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MoSeIRo d
STA CRVZ
d CoIMBRA
O MOSTEIRO DE SANTA CRUZ
DE COIMBRA
MARIA DE LURDES CRAVEIRO
MoSeIRo d
STA CRVZ
d CoIMBRA
2
060
ESPAÇOS FÍSICOS E SIMBÓLICOS
061
A LINHA DAS FACHADAS
A IGREJA DO MOSTEIRO
A IGREJA PAROQUIAL DE
1
SANTA CRUZ (CAFÉ SANTA CRUZ)
TÍTULO A CÂMARA MUNICIPAL DE COIMBRA
O MOSTEIRO DE SANTA CRUZ
DE COIMBRA 087
A IGREJA
AUTOR A CAPELA-MOR
MARIA DE LURDES CRAVEIRO AS CAPELAS LATERAIS
Em 1185, o rei Afonso Henriques (e depois o Um livro constitui o resultado de uma in-
seu filho Sancho I) escolhia o mosteiro crú- vestigação, mas o objecto estudado não se
zio para sua eterna morada, estando, desde esgota no “aprisionamento” da leitura di-
logo, lançado um desafio de responsabili- vulgada. Por essa razão, o mosteiro de
dade na protecção do régio sepulcro, tal Santa Cruz continuará a desafiar as inter-
como se garantia um protagonismo assegu- pretações extraídas de todos os potenciais
rado pela salvaguarda de uma matéria de envolvidos e de uma mística muito própria
tão fortes implicações políticas e espirituais. e sempre presente. O esforço da Direcção
A riqueza do mosteiro, construída a partir dos Regional de Cultura do Centro na publica-
muitos apoios que os crúzios souberam ad- ção desta monografia traduz o investi-
ministrar ao longo do tempo, não se circuns- mento possível na verificação dos níveis
creve à tutela dos corpos dos dois primeiros categorizados do edifício, tal como res-
reis de Portugal, cujos efeitos propagandís- ponde à necessidade de captação organi-
ticos não deixaram nunca de ser explorados. zada do conhecimento, para que este possa
Decorre, sobretudo, de um percurso feito de cumprir a sua missão vocacionada para o
inteligência na gestão de um património ma- respeito e salvaguarda deste património.
1 O PODER DA FÉ.
A CONSTRUÇÃO
DE UM PERCURSO
A FUNDAÇÃO
A
primeira pedra do mosteiro de Até ao século XVII, as informações sobre a Nicolau de Santa
Santa Cruz foi lançada a 28 de Junho vida do mosteiro serão, principalmente, ex- Maria, Chronica da
Ordem dos Cónegos
de 1131, com a protecção do futuro traídas dos relatos dos cronistas, com par- Regrantes do
rei Afonso Henriques. Pela mão do arce- ticular relevo para o testemunho de Patriarcha
diago D. Telo, o seu principal impulsiona- Nicolau de Santa Maria. S. Agostinho
Lisboa, na officina
dor, a nova comunidade religiosa adoptava de Ioam da Costa,
então a regra de Santo Agostinho, com A definição dos espaços fundados em 1131 1668: BGUC,
base no exemplo do mosteiro de S. Rufo no sítio dos Banhos Régios e que incluiu JF-39-5-6
em Avinhão e no texto de Hugo de S. Victor, também o horto comprado para o efeito à
o Expositio in Regulam, que haveria de se diocese em 1129 permanece rodeada de in-
constituir em modelo orientador da con- certezas. À indicação da preexistência de
duta canonical. A Vita Tellonis, integrada um templo da invocação de Santa Cruz
no Livro Santo da Sé conimbricense, equi- deve sobrepor-se o carácter ideológico da
para a missão do arcediago, acompa- invocação do mosteiro sediado em terreno
nhado por uma “falange de homens de da Judiaria Velha, no contexto da projecção
primeiro plano em número igual ao dos citadina perante os avanços da Reconquista
doze Apóstolos”, ao desempenho de Cristo e da rivalidade expressa entre a Mitra e o
na evangelização do mundo e no lança- recém-fundado mosteiro. Em momento
mento de primeiras pedras com profundo decisivo para a consolidação das estrutu-
carácter iniciático, ao mesmo tempo que, ras políticas, administrativas e clericais
sintomaticamente, o inscreve no capítulo (cujo protagonista haveria de ser, logo a
dos “arquitectos” da cristandade. S. Teo- partir de 1128, D. Afonso Henriques) e
tónio, um dos fundadores, seria, entre 1132 numa altura em que o clero se entregava
e 1152, o primeiro prior da comunidade. às disputas suscitadas pela obediência
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dotada com as duas fontes construídas na atenção crescente ao espaço e às formas
transição dos séculos XIV-XV: a fonte de arquitectónicas que reflectem a digni-
S. João Baptista, em frente do mosteiro fe- dade dos conteúdos materiais e espirituais
minino de S. João de Santa Cruz (ou das expostos.
Donas), e a fonte de Sansão em frente da
igreja do mosteiro de Santa Cruz. Em rigor, a distribuição dos espaços cons-
truídos no século XII apresenta-se hoje de
Referências contemporâneas da fundação difícil reconstituição. Com segurança, a
do mosteiro indicam a presença de depen- igreja e o claustro edificaram-se com a
dências hospitalares, com uma pequena mesma localização que hoje ocupam.
capela dedicada a S. Nicolau e com cemi- Sobre as áreas ligadas ao lazer, à meditação
tério anexo, a norte da mole conventual, contemplativa ou às zonas de obrigatória
devidamente separado das outras áreas construção como os dormitórios, o refeitó-
do mosteiro mas com acesso facilitado. rio, a cozinha, os celeiros (onde se acumu-
Os investimentos patrimoniais necessá- lava o produto das numerosas rendas do
rios à manutenção do hospital, tal como o mosteiro) ou o anexo convento das Donas é
apetrechamento dos livros ligados à medi- mais legítimo fazer-se, a partir das referên-
cina ou a respectiva adequação dos mes- cias dispersas existentes, um esboço aproxi-
tres credenciados na escola do mosteiro mado da sua implantação. E se bem que os
constituíam a garantia de uma aliança de espaços definidos no século XII não te-
excelência à comunidade. Também pela via nham sofrido modificações de grande
da assistência hospitalar, os crúzios enri- monta permanecendo, no essencial, até às
queciam a engrenagem interna da rituali- grandes reformas do período manuelino e
zação ao mesmo tempo que ganhavam as as indicações literárias mencionem a gene-
Túmulo de progressiva ao estipulado pela reforma gre- papal da independência nacional (1179). duras batalhas da implantação e da credi- ralidade das construções efectuadas, a ver-
D. Miguel Salomão goriana, com o infante a apoiar a nomeação De uma habilidade diplomática exemplar, bilidade. dade é também que estas se revestem
sécs. XII-XIII,
claustro do mosteiro do bispo D. Bernardo (1128-1146) para a dio- os crúzios garantiam, assim, a protecção muitas vezes de um carácter vago, acrescido
de Santa Cruz cese coimbrã, o mosteiro desenvolveu a sua do papa e colocavam-se também sob a Em todas as frentes são claras as preocupa- ao facto de que, ao longo dos tempos,
força no equilíbrio das tensões políticas e re- guarda régia. ções com a montagem de uma estrutura foram mudando as designações atribuídas
Torre dos sinos
do mosteiro ligiosas, acolhendo-se à protecção das mais material coerente com os propósitos ini- a esses espaços, o que acentua a possibili-
de Santa Cruz altas instâncias do poder. As doações e compras de terrenos levaram ciais, voltados quer para o recolhimento e dade dos equívocos em termos da icono-
sécs. XII-XVIII, à instalação da comunidade nos edifícios exegese dos textos bíblicos (espelhados na grafia das plantas.
IC, AG-0178
No contexto da rivalidade com a Sé, os crú- rodeados pela cerca que se foi posterior- intensa e refinada actividade desenvolvida
zios ganhavam a contenda da independên- mente dilatando em extensão. O Largo de a partir do scriptorium que levaria à cons-
cia face ao bispo, obtendo o privilégio de Sansão ficaria fora da muralha crúzia, cujos tituição de impressionante unidade de A igreja, sagrada a 7 de Janeiro de 1228, é,
Isento, dado por Inocêncio II por bula de 26 limites a poente deveriam coincidir com a saber e conhecimento), quer para a articu- desde logo, o maior exemplo dessa situa-
de Maio de 1135, que colocava o mosteiro fachada da igreja e projectar-se no seu ali- lação ao mundo exterior, antecipando as ção. As capelas laterais à nave organizam-se
sob a protecção directa do papado. Os con- nhamento. A poderosa torre (redefinida no práticas mendicantes desenvolvidas depois tal como foram definidas na primitiva
flitos nesta matéria arrastar-se-iam durante século XVIII e demolida no século XX) que a por dominicanos e franciscanos. Paralela- construção com três capelas por lado.
anos e haveriam de serenar apenas em partir do século XVI serviu de torre sineira, mente, uma acção concertada entre as di- Da parte do Evangelho construíram-se
Março de 1162, pela chamada Carta de Li- integrar-se-ia na cerca primitiva e seria ro- versas faixas sociais e culturais escudava-se as capelas românicas sob a invocação de
berdade concedida ao mosteiro pelo bispo deada de um conjunto de casas (do século numa política de angariação de fundos patri- S. Pedro, S. Vicente e Santo Antão e do
D. Miguel Pais Salomão, cujo túmulo se lo- XIII) destinado à morada dos priores-mores moniais que haveria de fazer a imensa ri- lado da Epístola as correspondentes de
caliza no claustro, logo abaixo da lápide de e depois adaptado para celeiro. O Largo, queza do mosteiro e transformá-lo no S. Miguel, Santo André e S. Tiago. A capela
sagração da primitiva igreja. A autonomia pólo importante de uma sociabilidade cons- interlocutor de respeito entre as várias ins- de S. Pedro deu lugar à capela de Nossa
face à tutela diocesana seria reconhecida por truída fora da protecção da muralha da ci- tâncias de poder ao longo de toda a Idade Senhora da Graça, designação pela qual já
Alexandre III logo no ano seguinte, quase dade e dominado pelo mosteiro, foi sendo Média. A arquitectura e a definição de era conhecida no século XVI, e é actual-
duas décadas antes do reconhecimento aumentado numa estrutura regularizada e novas espacialidades denunciam uma mente a capela do Senhor dos Passos.
