Macapá
Figueiredo
77 T01 Waldete Melo F N Macapá
78 T01 Maria Inês dos Santos Figueiredo F N Macapá
79 T01 Rivaldo Gomes M N Macapá
80 T01 Gracinda dos Santos Figueiredo F N Macapá
81 T01 Edmilson Borges de Melo M N Macapá
82 T01 Camilo dos Santos Figueiredo M N Macapá
83 T01 Rosemeire Lacerda F N Macapá
84 T01 Daria dos Santos Figueiredo F N Macapá
85 T01 Manuel do Socorro M N Macapá
86 T01 Thiene Figueiredo Braga F N Macapá
87 T01 Ronelson Figueiredo dos Santos M N Macapá
88 T01 Adrielson Figueiredo dos Santos M N Macapá
89 T01 Anderson Figueiredo dos Santos M N Macapá
90 T01 Rodrigo Figueiredo dos Santos M N Macapá
91 T01 Adelson dos Santos Figueiredo M N Macapá
92 T01 Jana F N Macapá
93 T01 Renan M N Macapá
94 T01 Emerson M N Macapá
95 T01 Tamires Figueiredo F N Macapá
96 T01 Estefani da Silva Figueiredo F H28 João Brás IC DG N Y Y Y N HC C N
97 T01 Adolfo da Silva Figueiredo Neto M H28 João Brás IC DG N Y Y Y N HC C F
98 T01 José Celestino Júnior M N Macapá
99 T01 William Wallace Figueiredo Gomes M N Santana
100 T01 Iasmim Figueiredo Melo F N Macapá
101 T01 Ana Ter eza Figueiredo Melo F N Macapá
102 T01 Aline Figueiredo Melo F N Macapá
103 T01 Mateus Lacerda Figueiredo M N Macapá
104 T01 Marcos Lacerda Figueiredo M N Macapá
105 T01 Camila Lacerda Figueiredo F N Macapá
106 T01 Darlon Figueiredo Oliveira M N Macapá
107 T01 Juciclei Figueiredo Oliveira M N Macapá
108 T01 Dacio Figueiredo Oliveira M N Macapá
109 T01 Jucilei Figueredo Oliveira F N Macapá
110 T01 Henry Gabriel Figueiredo Oliveira M N Macapá
111 T01 João Correia de Figueiredo M
112 T01 Maizede do Rosário Figueiredo F
113 T01 Abel Figueiredo M N Macapá

338
114 T01 Ilda Maria Figueiredo de Paula F N Macapá
115 T01 Placido de Paula e Souza M
116 T01 Florentina da Gama Figueiredo F
117 T01 Waldecí Figueiredo M N Macapá
118 T01 Ivanilza F
119 T01 Benigna Correia da Boa Morte F
120 T01 Eusébio Correia de Figueiredo M
121 T01 Maria Onorina Figueiredo dos F D Piranha
Santos
122 T01 Julio Correia de Figueiredo M
123 T01 Balbino Correia de Figueiredo M
124 T01 Inês Correia de Figueiredo F
125 T01 Tertuliano Correia de Figueiredo M
126 T01 Eustaquelino Correia de Figueiredo M
127 T01 Olzinda Nascimento Rodrigues F
128 T01 Reinaldo Rodrigues Figueiredo M
129 T01 Maria Rodrigues Figueiredo F
130 T01 Paulo Rodrigues Figueiredo M
131 T01 Marina Rodrigues Figueiredo F
132 T01 Donato Rodrigues Figueiredo M
133 T01 Elvira Rodrigues Figueiredo F
134 T01 Alvaro Rodrigues Figueiredo M
135 T01 Miracy Rodrigues Figueiredo F
136 T01 Izaura Rodrigues Figueiredo F
137 T01 Darcy Rodrigues Figueiredo M
138 T01 Jacó Rodrigues Figueiredo M H26 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
139 T01 Dulcelinda da Silva Santos F H26 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
140 T01 Orzinda Nascimento Rodrigues F H26 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
Neta
141 T01 Zeni dos Santos Figueiredo F H26 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
142 T01 Adamor dos Santos Figueiredo M H40 São João da Caridade NF DG N Y Y Y CO HC N AS
143 T01 Zenide dos Santos Figueiredo F H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
144 T01 Ivanildo Figueiredo dos Santos M H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
145 T01 Heitor Figueiredo dos Santos M H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
146 T01 Shirley Figueiredo dos Santos F H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
147 T01 Thierry Figueiredo dos Santos F H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
148 T01 Jerry Figueiredo dos Santos M H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
149 T01 Ana Soares de Santos F
