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“Estas cenas rebaixam a nossa raça e a nossa Sociedade”: mutualismo e identidade

racial entre trabalhadores de cor no pós-abolição

Lucas Ribeiro Campos1

Resumo: A Sociedade Protetora dos Desvalidos foi uma associação de socorros mútuos
com sede localizada na cidade de Salvador, constituída por trabalhadores de cor. Tinha
como objetivo auxiliar seus associados em momentos de doença, desemprego e ajudando
as famílias destes em casos de morte. Durante sua trajetória, a SPD conservou o critério
racial para a admissão de seus sócios. Este critério era tão rigoroso que, no artigo 69 de
uma espécie de esboço do estatuto de 1894, todos os regulamentos poderiam ser
reformulados, menos o artigo 1º, considerado “perpetuo” e “inviolável”, pois se referia à
entrada de indivíduos de cor na associação. Deste modo, a instituição permaneceu com
uma característica que a diferenciava de muitas associações de auxilio mútuo do século
XIX: não existia uma identificação em torno de um ofício, mas sim em relação a cor.
Nesta comunicação pretendo discutir os significados e os sentidos atribuídos por estes
sujeitos em relação a essa identidade racial. A partir de dois episódios específicos, busco
compreender as formas como os membros daquela instituição acionaram sua identidade
racial para transmitirem uma imagem alinhada às expectativas das autoridades, com o
objetivo de legitimar o espaço de solidariedade que eles haviam construído para os
trabalhadores de cor, desde a época do Império.

Palavras-chave: mutualismo, raça, trabalhadores.

Uma atmosfera de tensão pairava a sala das sessões da Sociedade Protetora dos
Desvalidos, localizada no velho sobrado no largo do Cruzeiro de São Francisco, na cidade
de Salvador. Era um começo de tarde naquele dia 17 de junho de 1894, quando o vice-
presidente da Assembleia Geral, Manoel Anastácio Cajueiro, assumiu interinamente a
presidência dos trabalhos que ocorreram naquela sessão, no lugar do presidente titular
Juvêncio Diogo de Santana. Com a presença significativa de 101 sócios, o clima da
reunião transcorreu cercado por muitos desentendimentos. Um dos associados, Theodoro
Gomes, tentou tumultuar a sessão algumas vezes, com questionamentos direcionados ao
presidente, mas foi alertado por diversos sócios em relação ao respeito a ordem. Theodoro
consentiu em aguardar seu momento de fala, mas foi provocado por Felipe José da Costa
e Souza, que disse ao mesmo que “já devia ter aguardado de princípio”. Em resposta,
Theodoro afirmou que Felipe “não estava na altura de discutir com ele; e que não tinha

1
Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq). Email: lucas.ribeiroc@yahoo.com.br
competência, nem se igualava com ele”, aumentando assim o clima de tensão naquela
reunião.2

Depois de chamar diversas vezes à ordem o sócio Theodoro Gomes, ameaçando


retirá-lo do recinto, o presidente Manoel Anastácio Cajueiro se viu diante dos protestos
de outro associado, Felipe Benicio, figura importante e com grande prestígio entre os
membros da SPD. Possivelmente em defesa de Theodoro Gomes ou aproveitando a
situação para manifestar sua insatisfação com a gestão atual da instituição, Benicio tomou
a atitude de “invadir a grade da mesa”, sendo contido por muitos sócios. Daí em diante,
a sessão continuou tumultuosa, com o presidente chamando a atenção dos associados em
vão, pois a sala de reuniões se tornou um verdadeiro campo de guerra entre os membros,
“travando-se grandes pugilatos entre os senhores sócios”, em que alguns se "achavam de
cadeiras em punho", “havendo vozes até de foras ao senhor presidente". Diante desse caos
estabelecido na sala de reuniões da SPD, em que um dos sócios saiu com o nariz
ensanguentado, o presidente declarou “que não podia continuar com a sessão", pois em
presença daquele ambiente hostil não poderia "deliberar-se coisa alguma".3
No dia seguinte, em uma segunda-feira, o Gazeta de Notícias informava à
sociedade baiana sobre o acontecido na sede da SPD. Segundo o jornal, “alguns sócios
exaltaram-se ao ponto de travar-se um grande pugilato em plena rua”. Em um tom de
desaprovação, afirmavam que “cenas semelhantes são bastante deprimentes do nosso
conceito de povo ordeiro e civilizado”.4 De fato, a repercussão da briga na imprensa
demonstra que a confusão ganhou as ruas e ultrapassou os muros da associação.
Provavelmente o clima de tensão proporcionou que antigas desavenças emergissem
naquele momento, fazendo com que a briga se estendesse até a rua, chamando a atenção
do público em geral. Além disso, a forma como o jornal tratou o acontecido, revela o
quanto a SPD não estava longe do olhar vigilante na época. Era uma associação de
trabalhadores de cor, isto fazia dela, desde a época do Império, um espaço a ser vigiado

