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Lugares de gente
MULHERES, PLANTAS E REDES DE TROCA NO DELTA AMAZÔNICO
Rio de Janeiro
março de 2012
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LUGARES DE GENTE:
MULHERES, PLANTAS E REDES DE TROCA NO DELTA AMAZÔNICO
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof. Carlos Fausto
_______________________________
Prof. Moacir G. Soares Palmeira
_______________________________
Profa. Renata de Castro Menezes
_______________________________
Profa. Débora Lima
_______________________________
Profa. Fabíola A. Silva
Rio de Janeiro
março de 2012
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Machado, Juliana Salles.
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RESUMO
Rio de Janeiro
março de 2012
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ABSTRACT
Places of people: women, plants and exchange networks on the Amazon delta
For the riverine of Caviana Island, on the Amazon delta, landscape is a social place and
keeps the memory of the relation between the indigenous past and the
riverine present. I sought to decipher it through the concentrations of
useful trees, how they used them, how they planted and maintained them
and, finally, why they did it. This thesis deals with the relationship
between plants and people. Planting is part of a set of practices, from
obtaining the vegetal within the forest until its transformation into plant in
the domestic environment. The forest is inhabited by enchanted beings and
non-human mothers of places, beings capable of activating a process of
transformation of the human to the one who charmed him. In this
instability of the human condition, plants play a key role because they
provide the healing of this spell, the reversal of this process, ie the
possibility of permanence of their existence. By selecting and planting the
women transform spaces into “places of people” through the exchange of
plants and medicines among relatives, neighbors and friends. Exchange is
an act of caring, which reaffirms the social bonds between humans and
nonhumans engaged in reciprocal relations while binds them to specific
places, reinforcing their sense of territoriality and belonging within the
island. Healing in Caviana is an important tool shared among women in an
exchange network; this network has the function of always keeping alive
the knowledge of healing, the knowledge of plants, and thus ensure the
continuity of their family and, hence, of the "Caviana sons".
Rio de Janeiro
março de 2012
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Às mulheres de Caviana
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AGRADECIMENTOS
São inúmeras as pessoas que contribuíram para a realização dessa tese. Nesses cinco
anos, sete moradas, nas quais muitas pessoas me acolheram, agradeço a
todos e em especial:
no Rio...
Agradeço ao Carlos, meu orientador, por aceitar me orientar, uma estranha no ninho,
pela paciência ao longo de todo o trabalho e pelo cuidadoso trabalho de
leitura.
Ao Moacir e Renata, que me acompanharam desde a primeira qualificação, por suas
sugestões e críticas.
À todos os professores do programa, que através de suas aulas me inspiraram a refletir
sobre minhas próprias convicções, especialmente Carlos Fausto, Lygia
Sigaud (in memorium), Moacir Palmeira e Bruna Franchetto. Aos amigos
do PPGAS que tornaram essa jornada muito mais prazerosa, em especial
Silvia e Ana Amélia.
À Tia Celina e Tio Tunico, por me acolherem de forma tão carinhosa. Pelos jantares
deliciosos e conversas maravilhosas e pelo imenso prazer de sua
companhia.
em Belo Horizonte...
Aos queridos amigos Andrei e Vanessa por deixarem tantas boas lembranças em nossa
vida mineira.
Ao Marquinho, por sempre me socorrer com seus lindos mapas.
em Londres e em Paris...
Ao Stephen Shennan, por me orientar e abrir as portas do Institute of Archaeology,
UCL. Ao Stephen Nugent, pelo incentivo e valiosos conselhos, many
thanks.
À Águeda e Deni, pela acolhida carinhosa, merci.
E em Caviana,
À todos os filhos de Caviana que me receberam com café, banana, açaí e muito carinho.
À Dona Tereza, que me encantou. À Seu Adolfo, pela confiança. À Daria,
minha companheira. A Edgar e Firmo por me acompanharem sempre. A
Seu Roberto, meu apoio constante e de onde tudo começou.
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“Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se
é o mesmo, assim como as águas, que já serão outras. O fluxo das coisas é
a própria essência do mundo.”
Heráclito de Éfeso, filósofo grego, Séc. V AC.
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Índice
Introdução 1
1. Metodologia de pesquisa 22
2. A antropologia das populações não-indígenas da Amazônia 29
3. Paisagem feita memória 35
4. Estrutura da Tese 40
10
2.7 A gente, os filhos de Caviana 150
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Lista de Figuras
Capa
Tereza, João Brás, Caviana, 2010. Foto: Juliana Salles Machado.
Introdução:
Figura abertura Introdução: Chegando no trapiche do João Brás Foto: Juliana Salles Machado.
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Figura 2.16: Acima, exemplos de trilhas importantes, à esquerda no João Brás, à direita no Pocotó; abaixo
à esquerda, exemplo de terreiro no João Brás e à direita terreiro sendo construído no entorno de
uma casa nova. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.17: Acima, exemplos de roças sendo formadas próximo ao igarapé Socó; ao meio roças de
banana cercadas, à esquerda no Turézinho e à direita no Taxipucu; abaixo à direita, roça de
banana sem cerca na mata no Turézinho e à esquerda, exemplo de roça recentemente
abandonada no Socó. Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.18: Acima à esquerda e abaixo, canteiro de Tereza no João Brás; acima à direita, canteiro na
Prainha e ao meio à direita canteiro nos fundos da casa no Pocotó. Fotos: Juliana Salles
Machado.
Figura 2.19: Acima à esquerda, terreiro no Igarapé Taxipucu, à direita no Turézinho; ao meio, exemplos
de canteiro em outro grupo doméstico do Taxipucu, à esquerda e na prainha, a direita;
embaixo, contraste com vegetação de mata em trecho sem casas no igarapé Taxipucu. Fotos:
Juliana Salles Machado.
Figura 2.20: Coletânea de imagens de santos e altares no interior de diversas casas em Caviana. Fotos:
Juliana Salles Machado.
Figura 2.21: Imagens da Igreja de São Sebastião no João Brás e das missas dominicais da comunidade.
Fotos: Juliana Salles Machado.
Figura 2.22: Imagens da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré no Igarapé Taxipucu e da ladainha em
homenagem a santa. Fotos: Juliana Salles Machado.
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Figura 4.4: Exemplos de homens, mulheres e crianças nas canoas, chamadas localmente de cascos ou
montaria, transporte mais utilizado no interior e margens da ilha. Fotos: Juliana Salles
Machado.
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Lista de Gráficos
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Lista de Tabelas
Introdução:
Tabela I.1: Tabela com questionário sobre economia e assentamento
Tabela I.2: Tabela com questionário sobre as plantas
Capítulo 1:
Tabela 1.1: Tabela com sítios arqueológico localizados na ilha Caviana cadastrados no IPHAN até 2006.
Capítulo 2:
Tabela 2.1: Tabela de oposições em Caviana: a cidade na percepção ribeirinha.
Capítulo 4:
Tabela 4.1: Tabela com legenda da proveniência das plantas.
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Lista de Anexos
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Introdução:
Figura abertura Introdução: Chegando no trapiche do João Brás Foto: Juliana Salles Machado.
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Juliana Salles Machado
Introdução
Esta tese trata da relação entre as plantas e as pessoas. O manejo ambiental praticado
pelas populações não-indígenas da Amazônia já vem sendo amplamente discutido como
modelo de sustentabilidade e exemplo de flexibilidade econômica (Balée 1989, 2006b;
Brondízio 2004, 2006; Brondízio et al 1994; Lima 2006, 2004, 1999; Lima e Ferreira 2001;
Murrieta et al 1999; Parker 1983; Posey 1998. Posey & Balée 1989; Raffles 2002, 1999;
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Slater 2002). No entanto, pouco se fala sobre o significado desse manejo para os próprios
ribeirinhos, que certamente ultrapassa sua importância econômica. Como essas populações
entendem o cultivo e a manutenção de espécies vegetais e, afinal, por que o fazem? Com que
critérios escolhem seus assentamentos e suas plantações? A lógica econômica pode nos
explicar muito da inserção dos ribeirinhos no mercado e de sua relação com as cidades, mas
será essa a única razão para o manejo da floresta?
Uma de minhas hipóteses iniciais era a de que esse manejo representava uma forma de
continuidade com as populações indígenas (Arruti 2007; Nugent 1993, 2006; Batista 1991;
Wagley 1967; Galvão 1979, 1975; Silva 1996; Schaden 1963,1949; Maués 1999; Loureiro
2002; Meggers 1957; Nimuendaju 2004; Hartmann 2000). A relação entre as populações
ribeirinhas e os grupos indígenas serviu como pano de fundo às discussões sobre as chamadas
“sociedades caboclas da Amazônia” há pelo menos 50 anos, como visto nas obras clássicas de
Wagley (1957) e Galvão (1979). No entanto, os elementos de continuidade tão enfatizados
por esses autores, foram cedendo progressivamente terreno à relação dessas populações com o
sistema colonial (Chipnick 1991; Bakx 1986; Harris 1998, 2005, 2000; Lima 1999; Nugent
1993; Pace 1997; Rodrigues 2006) e com as influências africanas (Boyer 1999; Prandi 2001).
Como arqueóloga, durante muitos anos observei casas de ribeirinhos sendo construídas em
cima de sítios arqueológicos. Quando precisávamos de coleções de referência, as primeiras
pessoas a procurar sempre eram os ribeirinhos, que, dentro de suas casas, reutilizavam potes e
panelas indígenas, sabiam a localização das antigas aldeias e muitas vezes nos surpreendiam
com indicações sobre a função específica de cada lugar ou objeto. Esse conhecimento
generalizado e o interesse dos ribeirinhos pelos grupos indígenas que os antecederam
reforçavam minha hipótese de que a relação entre o passado indígena e o presente ribeirinho
ainda era muito significativa para eles.
Por meio de uma observação mais detalhada dos sítios arqueológicos e das casas dos
ribeirinhos na ilha Caviana, um fator me chamou particular atenção: a presença das mesmas
espécies vegetais nos dois lugares. Uma nova perspectiva tinha sido aberta para mim: quis a
partir de então entender o que eram essas concentrações de árvores úteis para aquela
população, como as usavam, como as plantavam e as mantinham e, finalmente, por que o
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Juliana Salles Machado
faziam. Para dar conta dessa nova realidade que se apresentava diante de meus olhos, busquei
sistematizar os dados sobre os tipos e a localização das plantas usadas pelos ribeirinhos. Ao
documentar a riqueza dessas plantas, me dei conta da importância de cada uma delas para as
pessoas da ilha. Uma importância que extrapolava sua condição de item de subsistência,
integrando o território da memória, do parentesco e do sobrenatural.
A cura através das plantas só é possível por que os vegetais pertencem a esse mundo
não-humano, possuindo em si poderes relacionados aos agentes encantadores. Trazer um
vegetal desse mundo para o interior da casa, para a proximidade e reconhecimento dos
parentes é um ato de familiarização de seus poderes exteriores. Assim o uso dos vegetais nas
curas pelas mulheres se dá por meio do uso de poderes exteriores. O curar em Caviana é uma
ferramenta importante e compartilhada entre as mulheres numa rede de trocas; essa rede tem
como função manter sempre vivo o saber da cura, o saber das plantas, e assim garantir a
permanência de sua família e, consequentemente, dos “filhos de Caviana”.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
1. Metodologia de pesquisa
A ilha Caviana fica no extremo norte do estado do Pará, no delta do rio Amazonas. É
majoritariamente habitada por comunidades ribeirinhas na sua porção oeste e por poucos
vaqueiros e fazendeiros nos campos naturais a leste, onde estão as fazendas de gado. As
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Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Latour 2005; Leach 1996; Graeber 2001; Levi-
Strauss 1989; Leroi-Gourhan 1971; Fausto 2008, 2007, 2001, 2000; Basso 1988; Behar 1986; Brubaker e Cooper
2000; Champaigne 1975; Fortes 1969; Bourdieau 1996; Geertz 1967; Goffman 1967; Descola 2001; Elias 1965;
Malinowski 1975; Viveiros de Castro 2002; Durkheim 1989; Evans-Pritchard 2005; Strathern 2004, 1988; entre
outros.
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Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Bensa 1998; Heckenberger 2001; Rosaldo 1980;
Sahlins 1981, 1985; Santos-Granero 1998; Steward et al 2003; Thomas 1989; entre outros.
3
Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Silva 2000, 2003; Nelson 1991; Lemmonier 1986,
1992; Neuport 2000; Pfaffenberger 1992, 2001; Polisits 1995; Schiffer & Skibo 1992, 1997; Schiffer 2001,
1972; Skibo e Schiffer 2001; Torence & Van der Leeuf 1989; Zedeno 2008.
4
Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Ellen 2006; Balée 2006a, 2006b. 1998, 1994, 1989;
Balée & Erickson 2006; Crumley 1994, 1995; entre outros.
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Para as principais referências que usei nesta pesquisa ver: Aldenfereder 2006; Arhem 1998; Ashor et al 1999;
Dove e Carpenter 2008; Lentz 2000; Flint & Morphy 2000; Hirsch & O´Hnalen 1995; Kuchler 1993; Ingold
2001, 2000; Buchler & Melion 1991; entre outros.
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Juliana Salles Machado
Selecionei uma comunidade na ilha, a Frei Crescêncio, para uma investigação mais
intensa e sistemática (no caso da coleta de dados etnobotânicos e das entrevistas). Essa
comunidade fica na porção central da ilha e foi selecionada por ter o maior número de
moradores antigos da região, além de uma vegetação nativa preservada, permitindo um modo
de vida ribeirinho não necessariamente associado à pecuária ou ao comércio intenso com a
cidade. Vivem ali cerca de 236 indivíduos, dispersos em aproximadamente 50 casas ao longo
de 10 igarapés e nas margens da ilha. Pelo menos um morador ou moradora de cada casa da
comunidade foi entrevistado, mas escolhi três grupos domésticos para analisar mais
minuciosamente: o de Adolfo Figueiredo, líder da comunidade e com maior status político e
econômico; o de Roberto Figueiredo, irmão de Adolfo e conhecido como marreteiro, que faz
o comércio de bens entre os ribeirinhos e também entre fazendeiros e a cidade; e o de
Constâncio Ferreira, pertencente a uma família com uma intensa produção de roças e plantio.
Inicialmente, minha pesquisa centrou-se no ponto de vista masculino, pelo fato de meus
principais colaboradores serem homens, mas, no decorrer do estudo, as mulheres foram
assumindo o papel central, tornando-se minhas principais fontes de informação e pesquisa.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
visão foi atenuada com o passar dos anos. Também minha condição feminina era ambígua,
vinda de fora eu era apresentada aos líderes homens da ilha, devido principalmente ao meu
conhecimento do mundo exterior à ilha e de política em geral. No entanto, com as minhas
repetidas idas a ilha ao longo dos anos e com a percepção dos ribeirinhos do meu interesse
pelas plantas, a esfera feminina me foi sendo apresentada gradativamente. O adoecimento de
Adolfo, meu principal interlocutor nos primeiros anos, me levou a uma maior proximidade
com sua esposa, Tereza. Essa interação, aliada a meu esforço pessoal em participar das
atividades cotidianas da casa, permitiram uma mudança na visão dos ribeirinhos sobre mim.
Em pouco mais de dois anos, a ambigüidade de minha presença foi diminuída, apesar de
persistir de maneira menos óbvia até o presente. Pude ser recebida como “de casa”, como
filha, como amiga, e, finalmente, como parceira na troca das plantas. À mim foram atribuídas
atividades domésticas e cerimoniais, como nas missas dominicais. Pude acompanhar os
banhos de rio no final da tarde e as conversas íntimas na cozinha já na escuridão da noite. No
entanto, como não poderia deixar de ser, nunca deixei de ser diferente, de transitar entre os
homens e em muitos casos de ser vista como fonte de oportunidades, seja de conexão com o
restante do país, como nas cartas e telefonemas a parentes perdidos cujo paradeiro era
desconhecido das famílias, seja como alvo de solicitações das mais diversas, como o conserto
de óculos, a instalação de telefones e rádios, entre inúmeros outros pedidos.
Minha pesquisa estendeu-se por seis anos, dos quais quatro realizei pesquisas de
campo. Minha primeira etapa de campo ocorreu antes de meu ingresso no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (doravante PPGAS) e serviu como
uma etapa inicial de levantamento para melhor definir meu problema de pesquisa. Após meu
ingresso no doutorado, obtive uma bolsa CAPES com duração de quatro anos. Ao longo desse
período, tive diversos financiamentos para a realização das etapas de campo, a saber: em
2006, obtive financiamento do NuTI; em 2008, do CNPq e Farperj (bolsa CNE); e em 2009 e
2010, o Auxílio-campo PPGAS, Museu Nacional, UFRJ. Cada etapa de campo durou de 30 a
40 dias. Também obtive financiamentos para a participação em congressos nacionais e
internacionais oriundos de Auxílio-evento PPGAS e da Wenner-Gren Foundation via
Association of Social Anthropologiss of the UK (ASA). Durante esses anos de pesquisa, fui
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Juliana Salles Machado
mãe duas vezes, experiência que certamente direcionou meu olhar para a esfera feminina da
ilha e ajudou na minha inserção entre as mulheres de Caviana.
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Para uma das poucas descrições da cerâmica chamada Caviana ver Rostain 2011.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
detalhamento fez com que eu incluísse em meus questionários informações sobre a origem
das mudas (Anexo 7).
A partir dos dados genealógicos que me foram apresentados fiz uma listagem de
nomes, os correlacionado aos demais dados socioeconômicos disponíveis. Todos os
indivíduos arrolados na tabela do Anexo 8 encontram-se também nos diagramas genealógicos
(Anexo 9), que indicam suas relações de parentesco. Para os indivíduos e famílias
entrevistados, listei no Anexo 8 o número de casas correspondentes. Para as entrevistas foram
contadas e visitadas 50 casas, mas há mais na ilha, pois nem todas foram incluídas na amostra
da pesquisa. Selecionei uma área de pesquisa coincidente à chamada comunidade Frei
Crescêncio, amostra analítica que engloba algumas casas e grupos de casas para melhor
compreender a sua localização, o uso de seu espaço interno, bem como os usos individuais e
coletivos das plantas.
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Juliana Salles Machado
ITEM VARIÁVEL
1 localização de cada indivíduo nas redes de identificação nos diagramas
parentesco genealógicos
2 sexo feminino ou masculino
3 número de identificação da casa alfa-numérico
4 nome do lugar onde fica a casa nominal
5 tipo de assentamento margem alagada de igarapé
margem seca de igarapé
costa da ilha
campo natural
6 forma de agrupamento das casas configuração de casas – mais de três
casas
grupo doméstico – até três casas
casa isolada
7 roças presença ou ausência
8 terreiros presença ou ausência
9 canteiros presença ou ausência
10 uso de áreas abandonadas presença ou ausência
11 criação de animais gado
porcos
galinhas
patos
12 pesca consumo doméstico
venda
13 posse de embarcações canoa
barco pequeno
barco médio
barco grande
14 atividades rentáveis/ remuneração remuneração mensal
venda de produtos da roça
venda de pescado
atividade mista
Tabela I.1: Tabela com questionário sobre economia e assentamento
Durante as visitas, observei cada casa e fiz uma entrevista estruturada e outras não
estruturadas sobre as plantas dos canteiros, terreiros e roças e os possíveis usos de áreas
abandonadas. Essas informações resultaram num banco de dados que serviu de base para a
estatística descritiva e uma sistematização dos usos das plantas na ilha Caviana. Na tabela do
Anexo 10 apresento os itens observados na aplicação de um segundo questionário. Neste, o
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
foco era a relação das plantas com as mulheres, a partir de dados sobre as áreas e práticas de
plantio, seus usos e origem. Enquanto no primeiro questionário, as respostas eram dadas por
representantes femininos e/ou masculinos de cada casa, neste último, os dados eram na sua
grande maioria fornecidos exclusivamente pelas mulheres. Seguem abaixo os itens
observados (Tabela I.2):
QUESTIONÁRIO 2: AS PLANTAS
ITEM VARIÁVEL
1 número de identificação da planta alfa-numérico
2 nome nativo da planta nominal
3 espécie botânica nominal
4 família nominal
5 habitat árvore
arbusto
erva
palmeira
7
6 atos de proteção sobre a planta ausência ou presença
7 atos de cultivo ausência ou presença
8 categoria de uso (variáveis combináveis): alimento
remédio
comercial
ornamento
madeira
matéria-prima
construção
ferramenta
processamento de alimentos
fibra
múltiplos usos
9 fator de reutilização ausência e presença
10 origem da planta8 nominal
11 descrição de uso descritivo
Tabela I.2: Tabela com questionário sobre as plantas
7
São consideradas ações de proteção os cuidados com as mudas como as cercas de proteção contra animais, o
corte seletivo das plantas do entorno, a retira de das ervas daninhas, a adubação, a poda etc.
8
Esse item será apresentado com os resultados da estatística descritiva encontrada no Capítulo 4.
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Juliana Salles Machado
Ao longo de meu estudo, como disse acima, três casais se tornaram meus principais
interlocutores: Adolfo e Tereza Figueiredo; Roberto e Maria Augusta Figueiredo e Raimunda
dos Santos Batista (Dica) e Constâncio Ferreira. Apesar de os dois primeiros serem parentes,
pertencem a grupos domésticos separados, têm diferentes status e esferas de atuação na
dinâmica social da área de pesquisa. Ao final de meu trabalho, Tereza se tornou minha
principal interlocutora. Nenhum de meus colaboradores foi pago, os únicos assistentes pagos
foram os pilotos do barco, normalmente um dos filhos de Roberto, que é um dos poucos
ribeirinhos que tinha uma embarcação disponível para meu uso durante a pesquisa.
A imagem da cultura cabocla que fora consolidada a partir de meados do século XX, em
acordo com seus propositores Charles Wagley (1957) e Eduardo Galvão (1975), “se
expressava na vida isolada em unidades familiares, geralmente nas várzeas dos rios, igarapés
e lagos, numa pequena agricultura familiar combinada com a pesca e a caça” (Murrieta et al.
2006:19; Nugent 1993, 2006). Nesta perspectiva, estariam sujeitos à adaptação ambiental
tornando-se acomodados às demandas econômicas externas (Harris 2006:88). Este modo de
9
Para mais discussões sobre o tema, ver Nugent (1993, 2006); Adams (2006); Galvão (1979, 1975); Harris
(2005); Lima (1999) e Lima & Alencar (2001).
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
vida teria posteriormente se cristalizado dentro de uma realidade a-histórica (Murrieta et al.
2006:19; Nugent 1993, 2006) – um dos temas da literatura para o qual eu gostaria de chamar a
atenção (para crítica a abordagens a-históricas, cf. Nugent 1993, 2006). Sendo fruto de um
complexo processo histórico de colonização europeia na região, da mistura de pessoas,
crenças e ideologias diversas, tais populações não possuíam um passado pré-colonial ao qual
podiam ser atribuídas diretamente. Aliado à isso, a visão de uma Amazônia como ‘natural’,
isenta de sociabilidade (Nugent 1993:5), reforçava a ideia de um estado de ser atemporal.
Perante a literatura, tais ideias acabaram por legar aos ribeirinhos uma posição passiva frente
à sua trajetória, sem história, oprimidos por um ambiente inóspito e subordinados às
oscilações comerciais externas (Nugent 1993, 2006).
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Juliana Salles Machado
resultando nas conhecidas “florestas culturais” 10 (Raffles 2002, 1999; Harris 2005, 2000,
1998; Lima & Alencar 2001). Dentre as abordagens ecológicas, nos últimos anos diversos
autores enfatizaram o uso da terra e dos recursos naturais pelas populações amazônicas e sua
relação com questões de gerenciamento político e ambiental (Adams et al. 2006; Brondízio
2004; Lima 2004; Chipnick 1991; Siqueira 2006). Já as abordagens econômicas reforçam, por
um lado, a ideia de uma Amazônia conectada por comércio, crédito, migração, trocas,
conflitos e busca de commodities e, por outro, um grupo de pessoas fora do alcance do estado,
envolvidas numa economia informal (Brondízio 2004; Nugent 1993; Lima 2006).
10
Para estudos com populações indígenas, cf. Balée (2006a; 2006b; 1998; 1994; 1989); para estudos com
populações caboclas, cf. Raffles (2002; 1999).
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Não há uma denominação consensual para essas pessoas com modo de vida semelhante
que habitam as margens dos rios amazônicos, que por vezes são chamados de caboclos. O
termo “sociedades caboclas” recentemente ganhou força com a publicação de Adams et al.
(2006), obra que representa o estado da arte dos estudos sobre o tema. O uso do termo retoma
uma denominação usual entre a população amazônica, silenciada devido à sua conotação
negativa (é uma categoria relacional, não é um termo de auto-designação, é usado pelos
habitantes das cidades amazônicas para falar de pessoas do interior, e de acordo com Lima
(1999), essa categoria estabelecia um valor inferior aquele que o proferia, como mais
atrasado, iletrado, inculto). Recentemente, entretanto, foi sendo reformulada por autores locais
em uma tentativa de valorização regional. Já o uso de “ribeirinhos”, apesar de históricamente
também ter uma associação com uma posição de subordinação social (patrão/pequeno
produtor), ela é mais vaga do que àquela mencionada para “caboclos”. O uso desta designação
feito por autores como Harris (2005, 2000) e por essa autora (Machado 2010, 2009), entre
outros, se deve não apenas a referência geográfica de suas moradias ao longo dos rios e
igarapés, mas, principalmente, por marcar a relação que as pessoas e comunidades têm com
esses corpos de água, que assumem uma importância central na sua organização social. A
opção pela utilização desse termo, a meu ver, nos afasta da dubiedade interpretativa que
“caboclo” pode acarretar (focando na dicotomia campo-cidade) e nos leva a pensar a relação
que essa população constrói com a paisagem. Em minha pesquisa, o uso do termo se tornou
ainda mais forte, uma vez que é aceito pela população local, apesar de não ser utilizado e nem
ser uma auto-denominação. Outra referência encontrada é “sociedades tradicionais” (para
crítica, ver Brondízio 2004), utilizada nos discursos políticos como uma forma de inserir essas
populações em políticas públicas (Chipnick 1991). Nugent se refere ainda a “camponeses
históricos” (Nugent 1993, 2006) com o intuito de inseri-los em uma discussão sobre o
campesinato na Amazônia, área onde tal abordagem é pouco trabalhada. A utilização de uma
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Juliana Salles Machado
referência temporal nesse caso se deve, segundo o autor, a uma alusão a trajetória histórica
particular dessa população em relação aos camponeses do nordeste brasileiro, estes últimos
intensamente tratados na literatura. Outros termos como “pequenos produtores” (Brondízio
2004) e “pescadores” (Lima 2006; 2004), são usados pelos autores para marcar a inserção
econômica desse grupo no mercado nacional e internacional. Seus estudos focam a economia
doméstica, ou economia da casa, como um fator importante de organização social. Lima os
define como “populações tradicionais” e para o contexto de Mamirauá apresenta a seguinte
descrição: “moradores de uma unidade de conservação de uso sustentável, engajados em
práticas de conservação, ou ainda ao fato de se tratar de uma população regional, amazônida,
com longa história de convivência natural” (Lima 2006:145).
Devido, em grande parte, a seu caráter híbrido (no sentido étnico – mistura entre europeus,
índios e africanos) e flexível (tanto no sentido econômico devido à diversidade de suas
atividades e flutuações intensas de seu comércio, quanto religioso, relacionado a um
catolicismo popular bastante aberto) uma das discussões que permeiam o conceito de caboclo
na literatura é se ele é passível de ser categorizado (Lima 1999; Boyer 1999; Chipnick 1991;
Rodrigues 2006; Harris 1998). Parte dessa literatura aponta para uma saída interessante: a
unidade desta categoria residiria em sua própria flexibilidade; sua intersticialidade sendo o
lócus mesmo de sua unidade (Chipnick 1991; Harris 2006; Rodrigues 2006). No entanto, a
própria ideia de intersticialidade implica em categorias discretas prévias. Dizer que essas
sociedades são intersticiais é, portanto dizer que elas não se encaixam plenamente em
nenhuma categoria, mas que ao mesmo tempo elas carregam em si todas elas11. Assim, o
chamado caboclo amazônico é índio, branco e negro, tudo ao mesmo tempo (Lima 2006;
Harris 1998; Rodrigues 2006; Chipnick 1991; Boyer 1999). Contém em si, portanto aspectos
das tradições indígenas mais antigas, particularidades afro-brasileiras e européias da época da
colonização e as mais diversas inovações atribuídas à modernidade ocidental. No entanto,
apesar desse ‘hibridismo’, elas são vistas mais como resultado da conquista europeia, do que
das sociedades locais, ou ainda como “testemunho[s] da influência nociva da ‘civilização’”
(Adams et al. 2006:16). Ainda que simplista, essa visão é amplamente difundida. Mas, como
ressaltam Adams et al. (2006:16) e outros, há que se ter em mente que “os próprios outros
11
Aqui nos referimos tanto a categorias étnicas (índios, branco e negro) quanto econômicas, como camponeses e
pescadores e vaqueiros, entre outras discussões, conforme pode ser visto em Chipnick 1991; Harris 1998,
Rodrigues 2006 e Lima 1999.
33
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
originais [os grupos indígenas amazônicos] são eles mesmos resultados do processo histórico
da colonização” e, portanto, que a “continuidade existente entre as identidades indígenas e as
identidades caboclas é muito mais complexa do que normalmente é considerado”.
34
Juliana Salles Machado
Uma das discussões teóricas importantes para o desenvolvimento dessa tese foi àquela
concernente à paisagem. Permeando diversas disciplinas, o(s) conceito(s) de paisagem serviu
como pano de fundo para as mais diversas abordagens sobre a relação entre humanos e
ambiente. Nessa relação gostaria de enfatizar a importância da temporalidade e como ela foi
vista nos estudos sobre paisagem. Segundo Knapp & Ashmore (1999:21), paisagem é “a
35
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
arena a partir e através da qual memória, identidade, ordem e transformação social são
construídas, atuadas, re-inventadas e mudadas”12. Assim, segundo os mesmos autores:
O termo paisagem (landscape) é tido muitas vezes como sinônimo de meio ambiente,
dissociado da sociedade humana e concebido como repositório de recursos necessários para
obtenção e manutenção da subsistência dos grupos humanos. Nesse sentido, aparece como
sinônimo de espaço, como terra (land), composta por componentes bióticos e abióticos, com
estrutura e transformação própria, decorrente de uma dinâmica interna a qual os homens
tentam se adequar e domesticar (Zedeno 2008; Zedeno & Bowser 2009).
12
“The arena in which and through which memory, identity, social order and transformation are constructed,
played out, re-invented, and changed” (Knapp & Ashmore, 1999:21)
13
“Whatever our own traditional views, it is now clear that landscape is neither exclusively natural nor totally
cultural: it is a mediation between the two and an integral part of Bourdieu’s habitus, the routine social practices
within which people experience the world around them. Beyond habitus, however, people actively order,
transform, identify with and memorialize landscape by dwelling within it. The environment manifests itself as
landscape only when people create and experience space as a complex of places. People’s sense of place, and
their engagement with the world around them, are invariably dependent on their own social, cultural, and
historical situations” (Knapp & Ashmore 1999: 21).
14
Para mais sobre o tema, ver também David & Thomas (2008:35-36). Segundo David & Thomas (2008: 35-
36): “para entender a paisagem deve-se delinear seus meios de engajamento, a maneira que é entendida,
codificada e vivida na prática social e cada um desses, assim como a própria paisagem, tem história” 14, o
engajamento se dá e é definido “pela maneira que damos significado cultural para a localização de nossa
existência”14 (2008: 36).
36
Juliana Salles Machado
A partir dos anos 1970, contudo, o conceito de paisagem passou a ser abordado na
antropologia e na arqueologia sob um novo ângulo. Os temas tratados eram principalmente
relacionados às estratégias econômicas e suas dinâmicas inter-regionais, aos determinantes
econômicos dos padrões de assentamento, aos impactos ambientais e limitações na produção
agrícola, bem como aos processos demográficos e à organização social complexa em
determinados contextos regionais (David & Thomas 2007). O enfoque recaía, portanto, nos
impactos humanos e nas interações com o entorno físico. Tais abordagens levaram a uma
compreensão mais ampla dos processos de formação da paisagem, incluindo abordagens
interdisciplinares de fauna e flora e desenvolvimentos relacionados com um aumento da
sofisticação dos procedimentos estatísticos, esse último principalmente na arqueologia (David
& Thomas 2008; Aldenfereder 2006; Ashmor et al 1999; Zedeño 2008; Zedeño & Bowser
2009).
A partir de um levantamento realizado por Ashmore & Knapp (1999), podemos ver
como a ideia de paisagem foi sendo re-definida na década de 1990. Assim por exemplo, para
Crumley (1994) a ênfase é dada na relação estabelecida entre humanos e ambiente. Essa
ênfase em seu caráter relacional também foi dado por Johnston (1998), para quem não é
possível estabelecer uma resposta definitiva para o que é paisagem, pois se trata antes do que
ela pode ser, reiterando que a paisagem é constituída contextualmente. Temos, portanto, que a
paisagem é não apenas um ambiente sobre o qual os humanos atuam e transformam, mas o
próprio resultado dessa interação. Tal percepção levou diversos autores a voltarem seus
olhares para as formas cotidianas de ocupação em busca de compreender a relação humano-
37
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
ambiente como um recurso culturalmente significativo (Barrett 1994). Um dos autores que
tornou essa visão mais aceita entre os antropólogos e arqueólogos foi Ingold (2000) através do
que ele chama de dwelling perspective. Nessa perspectiva:
Apesar da literatura sobre as sociedades ribeirinhas ter como base a relação entre elas
e o ambiente, ela o faz majoritariamente de um viés econômico, priorizando ora sua relação
com a sociedade nacional (Nugent 1993) e/ou sua inserção no mercado (Lima 2004, 2006),
ora o manejo ambiental enquanto prática economicamente sustentável (Brondízio 2004,
2006). Meu intuito aqui é, do contrário, priorizar o significado social e simbólico dessa
relação. Ao fazer isso, como nos mostra a literatura sobre paisagem acima mencionada,
focalizarei a construção de uma ‘identidade ribeirinha’ e de sua memória por meio da
manutenção de práticas cotidianas, de seu repertório material, do processo tecnológico de
produção de objetos, das práticas de manejo ambiental, da troca de plantas e partilha
alimentar, bem como do conhecimento do meio em que vivem.
15
“landscape is constituted as an enduring record of – and testimony to – the lives and works of past generations
who have dwelt within it, and in so doing, have left there something of themselves. (...) To perceive a landscape
is therefore to carry out an act of remembrance, and remembering is not so much a matter of calling upon an
internal image, stored in the mind, as of engaging perceptually with an environment that is itself pregnant with
the past” (Ingold 2000:189).
38
Juliana Salles Machado
16
Para uma relação semelhantes em contextos indígenas da Amazônia ver Gow 1995.
39
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
4. A estrutura da tese
Esta tese tem um eixo diacrônico, quando enfatizo a percepção dos ribeirinhos da
historicidade e da humanização das paisagens, e também sincrônico, quando procuro
compreender a vida ribeirinha por meio de sua relação com as plantas. Nesta Introdução,
sintetizei a discussão acerca da antropologia das populações ribeirinhas da Amazônia,
17
Para uma literatura sobre memória e paisagem ver Knapp & Ashmore 1999; David & Thomas 2008; Fausto &
Heckenberger 2007; Gow 1995; Heckenberger & Franchetto 2001; Hirsch & O´Hanlon 1995; Kuchler 1993;
Kuchler & Melion 1991; Steward & Strathern 2003; Ucko & Layton 1999; Zedeño 2008; Zedeño & Bowser
2009.
40
Juliana Salles Machado
41
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Nas considerações finais, encerro com algumas reflexões sobre como a relação entre
os humanos e as plantas, a transformação da paisagem e a constante afirmação de
territorialidade que integram um processo de (re)criação de uma memória local.
Ao longo de toda a tese, as citações de obras em inglês foram por mim traduzidas. As
versões originais se encontram nas notas de rodapé.
42
Capítulo 1
Figura abertura Capítulo1: Fotos dos “filhos de Caviana”. Foto: Juliana Salles Machado
43
Juliana Salles Machado
1
Paisagem, tempo e transformação
A maior parte dos estudos acerca das populações ribeirinhas na Amazônia pauta-se na
relação dos humanos com o meio que os circunda. Na apresentação de seu livro, Wagley
18
“Beira-mar” é o termo local usado para se referir aos lugares da ilha situados à margem do rio Amazonas. Por
ser uma região onde esse rio é muito largo e se encontra com o mar, a visão do horizonte a partir de suas
margens se assemelha à da costa brasileira, sendo possível em alguns locais ver algumas ilhas mais próximas.
44
Figura 1.1: Foto de Satélite da ilha Caviana. Fonte: Google Earth 2011.
45
Figura 1.2: Exemplo de moradia ribeirinha nas áreas florestadas da ilha. Foto Juliana Machado
Figura 1.3: Exemplo de moradia ribeirinha na maré baixa nos campos naturais da ilha.
46
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
(1957:2) descreve esse objetivo “[...] em sentido amplo, o livro é um estudo sobre a adaptação
do homem a um meio tropical”. 19 Essa vinculação dos ribeirinhos com o meio ambiente
perpassa quase toda a literatura sobre o tema, mesmo aquela que adota outras abordagens
teóricas. Dentre estas, vemos essa relação a partir de outras perspectivas tais como a de “ritmo
de vida” em Harris (1998, 2005), a de “relação econômica” (Nugent 1993; Lima 2006) ou a
das “formas de manejo” (Brondízio 2004), como mencionamos na Introdução.
19
“[...] in a large sense, the book is a study of the adaptation of man to a tropical environment” (Wagley 1957: 2).
20
“[...] the economic life of the valley is clearly primitive and stagnant. The agricultural techniques used in
Amazonia are mainly those inherited from the native Indians, fire or slash-and-burn agriculture” (Wagley, 1957:4).
47
Juliana Salles Machado
em conhecer as curvas de seus rios, identificar suas árvores e, por meio delas, pensar seu
passado, seu presente e seu futuro. Não se trata, portanto, de um meio que os circunscreve,
mas de um conjunto de relações efetivamente construídas entre humanos, plantas, animais e
lugares, no sentido mais amplo do conceito de paisagem. O manejo ambiental praticado
intensamente pelos ribeirinhos hoje é também uma forma de construção da memória e de
afirmação de uma continuidade e está necessariamente imbricado nas relações de parentesco
dos ilhéus.
A paisagem de Caviana parece ter sido sempre muito dinâmica. Pelo menos é o que
nos indica a história oral da ilha e a toponímia das suas áreas internas, que ainda designam
suas partes como ilhas independentes, como Ilha Nova e Ilha da Prainha ambas na sua porção
leste. O padrão de assentamento dos sítios arqueológicos também pode ser um indicador desse
intenso dinamismo, pois os sítios identificados estão todos implantados no alto dos tesos
antigos, atualmente recobertos por uma vegetação de mata. Não há nenhum sítio nas áreas de
campos naturais, o que pode indicar que essas áreas tenham sido anteriormente cursos d´água,
seja como rios, igarapés ou lagos. Os ribeirinhos se referem às terras secas e altas da ilha
como “tesos de índio”, atribuindo-lhes uma formação antrópica. Tal formação não foi
comprovada, mas encontra precedentes na ilha vizinha, a ilha de Marajó, são os chamados
“tesos marajoaras” estudados mais profundamente por autores como Meggers & Evans
(1996), Roosevelt (1991), Schaan (2004).
21
Para modelos de ocupação da Amazônia, ver, entre outros Heckenberger 2005; Meggers & Evans 1996, 1957;
Roosevelt 1991; Heckenberger & Neves 2009.
48
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
estende até o período colonial, no centro-sul, mais próximo à ilha de Marajó. Ambas foram
sugeridas por Curt Nimuendaju (2004, 2000), que fez escavações na ilha ainda nos anos 1920.
Duas décadas depois, dados de escavações de Meggers & Evans (1996, 1957)
corroboraram a ocupação colonial e pré-colonial mais recente de Caviana, atribuída às
populações indígenas Aruã, que também ocupavam a ilha de Marajó e foram documentadas à
época do contato (Roosevelt 1991; Schaan 2004). Segundo Meggers & Evans (1957:551):
“Parece que os Aruã compartilham com as culturas Arawak ocidentais um conjunto de fatores
que inclui alinhamentos de pedra, estatuetas polidas, contas de nefrite e amuletos, figuras
cerâmicas rudimentares, pratos e assadores, apliques e métodos ponteados de decoração
cerâmica”.22 A ocupação mais antiga, no entanto, não foi enfatizada nesta pesquisa.
22
“The Aruã appears to share with Arawak cultures of the West Indies a complex of traits that includes Stone
alignments, polished celts, nephrite beads, and amulets, crude pottery figurines, Platters or griddles, and applique
and punctuate methods of pottery decoration” (Meggers & Evans 1957: 551).
23
Informação fornecida por Cabral e Moura, no II Encontro Internacional de Arqueologia Amazônica, em 2010.
49
Juliana Salles Machado
reforçadas pelo mapa de Nimuendaju para a dispersão arawak na região (Figura 1.4). As datas
atribuídas a cada grupo indígena indicado, assim como a distribuição espacial a eles
associadas, me parece reforçar o modelo de migração arwak (pelo menos para essa região),
vinculando tanto com o grupos atualmente localizados no norte Amapá (Palikur, Karipuna e
Galibi-Maworno – para mais informações ver Vidal 2007) quanto os contextos pré-coloniais
mais antigos ainda pouco conhecidos, mas atribuídos a grupos arawak.
24
“The brutal and imprudent policy of the Portuguese local authorities at Belém had the most infortunate
consequences for the young colony, because from now on the island tribes quite naturally considered every
enemy of the Portuguese, whether English, Dutch or French, their friends and allies” (Nimuendaju 2004: 96
Apud Berredo 1905a: 180 e 186).
50
Figura 1.4: Mapa histórico de C. Nimuendaju sobre a dispersão de grupos indígenas Arawak. Fonte:
Nimuendaju, C. 2008 [1926].
51
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Segundo Nimuendaju (2004), Pe. Antonio Vieira teria tentado selar um acordo de paz
entre os portugueses e os chefes aruã, dentre os quais se destacava Piyé, habitante da ilha
Caviana, conforme descreve o autor:
52
Figura 1.5: Escavação de Curt Nimuendaju em 1925, ilha Caviana. Fonte: Barreto e Machado 2001.
Figura 1.6: Escavação de Curt Nimuendaju em 1925, Rebordello, Caviana. Fonte: Nimuendaju 2004
53
Juliana Salles Machado
25
Despite the fact that nobody believed in a peaceful solution, the Jesuit Antonio Vieira, nevertheless, brought
forward a proposal for peace (...) Among the chiefs who took part in the conclusion of the peace was one Piyé.
Vieira calls him the most sensible of them all. When about to swear allegiance, he correctly remarked that the
Father ought to direct his questions and instructions to the Portuguese and make them swear, because they had
broken their promises so often. This Piyé must have been an Arua Chief from Caviana; at any rate, the place now
called Rebordello was earlier called “Aldêa de Piyé”. (Nimuendaju 2004:97
54
Figura 1.6:
1.7: prancha com cerâmicas policromas coletadas por Nimuendaju. Fonte:Nimuendaju 2004
1.8: Prancha
Figura 1.7: prancha com cerâmica Aruã identificada por Meggers e Evans em 1948
1 em Caviana. Fonte:
Megers e Evans 1957.
55
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Marajó, não pode ser atribuído a eles, como tem sido assumido até agora” (2004:66) 26.
Nimuendaju, ressalta assim a diferença entre os vestígios arqueológicos encontrados em
Caviana e àqueles encontrados na ilha de Marajó, enfatizando que ambos não poderiam ter
sido feitos pelo mesmo grupo indígena. Com isto em mente, desqualifica a associação
previamente estabelecida entre os grupo Aruã e as cerâmicas arqueológicas encontradas no
norte da ilha de Marajó, para associá-los às cerâmicas provenientes de Caviana.
26
“the pottery from Campo Redondo originates from the Aruans, however, that of the style typical of Marajó
cannot possibly be ascribed to them, as has been assumed up to now” (Nimuendaju 2004:66).
27
A presença de vestígios europeus forma encontrados em algumas urnas em quase todos os sítios, indicando
que os sítios podiam ser mais antigos, mas a ocupação ainda estava presente à época do contato.
56
Figura 1.9: Sítios Arqueológicos localizados na ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito
57
Juliana Salles Machado
28
“The Aruã may have immigrated to their islands from no place other than the northern mainland, and their
flight in the 18th century from the Portuguese towards the north was in fact a return to their old homeland”
(Nimuendaju 2004:102).
58
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
fauna e da flora entre as ilhas deltaicas do rio Amazonas, eles apontam Caviana como a única
unidade geográfica alvo de intervenções arqueológicas sistemáticas que sofreu grandes
mudanças ambientais desde a ocupação indígena. Estas seriam decorrentes da pororoca, que
em 1850 teria cortado o rio Guajuru e separado a ilha em duas partes independentes. Meggers
& Evans identificaram todos os vestígios encontrados por Nimuendaju como pertencentes à
chamada fase Aruã (Figura 1.8)29. Estabelecida a partir tanto do norte da ilha de Marajó
quanto do sul litoral do Amapá, a fase Aruã também foi encontrada nas ilhas Mexiana e
Caviana. Segundo Meggers & Evans (1957), esses contextos insulares representariam a maior
concentração dessa fase arqueológica. Também para estes autores, a presença de contas de
vidro e fragmentos de metal (M-5 – Mulatinho, Mexiana) de origem europeia marcam a
cronologia da ocupação da região nessa fase, para a qual não possuímos datações absolutas.