150 T01 Waldizia Correia de Figueiredo F

339
151 T01 Laercio Correia de Figueiredo M
152 T01 Nelson Correia de Figueiredo M
153 T01 Durvalina Correia de Figueiredo F
154 T01 Maria Ninfa Correia de Figueiredo F
155 T01 Daniel Nascimento Rodrigues M
156 T01 Ana Maria Figueiredo F H43 Pocotó DR IS N Y Y Y PC HC SM R
157 T01 Rose Rodrigues dos Santos F
158 T01 Manuel Rodrigues dos Santos M
159 T01 Waldir Rodrigues dos Santos M
160 T01 José Rodrigues dos Santos M
161 T01 Lauro Rodrigues dos Santos M
162 T01 Maria Rodrigues dos Santos F
163 T01 Elísia Rodrigues dos Santos F
164 T01 João Rodrigues dos Santos M
165 T01 Aelson Rodrigues dos Santos M
166 T01 Zuleide Rodrigues dos Santos F
167 T01 Abiatá Rosário dos Santos M D
168 T01 Elione Figueiredo dos Santos F
169 T01 Tatiane Figueiredo dos Santos F
170 T01 Ivanildo Figueiredo dos Santos M
171 T01 Marcione Rodrigues dos Santos F H40 São João da Caridade NF DG N Y Y Y CO HC N AS
172 T01 Maria Marta Figueiredo dos Santos F
173 T01 Marciele Figueiredo dos Santos F
174 T01 Delson Figueiredo dos Santos M
175 T01 Eliege Figueiredo dos Santos F
176 T01 Walmir Moraes dos Santos (Tete) M H42 Retiro São Pedro, NF IS N Y Y Y PCC HC SM AS
Querquilhau
177 T01 José Luiz Figueiredo dos Santos M
178 T01 Marcia Figueiredo dos Santos F
179 T01 Cledison Figueiredo dos Santos M
180 T01 Odila Correia de Figueiredo F
181 T03 Maria Madalena Valadares F D
182 T03 Almezino Coelho Furtado M D Marajó
183 T03 Simistone Valadares Furtado M
184 T03 Walica Valadares Furtado F H20 Buçutuba DR IS N Y Y Y PC HC C F
185 T03 Zila Valadares Furtado F H4 São Manuel IC HC Y Y Y Y P HC C R
186 T03 Maria Valadares F H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
187 T03 Adelardo Valadares M H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
188 T03 Veríssima Valadares F H30 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM C R

340
189 T03 Maria de Nazaré Valadares F N Macapá
190 T03 João Valadares M
191 T03 Cecilia Ferreira da Silva F H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
192 T03 Ana Cléia da Silva Valadares F N Afuá
193 T03 Luana da Silva Valadares F H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
194 T03 Ediene da Silva Valadares F H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
195 T03 Luciene da Silva Valadares F H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
196 T03 Hélio da Silva Valadares M H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
197 T03 Solange da Silva Valadares F N Chaves
198 T03 Silvio da Silva Valadares M H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
199 T03 João Marques Oliveira Brito M H30 Prainha IC DG Y Y Y Y PCC CM C R
200 T03 Maria da Conceição Valadares F N Macapá
201 T03 Lucídio Marco de Oliveira Brito M D São Manuel
202 T03 Maria de Nazaré de Oliveira Brito F
203 T03 Miguel Valadares de Oliveira M
204 T03 Alexandre Valadares de Oliveira F H5 São Manuel IC HC Y Y Y N PC HC C F
205 T03 Maria Cléia Pacheco F H5 São Manuel IC HC Y Y Y N PC HC C F
206 T03 Joaquina Pacheco F
207 T03 Alexandre Pacheco de Oliveira Filho M
208 T03 Andreia Pacheco de Oliveira F
209 T03 Maria Néia Pacheco de Oliveira F
210 T03 Edmar Pacheco de Oliveira M
211 T03 Eli Cristina dos Santos Faria M
212 T03 Gabriel Faria de Oliveira M
213 T03 Felipe Faria de Oliveira M
214 T03 Alessandra Faria de Oliveira F
215 T03 Eusébio Furtado de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
216 T03 Elmir Valadares de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
217 T03 Carlos Valadares de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
218 T03 Celso Valadares de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
