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organizadores

Karla Patricia Holanda Martins


Carla Renata Braga de Souza
Ricardo Pinheiro Maia Junior
Vládia Jamile dos Santos Jucá

O EU,
O OUTRO
E OS NÓS
O TRABALHO EM GRUPO
COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
NAS PRÁTICAS DE CUIDADOS
EM SAÚDE MENTAL
O EU,
O OUTRO
E OS NÓS
O TRABALHO EM GRUPO
COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
NAS PRÁTICAS DE CUIDADOS
EM SAÚDE MENTAL

1
EQUIPE DE PESQUISA CONSELHO EDITORIAL
Universidade Federal Belinda Mandelbaum
do Ceará – UFC Professora Associada e chefe do Departamento
de Psicologia Social e do Trabalho
coordenadora Instituto de Psicologia – Universidade de São Paulo
Karla Patricia Holanda Martins
vice-coordenadora Érica Atem Gonçalves de Araújo Costa
Vládia Jamile dos Santos Jucá Professora do Departamento de Psicologia - UFC/
Fortaleza
Beatriz Alves Viana Docente do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia e Políticas Públicas – UFC/Sobral
Beatriz Sernache de Castro Neves
Caciana Linhares Pereira Fabiano Chagas Rabêlo
Camilla Araújo Lopes Vieira
Professor Adjunto da Universidade Federal
Carla Renata Braga de Souza
do Delta do Parnaíba - UFDPar
Cecilia de Lima Lemos
Cristiane Ferreira de Souza
Gilles Pierre Thomas Garcia
Guilherme David Silveira Lima
Docteur en philosophie, Psychanalyste,
Isaías Teixeira de Oliveira
Formateur-chercheur à l’École Supérieure de
John Kepler Aguiar Martins Travail Social – ETSUP
Mariana Fraga Soares
apoio Marina Cristina Lopes Costa Mirka Flávia Soares Mesquita
Morena Simonetti Gomes Maciel Université de Bretagne Occidentale (UBO). Faculté
Myrella Raissa Caetano Linhares de médecine. Département des sciences humaines
Natalia Ferreira Barreto et sociales – SHS
Parla Maigath Leite Sousa Araújo Farias
Paulo Alves Parente Júnior Rodrigo Sanches Peres
Renata Carvalho Campos Professor dos Programas de Pós-Graduação em
Ricardo Pinheiro Maia Junior Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia e
Walberto Silva dos Santos da Universidade Estadual Paulista

INSTITUIÇÕES ENVOLVIDAS
Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP)
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Universidade Federal do Ceará (UFC)/Departamento de Psicologia/
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Programa de extensão Clínica, Estética e Política do Cuidado (CEPC)
Laboratório de Psicanálise da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Secretaria de Saúde do Estado do Ceará
Secretaria de Assistência Social de Juazeiro do Norte e Quixeramobim
Secretarias de Saúde dos Municípios de Barbalha, Cariús, Fortaleza, Granja, Iguatu,
Itapipoca, Juazeiro do Norte, Limoeiro do Norte, Sobral, Quixadá e Quixeramobim
O EU,
O OUTRO
E OS NÓS
O TRABALHO EM GRUPO
COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES
NAS PRÁTICAS DE CUIDADOS
EM SAÚDE MENTAL

organizadores
Karla Patricia Holanda Martins
Carla Renata Braga de Souza
Ricardo Pinheiro Maia Junior
Vládia Jamile dos Santos Jucá
O EU, O OUTRO E OS NÓS
o trabalho em grupo com crianças e adolescentes
nas práticas de cuidados em saúde mental LISTA DE SIGL AS
EQUIPE DE ORGANIZAÇÃO APDMCE
Karla Patricia Holanda Martins, UFC Associação para o Desenvolvimento dos
Carla Renata Braga de Souza, UFC Municípios do Estado do Ceará
Ricardo Pinheiro Maia Junior, UFC
Vládia Jamile dos Santos Jucá, UFC CAIQ
Centro de Atenção Integrada de Quixeramobim
FINANCIAMENTO
CDFAM
Programa Pesquisa para o SUS/PPSUS-CE FUNCAP-
Coordenadoria de Desenvolvimento Familiar
SESA-Decit/SCTIE/MS-CNPq
Chamada 02/2020 - Programa Pesquisa para o SUS/ CEPC
PPSUS-CE FUNCAP-SESA-Decit/SCTIE/MS-CNPq Clínica, Estética e Política do Cuidado
Número do processo: P20-0171-00073.01.00/20 SPU CRAS
Nº: 07942571/2020 Centro de Referência da Assistência Social

EDIÇÃO DE TEXTO E PESQUISA CREAS


Carla Renata Braga de Souza Centro de Referência Especializado de
Ricardo Pinheiro Maia Júnior Assistência Social

PROJETO GRÁFICO, CAPA E DIAGRAMAÇÃO LAPSUS


Fernanda do Val/FRV Estúdio Laboratório em Psicologia Subjetividade e
Sociedade
PREPARAÇÃO E REVISÃO
Ana Maria Barbosa NUSCA
Núcleo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas
IMPRESSÃO E ACABAMENTO e Intervenções Sobre a Saúde da Criança e do
Expressão Gráfica&Editora Adolescente
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) PPSUS
Bibliotecário responsável: Renato Motta Noviello – CRB-8 010426/O
Programa Pesquisa para o SUS: gestão
E86e
O eu, o outro e os nós : o trabalho em grupo com crianças e
compartilhada em Saúde
adolescentes nas práticas de cuidados em saúde mental / vários
autores ; organizado por Karla Patricia Holanda Martins ... [et al.]. – RAPS
1. ed. – Fortaleza, CE : Programa de Pós-graduação em Psicologia,
Universidade Federal do Ceará (PPG-PSI-UFC), 2023. Rede de Atenção Psicossocial
48 p. ; 20cm x 20cm ; 48 p. ; 2.000 Kb ; PDF
ISBN 978-65-5556-616-1 (físico) SEDUC
ISBN 978-65-5556-617-8 (recurso eletrônico)
Secretaria de Educação do Estado do Ceará
1. Saúde Mental - Brasil - Ceará 2. Crianças - psicologia
3. Adolescentes - psicologia 4. Grupos - psicologia. 5. Psicanálise
6. Psicologia Educacional I. Martins, Karla Patricia Holanda.
SUS
II. Souza, Carla Renata Braga de. III. Maia Junior, Ricardo Pinheiro. Sistema Único de Saúde
IV. Jucá, Vládia Jamile dos Santos. V. Título.
CDD 155.4
CDU 159.922.7(813.1)
UFC
Universidade Federal do Ceará
Índice para catálogo sistemático:
1. Psicologia infantil e do desenvolvimento : 155.4 UNICEF
2. Psicologia do adolescente : 155.5
Fundo das Nações Unidas para a Infância
Fortaleza-CE, 2023

4
SUMÁRIO

06 APRESENTAÇÃO

08 QUEM SOMOS

14 ESCUTANDO E INTERVINDO EM GRUPO COM CRIANÇAS


15 Grupo terapêutico de acolhimento
18 Grupo terapêutico com crianças
20 Trabalho em grupo mediado pela musicalidade
23 Grupos com crianças e adultos no programa
de saúde mental “brincando em família”
28 Projeto Água de Chocalho e oficinas de mediação

29 Leitura compartilhada: instrumento para o coletivo

30 ESCUTANDO E INTERVINDO EM GRUPO COM ADOLESCENTES


31 As conversações com adolescentes
35 O lugar participativo do(a) adolescente/jovem na escola:
experimentações “é da nossa escola que falamos”
39 Grupo para cuidados emocionais com adolescentes

45 Narrativas memorialísticas

48 SOBRE OS ORGANIZADORES

5
APRESENTAÇÃO
A
cartilha que vocês têm em mãos é produto da pesquisa intitulada “Carto-
grafia das Práticas de Cuidados em Saúde Mental Infantojuvenil no Cea-
rá”, fomentada pelo Programa Pesquisa para o SUS: gestão compartilha-
da em Saúde (PPSUS) – Ce-Funcap--Sesa-Decit/SCTIE/MS-CNPq e realizada
pelo Programa de Extensão Clínica, Estética e Política do Cuidado (CEPC)
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de
Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A partir desse diálogo com as diversas realidades encontradas no campo da
saúde mental infantojuvenil no estado do Ceará, nasceu a proposta desta carti-
lha, com o intuito de apresentar o que tem sido escutado – no âmbito da pesqui-
sa – e feito – no campo da extensão – nas práticas em grupo. Esta cartilha, feita
a muitas mãos, traz experiências diversas a respeito do trabalho em grupo com
crianças e adolescentes nas práticas de cuidado em saúde mental e que podem
ser facilmente adaptadas para diferentes contextos. Entendemos, assim, que tem
o intuito de dialogar com você, profissional, a respeito do que temos feito e abrir
um espaço para que surjam novos fazeres.
Desta forma, a temática destacada como objetivo geral da cartilha são as
práticas de cuidado realizadas por meio do trabalho em grupo com crianças,
adolescentes e seus cuidadores. Assim, pretende-se aqui, dentro de um recorte
teórico em sua grande parte psicanalítico, demonstrar as potencialidades tera-
pêuticas do trabalho em grupo. Deve-se ressaltar também que as apresentações
e discussões realizadas ao longo da cartilha não ambicionam uma metodologia
terapêutica encerrada em si mesma, mas que os elementos apresentados são
fomentadores de inovações na própria prática. Então, o que vocês têm aqui são
recomendações, e não regras.
Com este raciocínio, evidencia-se o caráter soberano das práticas cotidianas VAMOS
nos cuidados com a saúde infantojuvenil, cabendo a cada profissional, junto ao seu L Á?
território, reinventar-se na sua atuação frente às possibilidades e dificuldades encon-
tradas, na aposta de uma consolidação das políticas públicas de saúde na sua cidade.

7
QUEM SOMOS?

8
A HISTÓRIA DO COMEÇO DO NOSSO GRUPO*

S
omos extensionistas e pesquisadores do programa de extensão Clínica, Es-
tética e Clínica do Cuidado (CEPC), do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal do Ceará (UFC), carinhosamente chamado de “CEP
do cuidado”, atualmente coordenado pela professora Karla Patricia Holanda Mar-
tins. Começamos nossa atuação em 2015, a partir de um proposta idealizada pelos
psicólogos Tais Bleicher e Elton Calixto, estabelecendo como trabalho a oferta de
acolhimento e atendimento orientado pelo viés psicanalítico às crianças e adoles-
centes em sofrimento psíquico e seus cuidadores.1 Inicialmente, as atividades dos es-
tagiários e extensionistas eram mantidas na Clínica-Escola da UFC, em Fortaleza.
Entretanto, as perspectivas de trabalho do programa não permaneceram somente
na clínica-escola. Por vezes, a atuação estendeu-se para interlocuções com outros
territórios e instituições que também acompanham as pessoas assistidas.
Nesse sentido, no período de 2017 a 2020, o CEPC teve sua atuação em
parceria com a Secretaria de Saúde de Quixeramobim, realizando atendimen-
tos individuais de crianças e adolescentes no Centro de Atenção Integrada de
Quixeramobim (CAIQ) e na policlínica da mesma cidade. Além disso, desde
2020, o CEPC tem ampliado sua atuação em Fortaleza no campo da atenção
primária, com trabalhos sendo realizados no Posto de Saúde “Prof. Gilmário *Carla Renata Braga de Souza
Mourão Teixeira”, vinculado à Coordenadoria de Desenvolvimento Familiar Psicanalista, graduada em Psicologia
(CDFAM) da UFC. Assim, é neste sentido que a pesquisa PPSUS proposta pelo (UEPB), Doutora e Mestre em
Psicologia (UNIFOR), Pós-doutoranda
CEPC surge como efeito do amadurecimento e da experiência do programa de
no Departamento de Psicologia da
extensão no campo dos cuidados infantojuvenis. Universidade Federal do Ceará (UFC)
e extensionista do Programa de
Extensão “Clínica, Estética e Política
1. BOESMANS, Emilie Fonteles; AGUIAR, Sâmara Gurgel; GOMES, Rebeca Carolinne Castro; BLEICHER, do Cuidado” (CEPC) vinculado à
Taís. Programa de extensão: Clínica, estética e política do cuidado. Revista de Psicologia, Fortaleza, Universidade Federal do Ceará (UFC).
v. 7, n. 2, p. 142-150, jul./dez. 2016. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/23051. carlarenatabs@gmail.com
Acesso em: 21 de dezembro de 2022

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Desta forma, ao propor a pesquisa Cartografia das Práticas de Cuidados
em Saúde Mental Infantojuvenil no Ceará, amadurece as propostas iniciais do
programa, tendo como objetivo central o mapeamento das práticas de cuidado
em saúde mental realizadas com crianças e adolescentes em onze municípios
do estado do Ceará.2 Nesse percurso, passamos por várias etapas, tais como o
levantamento dos estabelecimentos de saúde mental nos municípios, a análise
dos formulários respondidos pelos gestores e profissionais, realização de rodas de
conversas com diversos agentes e atores das práticas em cada uma das cidades
pesquisadas e visitadas. Por fim, chegamos à formulação e à facilitação dos dois
módulos de formação continuada oferecidos para os participantes da pesquisa.
COMO ESTA
CARTILH A ESTÁ
Conversamos, observamos, escutamos, e como um dos produtos dessa via-
ORGANIZADA? gem ao longo do estado do Ceará, com parada em onze municípios, entregamos
a vocês esta cartilha na aposta de que ela será útil para a (re)invenção das práticas
de cuidado em saúde mental com crianças e adolescentes.
Trazemos para o conhecimento de vocês três eixos essenciais para a realiza-
ção de grupos no cuidado em saúde mental infantojuvenil:

1 Começamos apresentando a fundamentação teórica de que nos servimos para pensar os trabalhos em
grupo com esse público. É o que vocês encontrarão na seção intitulada “Qual a fundamentação teórica
utilizada no trabalho com grupos?”.

