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SIG revista de psicanálise

E M PA U TA

O ESTRANGEIRO EM PSICANÁLISE:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DAS
OBRAS DE NEUSA SANTOS SOUZA E
ISILDINHA BAPTISTA NOGUEIRA
The foreigner in psychoanalysis: contributions from the works
of Neusa Santos Souza and Isildinha Baptista Nogueira

Taiasmin Ohnmacht1

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre relações étnico-raciais e psi-
canálise a partir do tema do estrangeiro em Freud. A posição do negro como
estrangeiro diz respeito à psicanálise, na medida em que a história da psicaná-
lise no Brasil conta com psicanalistas negros (as) que sofreram branqueamento
ou apagamento de suas trajetórias e/ou de suas contribuições teóricas. O artigo
resgata, em particular, a produção teórica de Neusa Santos Souza e Isildinha
Baptista Nogueira sobre a temática do estrangeiro freudiano considerando a
racialização presente na estrutura social brasileira.
Palavras-chave: Relações étnico-raciais. Psicanálise. O estrangeiro. Neusa
Santos Souza. Isildinha Baptista Nogueira.

Abstract: This article proposes a reflection on ethnic-racial relations and


psychoanalysis based on the theme of the foreigner in Freud. The position
of black people as a foreigner concerns psychoanalysis, to the extent as the
history of psychoanalysis in Brazil has black psychoanalysts who have suffered
whitening or erasure of their trajectories and/or their theoretical contributions.
The article rescues, in particular, the theoretical production of Neusa Santos
Souza and Isildinha Baptista Nogueira on the theme of the Freudian foreigner,
considering the racialization present in the Brazilian social structure.
Keywords: Ethnic-racial relations. Psychoanalysis. The foreigner. Neusa Santos
Souza. Isildinha Baptista Nogueira.

A comunidade negra conhece bem a imagem Sankofa. É um símbolo da


escrita Adinkra, uma escrita pertencente aos povos Akan da África Ocidental.
Sankofa é um pássaro que tem a cabeça voltada para trás, podendo ser tradu-
1
Psicanalista e escritora. zida da seguinte forma: é possível voltar e buscar o que ficou para trás e que
Mestre em Psicanálise é necessário para seguir adiante. É este movimento que proponho neste texto.
(UFRGS). Membro do coleti-
vo Adinkra: Saúde Mental e Algo ficou para trás na psicanálise exercida em território nacional. A clí-
Relações Raciais. Compõe a nica freudiana chega aqui, um país de relações raciais complexas, sendo pen-
coordenação do selo edito-
sada e exercida majoritariamente por profissionais brancos. É bem verdade que
rial Diálogos da Diáspora.
E-mail: a psicanálise, sempre em debate com a filosofia, antropologia, política, artes,
taiasmin.mo@hotmail.com nunca esteve alheia a refletir sobre as contradições sociais. Ainda assim, foi

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possível aos psicanalistas brasileiros manter a questão racial distante tanto do E M PA U TA