219 T03 Ademir Valadares de Almeida M Caviana
220 T03 Meire Valadares de Almeida F N Macapá
221 T03 Aldonita Valadares de Almeida F N São Sebastião da Boa Vista
222 T03 Sergio Valadares de Almeida M N Caiana, Guiana Francesa
223 T03 Cristino Valadares de Almeida M N Macapá
224 T03 Claudio Valadares de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
225 T02 Alcinéia Valadares de Almeida F H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
226 T03 Milton Rodrigues da Rocha M H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
227 T02 Savo Almeida Furtado M H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
341
228 T03 Ameilton da Rocha Almeida M H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
229 T03 Nilton da Rocha Almeida M H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
230 T03 Josiane da Rocha Almeida F H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
231 T03 Josilene da Rocha Almeida F H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
232 T03 Alcilone da Rocha Almeida F H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
233 T03 Janaína Correia Figueiredo F H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
234 T03 Jaine Figueiredo Furtado F H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
235 T03 Natanael Figueiredo Furtado M H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
236 T03 Claudinei Figueiredo Furtado M H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
237 T03 Cleuton Figueiredo Furtado M H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
238 T03 Euvaldo Correia M
239 T03 Ediomar Rodrigues da Paixão M
240 T03 Maria Francisca Pacheco Figueiredo F
241 T03 Jacozinho Furtado M
242 T03 Pedro Furtado M
243 T03 Teodomiro Furtado M
244 T03 João de Deus Furtado M H21 Entrada Taxipucu IC DG Y Y Y Y PC HC C R
245 T03 Neuracy de Brito Furtado F H21 Entrada Taxipucu IC DG Y Y Y Y PC HC C R
246 T03 Antonio de Deus Furtado M
247 T03 Maria Angela Gomes F
248 T03 Eduarda de Souza Furtado M D
249 T03 Jacó Bibiano de Almeida M D
250 T03 Jovita Valadares Furtado F D Prainha
251 T03 Pedro da Costa Faria M D Pracutuba
252 T03 Maia Isa Valadares Brito F N Macapá
253 T03 João Valadares Brito M H30 Prainha IC DG Y Y Y Y PCC CM C R
254 T03 Raimundo Valadares Brito M H30 Prainha IC DG Y Y Y Y PCC CM C R
255 T03 Adielson Valadares Brito M N Macapá
256 T03 Adiel Valadares Brito M N Macapá
257 T03 Alaelson Valadares Brito M H30 Prainha IC DG Y Y Y Y PCC CM C R
258 T03 Maria Augusta Valadares Brito F N Afuá
259 T03 Elísio Valadares Brito M N Macapá
260 T03 Maria Marcelina Valadares Brito F N Macapá
261 T03 Constantino Valadares M
262 T03 Manuel Romão Valadares M D
263 T03 Veridião Furtado(Dião) M
264 T03 Dorcinda Furtado Valadares F
265 T03 Pedro Gomes Valadares M
266 T02; T03 Domingos dos Santos Furtado M H38 Turézinho FR DG N Y Y Y CO HC SM MI
342
267 T03 Maria Julia Valadares F D
268 T03 Elvira Valadares F
269 T03 Rosa Valadares F
270 T02; T03 Alda Valadares Furtado F H38 Turézinho FR DG N Y Y Y CO HC SM MI
271 T02 Augusto Monteiro Reis M
272 T02 Agueda Maria dos Santos F
273 T02 Gita dos Santos Reis F
274 T02 IGUAL A 186 F H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
275 T02 Lauro Marques de Brito Amaral M
276 T02 Gracinda Rosa dos Santos F H47
277 T02 Nercindo Ayres Furtado M H47
278 T02 Isabel Ayres Furtado F D
279 T02; T05 Olivio Bertoldo Furtado M
280 T02; T03 Edilson Valadares Furtado M H39 Turézinho FR DG N Y Y Y CO HC SM F
281 T02; T03 Arió Furtado Valadares M
282 T02 Olivio dos Santos Furtado (Alemão) M H43 Pocotó DR IS N Y Y Y PC HC SM R
283 T02 Ana dos Santos Figueiredo (Igual a F
156?)