O
Busto-relicário mosteiro de Santa Cruz nasceu num A vitalidade do mosteiro de Santa Cruz, capaz A construção de uma imagem de poder re- as potencialidades que decorrem da estadia Santo António
de S. Teotónio tempo de intensa renovação espiri- de interferir nos desígnios camarários e es- flecte-se também no permanente cuidado em Santa Cruz de figuras proeminentes no madeira estofada e
prata e bronze, policromada,
1624, mosteiro de tual que orientava expressamente tabelecer um planeamento urbanístico no com que os crúzios encararam a exposição campo do religioso, como S. Teotónio ou séc. XVI, mosteiro
Santa Cruz a vida dos cónegos para a oração, para a lei- território da sua proximidade, encontra-se das relíquias. Ponto de passagem recorrente Santo António, são alicerçadas pela presença de Santa Cruz
tura dos textos sagrados e para a ajuda assis- evidente em várias fontes. O relato de D. José para os peregrinos vindos do sul que deman- no mosteiro de símbolos maiores da luta
Bustos-relicários dos
tencial aos pobres. Ao mesmo tempo, a de Cristo, remetido para o ano de 1359, de- davam, sobretudo desde o século XII, a ex- contra o pecado e o universo do mal. Mártires de Marrocos
acumulação de poder e riqueza ao longo de nuncia a agitação civil que, ao longo da piação dos seus pecados e a salvação à vista prata, 1510, mosteiro
toda a Idade Média inscreveu o mosteiro num Idade Média, preenchia a vida do Largo de do túmulo do Apóstolo Santiago, Coimbra, As relíquias dos mártires de Marrocos, pode- de Santa Cruz
clima cerrado de concorrência e constantes Sansão e coabitava de paredes-meias com e particularmente o mosteiro de Santa Cruz, roso instrumento na conquista da espirituali-
disputas com outras instituições religiosas. o mosteiro: “A redor do Adro de S. Cruz avia ofereciam as condições propícias à paragem dade, são, assim, alvo dessas preocupações
As polémicas mantidas com Alcobaça e com antiguamente huas cazas as quais estavão retemperadora das agruras do caminho, no expositivas que passam pela promoção da
o núcleo cisterciense que ia consolidando fundadas sobre colunas entre as colunas es- descanso e na ajuda assistencial que integra- sua acessibilidade aos fiéis e pela dignifica-
prestígio e riqueza material ou com o mos- tavão huas portas, onde se vendia a ortalisse, vam os propósitos da comunidade crúzia. ção do espaço envolvente. O túmulo trecen-
teiro de Santa Clara em Coimbra, cuja funda- e fructas dos caseiros de S. Cruz junto destes Ao mesmo tempo, era oferecido aos fiéis tista dos mártires franciscanos em pedra de
ção por D. Mor Dias levava consigo os bens esteos estavão huns asentos onde as molhe- um reportório espiritual que preparava a re- Ançã, colocado na capela-mor do lado do
patrimoniais das Donas dissidentes de Santa res partião os sestos. e entre estes poais e o denção, intensificava o fervor religioso e ali- Evangelho, seria secundarizado pela mu-
Cruz, são apenas alguns dos ingredientes que adro hia a rua publica e querendo a Cidade mentava também a piedade dos cónegos. dança das relíquias para nova arca de prata
pautaram então a vida agitada do mosteiro. fazer por esta Rua hua calsada pretendia As relíquias e a sua visibilidade criteriosa de- esculpida e colocada na capela do lado di-
Os conflitos particularmente acesos com a Sé tirar estes poiais e esteios pera que tudo sempenharam papel fundamentalíssimo reito da igreja, mandada construir pelo 21º
de Coimbra mantiveram os cónegos regrantes fosse Rua Mas o prior D. Afonso (D. Afonso neste processo de enaltecimento do mos- prior de Santa Cruz, D. Gomes Eanes, e aca-
de Santo Agostinho numa atitude constante Pires, 1349-1377) resestio e pos demanda a teiro, progressivamente erigido em espaço bada em Janeiro de 1458. O magnífico abade
de desafio, escudada na directa sujeição do Cidade, e pagou a Cidade as custas. foi isto emblemático do ritual de passagem na pere- da Badia de Florença, falecido em 1459 e se-
mosteiro a Roma e no seu estatuto de Isento em tempo delrei D. Pedro” (B.P.M.P.: D. José grinação dos crentes em direcção à morte e pultado em campa rasa junto do altar de
face aos direitos reconhecidos do bispo. de Cristo, Miscelaneo, fl. 20). à possibilidade da salvação. Neste sentido, Santo André que acolhia então as relíquias,
É
Cristo Negro destacava-se também em Coimbra pela Um dos grandes aliados neste processo de no reinado de D. Manuel (1495-1521) da motivação emocional do rei D. Manuel,
madeira policromada, visão moderna da unificação do espaço e engrandecimento, do momento fundacio- que se desencadeia a revitalização dos perplexo com a simplicidade dos conjuntos
séc. XIV, MNMC,
Inv. nº 10891; E295 pela aposta na actualização denunciada no nal do mosteiro até aos primeiros anos do espaços do mosteiro, interpretando tumulares dos primeiros reis. O que estava
gótico flamejante, herdado do mosteiro da século XVI, acabou por ser o primeiro rei uma vocação expressa pela cultura de um já então por detrás da decisão régia e que,
Batalha, que identifica o arco da capela que Afonso Henriques. A cuidadosa gestão de tempo que reivindica novos comportamen- certamente, o humanista não desconhecia,
ainda se mantém. uma ideia de protecção eterna e incondi- tos políticos e institucionais provenientes era a aposta num programa construtivo de
cional do rei, cujos restos mortais se guar- das exigências modernas. Os mosteiros da forte incidência política e ideológica de que
Ao longo da designada Idade Média, os davam no mosteiro, colocou os crúzios em Batalha e dos Jerónimos funcionam como o mosteiro de Santa Cruz, pela presença do
crúzios construíram um património consi- situação de privilégio no esgrimir das vá- uma espécie de contraponto a uma prática fundador da Nação, não podia ficar arre-
derável e alicerçado não apenas numa ri- rias contendas e desencadeou um volume ideológica centrada no enaltecimento da dado. A ocasião haveria de surgir com a
queza fundiária que se estendia do Alentejo considerável de textos tendentes à canoni- dinastia de Avis e serviriam, mais do que morte do prior D. João de Noronha em
ao rio Douro mas também, e sobretudo, zação régia. Os potenciais decorrentes da inspiração e modelo, de elementos estru- 1506, altura em que Roma aproveitou para
numa capacidade de intervenção política e construção da imagem mítica do rei seriam turadores da coerência discursiva imposta tentar controlar as cobiçadas rendas do
religiosa, naturalmente acompanhada por então aproveitados por D. Manuel para a no período manuelino. priorado-mor. A pretensão de Júlio II de en-
um espólio sempre crescente no interior exposição de um outro percurso imperial e tregar o priorado de Santa Cruz em co-
do mosteiro. A quase totalidade das peças igualmente consolidado pelos desígnios Até à definitiva implantação da Universi- menda a Galiotto Franciotto Della Rovere,
do período medieval encontram-se hoje ou do divino. dade (1537), gerando novas prioridades seu sobrinho, foi a mola de arranque para
em circuitos museológicos ou em bibliote- construtivas no âmbito citadino, o mosteiro uma apertada vigilância régia sobre a ri-
cas e arquivos nacionais. Os níveis expres- de Santa Cruz constituiu-se em formidável queza do mosteiro e o momento crucial
sivos de uma qualidade artística operativa estaleiro de arquitectura onde o velho edi- para implementar os mecanismos da re-
no interior da Casa detectam-se, por exem- fício românico se transfigurava, ganhando forma. Alegado em Roma o estado de ruína
plo, no Cristo Negro, peça escultórica de nova dimensão espacial e simbólica. As ra- da Casa e a necessidade de empregar nas
superior categoria onde a plasticidade da zões aludidas por Damião de Góis para a obras os capitais provenientes das rendas,
execução é verdadeiramente tocante. reforma situam-se (ingenuamente?) ao nível o Papa renunciou à sua pretensão.
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Abóbada da igreja O contrato, celebrado a 24 de Janeiro de 1513, e um vasto património fundiário a adminis- reis no cruzeiro da igreja. Morria, entretanto, dos arcos triunfais e o grau de actualização Galeria sul do
do mosteiro de entre o bispo e mestre Boytac revela a exten- trar), o arquitecto depressa abandonou Coim- Marcos Pires. A direcção estética que já se das formas e dos temas transformam o es- claustro do Silêncio
Santa Cruz Marcos Pires,
mestre Boytac,1507- são da reforma, iniciada anteriormente, que bra. Em Santa Cruz, à frente das obras ficava adivinhava nos túmulos dos reis e se decla- paço do sepulcro em alegoria de eternidade e c. 1520, mosteiro de
1513 abrangia toda a igreja e passava ainda pelas Marcos Pires, nomeado também mestre das rava impetuosamente no púlpito (1521), con- redenção cuja proposta não podia andar afas- Santa Cruz
mais importantes dependências monásticas. obras reais na cidade em 1517. Em Janeiro denava também à morte a fogosidade do tada dos círculos directos do rei D. Manuel
Nicho de
Com a capela-mor já aumentada e com o de 1518, andava sobretudo ocupado com as manuelino e abria caminho a outras inter- e do seu arquitecto régio João de Castilho. Santo Agostinho
magnífico cadeiral do escultor flamengo obras do claustro do Silêncio e era o respon- pretações mais serenas e com diferentes A Diogo de Castilho, Nicolau Chanterene e a púlpito da igreja do
Machim incorporado, tratava-se agora de re- sável pelo trabalho de “cinqoenta oficiaes e preocupações de cunho humanista. toda uma equipe credenciada caberia a ma- mosteiro de Santa
Cruz, Nicolau
definir o corpo da igreja até à nova fachada xx criados” (Viterbo, 1914, p. 26). terialização do projecto. Chanterene, 1521
(mais elevada do que a fachada românica), Da globalidade da reforma, um dos temas
desmantelando a abóbada e o nártex, Entre 1518 e 1522 as obras não pararam no mais “celebrados” continua a ser o sepul- A obra “retabular” da fachada da igreja,
criando outra espacialidade na sacristia li- mosteiro. Acabou-se o claustro; fez-se uma cro régio, remetido mais tarde para a ca- embora montada e acabada entre 1522 e
gada à capela-mor e dando outra amplitude capela dedicada a S. Teotónio e a capela de pela-mor. Verdadeiro remate de um política 1525, já em reinado de D. João III, obedecia,
ao pequeno mosteiro das Donas, situado a S. Miguel, acima das quais se colocaram o ideológica de vocação imperialista e provi- na realidade, a um plano anterior também
norte da igreja crúzia. cartório e a livraria; reformulou-se o refeitó- dencialista, os novos túmulos dos reis, e da presumível autoria de João de Castilho.
rio na ala nascente do claustro com a fonte particularmente a sepultura de Afonso A conjugação de uma estratégia que en-
É o arquitecto régio mestre Boytac que as- de Paio Guterres; refez-se o dormitório; Henriques, davam ao rei D. Manuel a legiti- globa o portal e os túmulos passa pela for-
sume a campanha reformista. Rapidamente guarneceram-se a igreja e as torres de guir- mação de uma cadeia governativa fundada tíssima imagem da supremacia do mosteiro
chamado à urgência da construção da defesa landas; fizeram-se retábulos (com a colabo- no momento mítico, de contornos iniciá- como núcleo capaz de um domínio tempo-
dos interesses do reino em África, com res- ração de João Alemão) e o púlpito (de ticos e celebrativos, das origens do reino. ral e espiritual sobre a comunidade envol-
ponsabilidades em diversos edifícios como Nicolau Chanterene) que permaneceu até O Fundador justificava, assim, uma outra vente, ao mesmo tempo que explicita a
o convento da Pena em Sintra ou o mosteiro hoje inacabado; proveu-se o mosteiro de al- fundação, a de um Império sustentado tam- vontade régia num percurso que reivindica a
dos Jerónimos e com ligações pouco explíci- faias litúrgicas, colocou-se a grade na igreja bém por Deus. O programa iconográfico ex- tutela do processo em exposição marcada
tas às obras na Batalha (onde tinha residência (de António Fernandes) e enterraram-se os posto nos túmulos, a definição compositiva de actualidade e erudição compositivas.
