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Afro-Ásia

ISSN: 0002-0591
ISSN: 1981-1411
Universidade Federal da Bahia

Nicácio, Jeferson de Jesus


O RACISMO ANTINEGRO, A PSICANÁLISE E A SUBJETIVIDADE DA NOSSA ÉPOCA NO BRASIL
Afro-Ásia, núm. 62, 2020, Julho-Dezembro, pp. 484-494
Universidade Federal da Bahia

DOI: https://doi.org/10.9771/aa.v0i62.42891

Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77068103018

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O racismo antinegro, a psicanálise e a
subjetividade da nossa época no Brasil

KON, Noemi: SILVA, Maria Lucia da; e ABDUL, Cristiane (orgs.). O racismo e o
negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. 304p.

“Já que é preciso, de qualquer modo, ainda pouco lida da lacaniana negra
não lhes pintar unicamente um futuro Neusa Santos Souza sobre a questão,
cor-de-rosa, saibam que o que vem apenas em 2017 vemos o lançamento
aumentando, o que ainda não viu suas de um livro coletivo que tematiza de
últimas consequências e que, por sua forma ampla e essencial o fenômeno
vez, se enraíza no corpo, na frater- do racismo antinegro no país.2
nidade do corpo, é o racismo. Vocês Organizado por três psicanalistas, a
ainda não ouviram a última palavra a coletânea aqui resenhada reúne artigos
respeito dele”.1 Com essas palavras
que hoje assumem ares proféticos, 2 Me referi ao livro de Neusa Santos Souza,
o psicanalista francês Jacques Lacan Tornar-se negro, Rio de Janeiro: Graal,
1983. Também não posso deixar de fazer
(1901-1981) terminava um dos seus menção, entre outros, aos trabalhos
pioneiros sobre as relações raciais de
seminários em 1972.
Virgínia Bicudo, mulher negra consi-
Mas, mesmo que o “lacanismo” derada primeira psicanalista do Brasil;
aos textos de Lélia Gonzalez (1935-1994)
seja a orientação teórica psicanalítica que mobilizam a psicanálise para pensar
predominante entre nós, e em 1983 o racismo e o sexismo no país; ao livro
organizado por Iray Carone e Maria
tenhamos a publicação de uma obra Aparecida Silva Bento (orgs.), Psicologia
social do racismo, Petrópolis: Vozes,
2002, e à tese de doutorado de Isildinha
1 Jacques Lacan, O seminário: livro 19: Baptista Nogueira, “Significações do corpo
... ou pior 1972 (2007), Rio de Janeiro: negro”, Tese (Doutorado em Psicologia),
Zahar, 2012, p. 227. Universidade de São Paulo, 1998.

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fruto de um evento realizado em 2012 que o torna um “crime perfeito”
pelo Departamento de Psicanálise (p. 40). Uma dinâmica de funciona-
do Instituto Sedes Sapientiae e por mento que torna superior determinados
psicanalistas militantes do movimento discursos da pessoa branca especialista
negro de São Paulo. em pessoas negras, tampa os ouvidos
O antropólogo Kabengele para a escuta destas e obstaculiza a
Munanga abre o volume com o texto tomada de consciência da situação
“As ambiguidades do racismo à brasi- pela sociedade como um todo.
leira”, abordando o tema enquanto Em “Dessemelhanças e precon-
fenômeno presente em diversas socie- ceitos”, Heidi Tabacof conta como
dades contemporâneas, mesmo que a o recurso ao sociodrama enquanto
racionalidade científica demonstre metodologia de trabalho no evento
o absurdo de crenças e afirmações pôde tocar nessa dor condenada ao
sustentadas em qualquer ideia de silêncio que, porém, faz-se presença
superioridade ou inferioridade raciais constante no país. A violência
de grupos humanos. No Brasil, escondida pelo racismo brasileiro
diferentemente de outros países, pôde ser exposta e, com isso, perdeu
temos uma série de ambiguidades “o habitual disfarce que a mantém
no que diz respeito a reconhecer e latente e muda” (p. 46), fazendo
refletir essa questão: para muitos o inclusive surgir a discussão sobre
país sequer é racista, sendo a questão a diferença entre o preconceito
econômica ou de classe social fator contra pessoas judias e negras, o que
determinante para os processos evidencia conflitos latentes até então
discriminatórios; e, para quem afirma não percebidos. Trata-se daquilo que
existir o racismo, sempre o outro é não é dito e torna ainda mais difícil
quem o comete. que a dor e a glória desses grupos
O autor mostra como argumentos discriminados e violentados sejam
ao arrepio das evidências históricas narradas e transmitidas para que
e exceções factuais mitificadas são se possa processar as experiências
articulados para desmobilizar as lutas traumáticas e assim ultrapassá-las.
das pessoas que sofrem o racismo e O capítulo “A violência nossa
como o silêncio é uma característica de cada dia: o racismo à brasileira”,

