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VENDO E OUVINDO ATENTAMENTE “SOPHIA” DE KENNEL RÓGIS1

Amilton Santana Mattos2


Carlos Henrique dos Santos Pinto3
Fábio Tadeu de Macedo Santana4
Ricardo Saidel5
Virgínia de Oliveira Silva6

Apresentação

Cada uma das subseções que compõem este trabalho abordou o conteúdo da
produção fílmica aqui analisada à luz de um aspecto da linguagem cinematográfica
precioso à sua realização, a saber, o roteiro, a fotografia, a edição/montagem, e o som; e
foi escrita de modo independente por um ou dois dos cinco autores supracitados, com
exceção desta primeira parte introdutória em que todos efetivamente contribuíram de
modo coletivo. Decidimos informar a(s) autoria(s) de cada uma das subseções, por
considerarmos que podem ser recebidas também como textos independentes que ora
compõem este artigo pela sua reunião estrutural. Tal escolha justifica a necessidade de

1
"Esse texto faz parte do volume 'Cinema Paraibano e Cotidiano' da Coleção Cinema Paraibano e suas
Interfaces coorganizada por Virgínia de Oliveira Silva, professora do CE/UFPB e pela jornalista Janaine
Aires, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFRJ. Ambas são
membros do Projeto Cinestésico - Cinema e Educação e do Coletivo COMJunto." Contato -
cinestesico@gmail.com

2
Licenciando em Cinema (Uff). amilton.mattos@gmail.com
3
Mestre em Literatura Brasileira (UERJ); Pós-Graduado em Estudos Literários e Graduado em Letras
(FFP-UERJ). Licenciando em Cinema (Uff). Docente do Ensino Fundamental da Rede Pública da
Prefeitura de Magé, e do Curso de Pedagogia a Distância do CEDERJ - UERJ.
c.h.dossantos@hotmail.com
4
Doutorando, Mestre e Graduado em Geografia (Uff); Pós-Graduado em Organização Espacial do Rio de
Janeiro e Pós-Graduado em Sociologia Urbana (UERJ). Licenciando em Cinema (Uff). Professor
Assistente da UERJ e Professor I de Geografia da FAETEC. Coordenador de Geografia do Instituto
Fernando Rodrigues da Silveira – CAp-UERJ e Coordenador de Geografia do Subprojeto Institucional
PIBID – UERJ. professorfabiotadeu@gmail.com
5
MBA em Gestão de Negócios (IBMEC/RJ); Pós-Graduado em Administração Industrial (Fundação
Carlos A. Vanzolini, Escola Politécnica de SP/USP); Graduado em Engenharia Mecânica (Instituto de
Ensino de Engenharia Paulista/UNIP). Licenciando em Cinema e Audiovisual (Uff).
ricardosaidel@uol.com.br
6
Pós-Doutoranda em Educação (UERJ); Doutora (Uff) e Mestre (UFRJ) em Educação; Especialista em
Teoria Literária (UFRJ); Licenciada em Letras (UFRJ), Graduada em Comunicação (UFPB), Licencianda
em Cinema (Uff). Profª Associada do CE/UFPB. Coordena o Projeto Cinestésico - Cinema-Educação.
Membro dos GPs “Currículos, Redes Educativas e Imagens” e “Culturas e Identidades no Cotidiano”
(UERJ) e líder do GP “Políticas Públicas, Gestão Educacional e Participação Cidadã” (UFPB). Diretora e
Roteirista. cinestesico@gmail.com
se repetir em cada uma delas as informações técnicas mais vitais do filme, como
veremos a seguir.

O filme “Sophia” (Ficção, 15’, Coremas-Paraíba, Brasil, 2013) é baseado em


uma história real, adaptada pelo cineasta, roteirista e diretor Kennel Rógis (24 anos, à
época), paraibano nascido na cidade de Patos e criado na cidade de Coremas. Trata-se
da luta cotidiana de uma mãe de uma cidade do interior nordestino na árdua tarefa de
chefiar a família e proporcionar uma vida sem percalços à filha Sophia. O amor
incondicional de mãe e as dificuldades materiais e sociais encontradas na tentativa de
proporcionar condições dignas à filha provocam-lhe o sentimento de angústia e um
grande desconforto emocional.

Filmado no Nordeste, o curta poderia ter sido realizado em qualquer cidade do


país, haja vista o crescente número de famílias chefiadas pelo gênero feminino no
Brasil.7 A monoparentalidade feminina em nosso país aumentou significativamente nas
últimas três décadas, mas é na macrorregião Nordeste onde encontramos o maior
número de mulheres chefiando uma família. Este fato deve-se à continuidade dos fluxos
repulsivos migratórios do gênero masculino, que, apesar da diminuição nos últimos
anos, ainda é um fator preponderante para o elevado número de mulheres no exercício
de chefe de família. Outro fato importante apontado por pesquisa nacional do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE é o maior percentual de mulheres solteiras
exercendo a chefia de famílias monoparentais com filho, em todo território, em especial,
no Nordeste.

No caso específico das personagens retratadas no filme que aqui analisamos, a


mãe de Sophia trabalha como operária em uma confecção de roupas8, onde o ambiente é
marcado pelo som diegético das máquinas de costura em funcionamento. Entretanto, o
barulho ensurdecedor não é suficiente para apagar da memória da funcionária a

7
Nas duas últimas décadas as mulheres vêm ocupando mais espaço na posição de chefia do domicílio.
Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), que teve como ano base 2011aponta que
37,4% das famílias têm como pessoa de referência uma
mulher.ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_a
nual/2011/Sintese_Indicadores/sintese_pnad2011.pdf acesso 16/10/2014.
8
Aspecto totalmente plausível, pois com o processo de reestruturação produtiva em curso, muitas fábricas
e confecções do Sul e Sudeste do país transferiram suas unidades produtivas para o Nordeste, devido à
concessão de incentivos fiscais, doações de terrenos e mão-de-obra barata e à baixíssima participação
sindical. Fonte: SANTOS, Milton e SILVEIRA, M. L. Brasil - Território e Sociedade no Início do
Século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.
vulnerabilidade social a que é submetida a sua família, formada por ela (uma mulher
solteira) e sua filha.

