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DEMOLIÇÃO

Série “Sonda” de Ventura Profana.


Fonte - https://ims.com.br/convida/ventura-profana/
Essa performance poderá ser apresentada em uma ruína, um terreno baldio ou um canteiro
de obras da cidade em que for encenada. No centro desse espaço há uma área fortemente
iluminada, delimitada por tijolos. A plateia se localiza em torno dos tijolos, formando uma
arena.

Participantes dessa peça: Narrador, Dylines, Hezouwe e Júnia.

Prólogo

No centro do espaço cênico vemos um gravador antigo em cima de um monte de tijolos, dele
podemos ouvir uma narração da última fala da peça em kabiê, seguida por uma versão em
criolle e castelhano.

Cena I

Quando o público entrar e a gravação terminar as luzes se apagam.

Coro com todes es participantes - O fim está próximo. O fim. Disseram e disseram e disseram
e eu não acredito. Disseram na virada do primeiro milênio, como eu pude conferir após uma
rápida busca no Google, onde a cristandade achou que Jesus voltaria e tudo acabaria.
Disseram no ano da besta em 1666, quando a peste matou um quinto da Inglaterra e um
incêndio destruiu 80% da cidade de Londres. Disseram que a cauda do cometa Halley era de
cianeto e iria nos sufocar. Disseram que uma galinha havia botado ovos com a frase “Cristo
está voltando” em Leed. Disseram que o YK2 bug iria destruir não sei o que. Disseram que o
calendário Maia iria acabar com tudo. Disseram que uma cobra gigantesca debaixo da
amazônia iria destruir o mundo. Disseram que o congresso nacional estava envenando a
comida. Disseram que a pandemia. Disseram que o fim do capitalismo. Disseram que a
camada de ozônio, que o Relógio do Apocalipse, que as armas nucleares, que as mudanças
climáticas, que a vacina, que o plástico, que a vaca, que o, que a, que o, quea, queo, quea,
queo, quea, queo… Eu não acredito.

Ouve-se o som de um avião voando ao longe. Esse som se repete. Projeta-se no espaço em
letras gigantes que vão passando a frase “VOCÊ ESTÁ VIVO?” e em seguida o endereço do
local da apresentação. O som do avião termina.
Ainda no escuro, alguém corre de um lado para o outro da arena, parece carregar uma
sacola grande e pesada.

Narrador - Quem está aí?

Silêncio. De súbito as luzes se acendem. Ouve-se alguém caminhando por detrás de uma das
arquibancadas, Sobrevivente 1 está com uma arma na mão, apontando-a para o narrador
nervosamente. Este recua.

Narrador - Calma, calma. Não quero o dinheiro, pode ficar. Dinheiro é o que não falta nessa
cidade.

A sobrevivente 1 treme com a arma.

Narrador - É que você é a primeira pessoa que eu encontro… E eu vi a mensagem no avião,


era esse endereço, não era?

A Sobrevivente 1 continua impassível.

Narrador - Eu juro que não sei de nada, não sei. Estou completamente perdido.

Sobrevivente 1 analisa o narrador, abaixa a arma.

Sobrevivente 1 - Sei tanto quanto você, também não encontrei ninguém desde que aconteceu
aquela coisa.

Narrador - Você viu algo?

Sobrevivente 1 - Só vi a mensagem no avião. Estava dormindo quando aconteceu.

Narrador - Eu não entendo. Eu vi uma luz, parecia um raio. Estava voltando de viagem. Parei
para mijar no acostamento. De repente olho e vejo um clarão no horizonte. Mas nada pareceu
mudar. Só percebi quando peguei a rodovia e os carros estavam parados. Viu alguém?
Sobrevivente 1 - Ninguém.

Narrador - Estamos vivos?

Relato I - Dylines

(Dylines se destaca e os outros participantes formam um caminho com os tijolos, por onde
Dylines caminha lentamente.)

Dylines - Para cruzarlo o para no cruzarlo


Ahí está el puente

En la otra orilla alguien me espera

Con un durazno y un país

Traigo conmigo afrendas desusadas

Entre ellas un paraguas de ombligo de madera

Un libro con los pánicos en blanco

Y una guitarra que no sé abrazar

Vengo con las mejillas del insomnio

Los pañuelos del mar y de las pases

Pas tímidas pancartas del dolor

Las liturgias del beso y de la sombra

Nunca he traído tantas cosas

Nunca he venido con tan poco

Ahí está el puente

Para cruzarlo o para no cruzarlo

Yo lo voy a cruzar
Sin prevenciones

En la otra orilla alguien me espera


Con um durazno y un país.1

Dylines (em espanhol, português ou portunhol) - Meu nome é Dylines Del Carmen Guanipa,
sou venezuelana e saí na rua porque não consigo mais comprar arroz. Sim, arroz! A comida
da Venezuela e do Brasil tem muita coisa em comum, sabe? Tipo, a gente come arroz e feijão
preto todo dia lá. Só não tem farofa, que eu não gosto muito não, muito seco. Um dos
motivos que eu saí do meu país foi o arroz, ou a falta dele. Eu trabalhava o dia todo, eu era
engenheira e meu salário não dava nem para cesta básica. Daí comecei a trabalhar de noite
como taxista, saia do trabalho na empresa e ficava rodando a cidade a noite toda. Mesmo
assim, com a desvalorização da moeda, o dólar, não dava pra cesta básica. E eu fui
emagrecendo, perdendo peso porque não tinha comida para toda a família e eu trabalhava,
trabalhava, trabalhava, até que um dia eu me olhei no espelho e eu levei um susto, eu não me
reconheci. E eu pensei “ou eu faço alguma coisa ou eu vou morrer”. Qual o caminho que eu
sigo daí?