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A CULTURA DO
RENASCIMENTO
S
Ecce Homo e o Renascimento deve ser entendido continuidade à política de D. Manuel man-
Cristóvão de como cultura abrangente onde se cru- tendo apertada vigilância sobre o processo
Figueiredo, óleo
sobre madeira de zam as vontades públicas e privadas interno de reforma que iria conduzir à im-
carvalho, 1522-1530, na captação de um ideal que conjuga com- plementação de uma estratégia mais lata
mosteiro de portamento e saber, que gere “antigo” e de poder, em estreita concordância com o
Santa Cruz
“moderno”, que concilia o protagonismo fortalecimento dos valores do Estado Mo-
Imperador Heráclio laico com interesses religiosos, que es- derno. Acabados os projectos manuelinos,
com a Santa Cruz grime o poder (político, económico, reli- é o espírito reformista que domina toda
Cristóvão de
Figueiredo, gioso ou cultural) na conquista de um uma actuação com directas implicações
óleo sobre madeira patamar de exclusividade e distância, a sobre a vida no mosteiro.
de carvalho, “bandeira” renascentista não surge no mos-
1522-1530, MNMC,
Inv. nº 2512; P24 teiro de Santa Cruz apenas no século XVI. Logo em 1522, rematavam-se as obras da
Ao longo de toda a Idade Média o mosteiro capela-mor com a construção do impressio-
preparou e desenvolveu os mecanismos de nante retábulo pintado que hoje se encon-
suporte a uma cultura humanista de exce- tra disperso entre o mosteiro e os museus
lência, ao mesmo tempo que a dinamiza- nacionais de Machado de Castro e de Arte
ção das escolas medievais, apoiada então Antiga. Cristóvão de Figueiredo (o pintor
em fortíssima estrutura financeira, criou os do cardeal-infante D. Afonso desde 1531)
potenciais de conhecimento que estimula- assumia então a responsabilidade da em-
ram o sucesso das estratégias avançadas preitada enquanto João Alemão se encarre-
nas realizações do século XVI. gava das obras de marcenaria. Permanece
ainda na igreja de Antuzede (Baixo Mon-
Numa aliança forjada entre o mosteiro e a dego) o grupo escultórico de Cristo de-
vontade régia, o reinado de D. João III deu posto da Cruz, acompanhado de várias
E
Casa da quinta Até 1543 coube ao mosteiro de Santa Cruz efectiva de terrenos e quintas localizados so- m 1545 era criada a diocese de Leira, pal André de Gouveia (chamado pelo rei do Colégio das Artes
do Marujal escrever uma das páginas mais brilhantes bretudo na área do Baixo Mondego. A título anexando a jurisdição e rendas que o colégio de Guyenne em Bordéus) e juntou Diogo de Castilho,
Diogo de Castilho (?), 1548, Coimbra
séc. XVI, desenho a do país no capítulo da construção erudita de exemplo, refira-se apenas a quinta do priorado de Santa Cruz tinha na cidade um escol de professores distintos na credi-
tinta da china, José dos espaços. Uma conjugação de eficácia, Marujal (Montemor-o-Velho) com casa e ca- e seu termo. Para aí transitava então frei bilização dos círculos europeus. Para aqui
Luís Madeira, 1995 na administração dos recursos culturais e fi- pela (datada de 1541) e onde se reconstitui Brás de Barros, deixando para sempre o pe- fabricou Diogo de Castilho, possivelmente
nanceiros acumulados ao longo da Idade um espaço de matriz cultural humanista noso governo dos crúzios e assumindo-se, com a colaboração de João de Ruão, o arro-
Média, estabelecida pela vontade politica de que teve, certamente, a intervenção de até 1556, como o primeiro bispo da nova jado programa construtivo que implicava
mudança, com a força de uma acção gover- Diogo de Castilho. A quinta foi incorporada diocese. um modelo regularizado com pátios e va-
nativa esclarecida e mão-de-obra qualificada, no padroado da Universidade a 10 de Junho randas sobrepostas e onde se aplicava,
elevaram o mosteiro à mais alta categoria de 1546. Em Coimbra, o reformado mosteiro de pela primeira vez com tal clarificação na ar-
no domínio da cultura e das artes do Renas- Santa Cruz passaria a gerir a alegada maior quitectura da cidade, a ordem jónica, con-
cimento. O rei desistia da nomeação dos priores precariedade dos meios financeiros, a agi- siderada adequada ao estudo e à
(num longo percurso de controle e autori- tação interna e a conflitualidade desenca- concentração. A insólita posição das volu-
A extinção do priorado-mor e a canalização dade balizada entre 1507 e 1543) que volta- deada contra as instituições e as forças tas dos capitéis (alvo de grandes interroga-
de grande parte do seu património, com as riam a ser eleitos em Capítulo. Em Coimbra, culturais politicamente actuantes na cidade. ções historiográficas), com uma rotação de
respectivas rendas, para a Universidade e e até ao final do século, a régia dedicação vai, Num jogo desgastante de poder e influên- 90º face à canónica definição clássica,
para as novas dioceses de Leiria e Miranda por inteiro, ao encontro da instituição univer- cia, as querelas mantidas com a Universi- mais não faz do que reproduzir os dese-
do Douro ditou a instabilidade governativa sitária e das necessidades sentidas com a dade, a Câmara, as Ordens religiosas ou o nhos gravados que circulavam e não falta-
no interior do mosteiro e a crescente falta de instalação dos Estudos, reunidos nos Paços Bispado são realidades constantes ao longo vam também no mosteiro de Santa Cruz.
capacidade e vontade na prossecução de régios a partir de 1544. Esgotava-se então do século. Particularmente agudas foram as A partir daqui, toda a experiência colegial
uma reforma interna, basicamente dada em Santa Cruz o sonho acalentado de tutela disputas contra a Universidade, tendo como quinhentista irá passar pela adopção da
agora por concluída. Os rendimentos prove- e gestão sobre a Universidade. Pouco mais pano de fundo as rendas desviadas, e contra mesma ordem jónica, agora já em “cor-
nientes de inúmeras propriedades foram do que um cargo honorífico, restava ao prior a Companhia de Jesus. recta” definição.
então desviados e o mosteiro perdia a posse a dignidade de Cancelário da Universidade.
N
Livro das Entre 1555 e 1565, o colégio das Artes, en- 1556, os diversos mosteiros sob a regra de os finais do século XVI o mosteiro sobre três degraus é reservado ao Prémio.
Constituicoens e tregue à tutela dos jesuítas, permaneceu Santo Agostinho se uniram em Congrega- de Santa Cruz voltaria a encontrar o Do cenário montado constam ainda uma
costumes que se
guardam em os no mesmo local, enquanto a rua da Sofia ção religiosa. Estabelecida a rotatividade sopro da energia capaz de um novo máquina de doze mastros com estandartes
Moesteyros da fervilhava na construção dos colégios das dos priores, a Congregação passaria a inte- estímulo construtivo. preenchidos com imagens de santos e duas
Congregacam de Ordens religiosas (já desde os inícios da dé- grar (para além do mosteiro crúzio de Coim- escadas orientadas para norte e para
sancta Crurz de
Coimbra... cada de 40), sistematicamente integrados bra) desde o mais significativo mosteiro de A utilização das relíquias, na sequência do oriente. A Fama e o Tempo posicionam-se
Impresso no na Universidade. Em 1565, depois de quei- S. Vicente de Fora (Lisboa) aos mosteiros de labiríntico processo de imposição do poder junto à escada do oriente, a Fortaleza e a
mosteiro de Santa xas sucessivas quanto à insalubridade do es- S. Jorge e S. Pedro de Folques (próximos a conventual ao longo da Idade Média, man- Justiça junto à escada do norte. Momento
Cruz, Coimbra, 1558,
BGUC, R-12-7 paço, os jesuítas rumaram à proximidade Coimbra), S. Salvador de Moreira da Maia, tém-se como ferramenta poderosa no xa- alto do cerimonial é o do recebimento das
com a Universidade (fabricando o complexo S. Salvador de Grijó ou o mosteiro da Serra drez das influências esgrimidas na cidade. relíquias à porta da igreja pelo Anjo Custó-
onde, a partir de 1772, se instalaria a nova do Pilar. Generalizava-se, assim, a assistên- A descrição da vinda de relíquias da Flan- dio da Ordem de Santo Agostinho acompa-
Sé e as dependências afectas à Reforma cia mútua mas também a obrigação da dres, do mosteiro de S. Marcos, e a sua en- nhado pela Fortaleza, a Justiça, o Trabalho,
Pombalina da Universidade), levando con- ajuda financeira (em função dos respectivos trada em Santa Cruz em 1595 (Santa Maria, o Merecimento, o Prémio (com dois anjos)
sigo o colégio das Artes e deixando vago o rendimentos) às obras consideradas, em Nicolau, 1668, P. II, Liv. VII, pp. 75-83) é um e a Virtude. A coroação dos santos precede
espaço junto ao mosteiro para a ocupação reunião capitular, como prioritárias ou rele- exemplo revelador. Os festejos então ocorri- a entrada das relíquias na igreja até à ca-
do Santo Ofício. O mesmo espaço que seria vantes para os mosteiros da Congregação. dos contemplaram uma procissão de grande pela-mor, “onde foraõ collocadas as Santas
disputado pelos crúzios reivindicando, du- aparato, da Sé ao mosteiro, onde não falta- Reliquias em hum alto, & bem laurado
rante anos, uma propriedade que não mais ram os arcos triunfais e o fogo de artifício a throno, que estaua sobre o Altar mòr, & era
lhes seria entregue. acompanhar o tecido social da cidade hie- de tres faces dourado em partes, & todo lau-
rarquicamente distribuído. A abrir a procis- rado de brutesco” (Santa Maria, Nicolau,
Da mesma forma, as rendas do priorado-mor são, a alegoria da Fama com duas trombetas 1668, P. II, Liv, VII, p. 81). Daí, a procissão
canalizadas para a Universidade em 1543 era precedida pelo Tempo, ao qual se se- seguiu então pelos claustros, do Silêncio e
suscitaram uma onda de protestos por parte guiam as bandeiras dos Ofícios da cidade da Manga, onde parou junto à “...fonte, que
O
Antiga enfermaria “hua escadinha de pedra... que va tomar o preserva-se um corredor da antiga enferma- mosteiro de Santa Cruz não ficou curvilíneas que condenaram a iconografia Órgão da igreja
do mosteiro de caracoll que ja estaa feyto e desentulhará e ria crúzia, cuja construção ocorreu entre os indiferente à plástica barroca. Pelo quinhentista e suprimiram o mainel central. do mosteiro de
Santa Cruz Santa Cruz
séc. XVII, Escola acrecentará até çima honde hã de estar os anos 30 e 50 do século XVII. Ainda hoje contrário; a visibilidade adquirida Manuel Gomes
Jaime Cortesão synos” (Garcia, 1923, p. 154). existe o alinhamento definido por um ritmo pelo dinamismo cenográfico de linhas e es- Perdidas as referências sobre a sua autoria Herrera, 1719-1724
cadenciado de abóbadas de berço inter- paços seduziu os crúzios tanto quanto a ge- ou sobre uma datação precisa das obras,
Antiga enfermaria
do mosteiro de Uma campanha efectuada por volta de 1590 rompidas por cinco “unidades” (à maneira neralidade das Ordens religiosas e do país. resta a suspeita de que a escritura, datada
Santa Cruz aumentou a sacristia que sofreria ampla e brunelleschiana) cupuladas (dotadas de lan- No século XVIII era hora de imprimir tam- de 22 de Março de 1755, pela qual o mosteiro
séc. XVII, Escola definitiva remodelação no século XVII (1622- ternim no século XVIII) e onde se verifica bém um sinal de erudição actualizada e de Santa Cruz compra, por 7.200 reis, um
Jaime Cortesão
1624), sob a provável responsabilidade do uma ordenação regulada por intuitos de si- construir, mais uma vez, e marcando uma talhão de pedreira, no sítio da Copeira, limite
arquitecto local Manuel João (+ 1628) em- metria, detectada também nos arcos cen- posição de força e inteligência, dentro e fora de Portunhos, para pedra para as obras do
bora, e com base no testemunho de D. José trais (agora entaipados) da fachada virada à de muros. mosteiro (A.U.C., Livros de Notas de Santa
de Cristo, a atribuição a Pedro Nunes Tinoco rua. Na “capela” que se identifica central- Cruz, T. 43, Liv. 150, fls. 190/v-191/v, 194-197)
se mantenha ainda firme. No entanto, é pos- mente, os elementos presentes e definidos Já avançado o século XVIII, a remodelação possa constituir a alusão em falta para esta
sível que apenas o lavabo lhe deva ser atri- pela abóbada de caixotões reportam ainda a do portal da igreja com a inclusão do óculo empreitada.
buído, enquanto que o “gosto local” uma filiação de recorte clássico que alimen- de molduras sucessivas acima da porta de
(Soromenho, 1995, p. 391) já reconhecido na tou incessantemente a cultura dos crúzios. verga recortada, teria funcionado como a so- Na mesma centúria, as obras a decorrer na
configuração de sabor flamenguizante da lução adequada à época para resolver a igreja passavam também pelo novo órgão
nova sacristia possa ser identificado com as eventual deterioração do portal. Porventura, (1719-1724) executado pelo mestre organeiro
orientações de Manuel João. fruto da reforma efectuada por D. Gaspar da espanhol Manuel Gomes Herrera ou pelo re-
Encarnação (1723-52) (à memória de quem o vestimento azulejar do corpo e da capela-mor,
A vontade de iniciativa que dava corpo à advogado, magistrado e poeta brasileiro em suma, pela exposição do espectáculo
modernização dos vários circuitos não dei- Cláudio Manuel da Costa haveria de dedicar barroco de que os cónegos regrantes de
xou de se manifestar a vários níveis: nos an- o seu Epicédio), a nova entrada do templo Santo Agostinho não quiseram, igualmente,
dares altos da actual Escola Jaime Cortesão optou pela conjugação de linhas rectas e prescindir.