Além das preocupações inerentes ao seu papel de mãe no exercício de suas


funções, ela é exposta diuturnamente a três jornadas de trabalho, isto é, no trabalho
convencional e no lar, onde após cumprir as tarefas domésticas diárias, ainda costura
para fora, fazendo com que mine silenciosamente sua integridade física e mental. A
personagem faz uso de estratégias muito comuns entre as camadas mais vulneráveis da
população brasileira, tais como usufruir da ajuda de vizinhos e parentes no apoio
cotidiano ao processo de educação dos filhos. Quando não conta com a rede de
solidariedade e proteção social oferecida pela vizinhança, a mãe tem que contar com a
compreensão de seus patrões e de suas colegas de trabalho para permitirem a presença
da menina na unidade produtiva. Aflita e nervosa, a mãe observa, em um breve
momento de descanso da atividade laboral, sua filha brincando na área externa à
confecção. A pressão a que esta mãe é submetida é potencializada pelos elevados gastos
com serviços públicos essenciais.9 Todavia, existe uma grande preocupação em não
envolver ou deixar transparecer suas angústias à Sophia. O amor e o conhecimento
mútuo existentes entre mãe e filha geram momentos de contacto familiar profundo,
como o que se percebe na cena que demonstra a extrema sensibilidade da menina que,
ao ver a mãe aérea e desnorteada com os problemas financeiros, pega um rádio antigo,
para, quem sabe, alegrar um pouco a vida daquela mulher entristecida e
despontecializada. E, numa das cenas mais emocionantes do filme, mãe e filha ensaiam
alguns passos de dança para esquecer os problemas que se mantêm.

Sem esperança, a mãe dedicada ao trabalho e à família vê brotar diante dos olhos
o real sentido da vida, isto é, o amor, a esperança e a amizade no ambiente que, talvez
para o espectador em geral, dificilmente traria de volta a serenidade necessária à mãe de
Sophia. Contaminada por uma alegria proporcionada pelas colegas de trabalho, ela trata
de proporcionar à Sophia um presente de Natal, marcado por uma confluência de luzes,
som e imagens de alegria. O filme, até o momento em que escrevemos, já ganhou 26
prêmios no país e fora dele, e como afirma o seu próprio diretor,

(...) está tendo uma carreira bastante bem sucedida em festivais e


mostras de cinema do Brasil e de fora do país, para nós (a equipe e
todos os entusiastas do cinema paraibano) é uma felicidade ver o filme
ganhando novas janelas, sendo motivo de debates e de novas emoções,

9
Contas cotidianas de água, energia, etc.
além do cunho social, de discutir desde a surdez até os Direitos
Humanos, consideramos “Sophia” uma peça importante para nosso
cinema! (...) “Sophia” foi um filme feito com muito amor, por uma
equipe tanto de profissionais como de iniciantes dedicados, onde
pudemos levar para as telas um pouco do que fomos naquele set. Hoje
o filme tem vida própria e que ele continue ganhando o coração das
pessoas, provocando debates e reflexões. O cinema do interior
paraibano é riquíssimo em histórias, que se possa filmar cada vez mais
por aqui! O audiovisual além de janela é também o grito das culturas
que ainda precisam ser vistas! Viva a descentralização e a produção
interiorana do Brasil! (RÓGIS, 2014)10

O roteiro de “Sophia” – Amilton Mattos

Segundo o roteirista, diretor e editor de “Sophia”, o jovem paraibano Kennel


Rógis, o roteiro do filme foi livremente inspirado em um relato que ouviu de uma
amiga, a professora Wolfraniad Pinheiro, e que o teria inspirado de imediato:

Além da emoção presente na história, proveniente do amor que


envolvia a procura da mãe em entender melhor o universo da criança,
de alguma forma veio-me à cabeça toda construção inicial do filme, os
ambientes, o som, algumas locações, os universos das personagens...
Foi um momento de muita euforia! (RÓGIS, 2014)

Quanto à parte de argumentação e roteiro para a construção da história


propriamente dita, Rógis afirma que preparou um primeiro texto guia para o filme, e,
meses depois, participou em 2012 da seleção da segunda edição do Projeto JABRE
(Laboratório de Roteiro para Jovens Paraibanos), em que se escolhem 10 argumentos
para serem desenvolvidos a partir de uma metodologia que tanto considera a
participação coletiva quanto a individual, sob a orientação dos professores e cineastas
Torquato Joel e Virgínia Gualberto, coordenadores do projeto, além da contribuição dos
demais jovens selecionados para essa experiência.

No II Jabre, o roteiro ganhou forma, o processo de trabalhar a


argumentação do “Sophia” foi maravilhoso; maturar a ideia inicial,
moldar, reavaliar as cenas pensadas, imaginar as locações, estudar as
narrativas possíveis para que a história ganhasse as telas, foi tudo
muito bacana e construtivo. (RÓGIS, 2014)

Em 2012, o Governo da Paraíba lançou o Edital Linduarte Noronha - Revelando a


Paraíba, que patrocinaria, com cerca de R$ 10.000,00, alguns projetos de curtas
metragens inscritos por iniciantes. Rógis foi um dos vencedores desse edital, o que o

10
Entrevista de Kennel Rógis para a 9ª Mostra de Cinema dos Direitos Humanos da América do Sul.
Todas as citações atribuídas a Rógis, daqui em diante, são extraídas dessa mesma entrevista.
possibilitou começar o processo de pré-produção de fato do filme. Mas somente em
2013, a verba seria entregue aos contemplados, possibilitando Rógis produzir
efetivamente o seu curta-metragem nas cidades de Patos e Coremas, no Sertão da
Paraíba:

A escolha da equipe foi algo super importante para a execução do


filme. Além de profissionais tecnicamente gabaritados tínhamos
muitos iniciantes de Coremas (...), mas o mais importante disso é que
éramos todos amigos, o que nos possibilitou uma simbiose muito
gostosa nas gravações; foi um projeto de todos! (RÓGIS, 2014)

