Você está na página 1de 32

UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA

CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE


DEPARTAMENTO DE BIOLOGIA GERAL

Mariana Carvalho de Paula

Um pé na aldeia, um pé na sala de aula: educação intercultural na formação de


professores

VIÇOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA
CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS E DA SAÚDE
DEPARTAMENTO DE BIOLOGIA GERAL

Mariana Carvalho de Paula

Um pé na aldeia, um pé na sala de aula: educação intercultural na formação de


professores

Artigo apresentado à Universidade Federal


de Viçosa como parte das exigências da
disciplina BIO 499 – Trabalho de
Conclusão de Curso para obtenção do
título de Bacharel em Ciências Biológicas.

Orientadora: Thaís Almeida Cardoso


Fernandez

VIÇOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
2022
Mariana Carvalho de Paula

Um pé na aldeia, um pé na sala de aula: educação intercultural na formação de


professores

Artigo apresentado à Universidade Federal


de Viçosa como parte das exigências da
disciplina BIO 499 – Trabalho de
Conclusão de Curso para obtenção do
título de Bacharel em Ciências Biológicas.

APROVADA em 9 de dezembro de 2022.

Profa. Fernanda Maria Coutinho de Andrade

Profa. Gínia Cezar Bontempo

Profa. Thaís Almeida Cardoso Fernandez (Orientadora)


AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha mãe, Ivonice, pelo amor imensurável e infinito que me fez crescer com a
liberdade necessária para defender o que acredito. Você é minha maior inspiração, mãe.
Ao meu pai, Amarildo, que mesmo longe, sempre se fez presente. Agradeço pelo amor tão
profundo e pelo apoio sem limites, que me permitiu sonhar com a docência e a biologia.
A Gabriel, pelo privilégio gigante de poder ser sua irmã e saber que sempre terei alguém do
meu lado. A Bárbara, minha irmã, minha joia, obrigada por dar mais sentido a minha vida só
com um olhar, eu te amo mais do que tudo.
Agradeço imensamente a minhas amigas e amigos, pelo acolhimento e por todas as
experiências que pude viver nesses anos em Viçosa graças a vocês. Em especial a Jade, Ana,
Gabi, Juju, Júlia, Bena, Arthur, Amiris, Maria Clara, Davi, Bella, Luísa e a minha turma,
BIO17, por compartilharem os altos e baixos nesse momento tão incrível de nossas vidas.
Agradeço especialmente a Arthur que, principalmente nesse final de graduação, me acalmou
nos momentos mais difíceis, me incentivando a seguir em frente. Obrigada pelos abraços, pela
escuta, pela compreensão e pela ajuda, fundamentais na construção desse trabalho.
Ao Cineclube Carcará por tantas experiências e oportunidades indescritíveis e por ter me dado
o privilégio de levar o cinema para tantas pessoas. Cada filme e cada momento foram
fundamentais para que eu seguisse trilhando esse caminho até aqui.
A Maiô e Siwê por compartilharem suas sabedorias de vida que transformaram ainda mais o
meu olhar para a educação. E por me permitirem concretizar um trabalho tão intenso e plural
como este.
Agradeço a Fernanda, Gínia e Thais, por contribuírem profundamente com a minha formação
e por terem me dado o privilégio de aprender com mulheres tão incríveis que são uma
verdadeira inspiração para mim.
A minha orientadora, Thais, pelo acolhimento tão carinhoso, pela escuta gentil e pelo
incentivo que foi essencial para que eu conseguisse chegar até aqui. Obrigada pela orientação,
pelas preocupações, pelo cuidado e por me ajudar a realizar um trabalho que me orgulho
muito.
Por fim, agradeço a minha avó, Levinda, pelo amor mais inteiro e pleno que eu já senti.
Obrigada por todas as preocupações, por todos os sacrifícios e por cada momento que pude
viver do seu lado, eu aprendi com cada um deles. Era meu sonho que você me visse formada
Vó, mas onde quer que você esteja, tenho certeza que está feliz por mais essa conquista da
professora da família.
SUMÁRIO

1 Introdução 2

2 Procedimentos Metodológicos 7

3 Resultados e Discussão 10
3.1 As percepções da mestra e do mestre indígenas sobre a colonização dos saberes 10
3.2 A memória biocultural como forma de resistência e anticolonialidade 11
3.3 A contribuição dos saberes indígenas para a formação intercultural de professores/as de
ciências 13
Os saberes indígenas e o ensino de ciências 13
Educação intercultural, escola e universidade 16

4 Considerações finais 18

5 Referências 19

6 Anexos 23
A. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) 23
UM PÉ NA ALDEIA, UM PÉ NA SALA DE AULA: EDUCAÇÃO INTERCULTURAL
NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

O presente trabalho foi feito com base nas normas da Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio.
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:

UM PÉ NA ALDEIA, UM PÉ NA SALA DE AULA: EDUCAÇÃO


INTERCULTURAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
ONE FOOT IN THE NATIVE VILLAGE, ONE FOOT IN THE CLASSROOM:
INTERCULTURAL EDUCATION IN THE TRAINING OF TEACHERS

UN PIE EN EL ALDEA, UN PIE EN EL AULA: EDUCACIÓN


INTERCULTURAL EN LA FORMACIÓN DE PROFESORES

Resumo
O universo de culturas indígenas presente em nosso país sofre com a perda de seus territórios e a colonização de
seus saberes. Em um levantamento temático para materiais didáticos interculturais, construído a partir da
disciplina ‘Encontro de Saberes e Práticas Educativas” e dos encontros do Acervo Biocultural do Grupo Entre
Folhas/UFV, verificou-se a necessidade de incluir os saberes indígenas nas práticas educativas. Para tanto, foram
adotadas a pesquisa documental e observação participante para análise das falas de uma mestra e um mestre
indígenas na disciplina, ministrada durante o período pandêmico. A presença de mestras e mestres dos saberes
tradicionais no contexto universitário contribuiu para transformar o imaginário equivocado sobre os povos
originários e para a pavimentação do caminho para um diálogo intercultural na formação de professoras/es.

Palavras-chave: Diversidade Biocultural; Saberes Indígenas; Encontro de Saberes; Educação Anticolonial.

Abstract
The universe of indigenous cultures present in our country suffers from the loss of their territories and the
colonization of their knowledge. In a thematic survey for intercultural teaching materials, built from the subject
'Meeting of Knowledge and Educational Practices' and the meetings of the Biocultural Collection of the Grupo
Entre Folhas/UFV, the need to include indigenous knowledge in educational practices was verified. To this end,
documentary research and participant observation were adopted to analyze the speeches of an indigenous teacher
and teacher in the discipline, taught during the pandemic period. The presence of masters of traditional
knowledge in the university context contributed to transforming the mistaken imagery about native peoples and
to paving the way for an intercultural dialogue in the training of teachers.

Keywords: Biocultural Diversity; Indigenous Knowledge; Confluence of Knowledge; Anticolonial Education.

Resumen
El universo de las culturas indígenas presentes en nuestro país sufre la pérdida de sus territorios y la colonización
de sus saberes. En un levantamiento temático para materiales didácticos interculturales, construido a partir del
tema 'Encuentro de Saberes y Prácticas Educativas' y de los encuentros del Acervo Biocultural del Grupo Entre
Folhas/UFV, se verificó la necesidad de incluir saberes indígenas en las prácticas educativas. Para ello, se adoptó
la investigación documental y la observación participante para analizar los discursos de un profesor indígena y
docente en la disciplina, impartidos durante el período de pandemia. La presencia de maestros de saberes
tradicionales en el contexto universitario contribuyó a transformar el imaginario erróneo sobre los pueblos
originarios y a allanar el camino de un diálogo intercultural en la formación de docentes.

Palabras clave: Diversidad Biocultural; Saber Indígena; Encuentro de Saber; Educación Anticolonial.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

1
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:

***
Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de
nós que está aqui é diferente do outro, como constelações.
Ailton Krenak.

1 Introdução1
O Brasil possui dimensões continentais, sendo mundialmente conhecido por ser o país
com a maior biodiversidade do mundo. Zank et al. (2021) discutem que junto de sua
diversidade biológica, nosso país também concentra enorme diversidade biocultural originária
de vários povos indígenas e tradicionais. Nesse sentido, é importante resgatar a verdadeira
história cultural de nosso país, e lembrar das marcas da colonização e sua contribuição para o
apagamento dessa diversidade biocultural. Os povos indígenas viveram e ainda vivem intenso
processo de epistemicídio, que prejudica a manutenção de muitos saberes e cosmovisões
desses grupos.