Um mapa da América Latina é projetado no chão. Dylines posiciona os tijolos em seu trajeto
entre Barcelona na Venezuela e São Paulo. Na parede é projetado
“AmericalatinalatinaamericA”

Dylines - Nos preparamos cinco meses, eu e meu irmão, para atravessar o nosso país até o
limite com o Brasil, em Pacaraima. Queríamos ir ao Chile, mas o Brasil era o país onde era
mais fácil sermos legalizados. Logo na fronteira conseguimos arrumar nossos documentos,
graças à Acnur, agência da ONU para refugiados, como nós. Pegamos um ônibus até Rio
Branco e de lá outro ônibus até Manaus, depois Brasília e, por fim, São Paulo. Demorou dias
até chegar aqui, eu passei o tempo todo segurando as lágrimas. Eu sabia que tinha
responsabilidades, que dependiam de mim lá em casa, então me segurei. Quando chegamos
aqui, uma senhora que conhecemos no ônibus nos ofereceu um quarto e ficamos quatro dias
lá, procurando emprego e casa. Na mala trazíamos alguma roupa, escova de dente, um sapato
e 500 dólares que juntamos com as economias da família toda. Um dia voltamos e não
encontramos nosso dinheiro. A gente perguntou para a mulher sobre o dinheiro e ela
1 Poema “El Puente” de Mario Benedetti (1986). Disponível em: https://www.poeticous.com/mario-
benedetti/el-puente?locale=es
respondeu que éramos uns ingratos. Tivemos que sair de lá então, ir para um albergue.
Lembro de no caminho sentir muito medo, não sabíamos se estaríamos seguros lá, se haveria
espaço para a gente, seríamos roubados novamente e eu tinha apenas 40 reais na minha bolsa,
mais nada. Mas foi a melhor coisa que nos aconteceu, lá tivemos ajuda de uma ONG,
conseguimos trabalho, comecei a estudar português, achamos um quartinho para alugar na
zona leste e nos mudamos.Tudo isso em menos de um mês! Só quando me mudei para minha
casa foi que chorei. Um choro guardado que saiu sem nenhum motivo claro. Foi o desespero
que guardei até chegar no meu destino final. Foi como se tudo tivesse passado. Um recomeço
e eu me senti muito bem quando novas oportunidades foram aparecendo para mim e eu
consegui trazer minha família para cá, para morar comigo. Meu papá e minha mãe, minha
irmã, meu sobrinho.Uns vieram mais tranquilos porque eu já conhecia o caminho, outros nem
tanto com o fechamento da fronteira por conta da pandemia. Eu fui a ponte que ligou eles até
esse novo país, onde eu esperava eles com um sorriso e um guaraná.
Mês passado eu fui no mercado com minha mãe, eu estava digitando uma mensagem no
celular e quando fui pegar mais arroz para casa eu levei um susto.

Dylines tenta pegar um tijolo, mas os outros participantes a impedem, pegando os tijolos
antes que ela consiga alcançá-los.

Dylines - Foi exatamente como da outra vez, o preço do arroz subiu e falaram para a gente
comer batatas, trocar por macarrão, depois por farinha de milho e no final já não tinha mais
nada na prateleira. Quando eu cheguei aqui eu ouvi sobre o medo que o brasileiro tinha de
virar o meu país, eu sei que o meu país é muito mais do que isso que dizem, eu conheço, eu
sei. Um amigo me falou que antes tinham medo que o Brasil virasse Cuba e antes ainda que o
Brasil virasse o Haiti. Mas um país é o que está nos jornais? Nos museus? É apenas o
momento presente que estamos? São as memórias que eu trago dele? Eu carrego a Venezuela
comigo? Eu não sei. Mas quando olhei a etiqueta do arroz, eu senti um calafrio, como se um
vento estranho entrasse pela porta e me assombrasse novamente. Eu não sei...

Cena II

Narrador (para a plateia) - Não há mais ninguém aqui. Minto, agora parece que somos dois.
Os outros bilhões desapareceram como se virassem fumaça e o que restou foi apenas suas
roupas pelo chão. Relógios, vestidos, sapatos estão por todo o lugar, milhares de pequenos
túmulos de pertences. Os animais também parecem ter ido, nem uma mosca nesse calor, nem
um cachorro fuçando o lixo. A eletricidade ainda existe, as geladeiras ainda funcionam,
alguns carros ainda andam, mas eu pergunto: até quando?

Narrador e sobrevivente 1 estão sentados esperando alguém aparecer.

Narrador - Você não é daqui?

Sobrevivente 1 - Não, vim para cá faz só dois anos.

Narrador - Já fala bem português.

Sobrevivente 1 - Brigada. Minha família estava a caminho quando todos sumiram.

Narrador - Como assim?

Sobrevivente 1- Eles estavam na fronteira, vindo para cá no meio da pandemia, minha mãe,
meu pai e meu irmão. Mas não consigo falar com eles.

Narrador - Eles vieram de avião?

Sobrevivente 1 - Eles vinham pela fronteira, já falei. Tomaram um coiote.

Silêncio.

Narrador - Também não sei onde está minha família…

Ouvem um barulho atrás da arquibancada e se levantam.

Sobrevivente 2 - Olá, tem alguém aí?

Sobrevivente 1 e Narrador - Aqui! Aqui!

Sobrevivente 2 corre até os dois e os abraça rindo.


Sobrevivente 2 - Eu achei que eu estava sozinha aqui. Que não ia ter mais ninguém. Daí vi lá
o avião e fiquei achando que era uma visão minha, como se eu tivesse sonhado. Falava para
mim mesmo “Não, não foi miragem, você viu! Você viu!”. Mas só tem vocês aqui? O que
aconteceu? Onde estão os outros?