pensamento teórico quanto da prática clínica. Tais profissionais não estão fora
do laço social, e este laço social implica denegar o apartheid racial em que
vivemos, implica deixar uma parcela considerável da população numa situa-
ção de desamparo discursivo, uma população que ficou muito tempo, tempo
demais, sem acesso à possibilidade de enunciação, sendo falada por outros que
nunca se implicaram como pertencentes e atuantes neste cenário racial. Assim,
a população negra ocupou ou a invisibilidade ou o lugar de objeto. Este estado
de coisas não está presente apenas na psicanálise, mas em todos os campos de
conhecimento, nas instituições, nas relações interpessoais, e a isso chamamos
de racismo estrutural. Portanto, a psicanálise exercida por psicanalistas brasilei-
ros em sua imensa maioria brancos não está fora disso, ela está inserida nesta
malha discursiva.
Nas asas de Sankofa vamos descobrindo que, ainda assim, pessoas negras
foram fundamentais na história da psicanálise brasileira, como Juliano Moreira,
psiquiatra negro do início do século XX e primeiro professor universitário a
incorporar o conhecimento psicanalítico a seu ensino, e Virgínia Bicudo, uma
das pioneiras da psicanálise no Brasil, e uma das primeiras psicanalistas não
médicas, fundadora de duas sociedades psicanalíticas (uma em São Paulo e
outra em Brasília) e grande divulgadora da psicanálise nos meios de comunica-
ção da época. Mulher negra que teve sua imagem embranquecida em retrato
a ocupar as paredes da sociedade de psicanálise de São Paulo. Por quê? Seria
estranho demais assumir que uma das figuras fundamentais na história do mo-
vimento psicanalítico era negra? Buscando material para este texto, encontro
um artigo que fala de Juliano Moreira, e a determinada altura faz uma reflexão
de o quanto deve ter sido estranho para as pessoas conhecê-lo pessoalmente e
observar sua pele escura. Estranho? Por quê? Quantos não ditos estão colocados
neste estranhamento? Parece que há algo oculto que o corpo negro desvela, o
corpo negro em determinados lugares, em lugares imprevistos. Ou seja, há algo
disponível à percepção de todos nós, mas que invisibilizamos ao naturalizar. O
racismo não é sutil, ele é gritante, mas naturalizado.
Mesmo diante deste cenário, historicamente houve psicanalistas que além
de se interessarem pelo tema racial, ainda produziram teorias a respeito – não
por acaso, ambas negras – Neusa Santos Sousa e Isildinha Baptista Nogueira –,
e não por acaso, tanto elas, as psicanalistas, quanto suas produções intelectuais
não entraram nos circuitos de estudos da área, nem na academia, nem nas so-
ciedades psicanalíticas.
Foram textos que ficaram pelo caminho, textos delegados à invisibilidade,
mas também textos para os quais os convido a parar e a dar alguns passos atrás,
tal qual Sankofa propõe, para ler, estudar, e decidir o que podemos e precisa-
mos para seguir adiante.
A característica destes trabalhos é de que não é possível simplesmente im-
portar a teoria de autores europeus e aplicá-la em território nacional. Contudo,
não há um abandono das formulações psicanalíticas, muito pelo contrário, mas
um entendimento de que é preciso rever conceitos, rever o modo como eles
operam em uma montagem discursiva característica da cultura brasileira. Ou,
dito de outro modo, na constatação de que a noção de universalidade é insufi-
ciente para lidar com realidades culturais diversas, é preciso pensar a implica-
ção disso na constituição psíquica.
Neusa Santos Souza, psicanalista nascida na Bahia, mas tendo formação

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E M PA U TA e atuação profissional no Rio de Janeiro, foi quem fez o primeiro trabalho cien-
tífico/acadêmico sobre a temática de relações raciais na psicanálise brasileira,
que mais tarde se transformou no livro Tornar-se negro, publicado em 1983.
Tornar-se negro é o livro mais conhecido de Neusa.
Entretanto, Neusa tem um texto posterior e menos conhecido: “O estran-
geiro: nossa condição”. Trata-se de um capítulo do livro O estrangeiro, de 1998,
editado pela Escuta/Fapesp.
Neusa inicia o texto situando o estrangeiro para a psicanálise, que difere
do senso comum. Se para o senso comum estrangeiro é o que está fora, o dife-
rente, para a psicanálise é o próprio psiquismo “dividido, discordante, diferente
de si mesmo”. É este íntimo estrangeiro que nos habita e que só se afigura como
imagem quando vem de Outro lugar, só o reconhecemos quando vem de fora,
e que nesta fronteira imprecisa entre dentro/fora nos causa o efeito de estranhe-
za/horror. Seguindo os passos de Freud, Neusa vai desenvolvendo a noção de
estranho familiar. “Um familiar e conhecido que se tornou alheio, alijado que
fora pelo processo de recalque, um processo que, ao excluir, faz do excluído a
região nuclear, centro pulsátil da experiência do sujeito” (Souza, 1998, p. 156).
Dentre as figuras do estranho retomadas por Neusa, como o duplo, o
autômato, ela chega ao feminino como o Outro da norma, sendo esta norma
masculina, fálica, europeia. O estranho, assim, é aquele que se opõe ao mesmo,
que faz objeção ao todo, que se contrapõe à ordem dominante.
É preciso lembrar que o sujeito se constitui a partir de uma relação de
alteridade. O sujeito não se constitui a partir de si mesmo, mas a partir desta
relação com um Outro.
Aqui podemos evocar a questão da identidade: como me defino senão
como aquilo que o Outro não é? Como mantenho minha ilusão de unidade?
Como mantenho distante o que há de estrangeiro em mim?
Assim, ao se encaminhar para a conclusão do texto O estrangeiro: nossa
condição, Neusa se aproxima do que chamamos hoje de estudos da branqui-
tude. Nada mais identitário do que sustentar a existência da margem para se
garantir no centro. E se uso aqui identitário (e sou eu quem traz o termo, Neusa
não o faz), uso porque é o que se deduz de quem só pode conviver com o di-
verso a partir da perspectiva do Outro como estranho com quem é impossível
se relacionar ou então a partir da perspectiva de uma estranheza que sentencia
o Outro a se violentar para se tornar um igual.
Neusa está se referindo ao racismo, mas também à homofobia, ao machis-
mo, à xenofobia.
A autora sugere, ao final, abraçarmos a transitoriedade do mundo, inclusi-
ve daquilo que nos é caro, aceitar que não seremos sempre iguais a nós mesmos,
abraçar nossa estrangeiridade para suportarmos os inevitáveis estranhamentos e
melhor encontrar o que há de diverso no outro e em nós mesmos. Cito-a:

Contra os racismos de todas as cores, de todos os sexos, de todas as cren-


ças, de todas as línguas, de todas as culturas, de todos os países, contra
esse horror, que nos valha o estrangeiro – o estrangeiro de toda parte, o
estrangeiro de exterior e do interior de nós mesmos (Souza, 1998, p. 163).

Mas podemos agora nos perguntar: e o sujeito que sofre com a violência
racial? E o sujeito que encontra os traços de sua africanidade tratados apenas
como signos do que não tem valor ou é perigoso?

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A estas questões se dedicou a psicanalista Isildinha Baptista Nogueira. E M PA U TA


Isildinha é uma psicanalista paulista que em 1998 (mesmo ano do texto de
Neusa sobre o estrangeiro) escreveu a tese Significações do corpo negro, onde
vai abordar os efeitos psíquicos do racismo para os negros. Já neste trabalho,
que foi sua pesquisa de doutorado, ela se debruça sobre o tema do estranho.
A tese de Isildinha parte de um ponto que me parece crucial, o corpo
negro, um eterno estrangeiro, visto constantemente como fora de lugar. Ele é
capturado pelo sistema de representações sociais como corpo sem valor moral
e/ou intelectual, indesejável e inaceitável, perigoso, excessivo, ou seja, um cor-
po discursivamente capturado por fantasias brancas, como diria Grada Kilomba
(2019).
A questão que Isildinha procura responder desde sua tese é: quais são as
peculiaridades para o psiquismo negro dos sentidos que o racismo traz consigo?
É comum à psicanálise dialogar com outros campos de conhecimento,
mas é fundamental o diálogo com outros campos de conhecimento quando o
tema é relações raciais, e assim Isildinha faz, trazendo a história, a sociologia
para ir desenvolvendo sua tese.
Neste caso, é preciso ver a história como processo histórico, ou seja, não
apenas os fatos, mas suas consequências e como estas consequências produ-
zem novos fatos.
Isto é fundamental para entender de que se trata quando ouvimos que
o Brasil foi fundado sobre sangue de indígenas e negros, para compreender
como a invenção do negro pelo branco, este negro que tem o corpo público e
nenhuma voz, esta invenção, que se deu lá nos idos do Iluminismo, gerou ao
europeu, e aos brancos por decorrência, um capital suplementar: a cor da pele
(capital simbólico). Tudo isso e mais, que aqui não cito para não alongar demais
o texto, é importante para perceber o quanto esta longa história estrutura nosso
laço social.
Isildinha Baptista Nogueira realiza todo um percurso sócio-histórico em
seu texto para situar o lugar social do negro como um não lugar, por um lado
por não conseguir constituir uma identidade social, visto o apagamento de sua
história antes do espólio do continente africano e o apagamento da contribui-
ção do povo negro ao país, e por outro lado pela dificuldade de lidar com uma
identidade vinda de fora que não corresponde a um lugar de sujeito, no corpo
social, mas a um lugar de objeto.
Ao longo de todo o texto, Isildinha tem por ponto central a formulação
proposta por Neusa em Tornar-se negro: há uma discursividade que se pretende
hegemônica e que aponta o eurocentrismo como um valor desejável. Dentro
desta perspectiva, negro/África passa a ser o estrangeiro impossível de assimilar,
é o Outro radical, o que deve ficar à margem.
Assim, Isildinha formula a seguinte pergunta:

Se o que constitui o sujeito é o olhar do outro, como fica o negro que se


confronta com o olhar do outro que mostra reconhecer nele o significado
que a pele negra traz enquanto significante? (Nogueira, 1998, p. 90).

Tal significado corresponde a como é lido socialmente o corpo negro, os


traços de africanidade são tomados a partir de estereótipos de um corpo perigo-
so e de todo o tipo de excessos.