Sendo assim, Ceccato (2022) destaca que esse desaparecimento de saberes mantém a
colonialidade em nosso cotidiano, reforçando a aculturação contínua dos povos indígenas,
tendo como base violências sistemáticas orientadas historicamente pelo dito projeto
civilizatório. Tal condição é evidenciada por Krenak (2019):

A civilização chamava aquela gente de bárbaros e imprimiu uma guerra sem


fim contra eles, com o objetivo de transformá-los em civilizados que
poderiam integrar o clube da humanidade. Muitas dessas pessoas não são
indivíduos, mas são pessoas coletivas, células que conseguem transmitir
através do tempo suas visões sobre o mundo. (KRENAK, 2019, p. 28)

Da mesma forma, é preciso relembrar que o conhecimento comumente validado é


aquele produzido sob um ponto de vista europeu e “civilizado”, reforçando a lógica da
colonialidade e do processo de homogeneização dos sujeitos envolvidos (CANDAU, 2020).
Magalhães (2021, p.5) traz esse debate para os processos educacionais ao afirmar que a
escola, de maneira geral, trata a história dos povos originários a partir de uma perspectiva
“colonial, europeia, elitista, heteronormativa, dominante e brancocentrada”.

Exemplos dessa concepção podem ser encontradas ao longo de toda nossa trajetória
acadêmica, como a narrativa de que nosso país foi ‘descoberto’ por um homem quando, na
verdade, foi invadido por colonizadores. Da mesma forma, é costume as escolas se referirem
aos povos indígenas como ‘índios’, num processo que reforça a lógica colonial sobre esses
grupos e que desconsidera a diversidade de etnias, suas autodenominações e toda a
importância desses povos na manutenção da diversidade da vida.

1
As discussões apresentadas neste artigo compõem o trabalho de conclusão de curso (TCC) para obtenção do
título de bacharel em Ciências Biológicas.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

2
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Ademais, destaca-se a imposição dos esteriótipos e das generalizações dos povos e de
seus saberes no ambiente escolar, como defende o mestre popular Antônio Bispo dos Santos
(2015):

Como sabemos, esses povos possuem várias autodenominações. Os


colonizadores, ao os generalizarem apenas como ‘índios’, estavam
desenvolvendo uma técnica muito usada pelos adestradores, pois sempre que
se quer adestrar um animal a primeira coisa que se muda é o seu nome. Ou
seja, os colonizadores, ao substituírem as diversas autodenominações desses
povos, impondo-os uma denominação generalizada, estavam tentando
quebrar as suas identidades com o intuito de os coisificar/ desumanizar.
(SANTOS, 2015, p. 27)

Krenak (2019, p.12) enseja que uma abstração civilizatória onde não criamos vínculo
com a terra “suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de
hábitos”. Assim, os seres humanos passam por processos normatizadores onde consomem as
mesmas coisas, se vestem das mesmas formas e falam, se possível, a mesma língua.

Entretanto, não se pode esquecer que a permanência e expansão da presença do ser


humano na Terra, bem como sua diversidade biocultural, se devem à manutenção de uma
memória individual e coletiva, que envolve diferentes configurações sociais que formam a
espécie humana (TOLEDO e BASSOLS, 2008). Aqui, vale destacar que os povos indígenas
resistiram e resistem às violências de seu passado e da modernidade, mantendo vínculos
profundos com sua memória biocultural e saberes oralizados.

A academia e a escola muitas vezes reforçam a ideia, estruturada na colonialidade, de


sociedades orais não são alfabetizadas e defendem que o conhecimento acadêmico é superior
por sua objetividade, métodos específicos e ausência de subjetividade. Em contraponto a essa
ideia, Nascibem e Viveiro (2015) discutem que essa visão empírico-indutivista das ciências
muito diz a respeito da exclusão de outras visões de mundo nos estudos presentes na
academia.

Em discordância com a ideia, que possibilita apenas o conhecimento científico no


âmbito universitário, e na busca de valorização mútua dos saberes produzidos por
pesquisadores e comunidades tradicionais, nasce, em 2020, a disciplina “Encontro de Saberes
e Práticas Educativas — PRE 431” na Universidade Federal de Viçosa (UFV).

A partir da educação popular, a disciplina teve como objetivo o acolhimento dos


estudantes na realidade pandêmica vivenciada naquele período. Ademais, teve como ponto
central o diálogo com mestras e mestres dos povos tradicionais e indígenas, em rodas de
conversa, fundamentado em seus modos de vida, de entender e viver o mundo, suas
perspectivas, organização social coletiva, seus modos de aprender e ensinar (SILVA, 2020).

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

3
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Tal disciplina foi pensada para a formação docente, no sentido de dar subsídios e
apontar para a importância da educação territorializada, na perspectiva das escolas indígenas,
e da educação intercultural, no contexto da escola regular.

A perspectiva intercultural defendida por Candau (2008, p.28) diz respeito a educação
que possibilita o diálogo entre culturas e diferentes grupos sociais, partindo de acordos que
“enfrentam os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos
socioculturais nas nossas sociedades e são capazes de favorecer a construção de um projeto
comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas” (CANDAU, 2008, p.23).

Dessa forma, entende-se que é preciso fazer mais do que apenas criticar a
colonialidade para se avançar no sentido do diálogo intercultural. É necessário entendê-la
como condição marcante de nossas existências, trazendo esse problema para um nível mais
interior e espiritualizado onde a coragem e disposição para o debate sejam privilegiadas
(MAGALHÃES, 2021). Sendo assim, um primeiro passo para o diálogo intercultural é a
investigação das formas de colonialidade presentes no cotidiano de nossas sociedades e
escolas: textos didáticos, trabalhos acadêmicos, cultura, sentido comum, autoimagem dos
povos, aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna
(CANDAU, 2020, apud MALDONADO e TORRES, 2007).

Aqui, é válido apontar que a busca para uma educação multicultural em prol da
igualdade é antiga e contínua, fruto de lutas históricas dos movimentos quilombolas e
indígenas. O apoio inicial a mudanças no processo educativo iniciou na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), que prevê o diálogo sobre a diversidade étnico-racial no
currículo da educação básica (BRASIL, 1996). Em alteração da LDB, a lei 11.645/08
(BRASIL, 2008) torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena
em todas as escolas brasileiras, públicas e privadas, do Ensino Fundamental e Médio, se
apresentando como uma importante aliada na defesa da educação intercultural. Como destaca
Magalhães (2021), essa lei é uma convocação a se repensar como a forma da temática
indígena aparece nos cursos de formação inicial e continuada de professores.

Kayapó e Brito (2014) também trazem esse olhar para o contexto escolar.

(...) a Lei 11.645/08, que deve abarcar debates de ordens diversas, buscando
promover a revisão de tudo o que a sociedade e as escolas sabem e ensinam
sobre a temática indígena, eliminando preconceitos e equívocos produzidos
historicamente nas salas de aula, nos livros didáticos e nos meios de
comunicação. Tal iniciativa busca romper o silêncio, dando audibilidade e
visibilidade aos povos indígenas, demonstrando que suas histórias e culturas
são contemporâneas, vivas e se relacionam com o presente e passado, num
movimento de tensão social dinâmico, que pressupõe a perda, manutenção e
ressignificação dos modos de vida desses povos em contato com a cultura
não indígena. (KAYAPÓ E BRITO, 2014, p. 54)

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

4
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
A diversidade biocultural também aparece na Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) com a maioria de suas habilidades evidenciadas no currículo de Ciências da Natureza
e Ciências Humanas (TUGNY e GOLÇALVES, 2020), bem como tema contemporâneo
transversal. No livro “Universidade Popular e Encontro de Saberes”, Tugny e Gonçalves
(2020) consideram que, conforme a BNCC, a diversidade biocultural nas ciências da natureza
tem um grande potencial intercultural. Dentre as temáticas a serem discutidas nas escolas,
destacam-se (a) as diversas relações com a biodiversidade; (b) sua influência direta e indireta
para a sobrevivência dos seres humanos; (c) a constituição e distribuição da diversidade
biocultural nos biomas e ecossistemas brasileiros (BRASIL, 2018).