Em relação à Isabelly Domingos que interpreta a pequena Sophia, Kennel Rógis


afirma que:

“imageticamente era ela quem eu imaginava nas cenas, tanto ela,


quanto Joana Marques (que faz a mãe). Joana já é uma atriz
experiente, está há anos no teatro e fez alguns trabalhos no cinema, ela
topou assim que viu o roteiro. Já Belinha (como é conhecida Isabelly)
nunca tinha atuado. Fiz uns testes de elenco com algumas meninas da
cidade de Coremas, onde vivo, mas nenhuma se adequava bem à
personagem; dias depois fui à escola de Belinha e comecei a observá-
la, após isso convidamos ela (SIC) para o filme e fizemos alguns jogos
dramáticos com ela (eu e Joana Marques preparamos o elenco).
(RÓGIS, 2014)

A narrativa do filme “Sophia” atende à demanda de informações sobre os fatos


relevantes da fábula ao espectador, porém o nível de comunicabilidade do filme é
sistematicamente controlado com o objetivo de surpreender o espectador, mantendo-se
inicialmente baixa e aumentando nas cenas finais da história.

Apesar de não possuir nenhuma fala em seu roteiro, as ações das personagens
permitem o perfeito entendimento da história e orientam a cadeia de eventos que
mantêm uma relação de causalidade, seguindo os padrões clássicos. O fato de não haver
fala de personagens funciona como um recurso com o propósito de ocultar do
espectador a deficiência auditiva da personagem principal - que, inclusive, dá título ao
filme -, seguindo uma prática bastante utilizada de retenção de informações para
aumentar a expectativa da trama, muito comum na narrativa clássica.

O equilíbrio da trama narrativa é desfeito quando a mãe de Sophia testemunha,


através da janela da confecção onde trabalha, o momento em que sua filha não ouve o
segurança mandando-a sair da velha piscina seca em que está brincando. Este fato a
afeta profundamente. A mãe sensibilizada com as dificuldades enfrentadas pela filha,
procura restabelecer seu equilíbrio, proporcionando-lhe momentos de felicidade, cujo
ápice se dá na compra de um aparelho de som que exibe uma luz que varia de acordo
com o volume que emite como presente de Natal para Sophia.

O objetivo a ser atingido pela personagem principal é evidenciado na cena em


que Sophia e sua mãe param diante de uma loja onde o aparelho de som está em
exposição em uma de suas prateleiras com ofertas natalinas.

O grande desafio a ser transposto pela protagonista seria conseguir o dinheiro


para a compra do aparelho de som. A cena da mãe de Sophia costurando até tarde
sugere tanto um dos meios do qual lança mão quanto o esforço da personagem
alongando o seu dia em uma terceira jornada de trabalho para atingir seu objetivo na
estória. As colegas de trabalho da mãe de Sophia, dentro do clima de Natal, também se
solidarizam com a sua causa, presenteando-a com dinheiro para ajudar na compra do
equipamento de som.

O diretor optou por apresentar a forte ligação afetiva entre Sophia e sua mãe
através de uma seqüência de planos em flashback, fornecendo ao espectador elementos
para a melhor compreensão do perfil psicológico das personagens e justificando suas
ações de acordo com a narrativa clássica.

Embora o diretor afimre não ter sido influenciado por filme algum para
escrever e dirigir Sophia, não seria exagero aproximar, em primeiro lugar, por força de
sua temática, o curta “Sophia” do premiado filme "Filhos do Silêncio" (Children Of A
Lesser God) do diretor Handa Haynes, de 1986. Este filme foi vencedor dos Oscares de
melhor ator, melhor atriz e melhor fotografia e sua história também trata da questão da
deficiência auditiva. Em segundo lugar pelo fato de “Sophia” e “Filhos do Silêncio”,
em sua abordagem, darem enfoque maior ao amor existente entre os personagens
principais, recebendo mais relevância do que a própria questão da deficiência auditiva.
Outra possível referência-aproximação é a utilização da dança para estabelecer uma
ligação sensorial entre o mundo dos ouvintes e dos não-ouvintes, verificada na cena de
"Filhos do Silêncio" em que Sarah (Marlee Matlin) e James (Willian Hurt) dançam no
restaurante e na cena em que Sophia e a mãe dançam na cozinha. Por fim, a cena na
qual a mãe de Sophia banha-se no açude buscando novas experiências sensoriais pode
ser considerada uma referência direta à cena de "Filhos do Silêncio", na qual Sarah
banha-se na piscina para relaxar depois de ter passado por uma situação de stress.
A fotografia de “Sophia” – Fábio Tadeu

Nos estudos sobre análise do cinema, ao longo do processo histórico de evolução


das obras fílmicas, a fotografia tem um papel muito importante na interpretação das
obras cinematográficas. Na verdade, não temos como dissociar o cinema da fotografia,
já que o próprio filme consiste na sequência de fotogramas criteriosamente montados
com o intuito de oferecer ao espectador, além da ilusão do movimento, um
encadeamento lógico do que está sendo projetado na tela. Aumont & Marie (2004)
defendem que devemos aproveitar a “facilidade” oferecida pelo fotograma para
estudarmos os parâmetros formais da imagem, tais como enquadramento, profundidade
de campo, composição e iluminação.

A fotografia traz uma série de informações e signos aos quais devemos nos ater
para efetuarmos uma análise consistente da obra fílmica. Iremos nos ater,
especificamente nesta parte de nossa análise, à luz e à cor expostas por uma obra. Mas
quais são seus propósitos? A luz e a cor contribuem para imprimir ao espectador a
noção de realidade e construir um sentido ao filme. Esses elementos não podem ser
analisados desconectados do contexto histórico, político, social e cultural, no qual o
filme está inserido. O curta "Sophia" do diretor Kennel Rógis foi rodado no Nordeste
brasileiro, mais precisamente na cidade de Coremas na Paraíba, por esse mesmo motivo,
a obra opta por usar e abusar da luz natural, construindo sentido à história de uma mãe
angustiada (interpretada por Joana Marques) em proporcionar uma vida digna à filha
Sophia (vivida por Isabelly Domingos), portadora de necessidades especiais.