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de Maria Carvalho Vennuchi, se pensar os efeitos do racismo na consti-
propõe a pensar o racismo antinegro tuição da subjetividade negra, já que
como sintoma coletivo herdado a violência introjetada acarreta uma
da escravatura e atualizado pela negação de si, do valor mais elementar
violência que constitui a sociabi- atribuído a si (ao seu próprio corpo
lidade brasileira, interpretado a partir negro). Uma consequência possível
dos textos sociais de Freud. Ao passar é o “desejo que deságua no desejo da
pelas discussões freudianas clássicas própria extinção” (p. 67), que com a
acerca do mito fundador do contrato denegação do racismo operada pelo
social (a morte do pai da horda discurso corrente – e pela própria
primitiva), a agressividade humana e escuta psicanalítica que desconsidera
a tarefa da civilização em regular os o fenômeno – faz com que pessoas
laços sociais, a autora reflete como negras coloquem em dúvida a
a violência social não é um dado realidade da violência de gestos e falas
natural. Construção a serviço das cotidianas que reproduzem a discri-
necessidades de autoconservação dos minação e figurem como paranoicas
grupos que, ao se formarem coleti- dotadas de um discurso “vitimista”.
vamente, buscam fortalecer laços Em “Racismo no Brasil: questões
internos e elegem como o estranho ao para psicanalistas brasileiros”, a
grupo que será alvo da agressividade, psicóloga e psicanalista Maria Lúcia
o racismo seria justamente um da Silva compartilha sua experiência
fenômeno primitivo de estranhamento de mulher negra que vivenciou uma
e angústia intrínseco à formação da situação de racismo numa aula de
identidade, refratário aos argumentos psicanálise do Instituto SEDES e suas
racionais. Neste caso, se escolhe inquietações acerca de uma demanda
odiar a “pequena diferença” de certo reprimida para as pessoas negras que
grupo igualmente humano tido como acreditam no potencial transformador
de algum modo diverso. da psicanálise. Ou seja, o racismo não
Porém, o momento mais interes- pode ser tratado como uma “queixa”
sante do seu texto é quando a autora individual, pois constitui responsa-
recorre ao prefácio do livro de Neusa bilidade coletiva da qual as pessoas
Santos Souza, Tornar-se Negro, para brancas (inclusive as praticantes