2 Seguimos, então para a seção de trabalhos em grupo com crianças. Nela, vocês encontrarão
modalidades de trabalhos realizados por profissionais em instituições e propostas desenvolvidas a
partir de uma atuação da universidade em articulação com dispositivos da rede de atenção psicossocial
(RAPS). Estas são experiências singulares na realização de diferentes modalidades de grupo com crianças.

3 A terceira seção é marcada pelo trabalho com adolescentes atravessado por conversações e
narrativas dos adolescentes. Estes trabalhos foram desenvolvidos próximos a espaços universitários,
em que pesquisas e intervenções estão sendo pensadas e propostas. Nesse momento da cartilha, você
terá acesso ao percurso para alcançar esse público que nos mobiliza a questionamentos a respeito do
início e manutenção de um trabalho. No caminho das recomendações, pistas e apostas é que as autoras
abrem as experiências com grupos de adolescentes.

2. Os municípios participantes da pesquisa foram: Fortaleza, Itapipoca, Quixadá, Quixeramobim, Li-


moeiro do Norte, Iguatu, Cariús, Juazeiro do Norte, Barbalha, Sobral e Granja.

10
P O R Q U E TR ABALH AMOS C OM G R U POS DE CRIANÇAS
O U D E A DO L E SC E N TE S E N ÃO G RUPOS MISTOS ?
Criança e adolescente são termos que indicam muito mais do que um recor-
te de faixas etárias. Há aspectos do desenvolvimento e da constituição psíquica
que são próprios de cada momento em que o sujeito vive. Portanto, crianças e
adolescentes apresentam particularidades que se desdobram em manejos e en-
quadres diferentes para a realização dos grupos.

QUA L A F U NDAM E N TAÇÃO TE ÓR ICA


UTIL I Z A DA NO TR ABALHO C OM G RUPOS ?
A discussão sobre grupos em um formato terapêutico acontece em diversos
espaços teóricos que se dedicam à compreensão dos processos psicológicos. Esta
cartilha tem como foco o trabalho em grupo, majoritariamente, a partir da psi-
canálise. Nesta seção, desenvolvemos brevemente algumas nuances históricas e
técnicas dessa aproximação entre psicanálise e grupos.
Pensar um processo histórico que levou a psicanálise a se dedicar ao tra-
balho em grupo encaminha-nos para os escritos de Freud, criador da psicanáli-
se. Textos como “Totem e tabu”, “O mal-estar na civilização” e “Psicologia das
massas e análise do eu” discutem o sujeito a partir da sua relação com os grupos
sociais em que está inserido e com os outros participantes desses grupos. Em
outras palavras, Freud aponta para aspectos do sujeito que estão atravessados por
questões advindas da cultura e do coletivo.
René Kaës (1999), importante teórico de grupos em psicanálise, avança nessa
discussão ao discorrer a respeito do grupo como formação intrínseca à crise da
modernidade, realçando que o interesse da psicanálise pelos grupos está associado
com as grandes mudanças ocasionadas pelos momentos de catástrofes sociais da
primeira metade do século XX, como, por exemplo, o período pós-guerra.
A partir do início dos anos 1960, a teorização psicanalítica sobre os grupos
ganhou um direcionamento diferente, aplacando discussões a respeito da utiliza-
ção do método psicanalítico em grupos, com casos que, até então, se mostravam
inacessíveis por outros meios.

11
Com a revolução psiquiátrica em diversos países do Ocidente, o grupo pas-
sa a ser trabalhado como um instrumento terapêutico que fornece alternativa ao
tratamento até então utilizado. Segundo Kaës (1999, p. 13), “uma das maiores
contribuições da psicanálise foi ter compreendido que o grupo mobiliza processos
psíquicos e dimensões da subjetividade, que não são mobilizados pelo menos da
mesma maneira ou com a mesma intensidade, pelos dispositivos ditos individuais”.
Dito isto, alguns autores teorizaram acerca do trabalho em grupo pensando-
Trabalho individual -o como estratégia de mobilização de alguns processos inconscientes. Isto quer
X
Trabalho em grupo dizer que há um efeito terapêutico no trabalho grupal e é possível compreendê-lo
Você sabia que o trabalho também como uma técnica, além das terapias individuais.
em grupo não exclui a Kaës (1999) compreende os processos grupais como fundamentais para o
possibilidade daquela
desenvolvimento de todo sujeito. Isto quer dizer que a subjetivação acontece
criança ou adolescente
também ser acompanhado em grupo, a partir das primeiras identificações desde o nascimento. O autor
individualmente? compreende o psiquismo de modo grupal. Há uma coletividade de objetos de
O trabalho em grupo pode identificação no modo como o psiquismo se organiza.
vir para somar com o projeto O autor, então, propõe a possibilidade de um grupo terapêutico, com en-
terapêutico de cada um.
quadres, como uma excelente forma de mobilização desses processos psíquicos
que já são, por si só, grupais. O grupo terapêutico oportuniza o aparecimento de
identificações e suas consequentes emoções, dentro de um setting onde há os olhos
e os ouvidos de um terapeuta. Desse modo, tudo o que aparece em grupo poderá
ser manejado, interpretado, repetido e discutido em cada sessão.

12
RE F E R Ê N CIAS BIBLIOG R ÁFICAS
FREUD, S. Totem e tabu (1913). In: FREUD, S. Totem e tabu: Contribuição à história
do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia
das Letras, 2012. (Obras completas, v. 11).
FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: FREUD, S. O mal-estar na civiliza-
ção: Novas conferências introdutórias àpsicanálise e outros textos (1930-1936). São
Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Obras completas, v. 18).
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). In: FREUD, S. Psicologia
das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das
Letras, 2011. (Obras completas, v. 15).
KAËS, R. As teorias psicanalíticas do grupo. Lisboa: Climepsi Editores, 2003.

DE P OIS DE SSA B RE VE E XP LICAÇÃO


a respeito da teoria que embasa o trabalho
em grupo, vamos dar seguimento aos
diferentes contextos em que esse trabalho
pode acontecer nas práticas de cuidado em
saúde mental infantojuvenil.

13
ESCUTANDO E INTERVINDO
EM GRUPO COM
CRIANÇAS

14
GRUPO TERAPÊUTICO DE ACOLHIMENTO*

E
ssa perspectiva de intervenção se ancora, assim como Broide (2006) nos
sugere, na compreensão de que a psicanálise com grupos pode ser apli-
cada nas mais variadas situações sociais, buscando atender/acolher as si-
tuações de “grandes alterações que caracterizam os períodos de catástrofe social”
(KAËS, 2003, p. 9) e coletiva, como uma possibilidade interventiva, para aqueles
que apresentam demandas de cuidados urgentes.
O dispositivo de grupo terapêutico de acolhimento pode ser compreendido
como um dispositivo de cuidado à saúde mental, que tem como objetivo acolher
demandas específicas e pontuais de determinado grupo de pessoas, promoven-
do a integração entre os seus membros e o alívio de sintomas. Assim, pode estar
destinado a atender pessoas que se encontram em situação de risco ou vivendo
experiências de tensão, que venham causar afetação/prejuízos à saúde mental,
como foi o caso da pandemia de COVID-19 entendida como “uma catástrofe
de enormes proporções humanitárias, sociais e econômicas” (BIRMAN, 2020,
p.13) que, devido sua magnitude, trouxe inúmeras repercussões à saúde mental
da população mundial. Experiências dessa ordem exigem cuidados urgentes e
emergenciais à população atingida, a fim de “possibilitar o tratamento, sem per-
der de vista o método psicanalítico” (MASCARENHAS, 2022, p.22), seu rigor
clínico e ético, reconhecendo que todo o conhecimento proveniente dessa lógi-
ca “deve ser utilizado por toda a sociedade na medida em que os dados oriundos
do campo permitem-nos generalizações para as políticas públicas, programas de
*Ana Karina Fragoso Mascarenhas
atendimento, formação de pessoal, entre outros” (BROIDE, 2006, p.77).
Psicanalista, Graduada em Psicologia
Seguindo o que a psicanálise nos sugere, de acordo com Mascarenhas e Terapia Ocupacional, membro da
(2022), é necessário estabelecer um espaço de continuidade e previsibilidade, equipe do Centro de Referência à
que possibilite a promoção de laços/vínculos entre os membros do grupo, assim Infância – INCERE.
akarinafragoso@gmail.com
como a construção de uma narrativa grupal. Assim, é necessário um enquadra-

15
mento mínimo para que haja a escuta analítica. Desta forma, sugerimos que o
grupo deve:

1 Ter um tempo determinado de funcionamento (sugerimos entre 4 e 6 meses);

2 Ser composto por no máximo 10 pessoas, dentre elas 2 terapeutas,


1 observador (opcional) e 7 participantes;

3 Ter encontros com periodicidade semanal, sempre no mesmo dia,


horário e local (presencial ou virtual1);

4 Ter sessões entre sessenta e noventa minutos;

5 Independente do contexto em que os encontros do grupo venham a ocorrer


(presencial ou virtual), é necessário que sejam estabelecidos acordos para que
haja o asseguramento do sigilo por parte de todos os seus integrantes;

6 Deve haver um tempo de discussão, após cada sessão, entre os terapeutas e


o observador2 (caso haja), para encaminhamentos e planejamento de
possíveis demandas.

O enquadramento possibilita a construção de um ambiente que propor-


cione um holding, assim como nos sugere Winnicott (2005), uma vez que o
holding diz respeito ao ambiente de sustentação físico e psíquico proporcionado

1. Caso o encontro aconteça de forma presencial, é preciso que os terapeutas possam preparar a sala
com antecedência, com todos os recursos necessários para sua realização. Caso aconteça de forma
virtual, deve ser escolhida (antes do início dos encontros) a plataforma virtual que será empregada, as-
sim como deve ser utilizado o mesmo endereço eletrônico em todas as sessões. Não recomendamos
grupo virtual para as crianças.
2. O observador não deve intervir diretamente no grupo. Sua função é fazer o registro de todas as
sessões, onde estas vão compor o prontuário/arquivo do grupo. O material produzido pelo observador
deve ser arquivado em local seguro e sigiloso, já que se trata de um material clínico.

16
por quem exerce a função materna para seu bebê. Ele deve ser transferido, como
uma espécie de manejo para o dispositivo de grupo, a partir de um enquadra-
mento contínuo, confiável e previsível, que deve ser sustentado pela dupla de
mediadores. SAIBA MAIS!

Como nos sugere Mascarenhas (2022), a fala é o recurso primordial a ser Sobre a proposta
não-diretiva da técnica
utilizado nesse dispositivo, mas por também se tratar de um grupo com emba- do grupo operativo,
você pode consultar o
samento nos conceitos de grupo operativo, por vezes podem surgir demandas, livro O processo grupal,
do psicanalista suiço-
temas ou situações em que se faz necessário lançar mão de recursos como poe- argentino Enrique
Pichon-Rivière.
sias, livros, músicas, que podem ser propostos tanto pela dupla terapêutica, como
pelos participantes.