A região geográfica de certo modo vai influenciar na escolha das cores dos
figurinos e das edificações para as filmagens. Sendo assim, destacamos que a localidade
do município de Coremas no Sertão Paraibano também influenciou a escolha do diretor
de fotografia, Breno César, para a composição de uma fotografia peculiar ao
local/região, mas sem se esquecer de dedicar uma luz mais suave para narrar essa
história de amor entre mãe e filha. Já o diretor de arte Carlos Mosca, em seu processo
decisório da paleta de cores para a cenografia e para a indumentária das personagens do
curta "Sophia", optou por associar a mãe aos tons mais amarelo-terrosos, vinculados
culturalmente ao desespero, e a filha, aos tons mais azulados, mais vivos e
esperançosos.
Vemos assim que as cores quentes tais como amarelo, laranja e vermelho
predominam nas cenas, sejam nas gravações internas ou externas. A presença dessas
cores representa e está associada ao fogo, sol e calor típicos do sertão, isto é, transmitem
a sensação de calor inerente ao espaço geográfico, no qual a história está inserida. Mas
há ainda a presença dos tons de azul, também associados às águas dos rios e açudes
sertanejos e ao céu nordestino, geralmente, em toda a sua generosa abóboda, limpo de
nuvens.

Frame de “Sophia”– Plano 2 da Cena 9- Reprodução

Frames de “Sophia” – Planos 1 e 3 da Cena 1 - Reprodução

Frames de “Sophia” – Planos 4 e 7 da Cena 2 - Reprodução

Os olhos dos seres humanos captam as chamadas cores primárias formadas pelo
vermelho, azul e verde, as demais que conseguimos identificar são variações destas três
cores. No filme "Sophia", as cores quentes citadas um pouco mais acima também se
misturam às cores primárias em seus enquadramentos. Nos ambientes fechados, as cores
laranja, amarelo e vermelho são mais comuns, principalmente na residência e no
ambiente de trabalho da mãe da menina.

As cores são responsáveis por associações e estímulos à memória do espectador,


que ativam percepções e constroem no indivíduo signos e significações que estão
associados à interpretação imagética. Podemos aqui evidenciar as imagens que
representam o período noturno na casa de Sophia, onde a baixa intensidade da luz e o
predomínio das cores amarelo e laranja intensificam os contrastes e atribuem ao
personagem diante da penumbra uma situação de inquietação, angústia e desespero.

Frames de “Sophia” – Planos 1 e 2 da Cena 10 - Reprodução

Por outro lado, encontramos também a presença da luz natural somada à luz fria
da confecção, onde as operárias estão com camisas amarelas que contrastam com as
paredes brancas. Durante a cena do banho entre mãe e filha, a intenção foi deixar
exposto o alívio da dificuldade financeira, parcialmente vencida e a satisfação em poder
proporcionar à filha momentos de alegria, dentro de um ambiente azul em alusão à água
corrente, à saúde e à vida dos personagens.

A fotografia do filme foi pensada como parte importante da narrativa


no que diz respeito à sensibilidade que a história pedia. Tínhamos o
objetivo de fazer um filme soft (mais natural, sem muita luz artificial e
sem planos mirabolantes), esse fator foi agregado à escolha das cores
da direção de arte, feita pelo cineasta Carlos Mosca. A arte do filme
também foi pensada na simplicidade, para compor um universo de
duas mulheres pobres que moravam sozinhas numa casa pequena e
humilde; outro fator escolhido pela direção de arte foi a parte de
figurinos, os quais tinham cores em tons pastéis e amarelos para mãe
(cores ligadas à preocupação e ao desespero) e azuis e serenos para
filha (tons tranqüilos, ligados à água e ao céu). (RÓGIS, 2014)
Frames de “Sophia” – Plano 1 da Cena 11 e Plano 13 da Cena 12 - Reprodução

Nos momentos finais do filme, retornamos à baixa intensidade de luz na


residência das personagens, onde são destacados elementos e momentos da vida
cotidiana de uma mãe solteira diante das dificuldades vivenciadas no processo de
criação de uma filha portadora de necessidades especiais.