Na biologia, a interação dos saberes tradicionais e científicos, bem como sua


integração ao processo educativo, é feita pela etnobiologia2. Assim, é possível incentivar o
envolvimento dos alunos em uma compreensão mais holística do mundo natural, onde os/as
educadores/as podem, a partir do diálogo, ampliar sua visão de mundo e a de seus educandos,
bem como nossas relações com o meio natural de forma sustentável (MATOS e SANTOS,
2012). Porém, essas temáticas ainda são pouco exploradas, no sentido da interculturalidade
indígena, ao longo da trajetória acadêmica dos alunos de educação básica.

Paula et al. (2022, p.623) relatam, a partir de entrevistas com estudantes de graduação
da Universidade de Brasília (UnB), a pouca presença da temática indígena nas diferentes
áreas de conhecimento no ensino médio dos entrevistados, destacando uma carência ainda
maior de abordagens desse tema por professores das ciências da natureza. Em dados
apresentados, os pesquisadores revelam que apenas “30% dos entrevistados acreditam em um
ensino da temática história e cultura indígena atrelado a Ciências da Natureza, mais
especificamente em Biologia, no ensino médio”. Assim, fica evidente para que a sabedoria e
ciência indígenas se façam presentes na sala de aula, a/o educadora/o precisa ter essa temática
incluída também em sua formação.

Além disso, conforme o último censo demográfico divulgado, estima-se que 1.108.970
pessoas residem em localidades especificadas como indígenas no Brasil (IBGE, 2020). Assim,
partindo da perspectiva intercultural e contra colonial, é essencial que os currículos de
formação de professores incorporem esses diferentes universos culturais, outras bases teóricas
e epistemológicas que reconheçam a pluralidade epistêmica, metodológica e de autoria dos
mestres e mestras dos saberes populares. Afinal, para se ter a aplicabilidade da lei 11.645/08
se fazem necessárias mudanças nesse modelo de formação (MAGALHÃES, 2021).

Vale registrar que o início desta pesquisa foi impulsionado por um cenário importante
para a retomada de narrativas dos povos originários, nos diversos espaços educativos. Desde
2019, o governo de Jair Bolsonaro tem sido marcado por intensas represálias aos direitos dos

2
A etnobiologia estuda as relações das comunidades humanas com os recursos naturais. Para Matos e Santos
(2012), “a etnobiologia pode fornecer dados para a construção de uma política ecológica socialmente
responsável, já que considera os conhecimentos científicos e populares, estabelecendo assim uma compreensão
mútua dos interesses envolvidos” (MATOS e SANTOS, 2012, p.8).

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

5
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
indígenas e à sua proteção, além de boicotes à demarcação do território com políticas
discriminatórios agravadas pela pandemia de Covid-19 (CHADE, 2022). Além disso, tal
governo compactuou com o apagamento das vivências indígenas ao defender a ‘inclusão’ dos
povos indígenas no cotidiano brasileiro, em um discurso pseudo-inclusivo onde os indígenas
deveriam se transformar em trabalhadores urbanos, deixando suas terras para serem tomadas
pelos interesses da mineração e do agronegócio (TAVARES, 2022).

Em contraposição a essa perspectiva opressiva, esta pesquisa surge como tentativa de


destacar a importância desses povos, suas territorialidades e seus direitos e a importância do
conhecimento de seu modo de vida e saberes no contexto escolar, por meio da
interculturalidade, para podermos conhecer nossa história e nossa diversidade biocultural. O
que se torna favorável, com a mudança de cenário político. Em outubro deste ano, o
presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva, ainda em sua campanha eleitoral, trouxe como
uma de suas propostas a criação do Ministério dos Povos Originários, podendo abrir espaço
político que estabeleça e fortaleça a aliança entre indígenas e não indígenas. Caso a criação do
Ministério seja concretizada, o protagonismo das questões indígenas se destacará na
recuperação do atraso secular de uma história marcada pela colonialidade, podendo ser
reescrita a partir de 2023.

Além disso, ainda no final de 2022, a temática dos povos tradicionais surge com
protagonismo no maior exame de seleção para o ensino superior no Brasil, o ENEM (Exame
Nacional do Ensino Médio). O tema da redação, divulgado pelo Ministério da Educação em
redes sociais na internet, tratou sobre os “desafios para a valorização de comunidades e povos
tradicionais no Brasil” (BRASIL, 2022). Quase 3,4 milhões de candidatos foram estimulados
a refletirem sobre esse tema (BIMBATI et al., 2022), além da repercussão que se estendeu aos
não participantes da prova. Algumas questões dos cadernos da prova de ciências humanas
também trouxeram temáticas indígenas. Em uma delas destacou-se a identidade Pataxó
através de sua língua patxôhã e em outra tratou-se da cosmologia e territorialidade do povo
Kambeba (BRASIL, 2022). Essas inserções no exame reforçam a importância da sabedoria
indígena para o nosso cotidiano e o potencial transformador da perspectiva intercultural
indígena em nossas pedagogias e processos educativos.

É a partir de Paulo Freire (2004), em uma postura revolucionária engajada com a


educação popular, que parte a estruturação deste trabalho de conclusão de curso Bacharelado
em Ciências Biológicas. Aqui, entende-se uma concepção de educação que não parte de
instrumentos, mas que avança a partir de métodos ativos, participativos, críticos e tendo como
base diálogos que refletem sobre as relações da vida, das pessoas com o meio e suas
percepções (BRANDÃO e FAGUNDES, 2016). Ademais, de acordo com Brandão e
Fagundes (2016), no contexto universitário, a educação popular busca a transformação radical
da universidade existente, alterando seu papel político, no qual esses novos conteúdos teriam
como ponto de partida a cultura, tida como a aquisição sistemática da experiência humana.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

6
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Assim, objetiva-se, nesta pesquisa, analisar as contribuições dos diálogos de mestres e
mestras dos saberes indígenas na universidade e seu papel para o incentivo de uma educação
intercultural na formação de professores, a partir da disciplina de Encontro de Saberes. Além
disso, pretende-se identificar e entender a relevância de se priorizar espaços de diálogo que
contemplem e celebrem o encontro dos diferentes saberes populares.

2 Procedimentos Metodológicos

A pesquisa foi construída a partir da disciplina “Encontro de Saberes e Práticas


Educativas” ministrada no segundo semestre de 2020, durante o período remoto, na UFV, bem
como do acompanhamento da estruturação do Acervo Biocultural do Grupo Entre Folhas –
Plantas Medicinais/UFV, de agosto de 2021 a outubro de 2022.
Pensada coletivamente, a criação da disciplina contou com a colaboração de docentes
dos departamentos de Biologia Geral e Educação da UFV, pós-graduandos do Programa de
Pós-graduação em Educação da UFOP e do Mestrado Profissional em Educação em Ciências
e Matemática e licenciandos do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. A estruturação
da disciplina partiu do protagonismo das mestras e mestres dos saberes populares em rodas de
conversa com as/os professoras/es em formação, onde os estudantes matriculados puderam se
juntar a essa comunidade de aprendizagem no decorrer do desenvolvimento da disciplina
(SILVA, 2020). Conforme descrito por Silva (2020), a proposta da disciplina foi promover o
diálogo e a reflexão sobre a vida, com base nos saberes tradicionais, trazidos pelos próprios
mestres e mestras. Assim, os encontros foram organizados em sete unidades temáticas (1)
saberes populares para a vida; (2) saúde integral; (3) cosmovisões e epistemologias; (4)
agroecologia e educação; (5) educação territorializada; (6) resistência e militância; e (7)
cultura e arte.
Em função da riqueza de diálogos na disciplina, a importância da formação em
diversidade biocultural, nas universidades, escolas e demais espaços educacionais, ganhou
destaque especial considerando o atual cenário de crise ambiental e civilizatória. Em 2021, o
Grupo Entre Folhas-Plantas Medicinais/UFV, que desenvolve a 31 anos ensino, pesquisa e
extensão em plantas medicinais, práticas de autocuidado da saúde e qualidade de vida, propõe
a criação do Acervo Biocultural, em diálogo com professoras/es, estudantes e mestras/es dos
saberes tradicionais.
Com encontros mensais remotos, e alguns presenciais, realizados desde agosto de
2021, o grupo cresce como um espaço de reflexão e ação coletiva, visando o fortalecimento
da diversidade biocultural nos diversos contextos sociais e educacionais através de discussões
com protagonismo nas demandas das comunidades tradicionais. A partir disso, são
desenvolvidas atividades e materiais didáticos, como caminhos de inclusão, de
contextualização, de dialogicidade, de inspiração e de aprimoramento das práticas
pedagógicas interculturais.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