29
Na arqueologia as diferenças regionais, relativas a variações espaciais, temporais ou a características
decorativas de vestígios cerâmicos, eram expressas através de subcategorias, chamadas de fases. As fases
cerâmicas seriam manifestações regionais de Tradições arqueológicas mais amplas, que expressariam
particularidades relacionadas não apenas ao local de ocorrência, mas também à sua decoração e cronologia. A
definição de tais manifestações macro e micro regionais padroniza a nomenclatura utilizada por diversos
pesquisadores em uma grande variedade de contextos regionais, permitindo maior comparação entre diferentes
contextos arqueológicos. No entanto, a classificação de Tradições arqueológicas realizada no Brasil pelo
PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisa Arqueológica, coordenado pelo casal Meggers e Evans a partir da
década de 60 no Brasil), e mais especificamente na região amazônica (PRONAPABA – versão regional do
programa), a partir de um único atributo técnico ou decorativo torna tais definições bastante restritivas e, de certa
forma, deficientes. Meggers e Evans (1970) partiam da premissa que as chamadas Tradições cerâmicas eram um
“continuum em mudança”. No método de seriação adotado, como na biologia, os tipos cerâmicos eram tidos
como populações nas quais a maioria dos membros traria as características do todo, e apenas uma minoria fugiria
a essa regra. Tendo isso em mente, as orientações dadas aos grandes grupos culturais sob o termo tipo/variedade
eram de caráter genérico, supostamente permitindo variações internas. Já os complexos cerâmicos indicariam
tipos associados no espaço e no tempo. A associação de um determinado complexo cerâmico a outros grupos de
vestígios arqueológicos e a elementos sócio-políticos e religiosos consistia num complexo cultural ou fase
arqueológica. Em sua origem por volta da década de 1970, tais nomenclaturas eram livres de uma conotação
etnográfica. No entanto, posteriormente esses autores assim como seus seguidores passaram a utilizar as fases
como identidades separadas, enquanto as Tradições vieram a representar entidades étnicas ou lingüísticas.
(Machado 2005; Barreto 1998)
59
Juliana Salles Machado
Segundo o modelo de Meggers e Evans (1957), o fato de a fase Aruã ser a primeira
ocupação do Amapá indica que os Aruã devem ter saído daí e migrado em direção às ilhas
Mexiana e Caviana e depois à de Marajó, e tal migração forneceria um controle cronológico
das características cerâmicas. Sentido migratório semelhante ao proposto por Nimuendaju e
atualmente debatido através do já citado modelo de diáspora arawak (Heckenberger 2005). Já
nas ilhas, a presença de bens europeus marcaria a data pós-colombiana dos sítios, podendo já
estarem no local antes do contato. A variação na densidade e variedade destes objetos pode
ser um indicador de uma ampla disponibilidade e a intensidade das atividades europeias na
área, no entanto tal análise quantitativa não foi realizada. O término dessa fase é atribuído à
conquista europeia e à colonização efetiva das ilhas. No entanto, segundo Meggers & Evans,
“depois da exploração inicial e esporádica do século XVI, no século XVII, com o
assentamento e as disputas pela soberania, a cultura aborígene começou a desaparecer [...].
Ainda em 1816, registraram-se 279 Aruã remanescentes no Rebordello, no extreme leste de
60
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Caviana, mas não se sabe quanto da cultura aborígene restava preservado. Em 1948, ‘os
índios’ já tinham se tornado pessoas lendárias do passado” (Meggers & Evans 1957: 554-
555).30 É interessante observar que Meggers & Evans se utilizam dos dados populacionais da
“Aldeia do Piyé”, no Rebordello, associando-a à grupos Aruã. No entanto, os dados utilizados
para definição da fase arqueológica com nome homônimo eram provenientes do contexto
centro-sul ou oeste da ilha, e apresentavam características muito distintas daquelas
encontradas neste sítio, conforme Nimuendaju já ressaltava. Segundo o próprio modelo
histórico-cultural, os vestígios pintados encontrado neste sítio seriam uma “variação”
atribuída a uma época mais recente da ocupação da ilha.
OCUPAÇÃO ANTIGA
fase Mangueiras – Primeira produção cerâmica de Mexiana e
Caviana encontrada apenas em um sítio; fase preponderantemente
localizada na ilha de Marajó. A presença dessa fase nas ilhas Caviana
e Mexiana representaria uma breve e mal-sucedida expansão para
outra ilha.
OCUPAÇÃO INTERMEDIÁRIA
fase Acauan – Contemporânea à fase Mangueiras em Marajó (no seu
período antigo), apresenta sinais de troca entre as duas. Representaria
uma breve ocupação das ilhas.
OCUPAÇÃO TARDIA
fase Aruã – Última ocupação da ilhas Caviana, Mexiana e de Marajó,
tendo seu auge nas ilhas Caviana e Mexiana. Associações com objetos
europeus indicam uma cronologia recente, provavelmente relacionada
ao início do contato (1500 AD) até aproximadamente início do século
XIX.
30
“[…] after the initial, sporadic exploration and trading of the 16th century gave way to the 17th-century
settlement and disputes over sovereignty, the aboriginal culture began to disappear [...] As late as 1816, there are
reported to have been 279 Aruã remaining at Rebordello on the eastern tip of Caviana, but it is not known how
much of the aboriginal culture was still preserved. By 1948, ‘the Indians’ had become legendary people of the
past” (Meggers & Evans 1957: 554-555).
61
Juliana Salles Machado
As escavações realizadas por Meggers & Evans em 1948 e 1949 não revelaram
cerâmicas com decoração pintada, com a única exceção de um pote cerâmico (indicado como
uma “variação”). No entanto, sítios localizados anteriormente por Nimuendaju (Nimuendaju
2004; Hartmann 2000) no leste da ilha Caviana apresentaram muitos artefatos pintados em
sítios datados do pós-contato, como já mencionamos. Segundo Meggers & Evans sobre os
achados de Nimuendaju, isso pode ser resultado de uma crescente influência da fase Aristé,
do Amapá, sobre a ocupação local. A região que eles apontam como tendo tido possível
influência Aristé corresponde àquela anteriormente escavada por Nimuendaju nos sítios
Bacabal I e II e Rebordello, na porção sudeste da ilha Caviana. Diferentemente do proposto
por Meggers & Evans, que não chegaram a pesquisar nessa área, os vestígios arqueológicos
encontrados por Nimuendaju apresentam muita decoração pintada polícroma, com a presença
de urnas com motivos antropomorfos.
As peças coletadas por Nimuendaju ainda precisam ser melhor trabalhadas, mas a falta
de dados quantitativos sistemáticos ou de proveniência impede uma análise mais profunda do
contexto arqueológico como um todo dessa área. Os dados obtidos com o material disponível
indicam certa semelhança com a policromia Aristé, como já havia proposto Meggers. No
entanto, as formas de algumas urnas também apontam influências estilísticas da fase Maracá
do Amapá, assim como marajoaras, no preenchimento da decoração pintada. Só recentemente,
em 2008, foi encontrado um sítio arqueológico com peças semelhantes aquelas de Caviana, na
periferia da cidade de Macapá (comunicação pessoal). Apesar de ainda não estudados e
publicados, os vestígios vêm sendo classificados como pertencentes a uma “fase Caviana”,
segundo nomenclatura proposta por Rostain (2011) a partir da coleção de Nimuendaju. No
entanto, mais pesquisas são necessárias para melhor compreendermos a relação entre esses
contextos e sua cronologia absoluta bem como sua relação com as demais ocupações da ilha.
Vale lembrar, por outro lado, que uma das propostas não exploradas de Nimuendaju é
que os vestígios cerâmicos polícromos seriam oriundos de uma ocupação mais antiga da ilha,
e não mais recente, como querem Meggers & Evans (Hartmann 2000). Antigos ou recentes,
os sítios arqueológicos onde foram encontradas as cerâmicas chamadas Caviana ficam no
mesmo lugar onde teria estado a já mencionada “aldeia do Piyé” e, como viemos a saber em
campo, um teso bastante povoado até meados da década de 1990, quando o rio secou e seus
últimos moradores se mudaram para as margens da ilha (Figura 1.10).
62
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
31
O termo “ilhas do amapá” é usada por Vidal para se referir a região do sul do estado do amapá repleto de ilhas.
Este contexto é o mesmo da ilha Caviana, apesar desta última, assim como a ilha Mexiana, se encontrarem
oficialmente como parte do estado do Pará.
32
Segundo a descrição de Vidal (2007) sobre os neo-brasileiras, essa categoria é correspondente ao que estamos
chamando de “populações ribeirinhas” na Amazônia.
63
Figura 1.10: Vista do teso do Rebordello, com detalhe de urna funeraria e sítio arqueológico, 2006. Fotos:
Juliana Salles Machado.
64
Juliana Salles Machado
medida, aos Karipuna do norte do Amapá. Não estou propondo aqui uma continuidade entre
os dois grupos, já que para tanto seria necessário um aprofundamente das pesquisas sobre as
migrações, mitos, e dados históricos em geral de cada um dos grupos. No entanto, gostaria de
sugerir a hipótese de que o passado indígena arawak atribuído aos ribeirinhos de Caviana
possa estar ligado aos grupos atualmente residentes do Uaçá, especialmente os Palikur.
65
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
questões culturais, sociais e simbólicas. Assim, Bueno (2007) propõe a indissociação entre
razões práticas e simbólicas na escolha do lugar de implantação (para mais literatura sobre o
tema ver Silva 2000; Ashmore & Knapp 1999; Crumley 1995; Deneven 2001; Dyke 2008;
Isnardis 2004; Zedeño 2008; Zedeño & Bowser 2009).
Proponho que repensemos por que, mesmo descontínuas, as reocupações são tão
frequentes em territórios tão vastos e ricos em recursos (Machado 2009). Sua presença pode
indicar uma escolha cultural e pode esclarecer as formas de interação entre as diferentes
ocupações, mesmo em registros descontínuos. Essa questão é particularmente importante para
33
Exceção feita novamente ao Rebordello, onde até 1998 ainda havia uma vila ribeirinha no teso, sem indícios
de abandono na ocupação daquele espaço.
66
Juliana Salles Machado
Como vimos, os dados arqueológicos disponíveis para essa região são escassos,
oriundos de pesquisas realizadas por Nimuendaju na década de 1920 (Nimuendaju 2004;
Hartmann 2000) e de Meggers & Evans na década de 1940 (Meggers & Evans 1957). No
entanto, apesar das poucas pesquisas na área, há 20 sítios arqueológicos cadastrados nos
arquivos do Iphan, além de outros que pude identificar na região (Figura 1.9).
67
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Tabela 1.1 – Sítios arqueológicos localizados na ilha Caviana cadastrados no Iphan até 2006
68
Juliana Salles Machado
grande riqueza de formas, tamanhos e decorações entre eles, indicando tratar-se não apenas de
ocorrências isoladas, mas de um amplo repertório material, possivelmente associado a
contextos domésticos. Na coleta de informações orais entre os moradores desses lugares, não
obtive nenhuma notícia sobre a presença de urnas funerárias, embora os espaços sejam
recorrentemente associados à antigas ocupações da ilha, sendo apontados por alguns
informantes como antigas aldeias indígenas.
Nos últimos dez anos, as áreas de ocupação persistente, isto é, com grande freqüência
de reocupações, estão sendo pouco habitadas em função da seca e do assoreamento dos
igarapés que permeavam a região. Gradualmente, os moradores estão se deslocando em
direção à costa, abandonando esses locais. Na seca, chega-se aos sítios à pé ou à cavalo,
partindo das margens para o interior da ilha. Na estação chuvosa, pode-se seguir o curso dos
antigos igarapés e atingir à beira dos tesos pelas áreas alagadas, em pequenas canoas.
69
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Rebordello, Taxipucu e João Brás são apenas alguns exemplos de reocupação contemporânea
ou de um passado recente de sítios arqueológicos datados de pelo menos os primeiros anos
antes do contato (séculos XVI e XVII). O sedimento é arenoso, apresentando variações entre
branco-bege e cinza, esta última normalmente associada aos sítios arqueológicos. Apesar
dessa diferença na coloração, não há ali indícios de aumento de sua fertilidade, como se
encontra em inúmeros sítios arqueológicos ao longo da calha do rio Amazonas, onde são
encontradas as “terras pretas” (Neves 2005; Neves et al 2003).
70
Juliana Salles Machado
71
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Quando eu me entendi, que eu estava assim com meus doze anos, mais
ou menos, aquilo era tudo cercado de acapulco e maçaranduba, tudo
estaqueado de acapulco e depois levantado os frechais de acapulco e
maçaranduba. Quando eu me entendi ainda havia aquilo ali. (Teotônio,
Pracutuba, Caviana, 2006)
Caviana guarda muitas histórias orais, cujos episódios estão gravados, principalmente,
na memória dos habitantes mais velhos da ilha e que ouvi pela primeira vez de Roberto e
depois, com mais detalhes, do próprio Adolfo. Caviana guarda histórias de seu passado, cujos
fragmentos são contados por diversos moradores. Esta tradição oral é transmitida por homens
e mulheres no cotidiano das casas, nas visitas à amigos e parentes. Enquanto às mulheres cabe
a manutenção deste conhecimento histórico através da repetição de seus termos,
nomenclaturas, músicas, gestos e principalmente da tecnologia; aos homens cabe a
transmissão de um discurso histórico, que é feito através da contação de histórias, repetidas
quando da visita à amigos e parentes. Pude acompanhar algumas visitas onde Adolfo, líder da
comunitário e bom orador, contou fragmentos das histórias de Caviana. Outra situação
importante para os contextos de transmissão desta meória coletiva, é nos encontros
comunitários, seja para uma missa, seja para um grupo de trabalho, quando homens se juntam
e discutem sobre a história de suas famílias e da ilha. A semelhança dos trechos narrados me
indica tratar-se de uma única narrativa compartilhada por todos. Durante minhas etapas de
campo tive a oportunidade de ouvir três versões mais completas da narrativa contadas por
72
Juliana Salles Machado
Roberto, do igarapé Taxipucu, Adolfo, do João Brás e Teotônio, morador de uma área mais
distante no oeste da ilha, no igarapé Pracutuba. Ao buscar mais versões dessa narrativa
histórica me deparei com um texto escrito que se encontrava guardado por Adolfo. As
histórias que eu ouvira de forma dispersa pelos moradores haviam sido compiladas e
registradas em papel compondo uma única narrativa por um comerciante da ilha de Marajó,
Alcindo Abdom (Anexo 1). Trata-se de um híbrido de histórias contadas oralmente e
referenciais locais mobilizados para consolidar uma narrativa, que veio a se tornar, de certa
forma, a versão ‘oficial’ da história de Caviana. Os temas abordados nessa história são amor e
brigas, assim como paz, guerra e prosperidade. A narrativa começa no contato entre os índios
chamados de Cavianos34 e os portugueses, período considerado de imensa prosperidade e
alegria. Segue-se um período de guerra, quando uma tentativa de invasão francesa é contida
pela união dos índios aos colonos portugueses. Apesar da vitória dessa aliança, a relação entre
os índios e os portugueses se deteriora, devido às pressões do governo de Belém, que
começava a nomear novos governantes para a ilha. Essas desavenças culminaram numa
última guerra, deflagrada pelo amor proibido entre uma índia e um médico, filho de um
colono português. Muitos índios então teriam morrido ou fugido, e os que restaram teriam
ficado como trabalhadores das terras que se tornaram portugueses.
34
Não há uma padronização dessa nomenclatura, que pode variar entre Cavianos e Caviana. Também não
encontrei registros históricos que apontem para essa nomenclatura. Segundo relatos dos cronistas mencionados
anteriormente, à época do contato a ilha Caviana era ocupada por índios Aruãs. No entanto, as narrativas orais de
Caviana reforçam que esses grupos eram distintos. Como vimos, os dados de Nimuendaju, também apontam
para essa direção, isto é, as diferenças entre os vestígios cerâmicos encontrados na duas partes da ilha
pesquisadas indicam que havia pelos menos dois grupos distintos e a presença de contas de vidro evidencia essa
cronologia da época do contato. No entanto, mais pesquisas são necessárias para averiguarmos tal hipótese.
73
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Caviana35
[...] Essa ilha era habitada pelos índios Caviana, que pela suas aparências
deveriam descender do povo Espanhol dado a cor de seus cabelos e suas peles,
esses viviam de caça e pesca;
Até que pelos anos de 1796 chegou em uma das enseadas dessas ilha, um
português chamada Pedro Corrêa de Brito, enseada essa de Porto Manso,
tendo em frentes três pequenas ilhas, que dado as tidas terem grande
quantidade de aves, da qual a maior quantidade eram chamadas marrecas,
logo apelidada de ilhas das Marrecas. Pedro era um português de estatura
média, porém forte e de uma vontade imensa de se tornar senhor possuidor de
uma imensidão de terras.
Assim ao chegar nessa ilha tratou de fazer amizades com os índios Cavianos36;
e tendo se feito acompanhar de seu primo Isidoro Carvalho de Brito e da sua
mulher e seus filhos e outro português chamado Venceslau Firmo Figueiredo,
cada um dos componentes levando seus escravos em média seis para cada um,
esses eram para todos os serviços, inclusive remeiros do pequeno barco com
capacidade para 10 toneladas de peso, quando não tinha vento para arrastar o
barco, os escravos serviam de seus remos denominados Paia, para continuar a
viagem, assim foram fixadas as residências dos três primeiros aventureiros
que abordaram a rica ilha e denominado o local domo São Pedro. Os barracos
foram construídos com a própria madeira existente na ilha. Essas madeiras
chamadas Anoirá e Pau Mulato:
Pedro com as amizades feitas com os indígenas dando presentes de lenço de
cor encarnado, miçangas e outras bijuterias sendo para os mais graduados
como sejam o Tuxana37 denominado Batú e curandeiro Touro Preto. Foi
presenteado com duas facas de fabricação inglesa e para a índia Jandira, essa
de cabelos ruivos e olhos esverdeados a mais bonita da tribo foi lhe dado por
Pedro, vestidos encarnados, brincos e sandálias e meses depois, após a
chegada dos aventureiros se tornou companheira de Pedro.
E assim Pedro foi buscando em Belém do Pará outros colonos que se
submetiam a Pedro nos trabalhos de colonização, em outras viagens para
Belém do Pará, através dos estreitos de Breves eram levados para ilhas, gado
Vacum Cavalares, caprinos, porcos e aves domésticas, que distribuíam com os
colonos, ficando o senhor Pedro com os direitos de vender os animais já
produzidos e para corte;
35
A versão apresentada da narrativa Caviana consiste em um recorte de trechos do documento original, que
apresento na íntegra no Anexo 1.
36
Conforme mencionaie anteriormente, não há uma padronização nessa nomenclatura, em campo ouvi dizerem
índios Caviana, assim como índios Cavianos.
37
No texto original está escrito “tuxana”, no entanto nas versões orais o termo que ouvi era “tuxaua”.
74
Juliana Salles Machado
75
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
76
Juliana Salles Machado
I
As horas mortas da noite
A lua brilha no mar,
As ondas beijando as praias,
Dormes no lindo luar.
II
Sei que de mim não te lembras,
77
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
[...]
Ondas essas denominadas Pororoca que cerca de meia hora antes delas
surgirem, há uma espécie de cântico que se misturam, os cânticos das
saracuras aritauã que embreasse os caboclos residentes na redondeza e
quando passam as ondas deixam um marujar sonoro parecendo assim irem
com saudades distanciar-se da ilha;
Que ainda é conhecida como reserva ecológica, porque ainda existem uma
grande quantidade de animais peixes denominados Peixe-Boi, Pirarucú,
Tucunaré em grande quantidades nos igarapés denominados Papajá, Taxipurú
e lagos denominados escarpados. Tuiuiú, Massarico, Pocotó e seus campos
verdes perfumados por flores de Carobeiras, Ingá Xixica e pelas cores dos
pássaros denominados Jaburús, Colheira, Guará Tuiuiu como já falamos das
quantidades e espécies de jacarés como seja Jacaré Açu, Tinga, Uma Corôa
que essa espécie de Corôa foi denominado pelos colonos por serem rajadas de
preto e branco sendo o Tinga é de cor amarelo claro e a carne e seus ovos são
prediletos dos indígenas.
[...]
E por falar em indígena, o autor deste livro conheceu um casal denominado
Manoel Gomes e Efigênia, falecidos em 1940, ambos descendentes dos índios
Cavianos;
Ele faleceu com cerca de 110 anos e ela com cerca de 95 anos;
Contavam que quando se uniram, viveram de pesca e agricultura e na certa
noite de lua, estavam pescando na sua igarité, e viram quando os
remanescentes dos índios Cavianos saíram em suas pirogas a remo;
Piroga nome da embarcação fabricada pelos índios;
E pela conversação dos índios Cavianos que ela falava sobre os mesmos iam a
procura de novas terras, onde pudessem viver tranqüilos, sem a intercessão do
homem branco, os índios sabiam haver na terra geral lugares aonde poderiam
estabelecer-se e na cabeceira do Calçoene
[...]
(Alcindo Abdom, s/d)
78
Juliana Salles Machado
Alcindo formou um novo elo com a família Figueiredo, agora na figura de Adolfo,
para relembrar as histórias que marcaram o contorno da ilha e imortalizá-las em folhas de
papel. Se não temos ao certo a data em que a narrativa foi escrita, sabemos que o autor nasceu
em 18 de agosto de 1918 e faleceu no final da década de 1990. Sabemos também que é a
compilação de histórias contadas por pelo menos três gerações e cinco homens (Augusto
Firmo Figueiredo, seus filhos Camilo Correia de Figueiredo e Adolfo Figueiredo, e Alexandre
e Alcindo Abdom). A julgar pelos fragmentos que ouvi aqui e acolá durante minha estadia em
Caviana, são mais que memórias individuais, constituindo uma memória coletiva de pelo
menos parte dos moradores da ilha. De maneira circular, as narrativas orais foram
transformadas em texto por Abdom, e este serviu para gerar novos fragmentos orais. Sabemos
ainda, pelo conteúdo do texto, que foi escrito depois de 1945, quando o casal de arqueólogos
estadunidenses, referidos nos texto (ver Anexo 1), esteve em Caviana.
Perguntado sobre o passado da ilha, Adolfo conta sobre a origem dos portugueses no
local, trazendo nomes e sobrenomes ainda familiares aos atuais moradores. Segundo ele
alguns portugueses e brasileiros vieram à Caviana para plantar, criar e trabalhar, lá fizeram
79
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
suas moradias e se juntaram aos índios. Posteriormente à chegada dos colonos, eles teriam
dividido a ilha em quatro partes, uma para cada “capitão” que veio defender a ilha dos
franceses. De acordo com Adolfo, são eles: Augusto Firmo Figueiredo; Afonso Gomes da
Costa; Manuel Furtado; e Manuel Correia. Seguindo de leste para oeste, as terras da ilha
teriam sido distribuídas da seguinte maneira: Augusto Firmo Figueiredo teria ficado com a
terra do Pacajá ao Rebordello; do Pacajá até São João era de Manuel Correia; de São João até
Taxipucu de Afonos Gomes da Costa; e do Taxipucu até Guajuru de Manuel Furtado.
Trago abaixo trechos que se referem aos primeiros colonizadores da ilha e gostaria de
chamar especial atenção a última parte do trecho, onde o autor faz referência ao loteamento da
ilha Caviana entre os colonos já residentes, mesmos nomes e divisões que nos foram
mencionados anteriormente por Adolfo.
[...] Até que pelos anos de 1796 chegou em uma das enseadas dessas ilha,
um português chamada Pedro Corrêa de Brito, enseada essa de Porto
Manso, tendo em frentes três pequenas ilhas, que dado as tidas terem
grande quantidade de aves, da qual a maior quantidade eram chamadas
marrecas, logo apelidada de ilhas das Marrecas. Pedro era um português
de estatura média, porém forte e de uma vontade imensa de se tornar
senhor possuidor de uma imensidão de terras.
80
Juliana Salles Machado
[...] Até que um dia o destino quis proteger essa gente, pois Capistrano
foi morto por filho e sobrinho de fazendeiro que tinham sido mortos,
passando as fazendas para Capistrano, até que fora morto. Assim
voltando a paz na vila de Chaves e com bons entrosamentos entre o novo
intendente de Chaves o Sr. Antonio Goia de Delcarme e Afonso Gomes da
Costa, as duas localidade progrediram; tanto que chegou ao ponto de
Afonso Gomes da Costa resolveu lotear a ilha entre os colonos; dando a
Venceslau Figueiredo, a parte do nascente da ilha compreendendo do
Igarapé Piranha, nome esse dado pelos indígenas até o igarapé Pacutuba
[Pracutuba], nome esse também indígena; e para Sérgio Augusto de
Oliveira Brito, a parte norte da ilha compreendido do furo do Guajuru
rodando até a ponta do Espírito Santo, nome esse denominado por
Afonso Gomes da Costa, aonde existe um igarapé por nome Carmo,
aonde Sérgio localizou sua residência; dando ainda para João Alberto
Furtado a parte da ponta de Rio Ubussutuba [Ubuçutuba], nome esse
indígena, até o igarapé faxipucú [Taxipucu]; dando ainda para Isidoro
de Brito da margem direta de que sobre o igarapé faxipucú [Taxipucu],
81
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
até o lugar denominado por ele Afonso Gomes da Costa, até o lugar
Monte Alegre; essas doações foram feitas para que evitasse de os
vendedores ambulantes que começaram a introduzir na ilha, vindo
embarcações a vela que eram tripuladas por escravos que serviam de
remeiros para quando faltava vento, assim seria difícil os invasores
ambulantes negociarem com bebidas alcoólicas para com os indígenas e
escravos.
Os nomes das famílias dos colonos ainda estão presentes entre os riberinhos de
Caviana hoje. Se compararmos a localização dos lotes oferecidos a cada família, com a
disposição das famílias atualmente, vemos que esse padrão de distribuição ainda é
perceptível, mesmo com a introdução de novos agentes na ilha e com os casamentos entre as
famílias. Os dados relativos as famílias e seus locais de moradia podem ser obtidos na tabela
do Anexo 8. Em alguns casos, como para a família Figueredo, consegui traçar a genealogia de
meus interlocutores até os primeiros colonos que chegaram à ilha (ver Anexo 9).
Uma fala recorrente entre os ribeirinhos com quem conversei é a mudança dos tempos.
A passagem do tradicional para o moderno é um tema recorrente na literatura de
comunidades. A recorrência do tema é acompanhada de um sentimento generalizado de
melancolia, de perda do passado e incerteza no futuro. Esse discurso, em Caviana, é tanto dos
mais velhos quanto dos jovens, mas, entre aqueles, é mais explícito e intenso. Talvez tenha
sido esse sentimento que levou Alcindo Abdom a escrever a narrativa. Temendo o futuro
incerto, registrou suas memórias para eternizar um passado que parecia cada vez mais distante
e incompreensível para o novo mundo. Não faço aqui uma análise detalhada do conteúdo da
narrativa a partir da estrutura formal do texto, mas esboço algumas ideias acerca da escolha
dos termos na composição da narrativa e de suas implicações para os significados
transmitidos ao longo dela.
82
Juliana Salles Machado
A narrativa histórica “Caviana” está vinculado a uma performance oral que tem um
espaço marcado na vida dos moradores de Caviana. A “Caviana” de Alcindo Abdom
imortaliza versões individuais da história da ilha. As narrativas são contadas de um para outro
a partir de uma performance específica, no seu próprio tempo e do seu próprio jeito. A
narrativa Caviana traz novamente o contraste recorrente entre um passado glorioso e um
presente deteriorado, tema que é encontrado nas narrativas ameríndias e nos estudos de
comunidades camponesas em geral. No entanto, conserva seus próprios personagens, seus
atos gloriosos e sua sequência narrativa.
83
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
com o passado. Um passado que é constituído não de pessoas e lugares, mas da relação entre
eles, como mostram tanto os inúmeros casos de reocupação dos mesmos lugares quanto a
narrativa local, cujos índices de memória são as toponímias, marcadores dessa relação. Entre
estes marcadores temos os nomes de locais como “Porto Manso”, “Ilha das Marrecas”, “São
Pedro”, “Monte Alegre”, “Piranhas” e “Tachipurú” (atualmente conhecido como Taxipucu) –
todos ainda reconhecíveis entre os moradores da ilha. Também a referência aos nomes de
famílias tradicionais de Caviana, como os Figueiredo e os Correa de Brito, trazem referências
de parentesco importante. Já entre os animais temos inúmeros exemplos entre os peixes
(como o pirarucu e o peixe-boi), a caça (como veados, capivara, porco do mato e jacaré) e os
passáros (como tuiuiú, massarico e pocotó), bem como de referências de árvores importantes
para os ribeirinhos como fonte de recursos (como Anoirá, Pau Mulato, Piquiá e Itaúba).
Nos próximos capítulos, trataremos do presente dos ribeirinhos, de seu ritmo e modo
de vida, das mulheres e de suas plantas e da relação dos humanos com os outros, encantados e
não-humanos. Veremos, no entanto, que esse presente revela muito do passado e que ser
“filho de Caviana” implica um aspecto diacrônico de pertencimento a um lugar e, ao mesmo
tempo, a um grupo de pessoas. A importância social e pessoal da relação entre pessoas e
lugares é citada por Tilley (1994: 15, grifo nosso), quando o autor trata do que chama de topo
análise; ou seja, “é aquela que explora a criação de identidades pessoais (self-identity) através
do lugar. A experiência geográfica começa nos lugares, alcança os outros através dos espaços
e cria paisagens ou regiões para a existência humana” 38. É a idéia de emplacement, ou estar
no lugar, que pode ser entendida também como o lugar de estar e ser; que não dissocia
espaço, passado e presente, mas é sua síntese, numa constante reconstrução e ressignificação
desses agentes sociais. A idéia de lugar (place) é fundamental para entendermos o contexto de
Caviana e a relação das mulheres com as plantas. Assim, encerramos esse capítulo com uma
(de muitas possíveis) definição de lugar, o qual usaremos daqui em diante.
38
“personal and cultural identity is bound up with place; a topoanalysis is one exploring the creation of self-
identity through place. Geographical experience begins in places, reaches out to others through spaces, and
creates landscapes or regions for human existence” (Tilley 1994: 15)
84
Juliana Salles Machado
39
“we understand by place the experience of a particular location with some measure of groundedness (however,
unstable), sense of boundaries (however, permeable), and connection to everyday life, even if its identity is
constructed, traversed by power, and never fixed”. (Escobar 2001: 143)
85
Capítulo 2
Figura abertura capítulo 2: o pôr do sol no trapiche do João Brás. Foto: Juliana Salles Machado
86
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
2
“QUANDO ME ENTENDI”:
A GENTE DE CAVIANA
Quando eu me entendi, que eu estava assim com meus doze anos, mais
ou menos, aquilo era tudo cercado de acapulco e maçaranduba, (...)
Quando eu me entendi ainda havia aquilo ali. (Teotônio, Pracutuba,
Caviana, 2006)
87
Juliana Salles Machado
Como vimos no capítulo 1, a ilha Caviana apresenta uma grande diversidade ecológica
e em sua forma de ocupação. Não há, porém, subdivisões oficiais de seu território. Os
moradores se referem à diferentes lugares usando critérios variados como o pertencimento às
comunidades católicas, à localização das casas ao longo dos rios e igarapés ou em função de
registros de propriedade e de posse. A área selecionada para esta pesquisa coincide
geograficamente com a comunidade Frei Crescêncio 40 e fica na porção sudoeste da ilha
(Figura 2.1). Ela agrega aproximadamente 236 pessoas, em 52 casas distribuídas ao longo de
10 igarapés de médio porte e à beira-mar. 41 Ao longo da pesquisa, percorri todos os igarapés
dessa área, tendo ficado mais tempo em três locais: a) na posse de João Brás 42, pertencente a
Adolfo Figueiredo e sua família; b) no igarapé Taxipucu, onde se concentra o grupo
doméstico de Roberto, irmão de Adolfo, e sua família; e c) no igarapé Socó, onde vive a
família de Dica e Constâncio.
Começo descrevendo a ilha Caviana, para situar a área de pesquisa numa escala
regional. Em seguida, o foco passa à própria área de pesquisa, descrevendo-se suas
delimitações e articulações internas. Para entender a vida ribeirinha, apresento ainda alguns
aspectos de suas práticas econômicas, colhidos em diversas entrevistas, entre 2008 e 2010. Na
40
Divisão relacionada à Igreja Eclesial de Base, cuja paróquia está sediada em Chaves, na ilha de Marajó.
41
Expressão que designa os lugares na margem da ilha, à beira do rio Amazonas.
42
João Brás é também a atual sede da comunidade Frei Crescêncio.
88
Figura 2.1 Mapa com indicação da área de pesquisa na ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito
89
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
seção seguinte, trato dos grupos domésticos e das casas, tomados como as unidades
socioeconômicas mínimas da estrutura ribeirinha. Nessa seção, dou alguns exemplos de
grupos de trabalho e como eles extrapolam a esfera doméstica, formando agregações coletivas
fluidas, que se atualizam nas atividades cotidianas. Todos os aspectos apresentados até esse
ponto ganham uma nova compreensão quando inseridos na discussão sobre o ritmo de vida
ribeirinho, que é o tema da seção subsequente. Ali, busco inserir o movimento cíclico das
marés, as variações sazonais do regime de chuvas e as mudanças da paisagem local como
elementos fundamentais na estruturação da vida ribeirinha, seja no que se refere à percepção
do tempo e do espaço, seja como parte integrante da formação de sua memória e da sua
relação com as pessoas. O último tema tratado neste capítulo é a religião, que tem uma
dimensão coletiva menos fluida do que os grupos de trabalho, pois as famílias e os devotos de
santos reafirmam constantemente sua fé, num esforço de consolidação de uma coletividade.
Como vimos anteriormente, Caviana situa-se na foz do rio Amazonas, numa região
repleta de ilhas, formações características do delta amazônico (Figura 2.2). A porção de terra
continental mais próxima é a costa sul do estado do Amapá, na altura da cidade de Macapá,
capital do estado e referência urbana para os ribeirinhos. As ilhas mais próximas são Mexiana,
uma pequena porção de terra adjacente à extremidade leste, e Marajó, a maior ilha da região,
que fica ao sul e pode ser vista de alguns pontos da costa de Caviana. A ilha Caviana se
estende por 102 km no sentido leste-oeste e 41 km no sentido norte-sul, definindo uma área
de 4.182 km². Ela é recortada por inúmeros igarapés, sendo cinco deles de maior porte e
importância para os ribeirinhos, são eles de oeste para leste: Ubuçutuba, Pocotó, Taxipucu,
Apani e Pracutuba. Sua importância está relacionada à extensão de seu curso e à profundidade
de seu leito, cortando a ilha desde o interior até a costa e permitindo a navegação de barcos de
90
Figura 2.2: Mapa da ilha Caviana. Mapa: Marcos Brito
91
Juliana Salles Machado
maior “calado”.43 Essa configuração permite uma pesca abundante e uma locomoção segura,
tornando essas áreas muito atrativas para os moradores da ilha e ocasionando uma forte
demanda pela ocupação de suas margens. Ao longo do curso desses rios, ficam as escolas da
ilha, seja em locais construídos pela prefeitura, como no Ubuçutuba, no Pocotó e no
Pracutuba, seja alojadas no interior das casas ribeirinhas, como no Taxipucu. Há apenas um
posto de saúde, no rio Ubuçutuba, mas que atualmente está abandonado.
O rio Pocotó também abriga as famílias antigas da ilha e, assim como o Ubuçutuba,
vem sofrendo novas ocupações. Mas, nesse caso, a ocupação recente está relacionada à
exploração do palmito pelos chamados “palmiteiros”. Essa atividade é ilegal e desaprovada
pela população local, que evita “se meter com essa gente”. Os palmiteiros constroem abrigos
temporários e se mudam com frequência, abandonando suas casas e acampamentos ao longo
desse trajeto. Depois de alguns anos de exploração, deixam o rio em busca de novos lugares
de coleta. Durante sua permanência na ilha, estabelecem poucas relações com os moradores
locais e, durante a minha estadia, não acompanhei nenhum casamento entre eles. O rio Pocotó
abriga um antigo cemitério de Caviana, agora abandonado, mas que é muito conhecido nessa
parte da ilha e fica mais no interior do teso que margeia o rio. Também a partir deste rio,
temos acesso ao cemitério atual, onde são enterrados habitantes das proximidades e de outros
igarapés.
43
“Calado” é o espaço que uma embarcação ocupa verticalmente dentro d’água.
92
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
O Apani foi o único grande rio que não pude conhecer, pois fica num trecho da ilha
cuja intensa sedimentação secou a foz dos igarapés, impedindo o acesso ao interior com
barcos. No passado, foi um rio grande e profundo, com as margens muito habitadas. Como o
Ubuçutuba, o rio Apani abrigava algumas oleiras e até hoje tem um reconhecido “experiente”,
por vezes também chamado de “pajé” que, pelo diálogo com os “encantados”, tem o poder de
curar as pessoas. 44 Atualmente, muitos moradores deixaram o lugar em função da seca, e os
que ficaram caminham horas desde a costa até o interior, onde mantém suas casas.
44
“Experiente” é o termo usado na ilha para falar de pessoas que lidam com os “encantados” e que, a partir
deles, têm poder de cura. Já o termo “pajé” se aplica aos “experientes” mais poderosos. “Encantados” é uma
categoria ampla de entes não-humanos que contempla figuras maternas poderosas, como a “mãe-do-mato” e a
“mãe-do-lugar”, assim como espíritos de pessoas que morreram, criaturas mágicas como os botos e as cobras-
grandes e santos. Para mais discussões sobre o tema ver Capitulo 5.
93
Figura 2.3: Entrada do igarapé Taxipucu, Caviana. Foto: Juliana Salles Machado
Figura 2.4: Vista do igarapé Pracutuba na maré alta com campo natural e floresta ao fundo.
94
Juliana Salles Machado
de Caviana. Dizem que, nos tesos45 que se erguem à sua margem, havia uma grande vila com
muitas casas, uma igreja, um cemitério e uma venda que, como mencionamos no capítulo 1,
era chamada de “aldeia de Piyé”. A região era conhecida pela extração de castanha e
borracha, que eram vendidas à grandes navios que lá atracavam e as revendiam nas casas de
comércio em Belém. Ainda pude encontrar os vestígios dessa vila, nas estacas no chão e nas
ruínas da igreja. Essa mesma vila foi documentada por Nimuendaju na década de 1920, como
discutido anteriormente. Dessa época, os moradores de Caviana contam inúmeras brincadeiras
e festas em que se encenavam eventos de caça e a aparição de seres sobrenaturais como a
mãe-do-mato”.46 Hoje, toda a extensão das margens do rio Pracutuba pertence a uma família
de fazendeiros, que lá criam búfalo para corte (Figura 2.4). Esse rio também secou, mas ainda
é possível entrar de barco até a casa da fazenda, devido a um furo cavado pelo fazendeiro
local. Com a seca do rio, os antigos moradores do interior da ilha, às margens do igarapé, se
mudaram para a costa, próximos à sede da fazenda, na foz do Pracutuba. O grande número de
pessoas que se mudaram para lá, levou à formação de uma nova vila, que tem uma venda e
uma igreja.
45
“Teso” é o termo com que os ilhéus designam elevações de terra não inundáveis recobertas por uma densa
vegetação arbórea chamada localmente de “mata velha”.
46
O termo “brincadeiras”, ou “cordões”, se refere a festejos pagãos em que se encenam ações de caça ou
encontros com sobrenaturais e que sempre acabam numa festa dançante. Durante minha pesquisa, não se fez
nenhuma dessas brincadeiras, e eles dizem que não as fazem mais. No passado, alguns fazendeiros patrocinavam
as brincadeiras, convidando os brincantes para ficar a noite inteira, quando ofereciam uma festa. Os cordões
ocorriam em junho, próximo a São João, e duravam aproximadamente 10 dias. Em maio, começavam a ensaiar
nos fins de semana. Depois dos ensaios, sempre faziam “mucuras”, festas organizadas na casa de algum
conhecido. As brincadeiras variavam, mas a ideia era sempre de proteção ao animal que estava sendo
perseguido. Adolfo descreveu-me um cordão de 22 brincantes no Pracutuba, conhecido como a “brincadeira do
Pavão”, em que se cantavam versos improvisados. O nome da apresentação era “Matança”, segue sua descrição:
“um caçador aparecia e matava o pavão; um médico era então chamado e o curava. O caçador tentava matar o
pavão novamente, mas índios, armados com flechas, apareciam e espantavam os caçadores”. Adolfo se recorda
também da música da “Brincadeira da Jacina”, que é uma libélula: “A Jacina vem da terra/A Jacina vem do ar/A
Jacina vem de longe/Não pode se demorar/Senhor caçador da Jacina/Faça favor, venha cá/Às ordens, senhor,
meu amo/Eu já vou me apresentar”. Nessa brincadeira, a Jacina aparecia e o caçador atirava nela. Um
personagem chamado “amo” pegava o caçador e o fazia “pagar o mico”, ocasião em que ele devia pagar o amo
com dinheiro, se não, tinha suas mãos amarradas. Segundo Adolfo, o “amo” era o protetor da Jacina e “chamava
mãe para ela”.
95
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
chuvosa, formam grandes lagos rasos que cobrem quase toda sua extensão. Ali ficam as
cabeceiras dos rios, referência que nomeia cada uma de suas partes – por exemplo, o “campo
do Pocotó”, ou “pantanal do Pocotó”. Essas terras são áreas coletivas de caça, onde se
encontram animais como a paca, o tatu, o veado, o porco-do-mato, a anta, o jabuti e a onça-
laranja em abundância. Segundo um morador do rio Pocotó, “ninguém mora lá, os caçadores
vão lá”.
Para entender o modo de vida ribeirinho, escolhi uma porção da ilha que concentra
grande parte dos igarapés e muitos de seus antigos moradores. Como essa área não tem
campos naturais extensos, como a porção leste, não há fazendas de gado, e os moradores
vivem de pesca, caça, coleta de produtos da floresta, manejo e plantio de seus terreiros,
canteiros e roças. Há também a venda de frutas e produtos da floresta, que intermediários
levam à cidade. É comum que os homens mais jovens tenham outras atividades econômicas –
trabalham como vaqueiros nas fazendas de búfalo nos campos à leste da ilha, como marítimos
em grandes barcos para transporte de gado ou na venda de mercadorias da cidade, ou prestam
serviços nas casas ribeirinhas, roçando terrenos de parentes e amigos.
Minha área de pesquisa é delimitada a oeste pelo rio Ubuçutuba e à leste pelos campos
naturais, abrangendo uma extensão aproximada de 250 km² (ver Figura 2.1). O limite sul é o
próprio contorno da ilha e o norte, a região dos campos. De oeste à leste, essa área
compreende as seguintes localidades, reconhecidas a partir da presença de aglomerados de
casas e nomeadas normalmente pelo rio mais próximo, mas também, nos últimos três casos,
em função do nome da fazenda onde ficam: Prainha (PRA), Bom Jesus (BOJ), Socó (SOC),
Boa Vista (BOV), Pocotó (POC), João Brás (JOB), Turezinho (TRZ), Taxipucu (TAX),
Querquilhau (QUE), São Raimundo (SAR) e São Pedro (FSP) (Figura 2.5). Esses conjuntos
de casas estão em igarapés, praias à beira-mar e campos. Navegando à beira-mar, vemos uma
96
Figura 2.5: Mapa com grupos domésticos e demais locais citados no trabalho na ilha Caviana. Mapa:
Marcos Brito
97
Juliana Salles Machado
mata quase contínua, recortada apenas por concentrações de palmeiras e pequenos clarões em
torno de palafitas de madeira cobertas por folhas de buçu 47 trançadas ou por telhas de zinco.
Na foz de alguns igarapés, há alguns agrupamentos com cinco casas, mas o mais comum são
grupos de duas ou três casas, distantes entre si (Figura 2.6). Nos gráficos as casas foram
contabilizadas individualmente, independentemente de pertencerem a um agrupamento de
casas ou grupo doméstico. No Gráfico abaixo (Gráfico 2.1) as casas foram contabilizadas por
igarapé, portanto, nos casos com igarapés de maior porte, como por exemplo, o Taxipucu
(TAX) e o Pocotó (POC), assim como em grandes áreas de campo como São Raimundo
(SAR), mais de um agrupamento de casas foi contabilizado. No Taxipucu, foram contadas
nove casas, sendo distribuídas em apenas um agrupamento de cinco casas e as quatro casas
restantes dispersas de maneira isolada nas margens do rio. Já no rio Pocotó, com onze casas
são comuns agrupamentos de duas ou três casas e outras isoladas.
47
“Buçu” é o termo local para designar a palmeira do babaçu, da família botânica Arecaceae, muito utilizada
para cobrir casas.
98
Figura 2.6: Exemplos de grupos domésticos e casas na ilha Caviana.
99
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
48
As comunidades paroquiais de Caviana são: Frei Crescêncio (João Brás), São João da Caridade (Ponta da
Caridade), Nossa Senhora Aparecida (Ilha Nova), São Benedito (Pracutuba), Santa Maria (Taiqui), Sagrado
Coração de Jesus (Apani) e Santa Mônica (Fazendinha).
100
Figura 2.7: Casa de Adolfo e Tereza Figueiredo no João Brás e missa católica na igreja da comunidade
Frei Crescêncio. Fotos: Juliana Salles Machado
101
Juliana Salles Machado
párocos a lista de frequência dos cultos dominicais, a atualização dos óbitos e o dízimo
semanal. Além desses encontros, que acontecem em lugares variados, uma vez ao ano um
padre vai a uma das sedes das comunidades rezar uma missa e oficiar as cerimônias de
batizado e casamento. Já os cultos dominicais são realizados semanalmente na sede da
comunidade e proferidos pelos coordenadores, dirigentes, leitores e animadores.
Apesar de a criação das comunidades responder a uma vontade exterior à ilha, sua
delimitação geográfica não é aleatória. Uma vez que a participação dos indivíduos em uma ou
outra comunidade é voluntária, a agregação em comunidades reflete certa unidade prévia
entre os ribeirinhos. Adotando a delimitação geográfica estabelecida pela comunidade Frei
Crescêncio e descolando-a do sentido religioso estritamente ligado às obrigações paroquiais,
vemos a articulação de parentes e amigos em diversos grupos domésticos e na constante
formação de coletivos através de grupos de trabalho, de festas religiosas e brincadeiras, da
partilha de alimentos e das redes de troca de remédios (ver Capítulo 3 e 4).