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da psicanálise) não podem deixar acerca das diferenças humanas
de se implicar. ao longo do XIX. Alguns desses
Outro eixo importante do seu modelos de determinismo geográfico
capítulo é ressaltar que a maior vitória e social foram empregados para
do racismo está na sua dimensão pensar as idiossincrasias dessa que foi
psicológica, naquilo que marca a a última nação a abolir a escravidão
constituição subjetiva das pessoas no Ocidente. Tido como verdadeiro
negras nos processos de identificação, “laboratório vivo de raça”, inter-
fabricação de identidades e produção namente o país “oscilava na sua
de sintoma, essa solução encontrada representação: ora éramos definitiva-
pelo psiquismo para manter fora da mente degenerados, ora divinamente
consciência conteúdos ligados a uma mestiços” (p.101-102), o que ajuda a
dor produzida por vivências despra- entender as ambiguidades presentes
zerosas. Ademais, toca num ponto nas pesquisas sobre o racismo: ao
ainda pouco discutido pela literatura: mesmo tempo que reconhecem a
as influências que as representações existência do fenômeno, as pessoas
negativas sobre o ser negro/a/e sempre o situam no outro e não em
exercem na psique da criança negra si, como se cada brasileiro fosse uma
no Brasil. Mais do que afirmar que o “ilha de democracia racial cercada de
narcisismo é fruto da relação com os racismo por todos os lados” (p. 116).
pais, é preciso pensar que os ideais de Ao discutir o racismo como
branquitude numa sociedade racista uma forma de linguagem social viva
podem impactar mesmo essas figuras presente em provérbios (frases e ditos
que cumprem a função social de populares) entranhados nos nossos
maternagem e paternagem. costumes, a autora possibilita inter-
No texto “Raça, cor e rogar sobre como o racismo atravessa
linguagem”, a historiadora e antro- as formações do inconsciente no
póloga Lilia Moritz Schwarcz faz Brasil. Expressões tais quais “à noite,
uma espécie de cartografia de todos os gatos são pardos” ou “eles
algumas das principais teorias raciais que são brancos que se entendam”
que surgem desde o século XVIII e denotam a força das cores na consti-
influenciam ou se tornam explicações tuição do vocabulário interno desta

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comunidade mestiça imaginada com certos fenômenos inscritos na
na qual se tem “preconceito de ter psique durante o processo da nossa
preconceito” (como dizia Florestan constituição subjetiva.
Fernandes). Porém, as desigualdades Acontece que, para a pessoa
raciais vicejam em todas as estatísticas, negra, a imagem de si “forjada
ainda que a identificação racial varie na relação com outro – e no ideal
contextualmente. Assim, os termos de brancura – não só não guarda
e nomes mudam de feição e formato nenhuma semelhança com o real
conforme o cálculo racial subjetivo de de seu corpo próprio mas é por este
cada um, mas ser nomeado ou dizer-se negada” (p. 124), o que cria angústia,
“negra/o/e” jamais pode ser consi- confusão entre o real e o imaginário,
derado neutro e o racismo, enquanto introjeção de uma agressividade que
nossa linguagem interna, acontece de leva à autorrejeição e, no limite, uma
maneira “violenta, nos pequenos e despersonalização em que o sujeito
grandes atos diários” (p. 118). torna-se autômato, alienado ao desejo
Num texto curto mas preciso, do outro. Como lidar com essas
“Cor e inconsciente”, a psicóloga questões sendo uma pessoa negra na
e psicanalista Isildinha Baptista função de psicanalista? “Permanece
Nogueira reflete, à luz da teoria o medo de romper a tênue linha da
lacaniana, como o significante “cor sensibilidade humana e me expor
negra” e a realidade sociocultural como personagem de meu drama
do racismo articulam um arranjo pessoal, perdendo de vista a sensibi-
semântico, político, econômico e lidade do analista que trabalha com
histórico que produz um apartheid sintomas que falam do paciente, mas
psíquico, moldando inconsciente- também dele, que escuta” (p. 125),
mente a estrutura psíquica da pessoa ressalta a autora. Mas ainda nos falta
negra, mesmo que esta tenha plena estender esse tipo de pergunta às
consciência do racismo. Afinal, desde pessoas brancas que atendem pessoas
Freud sabemos o quanto escapa à brancas em relação à branquitude
nossa vontade – ao domínio da nossa que as aproxima.
razão narcísica – lançar mão de um Fúlvia Rosemberg, em
aparato lógico-racional para lidar “Psicanálise e relações raciais”,

