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Para uma Filosofia do

Inferno na Educação
Niet^sche, Deleu^e e outros malditos afins
Sandra Mara Corazza

Para uma Filosofia do


Inferno na Educação
Niet^sche, Deleu^e e outros malditos afins

* * * * * •' ü K - ^

Autdntlca

Belo Horizonte
2002
Copyright O 2002 by Sandra Mara Corazza

Projeto gráfico da capa


Jairo Alvarenga Fonseca
(Sobre marionetes indonésias de couro "wayang kulit")

Editoração eletrônica
Waldênia Alvarenga Santos Ataide

Revisão de textos
Ana Elisa Ribeiro

Corazza, Sandra Mara


C788p Para uma filosofia do inferno na Educação : Niet-
zche, Deleuze e outros malditos afins / Sandra Mara
Corazza . — Belo Horizonte : Autêntica , 2002.
104 p.
ISBN 85-7526-059-6
1.Filosofia. 2.Educação. I.Título.
CDU 137

2002

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora.


Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida,
seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica,
sem a autorização prévia da editora.

Autêntica Editora
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www.autenticaeditora.com.br
e-mail: autentica@autenticaeditora.com.br
AJairAlves Rodrigues, mãeprofessora e
Lui^q Vieira Alves, avófeiticeira,
que me passaram em trevas e lu%,
para que eu não fosse mais a mesma.
Sumário

Uma história a modo de apresentação 09

Um livro infernal 11

Entradas e saídas para inventar um problema:

linhas do Diabo, geografia do Inferno 15

Experiência perigosa, que assusta os funcionários 29

Amigo do estranho? Não, Estranho em potência 37

Mil-folhas do inferno movente 43

Os infernais 49

O diabo do currículo 61

Os bons(?) os maus(?):
genealogia da moral da Pedagogia 67
Nós, mulheres-professoras, ainda queremos
ser deusas e bruxas? 75

Rasgar o Armamento, mergulhar no caos,


retornar da morte 95

Idéias-força: referências bibliográficas 97


Uma história a modo de apresentação

Alfredo Veiga-Neto

L o m o qualquer outro, este livro tem uma história. Dife-


rente de qualquer outra, a história deste livro passa por muitas
fases: um pedido, uma surpresa, uma dúvida, uma decisão, uma
interpelação, outra decisão, uma quase-lástima e uma esperança.
Explico.
A história começa quando pedi que Sandra escrevesse um
livro para a "minha" Coleção"... Poderia ter por título, por exem-
plo, Dekuze <& Educação. Ela aceitou e se atirou ao trabalho.
Fiquei tranqüilo, pois conheço bem a dedicação e a competên-
cia da antiga colega.
Poucos meses depois, a surpresa: o que Sandra me entre-
gou não era nem Deleusçe & Educação, nem mesmo Outro Autor
Qualquer & Educação, mas um tema, um estranho tema - o
inferno... Li e reli os originais. E é claro que gostei; e gostei
muito! O livro se chamaria Inferno & Educação.
Mas logo me veio a dúvida: algo me dizia que ali estava um
livro que talvez fosse - ao mesmo tempo, mas não contradito-
riamente - meio desajustado e muito transbordante para a li-
nha que a Autêntica e eu estamos imprimindo à "minha" Coleção. De
um lado, achei-o meio desajustado, na medida em que nem se
tratava de um livro muito preocupado com uma exposição,

1
Refiro-me à coleção Pensadores & Educação, irmã gêmea de Temas ér Educação,
ambas coordenadas por mim para a Autêntica Editora.
digamos, didática sobre o tema escolhido, e nem mesmo tal
tema está na ordem do dia das discussões pedagógicas, em nosso
país. Mas, por outro lado, achei-o transbordante, na medida em
que ele ia bem além, em termos de provocação e de inovação,
daquilo que planejamos ser e daquilo que está sendo a Coleção.
De qualquer maneira, avaliei que o livro enriqueceria bas-
tante o cardápio de Temas & Educação. Assim, decidi imediata-
mente colocá-lo na lista de lançamentos de 2002.
É aí que intervém a interpelação. Em parte muito entusias-
mada com o que leu e em parte também assaltada pela dúvida
sobre o desajuste e o transbordamento de Inferno & Educação,
Rejane Dias dos Santos - essa "autêntica", incansável e corajo-
sa oxigenadora do que se publica hoje, no Brasil — sugeriu que
o livro ganhasse vida própria.
De imediato, concordei. Por um lado, quase lastimei que a
Coleção perdesse um título; por outro lado, regozijei-me de que
o livro ganhasse destaque e um espaço próprio para voar. É
esse destaque à autora e à sua obra que me convence de que
todos saímos ganhando.
Esta pequena história termina com uma esperança. Para-
fraseando o que Jorge Larrosa diz sobre a leitura de Nietzsche,
espero que este livro não deixe em paz seus leitores e suas leito-
ras; que ele não nos deixe em paz.2 Espero que ele contribua
com novos ares e novos desafios para as discussões que rolam
entre nós, no campo da Educação.
Explicada a história, me dou conta de que talvez esta apre-
sentação esteja longa demais. E mais: o próprio livro não preci-
sa de uma explicação que vá além da sua história. Qualquer
comentário não passaria de uma repetição do que ele já diz. Por
isso, deixemo-lo falar por si mesmo.

2
Trata-se do Capítulo I - \jr em direção ao desconhecido. Para além da Hermenêu-
tica -, de Nietzsche e> Educação, de autoria de Jorge Larrosa e publicado
pela Autêntica Editora, na coleção Autores <& Educação.

10
Um livro infernal

1
\J livro Para umafilosofiado inferno na Educação... inte-
gra-se à crítica da subjetividade, tal como operada pelo
pensamento pós-nietzscheano das filosofias da diferença.
Do próprio Nietzsche, e também de Deleuze, Guattari,
Foucault, Derrida, dentre outros pensadores malditos,
rouba conceitos, atraiçoa-os e com eles inventa uma espé-
cie de máquina abstrata infernal para discutir a crítica do
sujeito da Educação, que é também a do mundo, da socie-
dade, da história.
Com tal máquina, problematiza o sujeito essencialmen-
te representativo, coerente, ativo, autônomo, consciente, ra-
cional, submetido ao Princípio da Identidade Universal, ca-
paz de exorcizar toda forma de diferença. Critica a condição
transcendental desse sujeito, buscando dissipar a sua identi-
dade, erigida como fundamento da experiência, do conheci-
mento, da moral e das relações pedagógicas.
Considera que essa identidade nada mais é do que uma
ficção sobre a natureza humana, seja ela psicológica, huma-
nista, fenomenológica, dialética, cristã. Ficção que se eleva
ao estatuto de verdade, oferece-se como princípio causai e
sentido onipresente, permitindo à Educação organizar a

11
apropriação de todos os corpos educáveis. Além de exercer
uma função mais prática, ao servir de ponte para que cada
indivíduo educado persiga a inteligibilidade de seu corpo-
alma e valide a sua unidade de Sujeito-Verdadeiro.
Ficção-prática que faz do sujeito unitário da Educação
um ser idêntico ao pensamento de si mesmo. Uma forma-
e-função de sujeito modelar, que é, para este livro, O Pro-
blema. Já que possibilita às práticas educativas substan-
cializar, represar, fixar as relações e conexões entre todas as
multiplicidades e individualidades atuantes na Pedagogia,
no Currículo, na Escola.