2
Arquivo da Sociedade Protetora dos Desvalidos (doravante ASPD), ata da sessão extraordinária da
Assembleia Geral de 17 de junho de 1894, aprovada em 23 de setembro de 1894.
3
ASPD, ata da sessão extraordinária da Assembleia Geral de 17 de junho de 1894, aprovada em 23 de
setembro de 1894.
4
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Gazeta de Notícias, 18 de junho de 1894. Agradeço a Marcelo
Remilson Bouças da Silva pela gentileza de ter identificado e fotografado esta fonte para mim.
com cuidado pelas autoridades, pois ali se agrupavam indivíduos que possivelmente
estariam dentro da categoria das chamadas “classes perigosas”.5
No final do mês de junho, em uma outra sessão da Assembleia Geral, o assunto
sobre o comportamento indesejado voltou à pauta e o sócio Felipe Benício, protagonista
da última confusão, protestou “contra o tópico que diz que ele tentou invadir a grade para
desacatar ao senhor presidente e membros da mesa da assembleia”. Concordando com
Benício, o sócio Severiano Pedro da Silva pediu “a assembleia que consinta na
modificação da ata afim de não ficar nos anais da Sociedade está pagina triste visto ter
esperança que não há de reproduzir-se cena de igual teor”. Em seguida, Terencio Aranha
Dantas pediu a palavra e complementou a discussão com uma fala muito interessante. De
acordo com o que foi registrado em ata,

ele [Aranha Dantas] pelo respeito que consagra a sua raça e a esta
corporação faz o mesmo pedido visto que estas cenas rebaixam a nossa
raça e a nossa Sociedade perante as nossas irmãs e perante público
demonstrando que os homens pretos não sabem-se e finge-se não
saberem-se conduzir perante a civilização a ponto da imprensa publicar
(Gazeta de Noticias) que o nosso proceder depunha dos foros de um
povo civilizado.6

Depois de ter sido posto em votação, estes pedidos foram aprovados pelo presidente
Manoel Anastácio Cajueiro, encerrando-se a questão.
A fala de Terencio Aranha Dantas é muito significativa em relação ao contexto
social vivenciado por aqueles homens de cor. No alvorecer da república, alguns anos após
a abolição da escravidão, os negros tiveram espaços de atuação cerceados, seja na política,
no exercício de sua cidadania e no mercado de trabalho, por ser difundida a ideia de serem
bárbaros e primitivos, ou seja, incapazes de serem civilizados, por conta de seu passado
escravista. Os homens de cor estavam a margem do projeto nacional das elites, que
buscavam cada vez mais o ingresso do trabalhador imigrante no Brasil, dentro das
políticas de branqueamento do país. As antigas hierarquias e formas de discriminação da
época da escravidão foram recriadas, fazendo com que estes indivíduos justificassem e