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E M PA U TA Com a diferença marcada no próprio corpo, e impossível de ocultar, o


negro pode ser levado, assim, a passar por um processo de embranquecimento,
colonização do próprio desejo.
Mas, a psicanalista aponta, é também uma questão de sobrevivência,
aquilo que conhecemos hoje em dia como necropolítica, é sobre o corpo negro
que se dá o impacto maior da ausência de políticas públicas e da violência de
Estado.
Assim, vamos chegando a questões fundamentais apontadas pela
psicanalista.
Isildinha situa o estranho: o sentimento de estranho inquietante é um con-
fuso retorno a uma organização espacial

…onde tudo se reduz ao dentro e ao fora e onde o dentro é também o


fora… Penso que esse movimento do estranho inquietante pode bem ca-
racterizar o tipo de experiência que marca a relação do negro com o dia
a dia no meio social. É impossível, para ele, não se perturbar com as ame-
aças aterradoras que lhe chegam via racismo. Dentro desse universo de
terror, mesmo que o negro acredite conscientemente que tais ameaças
racistas não se cumprirão, o pavor não desaparece, porque ele traz no
corpo o significado que incita e justifica, para o outro, a violência racista
(Nogueira, 1998, p. 95).

Para os negros, seguindo as considerações de Isildinha, o estranho inquie-


tante é mais do que um eventual encontro inesperado com o reflexo do próprio
rosto, como foi a experiência de Freud (2006) no trem, para o negro trata-se de
encontrar no olhar do outro uma espécie de duplo de si, privado da condição
de ser, uma imagem na qual ele não se reconhece, mas uma imagem que o
precede e opera socialmente.

Resta ao negro, para além de seus fantasmas, inerentes ao ser humano, o


desejo de recusar esse significante, que representa o significado que ele
tenta negar, negando-se, dessa forma, a si mesmo, pela negação do pró-
prio corpo (Nogueira, 1998, p. 91).

Assim, a cor da pele passa a ser, além de um objeto social, um objeto


também da realidade psíquica.
Ao fim de sua tese, Isildinha aponta a ação política como uma saída pos-
sível para o sujeito negro, mas que encontrará dificuldades na medida em que
terá que lidar com as contradições de um sujeito atravessado pela alteridade
branca colocada como ideal.
Como dito anteriormente, a tese da autora foi escrita em 1998, antes das
políticas de ação afirmativa. Hoje, podemos ver interessantes movimentos da
população negra em retomar sua cultura e história, além de uma maior repre-
sentatividade em espaços públicos, e, diga-se de passagem, isso não é apenas
bom, é fundamental.
Ainda assim, trata-se do início de movimentos decolonizadores. Em um
país com dificuldade em assumir seu multiculturalismo, e ainda impondo uma
hierarquia étnico-racial que determina inclusive maior direito à vida para uns
em detrimento de outros, ainda temos muito o que avançar.

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Já que o racismo toma o corpo negro como marcador social, é importante E M PA U TA


que o próprio corpo negro, com sua presença, quebre, subverta os estereótipos.
Não esqueçamos que Freud, em seu artigo, começa situando a temática do es-
tranho como estética, explicando que a estética não se trata apenas da fruição
do belo, mas das qualidades do sentir. Estética é uma palavra que vem do grego
aisthésis; tem como significado o ato de perceber, de notar.
Então trata-se, sim, de estética. Estética de feições africanas, de corpos
pretos, de cabelos que se dirigem aos céus, de tambores, de capoeira, de orixás
e terreiros. Estética das palavras que o povo negro deste país tem que ocupar,
criar, trazer do iorubá para fazer frente ao português, idioma do colonizador, e
nomear a si mesmo e ao seu corpo.
Encerro com o desejo de que, na ciranda deste dentro/fora, deste familiar/
estranho ao qual todos estamos submetidos, que a negritude se aproxime do
familiar mais e mais, que crie uma discursividade que dê conta do que tem por
característico, e que a branquitude se relativize na diversidade estrangeira.

Referências
Freud, S. (2006). O estranho (1919). In S. Freud. Uma neurose infantil e outros traba-
lhos (1917-1918). Rio de Janeiro: Imago.
Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de
Janeiro: Cobogó.
Nogueira, I. B. (1998). Significações do corpo negro. Tese (Doutorado em Psicologia),
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade
de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Souza, N. S. (1998). O estrangeiro: nossa condição. In C. Koltai (Org.). O estrangeiro.
São Paulo: Escuta/Fapesp.

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