Sobrevivente 1 - Nós não sabemos.

Narrador - Nós vimos o avião e viemos para cá.

Sobrevivente 1 - Você também é imigrante?

Sobrevivente 2 - Sim, mas eu moro já faz tempo aqui.

Narrador - Quem estava no avião? Eu ainda não consigo entender isso.

Sobrevivente 2 - Como assim? Vocês não sabem?

Sobrevivente 1 - Não, só viemos para cá depois de ver o avião. Estamos perdidos.

Sobrevivente 2 - Eu não entendo, eu não entendo… (Abraça a sobrevivente 1 e chora)

Relato II - Júnia

A luz se apaga, surge lentamente uma projeção da pintura “Bitwa in San Domingo” (1845),
de January Suchodolski, que retrata a luta de libertação dos haitianos em 1808. Toca-se a
música “Soleil” de Emerante de Pradines. A história contada por Júnia a seguir é projetada
em português.

Júnia (No escuro ainda, falando em créole) - Havia uma menina nas montanhas haitianas que
se chamava Arélia. Ela era muito maltratada por todos só por ser bonita, do jeito dela. Arélia
caminhava todos os dias para pegar água no rio e todos os dias era observada por um homem
meio peixe meio gente que vivia nas águas do rio. Um dia o homem-peixe apareceu à ela e os
dois conversaram muito, tornando-se amigos. Um verdadeiro amigo. Entretanto, a família de
Arélia descobriu sua amizade e, com medo que ela se apaixonasse por alguém diferente,
mataram o homem-peixe. Arélia ficou tão triste, mas tão triste que gritou muito alto sua dor.
Assim que gritou, o chão em volta dela começou a tremer, se abriu de repente e ela foi
engolida pelas entranhas da terra. E dizem que ela reapareceu em outras terras muito distantes
e lá viveu longe de seu passado.

Projeção com vídeo do terremoto ocorrido em 2010 no Haiti. As luzes se acendem.

Júnia - O meu nome é Júnia, sou do Haiti e eu saí pra rua... Não sei porquê. Ainda não sei,
mas eu estou procurando saber.

Pega os tijolos e coloca-os aleatoriamente no espaço.

A minha família toda é viajante, meu pai mora nos Estados Unidos, minha vó já morou na
Europa, nas Bahamas e agora aqui comigo no Brasil. Eu vim do Haiti pro Brasil quando tinha
14 anos. Já tem oito anos. A primeira vez que eu ouvi falar do Brasil foi em 2004, quando
teve um jogo de futebol com Ronaldinho e tudo esses jogador famoso. Eu nem gosto de
futebol, mas foi um evento muito grande, todo mundo andava com camisa da seleção na rua e
todo mundo falava disso, só falavam disso. Só que eu era criança, né? Então eu imaginava
várias coisas do Brasil, tipo, que lá no Brasil as pessoas falava tudo alemão. Eu não sei o
porquê, mas eu achava que todo mundo falava alemão aqui. E eu falava para os meus amigos
que eu ia pro Brasil falar alemão e tudo isso. Mas eu não imaginava que eu realmente fosse
morar no Brasil, até que depois do terremoto a gente perdeu tudo e minha mãe resolveu se
mudar para cá.

Os participantes colocam tijolos em uma linha no meio do palco e fazem uma fila, como se
estivessem entrando em um avião.

Júnia - Eu trouxe na minha mala uma bandeira do Haiti, uma bíblia, doces haitianos, tipo uma
cocada bem gostosa, e algumas ervas. No avião eu fiquei imaginando várias coisas, como
seriam os brasileiros? Eu já sabia que eles falavam português, mas eu nunca tinha ouvido
alguém falando português. Era parecido com o francês? Eu fiquei imaginando na minha
cabeça o que ia acontecer. Quando eu cheguei no aeroporto, eu fiquei encantada, porque o
moço que viu meu passaporte parecia um anjinho branco e ele me perguntou algumas coisas
e eu fiquei meio sem saber o que dizer porque era tudo muito diferente. Pra mim todo mundo
parecia anjo. Até que eu comecei a estudar aqui, daí eu vi como esses anjos eram de verdade.
Quando eu imaginava como ia ser aqui eu nunca imaginei que ia ser tão difícil no início,
porque as pessoas da minha escola eram muito más comigo, falavam coisas ruins pra mim,
que meu país não tinha nada, que a gente comia ração e que nós era um monte de macaco.
Essas coisas me deixavam muito mal. Como eles podiam imaginar coisas tão ruins de mim?
E eu não falava português ainda, não sabia como me defender. Até que minha mãe veio para
conversar com a diretora e eu decidi que ia estudar de noite em outra escola. À noite eu
também tive problemas, mas graças a deus eu conheci um amigo que me defendia muito
também. Eu não imaginava conhecer alguém assim, não sei se é porque ele era gay e também
tinha que aguentar aqueles meninos que ficavam mexendo com a gente o tempo todo, mas ele
me defendia daqueles meninos que eram mais velho que eu e ficavam mexendo comigo no
meio da aula. A gente era super amigo um do outro, sempre conversava pelo whatsapp, ficava
junto nas aulas. Eu aprendi o português assim, conversando com ele. A gente se formou e eu
comecei a trabalhar lá em Osasco. A gente não se via muito, só falava bobagem no grupo
mesmo, né? Aí, em junho do ano passado ele falou que estava doente, que tinha pego
COVID. Eu fiquei preocupada, mas foi tudo tão rápido, uma semana depois eu fiquei
sabendo que ele tinha morrido pelo facebook. Eu nunca tinha imaginado que isso poderia
acontecer com ele.

Junta os tijolos em um monte, como se fosse uma cova.