5
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
6
ASPD, ata da sessão da Assembleia Geral para a nomeação da comissão reformadora dos estatutos; e
aprovação dos balancete do terceiro semestre social, de 01 de abril a 30 de junho de 1894, aprovada em 28
de Outubro daquele mesmo ano.
lutassem constantemente por sua posição na sociedade.7 Não é estranha a atitude de
Terencio Aranha Dantas ao chamar atenção para o restante dos membros sobre a
importância da associação provar que é capaz de se “conduzir perante a civilização”. Era
preciso constantemente construir uma imagem que atendesse as expectativas das elites,
como uma garantia de manutenção do espaço de solidariedade aos trabalhadores de cor.
Durante sua trajetória, de irmandade até se tornar uma sociedade de auxílios
mútuos, a SPD conservou o critério racial para a admissão de seus sócios. Após sua
fundação, em 1832, os membros da então Irmandade de Nossa Senhora da Soledade
Amparo dos Desvalidos discutiram a formulação de um termo de compromisso, que
estabelecia somente a entrada de indivíduos de cor preta como sócios.8 Na segunda
metade do século XIX, o estatuto de 1874 admitia como sócios “todos os cidadãos
brasileiros de cor preta”.9 Este critério era tão rigoroso que, vinte anos depois, no artigo
69 de uma espécie de esboço do estatuto de 1894, todos os regulamentos poderiam ser
reformulados, menos o artigo 1º, considerado “perpetuo” e “inviolável”, pois se referia à
entrada de indivíduos de cor na associação.10
A SPD permaneceu com uma característica que a diferenciava de muitas
associações de auxilio mútuo do século XIX: não existia uma identificação em torno de
um ofício, mas sim em relação a cor. Ao contrário das associações que surgiram na mesma
época, aquela instituição teve como critério racial sua principal referência de identidade.
Apesar do silêncio em relação a cor nas atas, nos relatórios e em outros documentos de
um modo geral, esta identidade racial emergiu diante da briga generalizada entre aqueles
sócios. Ao perceberem o quanto aquele episódio manchava a imagem da instituição, os
membros deixaram de lado suas desavenças e acionaram sua identidade racial para
transmitirem uma imagem alinhada às expectativas de um “conceito de povo ordeiro e
civilizado”. Para Kim D. Butler, que também analisou este episódio, o comentário de
Terencio Dantas revela uma sensibilidade próxima ao que se pode perceber nos escritos

7
Para uma discussão sobre o pós-abolição, ver: ALBUQUERQUE, Wlamyra Ribeiro de. O jogo da
dissimulação: Abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009; GOMES,
Flávio; DOMINGUES, Petrônio (Orgs.). Experiências de emancipação: biografias, instituições e
movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011; ______. (Org.). Da nitidez
e Invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil. Belo Horizonte: Editora Fino Traço, 2013.
8
BRAGA, Júlio. Sociedade Protetora dos Desvalidos: uma irmandade de cor. Salvador: Ianamá, 1987, p.
28-30.
9
Estatuto da Sociedade Protetora dos Desvalidos, aprovado pelo governo da Província em 26 de agosto de
1874, Ibid., p. 79.
10
ASPD, esboço do Estatuto da Sociedade Protetora dos Desvalidos de 08 de outubro de 1894.
da Frente Negra, em que os membros também tinham um desejo de se inserirem em uma
“ordem civilizada”.11
Não se sabe ao certo as motivações da briga do dia 17 de junho de 1894. Aquele
pequeno atrito entre Felipe Souza e Theodoro Gomes provavelmente foi o catalizador da
confusão generalizada que ocorreu na sede. A querela entre os dois pode ter sido motivada
por uma série de fatores. O pouco que se sabe é que Felipe Souza era solteiro, oficial de
pedreiro e tinha 38 anos de idade quando ingressou na SPD, no ano de 1887.12 Ou seja,
era um sócio relativamente novo na instituição e não havia ocupado nenhum cargo
diretivo. Já em relação a Theodoro, infelizmente não foi possível encontrar seu pedido de
inscrição para obter mais dados sobre o mesmo. A única informação que se pôde ter é que
sua primeira aparição na documentação ocorreu na reunião da Assembleia Geral do dia
29 de abril de 1894.13
De todo modo, ao afirmar que Felipe Souza “não estava na altura de discutir com
ele”, “que não tinha competência” e “nem se igualava com ele”, Theodoro em seu
comentário abriu a possibilidade de pensar as contradições inerentes ao se observar a ideia
de identidade racial. Talvez os dois tivessem algum tipo de desavença, que ultrapassasse
os muros da instituição. É possível que ambos ocupassem ofícios que rivalizassem no
mercado de trabalho de Salvador ou nutrissem posicionamentos políticos que os
tornassem inimigos, tutelados por grandes políticos da Bahia da época. No entanto, o mais
interessante a se pensar é que talvez Theodoro não reconhecesse Felipe Souza como um
igual, um trabalhador de cor membro da SPD, o que abre margem para se pensar os limites
e possibilidades dessa identidade racial.
Mas a gota d’água para a briga generalizada naquele dia foi a atitude do sócio
Felipe Benicio, ao ter avançado em direção a mesa da Assembleia Geral. Felipe Benicio
ingressou na SPD em 28 de agosto de 1881, declarou em seu pedido de inscrição ser
solteiro, com idade de 32 anos e ocupava o oficio de carpinteiro, como empregado na
casa comercial do Tenente Coronel Aristides Novis. Além disso, tinha residência à rua