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na condição de pesquisadora da relações pessoais, mas cristaliza-se
educação, interroga o tratamento nas diversas instituições e provoca
dado à infância no âmbito das efeitos de segregação e rebaixa-
relações raciais, tendo em vista uma mento que se automatizam em
perspectiva que leva em consideração procedimentos e instâncias muitas
as dimensões materiais e simbólicas vezes invisíveis, sustentadas por
do racismo. Desse modo, propõe práticas racistas, conscientes ou
pensar, simultaneamente, como se não. Ora, o racismo opera processos
articulam a condição socioeconômica de dominação de um grupo sobre o
e de pertença racial na sua interface outro e, como tal, não se perfaz sem
com outros marcadores (classe, desejo e fantasia: o desejo de dominar
gênero e idade) para a produção de um se constitui em grupo e tem sempre
racismo complexo, que está presente um objeto de satisfação fantasmática
nas relações familiares, escolares e, de quem domina, que numa estrutura
estruturalmente, nas instituições de racista não domina só, pois precisa se
um modo geral. Ao questionar em reunir em cumplicidade com aqueles
que momento uma pessoa é ou se que considera parceiros.
torna racista, partindo do pressuposto Sintomático é o autor falar do
de que ideologia racial de superio- Instituto AMMA Psique e Negritude,
ridade branca é forjada no universo espaço em que as iniciativas de
adultocêntrico, a creche, a pré-escola, resistência, questionamento e trans-
a pequena infância e o papel que as formação em relação ao racismo são
crianças possuem na construção articuladas por uma rede de profis-
de sociedades racistas tornam-se sionais negras/os/es. Com efeito, tal
focos de preocupação até então grupo se une de modo não servil e faz
pouco investigados. laço social no presente na luta contra
Já em “A dominação racista: a dominação racista, esse vínculo com
passado presente”, José Moura o passado escravista que, como disse
Gonçalves Filho parte do capítulo o historiador Luiz Felipe Alencastro
anterior para pensar como o em relação ao escravismo, não se
racismo contra pessoas negras não trata apenas de uma herança colonial,
se manifesta apenas no plano das mas uma formação de compromisso

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para o futuro que projeta as relações processo da mesma forma? A psica-
de escravidão/servidão racial na nálise precisa não tornar a experiência
contemporaneidade. 3 do sujeito atomizada, presa a uma
Em “Racismo, uma leitura”, perspectiva individualizante, visto
Moisés Rodrigues Junior analisa o que o próprio Freud já questionava a
processo histórico de formação das diferença de natureza entre indivíduo e
identidades e os impactos da violência sociedade (ou possibilidade de operar
racista nas relações de dominação e essa separação); mas também precisa
opressão. As discussões e perspec- se perguntar o modo como cada
tivas sobre a escravidão, o surgimento pessoa negra vivencia singularmente
da noção de raça e o fenômeno esse sofrimento.
do racismo como consolidação de Em “Buscando baobás na aridez
uma visão da pessoa negra como o do asfalto: instaurando origens”, a
“outro”, no que tem de ideológico e psicanalista Miriam Chnaiderman
na sua relação com o expansionismo articula clínica psicanalítica, pensa-
religioso judaico-cristão, forram a mento feminista negro, cinema e
discussão mais psicanalítica sobre literatura para explorar as possibi-
“o estranho”, os processos de identi- lidades de construção de narrativas
ficação – mecanismo privilegiado da que visem dar conta de uma origem
constituição do Eu – e as relações de negada. Uma das dimensões mais
alienação e assimetria. fecundas do texto é cogitar o quanto
Uma reflexão que permite ponderar o silenciamento da história de um
o quanto a pessoa negra, desvalorizada povo e de sua herança cultural não
em sua singularidade, passa por implica apenas em recalque que leva
experiências de interdição, sofrimento a conflitos sociopsíquicos, mas a uma
e espoliação da sua subjetividade. Mas negação da dignidade humana no
será que toda pessoa negra vive esse tempo presente, daí a necessidade de
se inventar genealogias (no plural),
3 Luiz Felipe de Alencastro, “Vida privada já que no mundo branco a subjeti-
e ordem privada no Império” in L. F. de vidade da pessoa negra passa por
Alencastro (org.) e Fernando Novais
(coord.), História da vida privada no tortuosos caminhos para se constituir,
Brasil (São Paulo: Companhia das Letras,
1997), v. 2, pp. 16-17.
contexto no qual é levada a ficar