No estuário, é acentuada a sazonalidade das águas, devido à junção do rio Amazonas com as
marés do oceano Atlântico, formando a conhecida pororoca, que impacta severamente as ilhas
do delta amazônico. A construção das casas em palafitas permite a seus moradores um fácil
102
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
acesso à água. Em lugares com alta variação no fluxo das marés como a ilha Caviana, essa
proximidade é considerada fundamental, por sempre permitir a locomoção e dar acesso à
recursos aquáticos para o sustento da casa. Rios perenes são valorizados, e seus meandros
mais acentuados, chamados de “porto”. Essa proximidade também os expõe muito à variação
das marés, mas isso não é necessariamente entendido como restrição ou determinante
inexorável de hábitos e formas de vida. O que vemos é uma relação íntima dos ribeirinhos
com o regime das águas, que, ao mesmo tempo em que constrange, também viabiliza certo
modo de vida. Se, por um lado, as marés são cíclicas e, portanto, seu ritmo é constante e
conhecido, por outro, esse conhecimento é apenas parcial, pois as marés nunca são totalmente
confiáveis ou previsíveis. A água é, simultaneamente, um atrativo que todos querem por
perto, e o inesperado, um perigo constante. Sua imprevisibilidade é reiterada pela intensidade
da devastação produzida pela pororoca, pelos recorrentes naufrágios em tempestades, pelos
barrancos caídos, pelo grau da sedimentação que seca os rios mais profundos, pela formação
de novas ilhas e terras, enfim, pela contínua e inelutável transformação da ilha. A água e os
humanos constroem uma relação que, para durar, deve ser sempre renovada. Um exemplo
desta relação pode ser encontrado no relato de Adolfo sobre o Pracutuba:
103
Figura 2.8: Exemplos de embarcações em Caviana. Fotos: Juliana Salles Machado
104
Juliana Salles Machado
Com o “crescimento” das águas, a pesca fica mais difícil, e aumenta a necessidade da
caça. As carnes mais apreciadas são de queixada, cotia, anta, tatu, capivara, jacaré, paca e
49
O inverno corresponde ao período das chuvas – de janeiro e a junho, dependendo do ano. O verão, quando
chove menos, vai de julho a dezembro.
105
Figura 2.9: Exemplo de casa no igarapé Taxipucu, ilha Caviana. Foto: Juliana Salles Machado
Figura 2.10 Vista do terreiro do João Brás no fim da estação chuvosa. Foto: Juliana Salles Machado
106
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
veado. Também se comem muito jabuti e perema (espécie de tartaruga pequena). Comumente,
caça-se com uma lança com uma ponta de ferro, com que se encurrala e depois espeta o tatu, a
cotia, a paca, a mucura ou o tamanduá (Figura 2.9). Já para o porco-do-mato, veado ou onça,
usam-se armas de fogo. Há certas restrições alimentares para a caça, envolvendo
principalmente o caçador e mulheres grávidas, como veremos no Capítulo 5. De modo geral,
toma-se cuidado com alimentos considerados “remosos”,50 como paca, camarão, porco ou
paturi.51 Estes são ingeridos cotidianamente, quando não se está doente, mas há o cuidado de
não associá-los à açaí ou feijão, nem ao ato de tomar banho ou remédio, pois tal associação
poderia deixá-los doentes.
50
Diz-se “remoso” o alimento que pode fazer mal e em geral, está associado a carnes mais gordurosas.
51
Variedade de pato encontrado em Caviana.
52
“Encova” é o termo local que designa uma forma de caça: um cachorro encurrala a presa, e, assim, o caçador
pode se aproximar o suficiente para cravar-lhe a lança.
107
Juliana Salles Machado
53
Como há poucas escolas em Caviana e os acessos são difíceis, durante o ano escolar as crianças saem de suas
casas para morar com parentes que moram perto da escola. Nas férias elas voltam para a casa de seus pais. Essa
dificuldade de freqüentar a escola, a baixa qualidade do ensino e constante ausência dos professores, acaba por
não incentivar várias famílias, que acabam por tirar seus filhos da escola, alguns ensinando em casa o que sabem
(poucos exemplos), outros mandando as crianças para morar com parentes em Macapá, ou ainda deixando as
crianças sem uma educação formal.
108
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
os barcos não chegam a boiar. Na lua nova, se repete o ciclo da lua cheia, com águas
“lançantes” e “tapecuemas” a “preia-mar”. Finalmente, no quarto crescente, a maré também
amanhece à “preia-mar”, mas já começa a crescer. O calendário lunar marca as horas das
enchentes e vazantes e sua intensidade. Ao todo, são cerca de cinco horas de enchente e oito
de vazante, ciclo que se repete diariamente, com duas enchentes e duas vazantes por dia.
O conhecimento desse complexo ritmo das marés é fundamental para a população, que
se organiza em função desse ciclo e sempre discute e avalia suas variações. As atividades são
planejadas para começar na lançante e durar até as águas estarem à preia-mar e começarem a
vazar, momento em que são encerradas; as pessoas se recolhem nas casas e passam a se
dedicar a atividades no seu interior.
A água dá aos ribeirinhos algo constante, seguro. Eles se fiam no conhecimento dos
movimentos da água – para trazê-los, buscá-los e, principalmente, mantê-los. Mas essa
relação de confiança não é dada pela condição geográfica e deve ser permanentemente
renovada. Os ribeirinhos não se cansam de “reparar” a água; discutem suas variações diárias e
sazonais e, na seca, conhecem seus caminhos. Em seus cascos e barcos, testam diariamente
seus conhecimentos e habilidades. O estreitamento dessa relação confere à alguns o título de
marítimos, dado apenas àqueles que ficam dias embarcados e só conhecem as marés como sua
casa. Esses poucos homens da ilha, comerciantes ou pescadores, apenas visitam suas casa em
terra e muitos voltam para dormir no barco. Todos têm alguma intimidade com a água, mas a
relação de cada um é particular; cada um constrói sua própria relação com a água e dela faz
sua história de vida.
109
Figura 2.11: Vaqueiros e sede de uma fazenda (abaixo) nos campos naturais de Caviana.
110
Juliana Salles Machado
campos. Os terrenos que não chegam ao meio da ilha também acabam por usufruir deles, pois
por serem afastadas, acabam sendo áreas livres, que todos podem aproveitar.
Assim, se por um lado o campo é próximo, pois todos o conhecem, por outro lado,
também inacessível, como objeto da disputa com os fazendeiros. Nesse caso, é uma fonte
potencial de recursos. No imaginário local, o campo é belo, limpo e fértil – “tudo o que se
planta cresce”. Poderia ser entendido como um ideal, mas, quando perguntados se morariam
lá, a maioria prefere ficar no “mato”. Muitas famílias de ribeirinhos possuíam ou ainda
possuem terras no campo, que eram de seus familiares, mas, com a seca, muitos se mudaram
para o mato. Vez ou outra, alguém da família vai “espiar” essas terras. Quanto às grandes
fazendas, são escassamente ocupadas por vaqueiros e encarregados contratados.
54
O questionário e todos os dados coletados estão no Anexo2.
55
O questionário foi aplicado por casa, assim um representante de cada casa indicava a variedade de renda
familiar; no entanto, em casos onde mais de uma família morava em uma casa – como, por exemplo, casais
recém-casados que ainda não tinham construído sua própria casa – eles foram contabilizados separadamente.
Assim os indicadores se referem as famílias e não estritamente às casas, apesar de em grande parte essas
categorias serem correspondentes.
111
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
60
50
40
30
20
10
0
Frutas e/ou Peixes Diversos remuneração Aposentados
56
Na categoria “diversos”, estão representados os indivíduos que, na entrevista, não especificaram sua atividade,
dando indicações vagas como “a gente faz um pouco de tudo”. Nesse “um pouco de tudo”, pude inferir a venda
de frutas e peixes e serviços ocasionalmente prestados a vizinhos, parentes e amigos.
112
Figura 2.12: Pesca de peixe em Caviana: acima (à esquerda) “curral”, armadilha de pesca e (à direita)
arpão de pesca; abaixo (à esquerda) pesca com anzol e (à direita) com rede.
113
Juliana Salles Machado
arpão nas canoas no meio dos igarapés, com redes colocadas na boca dos rios, com
armadilhas à beira-mar ou ainda com o que chamam de “gapóia” (Figura 2.12), que veremos a
seguir.
A pesca com linha e anzol é a mais praticada pelas crianças, que ficam algumas horas
na beira do trapiche e trazem uma quantidade de peixes pequenos espetados num pedaço de
pau. O arpão é mais utilizado pelos homens adultos, quando saem para pescar sozinhos em
seu “casco”. Com ele, não se pegam muitos peixes, mas pegam-se peixes maiores. A pesca
com rede é coletiva, feita pelo marido e sua mulher e filhos ou por irmãos do mesmo grupo
doméstico. Eles saem juntos numa canoa quando a maré está enchendo e põem a rede perto da
boca do rio; quando a maré começa a baixar, eles a retiram. Isso dá uma grande quantidade de
peixes, e, quando se pesca mais do que a família precisa, os peixes que sobram são
distribuídos entre os grupos domésticos ou entre vizinhos, parentes e amigos. A pesca por
armadilhas, o chamado “curral”, é também comum na ilha. É uma atividade masculina
normalmente individual e cabe ao “chefe da casa”. Ela consiste em fincar esteios de madeira
perto da margem da ilha – o que se faz na seca – fechando um quadrado, um retângulo ou um
círculo. Na parte inferior dos esteios, quase no chão, se trançam cipós, formando uma espécie
de parede que impede a passagem de peixes. Com a maré baixa, os peixes ficam presos no
“curral”, de onde são retirados antes da cheia. Por fim, a técnica da “gapóia” consiste em
cercar poças de água na maré seca e tirar a água de cada uma delas até aparecerem os peixes.
A água é retirada com uma ferramenta que chamam de “violão”, confeccionada com o tronco
da bacabeira, cuja tala se assemelha a um remo. Selecionam-se os peixes que serão retirados e
se soltam os demais com a cheia da maré.
Outra fonte importante de proteína são os camarões. Eles são muito comuns em
determinadas épocas. Grande parte do camarão é salgado e se conserva por um longo tempo,
o que dificilmente acontece com o peixe, que sempre se come fresco. Os camarões são
pescados com armadilhas chamadas “matapi” colocadas na beira dos igarapés, ou com redes
nas margens da ilha. Embora no João Brás se pesque com rede ou “malhadeira” (o que se
chama “lancear camarão”), a técnica mais comum na ilha é a pesca com “matapi”, uma
armadilha feita de talas amarradas com cipó ou fio de náilon, colocadas no fundo do rio e
presas até a superfície (Figura 2.13). Ainda que também os homens possam fazê-lo, isso é
mais frequente entre mulheres e crianças. Duas vezes ao dia ou durante a noite, o “matapi” é
114
Figura 2.13: Pesca de camarão em Caviana: acima e abaixo à esquerda, “lanceando camarão”, pesca com
rede de arrastão na margem do rio Amazonas; abaixo à esquerda, “matapi”, armadilha de pesca.
115
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
colocado quando a maré começa a encher e retirado quando começa a vazar. Algumas casas
possuem muitos “matapis” e as mulheres usam-no para pescar camarões para venda, como
uma forma de aumentarem a renda familiar.
Os “peixes-do-mar” são muito valorizados pelas famílias ribeirinhas, mas não são tão
comuns, dada a dificuldade de sua pesca, que obriga os homens a se afastarem das margens da
ilha, o que normalmente exige um barco de médio porte, não encontrado em todas as casas.
Os homens que vão pescar no mar aberto57 são chamados pescadores e em geral fazem-no
profissionalmente, vendendo os peixes nas cidades e ilhas próximas. Os peixes mais pescados
são: pescada, piaba, bagre, tainha, tambaqui, pirapitinga, aruanã, “boi de escama” (pirarucu),
filhote e mandubá. Na época da chuva, porém, quando a pesca profissional é proibida em
função da desova, os “peixes-do-mar” são destinados apenas à família.
Gráfico 2.3 – Gráfico com locais de cultivo na área de pesquisa em Caviana (2008-2010)
57
“Mar aberto” é o oceano Atlântico, que banha o extremo leste da ilha e aonde só vão pescadores profissionais,
já que sua travessia exige equipamento específico e barcos maiores.
116
Juliana Salles Machado
O Gráfico 2.3 acima trata dos locais de plantio utilizados (eixo X) por cada família
(eixo Y). Assim dos 180 representantes entrevistados, mais de 160 possuíam terreiros, 160
tinham canteiros, 100 utilizavam áreas abandonadas e apenas 60 plantavam roças. Comparada
à outras áreas da Amazônia, as roças são pouco usadas pelas famílias ribeirinhas, sendo os
terreiros e canteiros os principais locais de cultivo (ver Gráfico 2.3). Não há em Caviana roças
de mandioca, apesar da grande quantidade de farinha consumida pelas famílias em suas casas
cotidianamente. A farinha é trazida de Macapá em grandes sacos pelos “marreteiros” que as
vendem para as famílias da ilha. Quando perguntados sobre a falta do plantio, alguns dizem
que não sabem fazer o processamento da mandioca, outros que o processamento pe muito
trabalhoso. No entanto, entre as mulheres ainda persiste o conhecimento da manufatura do
tipiti, importante instrumento de processamento da mandioca. Algumas famílias contam que o
plantio era realizado por várias famílias, principalmente no igarapé Ubuçutuba, mas
atualmente pouco encontrado. Enquanto a pesca é reconhecida como atividade comercial, a
venda de frutas é vista como oportunística, porque, seja pela qualidade ou pela quantidade de
frutas vendidas, ela não é regular. As frutas mais vendidas são: o açaí, a laranja, a bacaba, o
jerimum e a melância. Sua venda assume grande importância na econômica doméstica, no
entanto está associada mais à diversificação do plantio do que na intensificação de sua escala
de produção. Na maior parte dos casos, não se destaca a produção de um único produto para
venda (com exceção do açaí), mas há um esforço geral para a manutenção da riqueza de
plantas. Essa orientação se assemelha à de outros contextos amazônicos (Lima 2006; Adams
2006; Adams et al. 2006), em que a diversidade de formas de exploração dos recursos leva a
uma flexibilidade econômica das famílias ribeirinhas, permitindo uma inserção mais
autônoma no mercado. No entanto, um aspecto pouco abordado nesses trabalhos e que
decorre dessa escolha é como ela modifica os padrões de assentamento e transforma a
paisagem, como veremos adiante.
117
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Uma das atividades comerciais da ilha é a do marreteiro, que compra os peixes e frutos
cultivados localmente para vendê-los nas cidades e também traz mercadorias das cidades e as
revende na ilha. Em Caviana, Roberto, morador do igarapé Taxipucu, é um conhecido
marreteiro. Leva os produtos da pesca de sua família e os cultivares de outros ilhéus para
vender na “beira”, em Macapá. 58 Na cidade, ele compra mercadorias para revender na ilha
58
A beira é um mercado livre e informal realizado no cais de Macapá pelos donos de barco vindos das ilhas da
região do delta amazônico e comerciantes locais. É ali que se negociam preços, fazem-se encomendas e
compram e vendem mercadorias. Na maior parte dos casos, os comerciantes locais compram os produtos dos
118
Figura 2.14: Acima, barco de passageiros e abaixo, barco de pesca ambos de Roberto e seus filhos.
119
Juliana Salles Machado
diretamente para os ribeirinhos ou para uma pequena venda que existe no igarapé Pracutuba.
Roberto e seus filhos possuem dois barcos, um menor, para a pesca, e outro maior, para
transporte de passageiros (Figura 2.14). A rotina do barco da pesca é sair do igarapé Taxipucu
em direção a Macapá para comprar gelo. De lá eles, vão pescar em mar aberto, próximo ao
igarapé Pracutuba, fazendo uma escala em sua casa no Taxipucu para comer e descansar.
Com os isopores cheios de peixe, voltam à cidade para vendê-los e recomeçar a viagem.
barqueiros (banana, melancia, peixe, laranja, castanha, mel, açaí, madeira), e os barqueiros compram produtos
industrializados para levar para a ilha, seja para uso próprio ou para revender aos moradores da ilha. Não se
trocam produtos e mercadorias, e sim se compram e vendem com base no melhor preço ou pelo estabelecimento
de redes de clientela fixa.
120
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
121
Juliana Salles Machado
Ainda com relação ao Gráfico 2.2, vê-se que o trabalho remunerado representa uma
porcentagem significativa da renda individual e familiar. Destacam-se, de um lado, as
atividades ligadas ao município de Chaves – professores, merendeiras e agentes de saúde – e,
de outro, os serviços prestados às fazendas do leste da ilha, como vaqueiros, encarregados, ou
ainda através da roçagem de terreiros e estradas. Além desses, esta categoria inclui trabalhos
mais especializados como o dos “mestres”, carpinteiros que constroem ou consertam casas,
trapiches e barcos.
59
Os termos produto e mercadoria são usados localmente para distinguir o que se compra e não é produzido pela
família daquilo que se produz no grupo doméstico e é vendido para outras famílias, marreteiros ou na cidade. As
mesmas palavras distinguem alimentos locais – plantados, pescados, colhidos ou caçados – de industrializados.
Esses termos foram discutidos mais detalhadamente por Lima (2006).
122
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Apesar de, no Gráfico 2.2, a aposentadoria na renda familiar ser pequena comparada
às demais, do ponto de vista da casa (e não do indivíduo), ela é importante, porque é regular e
possui um valor alto para os padrões econômicos ribeirinhos. A aposentadoria deu aos mais
velhos uma nova posição na casa, e é interessante observar o que acontece quando a
aposentadoria provém das mulheres. Normalmente, o pai é tido como o dono da casa,
condição que pode também ser de um avô. No entanto, vi mais de um caso em que a avó
assumia a responsabilidade e o status de dona da casa devido ao poder aquisitivo que lhe
conferia a aposentadoria, passando a ter mais poder de decisão sobre o grupo doméstico e a
família de seus filhos.
O Gráfico (2.4) seguinte trata da variedade de animais criados nas casas riberinhas.
Novamente os dados representam os valores por família, sendo que neste caso, o total de
representantes entrevistados foi 117. Portanto temos ao todo 117 famílias, das quais 26%
tinham apenas criação de gado, 23% de porcos e galinhas, 24% apenas galinhas ou patos (as
galinhas e patos não são muito diferenciados entre os ribeirinhos, que em geral são referidos
conjuntamente como “minha criação”), 21% tinham um misto de todos os animais de criação
(porcos, galinhas e gado) e 6% apenas de porcos.
Gráfico 2.4 – Gráfico com a variedade de animais criados nas casas ribeirinhas da área de pesquisa
123
Juliana Salles Machado
A criação de animais é uma categoria pouco citada pelos ribeirinhos no cotidiano, mas
que na entrevista se mostrou importante para a economia doméstica. Quase três quartos dos
entrevistados (72%) citou-a entre suas atividades. O Gráfico 2.4 mostra a porcentagem de
cada criação. O principal motivo para sua omissão pelos entrevistados na renda individual ou
familiar é que esses animais são pouco vendidos. Galinhas e patos são comumente usados
para ovos e carne; porcos e gado são tidos como forma de poupança para momentos de crise
ou para as festas de santo. Eles são bens de prestígio e são mortos como oferta aos santos.
Olívio do Pocotó foi um dos poucos entrevistados a afirmar que vendia porcos como fonte de
renda, ele disse “vendo porcos. As plantas não vendo, é para a família”, reforçando essa clara
distinção entre o plantio e a coleta de frutas e a criação, que como vimos esconde também a
importância da venda das frutas como uma importante fonte de renda para as famílias. Os
porcos são criados embaixo das casas elevadas, e o gado pode ser criado no terreiro (nesse
caso, os terreiros são mais abertos e têm menos árvores frutíferas) ou, o que é mais comum, os
ribeirinhos fazem um acordo com um fazendeiro ou o encarregado de uma fazenda para
deixar o gado pastar em suas terras. Os ribeirinhos chamam esse sistema de “meia”, se
referindo à porcentagem que o dono das terras cobra na hora da venda ou do abate, o que
ocorre quando o animal está ficando velho e vai perder seu valor, quando há na ilha notícias
de doenças que estão matando as criações – comuns no verão –, ou quando precisam de
dinheiro para alguma despesa de maior valor. É importante frisar, que ao falar de criação de
gado, estamos nos referindo a um número baixo de cabeças, que pode variar de 1 a 5, quando
os criam no entorno de suas casas e de 10 a 30 quando os têm criados nos campos no sistema
de meia com os fazendeiros. Entre as famílias ribeirinhas que possuem o maior número de
cabeças de gado na área de pesquisa, temos Roberto do Taxipucu com 12 cabeças, Domingos,
no Turezinho com 15 cabeças de búfalo, Adolfo com 29 cabeças de gado e Eusébio na
Prainha que entre búfalo e o gado (chamado localmente de “branco”) tem 20 a cabeças.
124
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
ribeirinhos, expressada na noção apresentada por Lima como “comunidade de parentes”. Essa
noção de comunidade, de pertencimento a um grupo através de um ideal de autonomia é
marcado em Caviana através dos contrastes feitos pelos ribeirinhos com a vida da cidade,
como reforça Alemão ao responder porque não ia para a cidade, “Caviana basta limpar, aqui
tem tudo”. Mas, como ressalta a autora esse ideal está imbricado com parentesco, já que um
dos valores agregados aos alimentos é o fato de serem feitos pela família, na sua terra – e eu
acrescentaria, reforçando a idéia de longevidade da relação entre os parentes e o território. O
termo “comunidade de parentes” expressa bem como todos os âmbitos de coletivo ribeirinho
perpassam o parentesco como principal denominador de agregação social. Lima conclui que
“as manifestações identitárias locais mais fortes são aquelas ligadas à práxis econômica, pois
é neste contexto econômico, em que os grupos domésticos se organizam para a produção de
pessoas e dos seus meios de subsistência, que a base de sua noção particular e horizontal de
coletividade é construída” (Lima 2006:150).
125
Juliana Salles Machado
126
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Para construir sua casa, os ribeirinhos buscam áreas que consideram “bonitas”, o que
se define por uma alta concentração de espécies vegetais “boas”, isto é, árvores úteis, seja
como fonte de alimento, matéria-prima ou sombra ou pelo seu valor estético. Essas
concentrações estão normalmente relacionadas à intervenções antrópicas anteriores, em
ocupações recentes ou antigas (pré-coloniais ou coloniais), como vemos no exemplo relatado
por Dária, filha de Tereza e Adolfo:
A gente morava na Piranha junto com os irmãos do papai, mas uma vez
ele escutou sua irmã achar ruim que os meninos tirassem muito tucumã
que era para seus porcos. Então papai pensou que precisava arrumar um
lugar cheio de árvores de fruta que seus filhos pudessem comer à
vontade. Procurou esse terreno bonito [João Brás] perto da família da
mamãe. Este terreno fica ao lado do seu irmão. Logo mudou para cá para
uma pequena casa velha que existia no terreno junto com um homem
que morava lá. Depois foram construindo sua casa e se mudaram.
Depois papai comprou uma terra em Ilha Nova num campo na margem
do rio. Se mudaram para lá onde tinham retiro, tinham gado holandês,
búfalo e cavalo. Mantiveram o sítio aqui e vinham de vez em quando.
127
Figura 2.15: Acima, grupo doméstico do igarapé Taxipucu, com casa de Roberto e Igreja de Nossa
Senhora de Nazaré à direita; ao meio à esquerda, casa de Adolfo no João Brás e à direita casa de
Constâncio no Igarapé Socó; abaixo exemplos de casas, à esquerda no Socó e à direita no igarapé Pocotó.
128
Figura 2.16: Acima, exemplos de trilhas importantes, à esquerda no João Brás, à direita no Pocotó; abaixo
à esquerda, exemplo de terreiro no João Brás e à direita terreiro sendo construído no entorno de uma casa
nova.
129
Juliana Salles Machado
O lugar é bonito, por isso escolhi [se referindo a uma praia à beira-mar
onde mora]. Eu mantenho o terreno limpo por causa da criação e das
plantas. Fica mais bonito para ela dar fruta aqui na frente. Na mata custa
muito ela movimentar. Fica muita sombra (Maria Valadares, Caviana,
2009)
60
Com exceção dos empregados de grandes fazendas, que passam a morar com a mulher numa casa emprestada
pelo proprietário.
130
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
anterior – às vezes, bem ao lado, mantendo-se próximo à casa paterna. Vejamos o exemplo de
Magno, filho de Francisco Figueiredo, depois de se casar com Ruth,:
Segundo eles me informaram Santo Antonio já tinha bacaba, açaí, limão, lima e
jaqueira, “já estava tudo plantado”. Depois de assentado, eles foram “limpando” a área, onde
pretendem fazer uma açaizal. Também plantaram coisas novas como abacaxi, urucum, banana
e começaram uma horta. Para esta eles compraram sementes de cebolinha, batata, cenoura e
repolho na cidade e Ruth ganhou uma muda de babosa para formar um canteiro. Outras
mudas que foram usadas vieram de um sítio abandonado que fica mais acima do rio Taxipucu,
local onde havia um sítio antigo “já cerrado na beira do campo”.
131
Juliana Salles Machado
Eu nasci e me criei até os nove anos de idade no Apani. Fui dada por
minha mãe à Bráulia Figueiredo [irmã de Adolfo e Roberto] e fui morar
nas Piranhas, onde fiquei aproximadamente 10 anos. Lá, me casei com o
irmão de Bráulia, Célio Figueiredo. Construí minha casa ao lado da casa
da minha cunhada e depois de já ter alguns filhos começamos à voltar
para o Taxipucu, onde ficavámos na casa de Roberto. Ia e vinha várias
vezes, até que construímos nossa casa no Taxipucu e nos mudamos.
Ainda vamos à Piranha de vez em quando, já que ainda temos uma casa
lá.
Como em diversos contextos rurais a casa “é uma prática, uma construção estratégica
na produção da domesticidade” (Marcelin 1999:36), e também “no seu conjunto, é pensada
como uma combinação, por assim dizer, da ordem da natureza com a ordem social” (idem,
p.35). Marcelin distingue dois níveis, o da “casa” e o da “configuração de casas”, que seria,
para o autor, um conjunto de casas vinculadas por uma ideologia da família e do parentesco.
No entanto, ressalta a relação indissociável entre esses dois níveis, “que conformam um
sistema de sentidos, mediante o qual a casa e a configuração se constroem” (1999:33). A
unidade social e econômica mínima mais importante em Caviana é o agrupamento ou, como
quer Marcelin a configuração de casas (Figura 2.17), que chamo aqui de grupo doméstico.
Utilizarei também o termo casa, de maneira bastante inclusiva a fim de agregar não apenas
sua edificação, mas também os arredores, seus moradores e práticas; tudo o que Marcelin
designa como “domesticidade”. O grupo doméstico em Caviana consiste numa casa principal,
a do “chefe da casa”,61 e nas casas de seus filhos homens casados, com poucos exemplos de
casas de agregados. O trabalho é dividido entre os moradores desse agrupamento e parte da
produção é deixada na casa principal. Entre os homens, essas atividades envolvem a caça e a
pesca, a roçagem da área do terreiro e a manutenção física das casas, bem como a fabricação e
manutenção dos instrumentos de trabalho e dos barcos. As saídas para o mato, seja para caçar
ou para colher produtos da floresta, são normalmente em grupo, entre irmãos, pais e filhos ou
entre primos. Da pesca, principalmente quando implica travessias mais longas, participam
grupos mais diversos, nos quais podem ser incluídos amigos, tios e cunhados. Os homens
61
A expressão designa o pai da família nuclear tanto na casa como, em alguns casos, no agrupamento doméstico.
No caso do Taxipucu, por exemplo, Roberto é considerado o chefe de todo o agrupamento de casas de seus
filhos. É ele quem define que trabalho vai ser feito e quanto recebe cada vai receber. Nenhuma decisão que afeta
o grupo é tomada sem o seu consentimento.
132
Figura 2.17: Acima, exemplos de roças sendo formadas próximo ao igarapé Socó; Ao meio roças de
banana cercadas, à esquerda no Turézinho e à direita no Taxipucu; abaixo à direita, roça de banana sem
cerca na mata no Turézinho e à esquerda, exemplo de roça recentemente abandonada no Socó.
133
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
134
Juliana Salles Machado
seguras de frutas, temperos e remédios, cuidam dos terreiros e dos canteiros. 62 Mencionei
anteriormente um relato de Magno sobre porque escolheram o local para sua moradia, agora
cito a versão de sua esposa, Ruth sobre o mesmo tema. Gostaria de ressaltar a visão do cuidar
que ela traz em sua fala, ausente na versão oferecida por Magno: “escolhemos aqui porque
tinha fruteira, mas estava cerrado, então a gente achou que tinha que limpar, porque é que nem
gente, tem que cuidar”.
A divisão etária no interior das casas aponta para a preponderância de dois adultos e
um variado número de crianças em cada uma, indicando tratar-se de famílias nucleares,
compostas por pai, mãe e filhos. Crianças são consideradas como tal até que comecem a
trabalhar, ou seja, até que possam contribuir para a subsistência da casa ou do grupo
doméstico. Quando se casam, os filhos homens podem ficar um ou dois anos na casa dos pais,
com sua mulher e filhos. Essa situação é vista como temporária, enquanto o marido não
constroi sua própria casa ao lado da de seus pais e arruma o terreno em volta com plantas
úteis. A nova família passa a compartilhar o espaço de entorno e a área de caça, pesca e
coleta, além de muitas vezes fazer as refeições na casa dos pais do marido.
62
Como veremos melhor no Capítulo 3, são elas que escolhem que árvores ficam ou saem do terreiro,
acompanham e zelam por seu crescimento, tirando ervas daninhas, podando ou acrescendo “terra boa” e água.
135
Figura 2.18: Acima à esquerda e abaixo, canteiro de Tereza no João Brás; acima à direita, canteiro na
Prainha e ao meio a direita canteiro nos fundos da casa no Pocotó. Fotos: Juliana Salles Machado
136
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
(se já os têm) e de quem ficará com eles após o casamento 63. Em geral, as mães têm um papel
importante nos arranjos para o casamento dos filhos homens. Augusta, moradora do Taxipucu
e mãe de cinco filhos homens (ver Anexo 3), diz que faz a “arrumação” durante a festa de
Nossa Senhora de Nazaré, que ela e seu marido organizam, quando convidam algumas noras
em potencial para ajudar nas atividades da casa. Perguntada sobre o significado do casamento,
ela explica que, por meio dele, as mulheres “passam do poder do pai para o do marido”.
Enquanto o filho ainda está em seu poder, é responsabilidade da mãe “cuidar de tudo, comida,
roupa, tudo”; depois do casamento, essa responsabilidade para a ser da esposa, mesmo que ela
more na casa da sogra.
Embora não haja uma regra, há uma tendência à repetição do casamento entre
determinadas parentelas. Assim, por exemplo, é comum um homem se casar com a prima da
esposa do irmão ou com a cunhada do irmão. É o caso de Izete Valadares, prima de Augusta,
do Ubuçutuba, cuja irmã é casada com um irmão de seu marido, e ambas moram no terreno
do sogro (ver Anexo 4). Outro exemplo é do Taxipucu, onde todas as noras de Roberto,
casadas com seus filhos homens, são primas entre si (ver Anexo 3). Como as famílias tendem
a manter suas propriedades e permanecer no mesmo lugar, os vários casamentos entre certas
famílias acabam produzindo uma relação entre determinados lugares, como acontece entre o
igarapé Taxipucu e o Ubuçutuba, pela família de Roberto.
Mas nem sempre a virilocalidade é posta em prática. Pude acompanhar uma mulher,
Conceição, que construiu sua casa perto da de seus pais, pela falta de terreno da família do
marido. Neste caso, no igarapé Socó, a casa da filha foi construída dentro do terreno dos pais,
afastada do grupo doméstico de seu pai e irmão, sem compartilhar a área comum das
atividades cotidianas. Como vemos no mapa (Figura 2.1), a casa de seus pais, Constâncio e
Dica, fica no interior da ilha, na várzea do rio Socó. O filho homem do casal construiu sua
moradia ao lado da de seus pais. No entorno desse agrupamento, há uma área desocupada.
Entretanto, a casa de Conceição, única filha mulher, foi construída na costa da ilha, perto da
63
Nos casamentos por gravidez, muito comuns na ilha, a paternidade é questionada e posta em dúvida pela
família do homem. Como atestado de veracidade, comparam-se a data de nascimento e a que foi dada para a
relação entre seus pais. Se as data não atenderem às expectativas dos avós paternos, a esposa é devolvida a seus
pais.
137
Juliana Salles Machado
casa do irmão do seu pai. Agora, os filhos homens de Conceição passaram a construir suas
próprias casas nesse novo agrupamento.
As casas em geral abrigam também filhos de criação, crianças adotadas por uma
família que passam a viver com os filhos do casal64. Essas crianças são entregues por seus
pais quando falta comida em sua casa de origem, quando eles se separam ou porque eles não
querem/podem criá-las. Uma criança pode mudar de casa mais de uma vez, sendo que muitas
vezes, os pais voltam para buscá-las alguns anos depois, quando já dispõe de mais recursos ou
quando as crianças já são grandes o suficiente para ajudarem nos afazeres domésticos. Na
falta de recursos financeiros dos pais, a entrega à famílias mais ricas ou influentes é
considerada uma forma de amor e proteção à criança, e seus pais são respeitados por isso 65.
Há ainda a categoria dos agregados, que normalmente são pessoas adultas que moram
com uma família, mas não são seu parente. O agregado ajuda nos trabalhos domésticos, se for
mulher e, se for homem, nos trabalhos externos como a roçagem do terreiro no entorno da
casa, a caça e a pesca. É uma situação comum, mesmo nas casas consideradas mais pobres. A
situação do agregado difere da do filho de criação não só pelo caráter mais efêmero como
pelo fato de a relação não ser considerada como a de um parente. Ela se baseia em pagamento
ou troca, seja através da remuneração o trabalho, seja pela troca de favores entre famílias ou
indivíduos.
64
Na casa de Adolfo e Tereza, encontrei mais de uma vez meninos ou meninas adotadas. Essas crianças eram
dadas pelas mães e depois de alguns anos acabaram voltando para casa ou indo trabalhar em algum outro lugar.
Tereza e Adolfo já criaram pelo menos cinco crianças, sendo que cada uma delas deve ter ficado com eles de três
a cinco anos. Depois de “criadas”, é comum a mãe pedir as crianças de volta, pois elas já conseguem trabalhar e
ajudar a família.
65
Outra situação comum é a de padrinhos pedirem para ficar com o afilhado, como no caso de Niel, filho de
Reinaldo Figueiredo, que já acabou a escola em Caviana, mas quer estudar mais. Seus padrinhos moram em
Macapá; a madrinha é a filha de Francisco, seu tio-avô. Eles pediram para ficar com ele em Macapá para que o
menino continue os estudos. A situação aí é diversa, pois passa pela questão cidade-campo, mas ainda pode ser
entendida pela mesma ótica de os pais entregarem um filho a pessoas com “melhores condições de vida” – no
caso, representadas pela cidade, valorizada pelo acesso à escola, a saúde e a bens de consumo. Niel ainda não foi
morar com os padrinhos em Macapá, mas há muitas famílias que mandaram os filhos para a cidade atrás de
estudo e trabalho, como os filhos de Adolfo, que ficaram com parentes em Macapá para estudar. Destes, nenhum
voltou a Caviana, apesar de sempre comparecerem a festas e de terem se casado com outros “filhos de Caviana”.
Também Ricardo, o filho mais velho de Roberto, morou em Belém, na casa de sua tia e madrinha, Bráulia, para
estudar. Ao perceber seu desinteresse nos estudos, mandaram-no de volta à ilha, de onde não saiu mais. Apesar
desses exemplos, há uma clara distinção para quem pode mandar os filhos para a cidade, pois as famílias que os
recebem não são consideradas “pais adotivos”. Os parentes na cidade os recebem, mas os pais enviam dinheiro
mensalmente para custear sua estadia e seu estudo.
138
Figura 2.19: Acima à esquerda, terreiro no Igarapé Taxipucu, à direita no Turézinho; Ao meio, exemplos
de canteiro em outro grupo doméstico do Taxipucu, à esquerda e na prainha, à direita; embaixo, contraste
com vegetação de mata em trecho sem casas no igarapé Taxipucu. Fotos: Juliana Salles Machado
139
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
O entorno das casas tem uma vegetação menos densa, evidentemente distinta da mata
que o circunda, e é chamado terreiro. Os terreiros são considerados parte do universo
doméstico, junto com as casas. Podem variar entre terrenos com poucas árvores e grandes
clarões, comuns nos campos das margens da ilha, onde estão as fazendas de gado (Figura
2.19) e terrenos com uma grande concentração de árvores úteis, quando podem ser chamados
de “sítio”.
Um sítio pode estar no entorno da casa ou no interior da mata; pode estar em uso ou já
ter sido abandonado. O terreiro da casa de Adolfo e Tereza é considerado um sítio. Nesse
terreno, há também outro lugar dentro da mata que é chamado de sítio e fica perto do igarapé
Turezinho. Consiste numa concentração de árvores frutíferas e de outras que dão boa madeira
para construção e ferramentas. O sítio no interior da mata não é usado cotidianamente há
cerca de oito anos, mas é esporadicamente limpo e ainda identificado pela família e pelos
vizinhos. Durante esse período de relativo abandono, a família de Adolfo, assim como outras
pessoas que moravam perto, colhiam ali frutas, palmito e madeira. Enquanto persiste a
memória do dono de um sítio antigo, há um privilégio de uso baseado no parentesco. Quanto
mais vaga a lembrança de quem é o dono do sítio e, principalmente, quanto maior o descuido
com sua manutenção, maior é a probabilidade de se perder o privilégio de uso. Após o
abandono de um sítio, há um processo gradual de reintegração da área à floresta. Áreas em
diferentes estágios de abandono são identificadas pelos ribeirinhos à partir do grau de
“madureza” das plantas, como é as vezes chamado. Há diferenças entre a capoeira, a mata
nova e a mata velha. A primeira etapa de regeneração reconhecida é a capoeira que é
composta por espécies como embaúba, angá, taperebá e taboca. Em seguida, viriam açaí, pau-
mulato, urucuri, sororoca (palma) e cauaçu, formando a chamada mata nova. Quando chega a
ser mata velha, as espécies de plantas não são mais nomeadas devido à sua grande riqueza.
140
Juliana Salles Machado
ñeengatu (Fausto 2008). Já “criação” são os animais que servem de alimento – porcos,
galinhas, perus e patos. Eles são criados nos terreiros sem cerca e alimentados no verão; os
porcos procuram sua comida sozinhos e comem tanto frutas do terreiro como raízes e
sementes do mato. Ficam quase sempre perto da casa e, nas horas mais quentes do dia, se
escondem no mato das proximidades. Muitas vezes, os leitões são criados presos em caixas ou
dentro da casa, antes de ser colocados no terreiro. À noite, se prendem as galinhas em
galinheiros elevados no fundo da casa ou embaixo de paneiros de tala trançada, para não
serem pegas por outros animais.
Algumas caças pequenas são levadas para casa, como a cotia, e ficam presas com
cordas ou correntes na cozinha, onde são alimentadas e bem tratadas – isso acontece por
exemplo quando se mata a mãe do bicho durante uma caçada. Depois de crescidas e gordas, a
maioria é vendida. Às vezes se criam “peremas”66 em caixas de madeira, uma forma de
armazenar os bichos vivos para comer, trocar ou vender. Outra forma de armazenagem de
animais vivos encontrei em volta da casa de Eusébio e Marila, onde havia três buracos com
água que eles cavaram para guardar peixes que pescavam e que não iam preparar no mesmo
dia. Mas essa forma de armazenamento só pode ser utilizada para conservar os peixes por um
ou dois dias.
66
“Peremas” são pequenas tartarugas terrestres, comuns nessa parte da ilha.
141
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
pelo serviço. Mantém-se assim uma contínua relação de interdependência entre seus
membros.
Apesar de não haver em Caviana nenhum padre, grande parte dos moradores da ilha é
católica, e existem várias igrejas espalhadas pelos igarapés. A única exceção é uma igreja
presbiteriana no rio Pracutuba, no sudeste da ilha. Muitas ações coletivas de Caviana estão
ligadas às festas religiosas, quando se diluem as divisões entre casas, grupos domésticos e
habitantes de determinados igarapés e novas relações sociais são criadas, solidificadas ou
rompidas. As festas de santos na área de pesquisa estão associadas principalmente a São
Sebastião e à Nossa Senhora de Nazaré, mas há muitas outras em Caviana, em ilhas próximas
e nas cidades, que os ribeirinhos frequentam, como devotos de seu santo ou como
frequentadores da comemoração.
Quase todos têm em casa um altar com imagens de santos – de papel, de barro,
porcelana ou madeira, adornadas com fitas e prendas (Figura 2.20). Rezam aos santos todos
os dias e lhes acendem velas; em seu nome erguem construções e oferecem festas. Os devotos
de um mesmo santo se juntam em ladainhas e comemorações e às vezes são chamados de
irmandades e têm uma organização mais rígida, como veremos no caso da irmandade de
Nossa Senhora de Nazaré.
Algumas pessoas oferecem todo ano uma festa a um santo, com o que passam a ser
chamados “dono do santo” – o que pode ser entendido como zelador, ou aquele que cuida do
santo, homenageando-o com festas ou construindo uma igreja e uma sede para abrigar e
cuidar das pessoas que vêm prestigiá-lo. Acompanhei o caso de Adolfo, que é dono de São
Sebastião. Ele tem uma imagem deste santo, para a qual construiu uma igreja e uma sede,
onde anualmente comemora seu dia (Figura 2.21). Segundo se conta, São Sebastião era da
região do Pracutuba, e sua imagem pertencia à família Farias. Com onze anos de idade,
142
Figura 2.20: Coletânea de imagens de santos e altares no interior de diversas casas em Caviana. Fotos:
Juliana Salles Machado
143
Juliana Salles Machado
Adolfo foi morar lá, onde se fazia a festa de São Sebastião. Mesmo sendo muito novo, foi
escolhido para presidir a festividade, e fez isso por mais de dez anos, antes de ir morar na
Fazendinha. De lá, Adolfo fundou a comunidade Frei Crescêncio, no João Brás, onde havia
comprado um terreno e pretendia construir sua casa. Adolfo conta que “antes de morrer ele [o
antigo dono do santo] falou que queria que ele [Adolfo] fosse responsável pela imagem, como
se fosse dele”, e pediu ainda que São Sebastião fosse o padroeiro da nova comunidade.
Assim, além de santo padroeiro, São Sebastião passou a ser o santo de Adolfo e, depois, um
santo de devoção na região. Em nome dele, ergueram uma igreja e uma sede no João Brás e se
dá uma festa que se inicia no dia 19 e culmina no dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião.
Além de São Sebastião, Adolfo diz ter sido dono de São João Batista, imagem que era
de seu pai. Segundo ele, seu primo, João Figueiredo, pediu a imagem ao pai de Adolfo,
pedido que este concedeu porque ele se chamava João, e era “muito prestativo” e
“considerado um filho”. As festas passaram a ser alternadas entre Adolfo e João.
Outro caso que acompanhei foi o de Roberto, que é dono de Nossa Senhora de Nazaré.
Em homenagem à ela construiu sua igreja e sede, além de ampliar sua casa para receber os
fiéis durante a festa. A imagem do altar é herança da família de sua mulher, Augusta. Roberto
não faz cultos dominicais na igreja, em que só se celebra Nossa Senhora. Esta celebração
começa em agosto, com as ladainhas, ainda esporádicas (Figura 2.22). Em setembro, elas se
tornam semanais. No início de outubro, os foliões da ladainha saem da igreja para peregrinar
pelos rios em busca de fiéis e recursos para a festa. No dia 12 de outubro, o círio começa a ir
para a igreja. As ladainhas são organizadas por um coordenador geral, chamado de mestre-
sala.
144
Figura 2.21: Imagens da Igreja de São Sebastião no João Brás e das missas dominicais da comunidade.
Fotos: Juliana Salles Machado
145
Figura 2.22: Imagens da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré no Igarapé Taxipucu e da ladainha em
homenagem à santa. Fotos: Juliana Salles Machado.
146
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
67
A cópia é a versão escrita da ladainha que é mantida pelo coordenador e passada ao longo das gerações.
147
Juliana Salles Machado
Não se sabe ao certo como Roberto se tornou o dono da festa. Alguns dizem que ele
herdou da família de Augusta, outros, por uma promessa que teria feito à santa quando a
mulher adoeceu gravemente. O certo é que agora ele e os filhos farão anualmente seu círio,
mesmo que, em tempos mais difíceis, não consigam dar uma grande festa para acompanhá-lo.
Outro santo que passou nessa área foi São Benedito, que durante algum tempo ficou
abrigado na igreja do João Brás, junto com São Sebastião. São Benedito era o padroeiro do
Pracutuba; quando o rio secou, a irmandade se mudou para o Apani, que também secou,
dificultando seu acesso. Assim, decidiu-se mandar a imagem para o João Brás, num cortejo
fluvial. Três anos depois, conseguiram arrumar a capela no Pracutuba e a imagem voltou para
lá. Roberto acredita que os santos eram primos, por isso São Benedito teria ido ao João Brás
e, de tempos em tempos, eles precisam se reunir novamente. Ele conta a seguinte história
sobre esse santo:
68
Segundo Roberto, urupé é “um negócio que dá no pau, como um cogumelo”.
148
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Outra data celebrada nessa parte da ilha é 2 de novembro, Dia de Finados, ou Dia dos
Mortos. Nos cemitérios, também chamado de “campo santo”, faz-se uma cerimônia chamada
149
Juliana Salles Machado
“Iluminação”. Na área de pesquisa, o “campo santo” fica no meio da floresta, entre o rio
Pocotó e a posse do João Brás. As pessoas acendem velas para seus familiares mortos e, do
cemitério, saem em peregrinação pela mata, com velas na mão e fazendo orações, até a igreja.
“Nós somos filhos desta Caviana”, frase que ouvi muitas vezes durante minha estadia
na ilha. Mas para mim, uma pergunta constante era à quem se referia o “nós”? Que relação
havia entre aquelas pessoas? As ações diárias revelaram não um coletivo, mas sim um
constante processo de formação de pequenas agregações coletivas que, juntas, compunham
esse “nós” na ilha Caviana. Há uma identificação com morar junto, morar na mesma casa, no
mesmo terreno, no grupo doméstico, no mesmo rio ou na mesma comunidade paroquial. A
construção destas coletividades é instável e se faz na própria prática dos relacionamentos
interpessoais. Acredito que um caminho para compreender a complexidade de relações
socialmente significativas em Caviana seja a interconexão de esferas sociais com limites
fluidos, refletida na expressão “filhos de Caviana”. “Filhos desta Caviana” tem um sentido de
pertencimento maior e representa essa sobreposição de coletivos.