7
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Esta pesquisa possui caráter qualitativo, por conceber “as múltiplas atividades que
compõem o processo de pesquisa como um ato social de construção de conhecimento”
(GÜNTHER, 2006, p.202), e estruturada a partir de pesquisa documental e bibliográfica.
Foram escolhidas a pesquisa documental e a bibliográfica, pois segundo Sá-Silva et al.
(2009), apesar de serem próximas, apresentam características divergentes no que se refere às
suas fontes de busca por informação. Conforme descrevem os autores, aqui a pesquisa
documental se estruturou em documentos que não receberam nenhum tratamento científico,
tendo como base as gravações das aulas síncronas gravadas durante a disciplina, referentes às
falas das mestras e dos mestres indígenas.
Assim, ampliando o entendimento do objeto de estudo com compreensão de sua
contextualização histórica e sociocultural e favorecendo a observação do processo de
maturação ou de evolução dos conhecimentos (CELLARD, 2008 apud SÁ-SILVA et al.,
2009), foram analisados também documentos legislativos e reportagens que marcam o
momento de desenvolvimento do trabalho.
Já a pesquisa bibliográfica, incluiu o estudo de documentos de domínio científico tais
como livros, periódicos, artigos científicos, teses, monografias, entre outros.
Ademais, foi utilizada a observação participante, desenvolvida pela pesquisadora a
partir do acompanhamento das aulas da disciplina, como estudante, e dos encontros do
Acervo Biocultural, como bolsista do projeto de extensão para produção de materiais
didáticos interculturais inclusivos, possibilitando a aproximação dos participantes da
disciplina e do Acervo Biocultural em uma ação coletiva, no espaço da universidade
(MARIETTO, 2018).
A definição do objeto de estudo se deu a partir do levantamento de temas para a
educação intercultural oriundos das falas das mestras e mestres na disciplina “Encontro de
Saberes”, a partir das rodas de conversas gravadas durante o ensino remoto emergencial de
agosto a setembro do ano de 2020.
A investigação das temáticas também contou com a análise do Círculo Epistemológico
com os membros das comunidades tradicionais participantes do Acervo Biocultural do Grupo
Entre Folhas/UFV, em 2021. O Círculo Epistemológico é uma metodologia freiriana que
reforça os espaços democráticos e interpretativos utilizados no fazer investigativo
(ACCORSSI et al. 2021). Com base nisso, as informações foram coletadas, processadas e
sistematizadas em tabelas, formando um levantamento do universo temático organizado em 5
temas diferentes: (1) pauta indígena; (2) pauta quilombola, (3) cultura popular, (4) educação e
social e (5) políticas públicas.

Posteriormente, para este trabalho, foi analisada a tabela contendo informações


referentes às pautas indígenas. Assim, o tema gerador da pesquisa foi definido pelos saberes
indígenas em diálogo com a formação intercultural de professoras/es (Tabela 1), conforme
destaque dado à temática pelas mestras e mestres indígenas durante os encontros da disciplina
e reuniões do Acervo Biocultural.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

8
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:

Tabela 1: Levantamento temático sobre as demandas da pauta indígena para educação


intercultural, a partir da disciplina Encontro de Saberes e do Acervo Biocultural.

Tema Subtema (s) associado(s) Situação-problema


A história dos povos indígenas: 1. A verdadeira história da Ausente
culturas e tradições colonização
2. Imposição do modo de vida
europeu

Relação dos povos originários com Ausente A importância dessa relação para a
a natureza conservação da biodiversidade e a
recuperação ambiental

Etnocídio e massacre indígena Ausente 1. História contada pelos


(extermínio de povos) colonizadores
2. Pandemias vivenciadas pelos
povos indígenas
Saberes Indígenas para saúde 1. Culinária, alimentação Ausente
Terapias / Medicina indígena 2. Mitologia: significado dos mitos
3. Terapia do sonho
4. Geoterapia
5. Arteterapia
6. Rodas de terapias tradicionais
de saberes da terra
Mudança educacional/pedagógica 1. Mudanças de pautas, currículos, 1. Ausência de saberes indígenas
grades, disciplinas nas escolas e universidades
2. Atividades que não reforcem 2. Dia do ‘índio’
estereótipos

Fonte: Sistematizado pela autora no contexto do projeto de extensão no Acervo Biocultural - 2022

Para estruturação deste trabalho, tomou-se como base a fala de uma mestra e um
mestre indígenas, Pataxó, que fizeram parte de dois dos encontros da disciplina, Unidade 2 -
Saúde Integral e Unidade 5 - Educação Territorializada. De modo a guardar suas identidades,
foram tratados aqui como Mestre Cacuçu e Mestra Jokana, nomes fictícios traduzidos da
língua Pataxó para a portuguesa como homem e mulher, respectivamente.
A utilização das falas do mestre e mestra indígenas foi autorizada pelos mesmos a
partir do preenchimento do Termo de Consentimento Livre Esclarecido, a partir da aprovação
de projeto no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP-UFV), sob nº CAAE:
39375620.5.0000.5153.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

9
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:

3 Resultados e Discussão

3.1 As percepções da mestra e do mestre indígenas sobre a colonização dos saberes


A partir das falas e reflexões do mestre e mestra indígenas ao longo das aulas da
disciplina Encontro de Saberes e Práticas Educativas, algumas temáticas foram enfatizadas,
das quais se destaca, em um primeiro momento, a colonização dos povos indígenas, em
dimensão física e intelectual. Um tópico evidente e constante dentro deste debate foi o ponto
de vista colonizador do qual parte a história do Brasil e dos povos originários, como ressalta
Mestre Cacuçu ao comentar “uma das questões que a gente fala que a história ela conta,
muitas das vezes, do ponto de vista de uma pessoa que vence. Então, a história do Brasil, ela é
contada a partir do movimento de quem venceu né e nunca de quem sofreu uma parte nessa
história né” (Mestre Cacuçu, 2020). Krenak (2019) reforça essa perspectiva de que os brancos
europeus pensavam que pudessem colonizar o resto do mundo baseado na premissa de que
havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida.

Essas questões trazidas da colonização, condenam os povos indígenas a estereótipos,


tratando-os como ‘índios’ que precisam ser civilizados, que não têm cultura, conhecimento ou
linguagem. Desse modo, perpetua-se o pensamento eurocêntrico que julga ser civilizado,
considerando melhor o que vem do outro lado do oceano e o que é proveniente de nossa terra
não é bom. Aqui, convém apontar que o chamado processo civilizatório impôs sobre os
indígenas não só o genocídio, que ceifou a vida de milhares com doenças e processos
exploratórios, mas também o epistemicídio, condenando as contribuições culturais e sociais
desse grupo a um processo de invisibilização. Mestra Jokana, em uma de suas falas,
exemplifica a ideia da expropriação do conhecimento, prática comum na colonização.

Só pra você ter ideia né, no Brasil colônia os jesuítas eles eram muito
covardes. Sabe o que eles faziam? Traziam as ‘buticas’ de Portugal cheias de
remédio. A hora que os remédios acabava né aí eles começavam a aprender
com os pajés os remédios. Aí ia pra Portugal e levava todos os remédios da
mata pra Portugal, e plagiava tudo como se fosse eles que sabiam os
remédios (MESTRA JOKANA, 2020).

Mestre Cacuçu contextualizou em sua fala que esse movimento de extermínio e


aculturação de saberes, estruturado desde o tempo colonial, permitiu que dinâmicas genocidas
fossem acontecendo, aliadas à retirada de territórios, sob a justificativa dominante de ordem e
progresso. Mestra Jokana (2020) ressalta esse caráter histórico, afirmando que essa violência
epistemológica histórica traz como consequência o desaparecimento e/ou invisibilização de
muitas sabedorias de vida dos povos e comunidades tradicionais. A fala da mestra também
trouxe o aspecto excludente no qual os indígenas são tratados nos diálogos e políticas,
trazendo como exemplo a questão da inserção das terapias tradicionais nos sistemas de saúde
dos países, recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1970. Aqui no
Brasil, apenas no ano de 2006 foi elaborado um projeto de lei contendo as práticas
integrativas complementares no Sistema Único de Saúde (SUS). Sendo que, nem os
indígenas, nem demais povos tradicionais foram convidados para a construção dessa política,
reforçando ainda mais o apagamento desses grupos.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

10
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Nesse sentido, cabe refletir como a identidade dos povos originários, bem como seus
conhecimentos, sobreviveram a séculos de uma colonização que, segue em nosso imaginário,
por meio da colonialidade, até os dias atuais.