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enclausurada ao seu corpo marcado que um dos pontos chaves da teoria
pela violência do ideal de brancura. lacaniana da constituição do Eu possa
Com o texto “Quem tem medo da ser explorado numa reflexão sobre o
palavra negro”, o escritor e professor racismo antinegro e os processos de
Luiz Silva, conhecido como CUTI, representação da diferença.4 Nesse
contribui para o debate com um resgate dispositivo grupal que assume a função
histórico dos usos negativos do termo de reeditar o momento de unificação
negro e de como ele foi ressignificado da imagem do corpo próprio e diferen-
pelo movimento negro; e denuncia ciação em relação ao outro, as pessoas
o racismo como patologia social de pacientes, e não a analista, parecem
um grupo hegemônico que inverte trazer os melhores questionamentos
o lugar onde está a doença psíquica em relação a um certo imaginário
e ao mesmo tempo opera preventi- social que transforma o estranho em
vamente contra aquilo que o assusta objeto a ser excluído, e converte a
enquanto possibilidade de reação. diferença em desigualdade.
Assim, fica evidente que os impasses Com o capítulo “O racismo
que as questões da identidade pessoal nosso de cada dia e a incidência da
assumem no Brasil não serão resol- recusa no laço social”, a psicanalista
vidas pela negação do significante Tânia Corghi Veríssimo possibilita
negro – e utilização do termo “afro” –, aprofundar a reflexão sobre o quanto
pois esse procedimento, na verdade, o silenciamento a respeito do racismo
não ajuda no combate ao racismo, que se pratica tanto na sociedade,
esconde mais ainda o medo identita- quanto na clínica, implica na
riamente branco. incidência da recusa do laço social
Em “A questão do racismo em um a partir do qual a pessoa negra se vê
grupo de mediação com fotografias”, impossibilitada pensar-se. Processo
a psicóloga Cristiane Curi Abud e a transgeracional, a abolição simbólica
fotógrafa Luiza Sigulem abordam o pela qual passa o corpo negro e a
racismo por meio da fotografia, numa
experiência psicoterápica com base
4 Presente em “O estádio do espelho como
psicanalítica a partir de um “enquadre formador da função do eu” in Jacques
Lacan, Escritos (Rio de Janeiro: Jorge
grupal”. O relato contribui para Zahar, 1988), pp. 96-103.

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subjetividade negra, submetidos a um reiteradamente tenta enquadrar o
ideal de brancura fetiche, evidencia-se protesto e a fala negro/a/es.
como uma questão que ainda não foi Por fim, Maria Célia Malaquias,
minimamente elaborada, potencia- em “Relações raciais no palco da
lizando os impasses trazidos pelos vida: considerações sociátricas”,
elementos “não ditos” inerentes a uma mobiliza as contribuições da psica-
linguagem nacional marcada pelo nalista Neusa Santos Souza sobre
escravismo. O texto ajuda a interrogar o sofrimento psíquico para quem
essa complicada relação entre história “a escravidão acabou, mas a luta
social e estrutura de linguagem, que continua” (p. 284). As reflexões que
grande parte das/dos/des psicanalistas ela faz ao abordar o palco do drama
“recusa” discutir. e o palco da vida oportunizam pensar
Pedro Mascarenhas, psico- a necessidade de se produzir novas
dramatista e psicanalista, traz o considerações psicanalíticas sobre
relato de um sociodrama ocorrido tema tão central na constituição da
no evento que deu origem ao livro. sociedade brasileira, e não sem a
Em “Estranho jogo amargo: descons- ajuda de outros saberes.
truindo a vitimização nos jogos É fato que não existe no livro
racistas” ele pontua a importância de uma discussão que articule racismo
não se ignorar o mal-estar causado antinegro e colonialismo no que tange
pelo racismo e como o sociodrama aos pressupostos epistemológicos
torna-se um instrumento aliado eurocêntricos da própria psicanálise.
nesse processo. Afinal, “psicanalista Atualmente, muitas são as discussões
também tem preconceito” (p. 275) feitas quanto aos limites de um saber
e o próprio instituto promotor do inicialmente constituído por Freud a
evento, composto e dirigido por partir da experiência de sofrimento
maioria branca, pode contribuir das pessoas brancas neuróticas,
para que o racismo antinegro e o culturalmente situadas na Europa.5
sofrimento psíquico dele decorrente
sejam colocados em questão fora dos 5 O trabalho pioneiro de Frantz Fanon
(Pele negra, máscaras brancas, Salvador:
rótulos de suposto vitimismo no qual EDUFBA, 2008) é incontornável para
nos ajudar nesse sentido. Outra referência
parte das instituições psicanalíticas importante mais recente e que dialoga