Júnia - Nem deu para a gente se despedir dele, estava muito perigoso naquela época. Daí
várias outras pessoas me deixaram, desde junho eu tenho me sentido meio estranha… Meio
sem saber o que eu quero fazer. Algumas pessoas saíram da minha vida por que quiseram,
outras foram levadas. Muita coisa foi levada na verdade. O que me deixa assim, não sei dizer
bem, me sinto estrangeira não só aqui no Brasil, mas em qualquer lugar que eu vou. Não
conseguiria morar no Haiti de novo. Vocês já sentiram isso? Quando você se sente
estrangeira no seu país? Na travessia a gente se desfaz… E vira outra coisa. Como se um
buraco muito grande e fundo se abrisse no chão e levasse nossas memórias, amores,
pensamentos e tudo aquilo que a gente era. Vocês já se sentiram assim? Eu li no jornal que
tem pessoas do Haiti que imigraram para cá e agora estão indo pro Perú. Eles são chamados
“remigrantes” parece. Acho que o brasileiro é muito “remigrante”…
É projetado ao fundo a frase: “E dizem que ela reapareceu em outras terras muito distantes
e lá viveu longe de seu passado.”

Cena III

Narrador e Sobreviventes preparam uma refeição, vestem roupas chics que pilharam
pela cidade. Ao fundo toca-se uma música disco em espanhol.
Narrador (Para a plateia) - Os que sobraram são donos de tudo, ou talvez não faça
mais sentido entender as coisas como posse. Tudo agora se pertence a si mesmo, já que não
há ninguém para vigiar as fronteiras. Países não existem, territórios, delimitações,
especulação imobiliária, estacionamentos, ocupações, nada mais faz sentido. (Enquanto ele
fala os sobreviventes desfilam em uma passarela de tijolos com suas roupas, trazendo uma
mesa. Se divertem.) Os sobreviventes escolhem o hotel mais chic da cidade, se vestem com as
roupas mais caras de marcas inalcançáveis que nunca sonhariam em por as mãos e preparam
o seu jantar com o que acham nas geladeiras: champanhe, caviar, lagosta e chocolate belga
para sobremesa. A humanidade se extinguir acabou com a desigualdade.
Sobrevivente 2 - Como assim? Não é assim que prepara. Deixa que eu faço.
Narrador - ok, faça como quiser, eu vou abrir mais um champanhe.
Sobrevivente 1 (cantando) - pensar uma música em espanhol
Narrador - Servida?
Sobrevivente 1 - Por favor.
Narrador - Nunca pensei que viria jantar nesse hotel um dia.
Sobrevivente 2 - Nem que eu cozinharia nele.
Narrador - Melhor aproveitar enquanto isso ainda existe…
Sobrevivente 1 - Sabe de uma coisa que eu estava me perguntando, nós somos, ou
melhor, éramos refugiadas no nosso mundo que aparentemente acabou. Mas você é daqui,
não é? Por que será que duas refugiadas sobreviveram a essa catástrofe? É uma coincidência?
Narrador - Não sei. Qual a diferença entre nós que éramos daqui e quem veio de fora?
Ouvem um barulho, se assustam. Sobrevivente 2 desliga a música. Narrador se
esconde embaixo da mesa. Sobrevivente 1 pega a arma. Entra Sobrevivente 3 com os braços
para cima.
Sobrevivente 3 - Desculpe atrapalhar. Mas ouvi a música aqui, vi que tinha gente, não
quero atrapalhar, só estou perdido.
Todes se recompõe.
Sobrevivente 1 - Sim, nós vimos o avião e viemos para cá.
Sobrevivente 3 - O avião deu certo! Eu sabia!
Narrador (saindo debaixo da mesa) - Você sabia do avião? Quem pilotava ele?
Sobrevivente 3 - Eu mesmo, senhor. Achei que era o melhor jeito de ver se alguém
estava vivo além de mim depois que isso aconteceu.
Narrador - Você sabe o que foi aquilo?
Sobrevivente 3 - Não tenho ideia. Mas desde que aconteceu fui atrás da minha
família, meus amigos e todos desapareceram.
Sobrevivente 2 - Eu sinto muito.
Sobrevivente 1 - Nós também não achamos ninguém.
Sobrevivente 2 - Quer jantar com a gente?
Sobrevivente 3 - Se tiver comida para mim, eu aceito.
Sobrevivente 2 - Temos toda a comida do mundo.

Todes se sentam a mesa. Barulho de pratos.

Sobrevivente 1 - Você é daqui?


Sobrevivente 3 - Não, eu sou um refugiado. Vim a mais de três anos, quase que por
acidente.
Sobrevivente 2 - Como assim?
Sobrevivente 3 - Não era bem para eu terminar aqui nesse país.
Narrador - Bom, agora não existe mais país nenhum pelo visto. Champanhe?

Sobrevivente 3 acena que sim com a cabeça.

Sobrevivente 1 - Somos já três refugiados, três que sobreviveram sem nenhum


motivo. Não entendo. (para Narrador) Tem certeza que você não é um refugiado também?
Narrador - Hum, depende. O que é ser refugiado afinal? Acho que isso é um ponto de
vista, depende de que lado você está da fronteira ou do continente. Ou às vezes não seja só
isso…
Sobrevivente 2 - Só isso o que?
Narrador - Não seja só isso que signifique ser refugiado.
Sobrevivente 1 - Ao mesmo tempo que não existe mais as fronteiras, também não há
mais pátria e, não sei, o que parece agora é que somos refugiadas do mundo todo.
Sobrevivente 3 - Bom, pelo menos não seremos barrados em nenhum lugar.
Narrador - A minha pergunta é se teremos algum lugar para ir…
Sobrevivente 2 - Algum lugar teremos e devem existir outros sobreviventes, não é
possível. Eu não consigo entender como isso tudo está acontecendo, só me senti assim na
pandemia, parecia que eu estava no escuro sem entender nada.
Sobrevivente 3 - Talvez aquilo tenha sido um aviso…
Narrador - Aviso de quem? Deus?
Sobrevivente 3 - Não sei, cada um acredita no que quiser.
Sobrevivente 2 - Eu não consigo entender… Eu não consigo entender.
Sobrevivente 3 - Só nos resta a lembrança do que foi.