Frames de “Sophia” – Planos 4 e 10 da Cena 14 - Reprodução

Frames de “Sophia” – Planos 14 e 15 da Cena 14 - Reprodução

A diegese é permeada por signos natalinos e pela presença de cores primárias em


um ambiente escuro, no qual o espectador é encaminhado a perceber e refletir sobre a
deficiência auditiva de Sophia. As imagens constroem um sentido que provoca
sensações sensoriais ou sinestésicas, que emitem recordações e lembranças específicas
de uma família monoparental vulnerável à pobreza e à miséria no sertão brasileiro.
Edição / Montagem de “Sophia” – Carlos Henrique dos Santos e Ricardo Saidel
Analisaremos aqui as opções de edição/montagem feitas por Breno Cesar e
Kennel Rógis para o curta “Sophia” de Kennel Rógis. Primeiramente, destacamos que,
pelo próprio cerne da estória a ser narrada, há uma grande transferência do peso
narrativo da imagem para o som, desta forma, a edição sonora se notabiliza e não
preserva sempre a verticalidade entre imagem e som. Fato este que nos acompanhará
por todo o filme, levando o espectador a tentar entender se o som é diegético ou não e a
buscar reconhecer a quem pertence os pontos de escuta.
Já na parte introdutória do filme de Rógis, a sequência dos planos, do inicial até
o imediatamente anterior ao da cartela do título, nos fará a apresentação do tema do
curta, sendo que a sua plena representatividade nos é dada desde o primeiro plano da
primeira cena, quando mãe e filha vêm surgindo, caminhando pela rua de
paralelepípedos.
Nos planos seguintes, com cortes secos, as cenas vão progredindo do Plano
Geral, ambientando-nos ao espaço diegético, até o Close-up e o Plano Detalhe, trazendo
a singularidade da mãe que não será um narrador clássico, mas sim um “enunciador” da
trama; depois, passando para o Plano Conjunto e o Plano Médio. O som, nesta
sequência, acompanha a imagem neste detalhamento aproximativo, trazendo um
incremento de volume a cada corte, e o reforçando para além da anunciação de sua
importância na narrativa. O plano que fecha tal sequência evidencia-nos, marcadamente
expresso na face da atriz Joana Marques, a preocupação da mãe para com a filha. E
somente então o título se anuncia: “Sophia”.
Visando nos situar em outro aspecto da vida cotidiana das personagens, tem-se a
apresentação de outra locação onde se desenvolve a narrativa fílmica, a casa em que
moram mãe e filha, através de uma sequência de cenas com cortes secos com detalhes
de cocção de alimentos, preparação da mesa, observação das contas a pagar, espera da
chegada da filha para se alimentar. Estas imagens, do cotidiano comezinho, estão
acompanhadas por uma edição de som diegético estereotipado em seu volume, porém
sem música de fundo, e com aplicação em detalhes que chamam a atenção do
espectador. Esta tônica será mantida ao longo de quase todo o filme, como veremos
mais adiante.
No tocante à ordem da narrativa, César e Rógis optam, por vezes, pelo uso da
analepse (flashbacks), construída em cenas alternadas, formadas por planos rápidos, nos
quais a mãe mergulha em um processo de reflexão e preocupação sobre o
desenvolvimento da filha. Com cortes secos e cenas bem encadeadas, a narrativa vai-se
construindo por si só.
Tanto a duração quanto a frequência de cenas não acompanham o tempo da
estória, recontando passagens e utilizando-se de elipses. A montagem ocorre de uma
forma muito “natural”, que somente com a percepção bem apurada podemos observar
que ela nos leva a ter dúvida em relação à determinação dos pontos de vista e,
sobretudo, dos de escuta.
O uso na montagem de diversos tipos de raccord possibilita ao espectador
construir um sentido fidedigno à trama, vide o raccord de olhar (quando o olhar de um
personagem conecta a ação do próximo quadro) existente nos planos em que a mãe bebe
água, enquanto observa a filha pela janela; o raccord de eixo (quando o eixo da câmara
não é quebrado) oferecido nos diversos planos da sequência do caminhar da mãe absorta
pelo centro da cidade ao sair do trabalho; o de luz, quando são mantidas a temperatura e
a textura na luminosidade em todas as cenas do rio; e o causal, no plano em que a mãe,
atravessando a rua, utilizando abafadores de ruídos, antecipa ao espectador a conexão
com a (previsível?) cena em que poderia ser atropelada.
Ainda na sequência do rio, Rógis e César optaram por montar a cena com corte
seco, em planos que valorizam a representatividade da personagem da mãe e destacam a
sua busca desesperada por entender o mundo da filha. Esta valorização é alcançada pelo
uso de angulações na tomada de cena de diferentes graus de profundidade virtual
(plongée, zenital, plano inclinado), de forma a aguçar, gradativamente, a curiosidade do
espectador, o “chamando” ao que será mostrado.
A montagem se destaca pelo rico uso dos recursos sonoros, contudo algumas
ausências são bem notadas, como, por exemplo, a ausência de diálogos, só há um na
cena entre a mãe e a vizinha e, mesmo assim, é bem contido, quase imperceptível, muito
mais ocasional que intencional, consequentemente, não há o uso da regra dos 180°, sob
a égide da qual, em geral, os personagens se alternam nos papéis de emissor e receptor.
Um dos usos da montagem mais intensos se dá quando a mãe se põe a recordar
alguns dos momentos vividos com a filha, há então uma alternância de planos
desenvolvendo-se entre as Cenas 5, 6 e 7, que procuram, dramaticamente, enfatizar
alguns instantes íntimos e cotidianos na vida dura que as duas levam. Na primeira destas
Cenas supracitadas, a mãe está na fábrica trabalhando e os planos partem do fechado
(Close-up) para o aberto (Plano Geral), fazendo em seguida um retorno ao fechado e se
encerrando com um Plano Médio. Temos então um corte e vemos agora Sophia em
Primeiro Plano e a sua mãe desfocada ao fundo. Na banda sonora, mantêm-se os sons da
fábrica, o que ajuda, digamos, o espectador mais desavisado a saber que se trata de
lembranças da mãe, que está à máquina de costura trabalhando. Há o corte e a volta para
a Cena 5, num plano frontal da mãe com ar preocupado. A montagem agora nos levará à
cumplicidade existente entre mãe e filha, através da alternância de planos fechados das
duas, que se olham.

Frames de “Sophia” – Planos 1 e 2 da Cena 5 – Reprodução

Frames de “Sophia” – Planos 3 e 4 da Cena 5 – Reprodução

Para fechar a sequência, há mais dois planos da mãe trabalhando, intercalados


pelo Plano 8 da Cena 1, no qual vemos Sophia brincando com sua boneca dentro da
piscina vazia e sendo advertida pelo guarda. Toda esta sequência nos ajuda a
compreender a tensão que envolve a mãe durante o seu trabalho.

Frame de “Sophia” - Plano 8 da Cena 1 - Reprodução


Outro momento de força dramática adquirida através da montagem se dá quando
a mãe experimenta um pouco da surdez da filha, ao sair da fábrica ainda utilizando os
protetores de ouvido que usa durante o trabalho ruidoso da confecção. Ela caminha
assim pela rua, se senta em um banco de praça e segue seu percurso até parar em um
sinal de trânsito. Nesse instante, há uma das mais belas passagens do filme: ela para à
beira da rua, o enquadramento oferece a mãe em Close-Up lateral, com algumas pessoas
ao fundo, desfocadas, enquanto o som registra certo vozerio abafado; há o corte para a
câmera em movimento de baixo para cima na grua, revelando que ela agora está
sozinha, pois toda a rua está deserta e não há mais som. Ela olha para os dois lados e
caminha em direção ao meio da rua. Há um corte seco que a mostra em Plano Médio
com um carro buzinando bem próximo ao seu corpo, quase a atropelando. Som e
imagem emergem com força dramática, tirando-a de seu torpor e também a nós
espectadores.
O Som em “Sophia” - Virgínia de Oliveira Silva