11
BUTLER, Kim. Freedoms given, freedoms won: Afro-Brazilians in post-abolition São Paulo and
Salvador. New Brunswick/Londres: Rutgers University Press, 1998, p 162.
12
ASPD, pedido de inscrição de Felipe José da Costa e Souza de 20 de Outubro de 1887, aprovado em 20
de Outubro de 1887.
13
ASPD, ata da sessão ordinária da Assembleia Geral do dia 29 de Abril de 1894.
dos Barbeiros, freguesia de São Pedro.14 Era uma figura importante na história da SPD e
ocupou os cargos de 1º e 2º secretário, além de presidente e vice-presidente, chegando até
a receber homenagens com um retrato na sede, por ter trazido grandes conquistas para a
instituição.15 Talvez por não concordar com as ações da direção atual da associação,
poucos anos após ter feito uma gestão impecável, digna até de homenagem, Felipe
Benicio tenha se excedido e tentado supostamente agredir a mesa da Assembleia Geral.
Somente algo muito grave tenha levado um sujeito querido por todos, a ser agressivo em
uma reunião. Ou quem sabe as mãos que escreveram a ata tinham um interesse particular
em construir esta narrativa de um Felipe Benicio agressivo.
De qualquer sorte, independente das motivações para a briga, o que interessa é
observar os significados e os sentidos atribuídos por estes sujeitos em relação a essa
identidade racial. É imprescindível perceber que a noção de identidade baseada na ideia
de raça é um campo fluido e carregado por interesses diversos. Antonio Sérgio Alfredo
Guimarães observa que analisar identidade racial “envolve riscos”, pois os modos de se
identificar racialmente podem ser múltiplos, seguindo uma lógica subjetiva "de se
autodenominar e partilhar com outros a diferença racial". Existem estratégias que podem
variar de acordo com a situação social dos indivíduos, como condição financeira,
instrução e a formação social de cada área geográfica em que vivem. Ou seja, a posição
social do indivíduo influencia na forma de reconhecimento de sua identidade racial.16 No
caso dos membros da SPD, existiu um interesse maior após a briga, em construir uma
narrativa de harmonia entre eles, no sentido de demonstrar que a solidariedade entre os
homens de cor pode superar suas divergências pessoais.

14
ASPD, pedido de inscrição de Felipe Benicio do dia 6 de Agosto de 1881, aprovado em 28 de Agosto de
1881
15
ASPD, ata da sessão magna em Assembleia Geral do dia 10 de Dezembro de 1893.
16
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. “Notas sobre raça, cultura e identidade na imprensa negra de
São Paulo e Rio de Janeiro, 1925 -1950”. Afro-Ásia, 30, 2003, pp. 247-269.
Imagem 1 – Retrato do sócio Felipe Benicio

Fonte: REIS, Lysie. A liberdade que veio do ofício: práticas sociais e cultura dos artífices na Bahia do
século XIX. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 316

Dois anos antes dessa fatídica briga narrada acima, Heleodoro Catilina do Espirito
Santo protagonizou uma situação também um tanto quanto curiosa na SPD. Heleodoro
era solteiro, 23 anos de idade, de “cor preta”, exercia o oficio de sapateiro e morava na
rua da Valla.17 Por intermédio de Américo Cardoso de Vasconcelos, que era oficial de
alfaiate e sócio efetivo da SPD desde 1881, conseguiu solicitar sua admissão como sócio
também desta instituição.18 Na sessão de 21 de setembro de 1892 o pedido foi aceito,
aguardando a presença do candidato na sede.19 Uma semana depois, Heleodoro
compareceu no velho sobrado da SPD para se apresentar diante do Conselho
Administrativo e pagar o valor de sua entrada. No entanto, o Conselho analisou o
requerimento e, através de um dos sócios, foi colocado em xeque a sua cor:

entra em discussão o requerimento do Sr. Heliodoro Catilina do Espirito


Santo pede a palavra o sócio visitador que diz que o candidato não lhe
parece de cor preta segundo marca os estatutos pelo que não pode votar
a favor do requerimento usa da palavra alguns dos funcionários sobre o
requerimento sendo ele adiado para a próxima sessão afim de verificar-