284 T02 Maria Valadares F
285 T02 Dora Valadares Furtado F
286 Lélia Valadares Furtado F
287 Preto Valadares Furtado M
288 T02 Rosangela Valadares Furtado F
289 T02 Emilson Valadares Furtado M
290 T02; T03 Zulma Furtado Valadares F
291 T02; T03 Toti Furtado Valadares F
292 T02 Giovita dos Santos Silva F
293 T01; T02 Raimunda dos Santos Batista F H1 Socó FR DG Y Y Y Y CH HC C F
294 T02 Franklin Batista M
295 T02 Agnaldo da Silva F
296 T02 Ezequiel Lima M
297 T01; T02 Tereza dos Santos Lima F
298 T02 Julio dos Santos Lima M
299 T02 Manuel dos Santos Lima (Mimi) M
300 T02 Aurora dos Santos Lima F
301 T02 Marciano dos Santos Lima M
302 T02 Nazaré da Silva F
303 T02 Abelardo da Silva M
304 T02 Leonildes da Silva M

343
305 T02 Lucio da Silva M
306 T02 Graça da Silva F
307 T02 Zena da Silva F
308 T02 Nené da Silva F
309 T02 Ivete dos Santos Batista F N Belém
310 T02; T04.1 Marlene dos Santos Batista F N Belém
311 T02 Milca dos Santos Batista F N Belém
312 T02 Candinha dos Santos Batista F D Belém
313 T02 Izoleide dos Santos Batista F Ayuá, Caviana
314 Eurico dos Santos Batista M N Macapá
315 Xiné dos Santos Batista M N Belém
316 Xiroca dos Santos Batista F Cheira-café, Fazenda Santa Terezinha, Caviana
317 Fernando Henrique Santos Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
318 T04.1 Raimundo (Diquinho) dos Santos M D
319 T04.1 Paulo Sérgio M N Belém
320 T04.1 Paula Marcia F N Belém
321 T04.1 Paulo César M N Belém
322 T04.1 Paulo (Chico) M N Caiena
323 T04.1 Paula Maria F Belém
324 T04.1 Veríssimo F D Marajó
325 T04.1 Cantoario M N Marajó
326 Maria José Rodrigues F N Macapá
327 T04.2 Iame Rodrigues M N Macapá
328 T04.2 Biata Rodrigues F N Macapá
329 T04.2 Orzinda Rodrigues Batista F N Macapá
330 T04.2 Jeová Rodrigues Batista M N Macapá
331 T03; T04.1 Raquel Rodrigues Batista F N Macapá
332 T03; T04.1 Ilca Rodrigues Batista F N Macapá
333 T03; T04.1 Sebastião Rodrigues Batista M N Macapá
334 T03; T04.1 Sebastiana Rodrigues Batista F N Macapá
335 T03 Antonio Marcos da Silva Almeida M
336 T03 Dejací da Silva Furtado F
337 T03 Ednelson da Silva Furtado M
338 Dejanira da Silva Furtado F
339 Deusa da Silva Furtado F
340 Keila F Buçutinha
341 T05 Manuel Amaral M D Marajó
346 Roseli da Silva Trindade F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
347 Maria Eunia de Brito da Silva F H13 São Raimundo IC HC
344
348 T05 José Valadares M H13 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
349 Jacinto da Silva Valadares M H15 São Raiumundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
350 Sebastiana da Silva Valadares F N Macapá
351 Eliel da Silva Valadares M N Macapá
352 Maciel da Silva Valadares M H14 São Raimundo IC HC
353 Adaelson da Silva Valadares M N Macapá
354 Norma da Silva Valadares F N Afuá
355 T05 Benedita da Silva Furtado F N Macapá
356 Mercedes da Silva Furtado F N Macapá
357 Maura da Silva Furtado F H13 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
358 Emilio da Silva Furtado M São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
359 Vania Brito da Silva F H14 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
360 Viviane da Silva Valadares F H14 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
361 Kelly da Silva Valadares F H14 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
362 Laura Brito da Silva F H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
363 Audilan da Silva Valadares M H15 São Raiumundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
364 Emerson da Silva Valadares M H15 São Raiumundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
365 Romario da Silva Valadares M H15 Sâo Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
366 jácimo da Silva Valadares M H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
367 Adailton da Silva Valadares M H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
368 Darlene da Silva Valadares F H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
369 Lauriene da Silva Valadares F H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