Relato III - Hezouwe

(Todos os participantes sussurram a palavra “passado” em diferentes idiomas, em espanhol,


kabiê, créole, etc. O filme da década de 1930 “Africa Speaks” é projetado, mostrando uma
imagem exótica da África sob a ótica estadunidense com a descrição do "savagery and
unknown continent” e um suposto encontro entre africanos e estadunidenses)

Hezouwe (arrumando os tijolos em um círculo, como se fosse acender uma fogueira) -


Quando um bebê nasce, é muito importante que ele tenha algum tipo de proteção. Porque os
bebês têm uma ligação muito grande com o lugar de onde eles vieram e quase nenhuma
ligação com esse mundo aqui, por isso mesmo é importante fazer algumas coisas para que ele
não queira voltar com os outros irmãos dele. Na terra onde eu nasci, as curandeiras fazem
uma marca, um sinal na cabeça da criança, uma marca que protege ela de ser levada embora.
Até os sete anos é como se o bebê estivesse em um limbo, um espaço entre duas realidades
distintas e as duas disputam a sua presença. Minha mãe dizia que havia um pássaro muito
perigoso que tinha um grito forte, tão forte que às vezes podia matar a criança. Por isso, assim
que eu nasci, o sétimo filho em uma família só de mulheres, ela saiu correndo para marcar a
minha cabeça, com medo que eu fosse embora.

Começa a preparar uma fogueira no meio do círculo de tijolos.

Hezouwe - Meu nome é Hezouwe Soh Tchao, eu sou do Togo e eu saí na rua porque eu sou
contra o purgatório. Eu não sou católico, eu acredito em várias religiões. Eu vi muita coisa
que só quem viu consegue acreditar que aconteceu, que existe a metafísica, algo que é além
disso. Eu já vi coisas que parecem absurdas, mas que eu vi. Gente sendo morta por um raio,
um raio que caiu do céu na direção da pessoa porque ela roubou ou fez algo muito ruim para
alguém. Eu já vi isso acontecer, é uma maldição de alguém sobre aquela pessoa. Não é dessa
forma exótica e estranha que muita gente vê a África, não. Mas é uma coisa que faz parte do
nosso dia a dia no Togo. Lá tem muita gente que ainda tem contato com coisas do mundo que
eu não sei explicar, mas que eu vi.

Acende a fogueira.

Hezouwe - Vocês podem vir mais perto? Um pouco? Só para a gente poder conversar mais
próximos. Eu sou Kabiê, um povo que vive nas montanhas do Togo e minha cidade tinha
pessoas que tinham esses outros saberes. Diziam que eles eram mendigos durante o dia e à
noite se tornavam homens muito ricos, que tinham mansões e lamborghinis. Eles que
cuidavam do povo com seus rituais. Nós tínhamos alguns rituais que eram de todos, como a
luta de Ewala, que é uma luta que fazemos quando chegamos à idade adulta. E é muito
bonito. Tem outro povo próximo, os Bassar, que tem um ritual diferente: eles dançam no
fogo. Sim, eles dançam no fogo e não se queimam. Eu mostrei um vídeo desse ritual para um
amigo brasileiro e ele me disse que o fogo devia ser falso, porque ele não queimou nem a
roupa do Bassar. Eu ri. Por que o africano iria gastar com um fogo falso? Tsc, tsc... Quando
fui à igreja lá em África me ensinaram que se eu morresse iria para o céu viver com diversos
anjos ou para o inferno viver com o diabo. Os santos e os anjos eram sempre brancos,
brancos e bonitos. Mas o diabo sempre era um negro no meio das chamas do inferno, como
um bassar dentro de uma fogueira. O que quer dizer isso então? Que África, o lugar onde eu
sempre vivi, é o inferno? Que eu era o demônio? Onde então seria o céu? Quando eu cheguei
aqui e entrei em uma igreja, a primeira coisa que eu reparei foi naquela santa no meio do
altar, preta, vestida com um manto azul cheio de estrelas, que o padre chamava de padroeira.
Havia também outros santos como São Benedito e Santa Ifigênia que me apresentaram
depois. Todas essas histórias de santos e santas falam de sofrimento e de como eles
sobreviveram a tudo isso sem reclamar, tudo está escrito nas expressões deles. Porém, eu
posso dizer a vocês que eu já passei por muitas dessas coisas e não sou um santo, eu não
fiquei quieto porque, eu não. Inclusive eu posso dizer que já estive sete dias no purgatório.
Sim, no purgatório. Mas o purgatório que eu vivi não é tão longe. Ele é aqui perto na verdade,
vocês talvez já tenham até passado por lá alguma vez. Chama-se Aeroporto de Cumbica. Eu
vim pro Brasil por engano, aqui não era o meu destino final, eu estava indo para a Bolívia. E
eu já tinha tudo preparado, eu queria estudar a medicina e eu juntei todo o meu dinheiro,
vendi até um terreno que eu tinha lá na minha cidade, para conseguir comprar a passagem e
pagar a matrícula da faculdade lá na Bolívia. Eu peguei o avião em Lomé e tinha uma
conexão em São Paulo, mas quando eu cheguei aqui o moço do check in me disse:

Todos os outros participantes - Com isso aqui, você não pode passar.