150
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
que não é a comercial, mas baseada na partilha entre os parentes. O comércio, é uma relação
com os outros, não com parentes. A identidade associada à produção, ao plantio, ao ato de
alimentar os parentes e de compartilhar a comida é estendida aos “filhos de Caviana” que
moram em Macapá. Os parentes que moram na ilha mandam produtos aos da cidade por
barcos como o de Roberto. Diariamente, ouvimos no rádio pedidos para que mães, pais,
irmãos e primos enviem açaí, bacaba ou banana à parentes que moram da cidade. Não são
pedidos de venda – os produtos não são pagos –, mas fazem parte do que se espera da família.
É uma afirmação de que eles ainda fazem parte de Caviana e seus familiares ficam contentes
em mantê-la.
Voltamos à concepção de que ser filho de Caviana é ser alimentado pelos e com os
parentes, incluindo assim a terra como parte importante dessa noção de parentesco. Embora
cada vez mais jovens e mesmo famílias inteiras se mudem para Macapá, há quem vá no
sentido contrário. É o caso da família de Roberto, em que todos os filhos vivem próximos em
Caviana. Houve duas tentativas de saída. Na primeira, ele mandou o filho mais velho,
151
Juliana Salles Machado
Ricardo, estudar em Belém. Como ele logo se “desinteressou dos estudos”, acabou por voltar
para a casa dos pais em Caviana. Em outra, mais recente, Roberto comprou uma casa em
Macapá, onde pretendia receber os produtos de Caviana e ele mesmo revendê-los na cidade.
Mas nem ele, nem sua mulher gostaram de viver na cidade e nenhum dos seus filhos se
interessou em assumir o negócio. Acabaram vendendo a casa e voltando para Caviana 69.
A migração do campo à cidade tem uma dimensão importante em grande parte das
pesquisas sobre o campesinato e é uma questão recorrente entre os próprios camponeses
(Behar 1986; Bourdieu 1962; Champaign 1975; Chiva 1958; Fortes 1969; Geertz 1967; Lewis
1951; Redfield 1969; Segalen 1980; Thomas & Znaniecki 1974; Thorner et al 1986). Em
Caviana, a migração tem mudado as relações sociais, econômicas e políticas dos ribeirinhos.
Por definição, uma comunidade rural (que, como vimos, é bastante difusa, em Caviana) não é
fechada, pois não é totalmente independente e autônoma, constituindo-se sempre em relação
com a cidade, mesmo que por oposição (Elias 1994; Mintz 1986). No entanto, muitas vezes,
tomamos as comunidades como sistemas fechados, para melhor circunscrever nosso objeto de
pesquisa e assim torná-lo mais homogêneo e analiticamente estável. Além disso, em muitos
casos, os próprios camponeses se veem como um sistema fechado, como de algum modo
podemos dizer dos ribeirinhos de Caviana. Como vimos, os limites intercomunidades da ilha
são difusos e superpostos, no entanto, se podemos afirmar com mais segurança algum
sentimento de pertencimento maior que os una, esse é o de serem “filhos de Caviana”. Essa
denominação adquire completude frente aquele de moradores das cidades.
69
Outro caso de retorno aconteceu numa família na fazenda Santana. Um homem, parente dos Figueiredo, foi
estudar em Belém, mas “não se acostumou”. Logo voltou para Caviana e foi trabalhar com o transporte e
revenda de porcos. Ao se casar com uma moradora da ilha não tendo mais terras familiares na ilha, pediu ao
sogro para morar a seu lado, na fazenda, onde construiu sua casa. Há ainda o exemplo de Ilcinea e de seus seis
filhos. Apesar de seu pai ser de Caviana, ela morava em Macapá com sua família. Resolveram voltar para
Caviana, mas sendo seu marido de Mexiana e não possuindo propriedades na ilha, foram tomar conta de um
terreno ao lado do pai de Ilcinéia. Seu marido é pescador e vive embarcado, mas vai vê-los semanalmente.
152
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Caviana ausência das relação próxima com água, conhecimento dos atores da
instituições ou terra, plantas interação social (relações
precariedade de sua pessoais e afetivas com todos
atuação os membros da coletividade)
A partir das informações simplificadas nesta tabela, vemos que entre os fatores que
influenciam o sentimento de pertencimento do coletivo formado na ilha Caviana a
aproximação com o ‘natural’ e o conhecimento dos atores da interação social estão entre os
aspectos importantes. Podemos compreender essa oposição em termos de domesticidade
versus exterioridade, onde teríamos as plantas e a topografia, enfim os lugares, como também
fatores na criação desse sentido de pertencimento, em sentido semelhante aos atores sociais.
Como nestes últimos, nos quais a importância do conhecimento dos atores se dá pelo
estabelecimento de relações pessoais e afetivas com todos os membros desta coletividade,
também com os lugares há uma familiarização e a criação de vínculos relacionados ao
parentesco e ao sentimento de territorialidade. Com isso em mente, podemos compreender
melhor porque Chaves e Afuá parecem mais próximas da realidade de Caviana do que
Macapá, e, mais do que isso, quais são as chaves de reconhecimento para uma noção de
pertencimento dos ribeirinhos de Caviana. Enquanto em Macapá, há quase que uma negação
deste vínculo especialmente com os lugares, mas também com as pessoas 70, Chaves e Afuá
apresentam aspectos de continuidade com Caviana. Estas últimas, apesar de também serem
70
Evidentemente não se trata de uma negação por completo. Podemos encontrar na periferia de Macapá um
bairro onde quase todos são moradores ou descendentes de moradores de Caviana. Esses antigos “filhos de
Caviana” mantêm contado regular entre si e com seus parentes na ilha e buscam manter relações sociais através
de festas e casamentos. Dessa maneira tornam a cidade mais doméstica, compartilhando um conhecimento sobre
a ilha e seus parentes.
153
Juliana Salles Machado
cidades, são pequenas em sua extensão e sua paisagem ‘natural’ pouco transformada e ainda
reconhecível se comparada as cidades maiores. Lá, o relevo e a vegetação ainda são
reconhecíveis, os rios ainda estão visíveis e ainda é possível manter de certa maneira uma
distribuição espacial das casas de acordo com os laços de parentesco, replicando de maneira
não tão evidente, os grupos domésticos ribeirinhos.
154
Capítulo 3:
Figura abertura capítulo 3: à esquerda, Tereza e seus canteiros no João Brás e à direita, o preparo do
alimento no Taxipucu por Cristiane. Foto: Juliana Salles Machado
155
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
3
AS MULHERES E AS PLANTAS
Como vimos na Introdução, a prática econômica das famílias ribeirinhas, assim como
sua identidade frente à sociedade nacional, são os tópicos mais frequentemente abordados nos
71
“Women was not created; women always existed, she existed already when man was not yet born. Because
women is the Land, she is identified with earth” (Reichel-Dolmatoff 1996:28).
156
Juliana Salles Machado
157
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
que os recobrem durante o inverno. Apesar de “sujos” no inverno, eles são utilizados o ano
todo, já que são suspensos e de fácil acesso, mesmo durante as cheias. É nesse espaço que as
mulheres testam algumas plantas – “a gente experimenta”, costumam dizer. Trazem mudas e
sementes do mato e de casas de parentes e amigas e testam seu plantio nesse espaço
doméstico. Uma vez “grelado” o “filho”72, algumas plantas passam para o chão, para o
terreiro, entre cercas de madeira que as protegem, ou soltas, junto com as espécies mais
antigas. As plantas são temas das conversas femininas. Acompanhei Tereza em algumas
visitas à parentes, durante as quais, depois de conversar sobre como andam as pessoas e as
marés e logo antes de irmos embora, ela acabava perguntando como estavam determinadas
plantas, se tinham “grelado” e como ela fazia para cuidar. Chamaram-me atenção seu
interesse pelas plantas aliado à onipresença dos canteiros nas casas ribeirinhas. Nessas
conversas rápidas, às vezes contavam de alguma planta ou experiência particular de plantio, e,
no fim sempre levávamos uma muda para casa.
Agora, antes de apresentar as plantas em si, discuto a relação que as mulheres têm com
elas. Durante minhas entrevistas, em meio às plantas do terreiro ou no fundo da cozinha,
ouvia repetidamente expressões como “minha planta” ou “esse filho”. Mas, seu cultivo, usos e
significados fazem parte de uma esfera pouco falada, quase nada ritualizada e algo esquecida,
perdida em meio a um trabalho fatigante. Ofuscadas pelos heroísmos marítimos, a terra, as
plantas e seu cultivo quase não apareciam nos discursos, mas foram descortinando uma
ontologia muito conhecida na etnologia ameríndia e pouco percebida entre esses outros
habitantes amazônicos, os ribeirinhos. O cotidiano feminino é tecido com discursos
72
“Filho” é o termo com que se designa a muda de uma planta; um “filho grelado” é o que efetivamente cresceu.
158
Juliana Salles Machado
73
O verbo fabricar não é usado localmente e foi escolhido por remeter ao termo usado nos estudos ameríndios,
nos quais os índios “fabricam pessoas”, como discutido por Seeger, Matta & Viveiros de Castro (1977).
74
Uso a palavra lugares em oposição a “espaços”. Enquanto a última nos remete a uma categoria indiferenciada
e genérica, a idéia de lugar assume o status de individuação, familiarização, afeto e memória. Esse distinção é
feita por diversos autores na literatura sobre paisagem. Neste trabalho, utilizo a noção de “lugares
significativos”, de Zedeño (2008), também influenciada pelo trabalho Hirsch e O’Hanlon (1995).
159
Figura 3.1: Objetos do cuidar – Acima à esquerda, Dica trançando a tala e à direita objeto para cobrir as
canoas; abaixo à esquerda, Walica fazendo um pote cerâmico; ao meio à direita, Augusta tecendo uma
rede de algodão e abaixo à direita artefatos para fiar, como fusos de osso, cestos e algodão Fotos: Juliana
Salles Machado.
160
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
161
Juliana Salles Machado
Outro trabalho muito comum entre as mulheres e ainda amplamente difundido é a tala,
cujo trançado cria pequenos paneiros de grande utilidade na casa (Figura 3.2). Apesar de
muitas pessoas trabalharem a tala, mulheres como Dica dominam com maestria essa técnica e
produzem objetos mais elaborados e com formas e funções variadas. No começo, Dica só
observava, até que, quando precisou de um paneiro, ela se pôs a desmanchar um velho que
tinha em casa e foi fazendo um novo igual. Imitava diligentemente cada trançado que
162
Figura 3.2.1: Trançados de tala de arumã feitos por Dica. Fotos: Juliana Salles Machado.
163
Figura 3.2.2: Trançados de tala de arumã feitos por Dica. Fotos: Juliana Salles Machado.
164
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
encontrava, e assim aprendeu a fazer uma grande variedade de objetos. Alguns dos trançados
da tala que pude ver são chamados por ela de olho de galega e cruari (Figura 3.2), técnicas
que permitem fazer diversas formas, com utilidades variadas.
75
A técnica de Walica era muito semelhante à observada em vasilhames cerâmicos encontrados em contextos
arqueológicos da região. Ela usava uma mistura de argila com diferentes qualidades plásticas, retirada do
barranco do rio próximo a sua casa, e temperava-a com cariapé retirado de árvores da floresta, às vezes bem
distantes. Moldava a base sobre pequenas tábuas de madeira e sustentava os roletes sobrepostos até a altura do
maior diâmetro do pote, quando a peça era posta no sol para secar. Uma vez seca mas ainda maleável,
acrescentava os roletes seguintes, diminuindo o diâmetro do pote ou, conforme o caso, apenas aplicando-lhe um
lábio. Durante todo esse processo, alisava as paredes internas e externas com uma semente (“caroço”). No fim,
aplicava um rolete decorativo paralelo ao lábio, sobre o qual fazia decorações paralelas digitadas. O pote voltava
para o sol e depois era queimado numa fogueira a céu aberto. A oxidação era controlada apenas com cacos e
potes cerâmicos velhos que recobriam o pote, e a temperatura de queima, pelo tipo e pela quantidade de madeira
em combustão.
76
Identifiquei o trabalho desta ceramista pela espessura da peça, pelo tratamento da superfície e pelo padrão
característico de sua decoração. Walica aplicava regularmente apenas uma forma de deoração plástica a uma
variedade de formas de potes: um rolete grosso próximo à borda com digitados que corriam perpendicularmente
pela extensão do aplique. Como só havia duas ceramistas na ilha, pude contrastar os potes de Walica com os da
ceramista do Apani, esses de espessura bem fina, sem apliques e com um tratamento de superfície mais
cuidadoso.
77
É comum as ceramistas usarem fragmentos cerâmicos como antiplástico para a produção de um novo pote.
Eles são triturados num pilão e depois peneiradas em um peneira de tala para posteriormente serem
acrescentados à pasta antes de começar a fabricação dos roletes. Em Caviana, as oleiras pegavam esses
fragmentos em sítios arqueológicos que encontravam perto de casa.
78
O cariapé é uma entrecasca de árvore cujas cinzas, ricas em sílica, são usadas como antiplástico.
165
Figura 3.3: Produção cerâmica de Walica no Ubuçutuba, 2006. Fotos: Juliana Salles Machado.
166
Juliana Salles Machado
temperar o barro. Já Walica, que ajudava no preparo dos antiplásticos, quando começou ela
própria a produzir potes cerâmicos, os preparava apenas com cariapé que buscava no mato. O
barro era retirado na beira do rio Ubuçutuba, em frente à sua casa. Aprendeu tais técnicas ao
observar e ajudar sua mãe, mas só começou a fazer suas próprias peças depois que ela morreu.
O que possivelmente virá a ocorrer com sua própria filha, após a sua morte. O conhecimento,
ao que parece, é internalizado e só é atualizado quando a mestre morre.
No grupo doméstico de Augusta, ela é a única que sabe tecer redes, e suas noras “não
se interessam” em aprender (ver Anexo 6). Enquanto morou na casa da sogra, Cristiane fazia
matapis e cestos de palmeira trançada, atividade que aprendeu com sua mãe e que continuou a
praticar depois. Ela não compartilhou esse conhecimento com a sogra. Outra nora e moradora
desse mesmo grupo doméstico, Nete, prima de Cristiane, também trabalha a tala e não
aprendeu a mexer com o algodão. “Esse pessoal trabalhava muito com isso, lá”, dizia Augusta
sobre o trabalho das noras, enquanto ela própria procurava chamar a atenção da neta para a
tecelagem do fio de algodão.
167
Figura 3.4.1: Desenhos feitos por Mayara no Ubuçutuba, 2006. Acima à esquera, processamento do açai;
acima à direita, trançando a palha. Abaixo, a oleira.
168
Figura 3.4.2: Desenhos feitos por Mayara no Ubuçutuba, 2006. Acima, oleira tirando o barro;. abaixo, o
rio e a floresta.
169
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
me pediu lápis e papel e sem que eu fizesse nenhuma solicitação especial me trouxe os
cuidares femininos: a produção com as talas de arumã, a fabricação de potes cerâmicos e,
finalmente, uma cena de pesca, que mais do que a pesca em si sintetiza a noção de casa, e o
profundo conhecimento arraigado sobre as plantas. Maiara é muito nova para participar de
qualquer uma destas atividades de maneira independente, mas o detalhamento dos gestos e
matérias-primas em cada prática representadas revelam um conhecimento internalizado que
eu nem ao menos podia esperar. Reparem nos detalhes de cada árvore que margeia o rio,
nenhuma delas é igual, todas são localmente reconhecíveis e importante referenciais de
humanização da paisagem para os ribeirinhos. Plantar faz parte do cotidiano feminino, como
cuidar da casa e criar os filhos; assim, há sempre uma relação muito particular entre a mulher
e a planta, aliado a um também intenso compartilhamento extradoméstico.
“Quando me entendi, já existiam essas plantas. Minha mãe já tinha essas plantas”,
conta Veríssima. Voltamos novamente a expressão que deu origem ao título do Capítulo 2,
aqui para identificar outro aspecto importante na inserção social da pessoa, nesse caso da
mulher: a relação com as plantas. São as mulheres que cuidam das plantas – em seus
pequenos canteiros, nos grandes terreiros que circundam as casas ou mesmo nos caminhos e
sítios no meio do mato. Para algumas mulheres, essa atividade pode ser especial, e elas
passam a dedicar mais tempo e aprofundar seu conhecimento sobre esse manejo. Segundo
Dica, que, além de fazer trançados, é uma grande conhecedora de plantas, “esse negócio de
trabalhar com essas coisas [plantas] é para quem é acostumado”. Tereza, que compartilha o
gosto por plantas e por seus cuidados, diz que é uma forma de “divertimento”, “acho bonito e
sempre gostei, porque minha mãe sempre gostou de planta”.
Por que esse cuidado é importante e como faz parte de uma rede mais ampla de
significados?
As plantas exercem diversas funções úteis conforme suas espécies. Elas podem servir
como alimentos, temperos, remédios, ferramentas e enfeites, como especificaremos mais
adiante. Mas não apenas suas funções são importantes para as mulheres em Caviana, sua
produção e circulação assumem extrema importância para a população local. Como
mencionei no Capítulo 2, ser “filho de Caviana” passa também pelo consumo de alimentos
170
Figura 3.5: Croqui da casa de Tereza no João João Brás com indicação dos locais de plantio. Desenho:
Juliana Salles Machado.
171
Figura 3.6: Vista da casa do João Brás. Foto: Juliana Salles Machado.
172
Juliana Salles Machado
localmente produzidos, portanto saber plantar é valorizado como uma forma de cuidar das
pessoas da ilha, que através de diversas formas de partilha, supri-as de comida. A associação
entre o plantar e o cuidar foi abordada por Gow, ao tratar do parentesco entre os Piro na
Amazônia:
Como se pode imaginar numa ilha amazônica, há plantas por todos os lados – no mato,
nos sítios, nas roças, nos terreiros, nos canteiros. Mas percebi que cada planta tem seu lugar e
cada lugar tem uma origem, função e/ou significado. Uma planta pode ser exclusiva das
mulheres – quando está num canteiro – ou ser compartilhada com os homens – quando está em
terreiros, sítios ou roças. Também pode estar associada à seres não-humanos, espíritos da
natureza como as mães-do-mato e as mães-dos-lugares80. Começo com uma descrição do lugar
das plantas a partir de um perspectiva da casa. Para isso, tomo a casa de Tereza, no João Brás
como exemplo (Figura 3.5). Olhando de frente, a partir do rio, não há nenhuma clareira em
volta da casa; é apenas um sobrado branco em meio a uma infinidade de árvores, que, no
entanto, são claramente distinguíveis da floresta (Figura 3.6). Diferentemente desta, ali o
espaço entre as árvores é maior, e elas são mais baixas e concentram um grande número de
palmeiras como o açaí, a bacaba e o miriti. Chegando mais perto, caminhando pelo trapiche,
vemos uma linha de flores enfeitando o barranco em frente à área inundável. Ao fundo, a
meia-parede que delimita a sala da frente da casa é emoldurada por plantas pequeninas
79
“[…] the production and circulation of food produces people. Who respond with memory of these acts of
caring. But equally these productive activities create the mosaic of vegetation zones around the village […] they
are at once important resources for local people, and loci of kinship” (Gow 1995:49).
80
A relação das mulheres com os não-humanos e as mães-do-mato e as mães-dos-lugares é discutida mais
detalhadamente no Capítulo 5.
173
Figura 3.7: Os canteiros de Tereza, João Brás. Foto Juliana Salles Machado.
174
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
penduradas do teto por cordas. No chão, algumas plantas no pé dos esteios chamam pouca
atenção. Não há plantas dentro da casa, a não ser uma velha flor de plástico vermelha que
enfeita uma mesa em um canto nunca usado da sala da frente.
Em nenhuma outra casa encontrei um terreiro tão grande como o de Tereza. Os terreiros
em geral são menores, se não em extensão, na quantidade e na variedade de plantas que contêm.
Mas a disposição das plantas na casa de Tereza é a mesma encontrada em quase todas as casas
dessa parte da ilha. As flores estão sempre na frente, junto com algumas plantas de remédio
contra mau-olhado; os temperos e remédios, ao fundo, em canteiros elevados, e há pequenos
cercados espalhados pelo terreno, em meio a uma concentração de árvores frutíferas e úteis.
Essa divisão espacial reflete uma classificação das plantas no universo doméstico.
Delimitando a frente das casas, estão os enfeites, plantas que não têm uso medicinal ou
alimentar, mas são escolhidas por seu valor estético e ficam nas paredes externas. Só
encontrei plantas dentro de casa em momentos de transição, quando elas ainda estavam na
água, prestes a serem plantadas na terra. Essas plantas são flores vistosas e coloridas próximas
81
Paus são, para os ilhéus, as árvores que dão boa madeira.
175
Juliana Salles Machado
Não obstante sua presença discreta na frente das casas, a maioria dos temperos e dos
remédios ficam em canteiros elevados, ao lado e fora da casa, quase sempre nos fundos, à
salvo da vista de estranhos. Neles também podemos encontrar mudas de árvores frutíferas e
plantas de chão ainda pequenas ou de outras plantas que depois irão para pequenas áreas
cercadas no terreiro para em seguida se misturarem às árvores mais antigas.
Os cercados espalhados pelos terreiros têm em geral a função de proteger mudas ainda
pequenas de árvores frutíferas contra o pisoteamente. Eles acomodam apenas uma muda. Há
no entanto, alguns exemplos, em que áreas cercadas em meio ao terreiro são feitas para
proteger pequenas plantações como a de milho. Nesse caso, o isolamento da área se deve à
presença de animais prejudiciais à sua sobrevivência e atua como forma de prevenir a entrada
de gado na área de plantio próximo a casa, protegendo assim as plantas mais frágeis.
176
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
177
Juliana Salles Machado
negociações com “marreteiros” e se recebem visitantes estranhos. Por ser um local voltado
para o exterior, é associado ao universo dos homens. A sala da frente é também reservado a
recepção de visitantes, mais íntimos do que o trapiche, mas ainda relacionado a um aspecto
mais formal, destinado, por exemplo, a amigos mais distantes e não à parentes e amigos
próximos. É também nesse espaço que o homem realiza seu trabalho, mexendo, por exemplo,
com peças de motor, fazendo coisas em madeira e arrumando ferramentas. Assim, também
pode ser considerada uma esfera masculina. O quarto é um ambiente misto, tendendo a ser
mais feminino. Não são todas as casas que possuem quartos, muitas tem na sala o local de
dormir. Mas quando há uma compartimentação deste espaço, ele é despido de móveis, apenas
com uma rede pendurada e um local onde se acomodam as roupas, como cestos pendurados
ou cômodas de madeira. Normalmente estes locais não possuem adornos ou ornamentos de
qualquer tipo. A falta de objetos pessoais nos quartos chama atenção, já que a sala e a
cozinha, apesar da quase ausência de mobília, possuem objetos pessoais, como santinhos,
fotos, cartazes e enfeites cobrindo as paredes. A associação de gênero e visibilidade aqui
parece difícil de ser aplicada. Enfim, a cozinha, local de manuseio e ingestão de alimentos é o
local, por excelência das mulheres. É ali que elas passam grande parte do seu dia, que
conversam e recebem parentes e amigas e que realizam grande parte de seus trabalhos, seja
com costura, com a tecedura da tala, com a manufatura da cerâmica ou com o processamento
de alimentos. É ali também que se fazem os remédios. Devido a sua localização nos fundos da
casa, ela só visível àqueles convidados a entrarem, normalmente parentes e amigos. É o local
onde ocorre a partilha da comida, importante para definir a esfera do parentesco. É desse
espaço íntimo feminino que temos acesso aos canteiros, escondidos do olhar de todos.
178
Figura 3.8: Os canteiros de Dica (acima) e Marli (abaixo) no Socó. Foto Juliana Salles Machado
179
Figura 3.9: Acima e à esquerda, a coleta e o processamento para consumo doméstico do açaí e à direita a
secagem dos caroços para posterior uso como adubo nos canteiros. Foto Juliana Salles Machado
180
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
motiva visitas à amigos e parentes e compõe, junto com a troca de mudas e sementes, o
compartilhamento feminino.
181
Juliana Salles Machado
De volta ao Taxipucu, onde vive a mãe de Marli, estão se formando canteiros nos
fundos das casas de suas cunhadas, Sandra, Nete e Cristiane. Primas entre si, todas
aprenderam a plantar com suas mães, no igarapé Ubuçutuba (ver Anexo 6). No Taxipucu, o
grupo doméstico dessas quatro mulheres fica num lugar suscetível a inundações, dependendo
da época do ano. Segundo Nete, “quando a maré lança, as plantas de chão morrem todas; só o
canteiro que fica”. Ela foi a primeira nora de Augusta e levou plantas da mãe e das irmãs para
formar seu canteiro. Diz que sua mãe aprendeu a lidar com plantas com sua avó, que era
índia, e que elas aprenderam a fazer remédios com um pajé no igarapé Apani 82. Quando a
segunda nora de Augusta chegou, ela também trouxe suas plantas, dadas por sua mãe, mas
contou com a ajuda da prima e cunhada Nete, com quem atualmente troca mudas. Por fim,
recém-chegada e ainda morando na casa de sua sogra, Sandra também havia aprendido a
plantar com sua mãe, mas diferentemente das outras, quando chegou ao Taxipucu, não tinha
plantas. As cunhadas e a tia do marido, Tereza, incentivaram-na a começar seu canteiro,
mesmo na casa da sogra.
82
Esse é tido como o único pajé remanescente da ilha. Esse termo não se aplica a mulheres, que são, em geral,
chamadas de “benzedeiras” ou “experientes”. Este último, podendo ser aplicado tanto a homens quanto
mulheres. Há algumas diferenças entre os termos que exploraremos no Capítulo 5.
182
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Gostaria de ressaltar alguns aspectos apontados por Gow que considero relevantes
para compreendermos o contexto do delta amazônico. Para os Piro o ambiente é entendido
como parentesco porque a relação entre os parentes implica em transformação e manejo
ambiental. Nesse contexto indígena, o acúmulo dessas ações no tempo e seus significados
criam paisagens. A base da associação entre parentesco e ambiente neste caso, está na
transformação da floresta em roças e em áreas de moradia. Das roças produziriam as comidas
verdadeiras, isto é, produzidas por eles na sua própria terra, base do compartilhamento entre
parentes. Dos locais de habitação, constroem-se casas e aldeias, moradia e espaço de
convivência de parentes. Em Caviana, a transformação da floresta também é a base da
relação entre parentes e as plantas, sendo importante os grupos de trabalho coletivo e sua
associação com os lugares. Em minha área de pesquisa, a ideia de parentesco vinculada à
paisagem se dá tanto pela ação direta de parentes que conjuntamente trabalham no manejo da
floresta para criar áreas de plantio, como as roças, quanto na construção de casas em áreas
previamente manejadas - ambas atuação dos homens. Contudo, gostaria de ressaltar outro
aspecto dessa relação, aquele mais relacionado à prática feminina. Embora haja entre as
mulheres uma esfera coletiva do plantar e colher na roça, principalmente entre mãe e filha,
nesta pesquisa trato de uma transformação mais sutil da paisagem, feita por uma pessoa com
uma planta. Mudamos apenas a escala, pois a pessoa agente da transformação entre vegetal-
83
“As I learned about the local landscape of Santa Clara, I became increasingly impressed by the way in which
kinship, as a temporal process, was bound up in it. […] Kinship as I have argued, is directly perceived by native
people in the environment because it is there. It is there because kinship is created out of human landscape
agency […] The active relationships between kin implicate landscape because the help that kin give each other is
landscape modification: kin help each other to transform forest into gardens. The most radical implication of
kinship in landscape is the act of house-building. Kin help each other to build houses so that they may live
together […] the village is at once the scene of kinship and the product of kinship” (Gow 1995:47-56).
183
Juliana Salles Machado
da-floresta e planta-doméstica não está isolada e os efeitos à longo prazo dessa relação
interpressoal na paisagem são significativos. Isto se deve, pois após esse processo individual
de transformação, o resultado é compartilhado a partir da troca de plantas entre as mulheres
em suas redes de parentesco, vizinhança e amizade. A aproximação do contexto de Caviana
com aquele tratado por Gow se dá pela idéia de que a ação humana transforma uma esfera
vegetal exterior em espaços domesticados identificados com o parentesco – no exemplo de
Gow pela produção partilhada e no exemplo de Caviana pelo conhecimento e circulação.
Outro aspecto tratado por Gow, a aldeia como produto e produtora de parentesco,
encontra paralelo em Caviana. Mas neste último contexto, não se trata de criar uma aldeia,
isto é, um centro único de convivência, mas em criar lugares de convivência, o que nesta
pesquisa chamamos de “lugares de gente”, usando um termo local. Novamente a ênfase aqui é
na ação humana na transformação de espaços não-domesticados em locais de convivência de
parentes. E por fim, a questão da alimentação, muito enfatizada entre os Piro, mas menos
aparente no contexto deltaico de Caviana. Apesar de, como mencionamos no Capítulo 2,
existir uma ideia vaga de verdadeiro associado à alimentos produzidos na ilha pelas mãos de
parentes, ela não é verbalizada e não assume a importância que Gow nos aponta no contexto
de Santa Clara. A importância da comida local em Caviana está no que ela representa, isto é,
na idéia de alimentar como cuidar, obrigação primeira dos parentes. Todos os aspectos
enfatizados em Caviana nos levam ao cuidar, cuidar de pessoas através da idéia da casa como
o espaço do doméstico, o lugar, por excelência, de gente. A partir do plantio das mulheres, a
floresta é transformada em o lugar de alguém, o lugar do parente, do parentesco com a relação
humana.
184
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
plenamente essa relação quando tivermos em mente o que é uma planta para os ribeirinhos,
tema que discutirei um pouco adiante.
Além das plantas do canteiro, quase todos os moradores que conheci conseguem
nomear as árvores de seu terreiro e atribuindo-lhes algum significado, como de onde vieram,
quem as plantou, se dão ou deram muito trabalho etc. Esse conhecimento é compartilhado por
homens e mulheres, sendo as árvores frutíferas muitas vezes consideradas “herança dos pais”.
Diferentemente dos canteiros, cujas plantas são transmitidas de mãe para filha quando esta sai
de seu grupo doméstico, as árvores frutíferas do terreno podem estar associadas a uma
“patrilinha”. Como o sistema de moradia é virilocal e o terreno é usado por pais e filhos, as
árvores, apesar de cuidadas pelas mulheres, fazem parte de um manejo compartilhado da terra
paterna. Também são conhecidas as árvores que já estavam no terreiro antes de uma família
se mudar para o local. Quando perguntados se essas árvores influenciaram a escolha do local
de sua casa, a princípio dizem que não. A resposta para a escolha, em geral, é: “era um sítio
bonito e limpo”. Não estou afirmando tratar-se de uma busca não consciente por áreas
manejadas, mas sim, procurando entender qual é o significado desta resposta. Por isso me
pergunto o que é um sítio, para eles? Mais que uma categoria que expressa delimitação
espacial, um sítio é uma área limpa, com árvores frutíferas e úteis em geral, bastante usada
pelos ribeirinhos nos arredores de sua casa. Vemos, portanto, que há sim uma busca
consciente de áreas previamente manejadas na própria noção de sítio, o que é reforçado por
suas características de “limpeza” e “beleza”.
185
Juliana Salles Machado
trançados, cuias para água, lenha ou alimento para as criações ou para atrair caça ou pássaros.
Sobre esse ideal de beleza, Marli me explica que “canteiro bonito é fora das outras plantas”.
Isto é dizer, que a beleza está intrinsecamente relacionada a escolha humana, à seleção de que
plantas devem permanecer e quais devem ser retiradas – definição do próprio manejo. Assim
como a limpeza, isto é, a constante roçagem de plantas rasteiras, essa concentração de árvores
é valorizada pelas pessoas, que consideram o lugar “bonito”.
Dica nos fala sobre a escolha do local onde acaba de abrir uma nova roça: “a gente
escolhe o lugar na mata mesmo, onde a gente acha mais bonito. Porque a água bate lá e escoa,
não fica molhado. A gente observa onde dá melhor as plantas”. A beleza valorizada não é a
“natural” (como expresso no dizer de Dica “a mata lá era bruta”), mas a “cultural”, ou seja, a
que resulta da intervenção antrópica (“A gente vai tratando”, Dica) – gente busca lugar de
gente. Como veremos no Capítulo 5, isso fica mais evidente quando compreendemos a ideia
dos ribeirinhos sobre a instabilidade do estado humano frente ao mundo dos não-humanos.
Lugares de gente são, portanto, não apenas lugares de pessoas e parentes, mas são
também paisagens transformadas pelo plantio e conservação de alimentos, ornamentos e
remédios. O vínculo com a terra foi ilustrado no Capítulo 2 através do termo local “produto”,
isto é, produto do nosso trabalho, da nossa família, da nossa terra; produtos enviados como
alimentos à parentes na cidade. Gow utiliza o qualificativo “verdadeiro” para se referir aos
alimentos provenientes da própria terra dos Piro. Em Caviana o termo verdadeiro não é usado
para se referir aos alimentos produzidos localmente, mas a conotação dada aos mesmos está,
de certa forma, também presente, com por exemplo no hábito de Tereza em apenas comer as
coisas que conhece. Ela me diz que quando vai a cidade fica doente por comer aquelas coisas
e tomar aquela água. Em suas idas à cidade, leva sempre açaí, banana, camarão, porco e o que
tiver na época. Vimos na fala da neta de Tereza que mora na cidade (Capítulo 2), a
valorização do “comer junto”, mas também podemos perceber essa valorização nos constantes
pedidos de frutas dos parentes que moram na cidade. As frutas, como o açaí e muitas outras,
podem ser encontradas na cidade, no entanto é importante que a fruta venha da casa de seus
parentes, assim usam as rádios locais para manifestar esta diferença, como em um pedido que
ouvi na rádio Difusora local, relativo ao filho de uma senhora que morava em Caviana, “Mãe,
por aqui está tudo bem. Mande duas latas de açaí e banana pras crianças”. A importância de
receber o açaí da própria família, se deve ao fato desses alimentos serem preferencialmente
186
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
compartilhados entre os parentes, como uma forma de manutenção e cuidado. Mas como
veremos, o plantio de espécies alimentícias não são as únicas formas de criação de lugares84.
84
Nesse ponto, apesar de já ter definido o uso do termo paisagem, sinto que são necessárias algumas definições a
fim de chamar a atenção para as diferenças entre os conceitos de espaço (space), lugar (place) e terra (land).
Segundo Zedeño (2007), espaço seria uma categoria mais abrangente, como sinônimo de terreno; já terra seria
parte desse espaço e local sobre o qual estão os recursos naturais e objetos de manufatura humana. Já lugar seria
uma parte dessa paisagem maior constituído de história, afetos e atividades rotineiras (Lane 2007:240). Cada
lugar tem qualidades distintas e são significativamente particulares derivados de suas inter-relações com pessoas
e com outros lugares (Lane 2007:240).
187
Juliana Salles Machado
85
“People learn about the ancestral past simply by moving through the landscape. The knowledge they acquire
reflects an active relationship between the ancestral past and the land itself […] change can be accommodated by
its reflection in the transforming nature of the ancestral past […] the potential for encoding meaning in place is
enormous, and in Yolngu conceptions of landscape, myth and history combine, sometimes to reinforce an image
of place, sometimes to present contradictory images […] conversely, contemporary events can transform the
image of a place and give mythological events new connotations” (Morphy 1995:196).
188
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Um termo local para se referir a tais lugares significativos é “paragem”. O termo nos
remete exatamente a esse processo de criação de lugares de referência para a ocupação
humana. “Paragens”, como se pode imaginar, são lugares de parada. Locais aonde as pessoas
vão e ficam algum tempo – para morar, trabalhar ou acampar. Como vimos, os lugares-para-
parar são escolhidos por ter marcas de presença humana, por conter histórias humanas. Muitas
vezes, essas histórias são muito próximas, ligadas à parentes e antepassados conhecidos, e se
misturam com o parentesco. Nesse caso, as paragens têm nomes e contornos familiares.
Outras vezes são mais distantes, e remetem a personagens menos conhecidos, como os índios
Cavianos da história de Abdom (Capítulo 1).
A ideia de “paragem” que exploro aqui pode ser interpretada como semelhante à de
emplacement; ambas contêm os aspectos de transformação ambiental que levam à criação de
paisagens familiares, enraizadas em conhecimentos ancestrais e vinculadas a um
compartilhamento simbólico e prático do parentesco. Segundo Hirsch e O’Hanlon:
189
Juliana Salles Machado
A frase dita por Maria Valadares – “Homem é besteira. Vai lá pra beira, tem um monte
de filho e depois fica só” – contém aspectos importantes para essa reflexão. Maria fala na
afinidade dos homens com a maré e com as águas, o que, por oposição, remete também à
afinidade das mulheres com a terra e com as plantas. Ao associar o abandono ou o
rompimento das relações de parentesco com a aproximação do homem com a água, ela
reforça a associação do parentesco com a terra, com um lugar, com uma paragem. Parentesco
é permanência, assim como a terra, assim como as plantas. A mesma associação faz Tereza
quando diz à filha “Tá pensando que é o quê? Moruré?” 87, em resposta à notícia de que uma
amiga que ia ser despejada e não tinha para onde ir, falava em entrar num barco e ficar
boiando com a maré. Como a de Maria, a frase de Tereza opõe a água à terra, a mobilidade à
permanência, a pesca dos homens ao plantio das mulheres – as mulheres plantam
permanência; os homens se arriscam na fugacidade. E há ainda outro ponto importante na
86
“Notions of ‘emplacement’ are analogous to more familiar process of ancestral being continually turning into
place. However, this ordered and frozen world of the ancestral past is only re-created in personal experience
through the movements made by persons and collectivities between places” (Hirsch & O’Hanlon 1995:17).
87
“Moruré” é o nome de uma planta que vive boiando na água dos rios e igarapés da ilha; às vezes, se prende na
margem, para logo em seguida se soltar.
190
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
curta frase de Maria: “ficar só”. A fluidez das águas e de seus ofícios não fixa laços de
sociabilidade. As plantas e as atividades da terra, sim. Plantar e trocar são formas do cuidar,
de permanecer no lugar como um ser social.
Comecei a perceber a relação das mulheres com as plantas nas visitas que fazíamos a
amigos e parentes. Apesar da distância entre as casas, a troca de informações entre os grupos
domésticos era intensa – visitas, organização de festas religiosas, trabalhos coletivos e
negociações de compra e venda de produtos e mercadorias. Como líder da comunidade e
pessoa influente na região, Adolfo, marido de Tereza, sempre visitava parentes e amigos. Eu o
acompanhava nas visitas que pareciam destinadas à minha apresentação às pessoas da
comunidade. Numa delas, Tereza também estava e, antes de irmos embora, disse para o
anfitrião, “agora, eu vim aqui, e o senhor tem que ir lá”. Essa frase não foi casual ou sem
consequências. Em conversas cotidianas e reuniões sociais, são sempre lembradas as visitas
não retribuídas, e esse compromisso entre parentes e amigos revelou que minhas viagens com
Adolfo não se deviam exclusivamente à minha presença, mas integravam uma prática comum
e constante, entre homens e mulheres.
Quando Adolfo ficou doente, Tereza passou a fazer as visitas e mudou-as, levando-me
à casa não mais dos parentes do marido, mas de seus próprios parentes e de suas amigas,
permitindo que eu participasse de um mundo feminino antes pouco percebido. Enquanto as
visitas com Tereza se intensificavam, comecei a perceber que havia algo recorrente nas
conversas, uma sequência quase estruturada de temas e movimentos que fazíamos nas casas.
Ilustro-a com uma visita de Tereza à Dica, que é sua comadre e sogra de sua sobrinha.
191
Juliana Salles Machado
Ao chegar, fomos recebidas na sala da frente da casa nova. Começou uma conversa
sobre a maré. Tereza comentou que estava secando depressa e a maresia estava terrível, e
Dica concordou. Tereza então perguntou pela saúde de sua família, e ela respondeu que não
andava muito bem, mas que estava “indo, graças a Deus”. Depois, Dica fez a mesma pergunta
a Tereza, que respondeu a mesma coisa, acrescentando a dor na perna. Elas se puseram a
contar casos de doença de familiares e conhecidos, e, depois dessa conversa, em que ficamos
em pé, encostadas em bancos na sala da frente da casa, Dica nos convidou para o café, na
cozinha. Ali começou uma conversa sobre um acontecimento recente em Afuá, a festa do
vaqueiro, em que várias pessoas foram mortas. Comentaram a visita de certos parentes da
cidade que estiveram na ilha e a data da viagem do barco de Roberto à cidade. A visita durou
umas duas horas, pois tínhamos que voltar antes que a maré vazasse demais. Durante toda a
visita, elas “reparavam” o igarapé e falavam sobre a maré. Assim que ela começou a vazar,
foi dado o sinal para o fim da visita, e Tereza pediu a Dica uma muda de copaíba. Não
explicou o motivo do pedido e nem este lhe foi perguntado. Dica levou-a ao fundo da casa,
onde ficam os canteiros suspensos: lá comentaram o crescimento de algumas plantas e seus
cuidados específicos, de quem ela ganhara determinada planta e como preparar os remédios,
explicação seguida de alguma indicação de sua forma de plantio. Nesse momento, a conversa
192
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
era sussurrada, enquanto os homens estavam na cozinha, conversando e tomando café com
biscoitos. Lá do fundo da casa, Tereza saiu com a muda de copaíba, e nos despedimos.
193
Juliana Salles Machado
A forma repetida das conversas femininas se iniciam ainda do lado de fora da casa ou
na sala da frente. No primeiro momento, fala-se sobre o tempo, as marés, os parentes (quem
está com quem, como estão os filhos e onde estão morando, ou ainda questões relativas à
saúde) e as viagens a Macapá (quem está na cidade, com que barco, quando volta, quem vai
depois). Quando se entra na cozinha, a conversa fica mais descontraída, com mais risadas e
menos silêncios. As vozes são mais altas e firmes, e se conversa ao mesmo tempo em que se
faz café ou lavam-se os copos que serão usados. Os assuntos agora são mais variados, mas
sempre se fala sobre quem é parente de quem, resgatando vínculos de parentesco e afirmando
o reconhecimento de novos parentes. Surgem também as fofocas, como as últimas brigas,
casamentos, separações e festas, críticas à pessoas conhecidas ou comentários sobre a beleza
de alguém – e se comentam as atividades coletivas, relembrando quem tem participado ou
faltado.
As plantas e os remédios não são mencionados nesse momento. Não se fala muito
sobre plantas. À elas se destina aquele minuto final da visita, enquanto os homens tomam o
último gole de café ou viram o barco no rio. Aí, sim, as mulheres falam baixo ou sussurram,
mesmo afastadas dos homens e das outras visitas, fora da casa, atrás da cozinha. Discutem os
nomes das plantas e para que usam cada uma e fazem observações sobre o plantio (“a terra tá
muito ruim, muito encharcada”), mas com frases cortadas que eu pouco compreendo e que me
são explicadas depois. Isso porque se referem a um conhecimento prévio que elas
compartilham, relacionado aos nomes das plantas, aos tipos de doenças, maldades e feitiços
possíveis, mas também a mulheres que conhecem suas próprias preocupações e necessidades
na relação com os não-humanos. São frases curtas, rápidas e reticentes, que somem na
passarela, enquanto entram no barco para voltar para casa, com um saquinho de planta na
mão.
194
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
ao mundo dos não-humanos. Discute-se como cada doença, feitiço ou “maldade”88 foi tratado
e o que cada uma faria em face do problema. A conversa é parte do compartilhamento
explicitado no ato de dar a planta.
Pergunto como funciona isso de pedir plantas, e Dica me responde: “quando enxergo,
eu peço para dar. Quando vem uma amiga, já leva ou, quando tem algum doente, eu arrumo
pra dar” (Figura 3.10). Perguntada sobre a origem das plantas de seu canteiro, Janaína da
Prainha conta que “essas plantas me deram. Eu peço das pessoas.” Tereza reforça o caráter
feminino dessa prática e acrescenta aos laços de parentesco a questão da proximidade como
item importante: “só mulher que dá. Família que gosta de plantinha, parente próximo. Na
cidade, compra, dá. Contanto que se dê bem um com o outro, porque tem parente que não”.
Pedir e dar plantas é uma forma de troca baseada nas relações de parentesco e na proximidade
das casas (fatores que normalmente estão associados) e de amizade. Após um momento inicial
de transmissão entre mães-filhas, já com seu canteiro formado e tendo experiência no
processo de transformação vegetal-planta, é que as mulheres ingressam em um sistema de
trocas. Estas são quase que exclusivamente femininas e ocorrem preferencialmente entre
mães-filhas, cunhadas, noras-sogras, comadres, vizinhas e amigas e há uma predominância de
plantas de remédios, apesar de haver também temperos e enfeites. O caráter de reciprocidade
dessa prática é reforçado na fala de Geralda para Tereza: “leva a planta, que, quando eu não
tiver, você tem”.
195
Figura 3.10: Exemplos de troca de plantas de remédio entre mulheres ribeirinhas de Caviana. Fotos:
Juliana Salles Machado.