17
ASPD, pedido de inscrição de Heliodoro Ctilina do Espirito Santo de 21 de setembro de 1892, aprovado
em 05 de Outubro de 1892.
18
ASPD, pedido de inscrição de Américo Cardoso de Vasconcelos de 26 de Outubro de 1881, aprovado
em 26 de Outubro do mesmo ano.
19
ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 21 de Setembro de 1892, aprovada em 28 de
Setembro de 1892.
se se o proponente se acha nas condições que marca os referidos
estatutos.20

O visitador não identificou o candidato a sócio como um homem de cor e sua


atitude talvez tenha convencido o resto do Conselho que realmente existia uma dúvida
sobre a condição racial daquele indivíduo, sendo adiada a decisão por votos. Então no dia
05 de outubro daquele mesmo ano, o 1º secretário do Conselho Administrativo, Jacinto
Francisco de Andrade, enviou aos membros da SPD um documento em defesa de
Heleodoro. Jacinto de Andrade era viúvo, com 36 anos de idade e oficial de marceneiro,
quando entrou na SPD em 30 de dezembro de 1886.21 Provavelmente tinha alguma
ligação com o candidato, pois além de informar e justificar sua ausência na sessão daquele
dia, devido as suas ocupações, o 1º secretário expôs sua posição, demonstrando que
conhecia a família daquele sujeito.

Sou de opinião que seja aprovada a entrada do suplicante, em vista dos


seus Pais serem de cor Preta, assim como, se o conselho julgar
conveniente que esta minha opinião, seja lançada na ata, eu muito
ficarei agradecido, a estes companheiros de Conselho, a prova de
consideração, de um dos mais humilde (sic) membro do conselho,
aproveito a ocasião de minha Estima e consideração.22

No mesmo dia, o caso de Heleodoro foi discutido em ata e os membros, depois de


terem lido o comunicado do 1º Secretário emitindo sua opinião sobre o caso, decidiram
através de votação a aprovação do requerimento. A descendência do candidato foi crucial
para legitimar sua aprovação na associação, aparentemente colocando fim a qualquer tipo
de dúvida que existia sobre sua cor:

entra em discussão o requerimento do Sr. Heliodoro Catilina que ficou


adiado na última sessão declarando o presidente que deve merecer a
aprovação do conselho visto estar reconhecido ser ele cidadão de cor
preta o 2º secretário acompanha a opinião do presidente o arquivista
vota a favor do requerimento o Sr. visitador vota contra o Sr. tesoureiro
vota com a maioria sendo aprovado o requerimento nada mais havendo
a tratar foi suspensa a sessão às 9 ¼ da noite.23

20
ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 28 de Setembro de 1892, aprovada em 05 de Outubro
de 1892.
21
ASPD, pedido de inscrição de Jacinto Francisco de Andrade de 28 de Setembro de 1886, aprovado em
07 de Outubro de 1886.
22
ASPD, comunicado de Jacinto Francisco de Andrade de 05 de Outubro de 1892.
23
ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 05 de Outubro de 1892, aprovada em 12 de Outubro
de 1892.
É interessante observar que todos os presentes na reunião votaram a favor da
aprovação de Heleodoro, exceto o visitador Faustiniano Fernandes de Oliveira, membro
da SPD desde 1879.24 Ao que parece fez questão de registar ao final da ata, uma reiteração
acerca de sua posição contra a aprovação deste sócio, ao ter afirmado que “declara votar
contra por se achar em desacordo de ser o senhor Heleodoro Catilina de cor preta".25 Isso
demonstra mais uma vez o quanto a ideia de raça era um tanto quanto maleável de acordo
com as circunstâncias, passível de manipulação através de interesses diversos. É possível
que Faustiniano já conhecesse Heleodoro e conservasse algum tipo de desafeto com ele
ou quem sabe com sua família, que colocasse em questão a condição racial do mesmo.
Ou talvez existisse também um empenho de alguns sócios em reservar o acesso a SPD
somente para os retintos, aqueles em que a cor não pudesse ser questionada. Apesar desse
desacordo, no dia 19 de outubro, Heleodoro pagou sua entrada na importância de 10$000
réis e conseguiu o reconhecimento de uma parte dos sócios como novo membro da SPD.26
Na tabela abaixo, elaborada por Klebson Oliveira, é possível perceber que em uma
amostra de 332 pedidos de inscrição enviados a SPD, na segunda metade do século XIX,
apenas 193 (58,1%) eram de sujeitos que se declaravam como de cor preta. No entanto,
existe um número considerável de requerimentos, 139 (41,9 %) em que não consta
nenhuma declaração sobre a cor. De acordo com Oliveira, não foi possível identificar em
sua amostra nenhuma denominação de cabra ou pardo, categorias que indicavam
mestiçagem, assim como não foi possível observar a existência de candidatos a sócios
que fossem brancos. Oliveira ainda aponta que desses 139 indivíduos que não declararam
sua cor, é possível que tenham sido levados pelo raciocínio de que era consenso entre
todos que os candidatos a sócios fossem negros, sendo dispensável qualquer menção a
cor.27