Hezouwe - Ele disse que sem a passagem de volta eu não podia ir, que eu tinha que ter
comprado a passagem para voltar para o meu país. Mas eu não tinha dinheiro suficiente para
isso, então eu tive que passar a noite no aeroporto, sem minha mala, sem as minhas roupas do
Togo que eu tinha trazido, sem as fotos que eu tinha guardado na mala e nada para eu tomar
banho. E eu nunca mais tive minha mala de volta. Na primeira noite eu dormi no chão do
aeroporto e eu passei a noite toda pensando o que eu podia fazer para não ficar preso naquele
lugar, eu não podia sair da área de embarque. Ninguém me respondia direito, eu tive que
pedir ajuda de estranhos para conseguir que eles me falassem o que estava acontecendo. Eu
queria ir para a Bolívia e eu tinha uma passagem para lá!

Uma imagem de um barco de refugiados atravessando o Mediterrâneo é projetada


lentamente ao fundo.

Todos os participantes - Chegou o seu avião, senhor.

Hezouwe - Eu não vou voltar.

Todos os participantes - Você não pode ficar aqui, nem ir para lá, tem que voltar.

Hezouwe - Eu saí do meu país para estudar e fiz muito sacrifício para voltar assim.

Todos os participantes - Aqui não tem espaço para você!

Hezouwe - Não!

Uma luz forte ilumina o espaço.


Hezouwe - Para ver um africano sair da África, é porque a pessoa tá carregando um sonho, a
pessoa tá correndo atrás, ela tem um ideal a chegar. Em verdade não foi fácil. Para qualquer
africano que você veja aqui, para sair da África, chegar aqui, é um caminho de guerreiro, um
caminho de guerreiro…

Pega um tijolo e joga ele longe.

Hezouwe - Pedi refúgio no Brasil, se eu não podia ir até a Bolívia, aqui eu iria estudar e
trabalhar e fazer tudo que eu conseguisse. Mas nunca mais eu ficaria entre dois mundos, entre
dois lugares, como se eu não existisse e só fosse um corpo que anda por aí. Um corpo sem
passado, sem memória, sem cultura, um corpo sem rosto.

Cena IV
Narrador (oferecendo taças para a plateia) - Quem quer vinho?
Sobrevivente 2 - Eu estava dormindo quando todos sumiram, acordei e não ouvi nenhum
barulho. Só a TV ligada na sala. Minha vó não estava no sofá assistindo, só achei as roupas
dela jogadas pelo chão. Fiquei em pânico, mas não sai de casa até que vi o avião.
Sobrevivente 1 - Eu não consigo me lembrar exatamente do que aconteceu. Eu lembro de não
ter encontrado ninguém em casa, ir para a rua e depois apagar, como se eu também tivesse
desaparecido. Acordei com o barulho do avião. Parecia que muito tempo havia passado, eu
estava fraca, com fome, sede.
Sobrevivente 3 - Eu acho que ainda não acredito no que está acontecendo.
Sobrevivente 1 - Você foi inteligente de ter usado o avião.
Sobrevivente 3 - Era a opção mais rápida para encontrar outras pessoas… Mas eu quase parti
sem deixar nenhum sinal.
Narrador - Partir para onde?
Sobrevivente 3 - Para a Europa.
Narrador - Europa? Fazer o que?
Sobrevivente 3 - Procurar respostas, pegar de volta o que eles nos roubaram, ocupar um lugar
do mundo que tivesse mais comida, munição, tecnologia. Não sei…
Narrador - Ocupar o lugar que sempre nos expulsou?
Sobreviente 3 - Isso não existe mais. Agora a Europa é um monte de pedras empilhadas, se
eles tivessem sobrevivido já teríamos notícias deles pode ter certeza…
Narrador - Mas será que a resposta está na Europa? O mundo é tão grande, pode ter sido
alguma coisa na China, ou na Rússia oriental, quem sabe na África.
Sobrevivente 3 - Tenho certeza que tudo isso começou ou na Europa ou nos Estados Unidos.
É lá que nossos problemas começaram e é lá que vão acabar.
Sobrevivente 2 - Você fala com tanta certeza…
Narrador - Acho que deveríamos sobrevoar mais a nossa região, já somos em quatro, é
possível que existam outros vagando por aí.
Sobrevivente 3 - De qualquer forma o avião é o melhor jeito das pessoas nos verem.
Sobrevivente 1 (levantando-se) - Vamos para a Europa! Faz sentido começar por lá a explorar
o que restou do mundo, não é possível que não haja uma resposta.
Sobrevivente 2 - E talvez para os Estados Unidos depois.
Narrador - Para mim isso não faz sentido algum, é arriscado demais. Não tenho a menor
vontade de ir para o norte.
Sobrevivente - Você não precisa ir se não quiser, é bom alguém ficar por aqui também caso
alguém apareça.
Narrador - Pois então eu fico.

Relato IV - Narrador

Narrador começa a empilhar os tijolos na tentativa de construir uma parede. Ouve-se uma
voz de rádido do início do podcast “O Assunto - Deportados: o duro caminho de volta” com
relatos de repórters sobre brasileires deportades dos EUA.