Se o inferno atravessa o mundo da Educação, ele pode


aterrorizar o seu pensamento. Este livro convida o pensa-
mento educacional a pensar o inferno, torná-lo o seu ponto
de alucinação, tomá-lo como uma arma de guerra capaz
de atirar projéteis, em velocidade absoluta, contra as for-
talezas da Bem-Aventurança Educacional, que protegem
a Boa-Vontade do Educador, que ensina A Verdade, e cap-
turam a idéia da Boa-Natureza do Pensamento, que pos-
sui O Verdadeiro.
Ao realizar uma experimentação com o inferno, o livro
busca formular novas indagações, valorar outros valores,
conceber novos afetos, adensar diferentes emoções. Pode
ser visto como uma fantasia, um sonho, um trabalho de
imaginação ardente. Precisará ser lido como não contendo
nada a compreender ou interpretar e tudo a estranhar. Inda-
gado se os seus escritos aumentam a potência da Educação
para pensar, agir, criar. Se o que está oferecendo à leitura
convém à expansão, ultrapassagem, supressão da identidade

12
individual e coletiva dos pesquisadores da Educação, e se os
leva à perdição de si mesmos.
Poderá ser criticado por ter pouco a ver com o racio-
nal, o sistemático, o acadêmico, com a teorização científica,
grave, séria da Educação. E até propõe-se isso mesmo. Sem
ser uma concessão ao exotismo, ao esoterismo ou à escato-
logia, o livro reivindica a sua enfermidade ficcional, a sua
anomalia criativa, o seu estado valetudinário. Acredita que,
somente por meio da loucura exaltada do pensamento, a
imaginação educacional poderá traçar o seu próprio plano
de imanência e criar seus personagens, enquanto a inven-
ção conceituai instaura a sua festa.
Festa da qual participam o incomum, a magia da trans-
formação, a soltura de velhos conceitos, a abertura para o
pensamento operante, o dobramento da linguagem sobre si
mesma. Da qual participam personagens, de intensidades
diferentes, convidados a irromper em cena e promover um
total estranhamento do pensamento educacional e sua dis-
solução no caos da novidade. Festa que comemora a ética, a
estética e a política de personagens neutralizados, violenta-
dos, satanizados pelo logofonocentrismo e por toda obra
civilizadora do Ocidente. Os quais, com seus corpos sem
órgãos, fluxos malignos, desejos sem falta, força sobrenatu-
ral, limiares demoníacos, modificam os traços diagramáti-
cos do pensamento da subjetividade e os traços intensivos
do conceito de sujeito da Educação.
Personagens infernais, que, entretanto, não são convo-
cados por este livro para nenhuma verificação ou prova. Ao
serem evocados, simplesmente fazem-se presentes, em sua
realidade de surpresa, agenciamentos de espanto, línguas
de fogo, tumultos, saltos, vôos, travessias. E assim, ao pro-
moverem devires-infernais, no pensamento educacional,
interrogam a produção e a vida de cada um de nós.

13
Cercados de perigos, mas adotando algumas precau-
ções de prudência, os textos deste livro, inicialmente, bus-
caram reavivar fogos de criação e reviver espíritos ainda
não dominados dos alunos e alunas de Mestrado e Dou-
torado, que cursaram o meu Seminário Avançado Para uma
filosofia do inferno na Educação..., desenvolvido em 2001/1,
no Programa de Pós-Graduação em Educação da Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul. A eles e a elas, mi-
nha gratidão pelos encontros, escutas, discussões, críticas,
efeitos. E, principalmente, pela confiança amiga com que
se deixaram conduzir e me acompanharam nessa primeira
viagem ao inferno da Educação.

Em tal viagem, todos eram inexperientes, já que proce-


diam de outro mundo, em que se pensava diferentemente a
Educação. Os que viajavam traçavam o plano, à medida que
era descoberto; inventavam conceitos, movimentando-os em
si próprios; criavam personagens infernais, dos quais ignora-
vam o fim. Em suas práticas de pesquisa educacional, expe-
rienciavam potências expressivas e forças interrogativas in-
fernais, para fazer devirem novas maneiras de ver e ouvir e
sentir e pensar. Fabricavam mundos e personagens de in-
quietante estranheza, para povoar os discursos pedagógi-
cos e curriculares investigados. Achavam que filosofar o in-
ferno cria um material de pensamento capaz de captar a
miríade de forças do cosmo: única resistência ao intolerável
atual da Educação. Do mesmo modo como seria bom que
leitoras e leitores deste livro também achassem, captassem
e, com isso, resistissem.

14
Entradas e saídas para inventar
um problema: linhas do Diabo,
geografia do Inferno.

Sob uma forma desfiada, granulada,


disseminada, aforística, descontínua, dogmática
às vezes, indicativa ou virtual na maioria.
Em suma, entradas e saídas econômicas, úteis.

É fácil
JL/izer que o Inferno não tem data de nascimento, que
é tão velho quanto o mundo, um dos mais antigos pesade-
los da humanidade, vinculado ao medo do desconhecido e
da morte... é fácil. Que o Diabo é idéia, história, linguagem,
cultura, crença, ficção, metanarrativa de inúmeras gerações,
feitas para guiar de modo moral a vida terrena, na socieda-
de, nos grupos, na relação consigo... é fácil. Que o Inferno
e o Diabo vão além do dogma cristão e sobrevivem a todos
os seus refluxos, que pertencem a toda a humanidade, tan-
to a crentes quanto a não-crentes, e são usados como estra-
tégias de controle e regulação, forma matricial de qualquer
ideologia e movimentos de fetichização, fabricados pelas Igre-
jas, teólogos, governantes, diretores de consciência, confesso-
res, legisladores, famílias, educadores... é fácil. Que, como a

15
hidra, são completamente indestrutíveis, têm mil cabeças,
que se refazem constantemente, em torno das experiências
do Mal, da Falta Moral, do Castigo e do Sofrimento que se
lhe devem seguir... é fácil. Que todas as encarnações da bi-
naridade Bem versus Mal aí disputam o predomínio do pri-
meiro termo, também. Que a onda atual de esoterismo,
misticismo, fanatismo, fundamentalismo, integrismo deriva
de tais noções, idem.
Como as coisas estão longe de ser fáceis, vamos com-
plicar o que pode ser complicado, para nos ajudar a pensar
melhor, para sair da beatitude sem graça que ameaça cons-
tantemente o nosso pensamento. E, como algumas mani-
festações de coisas infernais e a potência de personagens
demoníacos, neste preciso momento do mundo da Educa-
ção, são sem precedentes, vamos ter de mostrar, tanto para
o melhor quanto para o pior, sem horizonte de expectativa
antropo-teo-teleológica, nem prefiguração profética, o que
é que se passa com elas e conosco.
Para isso, teremos, com Artaud, de escrever para anal-
fabetos, falar pelos afásicos, pensar pelos acéfalos. Estes
"pelos" e "para" não são "em nome de" mas "diante".
Diante, como questão para criar linhas vivas e quebradas
do pensamento educacional. O pensador do inferno pode
não ser analfabeto, afásico, acéfalo, mas deve se tornar
um, uns. Pensar e falar e escrever para os infernais. Para
que estes também se tornem outra coisa: pensadores e fa-
ladores e escritores da Educação. Sendo o devir sempre
duplo, dupla captura, núpcias sem casal, evolução a-para-
lela, é preciso que o filósofo do inferno torne-se cada vez
mais sóbrio, mais simples, mais deserto e, por isso, mais
povoado. Ou seja: torne-se não-filósofo, personagem in-
fernal, intelectual diabólico.