RE F E R Ê N CIAS BIBLIOG R ÁFICAS


BIRMAN, Joel. O trauma na pandemia do coronavírus: Suas dimensões políticas, sociais,
econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2020.
BROIDE, Jorge. Psicanálise nas situações sociais críticas: Uma abordagem grupal à vio-
lência que abate a juventude das periferias. 2006, Tese (Doutorado em Psicologia
Social) ­-- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. Dispo-
nível em: http://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-4442/a-psicanalise-nas-
-situacoes-sociais-criticas--uma-abordagem-grupal-a-violencia-que-abate-a-juven-
tude-nas-periferias. Acesso em: 3 set. 2021.
KAËS, René. As teorias psicanalíticas do grupo. Lisboa: Climepsi Editores, 2003.
MASCARENHAS, Ana Karina Fragoso. Narrativas grupais sobre a pandemia: Experiên-
cias de técnicas de enfermagem no tratamento da Covid-19. 2022. Trabalho de Con-
clusão de curso de graduação em Psicologia, Fortaleza-CE.
WINNICOTT, Donald. A família e o desenvolvimento individual. Sao Paulo: Martins
Fontes, 2005.

17
GRUPO TERAPÊUTICO COM CRIANÇAS*
“..todas as culturas reconhecem as virtudes civilizatórias do
grupo e as grandes funções que ele assegura no desenvolvimento
e conservação da vida psíquica”. (Kaës, 2003. p.10)

O
grupo terapêutico é um dispositivo clínico pensado para o acompanha-
mento de crianças e jovens em sofrimento psíquico. Pode ser formado
por uma dupla de terapeutas, membros da equipe de saúde e de três a
seis pacientes, os quais devem ser triados previamente de acordo com a configu-
Lembretes ração de sofrimento psíquico, tempo do desenvolvimento subjetivo e idade. O
A discussão após a grupo terapêutico deve ter frequência semanal, e o tempo de duração da sessão
realização de cada grupo é é de uma hora. Ao final, os mediadores podem se reunir para discutir como foi
essencial para a continuidade o andamento do grupo do dia. A avaliação dos participantes do grupo pode ser
de seu funcionamento.
feita através de uma entrevista de anamnese com as famílias, onde é escutada
Para a realização do grupo
a história de cada sujeito e são colhidas as informações sobre a demanda de
é imprescindível estar atento atendimento. Nessa avaliação, é considerado o estado de sofrimento psíquico
para limites e necessidades em que o paciente se encontra, pois em algumas situações o estar com outros
psíquicas de cada participante. pode ser muito ameaçador e invasivo. Nesses casos, a indicação de acompanha-
mento seria de uma psicoterapia individual. Ao se analisar a abertura de contato
Lembre-se de construir
juntamente a todos os
com o outro, pensa-se na experiência com pares (outras crianças) que o grupo
participantes as regras de proporciona.
funcionamento do grupo. Para a realização de um grupo é necessário um espaço físico (uma sala) que
preserve o sigilo dos conteúdos que ali poderão ser trazidos e que esteja equipado
com brinquedos variados, jogos, materiais para desenho e pintura, os quais serão
*Luana Lourenço utilizados como instrumentos facilitadores e de criação da brincadeira.
Psicóloga, psicanalista, mestranda
do Programa de Pós-Graduação em
Quando um grupo tem início, nas primeiras sessões podem ser construí-
Psicologia da UFC. Membro e atual dos coletivamente, pelos terapeutas e pacientes, os acordos e as regras que irão
presidente do INCERE. Coordenadora nortear o seu funcionamento. Os grupos terapêuticos podem ser conduzidos ou
técnica e supervisora do Programa de
mediados por meio da brincadeira espontânea proposta pelos próprios pacientes
Extensão Clínica, Estética e Política do
Cuidado (CEPC). Membro do Espaço e alinhavada pelos terapeutas. A cada sessão se constrói o brincar em conjunto,
Transicional Winnicott (ETW). compartilhado. Os terapeutas/mediadores, por sua vez, intervêm no brincar e
luanalourencomc@gmail.com nos diálogos que surgem, sem um direcionamento prévio.

18
A relevância e a potência do trabalho em grupo podem ser pensadas a partir
da noção de subjetividade proposta por Winnicott (2002, p. 82), em que esta é
constituída na relação com o outro, segundo o psicanalista “é certo que um bebê
não poderá tornar-se uma pessoa se só existir um ambiente não humano; nem
mesmo a melhor das máquinas pode oferecer aquilo de que necessita. Não, um
ser humano se faz necessário...”. Assim, um humano só se constitui sujeito hu-
mano a partir da relação com o outro humano.

CA I X A I N F O R M AT I VA
mediadores dois.
participantes de três a seis pacientes.
frequência semanal.
duração uma hora.
onde ocorre em um local com espaço amplo e
que possibilite a manutenção do sigilo.
recursos brinquedos variados, jogos, material de desenho
e pintura.
quem pode participar será realizada uma triagem
para uma avaliação prévia a respeito das condições de
desenvolvimento e constituição em que a criança se
encontra.

RE F E R Ê N CIA BIBLIOG R ÁFICA


WINNICOTT, D. W. O bebê e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

19
TRABALHO EM GRUPO
MEDIADO PELA MUSICALIDADE *

U
m grupo terapêutico pode ser uma excelente solução para que sejam ela-
boradas diversas questões que atravessam as demandas em saúde mental
infantojuvenil, como já discutimos nesta cartilha. Mas como fazê-lo?
Aqui, descreveremos algumas características possíveis de um grupo terapêutico
mediado pela musicalidade.
Esse grupo tem como objetivo intervir no desenvolvimento de crianças a
partir da troca entre pares, compreendendo a ritmicidade de cada uma dessas
trocas. Desse modo, cria-se um setting sonoro, um lugar onde a criança possa se
utilizar do som como forma de expressão, brincadeira e experimentação.
No que se refere ao método, este deve ser discutido antes do início das
Lembretes atividades, para que os enquadres sejam propostos e definidos. É necessário um
Um planejamento das planejamento com toda a equipe que estará presente no grupo, como terapeutas
atividades é essencial! e demais profissionais que possam vir a participar. Caso, durante o planejamen-
to, algum profissional não possa estar presente com frequência assídua no dia e
É importante que os horário do grupo, não é indicado que ele participe dos encontros, pois isso pode
mediadores sejam os mesmos. afetar o vínculo de trabalho.
O grupo pode conter dois ou três terapeutas e entre três e seis crianças. A
faixa etária das crianças pode variar, dependendo do estilo do grupo, e deve ser
decidida na fase de planejamento, a fim de serem pensadas estratégias de acordo
com a faixa etária.
Alguns critérios avaliativos para a triagem de crianças podem ser: as dificuldades
O grupo é de crianças, mas a
que ela apresenta em estar entre pares, dificuldades de socialização ou com a fala. A
família também está envolvida!
triagem e as entrevistas iniciais com a família são fundamentais para a estruturação
do grupo, uma vez que podem servir para um melhor direcionamento para cada caso.
As sessões devem acontecer, preferencialmente, toda semana, em um espa-
ço que resguarde o sigilo, e deve ter duração de até sessenta minutos, indepen-
dente da eventual ausência de algum participante.
Durante as sessões, pode-se utilizar de um brincar livre com a musicalidade.
Isto é, espera-se que as crianças sinalizem em conjunto para o inicio das brin-

20
cadeiras. Podem ser oferecidos instrumentos rítmicos, melódicos e harmônicos,
como chocalhos, tambores, flautas e violão para mediar as brincadeiras. Além Lembretes
disso, podem ser disponibilizados papéis, lápis de cor, canetinhas e caixa de som Fazer surgir a singularidade
para algumas atividades que mesclam o brincar e a música. A partir do que surgir de cada criança.
nas brincadeiras, pode haver um direcionamento para a musicalização, ritmando
e dando melodia aos movimentos com palmas, pisadas e canções.
A musicalidade pode se mostrar bastante eficaz quando se trata de uma
intervenção com crianças com entraves no desenvolvimento. Isto é, crianças pe-
quenas podem se beneficiar dos sons musicalizados para criar respostas psíquicas *Gabriel Azevedo Leite
no que diz respeito às vicissitudes de seu desenvolvimento. Psicólogo pela Universidade de
Fortaleza (UNIFOR). Especialização em
E se a criança não demandar uma brincadeira? O trabalho com a musicali- Psicoterapia Psicanalítica de Fortaleza
dade opera a partir de uma tentativa mediada de endereçamento à criança, com (EPPF). Formação em clínica e gestão
a intenção de que possa suportar o contato, já que muitas vezes não conseguem pelo INCERE (Centro de Referência à
Infância). gabrielleite302@gmail.com
se relacionar de forma direta com outras pessoas, seja por meio da brincadeira,
da palavra, do olhar ou do tato. A mediação pela musicalidade é uma tentativa *Kemylle Mesquita Brito
Psicóloga. Mestranda em Psicologia
de produzir uma experiência de contato entre as crianças e os adultos, a partir do
pela Universidade Federal do Ceará
elemento sonoro suportável para cada uma. (UFC). kemyllemb@gmail.com
Algumas crianças podem utilizar os instrumentos musicais para produzir *Natália Ferreira Barreto
som ou para inventar novas brincadeiras. Como, por exemplo, a utilização do Graduada em Psicologia pela
violão como instrumento percussivo, que uma criança pode bater no corpo do Universidade Estadual do Ceará
(UECE). Formação em clínica e gestão
violão para produzir o som tal qual o de um tambor, diferente do esperado pela
pelo INCERE (Centro de Referência à
batida nas cordas. A aposta é que o grupo possa fazer surgir a particularidade de Infância). nataliiabarreto@gmail.com
cada um e que ela possa ser parte do trabalho entre os pares.
*Parla Maigath Leite Sousa Araújo Farias
Por exemplo, quando uma criança recusa-se a falar, mas liga e desliga a luz Graduanda em Psicologia pela
constantemente, os terapeutas podem fazer a leitura disso como uma brincadei- Universidade Federal do Ceará.
ra e uma forma de participação, e não como uma atitude indisciplinar. A partir parlamaigathleitesousa@gmail.com

do momento em que essa atividade se transforma em uma brincadeira rítmica, *Paulo Alves Parente Júnior
Psicólogo. Doutorando em Psicologia
podem reproduzir o movimento do ligar e desligar realizando batidas rítmicas
pela Universidade Federal do Ceará
também nos instrumentos, o que muda o estatuto da atividade e chama a criança (UFC). pauloaparentejr@gmail.com
para o jogo, estabelecendo uma relação conjunta entre os pares.
* Todos extensionistas do Programa
Aposta-se em atitudes como essa, em que se possa significar de um outro Clínica, Estética e Política do Cuidado
modo alguns gestos e incitá-los de uma forma criativa para que, assim, seja pos- (CEPC) vinculado à Universidade
sível às crianças se relacionarem com as coisas e com as pessoas de uma forma Federal do Ceará (UFC).

21
menos sofrida e mais aberta aos outros, porém sem a exigência do contato e sem
o abandono dele.
Alguns aspectos do desenvolvimento psíquico, ou como indica Victor
Guerra (2017), das polissensorialidades, podem ir sendo integrados ao longo
do tempo, a partir das experiências com o ritmo, a melodia, os gestos corporais
e vocais, a narratividade, passando a compor uma musicalidade comunicativa.

CA I X A I N F O R M AT I VA
mediadores dois a três.
SAIBA MAIS! participantes de três a seis crianças.
Visite nosso perfil frequência semanal.
@cepdocuidado duração sessenta minutos
onde ocorre espaço que ofereça sigilo.
recursos instrumentos musicais.

R E FE R Ê N C IA BIBL IOGR ÁF ICA


GUERRA, Victor. O ritmo, a musicalidade comunicativa e a lei materna na artesania
da subjetivação humana. Revista de psicoterapia da infância e da adolescência;
26(26): 8-21, 2017. Disponível em http://www.bivipsi.org/wp-content/uploads/O_
Ritmo_a_musicalidade_comunicativa.pdf, acesso em 15 dez. 2022.