370 Lauriane da Silva Valadares F H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
371 Rosinaldo Furtado Moraes M H3 Pocotó FR IS N Y Y Y PC HC C AS
372 Manuel Furtado dos Santos M D
374 Manuel da Conceição Furtado M N Macapá
Moraes
375 Walfredo Furtado Moraes M N Macapá
376 Reginaldo Furtado de Moraes M N Macapá
377 Ronildo Furtado de Moraes M N Macapá
378 Rosalva Furtado de Moraes F N Macapá
379 Suely da Silva Moraes F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
380 Suelen da Silva Moraes F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
381 Suany da Silva Moraes F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
382 Rosileida da Silva Moraes F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
383 Rosinaldo da Silva Moraes M H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
384 Raimundo dos Santos Lima M H22 Ilha Nova NF IS Y Y Y N CO HC SM AS
385 Maria Rosa de Souza Lima F H22 Ilha Nova NF IS Y Y Y N CO HC SM AS
386 Samarone de Souza Lima F H22 Ilha Nova NF IS Y Y Y N CO HC SM AS

345
387 Nelhinho de Souza Lima M H22 Ilha Nova NF IS Y Y Y N C HC SM AS
388 Clodoaldo de Souza Lima M N Macapá
389 Raimundinho de Souza Lima M N Macapá
390 Cipriano Pereira Lima M D
391 Vitoria dos Santos Lima F D
392 João Rogério de Souza M D Ilha Nova
393 Odorina Nazaré de Souza F D Ilha Nova
394 Claudio Valadares Furtado M H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
395 Bernardina Ferreira da Silva F N Afuá
400 Ermídio Gonçalves da Silva M N Afuá
401 T01 Constâncio M H1 Socó FR DG Y Y Y Y CH HC C F
402 T01 Conceição Ferreira Souza F Boa Vista
403 T01 Maria Raimunda Ferreira Souza F N Macapá
404 T01 Domingos Ferreira Souza M N Macapá
405 T01 Wanderlei de Almeida Figueiredo M N Belém
406 T01 Mendes de Almeida Figueiredo M N Macapá
407 T01 Aurea Figueiredo de Almeida M N Macapá
408 T01 Joaquina Figueiredo de Almeida F H31 Macapá, casa em Caviana Taxipucu
409 T01 Walda Figueiredo de Almeida F N Macapá
410 T01 Glória do Rosário Figueiredo F D
411 Ana dos Santos Valadares F D São Raimundo
412 T01 Carlene Patiali de Almeida F N Macapá
Figueiredo
413 T01 Alan Weiner de Araujo Figueiredo M N Macapá
414 T01 Maria Graciele Carmo Sene da Silva F N Macapá
415 T01 Yasmim Raquele Figueiredo da Silva F N Macapá
416 Ronei Brito Figueiredo M H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
417 Ismael Brito Figueiredo M H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
418 Ronália Brito Figueiredo F H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
419 Ruany Brito Figueiredo F H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
420 Ezildo Brito da Silva M H32 Ilha da Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
421 Diva Matia Brito Almeida F H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
422 Jefferson Almeida Barros M H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
423 Alafe Almeida Barros M H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
424 Jessica Almeida Barros F H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
425 Leticia Brito da Silva F H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
426 João Gustavo Almeida da Silva M H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
427 Maria Zilda Brito da Silva F H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N R
428 João Brás Brito Pacheco M H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N R

346
429 Flaviana Brito da Silva F D Belém
430 Eremita Brito da Silva F D
431 Laudelino da Silva Brito M D
432 Ana Lucia Brito da Silva F N Macapá
433 Hildo Brito da Silva M N Macapá
434 Waldir Brito da Silva M Pocotó
435 Ivanildo Brito da Silva M N Macapá
436 Vera Lucia Brito da Silva F N Centro da Ilha
437 Ednelson Brito da Silva M H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N AS
438 Marinelson Brito da Silva M H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N AS
439 Edlucia Brito da Silva F N Chaves
440 Paulo Valadares da Silva M N Macapá
441 Wilma Furtado Figueiredo F N Macapá
442 MaraLuce Machado (IGUAL AO F N Pocotó
443?)