196
Juliana Salles Machado
trabalho, assim como a idéia de “vizinhar” exposta pela autora está presente também em
Caviana e se estrutura de forma distinta da troca de plantas aqui enfatizada. Enquanto a
partilha alimentar praticada pelos ribeirinhos tende a se aproximar do que Sahlins (1972)
chamou de “reciprocidade generalizada”, a troca de plantas de remédio entre mulheres da ilha
estaria entre esta e a “reciprocidade equilibrada”. A reciprocidade generalizada refere-se a
ações de compartilhamento, hospitalidade, ajuda, generosidade e doação e segundo seu
propositor, trata-se de uma assistência dada que, se possível e necessária, será retornada. Está
ligada às obrigações de parentesco. No entanto, é importante ressaltar, como nos lembra o
autor, que isso não implica na ausência de contrapartidas, a diferença é que essas não são
estipuladas por tempo, quantidade e qualidade, isto é “a expectativa de reciprocidade é
indefinida” (Sahlins 1972:194). Em Caviana, a partilha de alimento é uma forma de
generosidade e uma obrigação familiar. Nestes casos, o retorno pode demorar muito tempo e
vir em diversas formas, como a ajuda em um trabalho manual, carona em alguma viagem de
barco ou apoio à algum membro doente da família. No entanto, com a troca de remédios, se
dá de maneira distinta. Apesar de não se tratar de uma troca direta, isto é, uma troca de coisas
equivalentes com um retorno imediato, essa forma de reciprocidade é distinta da partilha
alimentar tratada acima. Isto se deve, pois, a qualidade da coisa trocada deve ser mantida, isto
é, ao se dar uma planta de remédio, espera-se que, quando necessário, se receba uma planta de
remédio, que pode ou não ser da mesma espécie, mas tem genericamente a mesma função
como remédio. Essa forma é apontada por Sahlins (1972) como menos pessoal do que a
reciprocidade generalizada, contudo, em Caviana essa forma de troca é extremamente pessoal
e está relacionada com os laços de parentesco, amizade e proximidade, em termos
semelhantes ao mencionado por Sahlins (1972:197): “[...] um termo espacial, co-residencial
afeta a medida da distância do parentesco e, portanto, o tipo da troca”89.
Em outro episódio, Dica me mostra um galho, sua muda, e diz “os velhos passados
[seu pai e sua mãe] já ensinaram, e depois a gente faz e dá certo”. O ato de plantar está
sempre associado aos velhos, aos antigos e, às vezes, aos índios. Geralda me conta também
que: “tem umas velhas que gostavam de plantar muito”. A antiguidade do hábito de plantar é
valorizada, e suas formas de continuidade são lembradas na transmissão do conhecimento
pelas redes femininas de ensino-aprendizagem, normalmente provindas das mães e avós,
89
“[...] a spatial, coresidential term affects the measure of kinship distance and thus the mode of exchange”
(Sahlins 1972:197).
197
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
como no caso de Geralda, que aprendeu a plantar com a mãe, como esta havia aprendido com
sua avó. Há uma preocupação constante com a manutenção dessa atividade, como expressa
sua frase de Tereza, “eu trabalho para não perder esse filho”, termo que reforça a associação
entre plantas e parentesco. Plantar é uma forma de continuar perto dos parentes, e trocar, uma
forma de perpetuar o plantio e assim o parentesco, assim como expandir sua interação social.
Esse aspecto de continuidade das plantas e pessoas é enfatizado por Rival, sobre a vida social
das árvores:
90
“[…] the symbolic contribution of other life forms, particularly plants, whose social and metaphysical
significance does not seem to lie in drawing an absolute distinction between nature and culture, but on the
contrary, in reaffirming continuity of biological species within the living world […] trees and plants make
perfect natural models for genealogical connections” (Rival 1998:11).
198
Juliana Salles Machado
Apesar de se trocarem também mudas de plantas alimentícias, estas não têm o mesmo
estatuto dos remédios, pois fazem parte de uma esfera compartilhada com os homens. Como
disse antes, as árvores frutíferas são consideradas herança de família – como parte da
concessão de uso da terra do pai do marido ou como continuidade das obrigações paternas e
maternas para com a subsistência dos filhos – e integram sua base econômica. Assim, sendo
antes um presente que objeto de troca, as frutas podem ser pedidas, dadas ou enviadas, mas,
em geral, para comer, e não para plantar. Entre as mais comuns, estão a laranja, a manga e o
açaí. Tereza levou manga para seu irmão Domingos, quando fomos visitá-lo; Adolfo levou
um saco de laranjas quando foi ao Taxipucu visitar o irmão. Esse ato de dar inclui homens e
mulheres e é aberto – isto é, sem conter, o aspecto de segredo. Ao contrário, é tido como um
gesto de generosidade despretensiosa e por isso é feito abertamente. A diferença entre os atos
de dar e receber plantas alimentícias e as de remédio é fundamental em Caviana. Trata-se de
discernir as plantas para humanos daquelas relacionadas aos não-humanos. Os atos de
generosidade como parte das obrigações de parentesco estão relacionados exclusivamente aos
alimentos, aos frutos. Dá-se o produto final de um plantio, como o exemplo da laranja
mencionado acima, e não uma semente ou muda de uma planta alimentícia. Trata-se de um
registro sociológico, uma relação entre humanos, em geral engajados em uma relação de
obrigações relacionada ao parentesco e à proximidade espacial. Como mencionei, aqui não há
uma expectativa de retorno na mesma espécie e nem em um tempo definido, há sim a
expectativa de manutenção de um sistema de relações previamente estabelecido. Já quando as
mulheres trocam remédios – e quero enfatizar a nomenclatura troca nesse caso e partilha no
caso dos alimentos –, além de criar um compartilhamento do conhecimento entre as mulheres
envolvidas, está-se lidando com um registro cosmológico. Isto porque o conhecimento que é
compartilhado e a razão do plantio e da troca é a manutenção das relações entre humanos e
não-humanos. Discutiremos esse aspecto mais adiante.
A muda que Dica levou a Tereza, por exemplo, não é considerada como fruto de um
ato de generosidade e nem se espera um retorno imediato. O que se espera é que Tereza
mantenha seu canteiro vivo e possa também fornecer mudas para Dica e outras mulheres,
quando elas precisarem. A troca de plantas não cria uma obrigação apenas entre estas duas
mulheres, mas seu engajamento num coletivo que mantêm vivas as espécies importantes para
elas e, com isso, preserva o conhecimento dos antepassados e garante sua permanência na
ilha. Trata-se de uma cadeia do cuidar, um elo entre mulheres na luta pela permanência de sua
199
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
família, de seus parentes e amigos na terra e, como veremos no Capítulo 5, para seguir sendo
gente, para continuar pertencendo a esse lugar. Trata-se, portanto, de uma relação de
interdependência: “as pessoas, em outras palavras, estão tão entrelaçadas com a vida das
plantas quanto as plantas na vida das pessoas” 91 (Ingold 1993:167-168).
Certa vez, fui com Tereza visitar Veríssima Valadares, de 67 anos, na Prainha. Antes
de chegarmos lá, porém paramos na casa de Alcinéia, de onde Tereza levou cebolinha e uma
folha de pariri. De lá chegamos à Prainha, onde conversamos e tomamos café na entrada da
casa. Nessa ocasião, não fui convidada a entrar na cozinha.
Já a casa da filha do irmão de seu marido, Janaína, fica no grupo doméstico de seu
sogro. Seu canteiro é pequeno e suas mudas foram quase todas dadas por sua mãe, moradora
do igarapé Ubuçutuba, sendo apenas duas as plantas dadas por sua cunhada. Ao chegarmos
em sua casa, Tereza foi solicitada a benzer seu filho que estava doente. Tereza não levou
91
“[…] the people in other words are as much bound up in the life of the tree as is the tree on the life of people”
(Ingold 1993:167-168).
200
Juliana Salles Machado
consigo nenhuma planta para isso, e solicitou uma folha de cipó-d´alho que Janaína possuia
em seu canteiro. A benção foi inteiramente realizada com a folha em sua mão. A continuidade
da cura é dada pelo uso de plantas de remédio diretamente sobre o corpo doente, através dos
chamados “banhos”, como veremos no Capítulo 5. A planta utilizada para benzer, nesse caso,
serve como instrumento de cura relacionado à sua origem não-humana, mesma origem
atribuída à doença da criança. Enquanto a benzedeira pode estabelecer um diálogo com os
não-humanos diretamente através de seu “dom”, a planta se torna o instrumento dessa
intermediação e da cura de um terceiro. Assim o poder da planta, advindo de sua origem e
relação com as mães da natureza, até então inerte e inofensiva é ativado pela figura da
benzedeira, que a usa para afastar “aquilo” do corpo da pessoa. O mesmo efeito é esperado
dos remédios de planta usados nos banhos. No exemplo de Janaína temos, assim a conjunção
de diversos fatores relevantes para compreendermos a troca e o uso das plantas tanto como
registro sociológico, como cosmológico; ao mesmo tempo como meio de manutenção de
relações de pertencimento social e de diálogo com o mundo não-humano.
Neste exemplo, vemos que o padrão da visita é mantido entre Augusta e a cunhada. Já
o mesmo não aconteceu com Marli, sua filha, que não fez uma recepção formal, e fomos
direto à cozinha. Também na casa de Marli, a formalidade comum à troca de mudas (quando
as mulheres se retiram da vista dos demais para conversarem e trocarem as plantas) foi
dispensada. Nessa ocasião, a retirada da muda ocorreu no meio da visita, diante do pai e das
92
O termo é usado para se referir a grande intensidade de chuva.
201
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
netas, quando mãe e filha saíram para o canteiro. Mas mesmo sem o elemento do segredo, o
motivo do pedido não foi mencionado na cozinha.
Vi apenas dois casos de plantas serem dadas sem terem sido pedidas. No primeiro,
perguntei à Tereza por uma planta que vi num pote de água perto do lugar onde se lavam
roupas, no fundo da casa, e ela me contou que tinha ganhado, sem pedir, da comadre Maria
Luz, do Pocotó – e era a mesma manjerona d’angola que Augusta procurava dias antes, na
casa de Marli. Embora eu não tenha visto a planta ser entregue à Tereza um dia antes, um
casal viera do Pocotó para que ela benzesse seu bebê, que estava doente, e isso me lembrou a
fala de Dica – quando ficava sabendo que alguém estava doente, dava um jeito de mandar a
planta. Assim, apesar de a troca ser feita usualmente nas visitas, o ato de cuidar prevalece
mesmo na impossibilidade de um encontro entre as mulheres, pela intermediação de outros
parentes e amigos.
A outra planta que Tereza ganhou sem pedir foi num domingo de reza no João Brás.
Depois da reza e do bingo, quando todos estavam tomando café na cozinha e comprando
biscoites recheados que Tereza trazia da cidade para vender, sua cunhada Geralda lhe levou
uma muda de buchinho para ela dar a Adolfo, dizendo que era boa para “baque”93, e o chá
também era bom para sinusite, para fazer inalação e pingar no nariz. Geralda mantinha essa
planta nas Piranhas, campo afastado onde ainda tem uma casa abandonada a que vai de vez
em quando. Nessa mesma ocasião, mas em outro momento, Augusta pediu à Tereza um
quebra-pedra para o filho solteiro, que estava com gastrite. Ela queria os ingredientes para
fazer o remédio, mas ainda lhe faltava essa planta.
Não se pedem plantas a qualquer pessoa, mas a uma rede de amigas e parentes que
compartilham seu conhecimento sobre a utilidade da planta. O ato de plantar está associado ao
ato de cuidar; ao trocar com alguém, essas mulheres estão também cuidando dessa pessoa,
fazendo parte de um esforço coletivo de proteção e apoio, reforçando as obrigações de
parentesco, criando novos vínculos e expandindo o ato doméstico do cuidado para o âmbito
coletivo.
93
Expressão local para se referir a uma lesão no corpo.
202
Juliana Salles Machado
O que estou chamando de troca é o contínuo ato de pedir e dar plantas entre as
mulheres em Caviana; o termo é assim usado no seu sentido extenso para enfatizar o aspecto
de reciprocidade dessa relação. As mulheres da ilha não chamam sua prática de troca e nem a
reconhecem como um sistema organizado; no entanto, do ponto de vista do analista, essa
prática une as mulheres em uma expectativa de reciprocidade. Há dois momentos distintos na
relação da mulher com as plantas. Em um primeiro momento, a mulher aprende o plantar e
seu potencial transformativo através da rede doméstica de ensino-aprendizagem, que é, em
grande parte, realizada através da mãe e das irmãs, mas pode, em alguns casos, vir também da
sogra. Essa aprendizagem do plantar é internalizada e exercida apenas ao ajudar a sua mãe.
Assim que se casa, a mulher sai de seu ambiente doméstico para morar com sua sogra. Neste
momento ela passa por um período de formação do seu próprio canteiro, já que até então
apenas ajudava sua mãe a manter o dela. Nesse momento, há a trasmissão de mudas de sua
mãe ou irmãs para ela, que as leva consigo em seu novo lar. Nesse momento inicial a mãe (e
por vezes a sogra) continua exercendo um papel importante, pois reforça os ensinamentos
acerca das formas de plantio e contribui com as primeiras mudas de plantas para esse canteiro
em formação. Apesar da grande quantidade de plantas originadas por essa forma de
transmissão, ela é temporalmente curta. Uma vez tendo o canteiro formado e já tendo feito,
portanto, sua coleção de plantas familiares, a mulher passa a trocar efetivamente as suas
plantas com outras mulheres, como suas cunhadas, primas, amigas, vizinhas, mas também
mantêm a relação com sua mãe e sogra – agora já na forma de troca e não mais transmissão
como no momento anterior. A importância da família nas trocas é evidenciada nas análises
descritivas que apresento no Capítulo 4, já que numericamente as plantas oriundas do
processo de formação do canteiro se sobressaem. No entanto, gostaria de ressaltar o papel das
vizinhas e amigas nessa rede de trocas que, se não é quantitativamente representativo (ver
Capítulo 4) devido principalmente a grande escala temporal em que ele se encontra em
contraposição ao processo inicial de formação do canteiro, ele assume importância como
forma de criação de laços de afinidade entre as mulheres. Com o processo de circulação das
plantas, não há uma busca explícita por um nivelamento entre os canteiros, isto é, nem todas
as mulheres possuem as mesmas plantas em seus canteiros. No entanto, há uma tendência à
repetição das mesmas plantas entre as mulheres da mesma rede de trocas. No entanto, a
introdução constante de coisas novas cria um traço muito particular à cada um dos canteiros.
Busca-se sempre um novo plantar, que pode ser decorrente da morte de plantas de seu
203
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
canteiro devido ao sol excessivo ou às chuvas e alagamento, ou por uma vontade própria de
sua dona em experimentar coisas novas. Com a idade as mulheres tendem a aumentar este
patrimônio, isto é sua coleção de plantas tende a aumentar devido ao tempo de participação
nas redes de troca e experiência no cultivo. Mas esta tendência depende muito do grau de
mobilidade da família (quantas casas a família se mudou), empenho e vontade de plantar da
dona e capacidade de troca com outras mulheres.
94
“[...] trees and forests are not naturally given categories, they result from the dialectical unfolding of historical
and ecological processes” (Rival 1998:24).
204
Juliana Salles Machado
indiferenciado, pois se distingue pelo lugar onde está, pelo grau de “madureza” 95 e por sua
utilidade particular. Mas, ainda assim, mato.
Já dentre o terreiro, ouvimos a cada planta uma explicação, como por exemplo,
quando estava andando no terreiro com Tereza. Avistando o abacaxi ela falou “esse o Gito
[seu filho] trouxe de um igarapé longe daqui”; para o eucalipto, “eu plantei com a muda que a
minha filha deu lá de Macapá”; “o café Adolfo trouxe a semente de presente”, e o coqueiro,
ela mesmo trouxe a muda de um terreno onde eles têm casa em Chaves. Ao andar pelos
terreiros e ao lado dos canteiros das casas riberinhas, o que mais ouço são nomes de pessoas e
lugares de onde as mudas e sementes vieram. Dica atualmente tem 20 pés de laranja em seu
95
“Madureza” foi o termo usado por Roberto para indicar o estágio de amadurecimento das plantas; distinguindo
especialmente aquelas que surgem logo após o desmate, seguida das capoeiras, já quando a vegetação se
adensava, e a formação de matas secundárias.
96
“To collect seeds for planting is called 'seeds-isolate-to take' [...] the term can be applied to plants or to women
[...] In the case of plants, what is referred to is the seeds one can collect now, are not contaminated from the
outside” (Reichel-Dolmatoff 1996:80).
205
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
sítio e ela lembra que a primeira muda veio de “uma laranja da beira, veio do tio Pedro de
Oliveira, que ganhou dos parentes dele 12 árvores”. Dica, diferente da maior parte das
mulheres desta parte da ilha, tem um passado de viagens, quando morou em Marajó e outros
lugares devido à morte de seus pais. Ela lembra sua história através de uma árvore de castanha
do Pará. Atualmente possui 14 árvores desta espécie no seu sítio e as mudas foram trazidas do
Jarí, onde fez “a muda da natureza”.
O processo de tornar-se planta passa pelo cuidado, esfera associada às mulheres por
meio dos atos de plantar, adubar, regar, tratar, limpar, podar e colher, e se materializa nos
canteiros, sítios e terreiros. Nesse processo, não se tornam apenas plantas, mas plantas de
alguém, mesmo que esse alguém seja indeterminado. Assim, cuidar, tratar, limpar e colher são
também atos de transformação – de mato para planta. Há um sentido de individuação no ato
da transformação; de mato genérico, entra-se numa relação com um indivíduo específico
(“minha planta”), criando uma relação “pessoal” entre uma planta e uma pessoa. O uso do
206
Juliana Salles Machado
possessivo indica também uma relação de familiaridade, que é mais clara na designação
“filhos” com que as mulheres se referem às suas mudas.
Poderíamos fazer aqui um paralelo com o que Fausto (2008) chamou de “relação de
maestria”, e com sua noção de “predação familiarizante” (Fausto 2008:333), na qual “relações
predatórias convertem-se em relações assimétricas de controle e proteção”. No universo
indígena da Amazônia é comum encontrarmos termos para identificar relações de “controle
e/ou proteção” e de “engendramento e/ou posse” entre humanos e não-humanos e entre
pessoas e coisas. O autor descreve esse universo ameríndio como um “mundo de donos e o
dono como modelo da pessoa magnificada capaz de ação eficaz sobre esse mundo” (Fausto
2008:330). No entanto, observa que o traço importante dessa relação é a assimetria, sendo os
donos os controladores e protetores de suas criaturas e assim responsáveis pela sua
reprodução e mobilidade. A assimetria implica não só controle, mas cuidado. Na relação
observada entre as mulheres e suas plantas em Caviana, a relação de maestria se dá ao mesmo
tempo pela individuação e pela socialização, resultando na transformação do mato em planta,
i.e. em “filhos” de alguém. Quando tomamos a relação plantas-mulheres como uma de donos,
envolvemos as plantas na categoria das relações sociais entre pessoas (humanas) e assim
também em suas relações de parentesco.
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Tal visão da criação das plantas por uma figura maternal e a sua manutenção pela ação
direta de cultivo das mulheres é muito importante em Caviana. Nesse contexto, no entanto,
podemos expandir a ideia de uma figura protetora não apenas às roças, mas também às casas
97
“In the spirit of the Achuar, technical ability cannot be dissociated from the capacity of creating an inter-
subjective environment, in which regulated relationships develop from person to person; between the hunter, the
animals and the spirits ruling the hunt, and between the hunter, the animals and the spirits ruling the hunt, and
between women, the plants of the garden and the mythical character who engendered the cultivated species and
who, even today, ensures their vitality. Far from reducing themselves to prosaic food suppliers of food-places,
the forest and the areas destined for culture constitute the stage of a subtle sociality on which, day by day,
beings, which only the diversity of appearance and lack of language really separate from humans, are seduced.
However, the forms of this sociality differ when dealing with plants and animals. Mistresses of the gardens, to
which they dedicate most of their time, women turn to the cultivated plants as to the children who have to be led
to maturity with a firm hand. This maternal relationship is inspired explicitly from the guardianship exercised by
Nunkui – the spirit of gardens – on the plants she once created” (Descola 2004:69)
208
Juliana Salles Machado
(aqui incluindo não apenas a edificação, mas todo o seu entorno com seus quintais plantados e
canteiros), sítios, caminhos e lugares significativos em geral. A idéia por trás disso é que não
há uma natureza por si, mas sim em uma relação de domesticidade. A natureza seria assim,
“sempre o domus de alguém” (Fausto 2008:339). Entre os grupos indígenas a figura materna é
raramente encontrada na figura de “donos” na acepção de Fausto e parece também não ser
comum nas relações de domínio existentes na noção de dono-mestre. Não obstante, um dos
exemplos em que grupos indígenas utilizam a figura materna, associada ao sentido de dono
proposto por Fausto, é entre os povos do norte do Amapá, como mencionamos anteriormente,
os Palikur, Galibi-Marworno, Galibi do Oiapoque e Karipuna. O termo é usado para se referir
à cobra grande, importante figura mítica da cosmologia indígena. Segundo a descrição da
autora (Vidal 2007:15) no mito palikur da cobra grande os índios se referem ao casal de
cobras como mãe e pai. Tal referência assume uma importância ainda maior para nossa
discussão pelo estatuto da cobra grande na cosmologia palikur, conforme explicitada no
trecho abaixo:
A relação de dono da cobra grande com relação aos outros seres é exemplar dessa
relação assimétrica, em que o jogo de poderes entre os domínios humanos e não-humanos é
exercido. Segundo Vidal (2007:33) há um tipo de cobra grande chamada pelos índios em
português de “mãe-d´água”; mesmo nome usado pelos ribeirinhos em Caviana para designar a
mãe protetora dos rios, águas e animais aquáticos em geral. Entre os Galibi-Marworno, há
ainda o uso de termos como “mãe-das-piranhas” e “mãe-dos-jacarés” para se referir a estes
entes protetores. Vidal indica que se os índios do Uaçá usam o termo “rei” ou “dono” em
português, em patoá (língua geral da região) eles usam o termo do parentesco “pai”. O uso
dos termos do parentesco (mãe/pai) neste contexto indígena, diferente dos demais contextos
mencionados para o Xingu, por exemplo, aparece de forma semelhante aquela utilizada pelos
ribeirinhos de Caviana, especialmente na relação de atribuição de maternidade/paternidade
entre seres não-humanos e humanos (ou metafiliação, para usar o termo de Fausto). Em
209
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Caviana também encontramos a figura das mães não-humanas, donas de bichos, lugares e
plantas, mas, como vimos, há também a (meta-)adoção destes filhos por uma (meta-)mãe
humana. Há aqui uma inversão dos papéis do mito Palikur, enquanto a cobra adota um
humano como seu filho e o usa na busca de alimentos, em Caviana as mulheres humanas
exercem o papel de mãe para os filhos destes entes poderosos.
210
Juliana Salles Machado
poderosa, a aramari, pode ser um desses mestres. Outros mestres são certas árvores-xamã,
muito potentes, entre elas o tawene”. Os usos de sua seiva ou leite são usados como remédios
e/ou venenos, dependendo da dosagem. As plantas aqui assumem uma agência própria,
através através de sua forma potencializada de árvore-xamã, que poderíamos aproximar com a
figura antropomorfa de Caviana através da “mãe-do-mato”. No entanto, esta aproximação
merece várias ressalvas, já que no contexto de Caviana apesar dessa figura ser usualmente
indicada como protetora do mundo vegetal, em alguns casos ela é apresentada como ente mais
genérico, que cuidaria também dos animais, incorporando todo o domínio da floresta. Além
disso, a figura de Caviana, como veremos no Capítulo 5, é antropomorfa, não possuindo
assim seiva em seu corpo – contudo, está associada à elas indiretamente pois estes são
encontrados em suas “filhas” árvores.
98
Whatmore (2002) trata no campo da geografia e das teorias sociais, das relações entre humanos e não-
humanos que permeiam o espaço e tecem a geografia. A partir do termo ”geografias híbridas” chama atenção aos
211
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
saber particular, uma planta, um lugar e pessoas, pode, como um híbrido, possuir agência.
Nesse sentido, sua agência representaria “a capacidade coletiva de ação por humanos e não
humanos”99 (Jones & Cloke 2008:85) na manutenção de pessoas e parentes e na formação de
lugares de gente.
fatores e matérias ecológicas que compõem a vida social, enfatizando como essas relações são constituídas e
contestadas.
99
“[agency represents] the collective capacity for action by humans and nonhumans” (Jones & Cloke 2008:85).
212
Capítulo 4:
Figura abertura capítulo 4: Final de tarde no grupo doméstico de Roberto no Taxipucu. Foto: Juliana
Salles Machado
213
Juliana Salles Machado
4
UM OLHAR SOBRE AS PLANTAS
E A TROCA
100
Uso o termo domesticidade ao invés de domesticação para diferenciar este processo sociológico e
cosmológico do tornar doméstico do sentido estritamente botânico do termo, em que há um processo de
transformação genética da planta silvestre para a domesticada.
214
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
A quantificação das plantas e o mapeamento das redes de troca foram feitos a partir da
identificação das casas. Cada casa está relacionada a mulheres que ativamente conhecem,
215
Figura 4.1: Exemplos de mulheres em entrevista sobre as plantas em seus terreiros e canteiros, Caviana.
Fotos: Juliana Salles Machado.
216
Juliana Salles Machado
plantam, cuidam e trocam essas plantas. Na grande maioria das casas analisadas, só uma
mulher tinha essa função, podendo ser ou não ajudada por uma filha ou nora.
Os locais de manejo das plantas variam, incluindo tanto áreas atualmente ocupadas
como outras já sem utilização contínua. Dentre as áreas ocupadas, temos o entorno das casas
(incluindo aqui o terreiro e o canteiro), as roças, os sítios e os caminhos. Já entre as
abandonadas, contam-se antigas habitações ou roças, que podem ser mais ou menos recentes.
Através de um levantamento arqueológico, constatei que os ribeirinhos usam muitos sítios
arqueológicos do período pré-colonial e colonial (Figura 4.2), seja reocupando efetivamente o
mesmo lugar, com os cemitérios e algumas habitações, seja como fonte de recursos – matéria-
prima como argila, palha e madeira, ou alimentos como castanha, açaí, pupunha etc. Os sítios
arqueológicos têm para as famílias ribeirinhas dois papeis principais: são espaços de moradia
e, ao mesmo tempo, ilhas de recursos101.
101
Para uma discussão sobre as “ilhas de recursos” ver Posey 2008, 1998.
102
Muitas áreas escolhidas pelos ribeirinhos para construir sua casa ou seu terreiro foram anteriormente
ocupadas por humanos. Essa ocupação é reconhecida pela presença e/ou densidade de plantas consideradas úteis,
atribuída à intervenção humana – foram lugar de alguém, sendo esse alguém reconhecido (como um parente) ou
tendo uma ancestralidade genérica, como a designação de uma origem “dos índios”.
217
Figura 4.2: Exemplos de reocupação de sítios arqueológicos por famílias ribeirinhas. Acima: cemitério
indígena (detalhe de fragmentos cerâmicos de urnas funerárias) sob cemitério histórico e atual; abaixo à
esquerda, urna funerária indígena ao lado de trilha usada pelos ribeirinhos; abaixo à direita, saque de
urnas funerárias arqueológicas por estrangeiros em área próxima ao terreiro de uma família ribeirinha.
Fotos: Juliana Salles Machado.
218
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Para compreendermos os gráficos a seguir devemos ter em mente que todos os dados
foram coletados por casa (unidade agrupante). Isso se deve ao fato da casa ser a unidade
mínima de trabalho, onde reside a mulher geralmente responsável pelo plantio. Além disso,
como vimos anteriormente o termo “casa” é entendido não apenas como uma edificação, mas
inclui também o quintal (ou terreiro para usar o termo local) e o canteiro, assim como está
relacionado com outras áreas de plantio geralmente mais distantes desse núcleo, como as
roças e até alguns sítios. Cada casa usufrui e manipula todos esses espaços, além de outras
áreas abandonadas (em geral antigas residências da família) e caminhos (chamados
localmente de “estradas”). Os dados coletados indicam a presença de cada espécie por área de
plantio, e não o número absoluto de indivíduos de cada planta por área. Ou seja, cada espécie
é contabilizada apenas uma vez, independentemente da quantidade que haja dela em cada
219
Juliana Salles Machado
Inicio com o Gráfico 4.1 que representa a variedade de plantas por local de
implantação. Para essa análise inicial foram comparadas quantas espécies de plantas foram
identificadas em cada área de plantio juntando todas as casas entrevistadas.
O gráfico nos indica que o terreiro concentra a maior variedade de espécies. Ele é
também a maior área em extensão de plantio. O terreiro, junto com o canteiro, compõe o
repertório direto de recursos da casa, concentrando juntos, como nos indica o gráfico, quase
220
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
60% das espécies de plantas usadas pelos ribeirinhos. Já o canteiro sendo a menor unidade de
plantio, normalmente compostos por uma ou duas canoas suspensas por troncos, abrigam um
percentual considerável de 25% das espécies. Fora da unidade doméstica mais ainda ligada à
ela temos a roça com 27%. Porcentagem surpreendente para locais com tamanhos variados e
pouco valorizados localmente. Quando perguntados sobre as roças, grande parte das famílias
dizia “não trabalho com isso”. Também não pareciam atribuir nenhuma importância
econômica ou de subsistência à elas, me indicando estes serem locais de plantio apenas para
melancia, banana e ocasionalmente milho – sendo este último raramente utilizado na
alimentação das pessoas e sim para a ração dos animais de criação. No entanto, durante as
entrevistas mais estruturadas, com a aplicação dos questionários, os dados se mostraram um
tanto diversos. A porcentagem das espécies vegetais encontradas em roças representa um
número bastante significativo tendo em vista o discurso da população local, que
majoritariamente indica ali apenas a presença de banana e melancia. Por fim, as áreas
abandonadas apresentam 15%, frequência relativamente baixa para a intensidade de uso
dessas áreas. Essa categoria, no entanto, apresenta alguns problemas, pois contempla uma
grande diversidade de espaços, como antigas casas, roças, sítios e caminhos, e por isso pode
não ter sido reconhecida como “categoria” durante a entrevista. Outra hipótese para
interpretarmos tal porcentagem é que a intensidade de uso dessas áreas se dá através de uma
baixa variedade de espécies usufruídas pelos ribeirinhos, hipótese que é reforçada pela
observação da intensa atividade dos ribeirinhos no manejo desses espaços.
103
É importante observar que a presença de cada espécie nas distintas áreas de plantio foi contabilizada como
resultado das entrevistas realizadas em cada casa e não através do reconhecimento das espécies in situ.
221
Gráfico 4.2:
Variedade de plantas por áreas de plantio
N = 1.098
H1 H2 H3 H4 H5 H6 H7 H8 H9 H10 H11 H12 H13 H14 H15 H16 H17 H18 H19 H20 H21 H22 H23 H24 H25 H26 H27 H28 H29 H30 H31 H32 H33 H34 H35 H36 H37 H38 H39 H40 H41 H42 H43 H44 H45 H46 H47 H48
222
Juliana Salles Machado
assim por diante. Tais dados foram coletados para as 48 casas documentadas na pesquisa,
sendo analisadas as quatro áreas distintas de plantio em cada uma delas. O resultado desse
cruzamento de dados gerou uma amostra de 1.098 indivíduos, dispostas conforme o gráfico ao
lado.
No Gráfico exposto (Gráfico 4.2), vemos uma tendência a uma maior variedade de
plantas no terreiro (representado pelas colunas verdes). No entanto, há algumas inversões
importantes que devemos analisar com maior detalhe. Iniciaremos com os casos nos quais a
variedade de plantas no canteiro é maior do que todas as áreas plantadas em terreiros, para
isso recortamos o gráfico para melhor visualização das casas onde isso ocorre.
Gráfico 4.2.1: Detalhamento das casas com maior variedade de plantas em canteiros
223
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
entorno é extremamente difícil. O seu terreiro é substituído por um sítio afastado na terra
firme. A casa 1 é assim de fato uma exceção e apresenta um valor alto para todas as áreas de
plantio.
Os dados da casa 46 não revelam uma anomalia com relação à tendência mais geral de
maior diversidade nos terreiros e canteiros, mas sim os diferentes estágios de manejo de
acordo com a etapa de vida de seus moradores. Casais recém-casados moram com os pais do
marido e a esposa ajuda no plantio e manutenção das plantas da sogra, podendo
224
Juliana Salles Machado
eventualmente iniciar um pequeno canteiro seu. Assim que constroem sua casa passam uma
fase de busca de mudas em áreas abandonadas para “formar” seu terreiro, assim como de
plantas de remédio através de sua mãe, cunhada e sogra. Quando possuem roça, ela começa a
ser aberta ainda na casa da sogra, ou logo que o casal se muda para a casa nova. Com o passar
dos anos, o perfil de uso de plantas muda, com um aumento da variedade de plantas no
terreiro e no canteiro e uma diminuição da importância das áreas abandonadas.
As outras duas inversões com relação a tendência geral de maior variedade de plantas
no terreiros, se referem a casa 2, onde predomina o uso das áreas abandonadas e as casas 15 e
40, nas quais as roças exercem o papel mais importante na diversificação das espécies
utilizadas.
A casa 2 é de Tereza e Adolfo no João Brás. Como vimos o papel de Tereza na troca
de plantas é muito importante e é surpreendente o maior valor ser o de áreas abandonadas. No
entanto, se olharmos o valor do terreiro ele também é bastante alto. Já o motivo da
sobreposição das áreas abandonadas com os terreiros é devido a extensão da propriedade de
Adolfo. O João Brás é um terreno comprado e não uma herança familiar por uso, como é o
caso na maior parte dos exemplos analisados. Adolfo adquiriu uma grande propriedade e
devido a sua extensão e da impossibilidade de sua família usufruí-la inteiramente, Adolfo
cedeu o uso da terra para diversas famílias que não possuem propriedades na ilha. Tais
famílias criaram seus próprios terreiros, sítios e roças e com o tempo as abandonaram. Por ter
posse da terra, Adolfo atualmente tem a prerrogativa de uso dessas áreas manejadas e
abandonadas que servem como importante fonte de recursos tanto para o consumo direto de
sua família como para a venda de excedentes.
225
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
104
Indicados pela sigla P seguida de um número; o nome correspondente pode ser encontrado na tabela em
anexo.
226
Juliana Salles Machado
Nesta distribuição, fica patente que, apesar de haver um grande número de espécies
conhecidas e utilizadas, poucas plantas ocorrem em mais de cinco casas. O Gráfico 4.4 mostra
quais plantas são as mais trocadas entre as mulheres. Como estamos tratando da presença de
uma determinada espécies por casa e área de plantio e não a quantidade de plantas de uma
única espécies nesses locais, os valores apontados no eixo Y, indicam também quantas
casas/áreas de plantio utilizam cada planta. Assim, se contarmos apenas os valores acima de 5
(que consequentemente representaria 5 casas ou áreas de plantio), temos a presença de 17
variedades de plantas para o terreiro, 13 para a roça e os canteiros e 7 para as áreas
abandonadas. Tendo em vista a forma usual de circulação das plantas ser através da troca,
assumi que a presença de uma mesma planta em mais de cinco casas seria um indicador dessa
forma de interação entre as mulheres. Nesse sentido, a distribuição acima mencionada
indicaria que se troca aproximadamente o mesmo número de espécies de cada área de plantio
(roça, terreiro e canteiro), sendo que há uma ligeira predominância das plantas do terreiro.
Exceção feita às plantas oriundas de áreas abandonadas, que são muito pouco trocadas. No
entanto, varia muito o número de casas que possui cada planta; as de terreiros estão em muito
mais casas, indicando a existência de um compartilhamento mais amplo dessas espécies,
envolvendo também um número maior de indivíduos.
227
Variedade de plantas por local de implantação
N = 1.098
30
25
20
Quantidade de casas com ocorrêncida de plantas
canteiros
15 roças
terreiros
áreas abandonadas
10
0
P1 P3 P5 P7 P9 P11 P13 P15 P17 P19 P21 P23 P25 P27 P29 P31 P33 P35 P37 P39 P41 P43 P45 P47 P49 P51 P53 P55 P57 P59 P61 P63 P65 P67 P69 P71 P73 P75 P77 P79 P81 P83 P85 P87 P89 P91 P93 P95 P97 P99 P101 P103 P105 P107 P109 P111 P113 P115 P117 P119 P121 P123 P125 P127 P129 P131 P133 P135 P137 P139 P141 P143 P145 P147 P149 P151 P153 P155 P157 P159 P161 P163 P165 P167 P169 P171 P173 P175 P177 P179 P181 P183 P185 P187 P189 P191 P193 P195 P197 P199 P201 P203 P205 P207 P209 P211 P213 P215 P217 P219 P221 P223 P225 P227 P229 P231 P233 P235 P237 P239 P241 P243
228
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Se agora nos voltarmos para as plantas que ocorrem entre os valores 5 e 10, ou seja,
que ocorrem entre 5 e 10 casas ou áreas de plantio, temos apenas 13 plantas tanto nas roças
quanto nos canteiros. Já acima de 10 casas ou áreas de plantio, há apenas três plantas para as
roças e uma para o canteiro. Isso significa que a rede de circulação de roças e canteiros é
menor do que a dos terreiros, e a das roças é ligeiramente maior que a dos canteiros.
O conjunto dos gráficos e dados expostos até o momento nos permite elencar algumas
considerações importantes quanto à diversidade e ao número de espécies vegetais:
Os gráficos sobre o uso das plantas, que apresentarei a seguir, nos permitirão
compreender melhor essas diferenças e a própria rede de trocas. Sintetizei os usos das plantas
em Caviana em quatro categorias gerais: alimento, remédio, ornamento e matéria-
-prima105. O Gráfico 4.5, sobre os usos gerais das plantas, indica que 68% das plantas
cultivadas são consideradas alimento, enquanto 19% são remédio e apenas 7% e 6%,
ornamento e matéria-prima, respectivamente. Considerando a disparidade entre o tamanho das
áreas (principalmente dos canteiros em relação aos terreiros e às roças), é importante
avaliarmos a distribuição interna de cada uma dessas categorias. Enquanto os alimentos
compõem 83% dos terreiros, 66% das roças e 54% das áreas abandonadas, representam
105
É importante observar que muitas plantas apresentavam mais de uma forma de utilização. Nestes casos, optei
por contabilizar as plantas apenas uma vez, de acordo com sua função principal, isto é, aquelas mais utilizadas
pelos ribeirinhos. No entanto, a diversidade de funções para cada planta pode ser encontrada na tabela em
Anexo.
229
Juliana Salles Machado
apenas 32% nos canteiros – e cabe lembrar que a categoria inclui plantas usadas no
processamento de alimentos, como os temperos. Já os remédios representam 47% das plantas
dos canteiros, 33% das roças, 14% das áreas abandonadas e apenas 6% dos terreiros. As
matérias-primas estão concentradas nas áreas abandonadas (32%) e aparecem pouco nos
terreiros (6%). Os ornamentos têm mais espaço nos canteiros (21%) e menos nos terreiros
(5%).
230
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Distinto da série de gráficos anteriores, estes últimos não tratam da riqueza de plantas
em cada área de plantio e sim as diferenças no uso de cada área. A partir deles (Gráfico 4.5 e
4.6) podemos concluir que:
as roças são áreas também voltadas para a alimentação, mas com uma provisão
substancial de remédios.
Temos, portanto que todas às áreas são multifuncionais, isto é, possuem uma gama
variada de plantas capazes de suprir uma família com remédios, alimentos, matéria-prima e
ornamentos. No entanto, apesar dessa diversidade podemos perceber uma tendência de uso
maior em cada uma delas. De um modo geral, podemos dizer que os terreiros são os espaços
dos alimentos (principalmente frutos de árvores perenes); as roças espaços de alimentos
advindos de plantas de ciclo curto; áreas abandonadas seriam os locais para a busca de
matérias-primas e os canteiros a fonte principal de remédios e ornamentos.
231
Juliana Salles Machado
área de maior visibilidade e acesso. Os remédios assumem também um papel importante nos
terreiros, assim como nas roças e áreas abandonadas.
232
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Por fim, analisamos o último conjunto de gráficos (Gráficos 4.7, 4.8, 4.9 e 4.10)
relativos à proveniência e aos doadores das plantas. As siglas adotadas para essa etapa da
análise podem ser encontradas na tabela ao lado. Trata-se de doadores pertencentes à família
da dona da planta (ego) e de seu marido, assim como afins, amigos, vizinhos e também outras
formas de proveniência da planta, como a compra, a coleta de mudas da floresta, etc. Como
família, estou me referindo não apenas aos pais, mães e irmãos, mas também aos cunhados,
cunhadas, noras e todos aqueles incluídos no que os ribeirinhos chamam de família. Não está
incluído nesta noção, no entanto, o compadrio, já que apesar de serem chamados de parentes
localmente (incluindo, portanto, as relações de afinidade nesse conceito), em geral, eles não
são incluídos quando os ribeirinhos se referem à sua família.
233
Juliana Salles Machado
234
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
235
Juliana Salles Machado
Temos, portanto que a origem das matérias-primas não está relacionada a um presente
de um parente ou um amigo e sim oriunda da “natureza” de um modo geral106. As mulheres
retiravam essas mudas de áreas abandonadas (ver tabela) ou já as encontravam nos novos
terrenos. Assim elas não fazem parte de uma rede de reciprocidade atual, mas uma relação das
mulheres com os espaços previamente manejados. Elas diferem daquelas desconhecidas, pois
marcam plantas que são importantes para as mulheres como referencial de “lugares de gente”.
São assim, plantas valorizadas por sua utilidade e que são procuradas em áreas anteriormente
antropizadas e possuem um papel importante na escolha dos novos locais de habitação.
Já os ornamentos parecem ser os mais lembrados. O que podemos entender com certa
facilidade uma vez que estão associados geralmente a presentes oferecidos por parentes e
amigos quando de uma visita, ou ainda por maridos e namorados. Eles têm um lugar especial
na entrada da casa, e, como vimos no capítulo 3, estão localizados em locais com grande
visibilidade, para serem vistos por todos. A importância estética dos ornamentos já foi alvo de
pesquisa por Murrieta & WinklerPrins (2006), segundo os quais “as flores parecem assumir
para as mulheres um caráter mais emocional do que outras plantas” (2006:288). O aspecto da
visibilidade também é enfatizado pelos autores através de uma de suas colaboradoras “um
106
Os termos usados localmente para atribuir essa origem natural são “grelo da natureza”, “filho natural da terra”
ou “vem da natureza mesmo”.
236
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
jardim diz muito sobre quem o mantém e tem um impacto especial sobre as primeiras
impressões das pessoas que visitam a casa, principalmente entre as mulheres” (Murrieta &
WinklerPrins 2006: 285). Os ornamentos, são presentes e apesar de também serem trocados
os significados dessa forma de troca parecem distintos daqueles relacionados as plantas de
remédio.
O que se lembra e o que se esquece sobre cada planta, nos indica que, diferente do restante
das categorias de matéria-prima e alimentos, as plantas de remédio estão associadas à relações
pessoais femininas. Para participar da troca de plantas de remédio é importante manter na
memória quem a deu. Isso revela a importância na manutenção das trocas, pois a importância
dessa informação está relacionada a necessidade de retorno da planta e/ou na participação de
237
Juliana Salles Machado
relações de cooperação. Para melhor compreendermos de que forma essa rede de trocas é
mantida, vejamos os gráficos sobre os doadores.
238
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Vimos, portanto, que as mulheres são as participantes mais ativas na transmissão nas
redes de troca e que, mesmo entre os homens, a participação está relacionada à relação de
parentesco com a mulher que planta (ego). Vimos no Capítulo 3 a relação das mulheres com
as plantas e como essa prática do plantar está associada ao cuidar, uma lógica particularmente
feminina relacionada à educação dos filhos e ao seu papel na manutenção da domesticidade.
Agora, o que esses dados nos indicam é que além da sua relação com o plantio, também são
as mulheres que atuam na circulação das plantas. Isto não é trivial, tendo em vista o papel
geralmente atribuído aos homens no que tange à mobilidade. Mesmo em Caviana, a
dificuldade de transporte e a associação masculina com os barcos e a água nos levaria a
associar qualquer forma de distribuição ao domínio masculino (Figura 4.3). Mas esses dados
quantitativos nos mostram ao contrário, o fato das mulheres assumirem um papel importante
na circulação das plantas. Trata-se, portanto de dois processos: a relação entre mulheres e
plantas através do próprio plantar e uma vez estabelecidas em seus canteiros e terreiros, a
troca desses espécies com parentes, amigos e vizinhos (Figura 4.4). Vimos ainda que cada
tipo de planta tem uma forma de distribuição distinta e que há para as mulheres diferenças de
valoração e memória em cada uma delas. Agora, é importante, portanto separar a análise dos
doadores por tipo de planta. Assim nos próximos dados analiso o que é dado por quem, isto é,
que tipos de planta são dadas por que parte da família ou de outros doadores (Gráfico 4.11).
Todas as pessoas contabilizadas como doadoras podem ser encontradas nas tabelas acima
apresentadas, assim como no detalhamento dos gráficos que apresentarei em seguida. As
abreviações usadas podem ser encontradas na legenda (ver Tabela 4.6).
239
Juliana Salles Machado
240
Figura 4.3: Exemplos de homens nos barcos de médio porte usados para o comércio de produtos e
mercadorias na ilha e nas cidades prróximas. Fotos: Juliana Salles Machado.
241
Figura 4.4: Exemplos de homens, mulheres e crianças nas canoas, chamadas localmente de cascos ou
montaria, transporte mais utilizado no interior e margens da ilha. Fotos: Juliana Salles Machado.
242
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
ego, com 45% das ocorrências, assim como da família de seu marido, com 26%. Os homens
da própria família de ego representam apenas 13% dos doadores, perto dos amigos, com 10%.
243
Juliana Salles Machado
Antes de aprofundar essa afirmação, vejamos o detalhamento dos dados acerca dos
doadores de plantas segundo categorias de parentesco (Gráfico 4.13). No Gráfico 4.13 vemos
que a transmissão de remédios é a mais frequente entre as mulheres e está concentrada na mãe
e na sogra, sendo seguida, com frequência muito menor, da filha, tia e cunhada. Ainda na
esfera feminina, os alimentos e ornamentos são mais diversificados, sendo doados pela sogra,
mãe, tia materna, primas e filhas. Já os doadores masculinos são praticamente dois (Gráfico
4.12): o pai e o tio materno envolvidos na troca de alimentos, com uma muito tímida inclusão
do sogro. Já entre os remédios, o pai concentra a transmissão quase exclusivamente, com uma
pequena participação do cunhado (marido da irmã).