3.2 A memória biocultural como forma de resistência e anticolonialidade


As políticas integracionistas realizadas pelo governo e pelos grupos dominantes da
sociedade brasileira, ainda que violentas, enfrentaram e enfrentam uma grande resistência dos
povos indígenas, como destacou Mestre Cacuçu. Ceccato (2022) corrobora com essa ideia e
apresenta o pensamento de que certamente os povos indígenas que restaram do genocídio
colonial, somente o fizeram, resistindo e não submetendo ao jugo da escravidão e do
preconceito branco, tampouco aos modos de produção e consumo capitalistas. Portanto, ao
longo dos anos, os saberes e identidades indígenas foram sendo transmitidos a cada geração
em um movimento contínuo de resgate ancestral, como apresenta Mestre Cacuçu:

Então esse território todo foi sendo colonizado, foi sendo tirado dos povos
indígenas. Então a questão memória, a questão ancestral com o território, ela
é muito grande né. Nós somos um povo de Mata Atlântica, um povo que
conhece bem essa mata né, porque a gente chama a Mata Atlântica de Mata
Mãe, ela tem diversas formas da gente se relacionar com ela, desde árvores e
plantas pequenas e animais também (MESTRE CACUÇU, 2020).

Krenak (2019, p.9) traz essa questão para uma perspectiva atual, expressando que “se
as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências
que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que
compartilhamos”.

Aqui, em concordância com as ideias do mestre popular Antônio Bispo dos Santos
(2015, p.48), compreende-se por colonização “todos os processos etnocêntricos de invasão,
expropriação, etnocídio, subjugação e até de substituição de uma cultura pela outra,
independentemente do território físico geográfico em que essa cultura se encontra”. Logo, os
processos de resistência à colonização envolvendo a “luta em defesa dos territórios dos povos
contra colonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nesses
territórios” compreendem a perspectiva contra colonial (SANTOS, 2015, p.48).

Deste modo, as comunidades indígenas preservam sua integridade e identidade como


“um emaranhado irredutível de narrativas vivas, de saberes e sabedorias”, onde o ancestral
sobrevive na narração e acorda a criatividade na comunidade (CECCATO, 2022, p.200),
sendo a práxis anticolonial pelos povos originários feita desde o início da colonização.

Segundo Mestre Cacuçu, é relevante destacar a importância da oralidade para os povos


indígenas, porque são desses processos que são geradas novas lideranças, novas pessoas
conhecedoras da cultura, da tradição, e é por onde o conhecimento é transmitido. Assim,
através da linguagem configurada como oralidade, é possível firmar a memória como o
recurso mais importante da vida tradicional para a conservação do conhecimento e a

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

11
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
transmissão deste pelo espaço e tempo (TOLEDO e BASSOLS, 2008). É preciso lembrar que
tais estratégias de resistência são responsáveis pela perpetuação de uma infinidade de saberes,
fundamentais para a organização dos povos originários, que se estenderam além das aldeias, e
ocupam tantos outros espaços.

Célia Xakriabá (2020) reflete sobre o conflito da ocupação de outros espaços pelos
indígenas, principalmente na educação. A professora e ativista do povo Xakriabá relata os
desafios enfrentados por ela ao adentrar no território acadêmico, quando ingressou no
mestrado, sendo submetida a um tempo regido por normas acadêmicas que não compreendem
a temporalidade de seu povo. Célia ainda destaca o desafio histórico da disputa por espaços
que, além da luta pela demarcação de territórios, se fazem na esfera educativa na
‘indigenização’ do território acadêmico, transformando suas práticas educativas. Segundo a
autora:

Assim como ocorre majoritariamente na produção acadêmica, a produção


dos materiais didáticos que chegam a nossas escolas está sempre
privilegiando a teoria produzida no centro. É como se a cultura do outro
fosse mais forte. Há um desbotamento e uma desvalorização grande dos
estudantes indígenas no meio acadêmico. Alguns estudantes vão para a
universidade e não são considerados produtores, autores e interlocutores do
conhecimento neste meio. Mas é preciso haver um processo reverso. É isso
que eu chamo de indigenização. Por que não indigenizar o outro? Por que
não quilombolizar, campesinar o outro? (XAKRIABÁ, 2020, p.113)

Nesse sentido, fica evidente o reconhecimento da participação indígena no fazer


epistemológico como forma de contra colonizar os ideários sociais equivocados sobre os
povos originários, que afirmam que estes não conseguem acompanhar as tendências
tecnológicas, ou de que não são capazes de conquistar outros lugares além da aldeia, sendo
que eles já existem em todos os lugares (XAKRIABÁ, 2020).

Portanto, entende-se que não basta apenas refletir sobre essas questões para romper
com a lógica eurocêntrica mercadológica impregnada em nosso cotidiano, é necessário trazer
a interculturalidade crítica para a realização de projetos intelectuais e políticos orientados à
construção de outros modos de poder, saber e ser (WALSH, 2007 apud CANDAU, 2020).

Sendo assim, as escolas, universidades e demais espaços acadêmicos, quando aliadas à


perspectiva freiriana de uma educação como prática da liberdade, se tornam espaços
fundamentais para exercício da perspectiva anticolonial, apresentando grande potencial para
promoção da abertura ao diálogo intercultural indígena, como aborda Mestra Jokana:

E nós, eu sempre falei isso nas palestras que nós somos a resistência.
Quando nós reunimos com vocês, que é da academia né, que eu admiro
muito, vocês pára para nos escutar. O que que nós queremos de vocês? Que
vocês nos respeitem, que vocês cuidem de todos esses saberes e passem pras
crianças que nós estamos vivos e que nós não estamos mortos. (MESTRA
Jokana, 2020)

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

12
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Dessa forma, com a conscientização e politização das classes populares pode-se pensar
na construção de um projeto político educacional com potencial de superar a dominação do
capital e transformar as relações de poder e a vida do nosso país. Brandão e Fagundes (2016)
refletem sobre a perspectiva freiriana da educação popular, trazendo para esse contexto o
desejo por uma educação que possibilita relações dialéticas com as culturas, impedindo o
domínio sobre a realidade dos sujeitos, pois isso seria apenas repetir o que não se deseja da
educação tradicional. Portanto, para firmar seu caráter libertário, deve apoiar-se nos símbolos
e significados das raízes culturais populares.

Assim, é necessário a defesa de uma educação libertadora, que possibilite aos


envolvidos a discussão corajosa de sua problemática e sua inserção nela, envolvendo
realidades e diversidades culturais. Que traga a constância de um diálogo com o outro, e a
disposição a revisões contínuas sob análise crítica de seus “achados”, estabelecendo uma certa
rebeldia, no sentido mais humano da expressão (FREIRE, 1967, p. 97). Dessa forma, os
espaços educativos podem se tornar, neste contexto, um instrumento de questionamento e
transformação coerente com a prática anticolonial e a busca pelos diferentes universos
culturais existentes no contexto escolar.

3.3 A contribuição dos saberes indígenas para a formação intercultural de professores/as


de ciências

Os saberes indígenas e o ensino de ciências

Mestra Jokana traz o debate sobre o papel da política e a dificuldade de se fugir das
referências ocidentais puramente científicas na educação, onde a ausência das práticas dos
saberes tradicionais brasileiros configura uma questão de políticas públicas. Nesse contexto, a
introdução dos discursos interculturais, com inclusão dos saberes indígenas não-ocidentais, se
faz urgente nos espaços escolares. Por esses saberes não ocidentais, passam filosofias de vida,
conhecimentos medicinais, tecnológicos, incluindo esses modelos para dialogar com essa
diversidade (TUGNY e GOLÇALVES, 2020).