443 T09 Maria Lucia Machado da Silva F H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM N N
444 T09 João Oasis da Silva M D Pocotó
445 Paula Machado F N Macapá
446 Carlos Edmilson Batista da Silva M N Centro da Ilha
447 Dionor Brito da Silva F N Centro da Ilha
448 Marizeu Brito da Silva M N Centro da Ilha
449 Selma Gardelha Pacheco F H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N AS
450 Maria Meires Gardelha Pacheco F N
451 T06 Ander elei M N Fazenda Carlos Melo
452 Ivaldo Brito Pacheco M N
453 T05 Fernando Rodrigues Figueiredo M N Chaves
454 Antonio M N Chaves
455 T06 Sandy Batista Figueiredo F N Chaves
456 Delcio Correia Figueiredo M Fazenda "Queijo"
457 T05; T06 Mojacy Figueiredo da Silva M N Macapá
458 T05 Doralice Furtado Figueiredo F Fazenda "Queijo"
459 Adria Batista da Silva F N Macapá
460 Miguel Antony Pacheco Brito M H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N AS
461 Izolina Brito dos Santos F H42 São Pedro Querquilhau NF IS N Y Y Y PCC HC SM AS
462 T05 Rosaldo dos Santos Amaral M H34 Santana NF HC N Y Y N CO HC SM AS
463 Rodolfo Brito dos Santos M H42 São Pedro, Querquilhau
464 Luciano de Oliveira Brito Amaral M H37 Santana NF HC N Y Y N N HC N AS
465 T05 Waldeí Brito dos Santos M N Chaves
466 T05 Maria de Nazaré dos Santos Amaral F D São João da Caridade

347
467 José Maria dos Santos Neto M N Chaves
468 Neuza Correia dos Santos F D
469 T05 Isabela Brito dos Santos F N Chaves
470 T05 Manuel Amaral M D
471 T05 Jurací Figueiredo da Silva F H43 Pocotó DR IS N Y Y Y PC HC SM R
472 Raimundo dos Santos Amaral M H36 Santana NF HC N N N N N HC N AS
473 T05 Juarez Figueiredo da Silva M N Macapá
474 T05 Lilian dos Santos Amaral F H36 Santana NF HC N N N N N HC N AS
475 Josivaldo Figueiredo da Silva M N São João
476 T05 Vani dos Santos Amaral F N Macapá
477 T05 Junielson Figueiredo da Silva M H43 Pocotó
478 Rosiane dos Santos Amaral F H35 Santana NF HC N Y Y N CH HC SM MI
479 T05 Diana Figueiredo da Silva F N Afuá
480 T05 Gilmara dos Santos Amaral F H34 Santana NF HC N Y Y N CO HC SM AS
481 T05 Mariana Figueiredo da Silva F N Afuá
482 Eufrásio Furtado Figueiredo M H35 Santana NF HC N Y Y N CH HC SM MI
483 T05 Ana Claudia Figueiredo da Silva F N Afuá
484 T05 Gleiciane Valadares Figueiredo F N Macapá
485 T05 João Vitor Azevedo Amaral M H36 Santana NF HC N N N N N HC N AS
486 T05 Dolores Marques de Oliveira Brito F D Rio de Janeiro - Santana, Caviana
487 T05 Raimunda F D
488 T05 Francisco M N
489 T05 Maurício M N
490 T05 Doca F N
491 T05 Sebastião (Sabá) M N
492 T05 Olvídio M N
493 T06 Odete Lima Batista F H41 Santo Antonio, NF IS N Y Y N PC HC C R
Caridade
494 T06 Andreia Lima Batista F N Macapá
495 T06 Andreza Lima Batista F N Chaves
496 T06 Adilena Lima Batista F H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
497 T06 Fernanda Lima Batista F H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
498 T06 Bruna Lima Batista F H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
499 T06 Amauri Lima Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
500 T06 Audri Lima Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
501 T06 Adilson Lima Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
502 T06 Adriano Lima Batista M N Fazenda Carlos Melo
503 T06 Franquelino de Oliveira Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
504 T06 Celina Lima F H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R

348
505 T06 Pedro da Silva M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
506 T06 Lene Batista Valadares F N Fazenda Carlos Melo
507 T09 Suzy Machado da Silva F H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM SM AS
508 T09 Walnei Dias de Almeida M H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM SM AS
509 T09 Erika Caroline da Silva Santos F H44 Pocotó
510 T09 Davi da Silva Almeida M H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM N N
511 T09 Emanuele da Silva Almeida F H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM N N
512 Waldemir da Silva Trindade M D
513 Maria Domingos da Silva F D Arapichí, Ilha de Marajó
514 Nicota Furtado F H45 Afuá, Ilha de Marajó FR UR N Y Y N N N N N
515 Raimundo Souza Santos M H46 Entrada do Socó IC DG Y Y Y Y CH HC C F
516 Ana Patricia Dantas F H46 Entrada do Socó IC DG Y Y Y Y CH HC C F
517 Paulo Henrique Souza Dantas M H46 Entrada do Socó IC DG Y Y Y Y CH HC C F
518 Anderson Gustavo Souza Dantas M H46 Entrada do Socó IC DG Y Y Y Y CH HC C F
519 Maria F H48 Turézinho DR IS N N Y Y CH HC N N

349
350

Você também pode gostar