A análise dos dados coletados apresentados nos gráficos acima confirmou a relação
prioritariamente feminina com as plantas, discutida no Capítulo 3. Mais do que isso, os dados
indicaram as diferenças existentes entre as plantas, os seus locais de plantio e as pessoas
envolvidas. O compartilhamento dos alimentos se mostrou mais diverso por incluir um maior
número de tipos de plantas e por abarcar uma área mais ampla do que a circulação das plantas
de remédio. Também nessa esfera percebemos a presença masculina e os doadores mais
diversos, entre homens e mulheres. Tais informações aliadas à ausência de uma valoração da
244
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
memória da doação, nos remetem a uma partilha da comida que ocorre entre parentes e é
comum em toda a Amazônia ribeirinha. Ela difere em qualidade da troca existente entre os
remédios. Com circulação menor e mais restrita às mulheres, sua troca parece ser mais
valorizada e lembrada e não uma prerrogativa da família. No Capítulo 3, apontei como o
plantar faz parte de uma rede de ensino-aprendizagem passada de mãe para filha, ou entre
irmãs no interior de seu contexto doméstico. Esta aprendizagem é internalizada enquanto a
filha ajuda a mãe no cuidar de seu canteiro. Quando se casa e passa para o grupo doméstico
do marido, a filha pode finalmente exercer seu conhecimento sobre as plantas através da
formação de seu canteiro. Neste momento temos o início da formação de seu canteiro, o qual
as plantas são transmitidas em geral de mãe para filha, e entre irmãs, processo bastante
documentado e registrado através das análises feitas neste capítulo, quando a mãe de ego
assumiu maior destaque como provedora de plantas. Também neste momento, podemos ter a
participação da sogra e até mesmo das cunhadas, que podem colaborar para a formação do
novo canteiro da recém-chegada. Uma vez formado o canteiro, sua dona passa a poder
integrar uma rede mais ampla e variada de reciprocidade feminina, esta pouco exemplificada
quantitativamente, devido a sua larga escala temporal, contudo ainda visível através da
presença das vizinhas, comadres, benzedeiras e amigas. Neste momento, já longe de sua
família e inserida no grupo doméstico de seu marido, a troca atua no estreitamento dos laços
com a nova família e também como forma de criação e expansão de uma rede de
sociabilidade inedependente de sua mãe. Ela figura-se como uma rede de apóio mútuo e
compartilhamento de um conhecimento especializado que a mulher consegue manter longe do
suporte materno.
Em Caviana, o padrão de residência está centrado dos ribeirinhosnas margens dos rios
e igarapés ou em tesos não inundáveis e em várzeas sazonalmente alagadas. Como discuti no
Capítulo 2, os homens detêm o conhecimento e o domínio do transporte fluvial (barcos
médios a grandes), com exceção das canoas, chamadas localmente montaria, a que as
mulheres têm acesso. O dito domínio masculino do transporte restringiria o acesso das
mulheres não só ao contato externo, mas principalmente sua circulação no interior da ilha. A
literatura sobre comunidades com padrões de residência virilocal reitera o rompimento das
redes de sociabilidade da mulher com sua família depois do casamento, assim como a
245
Juliana Salles Machado
literatura sobre sistemas de troca normalmente estão voltadas para o universo masculino,
sobretudo as trocas cerimoniais (Strathern 1988; Graeber 2001). Na Amazônia, este é
claramente o caso do sistema do alto Rio Negro (Reichel-Dolmatoff 1996; Hugh-Jones 2001).
Os dados de Caviana nos mostram que, por meio da rede de trocas de plantas entre as
mulheres, elas mantêm a sociabilidade com seus parentes, mesmo em contexto virilocal. Mais
do que isso, a troca ensejou a construção de uma rede de reciprocidade independente dos
coletivos masculinos, estes últimos pautados em grupos de trabalho, comércio de mercadorias
com a cidade e política em geral.
246
Capítulo 5:
Figura abertura capítulo 5: Tereza à luz do lampião. Foto: Juliana Salles Machado
247
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
5
PLANTAS QUE CURAM:
248
Juliana Salles Machado
Apesar do trecho citado de Gow estar relacionado a um contexto indígena, ele poderia
ser facilmente aplicado aos ribeirinhos de Caviana. O termo mais corrente em Caviana para se
referir a esses agentes supremos é “mãe”. Segundo Tereza “todo lugar tem uma mãe, tem seu
dono. Ela pode fazer mal para a gente. Pode dar uma febre, até levar ele com ela. (...) É a
mesma mãe dos bichos e das plantas”. Há, entre eles, a mãe-do-mato, a mãe-dos-bichos e a
mãe-d´água. A referência à figura materna em Caviana seria correspondente àquela de
“dono”, conforme demonstrado na fala de Tereza acima (e na discussão sobre o tema no
Capítulo 3), ou ainda de “mestre”, termo mais comumente utilizados nos contextos indígenas.
A associação entre as figuras de mães e os “donos” ou “mestres” fica evidente no contexto
indígena do norte do Amapá, entre os já mencionados grupos indígenas Palikur, Karipuna,
Galibi-Marworno e Galibi do Oiapoque108. Entre eles a cobra mitológica (também referida no
107
“Beyond the landscapes of the living and dead humans, and encapsulating them, are the generalized by the
supreme agents, the ‘owners’ and ‘mothers’ of the forest and river. These agents, variously described as giant
anacondas and as beautiful tall white foreigners, create and maintain the forest and riverine domains […] In
order to live humans must invade these spaces in hunting, fishing, travel, and especially in the creation of
specific landscapes of villages and gardens. In response, the powerful beings inflict humans with sickness and
death. Although human sorcery is the commonest diagnosis for sever or fatal illness, killing power ultimately
derives from these powerful beings, whether directly or through the medium of shamanic use of these powers”
(Gow 1995:54-55).
108
O primeiro pertence ao tronco linquistico arawak, enquanto os dois últimos karib. Os Karipuna, atualmente
são falantes do Patoá, língua geral do norte do Amapá, mas sua formação é heterogênea oriunda da mistura de
populações ribeirinhas da região deltaica do rio amazonas e do salgado paraense e os índios do Uaçá.
249
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
relato de Gow como “anacondas gigantes”) representa um mito de origem, de gênese ou ainda
de migração. Conforme mencionamos no Capítulo 3, há muitos tipos de cobra, sendo que uma
delas é chamada pelos índios em português como “mãe-d´água”, mesmo termo usado pelos
ribeirinhos da ilha. A referência materna à cobra é reforçada no mito, onde um casal de cobras
adota um humano que os chama de “pai” e “mãe”. A referência materna é usada ainda entre
os Galibi para se referir à mães de bichos como a “mãe-da-piranha” e a “mãe-do-jacaré”,
mostrando um uso do termo muito semelhante àquele apresentado em Caviana.
Na ilha, estes entes também surgem na forma de uma figura chamada de mãe-do-
lugar, denominação que, como nos fala Tereza, representa “a mesma coisa” que as mães dos
bichos, mato e da água; ou seja, é um ente que representa de forma genérica todas as mães.
Adotarei esta denominação para me referir a todos esses entes protetores, tanto da terra como
das águas. A ideia de existir uma mãe-do-lugar, conforme essa designação local é interessante
já que um lugar é um espaço que agrega um conjunto específico de coisas, seres e
características topográficas. Eles podem ser a curva de um rio, um barranco seco, um clarão
na floresta; quase todos os espaços são potencialmente lugares. Mas eles só se tornam assim
designados quando são alvo de afeto e histórias pessoais e familiares, ou ainda relacionados a
histórias ancestrais, “dos antigos”. Novamente aqui retomo o contexto do norte do Amapá, já
que o mito da cobra grande está intrinsecamente arraigado à paisagem, como vemos no trecho
citado de Vidal (2007:33):
250
Juliana Salles Machado
As plantas de remédio são trazidas das casas dos ribeirinhos, onde as mulheres as
cultivam em canteiros ou plantadas no entorno de suas casas. Ao longo desta tese, tratei de
analisar as relações estabelecidas entre as mulheres e as plantas em Caviana, não em termos
de sua estrutura ecológica ou econômica, mas como fonte de significados sociais e
simbólicos. Enfatizei assim a importância desta relação como parte constitutiva da dinâmica
social na ilha, especialmente entre as famílias e a comunidade. Afastei-me, portanto, de uma
perspectiva agroflorestal pautada no manejo ambiental para focar minha atenção aos
significados atribuídos à essa prática. O contexto feminino do plantar me levou a uma nova
109
A idéia de uma ética na relação dos humanos com não-humanos já foi exposta de maneira diversa por
diversos autores, entre os quais, por exemplo, Reichel-Dolmatoff, através da ideia de um “equilíbrio” da natureza
entre os Desana (1996) ou por uma “ética da moderação” conforme citada por Fausto (2001, 2007) e Descola
(2004, 1986) ao tratar especificamente da relação entre humanos e animais.
251
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
chave interpretativa baseada na idéia do cuidar. Este cuidar, que segundo Baier (1992), faz
parte da dinâmica social prioritariamente feminina, baseada na experiência materna, no papel
das mulheres com seus filhos e com suas casas. Essa associação do cuidar ao modelo materno
se mostrou fundamental para entendermos a sociabilidade feminina em Caviana, já que
norteia grande parte das relações entre humanos e entre estes e os “encantados”. A partir da
noção do cuidar podemos compreender a casa ribeirinha, a família e a própria idéia de
coletivo na ilha. Ao propor um modelo feminino do cuidar, Baier propõe uma dualidade entre
uma ética pautada nas noções de obrigação, contrato e justiça e outra pautada no amor, no
cuidado e na cooperação. Tais “perfis morais” contrastantes estariam relacionados a uma
questão de gênero: enquanto o primeiro seria inerente aos homens, o último estaria
relacionado às mulheres. Essa esfera moral feminina estaria diretamente relacionada a seus
interesses na educação e criação de seus filhos (associação que serviu de inspiração às
chamadas “culturas gerativas” de Overing 1999). Overing (1999) destaca que tais valores
morais levam a uma dinâmica social pautada “mais pela ênfase sobre o informal e o íntimo,
do que sobre a regra e sua obediência” (Overing 1999:82). Ainda nesse sentido, Baier chama
atenção para o fato dessa ética do cuidar acrescentar um viés mais comunitário à socialidade
feminina. Em Caviana, a idéia do cuidar é revelada na relação dos “encantados” com a
floresta, as águas, os animais e os lugares em geral, pelas denominações que invocam a
maternidade, como as já mencionadas mães-dos-lugares. Essa figura materna tem como alvo
de seu afeto e cuidado seus filhos, os vegetais, animais e aspectos topográficos em geral.
252
Juliana Salles Machado
5.1 Os outros
110
“[…] they are ‘people’ in the discourse because they are moral and knowledgeable agents, but they are not
subject to birth or death, they generate and maintain space through their awesome knowledge” (Gow 1995:55).
253
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Meu pai tinha visto logo cedo aquele movimento, pessoal aqui chama de
visagem, assoviador. Quando foi assim umas duas horas e cachorro
começou a latir e pegaram assim tipo um pau e bateram na porta da casa.
Pah! E o cara boiou-se lá e todo mundo se acordou. Papai disse, isso aí
deve ser o dono daquela igaçaba que não ficou satisfeito com nós e
quando foi no outro dia nos colocamos de novo lá no mesmo lugar, no
buraco. Jogamos terra em cima e nunca mais vimos nada. (Severiano,
Ilha Nova, Caviana, 2006)
Entre os “encantados” temos a figura das “mães” que podem estar relacionadas ao
mato, às águas, aos bichos e aos lugares. Dentre estas, a “mãe-do-lugar” é a categoria mais
abrangente, pois ao cuidar dos lugares ela associa tanto a floresta e os animais, quanto as
águas. Depois da “mãe-do-lugar”, a “mãe-do-mato” parece ser a categoria mais usada pelos
ribeirinhos. Ela vive no interior da floresta e a protege contra os humanos que a destroem com
a caça excessiva ou por desnecessárias derrubadas de árvores. Como ente antropomorfo, ela
pode ser vista no meio do mato, numa caça, durante o trekking, na limpeza da roça, na busca
por alimentos ou em sítios antigos. Normalmente se apresenta em forma de mulher, mas há
sempre um índice de que não é gente de verdade, pois sua forma nunca é completamente
humana. Roberto, por exemplo, me relatou tê-la encontrado uma vez e soube identificá-la,
pois ela tinha cabelos de fogo e depois ela teria corrido para o interior da floresta. Ela pode
capturar pessoas e deixá-las presas na floresta durante dias e até matá-las ali de fome e sede.
254
Juliana Salles Machado
Este ente poderoso atua também através de bichos e plantas, no entanto, a figura mais
usualmente associada aos bichos é a “mãe-dos-bichos”, mais relacionada à caça. Os bichos
sob sua influência têm o poder de lançar feitiços contra os humanos, conhecidos como
“flecheiros”, como consequência do não cumprimento da ética da sua relação com os
humanos, como, por exemplo, alguma maldade desnecessária aos animais na hora da caçada
ou a sobrecaça, isto é caçar mais animais do que o necessário para alimentação da família ou
grupo. Um “flecheiro” pode resultar numa “panema”, ou o azar do caçador, que não
conseguirá caçar nada, ou até em seu adoecimento, quando ele pode ficar fraco, emagrecer e
até morrer. Aos bichos, também estão associados aspectos de gente, como quando Tereza fala
que “capivara grita igual gente”. Nesses casos, todos ficam dentro de casa, pois caso contrário
morreriam, como assegura Tereza “sai de dentro de casa para morrer”.
O termo “mãe d´água” é muito também usado em Caviana, apesar de em geral, eles
usarem a figura da “mãe-do-lugar” ao falarem sobre os aspectos mágicos dos bichos da água,
como, por exemplo, o boto (para mais discussões sobre botos ver Slater 1994) ou a cobra
grande (para mais discussões sobre a cobra grande ver Vidal 2007) – ambos seres que
abordarei com mais detalhe abaixo. Dentre os “encantados” encontramos ainda os espíritos de
pessoas mortas, que podem ser parentes ou figuras desconhecidas para as quais os ribeirinhos
usam uma atribuição genérica como “índio” ou “caboclo”. Sobre essa atribuição aos índios,
podemos ver o exemplo citado acima de Severiano e a urna funerária. Segundo ele: “naquela
época eu ainda era criança, não entendia nada, mas meu pai falou que era dos índios, dos
cabanos, como eles chamam”. João Brito, me conta que a Jandira, índia que se casou com um
branco na narrativa histórica da ilha (ver Capítulo1), “aparece nos campos de Monte Alegre
nos dias de lua cheia”. À esses espíritos das pessoas falecidas não é atribuída nenhuma
255
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
feitiçaria específica. Aliado à estes seres, temos também os santos católicos, que em geral não
figuram entre as visões de “encantados”, as chamadas “visagens”, no entanto estão sempre
presentes nas curas e rezas.
256
Juliana Salles Machado
feita por eles. No entanto, os ribeirinhos jamais formulam os animais como humanos ou
pessoas (a não ser para o caso específico do boto). Trata-se sempre de uma relação dúbia e
instável, um estado de “quase gente” ou “como gente”, condição aferida através quase-visões
e quase-audições.
No caso particular dos botos temos figuras permanentemente ambíguas, meio bicho,
meio gente (Slater 1994) e que, diferente dos outros animais, parecem possuir uma capacidade
agentiva direta, independente de sua “mãe”. O boto é amplamente conhecido em toda a
amazônia, especialmente entre os contextos ribeirinhos, como figura “mágicas” e
“encantadas” (Slater 1994). Em Caviana ele assume uma figura humana e tem poderes
semelhantes aos dos bichos – pode lançar flecheiros, ou feitiços, como a paralisia da fala e
dos músculos, ou fazer com que a pessoa fique fraca, doente e chegue a morrer. Slater
(1994:45) associa-os à chamada “magia negra” (black arts), nas quais eles seriam auxiliares
dos humanos nas feitiçarias. Segundo Tereza, “o boto vira homem, parece homem mesmo,
mas dá para saber que é boto, porque tem furo na cabeça que joga água”. Essa transformação
em homem ou mulher, é marcada em vários relatos trazidos por Slater (1994), que atribui sua
origem a uma “cidade encantada” (enchanted city) que estaria localizada no fundo das águas
(p.45). Em Caviana, diferentemente dos bichos, o boto prega peças na casa das pessoas: muda
as coisas de lugar, prende os cachorros em cestos de palha ou balança a rede, como aconteceu
com Flávio, no Taxipucu, único caso que ocorreu durante minha estadia na ilha. Ao tomar a
forma de um homem, um boto pode namorar e ter filhos com mulheres; em forma de mulher,
pode fazer um homem se apaixonar e levá-lo para o fundo do rio. Mas, como as figuras das
“mães”, apesar da sua forma humana, o boto também sempre tem um indício de que não é
gente – por exemplo, um órgão genital excepcionalmente grande.
257
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Cito dois relatos sobre a cobra grande que me foram contados no Pracutuba. O segundo foi
contado por Teotônio e se referem a família de Adolfo e Roberto Figueiredo.
O relato de Deodora reforça esse caráter da quase-visão e da sua percepção por meio
da audição. Também nos mostra a associação desse animal mágico com as águas, seja pelo
local de sua morada, o grande igarapé, ou pela sua capacidade de agir com o “tempo”, isto é,
de produzir chuva, trovões e raios. Entre os ribeirinhos há sempre uma “certeza” da sua
existência e a discussão gira em torno de qual está o seu tamanho e onde ela está agora.
258
Juliana Salles Machado
Eu posso dizer que sim porque meu pai viu neste rio [Pracutuba] logo
acima, na curva do igarapé velho que chamava-se aiwawa. (...) quando
meu pai e um outro sobrinho dele que já estava rapaz vinha atravessando
tinha cessado um enorme tempo, porque esses bichos, é uma coisa que
parece mentira, mas é verídico, elas tem a formalidade de chamar,
abulharem uma tempestade dessas, de mundiar também, essa jibóia. Se a
pessoa estiver ali na beira da ilha e tudo isto aqui é rio, é fundo, e ela
bóia aqui ela tem probabilidade de captar essa pessoa que está na beira
da ilha, demora vem de lá dizendo que é um pau de lenha e ele tava
querendo amarrar o pau e morrer. (Teotônio, Pracutuba, 2006)
259
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
ele na praia, na beira. Ela já tinha vomitado ele lá, porque ele estava de
roupa, ela engoliu com roupa e tudo e a barriga não suportou. Chegou lá
fora na baia, ela vomitou ele. E depois dele foram três, quatro filhos do
finado Firmo Figueiredo. A cobra grossa que boiou lá nesse rio Pacajá.
(Teotônio, Pracutuba, 2006)
A cobra grande apresenta-se aqui como um ente poderoso do mundo das águas que
tem o poder de capturar pessoas e levá-las para o fundo dos igarapés, assim como manipular
forças da natureza. Histórias da cobra grande são ouvidas em muitos contextos amazônicos,
mas gostaria de chamar especial atenção ao mito Palikur (Figura 5.1). Meu interesse particular
nesta versão mítica se deve a principalmente três motivos: primeiro, é um grupo arawak,
tronco linguistico atribuído aos índios que habitavam a ilha Caviana no período colonial e que
a população ribeirinha apresenta diversos aspectos de continuidade discutidos ao longo deste
trabalho; segundo, este grupo indígena está assentado em um local geograficamente próximo
ao contexto insular de Caviana; e finalmente, o aspecto mais importante, o mito da cobra
grande do norte do Amapá, apresentou inúmeras semelhanças com os fragmentos da
cosmologia ribeirinha que exploro nesta pesquisa. Já mencionei anteriormente, no Capítulo 3
e na introdução deste capítulo, que os Palikur utilizam do termo “mãe” para se referir a
relação de dono/mestre com os bichos, termo que, como vimos, é amplamente usado em
Caviana. A associação entre os dois contextos, não se dá apenas através de uma referência ao
parentesco para definir essa relação. Na versão dos povos do Uaçá, há sempre uma cobra
benéfica, terapeutica, que domina as curas com plantas e cuida da casa e da saúde das
“pessoas” através de banhos, curas e remédios de planta. Chamada pelo índio-herói de mãe,
ela concentra o ideal da mulher-mãe de Caviana.
Nos relatos que trouxe da ilha, as cobras estão sempre associadas a histórias pessoais
ou familiares. No entanto, apesar da história narrada por Teotônio sobre o ataque da cobra
grande sobre os quatro irmãos de Adolfo, este último nunca me falou muito da cobra. Quando
o questionei sobre o assunto, ele me falou que havia quatro cobras grandes na ilha, que
cobriam a extensão praticamente inteira dos rios e moravam nas suas partes mais fundas. Elas
sempre apareciam e capturavam pessoas, no entanto, duas delas “já morreram”. Sua morte,
260
Figura 5. 1: Acima, cobras grandes sendo flechadas ao sairem da armadilha construida dos Humanos
(apud Vidal 2007); abaixo, foto do banco que representa a cobra Kadaykahu (apud Vidal 2007).
261
Juliana Salles Machado
262
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Poderíamos adotar o mesmo termo em Caviana, já que todos os itens elencados são
motivo de busca pela cura em Caviana. Essa busca se dá tanto pela procura dos poucos
agentes de saúde presentes na ilha 113, como pela única benzedeira atuante na área de pesquisa.
Fora da área de pesquisa, há um pajé que mora no rio Apani, mas devido à seca nesta região
sua casa se tornou de difícil acesso aos ribeirinhos de outras partes da ilha. Dessa forma, em
caso de perturbações mais complicadas, os ribeirinhos buscam os “experientes” de outros
111
Estão listadas todas as plantas consideradas de remédio. Para mais informações sobre os locais de cultivo,
função, etc. ver tabelas apresentadas acima.
112
Em Caviana, o termo usado seria “panema” ou “panemeira”.
113
Há apenas um agente de saúde na comunidade, localizado no rio Taxipucu, mas esse não possui posto de
atendimento e normalmente não tem muitos remédios e não possui formação de enfermagem. Há um posto de
saúde na comunidade vizinha, no rio Ubuçutuba, mas este também possui poucos remédios. O agente de saúde
responsável, um senhor de bastante idade, acabou aprendendo os remédios de planta, para poder atender a
comunidade que vinha procurá-lo em busca da cura por “remédios de farmácia”.
263
Juliana Salles Machado
De acordo com o trecho citado, podemos inferir que as curas das benzedeiras naquele
contexto ribeirinho também não passam pela possessão. A eficiência desse processo estaria
para Galvão no próprio ritual, através do reconhecimento coletivo das pessoas de seus gestos
e das palavras por ela proferidas. A ideia de cura pelo próprio ritual e não por um sistema
maior de crenças que lhe subsidiaria, é também abordada por Pacheco, para quem sua eficácia
estaria no “proferimento performativo”, isto, é, no “reconhecimento de que as palavras podem
realizar coisas” (Pacheco 2004: 21). As curas realizadas pela benzedeira da comunidade
analisada, Tereza, não envolvem nenhum processo de possessão ou transe. Ela inicia com o
diagnóstico da doença e se segue com as orações e remédios, mesmo processo relatado para o
264
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
contexto do baixo amazonas estudado por Galvão (1975). Contudo, um elemento pouco
enfatizado por este autor, como também por Pacheco, é o uso das plantas pelos curadores, não
apenas para benzer, mas também para a continuidade desse processo através da prescrição de
remédios aos pacientes. Ambos os autores atestam a presença de plantas de remédio como
parte integrante dos processos de cura entre os mais diversos curadores (aí inclusos os pajés);
no entanto, pouco dizem sobre o por que do uso das plantas.
Para benzer em Caviana, não há um preparo prévio, nem uma ritualização maior com
o uso de vestimentas próprias, música ou a participação de outros membros da comunidade.
Benzer é um ato mais intimista, realizado basicamente entre a benzedeira e o doente, podendo
estar presente também algum outro membro da família de ambos. O único objeto utilizado na
cura é um ramo de planta de remédio, podendo também ser utilizada água benta114. Após o
fim da reza é feito o sinal da cruz e a benzedeira receita ao doente um remédio de planta que
deve ser aplicado através de banhos, massagens ou via oral. Em alguns casos são receitados
114
A água é benzida pelos padres quando fazem suas visitas à ilha. No caso de Tereza, ela costuma pedir ao
padre para benzer um grande balde de água. Essa água benta e armazenada e posteriormente usada por ela para
benzer. Ele me conta que sempre tem água benta guardada para caso haja necessidade.
265
Figura 5.2: Tereza benzendo criança doente com planta de remédio. Fotos: Juliana Salles Machado.
266
Juliana Salles Machado
remédios de farmácia, e Tereza me conta que também mistura remédios de farmácia com
remédios de plantas. Tereza não fornece remédios à seu paciente, apenas os prescreve e
seus pacientes vão posteriormente procurá-los entre os seus parentes e amigos. Após o
processo de cura o doente ou seu parente paga a benzedeira com dinheiro. Não há um valor
estipulado já que para benzer Tereza não cobra nada. No entanto, cada família dá o que pode
dependendo da situação e da gravidade da doença tratada pela benzedeira.
267
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Vidal chama atenção como estas concepções de tempo não são excludentes,
permitindo a incorporação de novos agentes, novos fatos e servendo de base de sustenção para
interpretações diferenciadas. Este é o mesmo tempo à que Tereza se refere, um tempo que é
ao mesmo tempo ligado aos acontecimentos do passado, como a referência à Adão e Eva, mas
pode ser acessado no presente através do domínio do invisível, dos encantados e entes aos
quais as curadoras, como ela tem acesso. Retorno nesse ponto mais uma vez às palavras de
Vidal sobre o Uaçá, pois os contextos apresentam inúmeros paralelos e acredito que o
contexto indígena documentado no Amapá, possa nos ajudar a entender a cosmologia
ribeirinha em Caviana. Indagando a um índio sobre o tempo mítico Vidal (2007:29) fala: “se
este é o tempo do mundo real, o tempo do outro mundo, onde vivem os ‘bichos’, os
encantados e os Karuãna, não é real também?” A resposta obtida por ela foi: “sim é real. Mas
para Eles, não para nós, porque é invisível, nós não sabemos enxergá-lo, só o pajé. Eu sei
contar, mas não tenho força, não me comunico com Eles”.
Como vimos nos capítulos anteriores, todas as mulheres de Caviana mantêm pequenas
reservas de remédios em seus canteiros e sabem uma ou outra receita para sua fabricação a
partir da mistura de plantas. Algumas mulheres concentram mais espécies e outras sabem
mais sobre seu poder de cura. As primeiras são especialistas em plantas e tornam-se centros
de difusão, como Dica; sendo frequentemente visitadas por outras mulheres da ilha em busca
de matérias-primas para seus remédios. Seu conhecimento normalmente advém de sua mãe ou
de sua sogra e é transmitido às suas filhas ou noras. Já as últimas são as chamadas
“benzedeiras”, como Tereza, ou “experientes”, como sua irmã Nicota que mora em Afuá, que
detêm o conhecimento sobre as plantas e seus usos; ou ainda, distante da comunidade Frei
Crescêncio, o pajé Raimundo. Estes três curadores são visitados e chamados para realizar
curas e indicar quais plantas devem ser usadas e como agir para manter a pessoa curada. Fui
conhecer Nicota, a experiente. Na conversa, ela revelou que já aos sete anos percebeu que
tinha nascido com o dom e conta:
Eu desmaiava e começa a ver vultos, mas não tinha medo. Fiz uma
viagem para baixo da Caridade, em Caviana, e aí eles me apanharam
na embarcação, no meio do tempo [sob chuva forte], e voltaram para
268
Juliana Salles Machado
São João. Minha tia entendia da gaita – ela era parente da minha mãe
–, e me levaram para uma experiente, mas não deu jeito. Depois, me
levaram para Belém, para endireitar, mas não deu jeito. Me levaram
então para o Piarauara, e ele endireitou. Fez um trabalho, e foi três
vezes até que consegui entender eles e eles me entenderem. São
aqueles que se encantaram, que vão ser experientes; tem aqueles que
os caboclos chamam. Os encantados que ensinam os remédios. Os
encantados e santos andam juntos. Os banhos servem para afastar os
espíritos, o mesmo que a defumação feita nas casas.
269
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
Voltemos aos remédios de planta. As formas de utilização de cada uma são muito
diferentes, mas as mais comuns são os chás para beber, a mistura de plantas com álcool, água
benta, cachaça ou azeites como o de andiroba e copaíba, usados para banhos, ou ainda
plantadas em vasos, canteiros e terreiros em volta das casas ou queimadas para defumá-las.
Como mencionamos, as funções variam entre a cura de doenças comuns (diarreia e vômito,
inflamações, dores e febre) até as mais graves como derrame, dengue e malária, entre muitas
outras. As curas também agem contra as “maldades”; elas curam “flecheiros” de bichos e
feitiços de “mães-do-mato”, feitiços humanos, e “panema”, entre outros. Há ainda uma outra
forma de cura relacionada ao tratamento dos lugares.
270
Juliana Salles Machado
morador do Turezinho, é que era pajé e benzedor: “ele benze e ensina remédio”. Pergunto
pela diferença entre o pajé e ela, benzedeira, e ela responde: “a diferença não é nenhuma, mas
eu não sou pajé”.
As plantas agem nesse processo através da ativação, pelas curadoras, de seu substrato
não-humano original. As plantas sendo vegetais são filhas das “mães-do-mato” ou da “mães-
dos-lugares” e contêm em si poderes terapêuticos relacionados a sua origem. No entanto,
possuem pouca agência, ou uma agência secundária (1998, 1999), e não assumem uma forma
antropomorfa, ou seja, não conseguem por si só utilizar seus poderes (há algumas exceções
como as plantas contra mau-olhado plantadas no esteio das casas). Os vegetais, ao serem
domesticados pelas mulheres em seus canteiros se tornam uma espécie de filhos adotivos, as
mulheres então ativam seus poderes terapêuticos através da fabricação de remédios, tornando-
os assim fundamentais no processo de cura.
Acompanhei algumas ações terapêuticas de Tereza, dos quais descrevo duas, uma em
sua casa e uma na casa do doente. No primeiro exemplo, um casal chegou à casa de Tereza
com seu filho doente. A busca de cura de crianças é a mais comum e Tereza é muito
requisitada para isso. Tereza recebeu o casal e seu filho na sala da frente de sua casa e
perguntou o que acontecia com a criança. A mãe explicou que o bebê ainda pequeno sofria de
vômitos e diarreia. Tereza ficou quieta um momento e em seguida foi buscar uma folha em
seu canteiro. Quando retornou a sala, a mãe colocou o seu filho no colo, enquanto o pai estava
sentado em um banco mais afastado. Tereza iniciou com repetidos sinais da cruz na criança,
enquanto segurava em sua mão direita a folha de remédio. Continuou a repetir os gestos do
sinal da cruz, começando pela cabeça e descendo pelo corpo, demorando-se mais na região da
barriga. Enquanto fazia os sinais, murmurava rezas pouco compreensíveis. Apenas alguns
nomes de santos eram invocados em um tom mais alto e claro. Assoprou a cabeça do bebê
algumas vezes e dessa maneira encerrou o ato de cura. Receitou para a mãe um remédio de
planta que ela deveria misturar com o leite do peito e dar para o bebê tomar três dias. A
271
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
família então entrou para a cozinha e tomou um café com Tereza e Adolfo e pagou a
benzedeira com duas moedas de um real.
Na mesma semana ocorreu uma outra cura semelhante na casa de Tereza, mas neste
caso tratava-se de uma mulher adulta que sentia dores fortes na coluna e no quadril. Tereza
também a benzeu na sala da frente, logo antes do almoço. Tanto a família com a criança
doente quanto a mulher viviam próximo ao igarapé Ubuçutuba no extremo oeste da ilha, já no
fim da área considerada como da comunidade Frei Crescêncio. A grande maioria dos
membros da comunidade acredita que Tereza é uma boa benzedeira, capaz de curar uma série
de doenças. Mas também dizem que atualmente na ilha não existem mais pajés poderosos
como antigamente. Um exemplo disto é o ocorrido no igarapé Taxipucu quando Tereza tentou
curar uma “maldade” de uma mulher duas vezes, os sintomas sumiram temporariamente, mas
retornaram depois de certo tempo. Tereza então orientou a mulher e seus parentes a
procurarem um experiente em Afuá, pois a “coisa ruim” era muito forte. Também esta não
teve sucesso e a família acabou por trazer um Pajé, Raimundo, de uma parte distante da ilha.
272
Juliana Salles Machado
tratado uma ferida de Adolfo, marido de Tereza. Adolfo é um senhor muito respeitado e
querido por todos e nos últimos anos de minha pesquisa estava muito fraco e vivia doente.
Como morei na casa dele comecei a tratar um ferimento que ele tinha na orelha e depois um
“baque” oriundo de uma queda no salão ao lado de sua casa. A comunidade estava
preocupada com ele e queriam levá-lo à cidade (o que eu também recomendei), mas ele não
queria. Portanto usei os meus medicamentos e o pouco conhecimento que tinha para tentar
tratá-lo. Sua melhora impressionou alguns membros da comunidade, que passaram a comentar
a cura e por vezes fui solicitada a “puxar” alguns baques, como um na perna de Marli do
Socó.
Nesse sentido, poderíamos entender a ideia da cura através do “puxar” como algo que
o curador de fato esteja tirando da pessoa doente – este algo sendo estranho ao seu corpo e o
responsável pelo seu mal estar. Esse processo simples de cura, no entanto, difere do que a
benzedeira faz. Enquanto a ferida pode ser curada por bons puxadores, se ela persiste, isto é,
se apesar do tratamento ela “não quer fechar” ou se ela se torna crônica, então o caso passa a
ser da benzedeira. Isso porque, feridas que não cicatrizam ou perturbações crônicas são
indicadores de “coisas feitas”, “quebranto” ou “maldades”, semelhantes ao que Pacheco
(2004) chama de “doenças de pajé” (em oposição à doenças normais ou comuns). Nestes
273
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
casos, os ribeirinhos buscam tratamento com a benzedeira e se não for suficiente com uma
experiente. “Coisas feitas” e “maldades” são, em geral, oriundas de feitiçarias humanas de
forma direta ou através do intermédio de algum experiente. Conforme Gow nos indica, apesar
da feitiçaria ser humana “o poder de matar deriva, em última instância, desses seres
poderosos” (Gow 1995:54-55), se referindo aos entes da floresta e das águas. Em Caviana, o
poder usado pelos humanos seja na aplicação de feitiços (referidos localmente como “coisas
feitas”, “quebranto” e “maldades”) como para a sua cura (através da figura da “benzedeira” e
da “experiente”) também é exógeno, isto é, também advém da esfera não-humana. Este outro
é, no entanto, um conjunto de entes (os “encantados”) que concentram múltiplos poderes.
Não há uma distinção clara entre bichos e animais, já que toda essa cosmologia é
apresentada de forma lacônica e fragmentária. No entanto, podemos inferir uma diferença
entre tais categorias, já que apenas os bichos são capazes de manipular poderes contra os
humanos. Tereza explica que “bicho não dá mau olhado, ele flecha, assombra, espanta. Bicho
flechou, assombrou, espantou. Dá febre e, se não tiver trato, leva as pessoas para o buraco. Às
vezes, você não vê o bicho, passa perto dele, e ele assombrou”. Há também uma associação
com um ente específico, como com a “mãe-dos-bichos” que são suas protetoras e fonte de
seus poderes. Tais poderes e capacidades são apenas pertencentes aos bichos, situações para
as quais não é usado o termo animal. Portanto, os animais seriam aqueles seres da natureza
desprovidos de poderes subjetivos, enquanto os bichos estão relacionados diretamente aos
entes na forma de “filhos” e tem poderes que podem ser usados contra os humanos. Fausto
(2008, 2007, 2001) trata de uma diferenciação semelhante para o contexto indígena do Xingu,
propondo que bicho seria um animal-gente, assumindo assim uma posição de quase gente.
Sendo a figura das “mãe-dos-bichos” antropomórfica e os bichos sendo seus filhos,
poderíamos também associar essa capacidade agentiva dos bichos em Caviana como uma
forma semi humanizada.
274
Juliana Salles Machado
“panema”, ou seja, uma falta de sorte crônica (não exclusivamente na caça). Já as “visagens”,
são assédios de encantados em geral não causam panema, elas aplicam sustos, fazem
brincadeiras (como trocar os objetos de lugar, sumir com objetos, maltratar animais
domésticos) e em casos extremos, podem deixar a pessoa doente (os sintomas mais comuns
são fraqueza, perda de peso, palidez, apatia) e causar a sua morte. Todas as “coisas feitas”,
“quebrantos” e “maldades” tem cura, desde que, como nos apontou Pacheco (2004:236) se
encontre alguém com poderes maiores do que aqueles de quem realizou o serviço.
Com as crianças, acontece o quebranto, que causa “vômito, disenteria e febre e pode
até morrer. Com fome e quase de jejum, é pior”. Segundo Tereza, quebranto é “quando
alguém olha demais e fala que é muito bonito, que queria igual. Quando essa pessoa tem
alguma maldade no olhar, dá quebranto na criança, que pode até morrer”. Explicou ainda que
“olho gordo, quem dá é gente, e não bicho; o do bicho é diferente”. Quando vai benzer ela
sabe se o mal é de gente ou de bicho: “Os dois são perigosos e podem matar, dependendo da
força de quem deu e de se a pessoa souber ou não curar”.
275
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
276
Juliana Salles Machado
olhar para trás, pois, segundo ela, não se deve olhar de frente para a visagem. Perguntada o
que poderia ocorrer se olhasse, ela me disse que ele poderia virar a canoa e levá-la embora.
Esses e outros exemplos se referem a um ser antropomórfico associado em geral à água, mas
por vezes à floresta. Eles também são referidos como encantados, mas não estão associados à
pessoas falecidas. As visagens despertam o medo de que haja um rapto das pessoas pelo ente
antropomorfizado. Se uma pessoa começa a ter visagens muitas vezes, isto é, se é assediado
frequentemente por estes espíritos em forma de gente, ela começa a adoecer. Os sinais
comuns são aqueles já mencionados, como a fraqueza, a perda de vitalidade e peso e apatia,
sintomas que, se não forem tratados, podem levar a morte.
277
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
encontraram seu corpo. Perguntada sobre o caso, Tereza diz triste “eu falei, mas eles não
cuidam...”.
Perguntei a Tereza por que as casas do Taxipucu estavam tendo tantos problemas com
os encantados. Tereza explica-me:
Ela explica ainda que “as plantas são as fontes das curas dos lugares, assim como das
pessoas; elas apaziguam os espíritos”. Os poderes que perturbam a saúde e a sanidade das
pessoas podem ter diversas origens, como a mãe-dos-lugares, a mãe-dos-bichos e as pessoas.
Benzedeiras, pajés e experientes podem identificar a origem e podem curar ou não os males
do doente, dependendo de seu conhecimento e habilidade. Tereza diz que sempre curou e
cuidou de sua casa. Mesmo assim, duas filhas suas foram “atentadas”. Conta que elas “não
278
Juliana Salles Machado
podiam chegar perto do igarapé, que à noite não podiam dormir e queriam sair correndo para
o meio do mato ou se jogar no igarapé. Era preciso curá-las e segurá-las em casa”. A mãe-d-
lugar e o próprio lugar estão associados ao igarapé; dele vêm a força e as características de
suas mães e dos espíritos. Nas palavras de Tereza: “Igarapés profundos e grandes como esses
centrais, que passam por muitos lugares e matas e têm muitos bichos, são muito poderosos e
perigosos”.
Exemplos como este reforçam a existência desses dois tipos de doenças também entre
os ribeirinhos de Caviana. Assim, mais do que uma dicotomia entre curas para o corpo ou
para o espírito, teríamos uma para a presença de objetos estranhos ao corpo (“objetos
patogênicos”), como nos casos mais evidentes relacionados aos flecheiros de bichos, mas
também o mau olhado e a feitiçaria sempre referidos como coisas (“coisa feita”) que devem
ser tiradas do corpo (“tira a coisa ruim”); e outra para a ausência da vitalidade da pessoa,
como aqueles relacionados aos encantados e visagens (como no caso da perda dos
movimentos, da fraqueza, da perda da voz, etc.). Para ambos, as curas passam pelas
benzedeiras e experientes e com maior dificuldade pelos pajés. Os sintomas de cada um são
parecidos aos que Fausto (2001) menciona para os grupos indígenas: “a sintomatologia dessas
categorias de enfermidades também costuma ser diversa: dor em locais determinados, nos
casos diagnosticados como introdução de objetos patogênicos; mal-estar geral, febre sem
razão aparente, desânimo, tristeza; em suma, perda de vitalidade, nos casos de soul loss”
(Fausto 2001:337). No entanto em Caviana, não parece haver uma figura como o ser
antropofágico das cosmologias indígenas, responsável por “comer” ou “retalhar” o interior
das pessoas. O processo de perda da vitalidade não é explicado pelos ribeirinhos, apenas é
indicado como uma forma de rapto da pessoa, em geral associado ao meio aquático.
Como no exemplo de Flavio do Taxipucu, uma cura malfeita recai sobre o morador ou
os moradores (homens ou mulheres, dependendo do espírito que flechou – quando oriundo de
um bicho - ou enfeitiçou a pessoa – no caso de um encantado ou feitiçaria humana). O
diagnóstico é dado pelo curador e uma vez identificado, as pessoas e os lugares à ela
associados, como sua casa, terreiro e roça, são tratados com contínuos atos de cura e uso de
remédios. Nesse caso, o mais comum são os banhos, as defumações e o plantio de
determinadas espécies nos espaços afetados. Normalmente, essas doenças exigem tratamento
prolongado, que são constantemente repetidos pelas mulheres. Elas devem proteger a casa,
279
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
mantendo-a livre de maldades e feitiços e garantindo o espaço entre os entes do mato. Para
tanto, elas mantêm uma constante rede de troca de plantas entre seus familiares e amigos.
A rede de trocas é uma esfera de apoio mútuo e sua manutenção é importante para os
processos de cura das casas e das pessoas. Ao mesmo tempo, ela também tem a função de
controle, pois integrá-la implica em saber quem tem quais plantas e quais conhecimentos
sobre doenças, perturbações e curas. Tal conhecimento permite um controle sobre quem faz
ou tem o potencial de lançar feitiços ou conversar com os encantados. Apesar da pouca
importância dada pelos homens a tudo que se refere às feitiçarias humanas (chamadas de
“besteiras”) e aos remédios de planta, muitas vezes são os homens que transportam as plantas
de uma casa para outra – já que são eles que pilotam os barcos –, e, como vimos no exemplo
de Flavio no Taxipucu, foram os homens que saíram à noite à caça dos encantados. Entre os
homens as visagens e os flecheiros de bichos e panemas são os mais temidos, e muitos
seguem atos de prevenção e cura e restrições alimentares, principalmente àquelas relacionadas
as carne de caça, assim como cobram de suas mulheres as curas no caso de doenças e
“maldades”.
Mas a panema pode estar associada a outros contextos que não o da caça. Um exemplo
é a do fogo que as mulheres mantêm sempre acesso na cozinha. Elas dizem que é para evitar a
panema, isto é, para não ficar sem comida nem felicidade. Acredita-se que o calor do fogo e
280
Juliana Salles Machado
das pessoas é que mantém a casa em pé. Enquanto uma casa velha tiver gente e fogo, não cai;
se as pessoas saírem, ela cai. No caso de mulheres grávidas que pegam panema por ter
comido carne de caça sem antes de torná-la comestível, há várias formas de tratamento. Uma
delas é assar o fígado do animal caçado e mascá-lo com pimenta malagueta, e depois jogá-lo
para um cachorro comer.
Por serem as responsáveis pela cura de sua família e de sua casa – portanto, mais
próximas do mundo não-humano –, as mulheres também são tidas como potencialmente
perigosas. Muitos feitiços são atribuídos às mulheres de outras casas, normalmente atingindo
homens. Suas motivações são diversas, mas a grande maioria tem relação com um namoro
rompido, um casamento não realizado ou um filho não reconhecido. Acredita-se que elas
façam feitiços ou se valham de experientes para fazê-los. É papel da esposa ou da mãe
prevenir e curar esses feitiços lançados contra seu marido ou filho. Se ela falhar, uma
benzedeira ou experiente vai realizar a cura, mas é sua função manter a pessoa bem depois de
tratada. Curas, feitiços, trocas de plantas e todas as etapas envolvidas nesses processos são
pouco faladas em público. A troca de informações sobre quem está com qual doença ou
perturbação e quem precisa de que planta para curá-la é intensa entre as mulheres e
normalmente acontece no fundo da cozinha ou perto dos canteiros, lugares que os homens
pouco vão. O perigo associado ao conhecimento das plantas e ao papel das mulheres como
mediadoras entre humanos e não-humanos fica evidente nos grupos domésticos maiores, em
que há uma desconfiança generalizada entre as mulheres. Foi na relação entre as cunhadas é
que encontrei mais tensão e onde as acusações de feitiçaria foram mais frequentes. Essa
situação é agravada com a entrada de uma nova mulher no grupo doméstico. Neste momento,
ela ainda mora na casa de sua sogra e sua aceitação na casa é questionada pelas noras mais
antigas, que colocam em dúvida suas “verdadeiras intenções” com relação ao marido e à
família. Há suspeitas de feitiçaria e dúvidas quanto à paternidade de seus dos filhos. A
desconfiança ocorre entre as cunhadas, que, em geral, são primas entre si, mas ela nunca é
comentada com a sogra ou o sogro. Veríssima, prima de Tereza me disse “papai dizia que
281
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
115
Especialmente neste episódio, os nomes em itálico são fictícios, protegendo-se a privacidade das envolvidas.
282
Juliana Salles Machado
depois que foi para o Taxipucu, não fez mais nada. Acusam-na de se aproveitar do fato de a
família do marido ter “muita coisa”.
Praticar feitiçaria é considerado muito grave em Caviana, mas as acusações são muito
comuns. Foi por intermédio das acusações que obtive grande parte das informações sobre a
feitiçaria na ilha. Elas ocorrem em geral entre mulheres e pode ser feito pela própria pessoa
ou ser encomendado a alguma experiente. Em geral os feitiços são feitos através de orações e
rezas e, ao que parece, não são utilizadas plantas nesse processo. Os feitiços são feitos por
mulheres, mas podem ter como alvo homens e mulheres e são geralmente motivados por
ciúmes. É comum encontrarmos acusações de feitiços entre mulheres coresidentes e que são
concunhadas.
No mundo dos ribeirinhos de Caviana, como vimos ao longo dos últimos capítulos, há
um esforço contínuo para permanecer gente, isto é, para não ser transformado em outra
espécie de gente pelos seres não-humanos. Por isso se curam os lugares e as pessoas.