Essa ressignificação de conhecimentos é imprescindível para que o pressuposto


moderno colonial da ‘universalidade’ das ‘ciências’ seja desconstruído, e para que as
complexidades e ambivalências produzidas no encontro de saberes de diferentes culturas
sejam consideradas (FLEURI, 2014).Chalmers (1993) traz um ponto de vista filosófico da
ciência que não está encaixada em nenhuma categoria pré-determinada com base em critérios
de cientificidade. O autor defende a existência plural de ‘ciências’ diversas onde “cada área
do conhecimento deve ser julgada pelos próprios méritos, pela investigação de seus objetivos,
e, em que extensão é capaz de alcançá-los” (CHALMERS, 1998, p.197).

Partindo desse olhar, os saberes tradicionais podem e devem encontrar seu espaço de
validação e valorização nos espaços educativos de ensino de ciências. Aqui, não se cogita

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

13
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
desconsiderar o conhecimento científico e tomar o popular como verdadeiro, mas de
reconhecê-lo como uma dentre outras formas de conhecimento. Nesse sentido, em trabalhos
realizados em seu espaço educativo de atuação, Mestre Jokana introduz suas ‘ciências
indígenas’ no cotidiano escolar na área da saúde integral:

Eu coloco a mitologia como primeiro processo, porque nós indígenas, a


gente compreende essa questão da vida, o processo que tá acontecendo no
planeta através dos mitos. Aí eu colocaria a terapia do sonho, que é um
trabalho também que eu faço, que é muito lindo né, você contar o sonho da
noite e esse sonho você escutar com o coração e através desse sonho você
conseguir levar uma mensagem pras pessoas sabe. E as outras práticas, que é
o uso da Geoterapia, que é o uso da terra que eu trabalho muito né. Eu faço
polvilho de argila pra bebê, eu uso pra fazer arterapia pra fazer boneco de
constelação familiar com as pessoas. Aí eu trabalho também com argila no
corpo inteiro, com chás. (MESTRA JOKANA, 2020)

No contexto do ensino de ciências, os pluralistas epistemológicos, que contemplam


princípios do universalismo3 e do multiculturalismo4, defendem que os saberes científicos e os
saberes tradicionais sejam trabalhados em conjunto. A proposta é que seja ensinado aos
alunos que os diversos saberes têm a sua devida importância, e que um saber não exclui o
outro (MATOS e SANTOS, 2012). Magalhães (2020) sugere que um bom ponto de partida
para transformarmos nossas práticas discursivas cotidianas e docentes, é a descolonização dos
nossos vocabulários, como, por exemplo, o uso de ‘povos indígenas’ ou ‘originários’ ao invés
de ‘índios’. A autora também aponta outros caminhos para tornar o diálogo
interculturalidade-ciência possível na escola.

É preciso valorizar e trazer para os nossos contextos educacionais, os saberes


produzidos pelas parteiras, xamãs, curandeiros, anciões e pajés. Muitas vezes
nos ambientes escolares não há a valorização dos saberes ditos populares.
Em relação aos povos originários, é necessário trazer a valorização das
tecnologias, formas de educação, artes, saberes, conhecimentos de cura e
plantas medicinais, as formas de plantio e manejo florestal, construção de
habitações entre outros. (MAGALHÃES, 2020, p.7)

Tais ações fazem parte da pedagogia da lente do olhar do povo pataxó em que “a
concepção de educação não é única, cada povo tem o seu modelo próprio de educar, sem
deixar de respeitar as várias concepções de educação que tem no mundo” (PATAXÓ, 2009,
p.20). Assim, em uma de suas falas na disciplina Encontro de Saberes, Mestre Cacuçu trouxe
um dos materiais produzidos em sua aldeia que, segundo ele, faz parte de um dos muitos
elementos importantes para se fazer uma educação descolonizadora.

3
O Universalismo é uma corrente de pensamento que defende a superioridade do saber científico, da Ciência
ocidental moderna, sobre as outras formas de conhecimento, não considerando os saberes técnicos tradicionais
como outras formas de conhecimento válidas. (MATOS e SANTOS, 2012, p.5).
4
Uma das perspectivas do multiculturalismo trata-o como um projeto político-cultural, de um modo de se
trabalhar as relações culturais numa determinada sociedade, de conceber políticas públicas na perspectiva da
radicalização da democracia, assim como de construir estratégias pedagógicas nesta perspectiva (MOREIRA E
CANDAU, 2008, p. 20).

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

14
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Na aldeia Muã Mimatxi, os chamados ‘tehêys’ são instrumentos de pescaria que
selecionam os peixes conforme a demanda necessária para alimentação. Como relata
Werymehe Braz (2019), da etnia Pataxoop, no contexto escolar, os ‘tehêys’ se voltam para a
‘pesca do conhecimento’, transformados em instrumentos que têm como base o ensino com
imagens desenhadas, onde “as crianças aprendem a ler com as imagens e conhecer os valores
da vida e da natureza que fazem parte e fortalecem a nossa cultura, o nosso território, a nossa
saúde e a vida do nosso povo de Muã Mimatxi” (BRAZ, 2019, p.7).

Figura 1: ‘Tehêy’ utilizado para educação de crianças do Povo Pataxó da Aldeia Muã
Mimatxi.

Fonte: PATAXÓ et al., 2009.

Essas pedagogias ancestrais indígenas reafirmam o território e a cultura no processo


educativo por meio do diálogo com o conhecimento científico. Mestre Cacuçu enfatiza “é
onde os professores que são interculturais né, o professor de matemática, ou de ciência, ou de
outro tipo de disciplina, ele vai pescando dentro dessas imagens elementos e temas e valores,
para fazer seus planos de aula para aplicar pras crianças”.
Ribeiro et al. (2018) apresentam outra estratégia, realizada na Reserva Indígena Pataxó
da Jaqueira, na Bahia, que favorece a interculturalidade e está aliada às atividades realizadas
em ambientes externos à sala de aula. A análise realizada pelos pesquisadores partiu das
vivências de estudantes de nível médio ao realizarem uma trilha educativa na Reserva da
Jaqueira, parte do território da aldeia. Segundo os autores, além de vivenciarem elementos da
educação socioambiental, o roteiro educacional contou com palestras informativas, além de
pontos onde foram trabalhados conhecimentos indígenas sobre as espécies de plantas e

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

15
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
animais encontrados na reserva, bem como suas características biológicas e importância
cultural para o povo Pataxó.

Os autores destacam, portanto, a importância da Reserva, como atrativo pedagógico


voltado à valorização da diversidade biocultural, para despertar o interesse dos estudantes pela
cultura e conhecimentos indígenas e como potencial de abertura para a busca de uma
formação diferenciada para os estudantes da região. Silva (2015 apud PAULA et al. 2022,
p.628) reforça esse potencial educativo dizendo que “as visitas pedagógicas de profissionais
da educação e estudantes às aldeias, e também, de indígenas às escolas são ótimas
oportunidades de aprendizados sobre os povos indígenas”.

Ademais, tais pedagogias e os espaços que possibilitam o diálogo efetivo entre os


saberes tradicionais e científicos podem contribuir com a discussão da temática indígena e
relações étnico-raciais que compõem os currículos das ciências na educação básica, bem
como o currículo formador de professores.

Educação intercultural, escola e universidade

Como previamente mencionado neste trabalho, um passo importante para se alcançar a


educação intercultural crítica é revelar as formas de colonialidade presentes nos contextos
sociais e escolares. É necessário reconhecê-las e nomeá-las nos textos didáticos, nos critérios
para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na autoimagem dos povos, nas
aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna
(CANDAU, 2020, apud MALDONADO-TORRES, 2007). Porém, é preciso aceitar que
nenhuma dessas iniciativas é tarefa fácil no processo educativo existente.
No Encontro de Saberes, Mestre Cacuçu revela a dificuldade de colocar essa pauta em
diálogo diante do MEC (Ministério da Educação) “porque a gente vê que o sistema de
educação ele é engessado e padronizado” e na implementação de políticas públicas. Além
disso, o mestre destaca que, muitas vezes, esse movimento vem numa crescente e o MEC não
dá oportunidade de mostrar e/ou angariar recursos para sua realização.
A história dos povos indígenas nos mostra que, para eles, a escola funcionou com base
em ações integracionistas e processos de aculturação. Contudo, ainda que submetidos a esses
dispositivos de opressão, as comunidades indígenas recorrem a esses mesmos mecanismos
para reafirmar suas identidades, utilizando as armas do opressor para resistir à opressão
(OLIVEIRA, 2020). No entanto, quando se pensa em educação indígena é importante trazer o
destaque para a educação escolar territorializada, como descrita pelo Mestre Cacuçu:

A educação que a gente pensa é uma educação que ajuda a gente a


permanecer sendo indígena, permanecer com vínculo com a terra, com a
floresta, com os animais. E nunca perdendo esse vínculo com a
ancestralidade com a questão, quem é nossos parentes, de como surgiu o
fogo, de como a gente surgiu no mundo. Tudo isso em forma de ciência.
(MESTRE CACUÇU, 2020)

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

16
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Aqui, é importante diferenciar as terminologias da educação territorializada,
vivenciada pelos indígenas, da educação intercultural, que tem em vista incorporar as
vivências e saberes desses e de outros indivíduos no processo educativo. Célia Xakriabá
(2020) ressalta que, apesar das diferenças, ambas concepções educativas devem ser pensadas
em conjunto:

Nossos sábios indígenas falam que a escola tem que ser interessante, que a
escola do contexto não indígena tem muito o que aprender com as nossas,
porque nós sabemos fazer com que esse espaço seja interessante para os
alunos. A essa matriz formadora principiada no território atribuo o mote para
uma educação territorializada, que apresenta como ponto de partida e de
chegada a potência da epistemologia nativa, presente na memória e na
transmissão oral e ressonante em melodia na escrita xakriabá. (XAKRIABÁ,
2020, p.114)

Isto é, a escola, mesmo com um sistema implantado por não indígenas, tem o dever de
transmitir aos alunos os saberes da comunidade, ou seja, ‘com um pé na sala de aula e o outro
na aldeia’. Assim, manifesta-se a pedagogia educacional utilizada pelo Povo Pataxó da Aldeia
Muã Mimatxi que influenciou esta pesquisa e inspirou o título deste trabalho. A pedagogia
citada tem como base dois eixos: ‘com o pé no chão da aldeia’ e ‘com o pé no chão do
mundo’ e, segundo a comunidade, “com esses dois eixos, dialogamos com o conhecimento
tradicional do nosso povo, com o conhecimento das disciplinas acadêmicas e as questões
contemporâneas” (PATAXÓ et al., 2009, p.23).

Já na educação escolar regular e na formação de professores, a vivência intercultural


aportada pelas práticas educativas e cosmovisões das diversas etnias indígenas podem ajudar
na visibilidade dessas culturas, aportar muito conhecimento e conexão com a natureza, bem
como contribuir para a construção da verdadeira identidade brasileira.

Entretanto, em ambas as realidades educativas é necessário reconhecer que o


protagonismo desse diálogo intercultural indígena pertence à essas pessoas. Assim, para trazer
o conhecimento tradicional para a formação de professores e alunos, aqueles que buscam ser
educadores/as interculturais precisam identificar seu lugar nesse processo e fazer com que o
espaço aberto para essa discussão tenha as raízes nos verdadeiros construtores do
conhecimento. Mestra Jokana deixa claro a necessidade da retomada indígena na escola e nos
diversos lugares.

Na biblioteca que fica aí nas universidade e fala dos indígenas como se


estivessem só na mata. Nós estamos em todos os lugares. Nós estamos na
mata, nós estamos na universidade, nós estamos na rua, nós estamos na
política, nós estamos em todos os lugares. E fale de nós, convida a gente pra
falar, não fale por nós. A hora que vocês forem dar uma aula, convida
alguém, convida um indígena pra falar, não fala por nós. Vocês têm que
convidar a gente pra falar, porque nós estamos vivos e isso incomoda muito
[...] Ô gente convida as crianças pra ir na aldeia, convida as pessoas pra ir na
aldeia pra vocês conhecerem os saberes que nós temos. (MESTRA
JOKANA, 2020)

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

17
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Em material construído pensando no Encontro de Saberes na universidade, Tugny e
Gonçalves (2020, p.21) deixam registrado que, historicamente, “as universidades brasileiras
contribuíram para intensificar a desqualificação dos saberes indígenas e afro-brasileiros, ao
invés de integrá-los desde a sua fundação”. Mestra Jokana concorda com essa ideia trazendo a
própria experiência pessoal em sua fala “a gente começa a perceber que nós indígenas e o
povo todo, nosso povo africano, sempre trouxe [...] nesse processo da oralidade, muitos
saberes, e é esses saberes que eu comecei a perceber que não tá na universidade”. Ela reforça,
ainda, que se deparar com esse problema de apagamento e inversão do conhecimento
tradicional ao ingressar em uma universidade “foi um momento muito difícil, sentar numa
cadeira e ouvir tanta mentira, no sentido indígena que eu tô falando sabe”.

Diante disso, SESC apud Kayapó (2019, p. 77) discute sobre a necessidade de
reformulações que devem ser realizadas nas estruturas curriculares dos cursos de licenciatura
para que a Lei n. 11.645/08 tenha sucesso. Assim, a fim de contemplar a história e a cultura
indígena, outras ações diretas podem ser tomadas, como (a) a criação de disciplinas
específicas; (b) a organização transversal da temática nos conteúdos curriculares; (c) cursos
de formação continuada de professores e (d) produção de material didático5 específico sobre a
temática (SESC apud KAYAPÓ, 2019, p. 77). Nesse contexto, Magalhães (2020, p.12)
adiciona outra prática à essas reformulações, considerando que “se os currículos trouxessem
autoria indígena nos seus programas curriculares, poderia ser uma forma potente de romper
com as pedagogias das ausências em busca de perspectivas pluriversais e multiétnicas”.
Mestra Jokana reforçou essa ideia em uma de suas falas durante o Encontro de Saberes:

E outra coisa interessante é vocês pesquisarem as literaturas escritas por nós


indígenas. Tem alguns né, eu poderia numerar muitos aqui, mas eu vou
indicar o Kanátyo Pataxó, que eu tenho um livro muito legal sobre a
pedagogia da terra. Eu gosto muito do livro dele, me inspira muito. E ele fala
de um processo pedagógico, um pé na aldeia né, um pé no mundo. É um
trabalho que eu gosto muito. (MESTRA JOKANA, 2020)

A partir disso, fica o incentivo para que as/os educadoras/es escolham trilhar o
caminho da docência que abraça o compromisso político e social de sua profissão. Um
caminho que escolhe dialogar as diversas histórias indígenas, contadas pelos próprios
detentores desses saberes e com base em suas vivências. Um caminho que posicione as
atividades docentes na educação básica e em seu próprio processo de formação, sempre dando
aos saberes indígenas seu devido respeito e merecido reconhecimento na formação do nosso
povo e de nossa diversidade biocultural.

4 Considerações finais

Logo, para que as sabedorias dos povos originários sejam integradas às ciências e,
consequentemente, ensinadas aos nossos alunos, é preciso abrir espaço para essas
epistemologias em nossas formações.

5
Aqui fica o convite para o acesso a diferentes materiais didáticos audiovisuais inclusivos voltados para a
educação intercultural produzidos coletivamente no Acervo Biocultural da UFV:
https://www.youtube.com/@acervobioculturaldogrupoen4842

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

18
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
Para tanto, a partir da disciplina Encontro de Saberes e dos diálogos no Acervo
Biocultural foi levantada a necessidade de se trazer o conhecimento e as pesquisas produzidas
pelos povos indígenas para a construção de uma docência que assume uma postura
pedagógica crítica e reflexiva. Não só isso, esta pesquisa também verificou ser fundamental
que, na busca por uma educação intercultural, os verdadeiros produtores do conhecimento
sejam convidados a assumir o protagonismo das ações educativas ou dos espaços de diálogo
pretendidos, seja por rodas de conversas, literaturas, vídeos ou outros materiais.

Ressalta-se aqui a importância do engajamento de pessoas não-indígenas com as


causas reivindicadas pelos povos originários, a favor da ocupação cultural desses grupos nas
diferentes esferas da vida social.

Diante disso, a partir da análise das falas dos educadores indígenas, verificou-se neste
trabalho que a presença de mestras e mestres dos saberes tradicionais contribui imensamente
na pavimentação do caminho para um diálogo intercultural no contexto universitário e na
formação de educadoras/es. Construindo, assim, uma dinâmica necessária para o
desenvolvimento de currículos anticoloniais a favor da interculturalidade crítica.