Rádio - 70 brasileiros deportados dos Estados Unidos chegaram hoje ao Brasil. O avião
fretado pelo governo americano pousou de madrugada no aeroporto… 50 pessoas deportadas
dos Estados Unidos chegaram no… o vôo saiu do Texas e foi autorizado pelo governo
federal… um fretado pelo governo americano com 130 brasileiro… esse é o terceiro vôo de
deportados autorizados… desde o fim do ano passado desembarcaram em bonfim, totalizando
679 deportados… chega hoje em Minas Gerais um vôo com mais de 100 brasileiros
deportados dos Estados… é o primeiro do governo Biden mas o 23º desde o ano de 2019…
mais um vôo dos Estados Unidos… passamos a receber dois vôos de deportados por semana,
antes era apenas um… (gravação de Bolsonaro falando) olha o que eu falar aqui vai dar
polêmica, eu acho que em qualquer país as suas leis tem que ser respeitadas… onde pessoas
estão lá de forma clandestina é um direito daquele chefe de estado usando da lei devolver
esse nacionais…

Enquanto ouvimos o rádio, um power point é projetado mostrando alguns tópicos e o


Narrador discorre sobre eles.

Narrador - Como se adentra o mundo civilizado?

nº1 - Primeiro, se desiluda completamente com o lugar onde você está. Isso não dará muito
trabalho já que se desiludir é basicamente o que a gente faz todo dia.

nº2 - Escolha um lugar ao norte, idealize um mundo outro, um lugar outro, o mundo que nos
prometeram desde criança nos filmes, nos desenhos, nos livros.

nº3 - Agora você começa a entrar nos pormenores para adentrar nesse mundo. No chamado
“Cai-não-Cai”. É assim, a política migratória mudou, agora não vale mais a pena se arriscar
em um coiote pelas fronteiras ou pegar um barco precário e tentar adentrar o território
civilizado. Vale mais a pena se entregar na fronteira em troca de talvez entrar ou não entrar.
NOTA: se você estiver acompanhado de mulher, crianças ou com gestantes a sua chance de
entrar é muito maior. Essa nova política prevê que respondamos dentro do mundo civilizado
pelo nosso visto e, uma vez dentro, é muito mais difícil de ser pego.

nº4 - Não seja pego. Eu fui, fui pego e passei semanas na cadeia, implorando para voltar para
casa. Pouca comida, crianças com febre e sem remédio, apenas água, em uma espera e
sofrimento que deixa claro à quem não pertence aquele mundo sua condição: estrangeiro.
Lembro ainda de passar por um calor insuportável durante o dia e a noite não conseguir
dormir, com os ossos tremendo de frio no concreto escuro. O preço é muito alto, não se sabe
se vale realmente a pena. Para mim não valeu, nunca mais piso em um lugra assim. Mas há
quem pise, quem retorne, quem não desista… Até quando?

O powerpoint some.

Narrador - Eu acho que eu entendi porque eu sobrevivi a tudo isso. Todos aqui são
refugiados. Eu também sou. O fim da humanidade por algum motivo não nos afetou, por isso
acho que devemos ser muitos por aí. Por isso eu fiquei. Na verdade não apenas por isso… Eu
já fui até a borda do mundo. A borda do mundo é o lugar que a civilização encontra com o
incivilizado, onde o abismo social se faz claro como o dia e os portões ou estão abertos ou
estão fechados, sem meio termo. Para entrar nesse mundo você precisa se camuflar, vestir a
máscara que te esperam. Ali nasce o refugiado, ao cruzar a fronteira. E eu sou pior ainda, um
deportado.

Narrador - Meu nome é (nome da atriz/ator), sou brasileiro e hoje eu saí de casa. Depois de
muito, muito tempo. Eu abri a porta, chamei o elevador, apertei o térreo, saí pelo portão do
prédio que eu moro, virei a esquina e, chegando perto do sacolão da rua de trás, eu dei de
frente com isso (aponta o espaço) uma construção. Eu fiquei um tempo sem passar por ali e o
sobrado vermelho que tinha um desenho em gesso com umas crianças brincando embaixo das
janelas já não existe mais. Nem foto eu tirei dele. Me dá uma raiva isso, ficar um tempo sem
andar na cidade, a cidade que você sempre andou desde pequeno e ver ela sendo lentamente
destruída. Me dá uma sensação de estar velho, uma sensação que aumentou muito nesta
pandemia, misturada com essa sensação de estar perdendo algo. Por que que eu saí para rua?
Eu não lembro.

(A parede desmorona parcialmente, mas o narrador continua a construí-la)

Narrador - Gostaria de deixar claro uma questão: isso não é uma peça. Sim, tem luzes na
minha cara, eu estou maquiado, falamos todes ao vivo com vocês, mas… Isso não é uma
peça. É uma interrupção, antes de tudo. É o que eu vou chamar aqui de relato-encenado, mas
você pode chamar do que quiser, uma construção, uma reflexão de pessoas que ficaram
meses em casa, dentro das fronteiras de um apartamento em uma cidade que tem placas do
governo que dizem construir uma cidade melhor, mas que honestamente eu acredito destruir
algo melhor todo dia. (Joga um tijolo na parede e a destrói.) Para dar lugar a qualquer coisa
de triste, caro e, normalmente, de cor bege.

(Pega os tijolos caídos e os coloca no espaço, desenhando a forma do estado de São Paulo no
chão)