O
Fachada da igreja s efeitos da Revolução Liberal che- Arquivo da Universidade de Coimbra ou na a sua entrada até 1997 e sustentavam a cota Fachada da igreja
do mosteiro de garam também ao mosteiro de Biblioteca Geral da Universidade de Coim- mais elevada da Praça. Em 1940, o receio de do mosteiro de
Santa Cruz Santa Cruz
fotografia, c. 1960, Santa Cruz. Em 1834, a presença bra. Muito do recheio crúzio acabou como bombardeamentos ditava a cobertura do fotografia, 1940,
IC, C-086 das tropas liberais semeou a desordem e a parte integrante das colecções dos museus portal da igreja. IC, A-121
destruição sobre o espaço físico dos crúzios que nasciam, também como fruto da cul-
Queda da torre dos
enquanto se desmoronava o edifício cultu- tura positivista e romântica, ávida da sal- No dia 3 de Janeiro de 1935 rematava-se sinos do mosteiro
ral construído durante séculos. Os longos e vaguarda de uma memória identitária. ainda um capítulo de destruição: ruía a velha de Santa Cruz
perturbantes anos de solidão que se segui- Particularmente, a acção de figuras desta- torre dos sinos (Gonçalves, 1980, pp. 219-225) fotografia, 3-1-1935,
IC, F-070
ram ditaram, não apenas a extinção das cadas na cidade, como António Augusto que durante séculos configurou a paisagem
Ordens religiosas mas igualmente, em Gonçalves, haveria de conduzir parte subs- citadina.
clima de acéfala iconoclastia, a perca e a dis- tancial do espólio crúzio para o que viria a
seminação de uma riqueza patrimonial a ser, em 1911, o Museu de Machado de Cas- Em 1907 o mosteiro de Santa Cruz era ele-
que não se furtou nenhuma Casa religiosa. tro em Coimbra. vado à categoria de Monumento Nacional
Muitos dos espaços do mosteiro foram reivindicando, assim, a protecção e o esta-
sendo sucessivamente ocupados e o espó- Em 1877 era destruído o claustro da Porta- tuto qualificado que, em 2003, levaria a
lio da livraria acabou parcialmente salvo e ria para dar lugar ao edifício da Câmara igreja a assumir, em parceria com a igreja de
dirigido a várias instituições que, entretanto, Municipal. A linha das fachadas era defini- Santa Engrácia de Lisboa, uma outra dis-
se fundavam. Hoje avalia-se a dimensão tivamente alterada, com a igreja do mos- tinção. Pela salvaguarda do sepulcro régio
desse património através (fundamental- teiro a desempenhar as funções de paroquial a igreja transformava-se então no novo
mente) da sua consulta no Arquivo Nacional de Santa Cruz enquanto a sul, na antiga Panteão Nacional.
da Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional, paroquial, nasceria o café que ainda se
na Biblioteca Pública Municipal do Porto mantém. A fachada da igreja centenária de
(graças aos esforços de Alexandre Hercu- Santa Cruz foi então guarnecida com a es-
lano), na Biblioteca Pública de Évora, no trutura das grades (c. 1870) que protegeram
À
data da fundação do mosteiro de Santa O restauro da fachada da igreja, promo- (página seguinte)
Cruz (1131) o recuo do perigo muçul- vido pelo IPPAR e concluído em 1997, deu Linha das fachadas
com a Câmara
mano permitiu uma implantação a actual configuração à Praça. Sob projecto Municipal de
já fora da protecção da muralha. O com- do arquitecto Fernando Távora, o antigo Coimbra, a igreja de
plexo edificado que se formaria a partir daí Largo de Sansão desceu à cota da igreja Santa Cruz e o café
Santa Cruz
projectou também a linha da cerca que coin- (anulada a elevação que a mantinha com
cidia, a poente, com a frente definida pela impressão de soterrada, obrigando a um
fachada da igreja e se desenharia para nas- acesso por escadas protegidas por gradea-
cente num circuito próximo às actuais ruas mento) e colocaram-se as rampas de
Nicolau Rui Fernandes e das Figueirinhas. acesso aos planos laterais mais elevados.
O “lago” fabricado frente à igreja recria a
A linha das fachadas que abrange hoje o antiga fonte de Sansão que se articulava
edifício da Câmara Municipal de Coimbra, com uma outra dedicada a S. João (desac-
a igreja do mosteiro e se prolonga pela fa- tivada com D. Sebastião). Ao mesmo
chada mais recuada do café é o resultado tempo, entre o “lago” e a igreja, as linhas
de um longo caminho feito de muitos mo- marcadas no pavimento sugerem uma li-
mentos construtivos que implicaram outras gação explícita entre a água e o território
tantas abordagens sobre o tempo cultural do sagrado; um compromisso de purifica-
em que decorreram as transformações. ção assumido no espaço que vive ainda,
Desde a implantação do mosteiro medieval pese embora a agitação proveniente dos
sobre o sítio dos banhos régios e marcando vários sectores políticos, económicos ou
fortíssima área de sociabilidade numa estra- sociais e culturais, à sombra do edifício
tégia urbanística que implicava o domínio que, durante séculos, protagonizou os des-
sobre o Largo formado à sua frente, ao mos- tinos traçados no Largo.
060 | 061
uma altura que não excedia o momento em em Coimbra, as balizas cronológicas para a
que os botaréus laterais assumem a forma oc- estrutura em pedra de Ançã do portal têm,
togonal. O contrato celebrado a 24 de Janeiro assim, sido situadas entre 1522 e 1525.
de 1513 entre o mosteiro e mestre Boytac
(Garcia, 1923, pp. 152-159) assinala a ocasião Com as sepulturas dos reis acabadas, Nico-
propícia para a redefinição o corpo da igreja lau Chanterene e Diogo de Castilho, os em-
que implicaria a nova fachada. preiteiros, puderam então dedicar-se ao
trabalho do portal. Com eles transitaria, pelo A surpreendente assinatura que se desco-
A saída de Coimbra do arquitecto régio have- menos, parte dos artistas vindos também bre, em letra cursiva, numa das faces da ar-
ria de promover a ascensão de Marcos Pires, das obras de Belém para a empreitada dos quivolta superior do portal, situada no
entretanto à frente das obras em Santa Cruz túmulos. Neste período, os artistas que se prolongamento marcado pela aduela cen-
e nomeado mestre das obras reais na cidade encontram presentes em Santa Cruz, teste- tral, é a abreviatura de Diogo mas não cor-
A IGREJA DO MOSTEIRO em 1517. A ele caberia o acompanhamento munhando diversos contratos com a desig- responde às que Diogo Pires-o-Moço
da obra em calcário amarelo do Bordalo, in- nação de pedreiros, são: Fernão Martins, colocou nas suas obras. Acompanhando a
cluindo a formação do grande janelão em João Aires, Sebastião Gomes, João Marques, abreviatura encontra-se, em jeito de pico-
calcário de Ançã, o seu remate com as guir- Domingos Pereira, João Português, Fernão tado na pedra, a letra C. O ponteiro que fez
landas superiores e a colocação da iconogra- Pires e João Rodrigues, todos moradores em estas marcas não foi mais além, mas a gra-
fia da cruz. Esta obra estava concluída por Coimbra à excepção de Sebastião Gomes fia do C apresenta-se com a haste superior
1518, faltando a estrutura do portal. que reside no Botão. Destes, apenas relati- alongada, tal como Diogo de Castilho a re-
vamente a João Rodrigues se dá a coincidên- petiu em centenas de documentos em papel
É apenas nos começos do reinado de D. João III, cia da presença de vários homónimos nos e pergaminho. A suspeita de que é em Santa
em 1522, que a fachada volta a ser uma prio- portais dos Jerónimos (Dias, 1993, p. 287). Cruz que se encontra a única assinatura, até
ridade. Nos quatro anos entretanto decorridos Os outros fariam, eventualmente, parte de agora detectada, que o arquitecto colocou
reformulavam-se praticamente todos os espa- uma mão-de-obra local que não deixou de nas obras que dirigiu, é realçada pela simi-
A fachada da igreja do mosteiro tem consti- ços internos; guarneceram-se a igreja e as tor- ser aproveitada nesta campanha. litude da sua grafia aposta noutro tipo de Assinatura de
tuído permanente desafio de interpretação. res de guirlandas e acabaram-se os túmulos. materiais mas também pela localização Diogo de Castilho
c. 1525, portal da
Não obstante todos os contributos historio- A urgência ia agora para o portal, a fazer, “na Diogo Pires-o-Moço, herdeiro da oficina de centrada em que se encontra. Eventual- igreja de Santa Cruz
gráficos, as sucessivas alterações que aqui ordenança em que estava projectado” (Viterbo, seu pai ou de seu tio, Diogo Pires-o-Velho, e mente, não a colocou em local visível por-
se verificaram continuam sem uma resposta 1914, p. 42). Os oficiais, libertos dos outros que se encontra também registado em que esse efeito não faria parte do projecto
decisiva que permita o estabelecimento de espaços concluídos, puderam então concen- Santa Cruz até 1531, é um dos casos ainda pré-estabelecido.