22
GRUPOS COM CRIANÇAS E ADULTOS
NO PROGRAMA DE SAÚDE MENTAL
“BRINCANDO EM FAMÍLIA” *

S
omos um programa permanente de ensino, pesquisa e extensão do Ins- grupos abertos
tituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia, que teve início é um grupo que não
em 2011. Oferecemos um espaço gratuito de cuidado à saúde mental de apresenta participantes
crianças e suas famílias, que pode ser livremente frequentado. regulares, podendo ter
diferentes participantes
Desde outubro de 2021, e considerando os cuidados necessários perante o
em cada realização.
contexto pandêmico, funcionamos com grupos abertos de até oito famílias, pre-
viamente agendadas. Por seu caráter aberto, toda semana o grupo tem uma com-
posição diferente, com famílias que retornam e outras que estão chegando pela
*Vania Bustamante
primeira vez. Psicóloga, doutora em saúde coletiva
Nos grupos podem participar crianças, sempre acompanhadas de um fa- pela UFBA, professora do Instituto de
miliar. O programa aposta em acolher no mesmo espaço a criança e sua família Psicologia da UFBA, coordenadora do
Programa de Saúde Mental Brincando
“em sua maioria a mãe ou outra figura feminina ”, contribuindo para o fortaleci-
em Família. vaniabus@yahoo.com.
mento de vínculos, o que pode trazer “melhoras” em relação às queixas trazidas
*Niara de Albuquerque Vianna Querino
(bustamante, oliveira e rodrigues, 2017). Ao mesmo tempo, as “queixas” são
Mestranda em psicologia do
compreendidas como expressão de dinâmicas vinculares e psicossociais, e não desenvolvimento pela UFBA, psicóloga
como uma dificuldade exclusiva da criança. do Brincando em Família e bacharela em
Entendemos que a criança existe junto com sua família. E esse termo é pen- humanidades. niaraq@yahoo.com.br.

sado num sentido bastante amplo, longe de uma perspectiva naturalizante: “[...] o *Rosa Maria Silva Berrutti
Psicóloga (formada no Uruguai,
conceito de família deve ser apreendido no entrelaçamento da vida privada com
revalidação do diploma pela UFBA),
o mundo externo e com as diversas experiências pelas quais as pessoas passam ao psicóloga do Brincando em Família,
longo do ciclo vital” (scorsolini-comin e santos, 2016, p. 155). Procuramos psicóloga clínica com experiência de
implicar a família no que acontece com a criança, promovendo a reflexão e a trabalho com adolescentes em conflito
com a lei em ONGs.
compreensão do que é trazido como queixa. Apostamos no cuidado da família, silvarosa968@gmail.com.
tanto escutando-a quanto destacando a sua grande importância na vida das crian-
*Elisabete Reis
ças, contribuindo, dessa forma, para a construção de modos patologizantes de dar Psicóloga clínica pela UFBA, psicóloga do
sentido aos comportamentos de crianças e adultos (bustamante, 2020). projeto Brincando em Família, bacharela
Considerando a faixa etária das crianças, são ofertados dois grupos. O pri- em humanidades, escritora e poetisa.
psi.betereis@gmail.com.
meiro inclui crianças de até sete anos e o segundo a partir de oito anos e even-

23
tualmente alguns adolescentes. Os encontros acontecem uma vez por semana,
durante uma hora e quinze minutos. Os horários marcados para o início e o
término são seguidos cuidadosamente. Também os períodos de recesso – que
acontecem no início e no final do ano – são avisados com antecedência. Isso
contribui para que o espaço seja vivenciado como um lugar seguro e acolhedor.
O grupo acolhe crianças que se encontram em sofrimento psíquico e tam-
bém outras que chegam sem queixas, procurando explicitamente um lugar para
brincar. Em todos os casos, no primeiro encontro realizamos um acolhimento
acolhimento singularizado da família. Nesse momento, apresentamos o projeto e exploramos
singularizado o que motivou a procura, assim como a fonte de encaminhamento. Abordamos
A família ou aquele
também a história da criança, assim como aspectos psicossociais da família. Du-
adulto que demanda rante o acolhimento, a criança tanto pode permanecer junto ao adulto quanto
o atendimento são pode explorar o espaço e brincar, sempre tendo alguém da equipe por perto. Isto é
escutados, considerando o que acontece na maioria das vezes.
as particularidades de
Ao longo dos primeiros encontros – habitualmente quatro –, conhecemos
cada caso; por exemplo,
a criança e sua família e podemos refletir sobre as preocupações trazidas, as-
podemos ouvi-los por mais
de um encontro, se for sim como ponderar se será necessário procurar outros espaços de avaliação e de
necessário. acompanhamento.
Aproximadamente no quinto encontro, promovemos um momento de de-
volutiva, no qual dialogamos sobre como a família tem observado a criança no
tempo de permanência no projeto e nossas primeiras impressões sobre a criança
e a família. Nesse processo, é possível identificar situações em que o grupo não
é uma boa alternativa para a criança ou quando outros acompanhamentos são
necessários. Em algumas situações, será preciso acompanhamento individual.
Isto é comunicado à família, procurando sempre que o encaminhamento seja a
serviços ou profissionais contatados previamente pela equipe. Assim, buscamos
atenuar o desgaste e a angústia relatados pelas famílias ao procurar atendimentos.
Os grupos acontecem em uma sala ampla, localizada em um local ligado
à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, a Biblioteca Infantil Monteiro Lo-
bato. A existência de diferentes “cantinho” dentro da sala – incluindo mesas pe-
quenas com poucas cadeiras – possibilita ofertar uma escuta de maneira sigilosa.
Uma mesa comprida, com várias cadeiras, assim como almofadas e tatames no
chão, convida as trocas verbais entre os adultos.

24
Na sala estão disponíveis brinquedos estruturados (como bonecos com
forma humana e de animais, carrinhos, instrumentos musicais, brinquedos de
casinha, fantoches, fantasias) e semiestruturados (como blocos e bolas), além
de materiais gráficos e plásticos (como tintas, massinhas, lápis de cor). Também
dispomos de jogos de regras, livros, entre outros. Buscamos materiais e brinque-
dos que podem ser usados por meninas e meninos, em que as pessoas negras se
sintam representadas.
Por ser um grupo aberto, onde diferentes participantes podem chegar em
cada encontro, o espaço estabelece previamente algumas regras de convivência.
Durante o grupo podem acontecer escutas individuais com adultos e brin-
cadeiras individuais com crianças. Ao mesmo tempo, incentivamos que as pes-
soas compartilhem suas experiências e preocupações com suas crianças.
Apostamos no brincar livre como principal recurso no cuidado, tendo como
suporte teórico contribuições de Donald Winnicott (1975), para quem o brincar
tem relação com a construção de uma relação criativa e de confiança em si mesmo
e com a realidade compartilhada. No brincar, as crianças, e também os adultos,
expressam suas fantasias e podem elaborar as suas dificuldades. Para isso, é funda-
mental contar com um ambiente seguro, que garanta a continuidade necessária e
acolha os gestos espontâneos, o que em algumas ocasiões envolverá a necessidade
de “sobreviver” às manifestações agressivas.
Nesse sentido, a equipe de cada grupo – formada por aproximadamente
duas psicólogas e quatro estudantes de psicologia, que se autodenominam “aco-
lhedoras” – procura compreender o sentido das queixas apresentadas, diferen-
ciando entre a perspectiva da criança e a do adulto que a traz. As acolhedoras se SAIBA MAIS!
colocam disponíveis para acompanhar os movimentos das crianças, incentivam Neste link você poderá
saber mais sobre
que estas brinquem e se expressem livremente, bem como intervêm quando esse projeto.
necessário, em alguns momentos de modo mais ativo – propondo ou mediando portfoliodepraticas.
brincadeiras –, em outros permanecendo de maneira reservada. epsjv.fiocruz.
br/pratica/
A diversidade entre as crianças – algumas se encontram com maiores difi- projeto-de-saude-
mental-brincando-
culdades e expressões de sofrimento – costuma ser enriquecedora e propiciar em-familia-integrando-
extensao-ensino-e-
trocas harmônicas, bem como momentos de tensões e disputas. Em geral, as pesquisa-junto.
crianças conseguem convocar os pares de um modo diferente, às vezes mais
efetivo que os adultos.

25
Apostamos no potencial do trabalho em grupo, em diálogo com contribui-
ções do psicanalista René Kaës, para quem o grupo terapêutico é um espaço que
possibilita importantes elaborações, pois a subjetividade envolve necessariamente
intersubjetividade:

O sujeito singular é também um sujeito cujo inconsciente é mantido e moldado


nos vínculos intersubjetivos dos quais ele faz parte, nas alianças inconscientes que
o precedem e que ele contrata por conta própria, nos espaços psíquicos comuns que
ele partilha como outros. (kaës, 2011, p.11)

A equipe, formada por psicólogas voluntárias com mais experiência e


por estudantes, realiza reuniões semanais. Nesses momentos, que acontecem
em espaço sigiloso, trocamos impressões sobre cada criança e sua família, acor-
Lembrete damos manejos, devolutivas, construímos ações de articulação em rede, quando
Há uma reunião semanal necessário, entre outros assuntos. Também nessas reuniões semanais são apre-
para: supervisão, discussão sentados e discutidos materiais teóricos que proporcionam embasamento ao que
teórica e do manejo dos casos
fazemos e pensar novas perspectivas na compreensão das crianças e famílias.
atendidos.
Os estudos e a produção de relatos, com registros de como cada um esteve no
Há um registro documental projeto, são também fundamentais. Isto tem uma função parecida com um
decorrente da realização prontuário e contribui para a continuidade do cuidado.
do grupo.

CA I X A I N F O R M AT I VA
mediadores seis.
participantes até oito famílias; geralmente ocorrem pares
de criança e familiar.
frequência semanal.
duração entre uma hora e uma hora e meia.
onde ocorre em um local com espaço amplo e que possibilite
a manutenção do sigilo.
recursos brinquedos variados, jogos, material de desenho e pintura.
quem pode participar aquele tiver interesse quando for à instituição.

26
RE F E R Ê N CIAS BIBLIOG R ÁFICAS
BUSTAMANTE, V. Cuidado a crianças e suas famílias e queixas de agressividade: um
estudo de caso clínico. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, n. 32, v. 1, p. 15-34, 2020.
BUSTAMANTE, V.; OLIVEIRA, R.; RODRIGUES, N. B. Acolhida e cuidado a crian-
ças e famílias em um serviço de saúde mental infantil. Psicologia Clínica, Rio de
Janeiro, v. 29, n.3, p. 429-447, 2017.
KAËS, R. Um singular plural: A psicanálise à prova do grupo. São Paulo: Edições Loyola,
2011.
SCORSOLINI-COMIN, F.; SANTOS, M. A. dos. Construir, organizar, transformar:
considerações teóricas sobre a transmissão psíquica entre gerações. Psicologia Clí-
nica, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 141-159, 2016.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975.

27
PROJETO ÁGUA DE CHOCALHO
E OFICINAS DE MEDIAÇÃO *

O
Projeto Água de Chocalho é um plano de extensão que visa acompanhar
crianças em grave sofrimento psíquico, geralmente diagnosticadas com
transtorno do espectro autista, mas não exclusivamente. Entre suas ativi-
dades, que incluem a intersetorialidade e o diálogo acerca de cada caso, realiza-
mos as atividades que chamamos de oficinas de mediação.
Nesses grupos, compostos pelas crianças em atendimento no Serviço de
Psicologia Aplicada da UFC – campus de Sobral, as atividades são realizadas a
partir dos interesses próprios às crianças presentes e mediadas por extensionistas
que se mantêm disponíveis ao trabalho em cada turno. A frequência é semanal
ou de acordo com o atendimento clínico individual realizado nessa instituição.
SAIBA MAIS!
A avaliação das atividades é realizada em supervisão e orientação de pesquisa.
Neste link você poderá Os recursos empregados nas atividades são dos mais variados, já que de-
saber mais sobre
esse projeto. pendem da espontaneidade manifestada nas brincadeiras e manifestações das
psicologiasobral.ufc.br/ crianças. Contudo, destacamos os recursos a instrumentos musicais, espelhos,
pt/projetos-e-pesquisa/
agua-de-chocalho-2/ pinturas e aplicativos de celulares. O trabalho também pode ser realizado no
contexto das escolas, junto com outras crianças não pertencentes ao projeto.
Além disso, o projeto também se realiza em outras instituições de ensino supe-
rior e na Rede de Saúde Mental de Sobral.
*Luis Achilles Rodrigues Furtado
Professor associado I do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia e
CA I X A I N F O R M AT I VA
Políticas Públicas da Universidade
Federal do Ceará – campus de Sobral, mediadores extensionistas.
coordenador do Projeto Água de participantes crianças em atendimento psicoterápico
Chocalho. luis_achilles@ufc.br. individual.
*Camilla Araújo Lopes Vieira frequência dependerá da assiduidade da criança na
Professora associada I do Programa instituição.
de Pós-Graduação em Psicologia e
duração uma hora.
Políticas Públicas da Universidade
Federal do Ceará – Campus de
onde ocorre em um local com espaço amplo e que
Sobral, coordenadora do Clipsus. possibilite a manutenção do sigilo.
camillapsicol@ufc.br. recursos diversos

