Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
E M PA U TA
O ESTRANGEIRO EM PSICANÁLISE:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DAS
OBRAS DE NEUSA SANTOS SOUZA E
ISILDINHA BAPTISTA NOGUEIRA
The foreigner in psychoanalysis: contributions from the works
of Neusa Santos Souza and Isildinha Baptista Nogueira
Taiasmin Ohnmacht1
Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre relações étnico-raciais e psi-
canálise a partir do tema do estrangeiro em Freud. A posição do negro como
estrangeiro diz respeito à psicanálise, na medida em que a história da psicaná-
lise no Brasil conta com psicanalistas negros (as) que sofreram branqueamento
ou apagamento de suas trajetórias e/ou de suas contribuições teóricas. O artigo
resgata, em particular, a produção teórica de Neusa Santos Souza e Isildinha
Baptista Nogueira sobre a temática do estrangeiro freudiano considerando a
racialização presente na estrutura social brasileira.
Palavras-chave: Relações étnico-raciais. Psicanálise. O estrangeiro. Neusa
Santos Souza. Isildinha Baptista Nogueira.
63
SIG revista de psicanálise
64
SIG revista de psicanálise
E M PA U TA e atuação profissional no Rio de Janeiro, foi quem fez o primeiro trabalho cien-
tífico/acadêmico sobre a temática de relações raciais na psicanálise brasileira,
que mais tarde se transformou no livro Tornar-se negro, publicado em 1983.
Tornar-se negro é o livro mais conhecido de Neusa.
Entretanto, Neusa tem um texto posterior e menos conhecido: “O estran-
geiro: nossa condição”. Trata-se de um capítulo do livro O estrangeiro, de 1998,
editado pela Escuta/Fapesp.
Neusa inicia o texto situando o estrangeiro para a psicanálise, que difere
do senso comum. Se para o senso comum estrangeiro é o que está fora, o dife-
rente, para a psicanálise é o próprio psiquismo “dividido, discordante, diferente
de si mesmo”. É este íntimo estrangeiro que nos habita e que só se afigura como
imagem quando vem de Outro lugar, só o reconhecemos quando vem de fora,
e que nesta fronteira imprecisa entre dentro/fora nos causa o efeito de estranhe-
za/horror. Seguindo os passos de Freud, Neusa vai desenvolvendo a noção de
estranho familiar. “Um familiar e conhecido que se tornou alheio, alijado que
fora pelo processo de recalque, um processo que, ao excluir, faz do excluído a
região nuclear, centro pulsátil da experiência do sujeito” (Souza, 1998, p. 156).
Dentre as figuras do estranho retomadas por Neusa, como o duplo, o
autômato, ela chega ao feminino como o Outro da norma, sendo esta norma
masculina, fálica, europeia. O estranho, assim, é aquele que se opõe ao mesmo,
que faz objeção ao todo, que se contrapõe à ordem dominante.
É preciso lembrar que o sujeito se constitui a partir de uma relação de
alteridade. O sujeito não se constitui a partir de si mesmo, mas a partir desta
relação com um Outro.
Aqui podemos evocar a questão da identidade: como me defino senão
como aquilo que o Outro não é? Como mantenho minha ilusão de unidade?
Como mantenho distante o que há de estrangeiro em mim?
Assim, ao se encaminhar para a conclusão do texto O estrangeiro: nossa
condição, Neusa se aproxima do que chamamos hoje de estudos da branqui-
tude. Nada mais identitário do que sustentar a existência da margem para se
garantir no centro. E se uso aqui identitário (e sou eu quem traz o termo, Neusa
não o faz), uso porque é o que se deduz de quem só pode conviver com o di-
verso a partir da perspectiva do Outro como estranho com quem é impossível
se relacionar ou então a partir da perspectiva de uma estranheza que sentencia
o Outro a se violentar para se tornar um igual.
Neusa está se referindo ao racismo, mas também à homofobia, ao machis-
mo, à xenofobia.
A autora sugere, ao final, abraçarmos a transitoriedade do mundo, inclusi-
ve daquilo que nos é caro, aceitar que não seremos sempre iguais a nós mesmos,
abraçar nossa estrangeiridade para suportarmos os inevitáveis estranhamentos e
melhor encontrar o que há de diverso no outro e em nós mesmos. Cito-a:
Mas podemos agora nos perguntar: e o sujeito que sofre com a violência
racial? E o sujeito que encontra os traços de sua africanidade tratados apenas
como signos do que não tem valor ou é perigoso?
65
SIG revista de psicanálise
66
SIG revista de psicanálise
67
SIG revista de psicanálise
Referências
Freud, S. (2006). O estranho (1919). In S. Freud. Uma neurose infantil e outros traba-
lhos (1917-1918). Rio de Janeiro: Imago.
Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de
Janeiro: Cobogó.
Nogueira, I. B. (1998). Significações do corpo negro. Tese (Doutorado em Psicologia),
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade
de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Souza, N. S. (1998). O estrangeiro: nossa condição. In C. Koltai (Org.). O estrangeiro.
São Paulo: Escuta/Fapesp.
68