16
O diabólico aparta

Diabo é a tradução grega do satanás hebraico. Signifi-


ca opositor, adversário, inimigo. Já demônio é gênio, espí-
rito, inteligência. Sócrates tinha - ou Platão inventou que
tinha - o seu daimon particular, com quem dialogava. A
junção diabo/demônio começou a ocorrer com a Inquisi-
ção e fortaleceu-se com a invenção do inconsciente indi-
vidual na Modernidade. Então, diabo/demônio passou a
ser importante na educação dos infantis, na pastoral cristã
do medo, na ordem mundial capitalista, nos divas de edipia-
nização, em todas as máquinas binárias de Estado. Exerceu
uma função positiva na cultura do Ocidente, foi um im-
portante fator constitutivo de novos governos, sociedade, ra-
cionalidade, tempo-espaço, organização do trabalho.
Etimologicamente, o dia-bólico separa, divide, aparta.
Contrapõe-se ao sim-bólico, que sintetiza, reúne, unifica.
Desde aí, o diabólico pode ser pensado como multiplicida-
de, sem unidade. Como intersecção de coleções, trabalhada
por várias dissonâncias, que fazem circular os palavreados
de muitas outras. Como hecceidade, individuando-se dife-
rentemente de um sujeito, pessoa, substância. Como "Esta
coisa", que estabelece relações de movimento e repouso,
velocidade e lentidão, poder de afectar e ser afectado. Lon-
gitude e latitude do diabólico na Serpente e no Dragão, em
nosso devir-réptil de sangue frio, rastejamento inumano,
animalidade não-mamífera: puro instinto sem afetividade,
pura intuição sem razão, puro sexo sem sentimento.
Individuação concreta comandando metamorfoses, o
diabólico é revolta contra os indivíduos que insistimos em
ser; resistência contra nossas posições de sujeitos, ocupa-
das pela consciência representativa; eliminação de todos os

17
nossos objetos, formas essenciais, fundamentos de huma-
nidade, projetos de santidade. Ele fala e age em nós, quan-
do numa hora, estação, vida inteira, agimos e falamos
impessoalmente com o mundo, conosco mesmos, com os
outros, derivamos para animados e inanimados, animais e
vegetais, minerais e estelares, quando executamos perfor-
mances desregradas, experimentamos práticas vertiginosas,
perigosas, malignas.

Não morre

Como personagem infernal, o Diabo encarna uma dada


época, sentimentos, medos, angústias, ameaças de conde-
nação, lugares, pestes, calamidades demográficas, práticas
de bruxaria e de guerra? Ameaçador e ao mesmo tempo
sedutor. Vida e morte: essa é gangorra na qual o Diabo
brinca? Ele é barreira ao fratricídio inerente ao laço social?
É necessário como limitador do mal-estar na civilização?
Por isso é tão vital? Por isso não desaparece das culturas,
mas ressurge com mil faces sempre renovadas?
Na televisão, na literatura, na música, nos vídeoclips, na
internet, na vida cotidiana: - "O trânsito tá um inferno"!
"Aquela... é uma diaba"! "O chefe está endemoniado"! "Eu
sou mesmo diabólica"! "Ele é maligno"! Por que retorna?
Será que, porque mais do que símbolo, significante, regime
de signos, metáfora ou metonímia do Mal, o Diabo é um
devir-diabólico?
E, ao mesmo tempo, por que nos seduz tanto? Por que
as salas de cinema lotam para ver O exorcista, KingKong, Ali-
en, o oitavo passageiro, 0 estranho caso do Dr. jekjill e Mr. Hjde, 0
iluminado, O bebê de Rosemary, A profecia, Psicose, A bruxa de
Blair, Carrie, a estranha, O décimo oitavo anjo, Entrevista com o

18
vampiro, A hora do pesadelo, O sexto sentido, Filha da lusç, Do-
minação? Nessas narrativas de suspense com toques sobrena-
turais, por que todos os diabólicos, dentre eles Freddie Kruger,
Regan, a menina-possuída. e Tubarão nos atraem tanto?
Será a nossa porção bestial, perversa, que é depositada neles?
Eles são duplos queridos de nosso lado demoníaco?
Horror, pavor, terror, arrepios. Vampirismo, licantro-
pia, possessão. Mistério, decadência, doença, aleijume, morte
em vida, segunda morte. Perda da consciência, crise dos
paradigmas científicos, desordem lógica, pesadelo da razão,
abolição da fenomenologia, borramento da dialética, des-
truição da hermenêutica. Os diabólicos são perigosos para
a natureza humana, para o sujeito ativo, consciente, auto-
referenciado, para sua identidade e normalidade. Interessa
questionar como puderam firmar-se no Esclarecimento. São
resíduos, dejetos, sombras? O que sobrou, nas trevas, quando
as Luzes tentaram iluminar cada porção do mundo e dos
seres? A escuridão da cegueira que resultou do excesso de
proximidade da luz?
Os diabólicos são fantasmas do humano, efeitos de seu
pesadelo antropomórfico? Pensamento do Mesmo, sempre
disposto a denegar e exorcizar, reordenar e digerir, recha-
çar e conquistar, elidir as outridades do Outro? Mitologia
científica da Natureza Humana, desumanizadora de todos
os diferentes efetivos e, num mesmo lance, apoio à idéia da
Identidade Universal? Ficção humanista, que fez amnésia
de todas as novidades, ordenou ou proibiu o que quis ser
alguma coisa, criou nadas, resíduos, derivas, errâncias, ros-
tos vazios e lacunares, justificou o racismo, a escravidão, o
colonialismo, o extermínio? Ou os diabólicos são a inco-
mensurabilidade do humano, sua exterioridade radical?

19
Monstro

O Diabo é um monstro? É monstruoso? Pode ser ana-


logizado a todos os descritos pela Teoria dos Monstros?
Ele também é híbrido, liminar, não-binário, diferença pura, o
terceiro termo, o outro dialético? Inscreve uma alteridade
cultural, política, racial, econômica, psíquica, sexual, de gêne-
ro? Incorpora o Fora, o Além, o Mal, mas origina-se no Den-
tro, no Mesmo, no Eu? Possui uma ameaçadora falta de
humanidade, como os negros bruxos e os judeus canibais,
maometanos infiéis e índios idolatras, putas e invertidos, lou-
cos e delinqüentes, feiticeiros e pecadores, povos bárbaros e
culturas selvagens? Ou esses monstros é que são filhos e
filhas do Diabo? O próprio Diabo?