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Na apresentação do livro, Noemi Quanto aos temas aqui discutidos,
Kon conclama pela necessidade de parte da resistência a eles pelas pessoas
se avançar na construção de “uma que praticam a psicanálise está em
psicanálise brasileira”, coisa que admitir que é preciso recorrer a uma
parece difícil de fazer sem lidar com interlocução profunda com o campo
questões próprias da experiência das Ciências Humanas, evitando uma
subjetiva das/dos/des brasileires e práxis que leva a uma endogenia
sem o diálogo com outras perspec- teórica dogmática e desatrelada da
tivas epistemológicas (indígenas, própria experiência clínica brasileira,
africanas, latinoamericanas), tendo algo que o trabalho que resultou
em vista a miscigenação que marca a neste livro buscou fazer. O racismo
própria história local. e o colonialismo são fenômenos
Contudo, se, como disse Lacan complexos, incidem de maneira brutal
retornando a Freud, “deve renunciar sobre os negros, mas Frantz Fanon,
à prática da psicanálise todo em 1952, já denunciava o fato de
analista que não conseguir alcançar constituírem a subjetividade de toda
em seu horizonte a subjetividade e qualquer pessoa (branca ou negra),
de sua época”,6 o livro, desde não sendo apenas “um problema de
a sua publicação, se estabelece negro”.7 O filósofo Achille Mbembe
como um clássico. Característica também tem demonstrado que a
que se expressa, principalmente, experiência das plantations e o
pela publicação dar a conhecer colonialismo foram centrais na consti-
um campo imenso de problemas e tuição da modernidade e como, na era
questões que não podem ser silen- do neoliberalismo, o “devir negro”
ciados, diante dos quais não se pode tornou-se uma tendência global,
recuar, e que ajuda a abordar de convertendo grupos cada vez mais
diversas maneiras. amplos a uma condição (objetiva e
subjetiva) subalternizada.
com Fanon é o livro de Grada Kilomba Ao final da leitura do livro, perce-
Memórias da plantação: episódios
de racismo cotidiano, Rio de Janeiro:
bemos que o fenômeno do racismo
Editora Cobogó, 2019.
6 Jacques Lacan, “Função e campo da fala e
da linguagem” in Lacan, Escritos, p. 321. 7 Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas.

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e a experiência negra podem não ter não podem ser de modo algum menos-
surgido com a psicanálise, nem ter prezadas pelas pessoas que praticam a
sido tematizados por Freud ou pelas psicanálise no Brasil. O título da obra
sucessivas escolas e perspectivas que se faz então inteiramente justificado:
se propuseram a atualizar essa práxis o racismo e o negro no Brasil - questões
discursiva, mas trazem perguntas que para a psicanálise.

Jeferson de Jesus Nicácio


Campo Psicanalítico de Salvador

doi: 10.9771/aa.v0i62.42891

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