cronologias rigorosas ou o reconhecimento trar-se na fachada que teria, por esta altura, não totalmente esclarecido. A guirlanda da
exaustivo da mão-de-obra envolvida. definido o grande janelão e uma porta de igreja de Santa Cruz e os dois anjos heráldi- Insólita a intenção deliberada de fixar uma
entrada de organização incerta. A estrutura cos laterais, que lhe são atribuíveis, fazem assinatura que nunca poderia ser vista, mas
A fachada da igreja mantém uma estrutura “retabular” de Ançã começaria, então, a ser dele um artista comprometido com as obras sem novidade a marcação de identidade na
que obedece, por um lado à distribuição de montada, cercando o janelão já terminado. do mosteiro antes de 1518, às quais é lícito arquitectura deste período. Para além de ou-
planos anteriores ao século XVI e definidos pensar que se terá mantido ligado depois tras formas de representação dos artistas
pelo edifício românico, por outro à capaci- Em carta régia, infelizmente não datada, desta data. Sendo incerta a sua participação envolvidos nas obras, como a figuração es-
dade renovadora do período manuelino que dava-se ordem ao recebedor das rendas do na campanha dos túmulos e na estrutura em cultórica, letras isoladas ou outros sinais,
prolonga as obras pelos inícios do reinado priorado, Nicolau Leitão, para que fossem pedra de Ançã do portal, mantém-se a forte muitas vezes de difícil interpretação, encon-
de D. João III. Das transformações ocorri- pagos cem cruzados de ouro a Diogo de possibilidade de que aí tivesse colaborado. tram-se, por exemplo, assinaturas em abre-
das, o resultado mais significativo é a eleva- Castilho e a Nicolau Chanterene, “pedreiros Diogo Pires não era apenas um imaginário viatura nos muros interiores das Capelas
ção da fachada românica e a construção do e empreiteiros do portall do dito moesteiro... de escultura avulsa de vulto. Prova a sua obra Imperfeitas do mosteiro da Batalha (Gomes,
portal em pedra de Ançã, já em período joa- que lhe mando dar pera fazerem as ymagees assinada que era também um decorador de 1997, p. 163), ou no caso mais divulgado do
nino. A fachada românica foi organizada em que estam por fazer no dito portall e ysto superfícies murais, tocado, a um tempo, pela portal da rotunda de Tomar, onde João de
cinco corpos (com dois volumes recuados allem do que ja tem Recebido da sua emprei- influência flamenga dos muitos lavrantes nór- Castilho datou a obra e colocou o seu nome
e três avançados – o central que integrava o tada” (Viterbo, 1914, p. 36). Com funda- dicos presentes na cidade (Craveiro, 1997, no meio de densa vegetação. Muito longe
portal e os dois coincidentes com os contra- mento nas cartas régias publicadas e na pp. 127-135) e pelas lições mais italianizantes das marcas medievais que denunciam a
fortes laterais), à maneira da Sé Velha, e a estadia conhecida de Nicolau Chanterene saídas do contacto com Nicolau Chanterene. individualidade por motivos financeiros,
A
igreja aparece como o resultado de Coimbra que, pela primeira vez, Diogo Igreja do mosteiro
conjugado das múltiplas interven- de Castilho utiliza as nervuras curvas – os de Santa Cruz
mestre Boytac,
ções que nela se efectuaram ao combados – que lhe servirão de ensaio a séc. XVI
longo dos tempos. A sua abóbada rebai- tantas outras coberturas em espaços do
xada e a grande altura marca um “territó- aro conimbricense (a começar pela vizinha Abóbada do
coro alto da igreja
rio” manuelino gerido a partir de 1507 por igreja paroquial de S. João de Santa Cruz – do mosteiro de
mestre Boytac, em conciliação de esforços o actual café). A construção do coro alto Santa Cruz
com o prior D. Pedro Gavião, e cuja res- trouxe modificações de monta a toda a Diogo de Castilho,
c. 1531
ponsabilidade passou por reformular o igreja: obrigou aos arranjos exteriores com
velho edifício românico, conferindo uma a inserção dos três nichos na fachada, li-
nova face à igreja e um outro sentido de bertou a capela-mor do cadeiral executado
usufruto da cenografia “vertical” instalada. em 1513 por Machim e permitiu a desloca-
As mísulas espiraladas de que arrancam as ção dos túmulos dos reis.
nervuras que revestem a cobertura assina-
lam os diferentes tramos de um ritmo di- O desenvolvimento do coro, ocupando um
nâmico e agitado que se resolve na espaço rectangular que avança vigorosa-
repetição harmoniosa de um modelo for- mente para a nave, haveria de influenciar
mal e decorativo. todas as igrejas colegiais que em breve se
construiriam na cidade. Esta opção estará,
A estrutura interna deixa perceber uma porventura, no número alargado dos cóne-
composição de nave única para a qual se gos e nas dimensões do nártex românico
abrem as capelas laterais reelaborando que se adiantava ainda mais na nave mol-
as estratégias montadas no século XII. dando, durante séculos, os horizontes vi-
Nas paredes laterais à entrada da igreja suais dos crúzios.
086 | 087
Pilastra com colunas Os efeitos cénicos que decorrem da cadência Ainda no espaço coberto pela abóbada do
balaústre de suporte ritmada e “floral” das nervuras da abóbada coro alto, à Epístola, encontra-se o túmulo
ao coro alto
igreja do mosteiro (onde as chaves emolduradas assumem um dos Cogominhos (deslocado para aqui nas
de Santa Cruz, registo figurativo ou vegetalista) são comple- reformas manuelinas da igreja), já numa in-
João de Ruão, c. 1531 mentados com os artifícios do ornamento terpretação de classicismo tardio e rematado
Diego de Sagrado, em plena articulação com os elementos da por frontão interrompido sobre o qual se eleva
Medidas del Romano arquitectura. “Leuantado em cõpetente al- a cruz assente em pequeno frontão curvo.
Toledo, 1549 tura de abobeda de pedraria, cõ hum fer- À arca tumular enquadrada por duas pilastras
(ed. fac-similada)
moso arco perpianho a maneyra de romano” caneladas sobrepõe-se uma estrutura com
Igreja do mosteiro (Révah, 1958), o coro mantém os medalhões, friso dórico e dois arcos geminados que en-
de Santa Cruz em correspondência com os desaparecidos cerram os brasões e as inscrições tumulares.
séc. XVI
dos arcos das capelas laterais. As preferências
“ao romano” (onde se integra João de Ruão) Alinhados lateralmente e em cintilações de
manifestam-se com clareza na definição das azul e branco, num procedimento de desenho
colunas balaústre e nos capitéis que apoiam e cromatismo comum à época, os azulejos his-
lateralmente as descargas da abóbada. toriados setecentistas (de fabrico lisboeta) pro-
Um tratamento capitelar que reivindica tam- clamam, ao Evangelho, os valores da Cruz de
bém a linguagem decorativa dos temas fanta- Cristo. Do pecado original à entrada da Cruz
sistas publicados em 1526 por Diego de Sagredo em Jerusalém transportada pelo imperador
em Toledo (com edições portuguesas em bizantino Heráclio, o programa iconográfico,
1541 e 1542) e que encontra nítido paralelismo repartido entre o mal e a salvação pela Cruz,
no fôlego dado ao trabalho de marcenaria contempla os seguintes temas: o pecado ori-
do Pentecostes de Vasco Fernandes, execu- ginal; Moisés e a serpente; prefiguração de
tado em data muito próxima à do coro alto. Cristo na Cruz; o imperador Heráclio e a Cruz;
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A CAPELA-MOR
Retábulo com o A capela-mor é um espaço rectangular que prior do mosteiro, S. Teotónio. Em harmo-
trono eucarístico a campanha manuelina de mestre Boytac ins- nia conjugada com o discurso propagan-
séc. XVIII, capela-mor
da igreja do mosteiro talou sobre a primitiva capela românica, po- dístico, o rei Afonso Henriques interfere na
de Santa Cruz ligonal e mais pequena. A cobertura segue o narrativa aparecendo a receber o hábito de
modelo instalado na igreja e com as chaves cónego regrante e integrado na Ordem
Abóbada da
capela-mor da igreja centrais em alinhamento com o poder que (Vieira, 1990, pp. 24-25).
do mosteiro de patrocinou toda a obra. São os emblemas
Santa Cruz do rei D. Manuel, o escudo régio, a cruz de O altar-mor, com o sacrário, é dotado de
mestre Boytac,
1507-1513 Cristo e a esfera armilar, que voltam a ditar, a uma estrutura retabular, também do século
partir das chaves da abóbada e dos registos XVIII, com o trono do Santíssimo e qua-
(páginas seguintes) ornamentais integrados, a imagem de auto- tro anjos de fortíssima expressão plástica.
Túmulo de
D. Afonso Henriques ridade colada à politica de centralismo régio. O retábulo de talha barroca acolhia uma
Diogo de Castilho, tela do pintor italiano Pascoal Parente, com
Nicolau Chanterene, O vão que, ao Evangelho, fazia a ligação ao o tema da Exaltação da Cruz e datada de
1518-1522, capela-mor
da igreja do mosteiro claustro (de que ainda restam vestígios) foi 1788, que foi substituída por outra no sé-
de Santa Cruz fechado e revestido com molduras ao culo XIX (também retirada e deslocada
gosto neomanuelino, à semelhança do para junto da capela das relíquias, ligada à
Túmulo de
D. Sancho I que acontece na passagem para a sacristia. sacristia) de António José Gonçalves, pai de
Diogo de Castilho, A iluminação natural decorre das duas António Augusto Gonçalves (Vieira, 1990,
Nicolau Chanterene, grandes janelas que ladeiam o túmulo de p. 25). Os antigos retábulos da capela-mor
1518-1522, capela-mor
da igreja do mosteiro Afonso Henriques. desapareceram ou foram dispersos por vá-
de Santa Cruz rios locais. Do retábulo pintado (em 1522-
Os frisos de azulejo a azul e branco, do sé- c.1530) por Cristóvão de Figueiredo
culo XVIII, que correm lateralmente rela- mantêm-se ainda alguns painéis remetidos
tam diversos episódios da vida do primeiro hoje ao antigo refeitório do mosteiro.
Nas capelas laterais à nave da igreja ainda tempo que se apresentava um novo enqua- Graça (hoje do Senhor dos Passos), com corpo da igreja, estabelecendo, desta Deposição de
permanece visível o conjunto das reformas dramento cenográfico. um sentido de regularização imposta tam- forma, um sentido de equilíbrio e sime- Cristo no túmulo
João de Ruão,
levadas a cabo no período joanino. Na re- bém pela cobertura de aresta com dois tria a partir do eixo da nave (Gonçalves, calcário, 1535-1540,
presentação emblemática das “formas per- Mantendo o espaço da igreja das Donas, a arcos cruzeiros, abriram-se para a nave 1980, pp. 213-218; Gonçalves, 1988, p. 131). MNMC,
feitas”, o espaço aberto à comunidade capela-mor e o inevitável bloco central do através dos dois grandes arcos que enqua- Para ocultar a abóbada da capela dos Már- Inv. nº 4085; E109
pública pauta-se pela exaltação de conhe- corpo, com abóbadas em “arte custosa & dram o púlpito (em correspondência com tires e camuflar as obras de Boytac, a altura
cimento e poder, saída da reforma de 1527. mais estimada do moderno” (Révah, 1958), o ritmo do lado fronteiro). Apresentam as das novas capelas desceu e o espaço usu-
É o que se passa através da reformulação reformularam-se as capelas laterais, segu- duas uma composição de talha do século fruído ficou mais pequeno, aproveitando-se
operada no corpo da igreja e com a impo- ramente, sob a direcção de Diogo de Cas- XVIII. Os azulejos (sempre do mesmo pe- a oportunidade para uma configuração
sição sistemática da forma quadrangular, tilho. Do lado do Evangelho respeitou-se a ríodo) da capela do Senhor dos Passos re- mais regular e, porventura, próxima da-
necessariamente adaptada aos espaços maior privacidade no acesso ao púlpito e gistam os temas de S. Joaquim, Santa Ana quela que organiza as capelas do lado do
prévios. Nos primeiros anos da década de criou-se um espaço intermédio, também e a Virgem. Evangelho.