Um dos nossos

O Diabo não integra o além-mundo. E vivente deste


mundo, imanente a nosso mundo. Não é O Completamente
Outro porque já não há O Eu Propriamente Dito, para que
haja qualquer outrem. Não se defronta ao humano, como o
que é alheio à sua natureza, como o que o nega e anula,
porque já não há individualidade primordial que lhe permi-
ta restituir a unidade humana. Vive e inscreve-se entre nós,
dentre nós, dentro de nós, em todo coração e corpo huma-
nos, todo o tempo. Reina, como Príncipe, aqui, onde vive-
mos. Seja como interpretação ou julgamento, intimidação
ou ensinamento, está instalado nos encontros da vida coti-
diana e os faz fugir, involuir, anomalizar-se. Dissolve as fron-
teiras da verdade e da quimera, as formas do natural e do
artificial, as funções do real e do atual. Joga as linhas virtuais
dos grandes suplícios vivos e é reservatório inesgotável de
criação: Infersefera.

20
Jogador prudente e inventivo, o Infernal passa por e so-
bre e entre Religião, Razão, Arte, Literatura, Pintura, Música,
Ciência, Filosofia, sátira, fantástico, grotesco, ornamêntica
bárbara, arabesco, mourisco, Platão, Sogni dei Pittori, Santo
Agostinho, Michelangelo, São Tomaz de Aquino, Dante,
Berg, Strauss, Orff, Aristóteles, Erasmo, Bodin, Keller,
Rubens, Hoffmann, Bosch, Goya, Tintoreto, Brueghel,
Jean Paul, Victor Hugo, Schlegel, Boticelli, Füssli, E.A.Poe,
Santa Tereza de Ávila, Shakespeare, Sturm und Drattg,
Cervantes, Rimbaud, Freud, Baudelaire, Shopenhauer, von
Hartmann, Leopardi, Leibniz, Montesquieu, Voltaire, Holl-
bach, Diderot, Rousseau, Lutero, Tolstoi, Dostoievski, Kierke-
gaard, Nietzsche, Comte, Maistre, Lautréamont, Heidegger,
Alain, Rabelais, Camus, Sartre, T. Mann, ítalo Calvino, Fray
Angélico, a consciência trágica, a consciência moral, o incons-
ciente, o dogma religioso.
Assim passando pela Terra, há mais de cinco mil anos,
o Diabo é devir-caleidoscópio do Coisa-Feita Humano:
imagem e aniquilamento, espelho e derrisão, risco e sedu-
ção, descontínuo e contínuo, simples e composto, mutá-
vel e constante, uno e múltiplo, atração e ameaça, trevas e
luz, tempo e eternidade, amor e ódio, fim e princípio, des-
razão e razão, furor e calmaria, som e silêncio, fealdade e
beleza, muro branco e buraco negro. O Diabo devora a
essência secreta e atormenta a natureza profunda do Coisa-
Feita, despedaça as verdades e queima todos os seus so-
nhos de transcendência. Impõe-lhe o disforme, o
aleatório, o acaso. Não dá esperanças de redenção nem
fornece promissórias de felicidades. Por que então o Hu-
mano vem fazendo o Diabo viver tanto tempo?
Desde o pensamento da finitude, o mundo não foi mais
ordenado por Deus e o humano quedou exilado dos outros

21
seres vivos. Humano sem divindade, desamparado e só, am-
bíguo e limitado. Contingente, finito, temporal, determinado
pela vida, pelo trabalho e pela linguagem, não pôde mais ser
pensado pela negatividade metafísica do infinito. Órfão no
vazio, necessitou se positivar como sujeito e próprio objeto
de conhecimento. Prisioneiro dos limites, tomou o lugar de
Deus, reivindicou o conhecimento total, estabeleceu a con-
dição e a natureza humanas.
Agora, se Deus foi morto, o seu assassino também? Se
este ficou sem nenhuma possibilidade divina de consolo, como
situar aí, nas mortes de Deus e do Deicida - ou, o que dá no
mesmo, na crítica filosófica do sujeito —, a existência do Dia-
bo? Por que o humano conserva o Diabo? O Diabo é um
sucedâneo de Deus? Ou é outra individualidade? Se for um
sucedâneo, entra na mesma crítica da subjetividade. Mas, se
for outra coisa, se Deus está morto, mas o Diabo não estiver?
O Diabo e sua Legião vivem? Se Deus não mais ampa-
ra a idéia de sujeito, o Diabo faz isso, ampara? Se Deus não
sustenta mais o sujeito ontológico, epistemológico, moral,
é o Diabo, como Ser do Mal Radical, quem ainda fornece
algum apoio? Ou o sujeito realmente acabou, seja do lado
de Deus, seja do lado do Diabo? Se Deus, que era do Bem,
foi-se, o Diabo, que é do Mal, será ainda um dos poucos
referentes que restam ao sujeito, hoje? O Diabo dá susten-
tação, mesmo que de modo negativo, ao que ainda sobrou
da noção de sujeito?
O Diabo é um derivado do humanismo historicista?
Entra nas partilhas entre loucura e razão, vida sadia e mor-
te, palavras e coisas, bem e mal? Ao nos problematizarmos
como humanos, ele é um dos componentes dessa proble-
matização? Na racionalidade, pela qual nos questionamos
como sujeitos, o Diabo participa da relação do sujeito com

22
a verdade, em sua interioridade subjetiva e, ao mesmo tem-
po, com os outros, na exterioridade social e histórica? O
diabólico é o castigo perene da presunção, vaidade, orgu-
lho, onipotência dos deicidas? Se os humanos mataram
Deus, resta ainda matar o Diabo que, por seu turno, os vem
matando aos poucos, século após século?
Sendo o cristianismo e a moralidade pura indissociá-
veis, a Lei Moral e o Mal Radical interiorizaram-se em nós
como a memória da Paixão de Cristo? Como religião não
de mero culto mas moral, a religião cristã visa à boa condu-
ta da vida, faz o humano agir para se tornar melhor, pres-
creve e comanda o seu fazer para tal fim. Ela postula que
não importa saber o que Deus faz ou fez para nos salvar,
mas o que devemos fazer para nos tornarmos dignos de
sua misericórdia.
O humano encontra-se assim diante de um princípio sim-
ples; para comportar-se de modo moral, tem de proceder
como se Deus não existisse, ou já não estivesse interessado
em salvá-lo. Ou seja, proceder exatamente como se Deus o
tivesse abandonado. Se essa tese lhe permite suspender a exis-
tência de Deus e pensar a liberdade e a imortalidade da alma,
o humano assume, pelo cristianismo, a responsabilidade ra-
cional e filosófica do abandono divino.
Dessa perspectiva, o cristianismo nada mais é do que a
morte de Deus. E o Diabo, todos os demônios e persona-
gens infernais seriam ainda os últimos a se insurgirem contra
tudo o que, na cristianização do nosso mundo, significa a
morte de Deus, a morte em Deus. Ou o Diabo é o avesso, e
por aí o mesmo da fé de raiz cristã, da religião moral, da
cristianização? O Diabo seria pré-moral, imoral, amoral? Ou
esse personagem, mesmo do Mal, também credencia o ato
de fé? Excluindo e ao mesmo tempo explicando, o Diabo

23
requer, mais do que antes da finitude talvez, o recurso à fé
que moraliza?
Pensar a Educação por meio de uma filosofia do infer-
no desvincula a moral pedagógica da religião cristã? Des-
cristianiza o pensamento educacional? Desenraiza-o da fé
moralizadora? Afasta os seus praticantes de serem culpa-
dos, endividados, filiados, condenados, cristãos? É uma es-
tratégia ativa, que vivifica e potencializa o pensamento da
Educação? Ou, ao contrário, confirma totalmente o ódio à
vida e o moralismo de São Paulo?