O jovem diretor e roteirista Kennel Rógis foi selecionado para participar em


2012 do II Laboratório Paraibano de Jovens Roteiristas – II JABRE, coordenado pelos
Projetos Cinestésico e VIAção Paraíba, no município de Congo – PB, a partir do
argumento “Ondas”, baseado em fatos reais com o qual se inscreveu no certame.
Procurando narrar a busca por estabelecer algum elo entre dois mundos internos
distintos, o da mãe e o da filha, personagens centrais de seu terceiro curta-metragem,
“Sophia”, Kennel Rógis mergulha na intimidade cotidiana dessa micro família de classe
popular, moradora de uma cidadezinha do sertão nordestino.
Analisaremos aqui este curta pela perspectiva do som que, como veremos, se
revela, seja pela sua presença ou por sua ausência, o elemento primordial para a costura
da continuidade de suas cenas, para a construção da ambiência de sua narrativa fílmica e
para a sua própria significação, lembrando o que nos informa Rógis (2014): “O som é a
alma de ‘Sophia’, a captação direta foi feita pelo cineasta Gian Orsini, mas o trabalho de
concepção sonora e pós-produção foi pensado bem antes do set”, e não se esquecendo
do que afirma Orlandi:

O homem está “condenado” a significar. Com ou sem palavras, diante


do mundo, há uma injunção à “interpretação”: tudo tem de fazer
sentido (qualquer que ele seja). O homem está irremediavelmente
constituído pela sua relação com o simbólico. (ORLANDI, 1993, pp.
31-32)

Metodologicamente, para que possa ser mais bem observado o que trilharemos
nesta parte do trabalho, oferecemos em anexo a ele a Análise de Plano a Plano (APP) de
“Sophia”, à qual se pode remeter antes, durante ou depois de sua leitura, conforme
melhor aprouver a quem o ler.

Gostaríamos de, inicialmente, destacarmos dois pontos relevantes à consecução


e entendimento de nossa análise. O primeiro trata-se daquilo que afirma Metz (1977) a
respeito da etimologia do termo diegese:

(...) provém do grego diegesis, significando narração e designava


particularmente uma das partes obrigatórias do discurso jurídico, a
exposição dos fatos. Tratando-se de cinema o termo foi revalorizado
por Étienne Souriau; designa a instância fílmica: o enredo em si, mas
também o tempo e o espaço implicados no e pelo enredo, portanto as
personagens, as paisagens, acontecimentos e outros elementos
narrativos, desde que tomados no seu estado denotado. (METZ, 1977,
p. 118)

O segundo ponto é o destaque que trazemos às palavras de Flôres (2013), quanto


à relação do som no cinema ficcional:

(...) por mais que o som se assemelhe a algo natural, ele sempre será
uma fabricação inerente ao processo criativo de todo filme nos mais
variados estilos. Até mesmo o som direto se torna diegético, na
medida em que é sua adequação ao espaço criado que o integra à
narrativa. (FLÔRES, 2013, p. 37)

Prosseguimos pontuando que dentre os elementos possíveis de serem


sonoramente analisados na diegese cinematográfica (voz, música, ruído e silêncio),
detectamos a quase total ausência de vozes, pois somente identificamos o balbucio
mínimo de um possível “Bom dia” trocado entre a mãe de Sophia e sua vizinha, e no
qual o modelo de escuta semântica está severamente comprometido. No mais,
contrariando a tendência ao vococentrismo e ao verbocentrismo, tão característicos ao
cinema clássico, sobretudo ao estadunidense, não há monólogos, diálogos, voz de
narrador em primeira ou terceira pessoa.

Frames de “Sophia” - Planos 1 e 8 da Cena 1- Reprodução

Frame de “Sophia” - Plano 8 da Cena 8- Reprodução


Quanto aos ruídos do filme, via de regra, notamos que eles correspondem ao que
vemos nas imagens de “Sophia”, ou seja, na procura de se tecer verossimilhança para se
produzir maior grau de realidade na relação com o espectador, estão colados a elas e a
elas subordinam-se, com exceção dos Planos 1 e 8 da Cena 1 e do final do Plano 8 da
Cena 8, em que som e imagem estão totalmente descolados, não compondo a clássica
montagem vertical eisensteiniana (CHION, 1985, p. 56), provocando-nos como
espectadores a pensar o modelo causal de escuta: se, ao contrário de todas as outras
cenas, nestas, imagem e som são independentes e autônomos, de onde vem o som que
ouvimos? O som parece-nos, assim, querer antecipar a locação do plano seguinte.
Mas, longe de ser um filme meramente naturalista, mais relacionado à
ancoragem e à sincronia sonora, no qual o trabalho do técnico de som direto, Gian
Orsini, fosse, por excelência, a trilha usada por Kennel Rógis e Breno César para
montar e mixar o som do curta, o que ouvimos sugere uma escolha do diretor (que,
repetimos, também é o editor de som e o seu mixador) que vai muito mais além.
Ou seja, existe escolha neste trabalho, e esta seleção leva em
consideração justamente as características de cada som, sua
materialidade e sua singularidade, além de todas as possibilidades
imagéticas por eles suscitadas mentalmente. (FLÔRES, 2013, p. 30)