28
LEITURA COMPARTILHADA:
INSTRUMENTO PARA O COLETIVO*

T
rabalhar com crianças e jovens na rede de atenção pública brasileira é de-
safio conhecido por inúmeras razões, entre as quais, a ausência ou escas-
sez de instrumentos metodológicos para atuar em grupos, seja em escolas,
unidades de atenção à saúde e da proteção social. Uma ferramenta possível e que CA I X A
vem sendo utilizada é a leitura compartilhada. Ler junto, por vezes, é uma ativi- I N F O R M AT I VA

dade prazerosa que pode incentivar os grupos a transformar texto em desenhos, Como realizar uma
teatro, novas pautas e até desdobramentos comunitários. leitura compartilhada?
Antes de selecionar o
Aqui no Ceará, como autora da Coleção Paic (SEDUC - 2018) já percorri
texto, é interessante que o
algumas escolas na cidade de Fortaleza, a convite dos professores Klaus Mu- profissional estabeleça um
niz e Amanda Alencar, para ler junto e conversar com estudantes sobre suas objetivo sobre o grupo a
experiências de leitura com o livro “Quinamuiú”, adotado nas séries finais do ser trabalhado, elencando
Ensino Fundamental. As discussões são sempre muito ricas e é comum ouvir suas características,
de crianças e jovens desdobramentos subjetivos e coletivos a partir da leitura, demandas, limitações.
desde “Foi muito importante ler esse livro, me ajudou a rever minha relação com A partir dessas
considerações, pesquisar,
a família” até “Queria ler mais, mas como livro é caro, né?”. Percebo como uma
buscando produções
leitura pode tocar esses sujeitos a ponto de fazê-los questionar comportamentos, literárias que casam com
cultura, sociedade. o grupo e seguir para o
Também tenho experimentado estar, presencialmente ou não, nas escolas encontro! Sem receio,
públicas estaduais, a partir de convites de professores que lêem contos publica- sem a necessidade de
dos por mim individualmente e através do Delirantes – coletivo de escritores. ser um exímio contador
Como são narrativas breves, já ocorreu da professora de Inglês, Sara França, na de histórias, mas com o
desejo de realizar uma boa
cidade de Iguatu, utilizar alguns textos do livro “o silêncio de todo dia” como
mediação, encantando os
exercícios de tradução; também na cidade de Iguatu, a professora Eveline Soa- integrantes à leitura e à fala.
res, que atua na zona rural, buscou contos dos livros “Limiar” e “o castiçal, a
escrivaninha, a cadeira e o rascunho” para lhe auxiliar em atividades nos clubes
de leitura e turmas do Ensino Fundamental.
*Dauana Vale
Ler, como ato solitário, pode ser um encanto, um arrebatamento, amplia- Escritora e Psicóloga Social.
ção de repertório. Ler junto pode ser tudo isso, coletivamente. Já pensou? dauanavale@gmail.com

29
ESCUTANDO E INTERVINDO
EM GRUPO COM
ADOLESCENTES

30
AS CONVERSAÇÕES COM ADOLESCENTES*

S
e você é trabalhador(a) do SUS, muito provavelmente já ouviu falar do
método das rodas de conversas, utilizado para a discussão de temas ou SAIBA MAIS!
de situações-problemas de modo mais horizontalizado, onde as pessoas Neste link você poderá
envolvidas compartilham experiências e apresentam suas ideias com o intuito saber mais sobre
esse projeto.
de produzir um saber coletivo acerca da questão disparadora.
Miranda, M. P.,
Pois bem! Existe, a partir da teoria psicanalítica, um método similar ao da Vasconcelos, R. N., &
Santiago, A. L. B. (2006).
roda de conversa, muito utilizado em trabalhos que aliam pesquisa e intervenção Pesquisa em psicanálise e
com adolescentes. Mas, mesmo para quem não pretende fazer pesquisa, as con- educação: a conversação
como metodologia de
versações podem ser um caminho interessante para trabalhar com adolescentes pesquisa. In Anais do 6o
Colóquio do LEPSI IP/
em contextos diversos: em equipamentos de saúde, nas escolas, nos CRAS e nos FE-USP: Psicanálise,
educação e transmissão.
CREAS, para citar alguns exemplos. São Paulo, SP: USP.
Recuperado de http://
As conversações surgiram inicialmente para discussão de casos que, no con- www.proceedings.scielo.
texto da clínica, traziam desafios importantes no tocante à condução do tratamen- br/scielo.php?pid=MSC00
00000032006000100060
to. Geralmente, essas situações são trabalhadas entre o profissional (ou a equipe) &script=sci_arttext
que atende e a figura do supervisor. O caso é relatado ao supervisor, que faz inda-
gações, comentários e ajuda aquele que fez o relato a pensar o problema a partir
de outros ângulos. No entanto, algumas situações são particularmente difíceis e,
diante das mesmas, o psicanalista francês Jacques-Allain Miller propôs que fossem *Vládia Jamile dos Santos Jucá
realizadas discussões em coletivos, nos quais as pessoas pudessem falar livremente, Psicóloga pela Universidade Federal
do Ceará, mestre em comunicação
a partir do relato do caso, acerca das impressões e ideias que lhes ocorriam, a fim de
e cultura Contemporânea pela
que fosse tecido um saber, um outro modo de pensar o impasse apresentado, abrin- Universidade Federal da Bahia com
do espaço para a realização de novos movimentos na condução de um tratamento. doutorado em saúde coletiva pela
Outro psicanalista, chamado Philippe Lacadée, importou a metodologia mesma instituição. Realizou estágio
pós-doutoral na Universidade Federal
das conversações para o contexto escolar e passou a utilizá-la no trabalho com de Minas Gerais. Atualmente, é
jovens, no contexto francês. A proposta desenhada desde então é, a partir de uma professora associada do Departamento
situação geradora de impasse, como, por exemplo, a violência na escola, instituir de Psicologia da Universidade Federal
do Ceará. vladiajuca@ufc.br.
um espaço de livre fala entre os próprios jovens com a mediação de um(a) psica-

31
nalista que sustentaria um ambiente propiciador de uma “associação livre coleti-
vizada” por parte dos adolescentes. A associação livre, técnica proposta ainda por
Freud, visa convidar a pessoa em atendimento a falar do modo mais livre possível,
sem se preocupar com se está certa ou errada, se seus pensamentos são “bons” ou
“maus”, se irá agradar ou não o terapeuta. É importante que essa fala não esteja
condicionada pelas amarras do compromisso de formar discursos logicamente
concatenados ou que precisam estar atrelados a um tema específico.
A ideia da coletivização da associação, já pensada por Miller, no contexto da
discussão clínica, considera que a fala de um(a) pode provocar naqueles(as) que
escutam outras ideias. Afinal, compartilhamos um campo semântico, o qual,
ao ser manobrado de modo mais livre, pode nos levar a experiências muito inte-
ressantes, em especial a desconstrução dos sentidos instituídos com a abertura
de novas possibilidades de significação. Philippe Lacadée utilizou o método
Atenção!
das conversações tanto no trabalho com os adolescentes quanto com equipes
A conversação não é
sinônima de grupo terapêutico.
interdisciplinares que se reuniam, após o trabalho com jovens, em uma outra
Eles apresentam objetivos “rodada” para tessitura de saber acerca do mal-estar que atravessa os(as) jovens e
diferentes! quais as melhores formas de ajudá-los(as).
No Brasil, as conversações têm sido utilizadas sobretudo nos contextos es-
Esta metodologia pode colares, não obstante encontremos relatos de outras experiências, como, por
ser utilizada tanto com
exemplo, no sistema socioeducativo ou em espaços comunitários. Considera-
adolescentes, quanto com
familiares e profissionais. mos que se trata de um método muito potente para o trabalho em saúde em
contextos diversos. É diferente de um grupo terapêutico porque não se trata de
realizar um trabalho clínico a médio/longo prazo, por meio do qual, no contexto
grupal, os participantes iriam elaborar sobretudo suas questões individuais. Nas
conversações, procura-se abordar especialmente o mal-estar compartilhado por
tessitura vários, presente em situações diversas, tais como: as insatisfações com a imagem
Palavra utilizada também no corporal, o ódio nas redes sociais, a prática de automutilação e os atravessamen-
contexto da escrita musical,
tos subjetivos de se habitar em territórios marcados pela violência.
indicando as formas de
Nas conversações, os(as) adolescentes, em vez de serem falados pelos outros
posição e arranjo das
notas e, no nosso contexto, (adultos) – fazemos muito isso quando realizamos “palestras” para eles(as) –, são
relativo à construção de um convidados a falar e a conjuntamente elaborar um saber acerca de um mal-estar
saber que se tece na trama que os(as) acometem. Ademais, são ainda instigados(as) a pensar em redes de
de um grupo. proteção e de cuidado, contando com adultos de referência, mas também – e

32
isto é fundamental – com as redes de solidariedade entre eles(as). As conversa-
ções apostam nessas redes horizontais e na importância de fortalecê-las!
Não existe um número fechado de conversações. Dependendo do grupo e
do contexto, tanto pode acontecer apenas um encontro de conversação como
podem ser realizados vários encontros. Em nossa experiência, caso a situação
permita e os(as) participantes topem, as conversações podem ocorrer com uma
média de oito encontros. O número de participantes recomendável é em torno
de doze. Com esse quantitativo, criamos uma situação favorável à participação
de todos(as) e podemos acompanhar melhor o movimento de cada um(a) no
coletivo criado para as conversações.
Tivemos, em Fortaleza (CE), uma experiência muito rica, a partir das con-
SAIBA MAIS!
versações com jovens de uma escola pública de ensino médio. Faremos um
Neste link você poderá
breve relato para ilustrar a potência do método. saber mais sobre
esse projeto.
Fomos convidadas a fazer esse trabalho por parte da direção da escola, que
estava muito preocupada com a proliferação das situações indicadoras de so- JUCA, Vládia Jamile dos
Santos. Adolescência,
frimento psíquico, sobretudo crises de ansiedade, práticas de automutilação e Ensino Médio e projetos
de vida na escola pública.
ideação suicida. O convite da direção da escola que se encontrava sem saber o Estilos clin., São Paulo,
v. 25, n. 3, p. 394-406, dez.
que fazer diante da situação já seria suficiente para ofertarmos um espaço para 2020. <http://pepsic.
os(as) estudantes. No entanto, o mais interessante do convite é que, na escola, bvsalud.org/scielo
php?script=sci_arttex
havia um grupo de adolescentes com desejo de pensar alguma ação em saúde t&pid=S1415712820200
00300004&lng=pt&nr
mental. Com essas adolescentes, pensamos na divulgação e na implementa- m=iso>. acessos em 18
mar. 2023. http://dx.doi.
ção das conversações. Com elas, iniciamos o trabalho que durou seis encontros. org/10.11606/issn.1981-
Havíamos programado oito, mas em função de outras atividades do calendário 1624.v25i3p394-406

escolar, foi necessário rever essa quantidade. Dez pessoas se inscreveram, mas
oito efetivamente participaram: algumas garotas do grupo inicial interessado em
fazer o trabalho e outras que foram chegando a partir do convite das primeiras.
Ao longo dessa experiência, as adolescentes abriram o discurso inicial cen-
trado no “tenho ansiedade/ depressão” e falaram das dificuldades vividas em
suas respectivas famílias, do sofrimento atrelado a violência presente no territó-
rio onde habitam, das dificuldades relativas a fazer o luto dos(as) amigos(as) que
perdem em função da violência, das incertezas sobre o futuro após a conclusão
do ensino médio, entre outros temas que circularam na medida em que fala-
vam. No nosso último encontro, na avaliação que realizaram da experiência,

33
ressaltaram, sobretudo, o quanto foi importante conseguir falar/tratar de suas
aflições. Colocar em palavras as situações que produziam sofrimento em silên-
cio foi percebido, por elas, como tendo sido um dos principais pontos positivos
do trabalho que, juntas, fizemos acontecer.
A experiência descrita aconteceu, como afirmamos em uma escola, mas po-
deria ter acontecido em um equipamento da assistência social, em uma Unidade
Básica de Saúde ou em um Centro de Atenção Psicossocial. Quem sabe não pode-
ríamos inventar práticas de acolhimento para adolescentes inspirados(as) nas con-
versações? Afinal, trata-se de um dispositivo, como as adolescentes nos ensinaram,
que permite, pelo menos, começar a contornar, por meio das palavras, um mal-es-
tar que, ao ser silenciado, assujeita e, no caso de adolescentes, pode expressar-se
através de atuações que, por vezes, os(as) colocam em situações de risco.
Seja qual for o contexto de utilização das conversações, consideramos im-
portante registrar algumas recomendações:

1 Elas só fazem sentido quando há um pedido de ajuda diante de uma situação-problema.

2 É importante que os(as) adolescentes sejam convidados para participar voluntariamente das
mesmas.