283
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
As plantas fazem parte dessa relação. Para se manter gente e afastar o perigo de se
encantar, as mulheres plantam remédios no pé dos esteios, impedindo que as visagens e os
encantados se aproximem. No canteiro, plantam-se remédios, quase todos para curar males
como mau-olhado, feitiço e flecha de bicho. As plantas também curam sintomas físicos como
diarreia, inflamação e vômitos, mas, na concepção ribeirinha, também esses estão ligados ao
sobrenatural. Pequenas ações como dizer alguma coisa, voltar de uma caçada ou do mato –
tudo pode ser perigoso, tudo pode acarretar alguma doença ao corpo.
A escolha de plantas para o terreiro não está diretamente ligada à subsistência, mas à
criação e manutenção de um “lugar de gente”, à constituição de uma “casa de gente”. Essa
responsabilidade impõe às mulheres uma preocupação constante com o cuidado para que a
área esteja sempre limpa, as árvores estejam espaçadas e, principalmente, que esse seja um
lugar de “plantas”, isto é, um produto de gente. Trata-se de traçar um limite entre o espaço de
gente e o mato, domínio das incertezas, dos bichos, dos “não gente”, do sobrenatural, do
medo. E também o mato tem sua outra face, de potencial – é o lugar onde as pessoas se
aventuram em busca de novas espécies para fazer remédios, de caça e de matérias-primas para
seu uso cotidiano.
As plantas curam. Elas não são ameaças. Mas como elas curam? Antes de ser plantas,
elas eram mato, pertenciam à esfera dos não-humanos. Quando as capturam, as mulheres
tiram-nas desse domínio por meio de uma “batalha” – a batalha entre permanecer mato (sob o
domínio dos não-humanos) ou se tornar planta (sob domínio da gente). Ao se tornar plantas,
deixam de estar sob este domínio, mas contêm aspectos desse poder oriundo do domínio do
sobrenatural. O ato é de domesticação não de uma espécie vegetal, mas do outro. Mas há
pouca agência, ela assume a forma de uma agência secundária (Gell 1998, 1999). Por isso,
individualmente, não são ameaças ao estatuto de estar gente. Como os bichos, que, embora
domesticados, não deixam de ser bichos, também as espécies vegetais, embora passem de
284
Juliana Salles Machado
mato a planta, continuam sendo ligadas ao seu substrato de origem. Assim, as mulheres
domesticam algo que não lhes pertence, mas pertence ao mundo não-humano.
A batalha de familiarização das plantas em Caviana é pessoal, feita em cada casa, por
cada mulher (“minha planta”). Mas a rede de trocas é social. As plantas são compartilhadas
nessa rede e, além da posse individual, tornam-se constructos sociais (“planta nossa”). Se
opondo ao receio do desconhecimento expressos nas falas de Tereza, “não se sabe quem é” e
“não se sabe da onde veio”, ser gente em Caviana é ter parente, é ter história, enfim é ser da
ilha ou “filhos desta Caviana”. Socializar as plantas é torná-las também um domínio do
parentesco. Trata-se de transmitir de geração a geração o conhecimento de familiarizar o
poder sobrenatural, domesticando-o por transformá-lo de mato em planta.
Sabemos agora o papel das plantas. Mas por que a troca? Vimos, nas análises sobre as
plantas, que há formas distintas de reciprocidade – aquela relacionada aos alimentos e a de
remédios. A primeira é amplamente realizada na ilha e consiste principalmente no
compartilhamento de alimentos entre mãe-pai/filha-filho, irmão-irmã/irmão-irmã e entre
cunhados(as). A partilha de alimentos permite tanto a diversificação do que se planta em cada
285
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
casa como uma rede familiar de apoio mútuo. Ela é importante na subsistência e na economia
familiar, mas não tem um valor simbólico agregado. Os doadores não necessariamente são
lembrados. Há uma expectativa de retorno, mas apenas de alimento. A circulação de
alimentos ocorre principalmente nas esferas do parentesco, mas não parece criar uma nova
esfera de sociabilidade. Trocar plantas de remédio é diferente.
286
Capítulo 6:
Figura abertura capítulo 6: Pôr do sol no Taxipucu Foto: Juliana Salles Machado.
287
Juliana Salles Machado
6
E DO QUE NOS FALAM AS PLANTAS?
Lugares são reconhecidos como processos temporais em que
todos os tipos de trajetória – de pessoas, de não humanos,
econômica, tecnológica, de ideias etc. – chegam, ou são trazidos,
para compor formações duradouras, mas também em constante
mudança, que se assentam em padrões distintivos de lugares, mas
que estão ainda inteiramente conectados com o mundo mais
amplo.116
Jones & Cloke
116
“Places are recognized as temporal processes where all manner of trajectories – of people, non-humans,
economies, technologies, ideas and more – come, are brought or are thrown together to assemble enduring, but
also changing, formations which settle out into distinctive patterns of places, yet which are still fully networked
into the wider world” (Jones & Cloke 2008:87).
288
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
afetiva com os lugares. Seu uso é a expressão maior do que Zedeño propõe como
territorialidade, isto é, o sentimento de pertencimento e vínculo a um lugar; sentimento que
fundamenta seu direito de uso e leva à disputas sobre seu acesso e usufruto. Este sentimento é
a base da formação de territórios. Apesar da delimitação espacial restrita da área de pesquisa,
focado em uma única comunidade, percebemos que a noção mais forte desse sentido de
pertencimento, está, não em uma única comunidade, mas sim nas relações entre comunidades
que compõem juntas um coletivo chamado de “filhos de Caviana”. Caviana é o território.
Extrapolando os limites das comunidades e micro-regiões, é ao todo da ilha Caviana que o
sentimento de pertencimento e a necessidade de permanência é mais forte. A grande
mobilidade de seus moradores entre os campos, matas e igarapés se dá, assim, não como
mudanças entre novas áreas, mas sim como formas de vivenciar partes integradas de um todo.
Essa pesquisa nos leva, portanto a vislumbrar um aspecto do fenômeno da territorialidade,
aquele viés mais íntimo, a relação entre uma pessoa e uma planta, que posteriormente se
expande e complexifica nas redes de troca de plantas e resignificação social das paisagens. Ao
longo dessa tese percorri o trajeto dessa relação tentando compreendê-la tanto no que se refere
ao seu componente temporal, quanto à rede de implicações na qual ela é socialmente
reconhecida e compartilhada. Ao traçar esse percurso descobrimos tratar-se de um valor
profundamente arraigado na socialidade feminina, o cuidar.
Os caminhos do cuidar
Ao longo desta pesquisa vimos que em Caviana, os papeis sociais são essencialmente
marcados pelo gênero e pela idade. Mesmo que complementares, a esfera feminina e a
masculina refletem práticas e conhecimentos distintos. Essa dualidade complementar é
marcada principalmente pelo campo da domesticidade. Ao trazer a ideia do “tornar
doméstico”, quero reforçar a associação das mulheres com alguns conceitos-chave, como o da
familiarização, da permanência e do controle, mas também o do fabricar e do cuidar. Os
homens não estão ausentes na construção dessa domesticidade, no entanto, à eles cabe
289
Juliana Salles Machado
também o novo, o fugaz, o enfrentamento, que se não mais o fazem na guerra, o conquistam
na caça, na abertura da mata, no domínio das águas e na exposição urbana. Permanência e
mudança, como sabemos, andam sempre juntas; assim como, por exemplo, é necessário abrir
novas áreas para que elas possam ser cuidadas e familiarizadas.
Contribuindo para essa (des)construção vemos surgir trabalhos que se voltam para o
significado desse manejo ambiental para as sociedades ribeirinhas, principalmente em termos
econômicos (Lima 2006, 2004 Barretto-filho 2006 e Castro 2006) e ecológicos (Brondízio
2006, 2004; Brondízio et al 1994; e Futemma 20006), mas também históricos (Nugent 2006,
1993; Harris 2006, 2005, 2000, 1998). Nessa mesma linha, encontram-se também os raros
117
O termo amazoneidade é usado por Nugent(2006:43) para se contrapor as “diversas versões oficiais da
Amazônia”, enfatizando que as versões locais ou regionais “não dependem de qualificações formais, mas
daquelas conferidas por ser um agente ativo num campo social em movimento”.
290
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
estudos de gênero com os trabalhos de Siqueira (2006) e Murrieta & WinklerPrins (2006,
2003). Minha pesquisa busca trazer à literatura amazônica, novos dados para melhor
compreender essa diversidade. Trilho aqui os caminhos abertos por outros autores de um
presente ribeirinho repleto de história e uma vinculação com o entorno natural essencialmente
significativa – assim partilho da ideia de uma floresta cultural (Balée (1989, 1994, 2006 a e
2006b; Balée e Erikson 2006; e Posey 2008, 1988; Posey e Balée 1989), que conforme seus
propositores marca a transformação da floresta através da ação humana, mas também reforço
a idéia de que tal antropização é também um constructo histórico (Balée 2006b, 1998; Fausto
e Heckenberger 2007; Heckenberger 2000, 2001; Heckenberger e Franchetto 2001,
Heckenberger et al 2003).
Ampliando a noção de floresta cultural proposta por Balée (1989, 1994, 2006a e
2006b), vemos aqui a versão mais intimista do processo de humanização da floresta, por meio
do foco na relação entre as mulheres e suas plantas. Inspirada nos trabalhos precursores de
Murrieta & WinklerPrins (2006, 2003), busquei na vida cotidiana das mulheres com o cultivo,
o significado desse manejo ambiental.
291
Juliana Salles Machado
depois da colonização da ilha, em uma época de muitas guerras e alianças, esses grupos
teriam retornado ao norte do continente.
A aproximação entre estes dois contextos foi pouco desenvolvida e, ao final deste
trabalho, se configura como uma nova hipótese de pesquisa. No entanto, apesar da
cosmologia ribeirinha abordada nesta pesquisa apresentar-se de forma fragmentária, os
paralelos traçados entre os dois contextos são muitos, como abordei ao longo dos capítulos
desta tese.
Vimos no Capítulo 2 que a vida cotidiana dos ribeirinhos é construída pelo ritmo das
águas (Harris 2005, 2000, 1998), quer dizer que, diferente de ser determinado por um meio
externo e opressor, esse entorno é internalizado e a partir dessa relação é que se constrói a
socialidade ribeirinha. Nessa relação baseia-se sua prática econômica pautada na venda e
compartilhamento de excedentes de frutas e produtos da floresta e da pesca (Lima 2006,
2004). Também nessa relação se escolhem os locais de moradia e circulação. Nesse mesmo
ritmo, se agregam grupos de trabalho, devotos de santos. Tudo feito junto ao “reparar” da
maré que seca ou alaga a terra. Terra esta, constantemente transformada pela ação humana
através das podas seletivas, roçagem de plantas rasteiras, adubação e plantio (Brondízio 2006,
292
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
2004). Transformação que se inicia em gestos pouco visíveis praticados cotidianamente pelas
mulheres em suas casas, ao trazerem sementes e mudas da floresta e da casa de parentes e
amigas e plantarem-nas em seus canteiros (Murrieta e WinklerPrins 2006, 2003). Esse
cuidado com o plantio é feito individualmente e seu resultado posteriormente socializado
através de uma rede de trocas de plantas.
A vida das mulheres em Caviana está baseada em uma prática do cuidar inspirada no
modelo materno, conforme proposto por Baier (1992) e, posteriormente discutida por Overing
(1999) para o contexto amazônico indígena como discutido no Capítulo 3. Assim as mulheres
cuidam de seus filhos, de seu marido, de sua casa, de seu grupo doméstico, mas também de
suas plantas. Esse cuidado com as plantas é o objeto dessa tese. Ao acompanhar as visitas
feitas por Tereza à seus parentes e amigas presenciei um cotidiano de troca de mudas e
compartilhamento de um conhecimento relacionado ao seu plantio e aos seus usos. Mas longe
de um discurso sobre lucro, sustentabilidade ou dietas alimentares, o que encontrei nessas
conversas foi um registro cosmológico fruto de uma ontologia mais comumente atribuída a
uma Amazônia indígena.
293
Juliana Salles Machado
estudos no que tange a sua eficácia-mágica. Os moradores contam sobre a existência de pajés
em tempos antigos, no entanto, atualmente só existe um pajé na ilha, pouco atuante por morar
isolado em uma parte distante e de difícil acesso. Pode ser que anteriormente em Caviana, os
rituais de cura dos pajés, fossem realizados pela possessão, como os são aqueles praticados
em cidades como Belém (Boyer 1999). No entanto, a ausência desse momento, me levou a
buscar a compreensão da cura, não apenas na performance do benzer, mas principalmente no
uso das plantas como remédios.
294
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
As análises dos dados acerca das plantas indicaram que em todas as áreas de plantio há
plantas de remédio, em menor ou maior quantidade. Atribuí isso ao fato da necessidade da
cura desses lugares para que possam ser utilizados pelas pessoas. Retomemos à cosmologia.
Os ribeirinhos acreditam que a floresta e as águas possuem mães que as protegem, elas são as
chamadas mãe-do-mato, mãe-dos-bichos, mãe-d´água ou, em Caviana em particular, mãe-
dos-lugares. Conforme indicado por Gow (1995) para o contexto indígena dos Piro, para abrir
uma nova área é necessário derrubar árvores, queimar, plantar, enfim, enfrentar esses entes
não-humanos, que respondem com doenças, “maldades” (para usar um termo de Caviana) e
mortes. O mesmo ocorre em Caviana. Assim para abrir essas novas áreas e depois para que
possam continuar a usufruí-las, os ribeirinhos plantam remédios específicos que são tidos
como capazes de curar o lugar. Curar o lugar é tido aqui como um ato de cuidar, e esse cuidar
é uma forma de compensar os danos causados as mães-dos-lugares, que respondem à esse
cuidado não causando doenças a seus ocupantes.
295
Juliana Salles Machado
que as mulheres assumem ao trazê-las para sua casa. Processo esse exteriorizado pelo uso da
denominação de mato para planta, que marca a passagem do vegetal de sua mãe não-humana
para sua mãe adotiva humana. Esse conceito se assemelha ao que propõe Fausto (2008) para
a relação de dono que os xamãs exercem sobre seus espíritos auxiliares, nesse caso animais.
Ao adotar essas plantas as mulheres também podem usufruir desses poderes que são ativados
na fabricação de remédios e usados tanto nos processos de cura feitos pelas benzedeiras e
experientes, como nas ações cotidianas das casas entre as mulheres. O conhecimento sobre a
fabricação dos remédios vem do diálogo estabelecido entre as benzedeiras e experientes com
esses entes poderosos, genericamente chamados de Encantados. São eles que ensinam os
remédios que são posteriormente ensinados pelas benzedeiras paras as mulheres da ilha.
Ao longo dos capítulos da tese trouxe exemplos do contexto indígena do Uaçá sobre
principalmente dois aspectos relativos ao mito Palikur da cobra grande: um relacionado à
imagem a cobra-fêmea como benéfica, como curadora e conhecedora de plantas, a partir das
quais faria remédios e banhos para curar o índio-herói; e outra relacionada a associação feita
entre a cobra e a idéia de “mãe” – associação que tem origem tanto na denominação do índio-
herói para a cobra que o “adotou”, quanto nas formas de denominar os próprios entes, como
por exemplo, o uso termo mãe-d´água para se referir a um tipo específico de cobra encantada
e também uma forma de se referir ao seu papel de protetora perante os seus bichos auxiliares,
como “mãe-do-jacaré” ou “mãe-da-piranha”. Apesar do uso de um termo de parentesco não
ser um marcador claro de semelhança entre este contexto indígena e Caviana, seu uso não é
comum entre os grupos indígenas, que em geral recorrem aos termos “donos”, “mestre” e
raramente “pai”. Outro fator que corrobora uma possível aproximação entre a cosmologia
ribeirinha e aquela dos povos do Uaçá são as representações gráficas da cobra, que como
vimos na Figura 5.1 e também agora nas Figuras 6.1 e 6.2, apresentam grande semelhança
com os padrões incisos nos remos feitos por Gaiapó, morador do Ubuçutuba. Ainda no
contexto indígena do Uaçá, temos outra figura que associa o poder não-humano a cura através
das plantas, é a árvore-xamã. Pouco documentada na etnografia amazônica, este ente traz em
comum ao contexto de Caviana, a idéia de que as plantas possuem sua eficácia de cura pelos
poderes sobrenaturais.
296
Figura 6.1: Remos inacabados de Caviana, com detalhes dos motivos possivelmente atribuídos a
representação da cobra, gravados no cabo. Fotos Juliana Salles Machado.
297
Figura 6.2: Kuahi – marca do banco do Jacaré (apud Vidal 2007). Fonte:Vidal 2007
298
Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
uma ampla gama de remédios. No capítulo 4, mostrei como essa troca se diferencia daquela
feita entre as plantas de alimentos, esta mais relacionada a um compartilhamento alimentar e
uma obrigação familiar. Já o plantio de remédios e sua fabricação estão relacionados a um
conhecimento transmitido em geral matrilinearmente e sua troca uma forma de manutenção e
fortalecimento de um coletivo feminino.
O diálogo com os “encantados” e o conhecimento de sua cura através das plantas, abre
também as portas para a realização de feitiços humanos em Caviana. Estes não são
exclusivamente femininos, mas em sua maioria estão associados às mulheres, como vemos no
Capítulo 5. Os feitiços humanos, assim como aqueles praticados por entes não-humanos,
como os “flecheiros” de bichos, as visagens e outros são temidos por todos e fazem parte do
cotidiano ribeirinho. A acusação de feitiçaria é velada e sua identificação é restrita as
benzedeiras que indicam a origem dessas “coisas feitas” e ensinam sua cura. Essas mães e
esposas são responsáveis pela boa saúde de suas casas, filhos e maridos. A responsabilidade
maternal passa também por esse aspecto mágico, já que são elas que devem curar suas casas
com plantas de remédio e dar os “banhos” de cura nas pessoas que devem zelar. São elas
enfim que cuidam das pessoas.
299
Juliana Salles Machado
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Lugares de gente: mulheres, plantas e redes de troca no delta amazônico
YANOMAMI, DAVI KOPENAWA 1991 A Yanomami Leader Speaks: a message from Davi
Kopenawa Yanomami. Anthropology Newsletter, American Anthropological
Association, Washington DC, 32 (6):52.
ZALUAR, ALBA 1974. Os homens de Deus: um estudo comparativo sobre o sistema de
crenças e práticas do catolicismo popular em algumas áreas do Brasil rural. Rio de
Janeiro: UFRJ.
ZEDEÑO, MARIA NIEVES 2008. The Archaeology of Territory and Territoriality In David,
Bruno; Thomas, Julian. Handbook of Landscape Archaeology. Left Coast Press,
California, p. 210-217.
ZEDEÑO, MARIA NIEVES; BOWSER, BRENDA (Eds.) 2009. The archaeology of
meaningful places. University of Utah Press.
319
Anexos
320
Anexo 1
“Caviana” 1
Alcindo Abdom
[Abertura Geral]
1 A ilha Caviana, a linda sereia do soneto do compositor e poeta, o capixaba “Mosar Bicalio”.
[Bloco 1]
2 Essa ilha era habitada pelos índios Caviana, que pela suas aparências deveriam descender do povo
Espanhol dado a cor de seus cabelos e suas peles, esses viviam de caça e pesca;
3 Até que pelos anos de 1796 chegou em uma das enseadas dessas ilha, um português chamada Pedro
Corrêa de Brito, enseada essa de Porto Manso, tendo em frentes três pequenas ilhas, que dado as tidas
terem grande quantidade de aves, da qual a maior quantidade eram chamadas marrecas, logo apelidada de
ilhas das Marrecas. Pedro era um português de estatura média, porém forte e de uma vontade imensa de
se tornar senhor possuidor de uma imensidão de terras.
4 Assim ao chegar nessa ilha tratou de fazer amizades com os índios Cavianos; e tendo se feito
acompanhar de seu primo Isidora Carvalho de Brito e da sua mulher e seus filhos e outro português
chamado Venceslau Firmo Figueiredo, cada um dos componentes levando seus escravos em média seis
para cada um, esses eram para todos os serviços, inclusive remeiros do pequeno barco com capacidade
para 10 toneladas de peso, quando não tinha vento para arrastar o barco, os escravos serviam de seus
remos denominados Paia, para continuar a viagem, assim foram fixadas as residências dos três primeiros
aventureiros que abordaram a rica ilha e denominado o local domo São Pedro. Os barracos foram
construídos com a própria madeira existente na ilha. Essas madeiras chamadas Anoirá e Pau Mulato:
5 Pedro com as amizades feitas com os indígenas dando presentes de lenço de cor encarando, miçangas e
outras bijuterias sendo para os mais graduados como sejam o Tuxana denominado Batú e curandeiro
Touro Preto. Foi presenteado com duas facas de fabricação inglesa e para a índia Jandira, essa de cabelos
ruivos e olhos esverdeados a mais bonita da tribo foi lhe dado por Pedro, vestidos encarnados, brincos e
sandálias e meses depois, após a chegada dos aventureiros se tornou companheira de Pedro.
6 E assim Pedro foi buscando em Belém do Pará outros colonos que se submetiam a Pedro nos trabalhos
de colonização, em outras viagens para Belém do Pará, através dos estreitos de Breves eram levados para
ilhas, gado Vacum Cavalares, caprinos, porcos e aves domésticas, que distribuíam com os colonos,
ficando o senhor Pedro com os direitos de vender os animais já produzidos e para corte;
7 Que no valor da venda eram feitos beneficiamentos da comunidade do qual os indígenas trabalhavam
duro para o senhor Pedro, dado Jandira já se achar com um bebê nos braços, filho de Pedro: Assim a ilha
foi sendo povoada por mais colonos portugueses e escravos;
8 Pois achavam que descobriram um paraíso banhado de águas doces. Essa ilha além de ser fértil possuía
uma imensidão de animais de espécie como sejam: capivara, veado, porco do mato, animais de casco e
Peixe-Boi, pirarucu, aves de muitas espécies e verdes campos apropriado para a criação de animais
domésticos, e parte Norte da ilha era impressionante a quantidade de jacarés, esse nome dado pela gíria
indígena e por nós crocodilo. As suas carnes e ovos eram apreciados pelos indígenas.
9 Assim se tornando um paraíso tanto para os primitivos como para os colonos, que viviam no
entrosamento de trabalho e amizades tanto assim que a esposa e filhas de Isidoro que eram de formação
católica, se tornaram professores no ensinamento de religião católica ao povo indígena e Pedro ergueu
uma grande cruz e construiu um templo de orações a onde se reuniam colonos e indígenas aos domingos
1
O texto foi integralmente reproduzido, mas as divisões apresentadas e algumas correções ortográficas
são de minha responsabilidade.
321
para prestarem cultos as coisa divinas, e assim continuavam a paz e tranqüilidade entre índios e colonos
que foram se casando e moda índia, filhos de colonos com filhas de indígenas, foi se tornando populosa;
10 A sereia da Foz do Amazonas que, que se limita pelo sul com a ilha de Marajó, com o Norte, com as
ilhas de Viçosa e Ciríaca, e com o nascente com a ilha de Mexiana, formando o arquipélago amazônico;
11 Aonde reinava a paz de um povo que só conhecia o trabalho, a caça e a pesca, agricultura e a criação
de animais domésticos, tendo como troféu o melhor caçador indígena. Só tendo como lazer a festa, os
estilos indígenas e africanos. Esses afrobrasileiros promoviam festas de São João, São Pedro, ao som dos
batuques e tambores indígenas e as danças de roda.
[Abertura 2]
12 Essa tranqüilidade foi quebrada uma certa manhã ensolarada/ 13 com a chegada de uma caravela que
erguia uma bandeira de nacionalidade Francesa tripulada por homens armados de facões, espadas e
garruchas carregadas pela boca;
[Bloco 2]
14 Desembarcando uma parte da tripulação, fizeram ciente Pedro Correa de Brito através de um homem
falando português que iria ocupar a ilha, hasteando uma bandeira francesa.
15 E Pedro meditando alguns minutos respondeu ao tal homem que ia conversar com os colegas colonos
e o tuxana dos índios Cavianos, assim titulados para que não houvesse grandes lutas, e no dia seguinte iria
a borda levar a resposta das conversações para o comandante da nave;
16 que com desconfiança o chefe e os marujos aceitaram a proposta porque Pedro com a maior habilidade
tratou os marujos oferecendo queijo, pássaros denominados jaburus, que tem uma carne saborosa, para os
mesmos banquetearam a borda.
17 E Pedro entrou logo em conversação com o seu sogro o tuxana Batú e o curandeiro Touro Preto,
combinado como seus guerreiros e os colonos receberiam os marujos em terá no dia seguinte, teriam a
vantagem da surpresa para o combate.
18 Pedro mandaria uma igarité convidando para o desembarque, assim foi no dia seguinte mandando para
a bordo a igarité levar o convite que foi aceito pelo comandante. Esse como medida de precaução mandou
seu subcomandante e uma parte da tripulação dar o desembarque,
19 que ao chegar em terra foram logo desarmados, os que sobraram com vida foram aprisionados, e suas
armas serviram para armar mais voluntários que avisados foram chegando das fazendas Tachipurú, Monte
Alegre e Piranhas formando um bastante pelotão de combate.
20 Tendo um índio, filho de Tuxaua que pretendia substituir seu pai procurou o chefe Pedro expondo seu
plano para Pedro:
21 Pretendia nadar até aonde se achava ancorado o Galeão, e com sua faca amolada que fora presenteada
pelo próprio Pedro. Abriria um rombo na embarcação e cortaria a amarra da mesma, deixando a mercê
das correntezas;
22 que na noite anterior tinha ido observar que certa hora todos a bordo se achavam dormindo, ai
colocava seu plano em ação, não tinha falado ainda ao grande chefe Pedro, com receio de que Pedro se
contrariasse.
23 Porém como Pedro tinha receio por ter o número inferior de combatentes para a defesa, e como tinha
sido ferido meditou porque não gostava desse tipo de defesa, gostava do combate limpo e leal, mas se
achava gravemente ferido concordou;
24 Pois logo dois meses após o acontecido veio a falecer, não tendo o curandeiro Touro Preto e nem um
prático em enfermagem, o português Joaquim Albuquerque da Silva conseguido salvá-lo a noite;
25 Batú filho esperou que tudo se achasse em silêncio fazendo de uma tora de aminja bóia salva-vida,
nadou para o Galeão que achava-se ancorado entre a ilha Caviana e as três ilhas denominadas Marrecas.
322
26 Batú filho, chegando logo ao Galeão esperou cerca de uma hora até constatar que a tripulação se
achava dormindo, começou a operação mergulho. E trabalhando com sua faca conseguiu dentro de uma
hora abrir um buraco de 25 cm de comprimento por 10 cm de largura, junto a Carkinga do Galeão;
27 Pois essa região seria impossível ser ouvido o maruja das águas, assim descobrindo a operação pois só
foi apropriada pela embarcação pois as madeiras que hoje constrói-se embarcação chamam-se Piquiá,
Itaúba, Acapú, seria inteiramente impossível esse tipo de trabalho, ou pelo mesmo muito demorado para
ser feito com uma faca.
28 Batu em seguida cortou a amarra de piçaba do Galeão nadando com muito cuidado em
silenciosamente de volta para a ilha;
29 amanhecendo dormindo no celeiro do seu cunhado Pedro Corrêa de Brito, e pela manhã verificaram
que a caravela não estava mais ancorada no local que anteriormente se achava.
30 Pedro mandando uma igarité a remo espionar onde se achava o Galeão que foi visto afundando longe
no meio do canal entre a ilha Caviana e uma praia que hoje denominada Camaleões;
31 para o bem estar dos colonos e indígenas, houve uma pequena tempestade que se calcula que a
tripulação querendo salvar-se nas balieiras pereceram afogados antes de chegar na praia pelas grandes
ondas que se fizeram com a tempestade;
[Abertura]
[Bloco 3]
34 Esse feudal era possuidor de uma soma elevada de valores e conseguindo uma leva de escravos
dirigiu-se para a ilha, tomou posse e construiu uma bela residência chamada Vera Cruz;
35 Iniciou uma espécie de reinado, e como era um homem de princípios religiosos era um bom homem,
honesto e um bom condutor, que cuidou logo de criar meios de alfabetizar nem só os filhos dos colonos,
dos escravos e dos indígenas,
36 Assim foi se povoando mais sua ilha, que trazendo mais colonos de origem portuguesa que se
chamavam Diogo Pinto de Sousa, João Alberto Furtado, Augusto Sérgio de Oliveira Brito, João Corrêa;
[Abertura]
38 Até que foi mandado para Vila de Chaves, de onde os viventes da ilha Caviana eram municipalistas.
[Bloco 4]
39 Esse homem que veio como intendente da Vila Chaves, chamava-se Judas Capistrano que se fazia juiz,
senhor e ditador;
40 Homem esse de instintos maus e de uma ganância incalculável, pois não só continha com que já tinha,
passou a explorar os viventes da ilha Caviana, que teria de obedecer os desejos do senhor intendente
Capistrano;
41 Que gozava de grande prestígio junto os bajuladores do Governador de Belém do Pará, Esse prestígio
a custa de ricos presentes, assim como muitos asseclas que viviam sobre suas ordens;
42 Capistrano, achando que Afonso Gomes da Costa estava se tornando uma espécie de Rei da Ilha;
323
43 Dando aos índios Cavianos, que estavam em comum acordo com os colonos dado a intrusão como
sejam casamentos das filhas de índios com filhos de colonos, assim como filhos de colonos com moças
índias;
44 Tanto que Afonso Gomes da Costa tornou para sua esposa a índia Sussuarana na qual passou a se
chamar Servina da Costa;
45 E com essa função Afonso Gomes da Costa e Isidoro de Brito eram senhores que se reuniam em
assembléia;
46 Quando necessário se fazia tomar qualquer decisão sobre os destinos de algum colono que cometia
qualquer erra, esses dois homens eram os que condenavam ou absorviam os demais residentes, após
passarem pelas sentenças que eram sempre quando condenados, eram sujeitos a trabalho por dois a seis
meses. Conforme o caso; isso até os indígenas estavam sujeitos a essas penalidade;
47 Pois não tinha havido nenhum caso de homicídio ou furto, corriam em amplo progresso, os moradores
da ilha;
48 Capistrano, sabendo que a prosperidade da ilha poderia lhe causar contrariedades, criou uma lei que o
distrito teria que pagar tributo para a Vila de Chaves que era cabeça da comarca proibindo ainda até
fazerem transações comerciais com o povo da próxima Vila de Afuá, dificultando a prosperidade daquela
gente ordeira e trabalhadora.
[Abertura]
49 Até que um dia o destino quis proteger essa gente, pois Capistrano foi morto por filho e sobrinho de
fazendeiro que tinham sido mortos, passando as fazendas para Capistrano, até que fora morto.
50 Assim voltando a paz na vila de Chaves e com bons entrosamentos entre o novo intendente de Chaves
o Sr. Antonio Goia de Delcarme e Afonso Gomes da Costa, as duas localidade progrediram;
[Bloco 5]
51 tanto que chegou ao ponto de Afonso Gomes da Costa resolveu lotear a ilha entre os colonos;
52 dando a Venceslau Figueiredo, a parte do nascente da ilha compreendendo do Igarapé Piranha, nome
esse dado pelos indígenas até o igarapé Pacutuba [Pracutuba], nome esse também indígena;
53 e para Sérgio Augusto de Oliveira Brito, a parte norte da ilha compreendido do furo do Guajuru
rodando até a ponta do Espírito Santo, nome esse denominado por Afonso Gomes da Costa, aonde existe
um igarapé por nome Carmo, aonde Sérgio localizou sua residência;
54 dando ainda para João Alberto Furtado a parte da ponta de Rio Ubussutuba [Ubuçutuba], nome esse
indígena, até o igarapé faxipucú [Taxipucu];
55 dando ainda para Isidoro de Brito da margem direta de que sobre o igarapé faxipucú [Taxipucu], até o
lugar denominado por ele Afonso Gomes da Costa, até o lugar Monte Alegre;
56 essas doações foram feitas para que evitasse de os vendedores ambulantes que começaram a introduzir
na ilha, vindo embarcações a vela que eram tripuladas por escravos que serviam de remeiros para quando
faltava vento, assim seria difícil os invasores ambulantes negociarem com bebidas alcoólicas para com os
indígenas e escravos.
57 Afonso Gomes da Costa criou uma pequena polícia aramada com espingarda de carregação pela boca,
tendo como professor de tiros o Capitão Batista, um português calmo e sábio que viera de Portugal, a
pedido de Afonso Gomes da Costa;
58 que por pouco a ilha não caiu na mão de um dos navegadores ambulantes por nome Fontele;
59 pois já tinham escapados de um navegador francês que tendo chegado em um Porto da ilha na parte
norte chamado Caloau, trazendo uma guarnição bem armada.
[Abertura]
324
60 Assim Afonso Gomes da Costa, preocupado em defender a ilha dos navegadores e mercadores, ainda
teria que expulsar os franceses.
61 Assim criou uma pequena força comandada por Coronel Batista que sob induzir os marujos franceses
para dentro da mata e com a prática dos índios e colonos foi fácil o combate para os defensores da ilha
restando uma pequena parte de marujos que retornaram para a embarcação francesa que logo cuidaram de
fazer-se ao largo da ilha, pois Batista seu pelotão ainda permaneceu vários dias com parte de colonos e
escravos que permaneceram no local já descritos;
62 Tendo ficado um homem como prisioneiro que rendeu-se e com o tempo tornou-se amigo de Afonso
Gomes da Costa e dos colonos,
[Bloco 6]
63 Por ser médico e ainda casando-se com a índia Caviana chamada Piaçoca aonde tiveram uma filha
chamada Arlete nome esse francês que apelidada Aracari, nome esse indígena.
65 Essa união não aceita pelos familiares de ambas as partes, de onde começou um conflito entre as duas
partes dividindo os indígenas em duas forças, e começando uma luta de mortes;
66 Porém saindo vencedor, Isidoro Brito, que também contava com a força dos colonos;
67 Porém essa luta quase que extermina com a tribo dos Cavianas ou melhor, os pacatos índios Cavianos
que esses por volta de 1925 ainda tinha os lavradores descendentes de uma índia de nome Sussuarana e de
Isidoro Brito;
68 Dizem os antigos que essa indígena tornou-se uma lenda na nela ilha, que nas noites de lua cheia
aonde era a fazenda Monte Alegre, aparece uma índia com a voz de tenora cantando uma canção em
língua indígena e em português, sendo acompanhada de tambores rufenios;
69 Tanto que um caboclo Sérgio que morreu em 1930 contando 104 anos de idade, contava que quando
tinha 20 anos de nascido, ia todas as sextas-feiras para as proximidades da antiga fazenda Monte Alegre
ouvir as ditas canções aonde Sérgio aprendeu um trecho da canção que era cantada em português:
70
I
As horas mortas da noite
A lua brilha no mar,
As ondas beijando as praias,
Dormes no lindo luar.
II
Sei que de mim não te lembras,
Quando daqui te ausentares,
Meu coração se apaixona,
Quando partir e me deixar.
[Abertura]
71 Esse caboclo Sérgio, que também se acha enterrado no cemitério da fazenda Monte Alegre, era de uma
descendência de colonos e indígenas:
72 Hoje essa ilha é cheia de fazendas de criação de gado vacum, bubalinos e cavalares e,
73 Por cerca de 1950, o pai do autor desta história possuía uma fazenda de criação de gado num lugar
denominado São Pedro,
[Bloco 7]
325
74 Aonde apareceu um casal de americanos do Norte, com uma autorização do governo federal para
pesquisa de coisas indígenas;
75 Aonde efetuaram uma escavação nesse lugar denominado Monte Alegre, no outro lugar denominado
Teso do Arapapá que eram destinados aos enterros, tanto de colonos como de indígenas;
76 E sendo retirado cerca de 200 sacolas de restos mortais de índios e utensílios de caça e pesca dos
indígenas, essas sacolas forma embarcadas para serem levadas para New York via Macapá;
77 Há uma pergunta no ar, seria somente utensílios de índios que continham as ditas sacolas?
[Abertura]
78 Vamos a história!
79 Essa ilha foi bem denominada pelos escritor capixaba Mozar Bichalo como sereia do Amazonas,
porque em uma certa época do inverno pelos dias de lua cheira dá uma grande onda na Costa Leste;
[Bloco 8]
80 Ondas essas denominadas Pororoca que cerca de meia hora antes delas surgirem, há uma espécie de
cântico que se misturam, os cânticos das saracuras aritauã que embreasse os caboclos residentes na
redondeza e quando passam as ondas deixam um marujar sonoro parecendo assim irem com saudades
distanciar-se da ilha;
81 Que ainda é conhecida como reserva ecológica, porque ainda existem uma grande quantidade de
animais peixes denominados Peixe-Boi, Pirarucú, Tucunaré em grande quantidades nos igarapés
denominados Papajá, Taxipurú e lagos denominados escarpados. Tuiuiú, Massarico, Pocotó e seus
campos verdes perfumados por flores de Carobeiras, Ingá Xixica e pelas cores dos pássaros denominados
Jaburús, Colheira, Guará Tuiuiu como já falamos das quantidades e espécies de jacarés como seja Jacaré
Açu, Tinga, Uma Corôa que essa espécie de Corôa foi denominado pelos colonos por serem rajadas de
preto e branco sendo o Tinga é de cor amarelo claro e a carne e seus ovos são prediletos dos indígenas.
[Bloco 9]
82 E por falar em indígena, o autor deste livro conheceu um casal denominado Manoel Gomes e Efigênia,
falecidos em 1940, ambos descendentes dos índios Cavianos;
83 Ele faleceu com cerca de 110 anos e ela com cerca de 95 anos;
84 Contavam que quando se uniram, viveram de pesca e agricultura e na certa noite de lua, estavam
pescando na sua igarité, e viram quando os remanescentes dos índios Cavianos saíram em suas pirogas a
remo;
86 E pela conversação dos índios Cavianos que ela falava sobre os mesmos iam a procura de novas terras,
onde pudessem viver tranqüilos, sem a intercessão do homem branco, os índios sabiam haver na terra
geral lugares aonde poderiam estabelecer-se e na cabeceira do Calçoene,
[Bloco 10]
87 O autor dessa história convida aos que lerem essa, façam um minuto de silêncio em memória desses
heróis anônimos e dos bravos aventureiros que muito deve a Pátria Brasileira à eles e as seus filhos, pela
força de seus braços, povoar e colonizar o solo brasileiro que a mãe natureza os deu. Quem nos dera que
os homens de hoje, Presidente da República, Senadores, Homens de lei, possuíssem a corajosa força de
vontade desses heróis.
[Bloco 11]
88 Caviana a sereia do autor que sente-se feliz de ter nascido em 18.08.1918 nessa ilha;
326
89 Pois, Marajó, Caviana e Mexiana formam o arquipélago hipotético da Grã Região Americana que de
um lado tem a cidade de Belém do Grão Pará do saudoso Joaquim Cardoso de Magalhães Barata e de
outro o rico Estado do Amapá de Januari Nunes e Governador Anibal Barcellos.
[Fechamento]
91 O autor deste pede que lhes seja perdoado alguns erros, pois conhecer como é dos romances de
Alexandre Dumas, Emile Zola, Humberto de Campos, Olavo Bilac, que um deles com o erro em alma
gentil que te partiste, foi celebrizado.