30 do século XVI, na mesma altura em que revestido com azulejos setecentistas, onde
estão também em curso as obras que have- se colocou a Deposição de João de Ruão A “cirurgia” do lado da Epístola revestiu-se A intervenção ocorrida no século XX (1972)
riam de configurar a nova igreja paroquial (hoje no Museu N. de Machado de Castro). de maior sofisticação na reforma joanina. recuperou a capela unificada de D. Gomes
de S. João, encostada a sul da igreja con- Mantém-se uma estrutura retabular pétrea A operação plástica a que foi necessário (1458) deixando à vista a sua cobertura qua-
ventual, a reforma ditou então a supressão ainda quinhentista, que não prescinde dos recorrer para esconder o espaço quatro- trocentista. A primitiva capela de S. Tiago,
do mosteiro das Donas. O espaço ocupado ingredientes clássicos dinamizados no centista da capela dos Mártires primeiro e frente à de Santo António, oculta a grande
pela antiga igreja do mosteiro feminino plano superior com os três nichos ocupa- as reformas de Boytac depois, transforma- janela manuelina, integra o portal projec-
(desactivado também das suas funções de dos pelo Salvador e por anjos músicos. ram toda esta ala. À semelhança do que tado para o exterior a poente (na realidade,
paroquial) pôde, assim, ser integrado no aconteceu com as capelas da parte es- logo desactivado pelo encosto à igreja pa-
âmbito da igreja crúzia, promovendo a ra- As capelas de Santo António (com imagem querda, também aqui o espaço foi dividido roquial) e ainda mantém a organização à
cionalização de um programa erudito e recente e azulejos setecentistas com cenas em três unidades inter-comunicantes em maneira de templete com lanternim supe-
tendencialmente geometrizado, ao mesmo alusivas ao Santo) e de Nossa Senhora da que a central permanece fechada para o rior, copiando, afinal, os mesmos motivos
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A SACRISTIA
A
Descida da Cruz sacristia da igreja de Santa Cruz tivo no desenho da sacristia (Craveiro,
atrib. André (1622), construída pelo arquitecto 2002, pp. 514-517).
Gonçalves,
séc. XVIII, sacristia Manuel João, substitui outras no
do mosteiro de mesmo local com diferente espacialidade e A actual sacristia inscreve-se numa cultura
Santa Cruz cujas dimensões é hoje impossível determi- artística que não abdica da dinâmica orna-
Sacristia nar. Sempre com uma localização a sul da mental apoiada nos modelos da gravura a
Manuel João, capela-mor da igreja, a primitiva sacristia circular, como os motivos das máscaras
1622-1624, mosteiro românica deu lugar a outra nos inícios do sobrepostas aos diversos vãos. A organiza-
de Santa Cruz
século XVI que sofreu nova remodelação, ção arquitectónica do espaço rectangular
por volta de 1590, com um aumento do es- (rematado nos topos pela grande janela
paço em direcção à rua das Figueirinhas. termal de grande efeito plástico e lumí-
nico) e a agitação ritmada da sua abóbada,
A autoria do projecto permanece incerta. de três tramos e exuberantemente preen-
Tradicionalmente, e com base em docu- chida por motivos de “pontas de dia-
mentação recolhida no texto de D. José de mante” e caixotões octogonais de onde
Cristo (B.P.M.P., Ms. 86, fl. 51), tem sido pendem bocetes, fazem desta sacristia um
atribuída a Pedro Nunes Tinoco, arquitecto dos exemplares mais extraordinários do
régio presente em Santa Cruz nas datas género no país. Num procedimento que
da construção deste espaço. Na realidade, haveria de ser seguido no mosteiro e ga-
o apuramento historiográfico das creden- nharia também a adesão da arquitectura
ciais de Manuel João desencadeou a rea- do período barroco, verifica-se a correspon-
nálise do problema agora equacionado à dência (nos tramos e nos arcos torais)
luz da possibilidade de atribuir ao arqui- entre a definição da abóbada e o pavi-
tecto de Coimbra um papel mais interven- mento em pedra de duas cores.
Crucifixão O expoente de glória e de brilho é alcançado O arcaz que ainda se preserva, com file- O bloco rectangular concebido a poente da sentido decorativo anda próximo da defini- Portal da sala
séc. XVII, sacristia na sacristia a vários níveis. Cobrem as paredes tes de marfim em decoração de efeitos sacristia dá acesso à escadaria para os an- ção fixada em 1638 na fonte central do claus- do Tesouro
do mosteiro de década de 30 do
Santa Cruz azulejos padronizados de “tapete”, com cinti- geométricos, é do século XVII e da autoria dares altos laterais ao corpo da igreja e à ca- tro do Silêncio. O portal segue os modelos séc. XVII, mosteiro
lações de azul, branco e amarelo, tão comuns de Samuel Tibau, embora ostente a data pela das Relíquias. Surgido na sequência da nórdicos numa sequência arrebatadora de de Santa Cruz
ao século XVII e ainda podem ver-se várias de 1711 e as iniciais FPM que corresponde- construção da nova sacristia, o átrio assim molduras em “ferronnerie” que integram
pinturas, entre as quais se destaca a grande rão a um restauro efectuado nesta altura. formado apresenta a abóbada com caixo- motivos geométricos de rectângulos, círcu-
tela da “Descida da Cruz”, do séc. XVIII, O amituário, espécie de contador encai- tões rectangulares e almofadados, apelando los e ovais, máscaras e “pontas de dia-
cópia sobre o mesmo tema de Daniel Volterra, xado na parede nascente, junto à porta que a uma sobriedade de recorte geométrico em mante”. Na mesma cultura estética, aliás,
e cuja qualidade já levou à sua atribuição à dá acesso à sala do Capítulo, ostenta a em- contraste com a exuberância ornamental da que ditou a construção do portal da igreja
proximidade da oficina de André Gonçalves. blemática cruz segura por dois anjos e inte- sacristia. do colégio de Santo Agostinho na cidade,
Outras telas, também do século XVIII e de gra ainda algumas tabelas de marfim que também do mosteiro crúzio.
oficina lisboeta, representam “Santo António identificam alguns nomes dos últimos utili- Aqui se guardam alguns paramentos, alfaias
com as vestes de cónego regrante ajoelha zadores crúzios (Vieira, 1991, pp. 29, 58). litúrgicas e a grande tela, muito deteriorada, A capela, hoje designada como capela do te-
perante a Virgem e o Menino”, “Santo Agos- Preserva-o um arco enquadrado por pilas- proveniente da capela-mor. Foi pintada em souro, tem cobertura rebaixada de perfil oc-
tinho com Cristo e a Virgem” e a “Virgem e tras coríntias, num entendimento compo- 1876 por António José Gonçalves, com o togonal com os vários campos decorados e
o Menino com Santa Isabel e S. João”. sitivo clássico e dotado de profusa tema da “Exaltação da Cruz” acompanhado integra várias relíquias atestando a impor-
decoração. pelo que parece ser a representação da tância que os crúzios davam à exposição da
Na parede sul dominam as grandes escultu- Praça do Comércio em Lisboa e onde ainda materialidade da devoção. Ganham especial
ras de madeira da Crucifixão com Cristo, a Para além da ligação ao corpo da igreja (re- figura o torreão caído em 1755. relevo o relicário de prata que contém o crâ-
Virgem e S. João, os últimos em nichos que configurando o arco que protegia o armário nio de S. Teotónio, de 1624 (com inscrição
têm correspondência com os da parede fron- para os cálices) e à capela-mor, a sacristia O portal que o separa da capela quadrangu- onde se diz que, em 1621, o prior D. Miguel
teira com Santa Gudula e Santa Gertrudes, dá acesso à sala do Capítulo (em estreito lar (com projecção octogonal) mais resguar- de Santo Agostinho separou o crânio do
duas santas da Ordem agostinha. Todas as corredor), à casa das Relíquias e à casa do dada projecta-se como arco triunfal dotado resto do corpo do santo), e os relicários,
esculturas pertencem ao século XVII. Lavabo. de assinalável capacidade de impacto e cujo também de prata e do século XVI (1510) que,
Casula supostamente, guardam relíquias dos cinco A casa abobadada do lavabo situa-se a nas-
bordado com fio Mártires de Marrocos. Consumada a “lim- cente da sacristia e, tal como acontece no
dourado, séc. XVIII,
mosteiro de peza”, operada a partir de 1834, expurgando topo oposto, é revestida por azulejos do sé-
Santa Cruz o mosteiro das obras com qualidade mais culo XVII. As afinidades do lavabo com ou-
significativa, restam aqui (numa definição tras obras de Pedro Nunes Tinoco apontam
Pluvial
bordado com fio musealizada), sobretudo, as peças de metal para a sua provável autoria. O confronto
dourado, séc. XVIII, do século XIX necessárias à prática litúrgica com o túmulo de D. Duarte de Menezes
mosteiro de e diversas esculturas pequenas pertencen- (1635), executado para a igreja monástica de
Santa Cruz
tes aos séculos XVIII e XIX. S. Francisco em Santarém e hoje colocado
Lavabo da sacristia no Museu de S. João de Alporão, permite es-
Pedro Nunes Tinoco, tabelecer uma linha de continuidade no tra-
mármore, c. 1630,
mosteiro de balho do arquitecto régio, pese embora a
Santa Cruz natureza diferente da obra. O resultado da
estadia de Pedro Nunes Tinoco em Santa
Cruz, mais do que o projecto para a sacris-
tia é, agora sim, o lavabo.
A
sala rectangular do Capítulo resulta Os azulejos enxaquetados que cobrem Sala do capítulo
da vontade reformadora extraída da ainda hoje a sala capitular derivam de deci- mestre Boytac,
1º quartel do
aliança entre o rei D. Manuel e o são tomada em 1582. Ao longo das paredes séc. XVI, mosteiro
prior do mosteiro D. Pedro Gavião (1507- laterais correm ainda os bancos com os de Santa Cruz
1516). Respeitando uma estratégia de loca- respectivos espaldares.
Entrada da
lização configurada pela primitiva sala sala do capítulo
capitular românica, o Capítulo manuelino O topo a sul é rematado pelo grande arco mestre Boytac,
obedece ao projecto ideado por mestre triunfal da capela de S. Teotónio enquanto 1º quartel do
séc. XVI, mosteiro
Boytac e com afinidades explícitas nou- a norte se situa a entrada para o claustro de Santa Cruz
tros espaços construídos pelo arquitecto. com o arco conupial, revestido de uma de-
De facto, não é necessário sair do mos- coração preenchida pela fita e motivos ve-
teiro para encontrar o mesmo universo getalistas, e se identifica, mais uma vez, a
formal e a mesma e reconhecível plastici- marcação do trabalho de mestre Boytac.
dade. A igreja apresenta idêntica defini-
ção na abóbada nervurada dos quatro
tramos tal como se oferece o mesmo
efeito cenográfico a partir das longas mí-
sulas espiraladas e dispostas ao longo
das paredes laterais. Como acontece nou-
tros locais no recinto do mosteiro, tam-
bém aqui se processa um acordo formal
entre a cobertura e o lajeado do pavi-
mento; espécie de harmonia cósmica
entre o céu e a terra.
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A CAPELA DE S. TEOTÓNIO cercado de huas grades douradas pera
mais veneração” (Santa Maria, 1668, P. II,
Liv. IX, p. 190).