Mal radical
Se o nosso tempo começou com o nascimento de Cristo
e prosseguiu com a sua morte, o que dizer da função do
diabólico no atual retorno da religião? Retorno nas escolas,
parlamentos, jogos de futebol, terrorismo, rádios evangéli-
cas, movimento carismático, vitalidade de seitas, doutrinas
e práticas religiosas orientais, guerras de religião, violências,
mutilações, mortes. Retorno também nas guerras teletec-
nocientíficas do novo Céu: marketing, cultura digital, televi-
são, internet, educação a distância, visualização panóptica
virtualmente imediata, espaço aéreo, satélites de telecomu-
nicação, auto-estradas de informação, concentração dos
poderes capitalístico-midiáticos.
O que faz o diabólico nesse retorno religioso? Advém de
velhos e novos medos apocalípticos? Tem a ver com a prolife-
ração descontrolada das armas nucleares, ameaças relaciona-
das à ecologia planetária, possibilidades inimagináveis de
manipulação genética? Pode ser pensado em relação com a
perda do sentido da existência, com o tédio que acompanha o
consumismo, com a retirada de todos os fundamentos, refe-
rentes, transcendentais? Pode ser inscrito nas atuais forças de

24
abstração e dissociação: desenraizamento, deslocalização,
desencarnação, desterritorialização, formalização, objetiva-
ção e esquematização universalizantes? Ele ingressa na au-
sência de caminho, de via, de saída, de raízes, em relação ao
arrancamento, expropriação, deslocamento, desidiomatização,
desapossamento de identidades étnicas, de família e nação,
de solo e sangue, de nome, idioma, cultura e memória puras?
A supervalorização afirmadora da religião usa os dia-
bos presentes para justificar o seu discurso sobre a salva-
ção? Salvar, ser salvo, salvar-se. De quê, de quem? Da doença,
da fome, da morte, da injustiça, do próprio diabólico? O re-
nascer religioso cola o diabólico a seu discurso prático sobre
o são, o santo, o sagrado, o salvo, o indene, o imune, o puro,
o não-contaminado, o intocado, intacto, longe da falta ou do
pecado, da profanação, ferida, ofensa, lesão?
O que se passa, hoje, com o Diabo, usando esse velho
nome? O que é que acontece ou volta ao nosso mundo
com essa denominação? O Diabo é figura exemplar do Mal
Radical, que ainda marca o nosso tempo? O que aconteceu
com nossa cultura cristã, judaico-cristã? Deixamos de acre-
ditar que a religião era oposta à razão, às luzes, à ciência, à
crítica - fosse a crítica marxista, a genealogia nietzscheana,
a psicanálise freudiana e respectivas heranças? Descobri-
mos que religião e razão crítica-tecnocientífica emanam da
mesma fonte? E que esta transporta, suporta e pressupõe
sempre Deus-e-o-Diabo?
Será que o Mal Radical pode ser reduzido ao que a doxa
denomina como fundamentalismo, integrismo, fanatismo?
Toda santidade e todo o mal são necessariamente religio-
sos? Ou há outros santos e outros diabos na Ciência, na
Democracia, nos Estudos Políticos, nos Direitos Humanos,
nos Fóruns Sociais Mundiais, nas Teorias Pedagógicas?

25
Pensamos o Diabo, como Mal Radical, apenas nos li-
mites da simples razão? Ou o discurso teológico de Deus-
e-Diabo, Céu-e-lnferno, em sua historicidade renovada,
impregna e atualiza a razão política e educacional? Fortale-
ce a estranha aliança do cristianismo, como experiência da
morte de Deus, com o capitalismo tardio e a globalização?
Atualiza e impregna todos os diabólicos, que nunca se limi-
tam a ser personagens, dados de uma vez por todas, e que,
aí está todo o mal, inventam sempre um novo mal nas Ter-
ras Prometidas da Educação e da Cultura?

Infetno-kJiôra
O Inferno da Educação é o que vem de 3500 a.C, dos
acádios e sumérios, babilônios e assírios, hebreus antes do
exílio e gregos arcaicos, povos germânicos e altaicos, tibe-
tanos e polinésios, manchús e tártaros, mongóis e turcos,
xamânicos e yacutas, tunguros e yuraks da Sibéria central,
da África negra e pré-colombianos da América? Infernos
terrestres e laicizados, vinculados à condição social, lugar
de esquecimento, silêncio e letargia para todos, sem julga-
mento moral transcendente, distinção entre bons e maus,
castigos póstumos.
Ou seria chora? A partir do interior aberto do sistema,
da língua e da cultura da Educação, o Inferno-chóra pode-
ria situar não só o espaçamento abstrato, o próprio lugar da
exterioridade absoluta, mas também o lugar de bifurcação
entre duas abordagens do pensamento da Educação: entre
uma tradição religiosa, salvacionista, e outra científica, tam-
bém salvacionista.
O Inferno da Educação é o dos primeiros infernos tem-
porais para condenados, como o egípcio, o persa, o hindu, o
iraniano, o indiano, os infernos filosóficos greco-romanos da

26
época clássica, criados pelas antigas religiões não baseadas
em um texto revelado? Infernos, nos quais o bem e o mal
referem-se à ordem social ligada à ordem cósmica, os casti-
gos purificam as almas culpadas e restabelecem a justiça
divina ultrajada na vida terrena.
Ou o Inferno-chóra seria um nome de lugar? Lugar
muito singular, para um espaçamento que, não se deixando
dominar por nenhuma instância teológica, ontológica, an-
tropológica, escatológica, científica, curricular, sem idade
nem história, e mais antigo do que todas as oposições, nem
chega a se anunciar como Para além do Ser, segundo uma
via negativa.
O Inferno da Educação é o dos infernos populares?
Infernos influenciados por cultos orientais, criados por es-
critos extracanônicos, apócrifos e apocalípticos, que refle-
tem imagens, visões, crenças e superstições populares,
povoados de medos terrenos e demônios os mais diversos,
ocupados com a duração e a diferenciação das penas, con-
forme a natureza dos pecados cometidos, e alarmados pelo
fim do mundo.
Ou a chóra-Inferno permaneceria impassível e hetero-
gênea a todos os processos de revelação histórica ou de
experiência antropo-educativa que, no entanto, pressupõem
sua abstração? Ela nunca chegaria a se professar em uma
ordem religiosa ou científica ou popular e nunca se deixaria
sacralizar, humanizar, teologizar, cultivar, cientifizar, histo-
ricizar, pedagogizar. Radicalmente heterogênea ao sagrado
e ao racional, nunca se deixaria prender. Nunca se apresen-
taria como tal: não seria o Ser nem o Sujeito, o Humano
nem a História, o Saber nem o Poder, o Bem nem o Mal.
O Inferno da Educação é o da doutrina dos Padres e do
dogma oficial da Igreja? Inferno futuro, arma da Pastoral do

27
Medo, com Juízo Final, distinção moral entre bons e maus,
torturas abomináveis, rituais medonhos, demônios atormen-
tadores, sentimentos de horror, fogo puro que queima sem
consumir, vermes que roem as carnes, caldeiras que fervem
almas, remorsos da consciência, vergonha e desonra e con-
denação definitivas, frio e fedor e visões espantosas, confu-
são e escuridão e solidão absolutas, sofrimentos eternos.
É o dos infernos contemporâneos, em que morre o
velho inferno e vivam todos os infernos, todos os substitu-
tos pessoais e universais que atravessam o Mundo? Infer-
nos ordinários, de todos os dias, sem Deus e sem Diabo,
sem castigos procedentes de Juiz Exterior, infernos do Eu
e dos Outros, da angústia existencial e da falta de sentido
da vida, de guerras mundiais e locais, campos de concentra-
ção e prisões, bombas atômicas e armas químicas, fome
crônica e contaminação generalizada, ditaduras totalitárias
e fanatismos coletivos.
Ou o Inferno-chóra ofereceria sempre resistência, como
lugar de uma resistência infinita, de um resto infinitamente
impassível? Então, não seria nada: nada de estar ou de pre-
sente. Nada de uma abertura para a questão do Sujeito. Mas,
aquilo que não é reapropriável, o que não é limiar nem luto
nem malignidade. Abertura pura, a questão do inferno da
Educação aberta: aberta de saber se é possível pensar este
seu inferno filosófico e deixá-lo se anunciar antes do que
todos os infernos conhecidos.