3 No primeiro encontro, é fundamental esclarecer que não se trata de um grupo terapêutico,


mas de um espaço para pensar conjuntamente sobre uma situação que os(as) afetam
diretamente.

4 Outros combinados, como sigilo, número de encontros, o espaço como sendo livre para
manifestação do que pensam/sentem, são importantes.

5 Escolher um lugar no qual os(as) adolescentes se sintam confortáveis para falar. Portanto,
evitar salas ou ambientes que gerem a preocupação de serem escutados por outras pessoas.

6 O “mediador” não deve conduzir o trabalho em busca de consensos nem tampouco ficar
demarcando os pensamentos/posições diferentes. Por isso, facilita se for alguém com
experiência e sensibilidade para permitir que as associações se produzam no grupo do modo
mais livre possível.

34
7 Pode-se agregar recursos facilitadores da fala – como desenhos, pinturas, colagens –, mas
tais recursos não são essenciais.

8 O mais importante é construir um espaço de confiança, no qual os(as) participantes possam


falar de forma livre, aberta, sem medo!

O LUGAR PARTICIPATIVO DO(A) ADOLESCENTE/


JOVEM NA ESCOLA: EXPERIMENTAÇÕES
“É DA NOSSA ESCOLA QUE FALAMOS” *

P
*Luciana Lobo Miranda
ara compartilharmos nossas experiências com grupos de adolescentes Doutora em psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de
com vocês e demais profissionais do campo da saúde, escolhemos nos
Janeiro (PUC-RIO), professora titular
remeter à nossa atuação enquanto coletivo É da Nossa Escola que Fala- do Departamento de Psicologia da
mos, projeto que integra o Laboratório em Psicologia Subjetividade e Sociedade Universidade Federal do Ceará (UFC).
(Lapsus). Nosso coletivo, atuante desde o ano de 2018, é formado por uma pro- Bolsista de produtividade do CNPq.
luciana.miranda@ufc.br
fessora, estudantes de graduação e pós-graduação em psicologia na Universidade
*Lara Thayse de Lima Gonçalves
Federal do Ceará (UFC). O trabalho desenvolvido por cada membro tem sido
Mestranda em psicologia na
relacionado a ações de pesquisa e extensão com diferentes escolas públicas na Universidade Federal do Ceará (UFC),
cidade de Fortaleza. colaboradora do Laboratório em
Para a construção de atividades com a escola que é nosso lócus de atuação, Psicologia, Subjetividade e Sociedade
(Lapsus). larathayse@alu.ufc.br
adotamos a perspectiva ética e metodológica da pesquisa-intervenção. De acor-
do com as autoras Marisa Rocha e Kátia Aguiar, a pesquisa-intervenção está no *Tadeu Lucas de Lavor Filho
Doutorando em psicologia na
rol das pesquisas participativas e considera que o processo de investigação não Universidade Federal do Ceará (UFC),
deve ser neutro, mas um espaço de compromisso colaborativo, tanto do(a) pes- professor do Centro Universitário
quisador(a) quantos dos(as) partícipes. Assim, todos(as) atuam como sujeitos de Vale do Salgado (Univs), Icó (CE).
tadeulucaslf@gmail.com
pesquisa, engajando-se em sua produção e divulgação.
Diante da proposta que é falar sobre o nosso trabalho com o público adoles- Mayara Ruth Nishiyama Soares
Mestranda em psicologia na
cente, a frase “intervir para conhecer” para nós é cara, remetendo-se à nossa aposta Universidade Federal do Ceará (UFC),
metodológica de que a pesquisa, a possibilidade de produção do conhecimento, colaboradora do Laboratório em
é inseparável das intervenções que propomos com a escola e com seus membros Psicologia, Subjetividade e Sociedade
(Lapsus). mayararnishiyama@gmail.com
(estudantes, responsáveis pelos estudantes, professores, técnicos e gestão escolar).

35
Dentre os diversos membros da comunidade escolar, as juventudes são as
principais companhias desde o nosso início, em que propomos construir diver-
sas pesquisas em uma escola a partir dos interesses de investigação dos próprios
estudantes. Para tal ação, optamos por propor um curso de extensão acerca da
formação de jovens pesquisadores do cotidiano escolar e, em comum acordo
com a gestão escolar, decidiu-se que esse grupo seria aberto a estudantes do se-
gundo ano do ensino médio, período em que já há uma adaptação àquela escola
e em que não estão focados nas provas de ingresso no ensino superior. Como
algumas das estratégias para o funcionamento do curso, abrimos quarenta vagas
(vinte para uma turma do curso que acontecia pela manhã e vinte para aquela
que acontecia pela tarde), já pensando nas possíveis desistências que poderiam
ocorrer ao longo dos nove encontros planejados. Além disso, fizemos uma divul-
gação em sala de aula acerca das inscrições e da proposta do curso para que os(as)
jovens pudessem nos conhecer e compreender melhor o que seria realizado.
Já como suporte na dinamização dos encontros com adolescentes, adotamos
elementos artísticos como possibilidade metodológica para engajamento. Nosso
intuito foi reforçar a participação e a autonomia da expressão juvenil durante toda
a atividade de produção da pesquisa. Para tornar mais palpável esse processo, traze-
mos exemplificações de nossas articulações com o grupo de adolescentes:

1 Valendo-se de que a pesquisa pode ser feita com várias metodologias, a fim de trabalharmos
a observação como uma possibilidade, conduzimos o grupo de estudantes para uma parte
arborizada e de convivência da escola e pedimos que olhassem o espaço com atenção para as
cenas que eram produzidas naquela experiência. Ao voltarmos para a sala em que usualmente
nos encontrávamos, pedimos que expressassem o que tinham percebido naquele espaço em
forma de desenhos ou prosas em uma cartolina. Como resultado, pudemos ver nos desenhos
o quanto a estratégia de observação pode nos aproximar de diferentes percepções sobre um
espaço/uma questão de pesquisa.

2 Após as formulações dos interesses de pesquisa dos(as) estudantes, os(as) jovens se


juntaram em pequenos grupos a partir de interesses comuns. Com isso, a fim de fixar a ideia
sobre qual seria a questão de pesquisa escolhida por cada grupo, propusemos que pensassem
em uma pequena encenação que representasse esse tema. A encenação fez com que os grupos
pudessem se questionar e discutir sobre qual de fato era sua escolha de pesquisa, bem como a
forma com que poderiam abordar aquele tema com colegas.

36
Momentos como os apresentados aqui foram pensados a partir do interesse
dos(as) alunos(as) participantes e da escola em questão, em que já havia um incen-
tivo e uma grande adesão em relação às produções artísticas, com vários quadros,
cartazes e fotografias feitos por estudantes presentes nos muros da escola. Vale Atenção!
salientar que as parcerias foram possíveis porque o grupo de gestão pedagógica e Na realização de grupo
professores estiveram apoiando o desenvolvimento da pesquisa, mas também par- em outras instituições,
ticipando ativamente do processo de recepção e problematização dos resultados as parcerias com núcleo
gestor e profissionais são
analisados coletivamente. Isso é muito importante. Em nosso trabalho, é funda-
imprescindíveis!
mental o engajamento do núcleo gestor na proposta. Nesse especificamente, a
escola, além de fornecer a infraestrutura para a realização do curso, disponibilizava
o almoço para os(as) participantes.
Outro aspecto da nossa atuação ética-teórica-metodológica é a importância
da restituição. De acordo com o autor René Lourau, sociólogo e um dos funda-
dores da análise institucional, a restituição consiste em se centrar numa tarefa Atenção!
– a de análise coletiva da situação presente – em função das diversas implicações Restituição X Devolutiva
de cada um com e na situação. É importante destacar que essa, ao contrário da Enquanto a devolutiva ocorre
chamada devolutiva, não acontece somente no final da pesquisa, como um as- somente ao final da pesquisa,
pecto separado, mas faz parte do próprio ato de pesquisar-intervir, acontecendo a restituição ocorre no
decorrer de todo o processo da
no decorrer de todo o processo. Surge como uma forma de voltar às questões que
pesquisa.
foram discutidas e pesquisadas com a escola, de modo que seu sentido vá além da
redação final de uma pesquisa e seu valor não sirva apenas ao(à) pesquisador(a)
e à academia. Outro aspecto importante da restituição é a construção e o uso de
materialidades, fazendo com que esse momento de implicação com a escola seja
dinâmico e acessível, utilizando outras linguagens para além das acadêmicas. Na
experiência acima relatada, adolescentes performaram os resultados das pesqui-
sas que fizeram por meio de exposição de cartazes, música e esquete teatral. Os
resultados foram discutidos com estudantes e professores(as) da escola.
A partir da experiência de que a pesquisa no chão da escola mobilizada
pelos seus próprios atores podem produzir transformação do espaço, o coletivo
É da Nossa Escola que Falamos foi ampliando o leque de articulação com outras
escolas e outras juventudes. Fomos percebendo que esse trabalho que estamos
fazendo são também ações de acolhimento para as questões da formação de pro-
fessores, da participação juvenil, formação artística, apropriação do debate ético

37
e político de jovens e professores sobre os problemas da escola, da produção do
sucesso escolar, do acolhimento às diferenças, do combate ao bullying, precon-
ceito, racismo e outras discriminações. Quando paramos para pensar nesse apa-
nhado de coisas, além de estarmos operacionalizando uma psicologia escolar/
educacional crítica aos fenômenos da micropolítica do cotidiano escolar, tam-
bém entendemos que nossas intervenções possuem foco na promoção em saúde
com os jovens. Partimos das contribuições da autora Sudbrack, que considera
que ações que lidam com essas temáticas e outras que atravessam a escola, ao
serem abordadas institucionalmente pelos próprios agentes, acabam por assumir
Lembrete uma produção de bem-estar coletivo.
A escola é um lugar primordial Isto acontece porque a ênfase que atribuímos na concepção de saúde na
para a construção de vínculos!
escola não reduz a centralidade da doença e/ou do esgotamento do bem-estar
em virtude dos processos pedagógicos. A escola se constitui como esse espaço
em que os jovens podem falar sobre si e constroem vínculos, desenham afetos
e inventam projetos de vida, e por isso esse deve ser um espaço de apropriação.
Quando os atores escolares se sentem implicados com o chão da escola, há então
SAIBA MAIS! um ambiente de partilhas e produção de bem-estar. É dessa forma que aposta-
Para mais informações, mos cada vez mais na deliberação do lugar participativo do(a) adolescente sobre
nos visite no instagram
@edanossaescola o que faz sentido e demanda para a escola.
ou no email É visando compartilhar esses modos de criar espaços de trabalho a partir da
danossaescola@
gmail.com pesquisa participativa com o(a) adolescente/jovem que apresentamos algumas
pistas importantes para o desenvolvimento do trabalho de grupo:

1 O desenvolvimento do grupo é um espaço de invenção de narrativas e processos de cuidado.


Não deve ser confundido apenas com o espaço de fala verborrágica. Comumente, nessa fase
da vida, o(a) adolescente/jovem se sentirá melhor pertencente ao coletivo.

2 É importante que o grupo tenha um número consistente de integrantes, com no máximo


quinze, viabilizando o acompanhamento e o desfecho dos trabalhos com atenção.

3 Convidem o(a) adolescente/jovem a participar do diálogo e da implementação dos processos


(temática, objetivo e desfecho). Sentir-se pertencente durante todo o percurso é um espaço de
acolhida às potencialidades juvenis.

38
4 Desenvolvam coletivamente estratégias de comunicação e divulgação das ações a partir das
linguagens com as quais os(as) adolescentes/jovens se sentem familiarizados. A comunicação
expressiva é uma marca desse período de intensas experimentações estéticas e culturais.

5 Criem em conjunto espaços de cuidado com o corpo e a saúde mental a partir do encontro
intergeracional em que adolescentes/jovens e vocês vivenciam simultaneamente.

6 A relação dialógica com o adolescente/jovem, seja no território, grupos e instituições, deve


estar aberta a uma premissa horizontal da relação de saber estabelecida entre todos(as).

7 O lugar da facilitação/mediação é também um espaço de aprendizagem. Procure ir para o


grupo aberto(a) a aprender e a reconhecer que o planejamento pode requerer mudanças,
e a imprevisibilidade é um fator que pode acontecer no grupo.

8 Procure junto ao adolescente/jovem estabelecer negociações de convivência para


o funcionamento do grupo, pois isso ajudará no fortalecimento de que o grupo é uma
responsabilidade de todos(as) envolvidos(as) no processo.