24
ASPD, pedido de inscrição para ser readmitido de Faustiniano Fernandes de Oliveira de 30 de Abril de
1879, aprovado em 04 de Maio de 1879. Faustiniano Fernandes de Oliveira havia saído da SPD por de
inadimplência.
25
ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 05 de Outubro de 1892, aprovada em 12 de Outubro
de 1892.
26
ASPD, ata da sessão do Conselho Administrativo de 19 de Outubro de 1892, aprovada em 16 de
Novembro de 1892.
27
OLIVEIRA, Klebson. Negros e escrita no Brasil do século XIX: sócio-história filológica de documentos
e estudo linguístico. Tese (doutorado) – Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2006,
p 151. Os pedidos de inscrição utilizados na composição da tabela são requerimentos enviados pelos
candidatos a sócios, em que constam dados como idade, estado civil, cor, ofício, número de filhos e
endereço.
Tabela 1

Cor Número de indivíduos %

Crioulo 60 18.1

Preta 133 40.1

Não declarada 139 41.8

Total 332 100.0

Fonte: LOBO, Tânia; OLIVEIRA, Klebson. Escrita liberta: letramento de forros na Bahia do século XIX. In:
CASTILHO, Ataliba de; TORRES, Maria Aparecida; CIRINO, Sônia (Orgs.). Descrição, História e Aquisição do
Português Brasileiro: estudos dedicados a Mary Aizawa Kato. São Paulo: Fapesp, 2007, p. 449.

Neste sentido, se confiarmos nesses dados, a situação envolvendo Heleodoro se


torna mais complexa, pois não abre margem nem para se pensar que existiram mestiços
na SPD. No entanto, acredito na possibilidade que sua condição de homem de cor, talvez
tivesse sido contestada, justamente por conta de uma possível confusão por ser mestiço.
É provável que esta condição lhe proporcionasse passar por branco em algumas situações.
No caso especifico, o visitador Faustiniano entendeu que Heleodoro não era um homem
de cor e não se encaixava naquilo que os estatutos estabeleciam. Diante do exposto, fica
a seguinte pergunta: qual motivo levaria um homem que talvez pudesse se passar por
branco, quisesse fazer parte de uma associação de homens de cor, em um contexto de
grande discriminação racial, nos primeiros anos do pós-abolição? A resposta dessa
pergunta, talvez seja a chave para perceber a importância que aqueles indivíduos davam
a sua condição racial, como um critério de identidade importante para legitimar um
espaço de solidariedade para os trabalhadores de cor.
Cabe observar então os significados que aqueles sujeitos atribuíram a ideia de
raça, tendo em vista o contexto em que estavam inseridos. Lilia Moritz Schwarcz observa
que o conceito de raça surgiu em um momento específico do Brasil, 1871 a 1930, através
de teorias raciais pautadas em princípios biológicos, mas com uma forte interpretação
social, sendo objeto de justificativa para projetos diversos no país por parte da elite. Para
Walter Fraga Filho, o termo “raça” começa a aparecer nos documentos como definidor
da condição do liberto, ao satisfazer as pretensões de reforçar e manter intactas novas
políticas de controle sobre toda a população afrodescendente. Pensando também o mesmo
contexto, Wlamyra Albuquerque observa que o processo de racialização no Brasil no fim
do século XIX, embora dissimulado, foi essencial para o surgimento de diversos critérios
de cidadania e para o estabelecimento de lugares sociais distintos. A ideia de racialização
representou a decadência do escravismo e a tentativa de garantir que a hierarquia social
escravista fosse preservada.28
Ao observar um outro contexto, que também pode nos ajudar a pensar a ideia de
raça, Iacy Maia Mata chama atenção para a construção da identidade racial, na segunda
metade do século XIX em Cuba. Ao analisar uma conspiração ocorrida naquela ilha, a
historiadora mostra como negros e mulatos da região oriental, entre 1864 e 1881,
passaram a acionar uma identidade racial, carregada de significados e sentidos conferidos
pelos sujeitos. No decorrer desses acontecimentos, de lutas anticoloniais e antiescravistas,
os insurretos de cor passaram a se auto identificar como “raça de cor”, em função da
descendência comum africana. No entanto, eles tinham como referência a ideia de raça
biológica em voga no século XIX, mas talvez não percebessem que estavam
“ressignificando” e “positivando” a ideia de raça, na tentativa de superar as classificações
biológicas baseadas na cor. 29
Deste modo, me interessa compreender para este trabalho os sentidos sociais
atribuídos pelos homens de cor da SPD em relação a raça. Inseridos em um contexto em
que a ideia de raça era baseada em princípios biológicos, muito utilizados para legitimar
projetos diversos da elite, os membros daquela associação deram um significado
particular a ideia de raça, para legitimar o espaço de solidariedade que eles haviam
construído para os trabalhadores de cor.
No entanto, a autora norte-americana Kim D. Butler sustenta a ideia que a
presença de uma ação ou militância coletiva em torno de uma identidade racial no período
do pós-abolição, só ganhou popularidade em São Paulo, e muito pouco em Salvador, por
alguns motivos. De acordo com a autora, a população de cor em Salvador era composta
de muitas comunidades menores, algumas até provindas dos grupos construídos com base