28
Experiência perigosa,
que assusta osfuncionários

1 ode-se falar de uma filosofia do inferno na Educa-


ção? Essa filosofia comportaria as definições que são atri-
buídas ao pensamento filosófico, tais como as formuladas
por Deleuze e Guattari, em 0 que é afilosofia?Teria condi-
ções de realizar a trindade de toda filosofia, qual seja: traçar
o plano pré-filosófico em sua imanência; inventar traços
personalísticos de personagens pró-filosóficos que ela deve
fazer viver em sua insistência; criar os conceitos que ela
deve criar em sua consistência?
Além disso, tal filosofia poderia imantar os seus prati-
cantes de um gosto filosófico, que os levasse a estabelecer a
correspondência entre essas três instâncias? Que os levasse
a gostar do plano, personagens e conceitos estranhos, gro-
tescos, fantásticos, absurdos, malignos, diabólicos? Que os
levasse a amá-los enquanto bem infernais, bem-feitos, bem
novos, bem interessantes? Com esse gosto-amor, poderia
percorrer um itinerário de invenção e adquirir uma proprie-
dade criadora, não-contemplativa, nem reflexiva, muito
menos comunicativa?
Ou esse pensamento consistiria em criar sensações?
Nesse caso, enquanto arte infernal, traçaria um plano de
composição, lotado de blocos de sensações advindos de

29
figuras religiosas, míticas, simbólicas, demonológicas, esca-
to-teológicas, tais como: demônios, vampiros, anticristos,
fantasmas, lobisomens, bruxas, duendes, bestas, zumbis, al-
mas do mato. Ou se contentaria em ser uma ciência ou uma
lógica? Como lógica, o pensamento do inferno formularia
proposições e uma doxa, mesmo que racionalizada, com
valor de informação. Transformaria os juízos e opiniões em-
píricas em protocrenças, pensando ao modo de recognição.
Constituindo-se como ciência do inferno, esse pensamento
se daria sobre um plano de referência, teria suas noções
determinadas por funções, apresentadas em forma de pro-
posições, passíveis de serem submetidas à verificação. Sob
essa forma, exigiria paradigmas de verdade, inibidores da
imanência do conceito, em detrimento de verdades que fa-
zem corresponder objetos, estado de coisas e fatos ao mo-
delo hipotético da idéia.
Claro que o ato de filosofar o inferno, com suas varia-
ções conceituais, entra em ressonância com o conhecimen-
to científico e suas variáveis funcionais, com as composições
de sensações e suas variáveis afetivas, porque as três mani-
festações de conhecimento são criações. Embora dialogan-
do entre si e interagindo transversalmente, tais criações são
irredutíveis umas às outras, sendo suas fronteiras difíceis de
definir. De um modo tal, que o pensamento do inferno,
que se propõe ser uma filosofia, deve agir com prudência,
para não atribuir às figuras da fabulação o irracional, nem
às funções e proposições a validade universal científica, tam-
pouco aos conceitos o prestígio inquestionável da razão fi-
losófica. Deve cuidar para não opor figuras e proposições
aos conceitos filosóficos, já que elas tendem para os concei-
tos, povoam o plano de imanência e podem, inclusive, torná-
lo filosófico, sob o efeito dos conceitos. Transformadas

30
então em conceitos, as figuras e proposições encontram por
destinação a formação filosófica do inferno.
A tarefa específica dessa formação é ser capaz de pen-
sar o impensável, o intratável, o impossível, o não-pensado
do pensamento educacional. Embaralhar a sintaxe e orga-
nizar o pensamento numa lógica às avessas, constituindo-
se como um pensamento-outro da Educação. Pensamento
que ignora as verdades recebidas, metamorfoseia o valor
das opiniões estabelecidas, busca suspender e transvalorar
o valor de todos os valores herdados. Liberta-se do culto à
totalidade, transcendência, dialética, metafísica, humanis-
mo, bem como dos casais de tensões certo/errado, culpa/
castigo, bem/mal, morte/vida. Foge do pensamento único
para tornar as singularidades possíveis, afirmar o múltiplo,
multiplicar os de vires.
Impulsionado para a criação de conceitos, esse pensa-
mento consiste numa arquitetura conceituai. Pratica uma
maneira de pensar que privilegia a produção de diferença e a
formulação de sentidos. Opera com conceitos filosóficos
auto-referentes, abandona toda referência a um estado de
coisas, não se referindo a nada exterior aos próprios concei-
tos criados e ficando distante do jogo da correspondência
representativa. Elabora as normas de sua própria criação con-
ceituai, só retendo as conjugações e conexões que dão con-
sistência a seu pensamento. Uma consistência que se instaura
sobre um pensamento sem imagem, sem modelo, forma ou
função. Isto é, que se instaura sobre um planômeno, chamado
pela filosofia do inferno de Infersfera.
Infersfera, plano deserto, que os conceitos infernais
povoam sem partilhar, nem dividir, sem romper-lhe a inte-
gridade. Plano de univocidade, que não quer saber da uni-
dade da substância, dissolve o consistente existente, luta

31
contra o caos e daí retira a consistência que doa a seus con-
ceitos. Plano de extensão, que secciona todas as formas e é
ele mesmo cortado por intensidades e forças criativas de
atualização da diferença múltipla. Máquina de todas as fun-
ções do pensamento do inferno, cujas dimensões crescem
com as das multiplicidades e individualidades que recorta.
Plano fixo de vida, onde tudo mexe, atrasa ou se precipita,
os indivíduos e coisas não se distribuem senão pela veloci-
dade e lentidão, pelas relações de movimento e repouso.
Plano de imanência pura: só ele é real, porque seus concei-
tos agem sobre o real do pensamento da Educação. Infers-
fera: casa do conceito infernal. Nela, coabitam personagens
conceituais: agentes de enunciação, capacidade expressiva
e heterônimos de cada pensador do inferno.
Pensar a Educação por conceitos infernais, traçar a in-
fersfera, ter um estilo infernal da diferença: essas são as três
marcas de um pensamento que se metamorfoseia em dife-
rentes níveis de argumentação e funciona como máquina
de guerra para combater os aparelhos que capturam o pen-
sar educacional. Assim, pode esta máquina promover a des-
territorialização do pensamento da Educação, fazê-lo
ingressar na criação de uma nova educação por vir e em
diferentes relações cósmicas, geográficas, históricas, psicos-
sociais, amorosas. Pode diagnosticar os devires-acontecimen-
tos da Educação, que apelam a formas futuras, resistem ao
presente e invocam uma nova raça de educadores: bastar-
da, anárquica, nômade, demoníaca. Ocupa-se da transfor-
mação do pensamento educacional em intempestivo, inatual,
que age contra o tempo, sobre o tempo, em favor de um
tempo por vir, de um porvir que é o infinito.
Assim, filosofar o inferno é experimentar, uma experiên-
cia do pensamento que se faz no território da Educação.