Dessa forma, a universidade e os demais espaços educativos podem reparar anos de


apagamento cultural, além de entenderem o que há de positivo na incorporação dos saberes
indígenas para a ampliação dos horizontes do conhecimento acadêmico e o fortalecimento de
um fazer pedagógico anticolonial.

5 Referências

ACCORSSI, Aline; CLASEN, Julia; VEIGA JÚNIOR, Álvaro. Círculos Epistemológicos:


reflexões sobre uma abordagem de pesquisa freiriana. Dialogia, São Paulo, n. 39, p. 1-14,
e20418, set./dez. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.5585/39.2021.20418.

BIMBATI, Ana Paula; NEVES, Rafael; BERNARDO, Jéssica; BUSINARI, Maurício. Enem
2022: redação é sobre desafios para valorização de povos tradicionais. 2022. Disponível em:
https://educacao.uol.com.br/noticias/2022/11/13/tema-redacao-enem-2022.htm. Acesso em:
13 nov. 2022.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues; FAGUNDES, Maurício Cesar Vitória. Cultura popular e


educação popular: expressões da proposta freireana para um sistema de educação. Educar
em Revista, [S.L.], n. 61, p. 89-106, set. 2016. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.47204.

BRASIL. LDB - Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e


Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Brasília, DF: Presidência da República,


2008.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

19
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais


Anísio Teixeira (INEP). Provas e Gabaritos, 2022. Disponível em:
https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enem/prova
s-e-gabaritos. Acesso em: 23 nov. 2022.

BRAZ, Werymehe Alves. Tehey de Pescaria do Conhecimento. 2019. 37 f. Curso de


Licenciatura em Formação Intercultural Para Educadores Indígenas, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.

CANDAU, Vera Maria. Diferenças, educação intercultural e decolonialidade: temas


insurgentes. Revista Espaço do Currículo, João Pessoa, v. 13, n. Especial, p. 678-686, dez.
2020.

CECCATO, Dulcelene. Decolonizar a educação desde o tópos da terra e da coletividade


nas filosofias de Rodolfo Kusch e Ailton Krenak. Aula (Salamanca) , v. 28, p. 189-202,
2022.

CHADE, Jamil. Carta da ONU sobe o tom e denuncia crimes de Bolsonaro contra
indígenas. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/03/23/onu-denuncia-ataques-de-bolsonar
o-aos-indigenas-e-cita-violacao-de-tratados.htm. Acesso em: 10 nov. 2022.

CHALMERS, Alan Francis. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.

FLEURI, Reinaldo Matias. Interculturalidade, identidade e decolonialidade: desafios


políticos e educacionais. Série-Estudos-Periódico do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UCDB, n. 37, p. 89-106, 2014.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários a prática educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1974.

GIMENES, Miriam. Entrevistas: Márcia Kambeba. 2022. Disponível em:


https://agendabonifacio.com.br/entrevistas/tenho-certeza-de-que-quem-assumir-o-ministerio-d
os-povos-originarios-tem-uma-grande-missao-e-apoio-de-muitos-outros-indigenas-e-povos-p
orque-ninguem-esta-so-afirma-a-lider-indigena-pesquisadora/. Acesso em: 25 nov. 2022.

GÜNTHER, Hartmut. Pesquisa Qualitativa Versus Pesquisa Quantitativa: esta é a questão?


Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 22, n. 2, p. 201-210, maio/ago. 2006. DOI:
https://doi.org/10.1590/S0102-37722006000200010

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

20
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
KAYAPÓ, Edson; BRITO, Tamires. A pluralidade étnico-cultural indígena no Brasil: o
que a escola tem a ver com isso? Dossiê Histórias Indígenas, Caicó, v. 15, n. 35, p. 38-68,
jun./dez. 2014.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.

MAGALHÃES, Helisa Vieira. Saberes indígenas e formação de professores: Caminhos


para a decolonialidade e interculturalidade. In: II SIELI e XX Encontro de Letras
Universidade Estadual de Goias, 2022. Saberes e fazeres linguísticos, literários e
interculturais em tempos digitais. Campus Cora Coralina: Universidade Estadual de Goiás,
2022. v. 1. p. 1-15.

MARIETTO, Marcio Luiz. Observação Participante e Não Participante: contextualização


teórica e sugestão de roteiro para aplicação dos métodos. Revista Ibero-Americana de
Estratégia, v. 17, n. 4, p. 5-18, jul. 2018. DOI: https://doi.org/10.5585/ ijsm.v17i4.2717

MATOS, Elaine Cristine do Amarante; SANTOS, Luzia Cristina de Melo . Considerações


sobre as relações entre Ciência e Cultura no ensino de Biologia. In: VI Colóquio
Internacional 'Educação e Contemporaneidade', 2012, São Cristóvão - SE. Anais do VI
Colóquio Internacional "Educação e Contemporaneidade", 2012.

MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo: diferenças


culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008.

NASCIBEM, Fábio Gabriel; VIVEIRO, Alessandra Aparecida. Para além do conhecimento


científico: a importância dos saberes populares para o ensino de Ciências. Interacções, v. 11,
n. 39, p. 285-295, 2015. https://doi.org/10.25755/int.8738.

OLIVEIRA, Beatriz de. Educação intercultural indígena e formação de professores: uma


busca por autonomia. Cadernos de Linguística, v. 1, n. 2, p. 01-19, out. 2020.

PATAXÓ, Kanatyo et al. Diálogos dos saberes: pedagogia da lente do nosso olhar e as mãos
da natureza. Belo Horizonte: Faculdade de Educação/UFMG, 2009. Texto produzido para o
Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas.

PAULA, Ana Luísa Oliveira de; SOUSA, Imelda Martins de; RIBEIRO, Alice Melo;
SOUSA, Bruce Lorran Carvalho Martins de; SILVA, Joelma Rodrigues da. Temática
indígena no ensino de Ciências da Natureza e a aplicação da Lei nº 11.645/08. Revista de
Ensino de Biologia da Sbenbio, [S.L.], p. 612-633, 28 nov. 2022. Revista de Ensino de
Biologia. http://dx.doi.org/10.46667/renbio.v15inesp2.734.

RIBEIRO, Deisiane Barreto; SOUSA, Ana Cristina de; CRUZ, Thyane Viana da; LEITE,
André Búrigo; SANTOS, Vitor Vulga dos. A trilha da Reserva Pataxó da Jaqueira como
instrumento de educação socioambiental para estudantes de nível médio. Educação
Ambiental em ação, Novo Hamburgo, v. 17, n. 65, 2018.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

21
REnBio Associação Brasileira de Ensino de Biologia – SBEnBio
DOI:
SÁ-SILVA, Jackson Ronie; ALMEIDA, Cristóvão Domingos de; GUINDANI, Joel Felipe.
Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História e
Ciências Sociais, São Leopoldo, RS, Ano 1, n.1, Jul., 2009.

SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significações. Brasília:


INCTI/UnB, 2015.

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO/SESC (org.). Educação em Rede Vol. 7: culturas


indígenas, diversidade e educação. Rio de Janeiro: Sesc Departamento Nacional, 2019. 162 p.

SILVA, Alice Cristina de Sampaio e. Saberes populares no ensino da vida e para a vida na
formação de professoras(es):: contribuições da educação popular para o (re)encantamento
de uma educadora. 2022. 124 f. TCC (Graduação) - Curso de Bacharelado em Ciências
Biológicas, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2022.

TAVARES, Elaine. O Ministério dos Povos Originários. 2022. Disponível em:


https://iela.ufsc.br/o-ministerio-dos-povos-originarios/. Acesso em: 17 nov. 2022.

TOLEDO, Victor Manuel.; BARRERA-BASSOLS, Narciso. A Memória Biocultural:


importância ecológica das sabedorias tradicionais. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

TUGNY, Rosângela Pereira de; GONÇALVES, Gustavo (org.). Universidade popular e


encontro de saberes. Salvador: Edufba, 2020. 652 p.

XAKRIABÁ, Célia. Amansar o giz. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, nº 14, pág. 110-117,
2020.

ZANK, Sofia; HANAZAKI, Natalia; PERONI, Nivaldo; LEVIS, Carolina (org.).


Diversidade Biocultural na escola: reflexões e práticas para professoras e professores. Porto
Alegre: Sbee, 2021. 193 p.

REnBio - Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio - ISSN: 2763-8898 - vol. xx, n. x, p. xx-xx, xxxx

22
6 Anexos
A. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

23
24
25
26

Você também pode gostar