327
ANEXO 2
ITEM VARIÁVEL
1 localização de cada indivíduo nas redes de identificação nos diagramas
parentesco genealógicos
2 sexo feminino ou masculino
3 número de identificação da casa alfa-numérico
4 nome do lugar onde fica a casa nominal
5 tipo de assentamento margem alagada de igarapé
margem seca de igarapé
costa da ilha
campo natural
6 forma de agrupamento das casas configuração de casas – mais de
três casas
grupo doméstico – até três casas
casa isolada
7 roças presença ou ausência
8 terreiros presença ou ausência
9 canteiros presença ou ausência
10 uso de áreas abandonadas presença ou ausência
11 criação de animais gado
porcos
galinhas
patos
12 pesca consumo doméstico
venda
13 posse de embarcações canoa
barco pequeno
barco médio
barco grande
14 atividades rentáveis/ remuneração remuneração mensal
venda de produtos da roça
venda de pescado
atividade mista
Tabela com questionário sobre economia e assentamento
328
FAMÍLIA FIGUEIREDO
1 2 17 16
119 3 149 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
116 115 112 111 150 120 121 122 123 124 125 126 127 155* 155* 154 153 152 151 150 18 19 20 21 22 23 24 25 26
114 113 128 129 130 131 132 133 134 135 136 137 138 139 167 156 157 158 159 160 161 162 163 164 165 166 57 56 60 61 62 64 63 66 65 67 42 41 44 43 46 45 47 49 48 50 51 52 35 36 33 34 28 29 27 31 32 30 37 38 85 84 83 82 81 80 79 78 77 76 75 74 72 73
118 117 144 143 142 141 140 168 169 170 171 172 173 174 175 176 177 178 179 58 59 69 70 71 68 54 55 53 40 39 109 108 107 106 105 104 103 102 101 100 99 98 96 97 94 86 87 88 89 90 91 92
110 95 93
148 147 145 146
1. Braulia Correia da Boa Morte, Fazendinha 32. Velha 63. Frederico, Taxipucu 94. Emerson, Macapá 124. Inês Correia de Figueiredo 155. Daniel Nascimento Rodrigues
2. Augusto Firmo Figueiredo, Fazendinha 33. Everaldo Figueiredo, Taxipucu 64. Edgar, Taxipucu 95. Tamires, Macapá 125. Tertuliano Correia de Figueiredo 156. Ana Maria Rodrigues dos Santos
3. Samuel Correia de Figueiredo 34. SN – Divorciado 65. Flavio, Taxipucu 96. Estefani, João Brás 126. Eustaquelino Correia de Figueiredo 157. Rose Rodrigues dos Santos
4. Noé Correia de Figueiredo 35. Renilda Figueiredo 66. Cristiane, Taxipucu 97. Adolfo Filho, João Brás 127. Olzinda Nascimento Rodrigues 158. Manuel Rodrigues dos Santos
5. Manuel Correia de Figueiredo 36. Janio 67. Firmo, Taxipucu 98. José Celestino Júnior, Macapá 128. Reinaldo Rodrigues Figueiredo 159. Waldir Rodrigues dos Santos
6. Luzinan Correia de Figueiredo 37. José Figueiredo 68. Robson, Taxipucu 99. William 129. Maria Rodrigues Figueiredo 160. José Rodrigues dos Santos
7. Gabino Correia de Figueiredo 38. Zilma 69. Filho de Reinaldo 100. Iasmim, Macapá 130. Paulo Rodrigues Figueiredo 161. Lauro Rodrigues dos Santos
8. Tertuliano Correia de Figueiredo 39. Vanessa 70. Filho de Reinaldo 101. Ana Tereza, Macapá 131. Marina Rodrigues Figueiredo 162. Maria Rodrigues dos Santos
9. Dina Correia de Figueiredo 40. Nubia 71. Filho de Reinaldo 102. Aline, Macapá 132. Donato Rodrigues Figueiredo 163. Elísia Rodrigues dos Santos
10. Ambrosio Correia de Figueiredo 41. Rosária Figueiredo, Macapá 72. Angela dos Santos Figueiredo, Macapá 103. Mateus, Macapá 133. Elvira Rodrigues Figueiredo 164. João Rodrigues dos Santos
11. Ignacio Correia de Figueiredo 42. Placido de Paula, Divorciado, Macapá 73. Carlos dos Santos Figueiredo, Divorciado, Macapá 104. Marcos, Macapá 134. Alvaro Rodrigues Figueiredo 165. Aelson Rodrigues dos Santos
12. Ester Correia de Figueiredo 43. Magno Figueiredo, Taxipucu 74. Adolfo Correia de Figueiredo Filho, João Brás 105. Camila, Macapá 135. Miracy Rodrigues Figueiredo 166. Zuleide Rodrigues dos Santos
13. Venceslau Correia de Figueiredo 44. Ruth Brito, Taxipucu 75. Mariana, João Brás 106. Darlon,Macapá 136. Izaura Rodrigues Figueiredo 167. Abiatá Rosário dos Santos
14. Camilo Correia de Figueiredo, Fazenda João Batista 45. Soleim Figueiredo, Taxipucu 76. José Celestino dos Santos Figueiredo, Macapá 107. Juciclei, Macapá 137. Darcy Rodrigues Figueiredo 168. Elione Figueiredo dos Santos
15. Inês Coutinho de Figueiredo 46. Idacira Brito, Taxipucu 77. Waldete Melo, Divorciada, Macapá 108. Dacio, Macapá 138. Jacó Rodrigues Figueiredo, Ponta da Caridade 169. Tatiane Figueiredo dos Santos
16. Guilhermina Coutinho de Almeida, São Joaquim - Marajó 47. Iací Figueiredo, Macapá 78. Maria Inês dos Santos Figueiredo, Macapá 109. Jucilei, Macapá 139. Dulcelinda dos Santos, Ponta da Caridade 170. Ivanildo Figueiredo dos Santos
17. Americo Coutinho, São Joaquim – Marajó 48. Vanusa Figueiredo, Taxipucu 79. Rivaldo Gomes, Macapá 110. Henry Gabriel, Macapá 140. Orzinda Nascimento Rodrigues Neta 171. Marcione Figueiredo dos Santos
18. Maria Augusta, Taxipuxu 49. Ralf, Taxipucu 80. Gracinda dos Santos Figueiredo, Macapá 111. João Correia de Figueiredo 141. Zeni dos Santos Figueiredo 172. Maria Marta Figueiredo dos Santos
19. Firmo Figueiredo (Roberto), Taxipucu 50. Francisco Figueiredo, Macapá 81. Edmilson Borges de Melo, Macapá 112. Maizede do Rosário Figueiredo 142. Adamor dos Santos Figueiredo 173. Marciele Figueiredo dos Santos
20. Francisco Coutinho de Figueiredo, Taxipucu 51. Janaína Figueiredo 82. Camilo dos Santos Figueiredo, Macapá 113. Abel Figueiredo, Macapá 143. Zenide dos Santos Figueiredo 174. Delson Figueiredo dos Santos
21. Maria Francisca Pacheco Figueiredo, Taxipucu 52. Claudio de Almeida Valadares 83. Rosemeire Lacerda, Macapá 114. Ilda Maria Figueiredo de Paula, Macapá 144. Ivanildo Figueiredo dos Santos 175. Eliege Figueiredo dos Santos
22. Célio Figueiredo, Taxipucu 53. Jaime, Santa Maria 84. Daria dos Santos Figueiredo, Macapá 115. Placido de Paula e Souza 145. Heitor 176. Walmir Figueiredo dos Santos
23. Geralda Souza Figueiredo, Taxipucu 54. Lucas, Taxipucu 85. Manuel do Socorro, Divorciado, Macapá 116. Florentina da Gama Figueiredo 146. Shirley 177. José Luiz Figueiredo dos Santos
24. Pedro de Almeida Figueiredo 55. Solano, Taxipucu 86. Tiene, Macapá 117. Waldecí Figueiredo, Macapá 147. Thierry 178. Marcia Figueiredo dos Santos
25. Adolfo Correia de Figueiredo (1933), João Brás 56. Marlí Valadares Figueiredo, Socó 87. Ronelson, Macapá 118. Ivanilza 148. Jerry 179. Cledison Figueiredo dos Santos
26. Tereza Santos Figueiredo, João Brás 57. Elígio Souza Ferreira, Socó 88. Adrielson, Macapá 119. Benigna Correia da Boa Morte (descendente de 149. Ana Soares de Santos 180. Odila Correia de Figueiredo
27. Zazá Figueiredo, Macapá 58. Nazaré, Socó-Taxipucu 89. Anderson, Macapá escravos africanos, nome vem do Padrinho) 150. Waldizia Correia de Figueiredo
28. Rosilene Figueiredo 59. Simone, Socó 90. Rodrigo, Macapá 120. Eusébio Correia de Figueiredo 151. Laercio Correia de Figueiredo
29. Paulinho Figueiredo 60. Reinaldo, Taxipucu 91. Adelson, Macapá 121. Macrina Correia de Figueiredo 152. Nelson Correia de Figueiredo
30. Rosa Figueiredo, Piranha 61. Dejanete, Taxipucu 92. Jana, Macapá 122. Julio Correia de Figueiredo 153. Durvalina Correia de Figueiredo
31. Carmito Figueiredo 62. Ricardo, Taxipucu 93. Renan, Macapá 123. Balbino Correia de Figueiredo 154. Maria Ninfa Correia de Figueiredo
329
Anexo 4:
Plantas em Caviana
ID Nome local Habitat Proteção Cultivo Usos Reutilização
P1 Abacateiro T Y Y FO; CM Y
P2 Abacaxi H Y Y FO; CM
P3 Abiu T Y Y FO; CM
P4 Abre‐Caminho H Y Y ME Z
P5 Açaí P Y Y FO; CM Y
P6 Açaí Branco P Y N FO
P7 Acerola P Y I FO
P8 Afasta‐espírito H Y Y ME BW
P9 Alamanda H Y Y OR NAT
P10 Alecrim H Y Y ME
P11 Alface H Y FO BO
P12 Alfavaca H Y Y ME
P13 Alfazema H Y ME DR
P14 Algodão S Y Y FO NAT
P15 Alho Y Y RM
P16 Amelindra H Y OR HM
P17 Amanã Y N
P18 Ameixa Y Y FO; CM Y
P19 Amor Crescido H Y Y ME
P20 Anador S Y Y ME
P21 Andiroba T Y N WO; ME; CN; OR Y
P22 Apeí H Y Y ME HA
P23 Araticu T Y Y FO N
P24 Aranha‐Rica H Y ME F
P25 Arnica H Y Y ME
P26 Arruda S Y Y ME
P27 Árvore da felicidade S Y Y OR D
P28 Aucuúba T Y N WO NAT
P29 Azulzinha H Y Y OR CO
P30 Babosa H Y Y ME
P31 Bacabeira P Y Y FO; CM; FI; HU Y
P32 Bacabi P Y Y FO
P33 Baleira T Y N Y
P34 Bambu H Y Y OR M CO
P35 Banana S Y Y FO; CM
P36 Bananeira‐de‐Salão H Y Y OR CO
P37 Batata H N Y FO; CM
P38 Batata Doce H N Y FO; CM
P39 Baratinha H Y Y OR HZD
P40 Biribá Y Y FO; CM
P41 Boa‐noite H Y Y OR A
P42 Boca de lobo H Y Y OR Z
P43 Boldo H Y Y ME
P44 Bolsa de Rainha H Y Y OR Z
P45 Borboleta H Y Y ME M
P46 Brasileira Y ME
P47 Brinco de Negra H Y Y OR DR
P48 Brinco de Noiva H Y Y OR HZ
P49 Buçú P AS Y FI AHF
330
P50 Cabí Y Y RM
P51 Cacau T Y N FO Y
P52 Cactus H Y Y ME Z
P53 Café T Y Y FO
P54 Cajueiro T Y Y FO; CM Y
P55 Cajurana
P56 Caldo de Limão Y
P57 Cama de Menino OR
Jesus
P58 Cana‐de‐Açucar S Y Y FO DR
P59 Caneleira T Y Y FP FR
P60 Canindá I
P61 Capim‐marinho H Y Y RM; ME MZ
P62 Capim‐santo S Y Y ME NE
P63 Capitú H N Y ME DR
P64 Cará T Y Y FO; CM
P65 Carambola T Y Y FO
P66 Castanha do Pará T Y Y FO; FP; ME Y
P67 Castanhola T Y Y FO Z
P68 Catinga de Mulata H Y Y RM; ME
P69 Capim‐marinho H Y Y RM; ME
P70 Capim Santo H Y Y ME CU
P71 Capitiú
P72 Cauaçu T Y N Y
P73 Cebalena H Y Y ME N
P74 Cebola H Y Y FP F
P75 Cebolinha H Y Y FP
P76 Cedro T Y N WO; ME; CN; Y
P77 Cenoura H Y Y FO BO
P78 Chama Y
P79 Chicória H Y Y FP
P80 Cidro H Y Y OR DR
P81 Cipó‐D´alho V Y Y RM
P82 Citronela H Y Y ME
P83 Copaíba T Y Y MI
P84 Coqueiro P Y Y FO; CM; FI Y
P85 Corrente de Cigana H Y Y OR CO
P86 Cravo Y Y ME
P87 Crota H Y Y OR DR
P88 Cominho H Y Y RM; ME
P89 Copaíba T Y Y ME
P90 Couve H Y Y FP BO
P91 Crista de Galo H Y Y OR BO
P92 Cuia ‐Mansa Y ME
P93 Cuiaraneira T Y N WO Y
P94 Cuieira T Y N TO Y
P95 Cupuzeiro T Y Y FO; CM Y
P96 Cutitiribá T Y N FO Y
P97 Dendê T Y N OR
P98 Desatrapalha H Y Y OR ZS
P99 Desinflama H Y Y ME
P100 Dinheiro‐em‐Penca H Y Y OR SW
P101 Elixir‐paregórico H Y Y ME
331
P102 Embaubeira T Y N HU Y
P103 Espada de São Jorge H Y Y OR ZD
P104 Favaca H Y Y ME
P105 Flecheiro H N Y ME DR
P106 Flor Roxa H Y Y OR DR
P107 Flor Rainha H Y Y OR CU
P108 Foguetão H Y Y OR DR
P109 Folha‐de‐Cuia H N Y ME DR
P110 Fortuna H Y Y ME
P111 Fruta‐pão T Y Y FO; CM
P112 Gengibre H Y Y FP; ME MF
P113 Genipapo T Y N FO NAT
P114 Glofita H Y Y OR COW
P115 Goiabeira T Y Y FO; CM Y
P116 Graviola T Y Y FO Y
P117 Guarumã S Y N FI; TO Y
P118 Hortelã Grande H Y Y ME
P119 Hortelãzinha H Y Y ME
P120 Hortência H Y Y OR CO
P121 Inajazeiro P Y N FO Y
P122 Ingazeiro T Y N FO; HU Y
P123 Jacarandá T Y N WO
P124 Jambeiro T Y Y FO Y
P125 Jambeiro branco T AS Y FO
P126 Jambuzeiro Y N Y
P127 Japana H Y Y ME
P128 Jaqueira T Y Y FO; CM
P129 Jasmim H Y Y OR Z
P130 Jenipapeiro Y Y FO; CM
P131 Jerimum V Y Y FO; CM
P132 Jiboinha Y ME
P133 Juruzeiro T Y Y FO DR
P134 Jutaí T Y Y Y
P135 Laço‐de‐amor H Y Y OR CO
P136 Laranjeira T Y Y FO; CM Y
P137 Laranja da terra T Y Y FO
P138 Lima T Y Y FO
P139 Limoeiro T Y Y FO; CM Y
P140 Limão‐Caiena T Y N FO
P141 Limão‐cidra T Y Y FO
P142 Loucura H Y Y OR DR
P143 Macacaúba T Y N WO; CN; Y
P144 Macaxeira S Y Y FO; CM
P145 Mamão T Y Y FO; CM
P146 Mandioca S N y FO; CM
P147 Mangueira T Y N FO; CM Y
P148 Manjericão H Y Y RM; ME
P149 Manjerona H Y Y ME
P150 Manjerona de Angola H Y Y ME
P151 Marajá T CEM Y FO
P152 Maracujá V Y Y FO; CM
P153 Margarida H N Y OR
332
P154 Mari‐Mari T Y Y
P155 Marizeiro T Y N FO Y
P156 Marupazinho H Y Y ME
P157 Marupá T Y Y WO; CN
P158 Mastruz H Y Y ME N
P159 Matá‐pastinho H N Y ME DR
P160 Matruxe H Y Y ME
P161 Maúba T Y N WO Y
P162 Medalha H Y Y ME ZHM
P163 Melancia Y Y FO; CM
P164 Mexirica T Y Y FO
P165 Milho S Y Y FO; CM
P166 Milindra H Y Y OR DR
P167 Miritizeiro P Y N MI
P168 Mortinha S Y Y FO DR
P169 Mucajá T AS Y FO
P170 Mucura‐caá H Y Y RM; ME
P171 Muruci T CEM Y FO
P172 Muru‐Muru T Y N Y
P173 Onze horas H Y Y OR DR
P174
P175 Pacapiá T Y N WO;TO; HU
P176 Pampulha I
P177 Papagainho Y ME
P178 Pariri H Y Y ME NAT
P179 Patauá P Y N FO
P180 Paticholim N
P181 Patre‐amada H Y Y OR A
P182 Pau‐de‐Angola H Y Y ME DR
P183 Pau‐eucalipto T N Y CN
P184 Pau‐mulato T Y N WO; CN
P185 Pega‐rapaz H Y Y ME CO
P186
P187 Pião‐pajé H Y Y ME HZ
P188 Pião‐roxo H N Y ME
P189 Pimenteira S N Y FP
P190 Pimenta‐cheirosa S Y Y FP
P191 Pimenta‐malagueta H Y Y OR DR
P192 Pimenta‐periquitinha H Y Y FP; ME
P193 Pimentão S Y Y FP
P194 Piquiarana T Y N WO; CN; FO
P195 Pirarucu H Y Y ME
P196 Piriquitinho de planta Y
P197 Pitaiqueira Grande N
P198 Pracaxi T Y N WO; CN; OR Y
P199 Pracuuba T N N WO
P200 Primavera V Y Y OR ZHM
P201 Princesinha H Y Y OR FR
P202 Pombinha H Y Y ME NAT
P203 Pupunha P Y Y FO; CM Y
P204 Quebra‐pedra H Y Y ME
P205 Rabo‐de‐raposa H Y Y OR FR
333
P206 Rainha OR
P207 Repolho H Y Y FO BO
P208 Rosa Menina Y
P209 Roseira H Y Y OR DR
P210 Sabugueira H Y Y ME
P211 Saída de Baile H Y Y OR F
P212 Samambaia H Y Y OR Z
P213 Sapucaia T Y N WO; CN; FO Y
P214 Seringueira T Y N CN; CM; WO Y
P215 Sororoca Y N FR Y
P216 Soveira T Y Y FO Y
P217 Sucena N
P218 Sucupira Y Y
P219 Suspiro H Y Y OR DR
P220 Tajá do Sol Y
P221 Tajazinho Y
P222 Tamarindo T Y N Y
P223 Tangerina T Y Y FO; CM Y
P224 Taperebá P Y N FO; HU Y
P225 Taperebazinho Y
P226 Tentero
P227 Terezinha H Y Y OR DR
P228 Terramicina H Y Y ME
P229 Tomate FO; CM
P230 Trevo Roxo P Y Y ME
P231 Tucumã P Y Y FO; CM Y
P232 Ubuçu P Y N FI
P233 Ucuubeira T Y N WO
P234 Uriza H Y Y RM; ME
P235 Urubu‐caá H Y Y ME
P236 Urucuri P Y N FI; HU; MI Y
P237 Urucum S Y N FP
P238 Vestido de Noiva H Y Y OR A
P239 Vim‐de‐cá H N Y ME DR
P240 Vinagreiro S Y N FO
P241 Virola T Y N WO
P242 Viuvinha H Y Y OR CO
P243 Sabugueira H Y Y ME
334
LEGENDA Anexo 5
ID
Nome
Sexo
Mulher F
Homem M
Código da casa
Alfa numérico H1
Falecido D
Localização
Costa da Ilha IC
Margem seca DR
Margem alagada FR
Campos naturais NF
Tesos florestados FH
Classificação da localização da casa
Uma única casa isolada IS
<3 casas – grupo doméstico DG
>3 casas, grupos extra‐domésticos ‐ House compounds HC
Sem casa ou acampamentos NH
Falecido D
Roça (R), Terreiro (T), Canteiro (C ) e sítio abandonado (AS)
Sim Y
Não N
Criação de animais
Porcos P
Galinhas e‐ou patos CH
Gado CO
Outros O
Porcos e Galinhas PC
Porcos, Galinhas e Gado PCC
Pesca
Consumo doméstico HC
Comercial CM
Barcos
Canoa C
Barco de pequeno a médio SM
Barco grande LB
Renda
Venda de Frutas e‐ou peixe F
Crafts C
Revenda de Produtos industrializados IP
Miscellaneaous MI
Remuneração AS
Aposentado R
335
Anexo 5: Nomes de pessoas, casas e prática econômica
ID genograma nome sexo casa Nome local Local classe R T C AS criação pesca barco comércio
1 T01 Braulia Correia da Boa Morte F D Fazendinha
2 T01 Augusto Firmo Figueiredo M D Fazendinha
3 T01 Samuel Correia de Figueiredo M D
4 T01 Noé Correia de Figueiredo M D
5 T01 Manuel Correia de Figueiredo M D
6 T01 Luzinan Correia de Figueiredo M D
7 T01 Gabino Correia de Figueiredo M D
8 T01 Tertuliano Correia de Figueiredo M D
9 T01 Dina Correia de Figueiredo F D
10 T01 Ambrosio Correia de Figueiredo M D
11 T01 Ignacio Correia de Figueiredo M D
12 T01 Ester Correia de Figueiredo F D
13 T01 Venceslau Correia de Figueiredo M D
14 T01 Camilo Correia de Figueiredo M D Fazenda João Batista
15 T01 Inês Coutinho de Figueiredo F D
16 T01 Guilhermina Coutinho de Almeida F D São Joaquim - Marajó
17 T01 Americo Coutinho M N São Joaquim – Marajó
18 T01; T03 Maria Augusta Valadares Figueiredo F H11 Taxipuxu FR HC N Y N N CO HC LB MI
19 T01; T03 Firmo Figueiredo (Roberto) M H11 Taxipucu FR HC N Y N N CO HC LB MI
20 T01; T03 Francisco Coutinho de Figueiredo M H24 Taxipucu FR HC N Y N N CO HC LB MI
21 T01 Maria Francisca Pacheco Figueiredo F H24 Taxipucu FR HC N Y N N CO HC LB MI
22 T01 Célio Figueiredo M H25 Taxipucu DR IS Y Y Y Y PCC HC LB MI
23 T01 Geralda Souza Figueiredo F H25 Taxipucu DR IS Y Y Y Y PCC HC LB MI
24 T01 Pedro de Almeida Figueiredo M D
25 T01; T02 Adolfo Correia de Figueiredo (1933) M H2 João Brás IC DG N Y Y Y PCC HC SM F
26 T01; T02 Tereza Santos Figueiredo F H2 João Brás IC DG N Y Y Y PCC HC SM F
27 T01 Zazá Figueiredo F N Macapá
28 T01 Rosilene Figueiredo F
29 T01 Paulinho Figueiredo M
30 T01 Rosa Figueiredo F Piranha
31 T01 Cornélio da Silva (Carmito?) M N Piranha
Figueiredo
32 T01 Velha F
33 T01 Everaldo Figueiredo M Taxipucu
34 T01 SN – Divorciado M N
35 T01 Renilda Figueiredo F
36 T01 Janio M
336
37 T01 José Figueiredo M
38 T01 Zilma F
39 T01 Vanessa F
40 T01 Nubia F
41 T01 Rosária Figueiredo F N Macapá
42 T01 Placido de Paula, Divorciado M N Macapá
43 T01 Magno Pacheco Figueiredo M H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
44 T01 Ruth de Souza Brito F H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
45 T01 Soleim Figueiredo M H16 Taxipucu FR HC
46 T01 Idacira Brito F H16 Taxipucu FR HC
47 T01 Iací Figueiredo F N Macapá
48 T01 Vanusa Correia de Figueiredo F H16 Taxipucu FR HC
49 T01 Cristian Ralf de Almeida Lima F H16 Taxipucu FR HC
50 T01 Francisco Figueiredo F H17 Taxipucu FR HC
51 T01 IGUAL A 233 F
52 T01 Claudio de Almeida Valadares M
53 T01 Jaíme Figueiredo Valadares M N Santa Maria
54 T01 Lucas Brito Figueiredo M H16 Taxipucu FR HC
55 T01 Solano Brito Figueiredo M H16 Taxipucu FR HC
56 T01; T03 Marlí Valadares Figueiredo F H9 Socó FR DG Y Y Y Y N HC LB F
57 T01 Elígio Souza Ferreira M H9 Socó FR DG Y Y Y Y N HC LB F
58 T01 Nazaré Figueiredo Ferreira F H9 Socó FR DG Y Y Y Y N HC LB F
59 T01 Simone Figueiredo Ferreira F H9 Socó FR DG Y Y Y Y N HC LB F
60 T01; T03 Reinaldo Figueiredo M H10 Taxipucu FR HC N Y Y N CH CM SM F
61 T01; T03 Dejanete Figueiredo F H10 Taxipucu FR HC N Y Y N CH CM SM F
62 T01; T03 Ricardo Figueiredo M H11 Taxipucu FR HC N N N N N N LB AS
63 T01; T03 Frederico Figueiredo M H11 Taxipucu FR HC N Y N N N N N MI
64 T01; T03 Edgar Figureiredo M H11 Taxipucu FR HC N Y N N N N SM MI
65 T01; T03 Flavio Figureiredo M H12 Taxipucu FR HC N Y Y Y CH CM LB F
66 T01; T03 Cristiane Figueiredo F H12 Taxipucu FR HC N Y Y Y CH CM LB F
67 T01; T03 Firmo Figueiredo Filho M H11 Taxipucu FR HC N Y N N N N SM MI
68 T01; T03 Robson Figueiredo M H12 Taxipucu FR HC N Y Y Y CH CM LB F
69 T01; T03 Niel Figueiredo M H10 Taxipucu FR HC N Y Y N CH CM SM F
70 T01; T03 Josiel Figueiredo M H10 Taxipucu FR HC N Y Y N CH CM SM F
71 T01; T03 Nataniel Figueiredo M H19 Taxipucu FR HC
72 T01 Angela dos Santos Figueiredo F N Macapá
73 T01 Carlos dos Santos Figueiredo M N Macapá
74 T01 Adolfo Correia de Figueiredo Filho M H28 João Brás IC DG N Y Y Y N HC C F
75 T01 Mariana Melo da Silva F H28 João Brás IC DG N Y Y Y N HC C AS
337
76 T01 José Celestino dos Santos M N Macapá
Figueiredo
77 T01 Waldete Melo F N Macapá
78 T01 Maria Inês dos Santos Figueiredo F N Macapá
79 T01 Rivaldo Gomes M N Macapá
80 T01 Gracinda dos Santos Figueiredo F N Macapá
81 T01 Edmilson Borges de Melo M N Macapá
82 T01 Camilo dos Santos Figueiredo M N Macapá
83 T01 Rosemeire Lacerda F N Macapá
84 T01 Daria dos Santos Figueiredo F N Macapá
85 T01 Manuel do Socorro M N Macapá
86 T01 Thiene Figueiredo Braga F N Macapá
87 T01 Ronelson Figueiredo dos Santos M N Macapá
88 T01 Adrielson Figueiredo dos Santos M N Macapá
89 T01 Anderson Figueiredo dos Santos M N Macapá
90 T01 Rodrigo Figueiredo dos Santos M N Macapá
91 T01 Adelson dos Santos Figueiredo M N Macapá
92 T01 Jana F N Macapá
93 T01 Renan M N Macapá
94 T01 Emerson M N Macapá
95 T01 Tamires Figueiredo F N Macapá
96 T01 Estefani da Silva Figueiredo F H28 João Brás IC DG N Y Y Y N HC C N
97 T01 Adolfo da Silva Figueiredo Neto M H28 João Brás IC DG N Y Y Y N HC C F
98 T01 José Celestino Júnior M N Macapá
99 T01 William Wallace Figueiredo Gomes M N Santana
100 T01 Iasmim Figueiredo Melo F N Macapá
101 T01 Ana Ter eza Figueiredo Melo F N Macapá
102 T01 Aline Figueiredo Melo F N Macapá
103 T01 Mateus Lacerda Figueiredo M N Macapá
104 T01 Marcos Lacerda Figueiredo M N Macapá
105 T01 Camila Lacerda Figueiredo F N Macapá
106 T01 Darlon Figueiredo Oliveira M N Macapá
107 T01 Juciclei Figueiredo Oliveira M N Macapá
108 T01 Dacio Figueiredo Oliveira M N Macapá
109 T01 Jucilei Figueredo Oliveira F N Macapá
110 T01 Henry Gabriel Figueiredo Oliveira M N Macapá
111 T01 João Correia de Figueiredo M
112 T01 Maizede do Rosário Figueiredo F
113 T01 Abel Figueiredo M N Macapá
338
114 T01 Ilda Maria Figueiredo de Paula F N Macapá
115 T01 Placido de Paula e Souza M
116 T01 Florentina da Gama Figueiredo F
117 T01 Waldecí Figueiredo M N Macapá
118 T01 Ivanilza F
119 T01 Benigna Correia da Boa Morte F
120 T01 Eusébio Correia de Figueiredo M
121 T01 Maria Onorina Figueiredo dos F D Piranha
Santos
122 T01 Julio Correia de Figueiredo M
123 T01 Balbino Correia de Figueiredo M
124 T01 Inês Correia de Figueiredo F
125 T01 Tertuliano Correia de Figueiredo M
126 T01 Eustaquelino Correia de Figueiredo M
127 T01 Olzinda Nascimento Rodrigues F
128 T01 Reinaldo Rodrigues Figueiredo M
129 T01 Maria Rodrigues Figueiredo F
130 T01 Paulo Rodrigues Figueiredo M
131 T01 Marina Rodrigues Figueiredo F
132 T01 Donato Rodrigues Figueiredo M
133 T01 Elvira Rodrigues Figueiredo F
134 T01 Alvaro Rodrigues Figueiredo M
135 T01 Miracy Rodrigues Figueiredo F
136 T01 Izaura Rodrigues Figueiredo F
137 T01 Darcy Rodrigues Figueiredo M
138 T01 Jacó Rodrigues Figueiredo M H26 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
139 T01 Dulcelinda da Silva Santos F H26 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
140 T01 Orzinda Nascimento Rodrigues F H26 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
Neta
141 T01 Zeni dos Santos Figueiredo F H26 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
142 T01 Adamor dos Santos Figueiredo M H40 São João da Caridade NF DG N Y Y Y CO HC N AS
143 T01 Zenide dos Santos Figueiredo F H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
144 T01 Ivanildo Figueiredo dos Santos M H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
145 T01 Heitor Figueiredo dos Santos M H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
146 T01 Shirley Figueiredo dos Santos F H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
147 T01 Thierry Figueiredo dos Santos F H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
148 T01 Jerry Figueiredo dos Santos M H27 São João da Caridade NF DG N Y Y N CO HC SM AS
149 T01 Ana Soares de Santos F
150 T01 Waldizia Correia de Figueiredo F
339
151 T01 Laercio Correia de Figueiredo M
152 T01 Nelson Correia de Figueiredo M
153 T01 Durvalina Correia de Figueiredo F
154 T01 Maria Ninfa Correia de Figueiredo F
155 T01 Daniel Nascimento Rodrigues M
156 T01 Ana Maria Figueiredo F H43 Pocotó DR IS N Y Y Y PC HC SM R
157 T01 Rose Rodrigues dos Santos F
158 T01 Manuel Rodrigues dos Santos M
159 T01 Waldir Rodrigues dos Santos M
160 T01 José Rodrigues dos Santos M
161 T01 Lauro Rodrigues dos Santos M
162 T01 Maria Rodrigues dos Santos F
163 T01 Elísia Rodrigues dos Santos F
164 T01 João Rodrigues dos Santos M
165 T01 Aelson Rodrigues dos Santos M
166 T01 Zuleide Rodrigues dos Santos F
167 T01 Abiatá Rosário dos Santos M D
168 T01 Elione Figueiredo dos Santos F
169 T01 Tatiane Figueiredo dos Santos F
170 T01 Ivanildo Figueiredo dos Santos M
171 T01 Marcione Rodrigues dos Santos F H40 São João da Caridade NF DG N Y Y Y CO HC N AS
172 T01 Maria Marta Figueiredo dos Santos F
173 T01 Marciele Figueiredo dos Santos F
174 T01 Delson Figueiredo dos Santos M
175 T01 Eliege Figueiredo dos Santos F
176 T01 Walmir Moraes dos Santos (Tete) M H42 Retiro São Pedro, NF IS N Y Y Y PCC HC SM AS
Querquilhau
177 T01 José Luiz Figueiredo dos Santos M
178 T01 Marcia Figueiredo dos Santos F
179 T01 Cledison Figueiredo dos Santos M
180 T01 Odila Correia de Figueiredo F
181 T03 Maria Madalena Valadares F D
182 T03 Almezino Coelho Furtado M D Marajó
183 T03 Simistone Valadares Furtado M
184 T03 Walica Valadares Furtado F H20 Buçutuba DR IS N Y Y Y PC HC C F
185 T03 Zila Valadares Furtado F H4 São Manuel IC HC Y Y Y Y P HC C R
186 T03 Maria Valadares F H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
187 T03 Adelardo Valadares M H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
188 T03 Veríssima Valadares F H30 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM C R
340
189 T03 Maria de Nazaré Valadares F N Macapá
190 T03 João Valadares M
191 T03 Cecilia Ferreira da Silva F H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
192 T03 Ana Cléia da Silva Valadares F N Afuá
193 T03 Luana da Silva Valadares F H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
194 T03 Ediene da Silva Valadares F H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
195 T03 Luciene da Silva Valadares F H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
196 T03 Hélio da Silva Valadares M H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
197 T03 Solange da Silva Valadares F N Chaves
198 T03 Silvio da Silva Valadares M H8 Prainha IC HC N Y Y Y CH HC C F
199 T03 João Marques Oliveira Brito M H30 Prainha IC DG Y Y Y Y PCC CM C R
200 T03 Maria da Conceição Valadares F N Macapá
201 T03 Lucídio Marco de Oliveira Brito M D São Manuel
202 T03 Maria de Nazaré de Oliveira Brito F
203 T03 Miguel Valadares de Oliveira M
204 T03 Alexandre Valadares de Oliveira F H5 São Manuel IC HC Y Y Y N PC HC C F
205 T03 Maria Cléia Pacheco F H5 São Manuel IC HC Y Y Y N PC HC C F
206 T03 Joaquina Pacheco F
207 T03 Alexandre Pacheco de Oliveira Filho M
208 T03 Andreia Pacheco de Oliveira F
209 T03 Maria Néia Pacheco de Oliveira F
210 T03 Edmar Pacheco de Oliveira M
211 T03 Eli Cristina dos Santos Faria M
212 T03 Gabriel Faria de Oliveira M
213 T03 Felipe Faria de Oliveira M
214 T03 Alessandra Faria de Oliveira F
215 T03 Eusébio Furtado de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
216 T03 Elmir Valadares de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
217 T03 Carlos Valadares de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
218 T03 Celso Valadares de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
219 T03 Ademir Valadares de Almeida M Caviana
220 T03 Meire Valadares de Almeida F N Macapá
221 T03 Aldonita Valadares de Almeida F N São Sebastião da Boa Vista
222 T03 Sergio Valadares de Almeida M N Caiana, Guiana Francesa
223 T03 Cristino Valadares de Almeida M N Macapá
224 T03 Claudio Valadares de Almeida M H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
225 T02 Alcinéia Valadares de Almeida F H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
226 T03 Milton Rodrigues da Rocha M H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
227 T02 Savo Almeida Furtado M H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
341
228 T03 Ameilton da Rocha Almeida M H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
229 T03 Nilton da Rocha Almeida M H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
230 T03 Josiane da Rocha Almeida F H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
231 T03 Josilene da Rocha Almeida F H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
232 T03 Alcilone da Rocha Almeida F H7 Santa Maria IC IS N Y Y N N CM LB F
233 T03 Janaína Correia Figueiredo F H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
234 T03 Jaine Figueiredo Furtado F H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
235 T03 Natanael Figueiredo Furtado M H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
236 T03 Claudinei Figueiredo Furtado M H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
237 T03 Cleuton Figueiredo Furtado M H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
238 T03 Euvaldo Correia M
239 T03 Ediomar Rodrigues da Paixão M
240 T03 Maria Francisca Pacheco Figueiredo F
241 T03 Jacozinho Furtado M
242 T03 Pedro Furtado M
243 T03 Teodomiro Furtado M
244 T03 João de Deus Furtado M H21 Entrada Taxipucu IC DG Y Y Y Y PC HC C R
245 T03 Neuracy de Brito Furtado F H21 Entrada Taxipucu IC DG Y Y Y Y PC HC C R
246 T03 Antonio de Deus Furtado M
247 T03 Maria Angela Gomes F
248 T03 Eduarda de Souza Furtado M D
249 T03 Jacó Bibiano de Almeida M D
250 T03 Jovita Valadares Furtado F D Prainha
251 T03 Pedro da Costa Faria M D Pracutuba
252 T03 Maia Isa Valadares Brito F N Macapá
253 T03 João Valadares Brito M H30 Prainha IC DG Y Y Y Y PCC CM C R
254 T03 Raimundo Valadares Brito M H30 Prainha IC DG Y Y Y Y PCC CM C R
255 T03 Adielson Valadares Brito M N Macapá
256 T03 Adiel Valadares Brito M N Macapá
257 T03 Alaelson Valadares Brito M H30 Prainha IC DG Y Y Y Y PCC CM C R
258 T03 Maria Augusta Valadares Brito F N Afuá
259 T03 Elísio Valadares Brito M N Macapá
260 T03 Maria Marcelina Valadares Brito F N Macapá
261 T03 Constantino Valadares M
262 T03 Manuel Romão Valadares M D
263 T03 Veridião Furtado(Dião) M
264 T03 Dorcinda Furtado Valadares F
265 T03 Pedro Gomes Valadares M
266 T02; T03 Domingos dos Santos Furtado M H38 Turézinho FR DG N Y Y Y CO HC SM MI
342
267 T03 Maria Julia Valadares F D
268 T03 Elvira Valadares F
269 T03 Rosa Valadares F
270 T02; T03 Alda Valadares Furtado F H38 Turézinho FR DG N Y Y Y CO HC SM MI
271 T02 Augusto Monteiro Reis M
272 T02 Agueda Maria dos Santos F
273 T02 Gita dos Santos Reis F
274 T02 IGUAL A 186 F H23 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM SM F
275 T02 Lauro Marques de Brito Amaral M
276 T02 Gracinda Rosa dos Santos F H47
277 T02 Nercindo Ayres Furtado M H47
278 T02 Isabel Ayres Furtado F D
279 T02; T05 Olivio Bertoldo Furtado M
280 T02; T03 Edilson Valadares Furtado M H39 Turézinho FR DG N Y Y Y CO HC SM F
281 T02; T03 Arió Furtado Valadares M
282 T02 Olivio dos Santos Furtado (Alemão) M H43 Pocotó DR IS N Y Y Y PC HC SM R
283 T02 Ana dos Santos Figueiredo (Igual a F
156?)
284 T02 Maria Valadares F
285 T02 Dora Valadares Furtado F
286 Lélia Valadares Furtado F
287 Preto Valadares Furtado M
288 T02 Rosangela Valadares Furtado F
289 T02 Emilson Valadares Furtado M
290 T02; T03 Zulma Furtado Valadares F
291 T02; T03 Toti Furtado Valadares F
292 T02 Giovita dos Santos Silva F
293 T01; T02 Raimunda dos Santos Batista F H1 Socó FR DG Y Y Y Y CH HC C F
294 T02 Franklin Batista M
295 T02 Agnaldo da Silva F
296 T02 Ezequiel Lima M
297 T01; T02 Tereza dos Santos Lima F
298 T02 Julio dos Santos Lima M
299 T02 Manuel dos Santos Lima (Mimi) M
300 T02 Aurora dos Santos Lima F
301 T02 Marciano dos Santos Lima M
302 T02 Nazaré da Silva F
303 T02 Abelardo da Silva M
304 T02 Leonildes da Silva M
343
305 T02 Lucio da Silva M
306 T02 Graça da Silva F
307 T02 Zena da Silva F
308 T02 Nené da Silva F
309 T02 Ivete dos Santos Batista F N Belém
310 T02; T04.1 Marlene dos Santos Batista F N Belém
311 T02 Milca dos Santos Batista F N Belém
312 T02 Candinha dos Santos Batista F D Belém
313 T02 Izoleide dos Santos Batista F Ayuá, Caviana
314 Eurico dos Santos Batista M N Macapá
315 Xiné dos Santos Batista M N Belém
316 Xiroca dos Santos Batista F Cheira-café, Fazenda Santa Terezinha, Caviana
317 Fernando Henrique Santos Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
318 T04.1 Raimundo (Diquinho) dos Santos M D
319 T04.1 Paulo Sérgio M N Belém
320 T04.1 Paula Marcia F N Belém
321 T04.1 Paulo César M N Belém
322 T04.1 Paulo (Chico) M N Caiena
323 T04.1 Paula Maria F Belém
324 T04.1 Veríssimo F D Marajó
325 T04.1 Cantoario M N Marajó
326 Maria José Rodrigues F N Macapá
327 T04.2 Iame Rodrigues M N Macapá
328 T04.2 Biata Rodrigues F N Macapá
329 T04.2 Orzinda Rodrigues Batista F N Macapá
330 T04.2 Jeová Rodrigues Batista M N Macapá
331 T03; T04.1 Raquel Rodrigues Batista F N Macapá
332 T03; T04.1 Ilca Rodrigues Batista F N Macapá
333 T03; T04.1 Sebastião Rodrigues Batista M N Macapá
334 T03; T04.1 Sebastiana Rodrigues Batista F N Macapá
335 T03 Antonio Marcos da Silva Almeida M
336 T03 Dejací da Silva Furtado F
337 T03 Ednelson da Silva Furtado M
338 Dejanira da Silva Furtado F
339 Deusa da Silva Furtado F
340 Keila F Buçutinha
341 T05 Manuel Amaral M D Marajó
346 Roseli da Silva Trindade F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
347 Maria Eunia de Brito da Silva F H13 São Raimundo IC HC
344
348 T05 José Valadares M H13 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
349 Jacinto da Silva Valadares M H15 São Raiumundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
350 Sebastiana da Silva Valadares F N Macapá
351 Eliel da Silva Valadares M N Macapá
352 Maciel da Silva Valadares M H14 São Raimundo IC HC
353 Adaelson da Silva Valadares M N Macapá
354 Norma da Silva Valadares F N Afuá
355 T05 Benedita da Silva Furtado F N Macapá
356 Mercedes da Silva Furtado F N Macapá
357 Maura da Silva Furtado F H13 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
358 Emilio da Silva Furtado M São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
359 Vania Brito da Silva F H14 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
360 Viviane da Silva Valadares F H14 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
361 Kelly da Silva Valadares F H14 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
362 Laura Brito da Silva F H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
363 Audilan da Silva Valadares M H15 São Raiumundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
364 Emerson da Silva Valadares M H15 São Raiumundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
365 Romario da Silva Valadares M H15 Sâo Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
366 jácimo da Silva Valadares M H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
367 Adailton da Silva Valadares M H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
368 Darlene da Silva Valadares F H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
369 Lauriene da Silva Valadares F H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
370 Lauriane da Silva Valadares F H15 São Raimundo IC HC N Y Y Y N CM C MI
371 Rosinaldo Furtado Moraes M H3 Pocotó FR IS N Y Y Y PC HC C AS
372 Manuel Furtado dos Santos M D
374 Manuel da Conceição Furtado M N Macapá
Moraes
375 Walfredo Furtado Moraes M N Macapá
376 Reginaldo Furtado de Moraes M N Macapá
377 Ronildo Furtado de Moraes M N Macapá
378 Rosalva Furtado de Moraes F N Macapá
379 Suely da Silva Moraes F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
380 Suelen da Silva Moraes F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
381 Suany da Silva Moraes F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
382 Rosileida da Silva Moraes F H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
383 Rosinaldo da Silva Moraes M H3 Pocotó FR IS N Y Y Y P HC C N
384 Raimundo dos Santos Lima M H22 Ilha Nova NF IS Y Y Y N CO HC SM AS
385 Maria Rosa de Souza Lima F H22 Ilha Nova NF IS Y Y Y N CO HC SM AS
386 Samarone de Souza Lima F H22 Ilha Nova NF IS Y Y Y N CO HC SM AS
345
387 Nelhinho de Souza Lima M H22 Ilha Nova NF IS Y Y Y N C HC SM AS
388 Clodoaldo de Souza Lima M N Macapá
389 Raimundinho de Souza Lima M N Macapá
390 Cipriano Pereira Lima M D
391 Vitoria dos Santos Lima F D
392 João Rogério de Souza M D Ilha Nova
393 Odorina Nazaré de Souza F D Ilha Nova
394 Claudio Valadares Furtado M H6 Prainha IC HC Y Y Y Y PCC CM LB F
395 Bernardina Ferreira da Silva F N Afuá
400 Ermídio Gonçalves da Silva M N Afuá
401 T01 Constâncio M H1 Socó FR DG Y Y Y Y CH HC C F
402 T01 Conceição Ferreira Souza F Boa Vista
403 T01 Maria Raimunda Ferreira Souza F N Macapá
404 T01 Domingos Ferreira Souza M N Macapá
405 T01 Wanderlei de Almeida Figueiredo M N Belém
406 T01 Mendes de Almeida Figueiredo M N Macapá
407 T01 Aurea Figueiredo de Almeida M N Macapá
408 T01 Joaquina Figueiredo de Almeida F H31 Macapá, casa em Caviana Taxipucu
409 T01 Walda Figueiredo de Almeida F N Macapá
410 T01 Glória do Rosário Figueiredo F D
411 Ana dos Santos Valadares F D São Raimundo
412 T01 Carlene Patiali de Almeida F N Macapá
Figueiredo
413 T01 Alan Weiner de Araujo Figueiredo M N Macapá
414 T01 Maria Graciele Carmo Sene da Silva F N Macapá
415 T01 Yasmim Raquele Figueiredo da Silva F N Macapá
416 Ronei Brito Figueiredo M H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
417 Ismael Brito Figueiredo M H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
418 Ronália Brito Figueiredo F H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
419 Ruany Brito Figueiredo F H29 Taxipucu DR IS N Y Y Y N CM SM F
420 Ezildo Brito da Silva M H32 Ilha da Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
421 Diva Matia Brito Almeida F H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
422 Jefferson Almeida Barros M H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
423 Alafe Almeida Barros M H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
424 Jessica Almeida Barros F H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
425 Leticia Brito da Silva F H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
426 João Gustavo Almeida da Silva M H32 Ilha das Marrecas FR IS N Y Y N PC HC C AS
427 Maria Zilda Brito da Silva F H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N R
428 João Brás Brito Pacheco M H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N R
346
429 Flaviana Brito da Silva F D Belém
430 Eremita Brito da Silva F D
431 Laudelino da Silva Brito M D
432 Ana Lucia Brito da Silva F N Macapá
433 Hildo Brito da Silva M N Macapá
434 Waldir Brito da Silva M Pocotó
435 Ivanildo Brito da Silva M N Macapá
436 Vera Lucia Brito da Silva F N Centro da Ilha
437 Ednelson Brito da Silva M H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N AS
438 Marinelson Brito da Silva M H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N AS
439 Edlucia Brito da Silva F N Chaves
440 Paulo Valadares da Silva M N Macapá
441 Wilma Furtado Figueiredo F N Macapá
442 MaraLuce Machado (IGUAL AO F N Pocotó
443?)
443 T09 Maria Lucia Machado da Silva F H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM N N
444 T09 João Oasis da Silva M D Pocotó
445 Paula Machado F N Macapá
446 Carlos Edmilson Batista da Silva M N Centro da Ilha
447 Dionor Brito da Silva F N Centro da Ilha
448 Marizeu Brito da Silva M N Centro da Ilha
449 Selma Gardelha Pacheco F H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N AS
450 Maria Meires Gardelha Pacheco F N
451 T06 Ander elei M N Fazenda Carlos Melo
452 Ivaldo Brito Pacheco M N
453 T05 Fernando Rodrigues Figueiredo M N Chaves
454 Antonio M N Chaves
455 T06 Sandy Batista Figueiredo F N Chaves
456 Delcio Correia Figueiredo M Fazenda "Queijo"
457 T05; T06 Mojacy Figueiredo da Silva M N Macapá
458 T05 Doralice Furtado Figueiredo F Fazenda "Queijo"
459 Adria Batista da Silva F N Macapá
460 Miguel Antony Pacheco Brito M H33 São Benedito NF IS Y Y Y N CO HC N AS
461 Izolina Brito dos Santos F H42 São Pedro Querquilhau NF IS N Y Y Y PCC HC SM AS
462 T05 Rosaldo dos Santos Amaral M H34 Santana NF HC N Y Y N CO HC SM AS
463 Rodolfo Brito dos Santos M H42 São Pedro, Querquilhau
464 Luciano de Oliveira Brito Amaral M H37 Santana NF HC N Y Y N N HC N AS
465 T05 Waldeí Brito dos Santos M N Chaves
466 T05 Maria de Nazaré dos Santos Amaral F D São João da Caridade
347
467 José Maria dos Santos Neto M N Chaves
468 Neuza Correia dos Santos F D
469 T05 Isabela Brito dos Santos F N Chaves
470 T05 Manuel Amaral M D
471 T05 Jurací Figueiredo da Silva F H43 Pocotó DR IS N Y Y Y PC HC SM R
472 Raimundo dos Santos Amaral M H36 Santana NF HC N N N N N HC N AS
473 T05 Juarez Figueiredo da Silva M N Macapá
474 T05 Lilian dos Santos Amaral F H36 Santana NF HC N N N N N HC N AS
475 Josivaldo Figueiredo da Silva M N São João
476 T05 Vani dos Santos Amaral F N Macapá
477 T05 Junielson Figueiredo da Silva M H43 Pocotó
478 Rosiane dos Santos Amaral F H35 Santana NF HC N Y Y N CH HC SM MI
479 T05 Diana Figueiredo da Silva F N Afuá
480 T05 Gilmara dos Santos Amaral F H34 Santana NF HC N Y Y N CO HC SM AS
481 T05 Mariana Figueiredo da Silva F N Afuá
482 Eufrásio Furtado Figueiredo M H35 Santana NF HC N Y Y N CH HC SM MI
483 T05 Ana Claudia Figueiredo da Silva F N Afuá
484 T05 Gleiciane Valadares Figueiredo F N Macapá
485 T05 João Vitor Azevedo Amaral M H36 Santana NF HC N N N N N HC N AS
486 T05 Dolores Marques de Oliveira Brito F D Rio de Janeiro - Santana, Caviana
487 T05 Raimunda F D
488 T05 Francisco M N
489 T05 Maurício M N
490 T05 Doca F N
491 T05 Sebastião (Sabá) M N
492 T05 Olvídio M N
493 T06 Odete Lima Batista F H41 Santo Antonio, NF IS N Y Y N PC HC C R
Caridade
494 T06 Andreia Lima Batista F N Macapá
495 T06 Andreza Lima Batista F N Chaves
496 T06 Adilena Lima Batista F H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
497 T06 Fernanda Lima Batista F H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
498 T06 Bruna Lima Batista F H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
499 T06 Amauri Lima Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
500 T06 Audri Lima Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
501 T06 Adilson Lima Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
502 T06 Adriano Lima Batista M N Fazenda Carlos Melo
503 T06 Franquelino de Oliveira Batista M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
504 T06 Celina Lima F H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
348
505 T06 Pedro da Silva M H41 Sto Antonio, Caridade NF IS N Y Y N PC HC C R
506 T06 Lene Batista Valadares F N Fazenda Carlos Melo
507 T09 Suzy Machado da Silva F H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM SM AS
508 T09 Walnei Dias de Almeida M H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM SM AS
509 T09 Erika Caroline da Silva Santos F H44 Pocotó
510 T09 Davi da Silva Almeida M H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM N N
511 T09 Emanuele da Silva Almeida F H44 Pocotó FR DG N Y Y N CH CM N N
512 Waldemir da Silva Trindade M D
513 Maria Domingos da Silva F D Arapichí, Ilha de Marajó
514 Nicota Furtado F H45 Afuá, Ilha de Marajó FR UR N Y Y N N N N N
515 Raimundo Souza Santos M H46 Entrada do Socó IC DG Y Y Y Y CH HC C F
516 Ana Patricia Dantas F H46 Entrada do Socó IC DG Y Y Y Y CH HC C F
517 Paulo Henrique Souza Dantas M H46 Entrada do Socó IC DG Y Y Y Y CH HC C F
518 Anderson Gustavo Souza Dantas M H46 Entrada do Socó IC DG Y Y Y Y CH HC C F
519 Maria F H48 Turézinho DR IS N N Y Y CH HC N N
349
350