32
Para realizar tal experimentação, é preciso criar, como meio
de imanência, uma pura contingência infernal, oposta à
transcendência da bondade absoluta e do amor humanista,
que não implica nenhum interesse prévio, necessidade, ori-
gem, história ou natureza da Educação, mesmo que malig-
nos. É preciso também viver um certo prazer em apartar,
dividir, separar, seduzir, atemorizar, abalar, rizomatizar, criar
diferenças, multiplicar heterogeneidades no pensamento da
Educação. Bem como possuir um gosto pelo devir-infer-
nal, que reconquista o poder imanente da criação, inven-
tando novos modos de pensar o novo. Modos que levam o
pensamento ao movimento infinito de liberação do Verda-
deiro, como paradigma suposto, substituem A Verdade e
são bem mais exigentes do que ela.
O pensamento do inferno pode ser entendido como
uma teorização do que se faz em Educação, não como a
teoria do que é. Define-se como um pensamento empiri-
cista, que só diz o que é ao dizer o que faz. Reconstruindo
a sua imanência, substitui o verbo É da unificação pela con-
junção E, como processo ou devir, e as unidades abstratas
por multiplicidades concretas. Pode ser definido também
como uma teoria das multiplicidades. Teoria que implica
elementos atuais e, mais importante, elementos virtuais, já
que todo atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais.
Essa virtualidade do pensamento constantemente libera
algo: seja uma multiplicidade para cada coisa, não mais cir-
cunscrita aos jogos do Uno e do Múltiplo, um desejo não
mais determinado pela falta, uma pura consciência imedia-
ta sem objeto nem Eu, ou um inconsciente distante da re-
territorialização familiar.
A virtualização do pensamento infernal é compreendi-
da como um processo que transforma a atualidade inicial

33
dos objetos da Educação, da Pedagogia, do Currículo em
caso particular de uma problemática mais geral. Fluidifíca
as distinções instituídas, aumenta os graus de liberdade, cava
um vazio no pensar educacional, que é, ao mesmo tempo,
um motor. Desterritorializa o atual da Educação, fazendo
da virtualidade uma consistência que se forma sobre a in-
fersfera e corta o caos. Virtualidade real sem ser atual, ideal
sem ser abstrata.
De nada valeria um pensamento que apenas se propu-
sesse ser mais uma reflexão sobre a Educação. De nada
valeria, se não criasse os seus próprios conceitos, conheces-
se por puros conceitos, já que só eles apreendem os aconte-
cimentos educacionais e suas variações. O pensamento do
inferno não contempla nada, porque não há nada em si
mesmo a ser contemplado. Não reflete coisa nenhuma, já
que não pode ser espelho de nada que não existe para ser
refletido. Também não comunica, pois não é veículo de algo
que não existe para ser comunicado. Se bem que tenha de
criar alguns conceitos para as ações de comunicar, refletir e
contemplar o inferno da Educação.
Pensar a Educação por meio do inferno é um cons-
trucionismo filosófico que não se ocupa do Conhecimento,
não diz respeito à Epistemologia ou à Teoria do Conheci-
mento, e só quer saber do que significa pensar infernal-
mente a Educação, orientar-se, de modo infernal, no
pensamento educacional. Esse movimento é tributário de
Nietzsche, pois leva os filósofos do inferno a não se con-
tentarem mais com os conceitos que lhes são dados, mas
começarem a fabricá-los, criá-los, afirmá-los e mostrar aos
outros que podem ser usados.
Se, na atualidade, cada educador tem confiança em seus
conceitos, como num dote miraculoso, vindo de algum

34
mundo igualmente miraculoso, a filosofia do inferno cola-
bora para substituir essa confiança pela desconfiança radi-
cal. E é de todos os conceitos educacionais que ela desconfia,
desde que não os criou. Por exemplo, quando se pensa que
é necessário cidadanizar o indivíduo e os grupos culturais,
ela sabe que fora necessário que as Ciências Sociais, Huma-
nas, Políticas criassem, antes, para que tal imperativo edu-
cacional pudesse funcionar, os conceitos de Cidadania,
Indivíduo, Grupo, Cultura, e, especialmente, o sentido que
os não-cidadanizados são diabólicos: um mal para a civili-
zação, sociedade, outros, si mesmos.
Artefatura do infernal: pensar desse modo é experi-
mentar tudo o que é estranho e problemático no pensa-
mento educacional, tudo o que, até agora, foi banido pela
moral, ressentimento, má consciência, niilismo cristão, fé
no ideal. Trata-se de um pensamento que não pergunta se
os conceitos que cria, o plano que traça, os personagens
que inventa são feios ou bonitos, falsos ou verdadeiros.
Mas se tudo que está sendo criado tem vida, tem existência,
dá algo a pensar, aumenta e exagera o pensamento a partir
de sua face atual.
Nada de sentimento, emoções-morais, de comover, en-
gajar a emotividade, mas tudo para alimentar a liberdade de
criação. Ficar livre de paixões e de opiniões, olhar tranqüi-
lamente ao redor, encontrar em toda parte mais acaso do
que destino, rir mais do absurdo do que enraivecer-se, cho-
rar ou lamentar-se. Fazer uma filosofia estética, que experi-
menta o riso, produz vivacidade alada, suprema alegria,
soltura do theatrum mundi. Estética filosófica, em que tudo é
mais leve e movimentado e em que a cada conceito criado
tudo se põe de cabeça para baixo, invertendo o platonismo.
Depois de tudo aniquilado e arruinado, só depois começa a
vida do pensamento infernal.

35
Não se verá, a partir dessa filosofia, uma educação mais
doce e terna, tantos serão os terrores, metamorfoses, rivali-
dades, antagonismos, revoltas, explosões, ardência de eus
no pensamento do inferno. Não se encontrará nenhum vis-
lumbre de recompensas e castigos, sentidos sublimes e jus-
tos, religiosos e morais, firmes e seguros, elogiosos e críticos,
compreensíveis e justificadores, luminosos e superiores. Mas,
se lidará com sentidos insanáveis, caóticos, deformados, às
avessas, inquietantemente estranhos.
Pensar o inferno na Educação é um exercício perigoso.
E seguir a linha de fuga do vôo da bruxa, do passeio do
vampiro, do andar sem rumo do centauro, do vagar infinito
de todas as individualidades estranhas que povoam o Mun-
do-Verdade da Educação. Pensamento perigoso este, por-
que a sua imanencia suscita, na opinião educacional, uma
forte reprovação instintiva, e a natureza dos conceitos que
cria redobram ainda mais essa reprovação.
A questão é que os filósofos do inferno não pensam
sem tornar-se outra coisa, algo que não pensa, um bicho,
vegetal, molécula, partícula, híbrido, monstro inumano,
uma estrela: outra coisa que retorna sobre o pensamento
e o relança. Não podem ser considerados filósofos infer-
nais os funcionários da Educação que não renovam a ima-
gem do pensamento e não têm sequer consciência do
problema que é pensar infernalmente a Educação. Aque-
les que ficam na beatitude do pensamento educacional
inteiramente pronto e que ignoram até o imenso trabalho
de criação dos que tomam por modelos ou guias. A sorte
desses funcionários é que eles não têm olhos para ver que
o solo imanente da filosofia do inferno é totalmente esbu-
racado e deixa passar infinitos. Se vissem, assustar-se-iam
ainda mais.