GRUPO PARA CUIDADOS *Alessandra Silva Xavier


Psicóloga, doutora em psicologia
EMOCIONAIS COM ADOLESCENTES* clínica pela Universidade de

D
Santiago de Compostela, Espanha;
esenvolvemos durante nove meses (setembro de 2018 a junho de 2019) professora fundadora do curso de
um projeto denominado Guardiões da Vida nas Escolas, que abrangeu o psicologia da Universidade Estadual
do Ceará, coordenadora do Núcleo
trabalho em grupo com adolescentes de quinze escolas públicas de For-
Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas
taleza, em parceria com a Seduc, atendeu a quinhentos adolescentes e contou e Intervenções sobre a Saúde da
com a participação de 23 alunos do Nusca do curso de psicologia da Universidade Criança e do Adolescente (Nusca).
Estadual do Ceará. alessandra.xavier@uece.br

As ações presenciais envolveram formação de professores e construção de


equipe de referência na escola, articulação intersetorial com saúde, educação e as-
Link para download
sistência e o trabalho com o Livreto sobre cuidados emocionais produzido decor- https://drive.google.
com/file/d/1_ZzgpfXbI_
rente dessa experiência com os adolescentes, o qual aborda temáticas consideradas z0hXMIKV-vd0kw0CCjseN0/
view?usp=sharing
protetivas em saúde mental: autoestima, busca por apoio, esperança, formação de
vínculos, cuidado com as emoções, enfrentamento do preconceito e da violência, Link para vídeo
com orientações
relações familiares, bem como arte e conhecimento sobre a rede de ajuda. https://www.youtube.com/
watch?v=kOiflb_9jBc

39
Em cada encontro, uma temática era escolhida para ser trabalhada, inicial-
mente com dinâmicas, atividades artísticas e que permitisse colocar em movi-
mento falas, experiências e reapropriações do vivido e do sentido. O livreto de
cuidados emocionais, produzido de acordo com as demandas propostas pe-
los adolescentes, foi posteriormente utilizado em rodas de conversa remotas,
durante o período de pandemia em 2021, com grupos de adolescentes (cem
grupos com vinte adolescentes) de 114 municípios do estado do Ceará, durante
o período do projeto em parceria com Unicef e Apdemce. As intervenções pro-
curavam criar espaços de cuidado, de livre circulação da palavra, de troca de
informações e de criatividade. Consideramos a existência de um espaço onde o
outro é reconhecido, visto que suas emoções legitimam o espaço coletivo forta-
lecido propiciando a construção de vínculos e confiança, onde se torna possível
o fortalecimento da autoestima e da possibilidade de encontrar saídas criativas
para os problemas enfrentados.
Tal proposta baseia-se nas recomendações da Organização Mundial de
Saúde (2000), de acordo com o manual para professores e educadores em rela-
ção aos programas de prevenção ao suicídio a serem desenvolvidos na escola. Por
isso, consideramos que o desenvolvimento da autoestima nas crianças e nos ado-
lescentes precisa abranger os aspectos biopsicossociais; para atingir uma elevada
autoestima, os adolescentes precisam estabelecer autonomia em relação à famí-
lia e aos colegas, capacidade de se relacionar com o sexo oposto, se preparar para
uma ocupação que lhe sustente e estabelecer uma filosofia de vida significativa
e praticável. Desta forma, é necessário inserir, como parte regular do currículo,
discussões sobre como lidar com fatos da vida e questões acerca do cotidiano
dos adolescentes, pois construir recursos para lidar com as questões da vida é
estratégia efetiva de saúde mental. Além disso, é prioritário que a comunidade
escolar esteja envolvida na construção de projetos que valorizem a expressão
emocional, combatam a violência, respeitem a diversidade e contribuam para a
Atenção! formação humana ética, dialógica, integral, que contribua para a emancipação,
No trabalho com adolescente, solidariedade e dignidade humanas.
é primordial que os
Ademais, as intervenções devem aprimorar o conhecimento dos adoles-
profissionais conheçam
os serviços oferecidos no
centes sobre onde procurar apoio (por isso o conhecimento a respeito dos equi-
território. pamentos que existam no território é fundamental) e como procurar a ajuda de

40
adultos. É indispensável favorecer o desenvolvimento e a consolidação do senso
de identidade dos estudantes e promover a estabilidade e a continuidade dos
alunos nos estudos. Outrossim, devem ser ensinados a levar a sério seus próprios
sentimentos e ser encorajados a confiar em seus pais e outros adultos, como
professores, médicos e enfermeiros da escola, amigos, treinadores esportivos e
orientadores religiosos.
Os grupos de cuidado construídos eram mediados por alunos do curso de
psicologia, divididos em três por grupo, com diferentes configurações de gênero,
Lembretes
idade, classe social e raça, sob supervisão e preparação em estudos contínuos ao É essencial estudar
longo de dois anos (conhecimentos sobre desenvolvimento humano-adolescên- previamente como forma de
cia, condução e manejo de grupo, desenvolvimento de habilidades terapêuti- preparo para a condução de
cas, estudos sobre prevenção ao suicídio e saúde mental de adolescentes), o que grupos!
permitiu uma aproximação no campo de fala identificações e de experiência
É preciso conhecer o perfil
dos adolescentes. Além disso, os grupos contavam com o suporte de equipe
esperado para participação em
previamente formada em temáticas referentes à saúde mental e construção de cada grupo, por isso que para
retaguarda no território para as situações de acompanhamento intersetorial. realizar o processo de triagem
Os grupos foram formados por vinte a trinta adolescentes, escolhidos a par- dos participantes é necessário
tir de diálogo com professores e equipe previamente formada (Guardiões da Vida ter uma preparação/formação.

nas Escolas, equipe técnica de cada uma das quinze escolas, formada durante
quatro meses em assuntos referentes à saúde mental na instituição escolar) para
identificar adolescentes em situação de sofrimento psíquico, sem apresentar Atenção!
Os adolescentes foram
transtorno mental grave, sem histórico de tentativa de suicídio e que desejasse
indicados pelos professores e
participar do grupo e tivesse disponibilidade para se envolver nas atividades de
equipe que passaram por uma
forma contínua. formação para identificar os
Os encontros eram realizados semanalmente, por seis meses, na escola dos adolescentes que estavam em
adolescentes, em sala que garantisse o sigilo e a privacidade, com a presença sofrimento psíquico.
apenas dos adolescentes e dos alunos de psicologia que iriam fazer a mediação
dos grupos. Os grupos deviam ter horário fixo, regras construídas inicialmente
e duração de pelo menos três meses para garantir a continuidade dos cuidados.
Cada encontro possuía duração de uma hora e meia, que podia se estender por
mais meia hora.
Os primeiros encontros envolviam sensibilização acerca da temática dos
cuidados emocionais na adolescência, de como estava sendo vivido esse pro-

41
cesso pelos adolescentes e dos objetivos e expectativas acerca do grupo. Em
cada encontro havia uma preparação das temáticas, mas sempre com a propos-
ta aberta para que se abordasse o que surgisse do grupo. Os adolescentes eram
considerados os protagonistas do grupo, porque ficava convencionado que não
era uma atividade obrigatória, mas que era preciso compromisso com a equi-
Atenção! pe e que a presença de cada um era o que tornava o grupo potente. Ouvir os
A disponibilidade de adolescentes com disponibilidade para uma escuta genuína compreendendo
quem conduz o grupo precisa os processos em desenvolvimento (os lutos, a escolha profissional, as identifi-
ser de uma genuína escuta, cações, a orientação sexual, o relacionamento com a família, com o grupo, a
aberto (a) ao que vier a ser dito.
escola, a construção do projeto de vida, relação com o corpo) e o contexto em
que se encontram inseridos ajuda a fortalecer a rede de apoio e transforma a
constituição do próprio grupo num espaço que amplia a rede de vínculos e de
suporte social.
A continuidade dos cuidados e a longevidade do trabalho foram considera-
dos aspectos importantes porque permitiram a construção dos vínculos no grupo
e que o mesmo se transformasse em ambiente protetivo, inclusive após o término

CONTINUANDO NA MODALIDADE ON-LINE


Os resultados positivos dessa experiência foram transpostos para o plano on-line durante o período
da pandemia com outros vinte grupos de adolescentes e com três alunos do Nusca mediando cada
grupo. Houve um número menor de encontros (cinco por grupo) com o objetivo de oferecer espaço
de acolhida para adolescentes do interior do estado do Ceará que estavam em situação de perda, em
isolamento social e que possuíam acesso à internet. Os encontros foram realizados pela plataforma
Meets, com duração de duas horas, semanalmente, com link repassado a cada semana, e os temas
escolhidos a partir do encontro inicial com cada grupo.
Apesar do formato remoto, a frequência foi elevada, o envolvimento ativo e houve o relato da
insuficiente oferta de espaços para falar sobre temas considerados silenciados e urgentes para os
adolescentes: relacionamento abusivo, racismo, conflitos familiares, violência de gênero, bullying,
ansiedade, sexualidade e o pouco conhecimento sobre os equipamentos de saúde e de assistência e de
como acioná-los.

42
do projeto. É importante ressaltar que a confiança necessita de um tempo para
ser estabelecida, assim como as dores emocionais, as experiências de luto e as
Lembretes
situações de violência precisam de tempo para que sejam construídos os recursos
Confiança é a base
para sua elaboração. Infelizmente, muitas intervenções de cuidados com adoles- do trabalho em grupo e
centes não consideram esses critérios, e a rapidez do tempo dos projetos ao não tempo é fundamental.
respeitar a lógica do tempo subjetivo com frequência não auxilia no adequado
cuidado necessário.
Era explicado que todos tinham lugar de fala e que os desejos seriam res-
peitados em relação à forma de participação. A presença de três mediadores
auxiliava na condução do grupo e no suporte aos próprios alunos na reflexão
acerca de cada encontro.
O trabalho com adolescentes envolve o reconhecimento das necessidades
e demandas dos mesmos, bem como a organização de horários que viabilizem
a participação. É muito importante quando as escolas possuem espaços que po-
dem auxiliar na realização de atividades no contraturno e que o corpo gestor par-
ticipe das iniciativas de saúde mental, apoiando a participação dos adolescentes

CA I X A I N F O R M AT I VA
O cuidado envolve a escuta, a presença, a garantia da mediadores três.
proteção, a ampliação de informações e a construção de participantes de vinte a 30 adolescentes.
recursos para lidar com o complexo da existência. Envolve ações frequência semanal.
que articulem o conhecimento científico e a dimensão artesanal duração do encontro noventa minutos, podendo
ser estendido por mais trinta minutos; horário fixo.
do humano e está na base de todo processo de saúde mental.
duração do grupo mínimo de três meses.
A saúde mental é questão complexa, intersetorial, e ao longo onde ocorre espaço que ofereça sigilo e
dessas intervenções consideramos urgentes que existam privacidade.
espaços de acesso (na educação, na saúde, na assistência recursos temas previamente escolhidos pelos
social, na cultura, nos esportes) que aproximem adolescentes adolescentes, mas aberto para o que surgir.
do vivido das experiências, das questões existenciais e que Podem ser utilizados outros recursos adicionais,
como música, poesia, gravuras etc.
abram espaço para pensar, sentir e construir possibilidades de
agir juntos.

43
e auxiliando na articulação com as famílias. As escolhas das temáticas devem vir
a partir de uma conversa aberta com os adolescentes, lembrando que a confiança
e a construção do ambiente de trabalho levam tempo. O profissional precisa ser
alguém que tenha trabalhado ou que trabalhe os aspectos da sua própria adoles-
cência em um lugar de cuidado e que tenha supervisão durante a condução das
intervenções para que possa ser capaz de diferenciar e lidar com o seu próprio
adolescente interno de forma a não interferir na escuta.