S. Lucas e S. Marcos João de Ruão da categoria profissional do de S. Teotónio, que, tal como aconteceu Acede-se à capela de S. Miguel pela sala do Retábulo dos
Tomé Velho, escultor-arquitecto) e imprimem a adequada com as ossadas de D. Telo, foi transferido Capítulo. A sua estrutura rectangular, de Arcanjos
1582-1588, sécs. XVI-XVII,
capela de S. Teotónio gravidade ao programa iconográfico da ca- do claustro também em 1630. dois tramos, tem a abóbada com uma co- capela de S. Miguel
do mosteiro de pela. A escultura central de S. Teotónio, em bertura nervurada em estrela de quatro pon- do mosteiro de
Santa Cruz madeira, é de uma oficina de Lisboa (1627- A capela fomenta um discurso rico de suges- tas, numa definição que se identifica com as Santa Cruz
S. Teotónio 1630) e demarca-se do “estilo” reconhecível tões iconográficas que integra também o re- coberturas das galerias do claustro e com a Abóbada da capela
oficina de Lisboa, de Tomé Velho. tábulo de cinco painéis pintados, cerca de intervenção de Marcos Pires. A capela terá de S. Miguel
madeira, 1627-1630, 1638, por anónimo autor local mas com cla- sido, portanto, construída em sintonia com Marcos Pires,
capela de S. Teotónio 1518-1522, mosteiro
do mosteiro de No arco triunfal (1627-1630) é perceptível ras influências de um “tenebrismo” lisboeta o claustro manuelino, entre 1518 e 1522. de Santa Cruz
Santa Cruz uma outra sensibilidade que aposta na co- trazido pela influência das telas dos altares
lagem aos modelos decorativos extraídos laterais da Sé Velha, estas eventualmente A capela deve a sua designação ao retábulo,
da gravura nórdica e projectam um sentido pintadas por Martim Conrado (Serrão, I, já mais tardio, executado nos finais do sé-
festivo de grande impacto sobre a sala do 1992, p. 510; Serrão, 2000, pp. 415-416). culo XVI ou inícios do século XVII, com a re- Renascimento que integra ainda cartelas
Capítulo. Os temas são, naturalmente, alusivos à vida presentação dos três arcanjos: S. Miguel ao diversas e pontas de diamante, temas divul-
de S. Teotónio (a cura do rei Afonso Henri- centro ladeado por S. Rafael (acompanhando gados posteriormente. O coroamento, re-
Para além do túmulo do Santo, em plano de ques e de D. Mafalda, S. Teotónio em Glória Tobias) à direita e S. Gabriel à esquerda, em matado pela taça com a cruz, desenvolve as
centralidade, a capela alberga lateralmente e a sua morte enquadram o motivo, ao cen- tratamento que alonga as figuras, já sem o “ferronneries” (nos remates laterais acom-
mais dois túmulos: à esquerda o de D. Telo tro, do Calvário). Na propaganda encenada, carácter humanizado e a corporalidade que panhando a curvatura da abóbada), comum
(falecido em 1136), um dos fundadores do a encomenda crúzia não esqueceu também tinham, até então, caracterizado a escultura. nas estratégias decorativas da segunda me-
mosteiro, e cujos restos mortais foram a eficácia da “aliança” entre as duas figuras A estrutura tripartida do retábulo organiza tade do século XVI.
transferidos do claustro para este local em emblemáticas das fundações: do mosteiro e uma composição simétrica e com o nicho
1630, como consta na inscrição tumular. do reino. central mais elevado. Pilastras e entabla-
À direita, o do segundo prior do mosteiro, mentos são revestidos com uma ornamen-
D. João Teotónio (falecido em 1181), sobrinho tação inspirada nos motivos de primeiro
O
claustro manuelino do mosteiro ora com os “eternizados” símbolos régios Ala nascente do
ocupa a posição do primitivo claus- da cruz de Cristo, da esfera armilar e do bra- claustro do mosteiro
de Santa Cruz
tro românico. Ainda se conserva, são do rei D. Manuel. O momento “maior” Marcos Pires,
embutida na parede da ala sul e logo acima dessa adesão incondicional à força da Na- c. 1520
do túmulo de D. Miguel Salomão, a lápide tureza situa-se na fonte de Paio Guterres,
Abóbada no
da sagração da igreja em 1228. cavaleiro medieval ligado à formação do claustro do Silêncio
reino, ao rei Afonso Henriques e às casas Marcos Pires,
Integrada no volume de obras a desenvol- religiosas de Santo Agostinho. O mito das c. 1520, mosteiro de
Santa Cruz
ver nas campanhas de mestre Boytac, a exe- origens e o papel do mosteiro na engrena-
cução do claustro deveu-se inteiramente a gem fundacional, expostos na propaganda
Marcos Pires que o teria concluído por 1520. montada na igreja com os túmulos dos
A sua organização quadrangular e ordenada reis, passavam, assim, também ao claustro.
a um ritmo de arcarias onde se perfilam os A fonte, localizada no ângulo sudeste do
cinco tramos separados pelos contrafortes claustro porque servindo o refeitório ma-
que sobem aos pisos superiores integram nuelino remetido para a ala nascente (do
arcos apontados (contendo dois arcos re- qual não resta qualquer vestígio), dialoga na
dondos e unidos por coluna central), ex- partilha de funcionalidade e carga simbólica
pressivos de uma dinâmica ornamental e que não prescinde, mais uma vez, dos em-
discursiva própria do tempo. Dessa atmos- blemas do rei inscritos no reino de uma Na-
fera de palpitante naturalismo dá conta a tureza profusa e purificadora. Na cobertura
decoração capitelar, a definição das mísulas abobadada que a protege as nervuras cur-
no arranque das nervuras ou as abóbadas vas são substituídas por troncos nodosos,
nervuradas e preenchidas com as chaves, num comportamento formal generalizado,
ora com uma vegetação “carnuda” e rebelde, afinal, a tantas construções do reinado.
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No plano central do claustro encontra-se a butivo dos circuitos e lugar de meditação, o Fonte de
fonte que, em 1638, terá substituído outras claustro é também espaço de sepulcro por Paio Guterres
claustro do Silêncio,
anteriores. É rematada pela imagem de excelência. Aqui se sepultaram os primeiros Marcos Pires,
S. Miguel segurando o escudo nacional. reis e muitos outros de maior ou menor pro- c. 1520, mosteiro de
Com taça dupla assente sobre o tanque re- jecção. De alguns é a inscrição registada Santa Cruz
cortado e sentido decorativo proveniente de pelo azulejo que anuncia o local do sepulcro Fonte de
outras referências mais sóbrias, a fonte cen- e o tumulado. Paio Guterres
tral inscreve-se nos mesmos circuitos cultu- claustro do Silêncio,
Marcos Pires,
rais e plásticos que ditaram a construção do Abaixo da lápide da sagração, na ala sul, en- c. 1520, mosteiro de
arco que antecede a capela das relíquias e contra-se o túmulo de D. Miguel Salomão, Santa Cruz
que, por seu turno, surge na sequência das bispo de Coimbra entre 1162 e 1176 e sem-
Fonte do claustro do
grandes obras da sacristia. pre próximo do mosteiro de Santa Cruz. Silêncio do mosteiro
Faleceu em 1180 e à sua arca foram mais tarde de Santa Cruz
No ângulo noroeste situava-se, até aos mea- (séc. XIII) acrescentados ornatos diversos. séc. XVII, Coimbra
dos do século XX (altura em que a Direcção Na mesma galeria do sul, no tramo seguinte,
Geral dos Edifícios e Monumentos Nacio- está o túmulo do infante D. Henrique, filho do
nais a transportou para plataforma formada rei D. Sancho I. Também do século XII e com
acima do actual restaurante do Jardim da uma inscrição muito mutilada, a arca apre-
Manga), a fonte seiscentista que servia o re- senta relevos figurativos importantes na cap-
feitório nascido do contrato de obras esta- tação de uma sensibilidade românica. O lugar
belecido em 1528. da arca dos Mártires de Marrocos, tal como
acontece com o túmulo de D. João Teotónio
São diversos os túmulos que ainda se encon- (2º prior do mosteiro e falecido em 1181), en-
tram nas galerias do claustro. Núcleo distri- contra-se meramente registado no azulejo.
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Registo com as Entre a entrada para o Capítulo e a capela de estratégias culturais e políticas dos vários
Bem-aventuranças Jesus, a lápide com inscrição quinhentista in- momentos. Alguns espaços e registos perde-
azulejo,
sécs. XVIII-XIX, dica um dos locais de sepulcro do arcediago ram-se para sempre; por vezes, detectam-se
claustro do mosteiro D. Telo, um dos fundadores do mosteiro. ainda elementos que persistem na clarificação
de Santa Cruz do conjunto. Por exemplo, junto ao relevo
Registo da ligação O lambril de azulejo que corre nas galerias da Lamentação ficou visível o registo do vão
manuelina entre o do claustro pertence genericamente aos fi- que estabelecia a ligação entre a capela-mor
claustro e a igreja nais do século XVIII e apresenta dois regis- e o claustro, tal como, num plano mais cen-
séc. XVI, mosteiro
de Santa Cruz tos articulados. No plano inferior corre o tral, se pôs a descoberto parte de um grande
“rodapé” marmoreado onde assenta o se- arco românico.
Claustro do Silêncio gundo registo organizado em campos fi-
Marcos Pires,
c. 1520, mosteiro de gurativos autónomos e grande sentido
Santa Cruz cromático. Os “temas” protagonizadores
das molduras ovaladas e enquadradas entre
grinaldas florais, em clara filiação barroca,
projectam uma iconografia religiosa reti-
rada dos Evangelhos e dizem respeito às
Bem-aventuranças e Parábolas da pregação
de Cristo (Vieira, 1991, pp. 39-40).
Capela de Jesus A capela de Jesus encosta-se à sala do Capí- obras de Marcos Pires. Na parede poente, culo XVIII, sustentada por pelicanos e preen- As restantes capelas que se encontram no Retábulo da
com o túmulo de tulo e abre para o claustro no extremo da ala está o túmulo de D. João de Noronha, filho chida por símbolos heráldicos e inscrições circuito do claustro, quase todas ainda Crucifixão
D. João de Noronha sécs. XVII-XVIII,
séc. XVI, mosteiro sul, fechada por grade antiga. Embora deva do primeiro marquês de Vila Real, D. Pedro laudatórias. Foi restaurada em 1866 pela acompanhadas pelas dependências anexas, capela de Jesus
de Santa Cruz ter sido projectada por mestre Boytac, as de Menezes, e de D. Brites de Lara, prior Câmara Municipal, tal como consta de ins- pertencem a diferentes épocas. Na galeria do mosteiro
obras ter-se-ão prolongado como parece in- eleito do mosteiro em 1484 e falecido em crição junta. norte, a seguir à entrada para o refeitório da de Santa Cruz
diciar a definição estrelada da sua abóbada 1506. Organizado à maneira de portal ma- campanha de obras de Diogo de Castilho
abatida. A entrada para o claustro, perten- nuelino, o túmulo integra a arca com o bra- A capela de Jesus funciona também como depois de 1528, situa-se uma capela datável
cerá a Marcos Pires no contexto da emprei- são de armas do prior-mor e com a inscrição um depósito de peças em pedra de prove- ainda dos meados do século XVI. Depois da
tada das obras que leva a cabo até 1522, data fúnebre. Do lado fronteiro, o túmulo de niência e natureza diversas. Ganham parti- entrada em duplo arco com uma intersecção
da sua morte. Os azulejos enxaquetados D. Pedro Gavião, prior-mor do mosteiro cular relevo as esculturas originais do em suspenso projecta-se a abóbada de berço
que revestem as paredes têm vindo a ser entre 1507 e 1516 (o primeiro de nomeação portal da fachada da igreja, executadas com pequenos caixotões ornados alternada-
substituídos. régia) e também bispo da Guarda, segue por Nicolau Chanterene cerca de 1525. mente de florões. Mantém a imagem da Vir-
um modelo próximo do sepulcro do seu an- Os Apóstolos (entre os quais se identifica gem esculpida por João de Ruão para o nicho
Para além do retábulo simples (do século tecessor. A ele se deve a montagem de toda S. Tiago) e os Doutores da Igreja – Santo central da fachada da igreja, cerca de 1531.