Narrador - É daqui que falo, por isso mesmo não bato bem da cabeça, e quem bate
ultimamente? Mas além do limite desse estado-apartamento, que às vezes parece o único que
existe, mesmo que sujo e estranho e feio e deformado, além disso, tem coisas que acontecem
nos limites desse estado que só poderiam acontecer aqui e que trazem algo que eu não
entendo, mas que me encanta de alguma forma. Mesmo que essas coisas estejam acontecendo
através de uma câmera, eu não sei mais se teremos encontros presenciais ou online, através
da câmera conheci três desvios da rota, três trajetórias, quebras de fronteiras, o que vocês
quiserem chamar. Vou resumir aqui por que parece que vai chover e não temos muito tempo:
conheci no meio da pandemia três refugiados que moram na mesma cidade que eu.
Participamos de um projeto juntos e tentamos criar algo mesmo que distantes. Eu, Dyli,
Hesouwe e Junia. Conversamos horas por telefone, whatsapp, zoom, meet, o que era possível.
Mas só nos encontramos hoje, nessa apresentação. Durante esse tempo todo eu só me
perguntava como é que cada uma dessas pessoas que vieram parar aqui, aqui nesse país em
crise, um país que aposto que muitos de vocês aqui, se tivessem oportunidade, sairiam,
principalmente nesse momento que estamos agora. Nem que seja para sair para um outro
Brasil, um Brasil que já vivemos ou que sonhamos viver, que não é esse que vivemos agora.
O que faz alguém imigrar para esse país? Esse Brasil que me enoja todos os dias e que me faz
parte? (pausa) Daí eu fui chegando em questões como o que faz alguém ser estrangeiro em
um país que tem sua população formada em sua maioria por estranhos à terra? Ou ainda, o
que faz e o que é afinal um brasileiro? Um devir? Um limite?

É projetada a frase “A velocidade que você corre depende do tamanho do bicho que te
persegue”. O Narrador se deita no meio do mapa de São Paulo, delimitado pelos tijolos e
por um vídeo de prédios sendo destruídos em São Paulo.

Narrador - Como que, da periferia do mundo em que eles contaram que nós vivemos, nos
sentimos mais centrais que todo o resto? Sim, esse estado-apartamento se sente mais central
que todo o país, nós nos sentimos assim. Ele se sente uma cobertura, um duplex, eu não sei,
eu sempre achei ele tão pequeno comparado com as possibilidades que ele tenta esconder.
Nos sentimos no direito de delimitar o que somos e, consequentemente, os que não são. O
outro. Os descendentes do que chamavam na Grécia Antiga “raças monstruosas”: pessoas
com cabeça de cachorro, cinocephal; sem cabeça, Blemiae; com uma perna apenas, sciopods;
canibais, antropophagi; e muitos outras sombras que projetamos com o fogo que queima tudo
aqui. Violento. Sabe o que todas essas figuras têm em comum? Elas apavoram, apavoram e,
por isso, dão o direito aos que se consideram e são considerados normais de destruir o que
não é espelho. E quantos mundos foram destruídos… Mundos outros, mundos que não estão
ligados à palavra ou a territórios, mas sabe-se lá com o quê. Mundos impossíveis, mundo-
chão, mundo-água, mundo-cabelo, mundo-carne, mundo-mundo. E não mundo-inflação,
mundo-estacionamento, mundo-exploração, mundo-vírus, mundo-colonização.

Levanta-se do chão

Narrador - E de novo eu penso: “o que é um brasileiro?” Imagina uma criança ouvindo essa
palavra pela primeira vez e imaginando o que ele significa. Imagina os refugiados que moram
aqui tentando nos entender. Imagina os gringos lendos nossos memes e não entendendo nada.
Ser brasileiro é uma piada interna.

Começa a desfazer o desenho que acabou de criar com os tijolos, os outros participantes
também entram para desfazer esses limites.

Todes (cada um fala em sua lingua materna esse texto) - Mas eu quero borrar, borrar essas
linhas retas, essas caixas que eu não entendo, eu não entendo. Esses limites, vocês entendem?
Alguém entende… Eu não entendo, não entendo.

Epílogo (opicional)

Todos os participantes saem de cena. Fica apenas a Sobrevivente 1. Ela tira um gravador
antigo de uma sacola, aciona-o e começa a falar.

Sobrevivente 1 - Nós atravessamos o oceano, passamos por três continentes, vasculhamos as


cidades que um dia foram as mais ricas e inacessíveis do mundo, como se elas fossem nosso
território, nossos corpos quase. Não descobrimos nada, o ocaso do mundo se mostra tão
misterioso quanto sua aurora, nos restando apenas registrar aqui, através dessa gravação em
várias linguas, o curto espaço de tempo em que pudemos compartilhar dessa terrível e
maravilhosa experiência. Talvez vocês que ouçam esse relato, senhoras do futuro, possam
entender o que aconteceu, mas se nossas hipóteses infelizmente estiverem certas e nossos
augures não forem apenas um devaneio desesperado, é possível que esse seja o ciclo esperado
para a nossa triste humanidade: emergir a duras penas, lutando todo dia pela mais básica das
necessidades, voltar a se assegurar enquanto sociedade através da propriedade privada, do
patriarcado e da opressão de classes, desenvolver-se tecnologicamente através da constante
ambição, vendo gerações lutarem e sangrarem pelas mais diversas causas até nos tornarmos
tão poderosos que, cegos, deixamos de ver o que nos cerca e criamos a própria arma que nos
eliminará.
Entretanto, e disso me alegro, por sermos tão imperfeitos até em nossa morte fracassamos e,
assim, continuaremos a existir por uma falha da arma letal que nos destruiu. É esse o ciclo
que acreditamos estar vivendo e deixamos aqui um registro frágil a vocês na esperança de
que, um dia, este círculo maldito seja retorcido, dobrado e quebrado. Os deuses, os profetas e
as pitonisas mudam de nome; as guerras, países e organizações terão outros rostos; a ciência e
o pensamento se constituirão de outra forma, mas nada, nada mudará enquanto seguirmos a
mesma trilha de milênios. Uma trilha que ao invés de abrir caminhos, os fecha e se vê apenas
como única via existente, queimando tudo que não lhe diz respeito! Resta a nós, os
refugiados do velho mundo, continuar com a vida após o que chamamos de a demolição do
mundo.

Sobrevivente 1 desliga o gravador e deixa sua voz ecoando no espaço enquanto caminha
para fora do espaço cênico.

FIM

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