CAR ACTE R ÍSTICAS DO PROF IS SIONAL PAR A


T R A BALH AR C OM P E SSOAS EM S OF RIMENTO PSÍQ UICO

Empatia, capacidade
de ação e de escuta Que reconheça seus limites e
sem julgamento considere a importância de outras
Que tenha respeito pela medidas de ajuda; que articule
história, cultura, crença sujeito-família-atores sociais e a
Que não tenha medo
e diversidade do outro rede de cuidados, de proteção e de
de lidar com a dor
atenção psicossocial

Criatividade, Que respeite a


Interesse genuíno
delicadeza, segurança, a
pelas pessoas Que participe de
disponibilidade dignidade e os formações contínuas
direitos da pessoa
Que transmita confiança,
Alguém que se cuide,
postura acolhedora, sendo
Que entenda que Que adapte sua que esteja atento ao seu
capaz de identificar as
momento de crise própria ação à próprio sofrimento e que
questões fundamentais
é momento de cultura da pessoa consiga se conectar com o
que envolvem o
crescimento melhor de si e dos outros
sofrimento, facilitando
processos de mudança

44
NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS*
Há uma poética no tempo da narrativa literária; uma trama poética que faz da narrativa de vida pela via do
texto memorialístico uma ou mais de uma possibilidade de existência e de resistência ao esquecimento. Existe
uma poética do tempo que é um mergulho único na eternidade; o tempo fluido da memória que se narra é
Kairós, um tempo que guarda dentro dos ponteiros a não linearidade e que, por isso, é o próprio movimento e
também a alquimia, numa mudança contínua de um estado para o outro. (PORTO, 2011)

A
s “narrativas memorialísticas”, termo que vem da literatura do médico
e escritor mineiro Pedro Nava, nasceu da inquietação de psicanalistas
diante de fenômenos sociais complexos, como pobreza, vulnerabilidade
e criminalidade. Não encontrávamos recursos metodológicos, orientados pela SAIBA MAIS!

psicanálise em diálogo com outros campos, para pesquisar e interagir, de modo Neste link você poderá
saber mais sobre
não hierárquico e opressivo, com os sujeitos de nossas investigações. esse projeto.

A psicanálise é uma teoria do inconsciente. Isso implica a constatação de Acesse o livro


“Adolescências
que, além das determinações materiais, econômicas e políticas, cada sujeito é e narrativas
atravessado por fantasias, palavras e experiências no corpo que não são comple- memorialísticas :
escutando apostas
tamente representadas ou traduzidas, mas os afetam. Sabe aquele frio na barriga, inconscientes.”
disponível em:
aquela sensação de “não sei por que estou fazendo isso de novo, já que vai me https://repositorio.
unisc.br/jspui/
machucar”? Para nós, são experiências sensíveis que mostram que somos habita- handle/11624/2913
dos por uma língua estrangeira interna, do inconsciente, que rege nossos afetos,
nossos modos de satisfação e de sofrimento e que não dominamos.
Quando estamos diante de fenômenos sociais complexos, o trabalho que
considera o inconsciente pode ser um grande aliado para entendermos as rein- *Andréa Máris Campos Guerra
cidências, não adesão e resistências que dificultam tanto o trabalho de vocês, Psicanalista. Mestre em Psicologia
operadores das políticas públicas de saúde, saúde mental, assistência social, so- Social pela UFMG. Doutora em
Teoria Psicanalítica pela UFRJ e
cioeducação, justiça, entre outras.
pós-doutorado na Université Paris 8.
Por quê? Professora Adjunta do Departamento
Porque permitem entender aquilo que a razão não explica, “que dá dentro da de Psicologia da UFMG e do Programa
gente e que não devia, que desacata a gente que é revelia”, como canta Chico Buarque. de Pós-Graduação em Psicologia da
UFMG, responsável pelo Diretório de
Nem sempre nos guiamos pelo que é o melhor, o esperado, o normal ou Pesquisa Psilacs (Psicanálise e Laço
o normatizado como bem comum. Incluir essa leitura em nossas intervenções Social no Contemporâneo) do CNPq/
nos descola dos procedimentos burocráticos que apagam os sujeitos, das normas UFMG. andreamcguerra@gmail.com

45
simbólicas que excluem a diferença e da força opressiva que se torna violenta
quando exigimos o cumprimento de um único modelo de vida, como se ele fosse
universal. Foi assim, acreditando que existe um universal soberano, que acredi-
tamos ser selvagens, primitivos e carentes dos saberes europeus, como se só eles
nos ensinassem a ser desenvolvidos e emancipados. Desacreditamos de nossos
saberes e, com isso, de nossos poderes para a transformação.
Pois bem, como desfazemos essas crenças e apostamos no sujeito com as
narrativas memorialísticas? Inicialmente, como modelo de pesquisa, elas cum-
prem uma função de escuta ao convidar sujeitos ao encontro sensível com a
experiência alteritária da diferença. Envolvem três grupos: pesquisadores(as)
ou técnicos(as), artistas e público-alvo (mulheres, pessoas trans, vulneráveis, em
Atenção! risco, em privação de liberdade ou outras).
É fundamental estar atento Na prática, são três tempos: narrar, criar e compartilhar. Primeiro, uma dupla
aos tempos do grupo na
de pesquisadores(as) convida vários sujeitos com o mesmo problema a narrar sua
prática.
experiência a partir de uma única questão: conte-nos sua história de vida, em local
com privacidade. Esse material, registrado em áudio, é enviado a um(a) artista local,
que escuta e cria uma obra, literária, teatral, visual, fotográfica etc. Enquanto isso,
técnicos(as) conversam sobre o que escutam, em sessões com ou sem os sujeitos que
narraram, conforme a disponibilidade. Há produção de saberes técnicos e de uma
obra artística. Depois os três grupos partilham suas experiências em um encontro
presencial, no qual cada um fala de sua experiência, do que aprendeu, e as obras
artísticas são oferecidas aos sujeitos que fizeram a narrativa, que as levam consigo.
Não há hierarquia, mas troca de saberes, respeitados e guardados seus distin-
tos estatutos. Não há um olhar que tudo vê, menos a si mesmo, como se ele fosse o
dono da verdade. Não há roubo de ideias ou apropriação indébita da experiência,
seja pela ciência, pela clínica ou pela arte. Cada saber pluriversaliza e enriquece a
leitura prismática do problema em questão. O trabalho mobiliza o pensamento, o
corpo e os afetos de cada sujeito envolvido. Não voltamos a ser os mesmos depois
Lembretes dessa travessia. E é essa mudança que é viva e interessante no método!
Para o trabalho com A memória é o lugar desde onde um saber pode ser construído. As narrativas
narrativas, a memória deve mobilizam o que está fixado no discurso dos sujeitos, adoecendo-os ou alienando-
ser evocada.
-os. Essas fixões explicitam os caminhos que o corpo criou como mal-estar, eno-
dando corpo, território e história em ficções. O psicanalista francês Jacques Lacan

46
percebeu essa diferença, dizendo que as ficções mostram onde o sujeito está fixado
em seu sofrimento. As ficções através das quais o sujeito narra sua história esboçam
os enodamentos do que pulsa no corpo, na memória e na fala, abrindo possibilida-
des de enfrentamento do mal-estar. Aliam também as dimensões inconscientes,
traumáticas e políticas, que circunscrevem o discurso. O sujeito desliza através da
palavra escrevendo sua própria história, em uma dimensão que comporta o outro,
a singularidade, suas ficções e suas fixações. Aprendemos isso juntas: Andréa Guer-
ra, Jacqueline Moreira Oliveira e Nádia Laguárdia Lima.
Lembretes
Sobre os três tempos, destacamos, em cada um, seus aspectos centrais. No nar-
Fala-se aqui do primeiro
rar, nos moldes da escuta clínica “ denominada pelo pai da psicanálise, Sigmund tempo: Narrar.
Freud, de escuta flutuante –, o sujeito fala livremente sem um roteiro prévio. Essa
associação livre revela aspectos da repetição ou do trauma psíquico que atravessam
as trajetórias de vida. Mesmo sendo singulares, são índices de situações que se re-
petem no cenário da violência em países herdeiros da colonização. Do lado do(a)
interventor(a), lembramos que ele encarna, simbolicamente, pessoas do circuito
dos afetos do sujeito narrador, sendo um reencontro deste com seus impasses. Por
isso, é importante estarmos atentos(as) aos sentimentos despertados e endereçá-los
à rede, caso percebamos uma demanda de o sujeito continuar a falar. Podemos,
nós mesmos(as) voltar a conversar com o(a) narrador(a) também. Gravamos em
áudio essa conversa, com autorização prévia do sujeito narrador que quis fazê-lo.
A dimensão do criar refere-se tanto à obra estética quanto ao saber técni- Fala-se em um segundo
co produzido. Enquanto o(a) artista realiza seu trabalho, os(as) técnicos(as) se tempo: Criar.
reúnem em sessões para discutir sobre o que foi narrado. Quanto à obra de arte,
podemos dizer que é capaz de oferecer deslocamento subjetivo e simbólico ao
apresentar esteticamente outro modo e meio de o sujeito se apresentar. O sujeito
se vê de outra maneira através da obra. Diz uma psicanalista brasileira, Tânia
Rivera, que a arte incita a subversão do sujeito sempre a se refazer, os revira-
mentos imaginários, os arranjos e desarranjos simbólicos que deixam entrever a
dimensão real.
Quanto ao compartilhar, momento de maior transformação, ele acontece
Fala-se no terceiro tempo:
em um encontro coletivo, num espaço público. Implica que cada um(a) tome Compartilhar.
sua parte na partilha do sensível. Jacques Rancière, pensador francês, resume
bem esse momento dizendo que as práticas artísticas são “maneiras de fazer”

47
que intervêm na distribuição geral e hierárquica do fazer e nas suas relações com
maneiras de ser e com formas de visibilidade.
Para concluir, o método funciona como uma criativa anamnese, favorece
o laço com o(a) técnico(a) das políticas públicas, desloca hegemonias, mobiliza
a rede local, muda a topologia da relação do especialista-sujeito, toma o sujeito
como especialista de si mesmo. Ele também pode ser um modo novo de pensar
a porta de entrada, de apurar problemas incidentes no público-alvo ou de dar
início a um grupo temático de intervenção. Deve sempre ser um convite, não
uma exigência; deve interferir o mínimo na fala do sujeito, observar os afetos
mobilizados na narrativa e proporcionar a oportunidade para que o sujeito possa
voltar quando quiser ao serviço; por fim, devolver, com a surpresa de uma obra,
o saber que foi oferecido no primeiro encontro.
Troca que transforma! Vale a experiência!

SOBRE OS ORGANIZADORES
KARLA PATRICIA HOLANDA MARTINS RICARDO PINHEIRO MAIA JUNIOR
Professora Associada do Departamento de Psicologia da Psicanalista, graduado em Psicologia e mestre em
Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Psicologia Psicologia pela Universidade de Fortaleza. Membro do
Clínica pela PUC-RJ e Doutora em Teoria Psicanalítica GT “Psicanálise em Rede: teorias e práticas acadêmicas
pela UFRJ, Pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da e profissionais” da ANPEPP. Membro-associado à CLIO
USP. Bolsista de Produtividade do CNPq. Coordenadora - Associação de Psicanálise. Atualmente, doutorando
do Programa de extensão Clínica, Estética e Política em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará e
do Cuidado da UFC (CEPC). Coordenadora da Pesquisa extensionista do Programa de Extensão “Clínica, Estética
para o SUS, financiada pela FUNCAP/CNPq, sob o título: e Política do Cuidado” (CEPC) vinculado à Universidade
“Cartografia das práticas de cuidado em saúde mental Federal do Ceará (UFC). ricardopmaia@gmail.com
infanto-juvenil no Ceará”, que tem esta cartilha como
um dos seus produtos. kphm@uol.com.br VLÁDIA JAMILE DOS SANTOS JUCÁ
Psicóloga pela Universidade Federal do Ceará, mestre em
CARLA RENATA BRAGA DE SOUZA Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade
Psicanalista, graduada em Psicologia (UEPB), Doutora e Mestre Federal da Bahia com doutorado em saúde coletiva pela
em Psicologia (UNIFOR), Pós-doutoranda no Departamento mesma instituição. Realizou estágio pós-doutoral na
de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente, é
extensionista do Programa de Extensão “Clínica, Estética e professora associada do Departamento de Psicologia da
Política do Cuidado” (CEPC) vinculado à Universidade Federal Universidade Realizou estágio pós-doutoral na Universidade
do Ceará (UFC). carlarenatabs@gmail.com Federal de Minas Gerais. vladiajuca@gmail.com

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E ssa cartilha é destinada aos profissionais da
saúde pública e coletiva, da assistência social e
da educação que se propõem ao desenvolvimento
de práticas em saúde mental com crianças,
adolescentes e seus pais. Apresentamos propostas
de experiências com trabalhos em grupo realizadas
com esse público em diversas realidades -
instituições de saúde, escolas e dispositivos de
assistência social. As sugestões contidas nessa
publicação tem por objetivo dialogar com você,
profissional da saúde pública e coletiva, a respeito
do que temos feito, abrindo espaços para que
surjam novos fazeres e saberes.
O conjunto desses trabalhos foram reunidos durante
a execução da pesquisa Cartografia das Práticas de
apoio Cuidados em Saúde Mental Infantojuvenil no Ceará,
fomentada pelo Programa Pesquisa para o SUS: gestão
compartilhada em Saúde (PPSUS) – Ce-Funcap-Sesa-
Decit/SCTIE/MS-CNPq, entre 2021-2023.

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