Há em “Sophia” também minúcias sonoras, ouvimos o barulho da pedra lançada


pela amiguinha de Sophia durante o jogo de amarelinha, do grilo cantando à noite
enquanto mãe e filha dormem, por exemplo, o que cria um hiperrealismo sonoro, já que
no cotidiano não costumamos ouvir tais ruídos.
Ou seja, para além de promover uma espacialidade fílmica, os ruídos criados na
pós-produção nos dão outra dimensão da construção deste ambiente ruidoso: tudo
parece ser audível, seja através da eletricidade, da bateria ou da pilha (aparelhos e
aparatos eletrônicos como máquinas de costura, liquidificador, buzina e rádio) ou da
força mecânica (como a bica da cozinha, a máquina de costura movida a pedal, a carne
que frita e o fogo da boca do fogão, sendo manuseados, por exemplo).
Mas, quando a mãe de Sophia sai da fábrica com o protetor de ouvido ou quando
experimenta no meio líquido as sensações de ter e não ter a audição plena, na tentativa
de penetrar um pouco na realidade do “mundo de Sophia”, o que se percebe é a ausência
ou o abafamento de grande parte desses ruídos e sons, paradoxalmente, nos trazendo a
presença dos ruídos interrompidos de modo retrospecto: apercebemo-nos de sua
existência excessiva ainda melhor em sua falta, em sua ausência.
É claro que a sensação sonora mais comum (o som ser melhor percebido em sua
presença em tempo real) também é experimentada no filme, como na cena em que a
mãe, ensimesmada, está aparentemente sozinha em uma rua deserta e o som diegético
desaparece por completo. Ela olha para um lado e para o outro e dá um passo em
direção à rua para atravessá-la. Ao atingir o meio da rua, há um corte e o som volta de
forma clara, alertando-a, dado a propagação da emissão da buzina do carro que quase a
atropela na mesma rua que antes lhe parecera deserta. Ela retira o protetor de ouvido e
surgem nitidamente os sons de mais buzinas e o ruído de água abundante, não só
anunciando a próxima cena da narrativa fílmica, como associando tal ruído ao estado de
forte turbilhão em que se encontra o seu interior em desalinho. O momento do corte
entre esses dois planos (Planos 7 e 8 da Cena 8), um imerso em silêncio e outro,
mergulhado no som, faz com que boa parte do público salte em sua poltrona, revelando
o quanto de envolvimento físico, para além do mental, o cinema solicita aos seus
espectadores.
As sensações buscadas e experimentadas pela personagem principal
(Joana - interpretada pela atriz Joana Marques) tinham que ficar
evidentes no filme para que as pessoas também viajassem junto à mãe
de Sophia; o ruído exagerado, a cena do "quase atropelamento", o
mergulho no rio entre outras ações, foram pensadas para que o
espectador embarcasse de forma sensorial na busca de Joana em se
colocar no lugar da filha por alguns instantes. (RÓGIS, 2014)

Frames de “Sophia” – Planos 7 e 8 da Cena 8- Reprodução


Ora detectamos na narrativa fílmica que o ponto de escuta (não só no que diz
respeito à localização, mas também no que se refere a quem escuta, segundo CHION,
1985, p. 51, citando BAILBLÉ, Claude. Cahiers du Cinéma, nº 292, p. 23) é o da
personagem-mãe (como na cena em que mergulha nas águas da represa, e que
analisaremos mais adiante), ora percebemos ser o ponto da personagem-título, Sophia,
que a rigor seria o de sua negação, ou seja, o de não-escuta (como nos Planos 18 e 19 da
última cena do curta, de que também falaremos mais adiante), mas há também pontos de
escutas objetivos, mais associados ao espaço propriamente dito, que servem para tecer a
dimensão da espacialidade das locações. Flôres (2013, p. 46) aponta, exatamente, que a
realidade sensível dos sons só é alcançada através da escuta. Nós acrescentaríamos uma
predicação ao substantivo: escuta atenta.
Em relação ao elemento música, afirmamos que a primeira canção que ouvimos
no curta é “de tela”, diegética (CHION, 1994), pois, na representação fílmica, aparenta
se originar do velho rádio de pilha que Sophia traz para a cozinha, ligando-o fora de
estação, na tentativa de alegrar sua mãe, que o sintoniza, muito embora o seu som
continue ainda soando um tanto chiado e interrompendo por vezes a execução da peça
musical.
O conteúdo da música é inegavelmente uma declaração de amor e entrega, e sua
letra, embora seja cantada pelo nacional Trio Ternura, está em italiano, o que serve
para, ao mesmo tempo, dar a impressão de estar reforçando o discurso das imagens e
entrando em discrepância com ele: ”Tua, / tra le braccia tue / solamente / tua, cosi / Tua,
/ sulla bocca tua / finalmente mia, cosi” é uma de suas estrofes cantadas, enquanto
vemos nas imagens não algum casal enamorado em alguma paisagem italiana, mas o
interior de uma casa popular de alguma cidade periférica do Nordeste brasileiro (mais
especificamente, Coremas), na qual mãe e filha dançam e se abraçam. O desejo de
Sophia consolar a mãe e trazê-la de volta do mergulho que dera em um mar de tristeza e
preocupação parece ser corroborado pelos versos da canção acima citados.
Nas cenas internas imediatamente anteriores a estas, vemos a mãe em seus
afazeres domésticos e ouvimos os sons e ruídos que produz nesta lida, através dos
aparatos dos quais se utiliza. Todos os sons estão superdimensionados, crescidos como
as respectivas imagens às quais se colam nos Planos Detalhes em que cada objeto é
capturado, criando um hiperrealismo narrativo: tanto visual quanto auditivo.

Frame de “Sophia” – Plano 2 da Cena 11- Reprodução


Quando ouvimos a segunda música pela primeira vez, “Meu amor é teu” soando
do nada (GORBMAN, 1987) a partir do Plano 2 da Cena 9 do filme, testemunhamos a
solidariedade natalina de duas amigas de trabalho da mãe de Sophia, que estando ainda
preocupada com todos os seus problemas financeiros, acaba por surpreender-se
positivamente ao receber um presente animador, tanto que ela se permite mergulhar em
um momento “lembrança” (que o diretor cria através de um clipe em flashback,
formado por enxertos de diferentes imagens e pelo artifício do uso da música “de
fosso”, extradiegética) de algumas de suas várias ações ao lado da filha, que, por fim,
volta a observar a brincar com uma boneca negra em meio ao ambiente de seu trabalho,
já que não dispõe, como tantas brasileiras na vida real, nem de acesso a equipamentos
públicos (seja pela inexistência dos mesmos) ou privados (seja pela impossibilidade de
arcar com os custos) próprios ao atendimento das necessidades de Sophia, nem de
pessoas familiares ou vizinhas com quem deixá-la sempre. A letra dessa canção dialoga
plenamente com o que vemos ocorrer entre mãe filha em cena - a mãe renova o amor
que sente pela filha especial através de seu olhar, de suas lembranças e das ações que
fará com o presente que ganhou:

Parte do encarte do CD “Toque Dela” de Marcelo Camelo -Reprodução

Ou seja, o uso da música aqui serve para confirmar as imagens do filme, as


reforçando: a mãe dedicada usa a quantia que inferimos ter recebido no envelope que
encontra dentro do livro dado pelas colegas, para adquirir e oferecer, por sua vez, um
presente de Natal para a filha (um aparelho de som novo e muito mais potente que o seu
velho rádio de pilha). Corroborando também o conceito do uso da música “de fosso”,
não “visível”, como elemento que serve para sublinhar determinadas emoções e
possibilitar o seu entendimento, assinalando dados pontos da narrativa fílmica para o
espectador (neste caso, o tema do amor materno à filha especial); para propor
continuidades; e para suavizar passagens complexas de cortes entre cenas. Além disso, a
música aqui se subordina às imagens, pois se quebrar esse aspecto, ela se fará notar,
deixando de ser “inaudível” (GORBMAN, 1987). Ou seja, a música vai atrás do que as
imagens demandam (nem que seja a mesma coisa ou uma coisa diferente das imagens),
dando certo sentido à narrativa e conforto ao espectador (em geral, oferecendo muito
maior correspondência do que o contrário). Como notamos, no momento exato em que a
sala escura se enche de luzes desfocadas, quando a música empática volta a soar,
aparecem os créditos finais do curta, buscando ainda aqui causar certa comoção nos
espectadores. Como destaca Gorbman:
A música surge no cinema clássico como um dos signatários da
emoção. Sabaneev descreve a faixa de imagem, diálogo e efeitos
sonoros como "puramente fotográficos", elementos objetivos do filme,
para os quais a música traz uma necessidade emocional, irracional,
romântica, ou uma dimensão intuitiva. A Música é vista como algo
que aumenta a representação externa, a objetividade da pista de
imagem, com a sua verdade interior. Sabemos que os compositores
adicionam música cativante a uma cena de perseguição para aumentar
a sua excitação, e uma orquestra de cordas flexiona cada voto de
devoção em um encontro romântico para mover os espectadores mais
profundamente, e assim por diante. Acima e além dessas conotações
específicas emocionais, porém, a música em si significa emoção,
profundidade, segundo a lógica. (GORBMAN, 1987, p.79, tradução
nossa)11

O quarto elemento sonoro possível de ser analisado em um filme é justamente o


silêncio que serve tanto para sublinhar em uma produção uma dada ação ou cena quanto
para pontuar uma mudança narrativa para a qual o cineasta pretende chamar a atenção
do espectador. De fato, pela própria temática que o conteúdo do filme aborda, o silêncio
não poderia deixar de ocorrer em “Sophia”, como se percebe, por exemplo, quando o
som some antes de aparecer a cartela com o título entre 4 espécies de aspas, duas em
cima e duas embaixo do seu começo e de seu fim, paradoxalmente, como se costuma
fazer quando se pretende sugerir a través do desenho a propagação do som no espaço.

11
No original: “Music appears in classical cinema as a signer of emotion. Sabaneev describes the image-
track, dialogue, and sound effects as “the purely photographic”, objective elements of film, to which
music brings a necessary emotional, irrational, romantic, or intuitive dimension. Music is seen as
augmenting the external representation, the objectivity of the image-track, with its inner truth. We know
that composers add enthralling music to a chase scene to heighten its excitement, and a string orchestra
inflects each vow of devotion in a romantic tryst to move spectators more deeply, and so on. Above and
beyond such specific emotional connotations, though, music itself signifies emotion, depth, the observe of
logic.” (Livre tradução de SILVA, V. O. de)
Frames de “Sophia” – Planos 18 e 19 da Cena 14- Reprodução
Mas o silêncio também é nele utilizado para que o espectador possa se
identificar, como dissemos antes, com o ponto de não-escuta da personagem surda
Sophia, como percebemos nitidamente nos citados planos 18 e 19 de sua derradeira
cena.
Concluímos como Orlandi (1993, p. 94) em sua pesquisa acerca da questão do
silêncio que “há um trabalho silencioso na relação do homem com a realidade que lhe
propicia a sua dimensão histórica, já que mesmo o silêncio é sentido.” Sophia e sua mãe
conseguem, enfim, se comunicar com plenitude e eloqüência tanto através da
cumplicidade do olhar, quanto por meio da vibração física que a música imprime aos
seus corpos e aos objetos que ambas tocam em mútuo silêncio. Nós, espectadores,
também nos sentimos tocados pelo muito que é dito neste momento, mesmo que nele
não seja pronunciada palavra alguma. Eis a força da arte cinematográfica.

Referências

ANDREW, Dudley. As principais teorias de cinema. Uma introdução. RJ: Zahar, 1989.
AUGUSTO, Maria de Fátima. A montagem cinematográfica e a lógica das imagens.
SP: Annablume, 2004.
AUMONT, Jacques e Marie, Michel. A análise do Filme, Edições & Fotografia. Lisboa,
Portugal, 2004.

CHION, Michel. Le son au cinéma. Édtions d l’ Etoile/Cahiers du Cinéma. Paris, 1985.


_____. Audio-Vision: sound on screen. Columbia University Press, New York, 1994.
DANCYGER, Ken. Técnicas de edição para cinema e vídeo. RJ: Elsevier, 2003.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 2004.
FIELD, Syd. Roteiro - os fundamentos do roteirismo. Curitiba, Paraná: ARTE &
LETRA, 2009.
MOURÃO, Dora e LEONE, Eduardo. Cinema e montagem. SP: Brasiliense, 1987.
METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1977.
MURCH, Walter. Num piscar dos olhos. RJ: Zahar, 2004.
REISZ, Karel e MILLAR, Gavin. A técnica de montagem cinematográfica. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira/Embrafilme, 1978.
FLÔRES, Virgínia. O cinema: uma arte sonora. São Paulo: Annablume, 2013.
GORBMAN, Claudia. Unheard melodies – narrative film music. Bloomington: Indiana
University Press, 1987.
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos, 2ª
edição, Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1993.

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