28
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993; FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade:
histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p. 349-350;
ALBUQUERQUE, op. cit, 2009.
29
MATA, Iacy Maia. Conspirações da raça de cor: escravidão, liberdade e tensões raciais em Santiago de
Cuba (1864-1881). Campinas: Editora da Unicamp, 2015, p. 37.
nos laços de "nações" surgidos durante a escravidão. Ou seja, não existiu uma identidade
racial coesa, como em São Paulo, por conta do caráter fragmentário da população de cor
em Salvador. Além disso, a autora acredita que os tipos de redes criadas pelos afro-
brasileiros em Salvador tiveram o modelo de patronagem como norteador de suas ações.
De acordo com Butler, os membros da SPD operavam dentro da cultura política do
clientelismo tão central para o ethos brasileiro. O modelo de patronagem requer uma clara
distinção entre os membros do grupo e os outsiders. Como uma espécie de princípio
orientador para os membros da SPD, a patronagem, segundo Butler, serviu para
neutralizar uma possível solidariedade baseada na ideia de raça.30
Acredito que a comparação entre São Paulo e Salvador, merece ser lida com
cuidado. Me parece que Kim Butler desconsidera que a SPD é uma instituição quase que
bicentenária e que sobreviveu o período escravista conservando o critério racial em seus
estatutos. Ou seja, não consigo perceber uma organização que conservou durante boa
parte do século XIX o critério racial para a admissão de seus membros, como uma
instituição que não construiu uma ação coletiva através de um princípio ligado ao critério
racial. Me parece que a SPD estabeleceu uma espécie de solidariedade de cor dentro das
possibilidades que lhe eram postas, diante de uma vigilância e um controle do Estado. Se
autodenominar em seus estatutos como uma associação de trabalhadores de cor no século
XIX, com a presença da estrutura escravista, é diferente de uma associação negra no
século XX, como a Frente Negra.
Quando menciono as possibilidades que estavam disponíveis para aqueles
trabalhadores de cor na associação, me refiro justamente a prática da patronagem. Uma
coisa não exclui a outra. O modelo da patronagem não neutralizou a solidariedade baseada
em um critério racial. Não é porque estes indivíduos estavam dentro do jogo político do
clientelismo, negociando frequentemente com autoridades políticas da época, benefícios
para a associação, que eles não se reconhecessem enquanto trabalhadores de cor. Muito
pelo contrário, o jogo político foi uma ferramenta importante para conseguirem angariar
recursos e se capitalizarem politicamente para manterem uma instituição que de fato, com
todos os problemas que enfrentaram, protegia e garantia direitos básicos para aqueles
trabalhadores de cor.

30
BUTLER, op. cit, p.162.

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