XVIII) que integra as figuras pintadas da Vir- a campanha reformista manuelina, sempre Agostinho e S. Jerónimo – apresentam o
gem e S. João enquadrando a imagem de em articulação com o rei. O seu brasão fi- sentido naturalista bem próprio da cultura A ala nascente tem uma capela do século
madeira com Cristo crucificado (século XVII) gura, assim, no túmulo tal como em tantos renascentista que Chanterene ajudou a im- XVIII com portal barroco de concheados e
(ainda com a representação em barro de outros espaços do mosteiro. plementar em Coimbra. rematado por brasão com motivo muito di-
Santa Maria Madalena, na base da mesa de luído. É forrada com azulejos setecentistas
altar), a capela de Jesus é fundamental- Na capela encontra-se igualmente a arca fu- Para além de um conjunto de materiais pé- com cenas da vida de S. Joaquim e Santa Ana
mente espaço convertido em sepulcro. nerária de D. Rodrigo de Carvalho, bispo de treos diversos (a maior parte oriundo da fa- e guarda a imagem do rei David, o original
Nas paredes laterais, de frente um para o Miranda e fundador do colégio de S. Pedro, chada da igreja), aqui se colocou também ruanesco da fachada da igreja. Nesta ala ainda
outro, encontram-se dois túmulos, concluí- à rua da Sofia em Coimbra. Faleceu em uma imagem da Senhora da Piedade ainda se encontra o portal, dos inícios do século
dos em 1521 e integrados nas campanhas de 1559 e a arca é da segunda metade do sé- do período manuelino e muito repintada. XVII, que servia a escadaria (entaipada) de
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Só nos “volantes”, o menino (à direita) e a do que se passa nos “volantes”) e o predo- Relevo do
Virgem e S. João (à esquerda), em soberbo mínio de um campo naturalístico que de- Caminho do Calvário
Nicolau Chanterene,
tratamento corpóreo e estabelecendo o semboca no monte do Calvário fazem desta calcário, c. 1522,
equilíbrio da composição, parecem aceitar o cena no primeiro plano um retrato mais in- claustro do mosteiro
destino já traçado. A cidade fortificada que timista, apenas com a presença dos que se de Santa Cruz
se observa em segundo plano faz parte de abandonam ao sofrimento provocado pela Relevo da
uma estratégia decorativa que encontra afi- morte (representada pela caveira na pre- Lamentação
nidades com outros conjuntos europeus, dela). Os figurantes integram, para além de (pormenor),
Nicolau Chanterene,
particularmente ligados à esfera de influên- Cristo, S. João e a Madalena (à cabeça e aos calcário, c. 1522,
cia da cidade francesa de Ruão, a já suspei- pés de Cristo), a Virgem, as santas mulhe- claustro do mosteiro
tada proveniência de Chanterene (Moreira, res e, à esquerda, as duas figuras masculi- de Santa Cruz
1991, pp. 256-260). Em Santa Cruz, como o nas (Nicodemos e José de Arimateia), uma
faria de modo idêntico nos retábulos da com os instrumentos da Paixão, a outra
igreja de S. Marcos, de S. Pedro para a Sé apontando, resoluta, o caminho oposto.
Velha ou na Pena em Sintra, a fortificação
“anima-se” pela colocação de figuras debru-
çadas à varanda.
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A PATARIA E O era entregue à Escola Livre das Artes e do
REFEITÓRIO Desenho e à Associação dos Artistas (em
1865). Já no século XX, o espaço era ocu-
pado pela Biblioteca Municipal que daqui
sairia apenas nos últimos anos do século.
O refeitório manteve-se então na tutela
da Câmara, adquirindo a designação de
“Sala da Cidade” e funciona hoje como es-
paço expositivo privilegiado na ligação da
comunidade ao núcleo museológico pos-
sível no complexo monástico.
A
Galeria sul no O acesso aos andares altos do claustro pro- (passando pela grande entrada para o órgão construção do refeitório inscreve-se tálico, registando dois momentos de ocu-
piso alto do cessa-se, acompanhado de lambril de azu- resguardada por estrutura de madeira an- no âmbito da reforma espiritual le- pação: o mais baixo, original, coincidente
claustro do Silêncio
mosteiro de lejos de “figura miúda”, a partir do arco tiga) e para o Santuário. vada a cabo no mosteiro de Santa com a cota do refeitório e mantendo ainda
Santa Cruz quinhentista na galeria poente. Mas, na ala Cruz a partir de 1527 e constitui o espaço registos do primitivo revestimento azule-
superior a sul, ainda é visível o registo da protagonista do contrato de obras cele- jar; o superior adaptado à entrada forjada
porta manuelina com a escada que fazia a brado logo em 1528. O arquitecto Diogo de no século XIX para o exterior.
ligação aos pisos baixos. As galerias supe- Castilho assumiria a responsabilidade da
riores estão organizadas num ritmo de arca- construção que implicava também a ampla Substituindo o anterior refeitório manue-
rias (três arcos abatidos por tramo) entre os reformulação que estava em curso no inte- lino, localizado na ala nascente do claus-
contrafortes e com as colunas assentes rior do mosteiro e integrava, por exemplo, tro, a reforma dos espaços impôs a entrada
sobre parapeito baixo. Mantêm-se algumas a formação dos novos claustros da Manga que se identifica no portal de verga recta e
das gárgulas originais com claras afinidades e da Portaria. Mesmo que os planos te- estabelece a ligação, em túnel, entre o re-
às gárgulas da fachada da igreja. As cober- nham sido forjados nos círculos da Corte, feitório e o claustro. O amplo espaço rec-
turas são, como sempre foram, de madeira. seria a Diogo de Castilho que caberia toda tangular do refeitório encontra-se coberto
A galeria nascente foi construída na primeira a montagem de um sistema que articulava, por uma abóbada nervurada que, longe de
metade do século XX pela DGEMN, no na realidade, a nova concepção dos espa- reivindicar ainda os valores estéticos do
mesmo espírito formal e decorativo das res- ços à reforma clerical ditada e imposta in- gótico, projecta um sentido de dinamismo
tantes. Esta e a galeria norte estiveram ocu- tramuros. e energia próprios das concepções moder-
padas pelos serviços da Biblioteca Municipal nas. Ou seja, as abóbadas de incómoda lei-
até aos últimos anos do século XX. Com a extinção das Ordens religiosas ficou tura pelo facto de insistirem na montagem
comprometida a funcionalidade de todo nervurada, de configuração recta ou curva,
Mantendo algumas dependências desacti- este bloco. Rapidamente, a cozinha e de- têm sido encaradas pela historiografia
vadas, é a partir dos pisos altos do claustro pendências anexas seriam absorvidas pelo como portadoras de resquícios góticos e
que se tem acesso ao cadeiral no coro-alto edifício camarário enquanto o refeitório incapazes da adaptação aos novos tempos.
E
Cadeiral m 1513 o escultor flamengo Machim desapareceram consumidos pelo fogo ou
(pormenor do executou o cadeiral para a capela-mor perderam-se por razões diversas.
guarda-pó), Machim,
1513, mosteiro de manuelina. A construção do coro alto,
Santa Cruz por 1531, trouxe a deslocação das cadei- Ajustado à estrutura arquitectónica do
Cadeiral
ras para o novo espaço, libertando a ca- coro alto e das paredes manuelinas da
Machim e pela-mor e permitindo a deslocação dos igreja, o cadeiral de Santa Cruz apresenta
Francisco Lorete, túmulos dos reis. Ao mesmo tempo, o ne- complexo e riquíssimo programa icono-
1513, c. 1531,
mosteiro de
cessário resguardo dos cónegos obrigou à gráfico que não foi ainda totalmente deci-
Santa Cruz mutilação do grande janelão sobre o por- frado e que terá, porventura, contado com
tal da igreja e ao preenchimento com os a intervenção dos intelectuais afectos ao
três nichos exteriores. Adaptando-se ao mosteiro. Nos registos superiores, onde
novo espaço criado, as cadeiras foram corre o guarda pó, organizam-se várias
então aumentadas com mais oito (quatro cenas alusivas a uma epopeia marítima e
por lado) a rematar a sequência, numa conotada com a experiência nacional reme-
execução do marceneiro francês Fran- tida às glórias do reinado de D. Manuel.
cisco Lorete em sintonia com o trabalho Em alinhamento sequencial e intercalado
de Machim. por pequenas figuras em alto relevo, os epi-
sódios de conquista e navegação integram
Deste período e com a envergadura deste, navios, fortificações, cidades, descendo
não existe no país exemplar que lhe possa muitas vezes ao pormenor da identificação
corresponder. A maior parte dos cadeirais de igrejas, fontes, pelourinhos... A cada um
do Portugal manuelino ou foram destruí- dos registos sobrepõe-se uma coroa
dos no propósito de uma substituição aberta com elementos vegetalistas entrela-
mais adequada a nova cultura estética ou çados e com remate em forma de cruz com
O
Cadeiral a alcachofra, símbolo perseguido de rege- Santuário tem uma estrutura rec- inscreve o espectáculo que decorre da Retábulo do
(pormenor), neração. Em alinhamento inferior, o espal- tangular pelo exterior e formação apresentação das relíquias, agora concen- santuário
Machim, 1513, séc. XVIII, mosteiro
mosteiro de dar das cadeiras é o espaço reservado à elíptica no interior, assentando nos tradas em torno de uma circularidade sus- de Santa Cruz
Santa Cruz ostentação dos emblemas régios. Sempre andares altos para nascente da capela-mor tentada pela arquitectura. As janelas
em atmosfera de grande exuberância vege- da igreja e com acesso por porta de verga superiores estão organizadas entre os
Cadeiral
Machim, 1513, talista, aqui se repete a incansável imagem recta com decoração rococó. Construído pares de pilastras que acompanham as pa-
mosteiro de do poder identificada pela cruz de Cristo, o para a reunião das muitas relíquias que an- redes, num ritmo que estabelece também
Santa Cruz escudo régio e a esfera armilar. davam espalhadas pelo mosteiro, o Santuá- a presença das estruturas retabulares que
Cadeiral rio é uma obra com data incerta que se se identificam como altares laterais marca-
(pormenor), Em dois planos, inferior e superior, a se- inscreve, seguramente, dentro do século dos pela sequência de mísulas salientes
Machim, 1513, quência das cadeiras integra pequenas es- XVIII. O contrato celebrado a 9 de Novem- onde se apoiam as pirâmides relicários.
mosteiro de
Santa Cruz tatuetas que suportam também a estante bro de 1731 entre o mosteiro e o mestre Gas- O retábulo principal, na axialidade da en-
corrida. Representam um universo de do- par Ferreira poderá indiciar uma pista de trada e enquadrado por aparatosas colu-
minadores e dominados com figuras de investigação, embora não seja seguro que nas compósitas, dialoga com o que se
reis, guerreiros, escravos e prisioneiros. as obras (não discriminadas) que o mestre situa por cima da porta (que integra uma
Nenhuma das cadeiras se demite de uma arquitecto se comprometia a seguir, e que forma de gaiola com seis faces de vidro) e
estrutura lúdica e fantasiada. A incrível efa- deveriam estar terminadas no prazo de três com outros dois dispostos lateralmente,
bulação que acompanha sistematicamente anos, correspondessem à construção do definindo uma linha cruzada dentro do cir-
os dois registos do cadeiral, extensível tam- Santuário. cuito oval. Circundando o espaço, e com
bém às “misericórdias” dos bancos, joga acesso a partir das quatro molduras infe-
um papel decisivo no dinamismo, assim Fosse como fosse, é a cultura barroca de riores às quais faltam já as portadas, en-
moralizado, do conjunto e vai longe na re- nítido recorte rococó que preside à cons- contra-se um espaço reservado de funções
cuperação de um imaginário de cadeias trução deste espaço oval, na captação de pragmáticas e de acesso aos planos supe-
ancestrais. um usufruto de grande dinamismo onde se riores.