36
Amigo do estranho?
Não, estranho em potência

JNI ão há conceitos da filosofia do inferno em si mes-


mos. Eles são sempre o resultado de trabalho do pensa-
mento sobre matérias de inquietante estranheza, experiên-
cias paradoxais, intensidades-limites. Não dizem as coisas
em sua essência, seja elevada, baixa, refinada, grosseira, bela,
monstruosa, trágica, cômica. Dizem matérias, experiências
e intensidades alheias, alheadas, alheando-se ao pensamen-
to-forma da Educação: estriado, dogmático, fechado, mé-
trico, centrado, hierarquizado, ilusionado pela vida eterna,
alma, sujeito, deus, valor.
Os conceitos infernais não são universais, são singula-
ridades inéditas, que não recorrem a figuras transcenden-
tais ou a qualquer realidade ulterior, mística, escatológica.
Não são noções gerais, são acontecimentos como diferen-
ça em si, inverossímeis, bizarros. Como puros sentidos alu-
cinatórios, são confusos, vagos, irregulares, distorcidos, não
porque não tenham contorno, mas porque são imperceptí-
veis, vagabundos, nômades, errantes, em deslocamento cons-
tante sobre o plano infernal. São demônios, que queimam
sem se consumir e renascem sempre.
Para afilosofiado inferno, não há conceitos simples. Qual-
quer conceito é ao menos duplo, triplo, uma multiplicidade,

37
heterogênese, população, massa, ritornelo, bando, matilha,
legião. Também não há conceito que tenha todos os com-
ponentes. Mesmo os universais de outros pensamentos da
Educação, como os de Sujeito, Aprendizagem, Sociedade,
não têm todos os componentes. Cada conceito tem que
sair do caos e circunscrever um universo que o explique,
pois é sempre questão de articulação, corte e superposição.
É um todo porque totaliza seus componentes, mas um todo
fragmentário. Somente nessa condição pode sair do caos
mental, que não cessa de espiá-lo, de querer colar nele para
reabsorvê-lo, refamiliarizá-lo, fazê-lo doméstico, caseiro,
íntimo, heimlich.
Essa filosofia não cria os seus conceitos do nada, mas
sempre remetidos a problemas educacionais, sem os quais
seria inútil e tedioso criar conceitos: problemas que só po-
dem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solu-
ção. Por criar conceitos, em função de problemas que con-
sidera malvistos ou mal-colocados, a filosofia do inferno
pode ser dita também uma pedagogia ou uma política. Em-
bora os seus conceitos não se refiram ao vivido na escola,
nem a qualquer estado de coisas didáticas ou curriculares,
já que não encadeiam proposições ou funções, que partem
necessariamente do vivido para exprimi-lo.
Os conceitos do pensamento do inferno não perten-
cem a nenhuma formação discursiva, mas são centros de
vibração ilimitados, que ressoam no acaso inapreensível e
entram livremente em relações de ressonância não-discur-
siva. Mesmo as pontes entre eles e outros conceitos são
encruzilhadas, nunca circunscrição de um conjunto discur-
sivo. Porque são conceitos sem referência, que se põem a si
próprios na infersfera, e põem aí os seus objetos incríveis.
Sem adequação ao real, nem referência ao que é, têm a ver

38
com produção do não-senso, que aniquila tanto o bom
senso quanto o senso comum, impossibilita a identidade,
destrói aparências, refere-se à diferença por meio da pró-
pria diferença.
Estranhando, tornando estranho o mundo da Educa-
ção, qualquer conceito da filosofia do inferno tem uma for-
ma passada, presente e por vir. Tem uma história, que se
desdobra em ziguezague, cruza com conceitos ou planos di-
ferentes. E composto por elementos vindos de outros terri-
tórios, que respondem a outros problemas e supõem outras
possibilidades de orientação do pensamento. E não poderia
mesmo ser diferente, já que um conceito opera sempre um
novo recorte, toma novos contornos, tem de ser constante-
mente reativado em vários sentidos ao mesmo tempo.
O próprio conceito de inferno, por exemplo, fosse
pagão ou religioso, esteve presente em todas as épocas
conhecidas, nas quais o humano acreditou que a vida fu-
tura seria feliz ou infeliz, conforme o bem ou o mal que
tivesse praticado neste mundo. Desde o inferno de Plu-
tão, situado no Tártaro, representado pelo tonei das Da-
naides, pela roda de Ixião, ou pelo rochedo de Sísifo, cria-
do pelos poetas, cantores, por Homero, Virgílio, Fénelon;
indo até o inferno de Satã, situado em lugares baixos, in-
feriores, nas profundezas da Terra, para onde descem as
almas condenadas a serem queimadas e supliciadas por
toda eternidade, criado pelas Igrejas, teólogos, evangelhos.
A história desse conceito cruza-se com os conceitos do
Eu de Descartes, do Uno de Platão, do Ser de Heidegger,
do Outro existencialista ou colonialista.
Embora tenha essas e outras histórias, o inferno adqui-
re, no pensamento infernal da Educação, um devir estético,
plástico, literário, musical, não moral nem teológico. Estético

39
não apenas como teoria da beleza e das formas, mas tam-
bém das qualidades do sentir, das forças do viver e da novi-
dade do pensar. Como linha de fuga do território eclesial,
moral, cristão, esse conceito introduz o noturno, a despro-
porção, o abismai, no mundo familiar de todos os dias e o
põe fora dos gonzos, out of joint. Sendo um conceito-som,
cor, luz, força, usina, não tem coordenadas espaço-tempo-
rais, mas ordenadas intensivas, não tem energias prévias, mas
intensidades que não-deviam-existir. Formando sentidos
disjuntivos geradores de diferença infinita, o inferno passa
ou não passa, convém ou não ao pensamento da Educação.
Ele relaciona-se com outros conceitos situados na in-
fersfera, por meio de seu devir-estranho. Inferno-estranho,
bifurcando sobre outros conceitos, compostos de outra
maneira, que constituem outras regiões do plano infernal e
respondem a problemas conectáveis. Inferno, definido por
seu poder de criação-ação e de participação em co-criações,
quando se conecta aos conceitos de estrangeiro e sinistro,
misterioso e grotesco, sobrenatural e fantástico, baixo e in-
fame, bárbaro e selvagem, louco e libertino, demônio e bru-
xa, fantasma e vampiro, unbeimlich. Conceito incorporai, que
se encarna e efetua seja em corpos disformes seja em subli-
mes. Conceito inumano, que é uma hecceidade diabólica.
É como acontecimento que esse conceito imaterial so-
brevoa, como um pássaro, o estado de coisas do mundo da
Educação, no qual efetua o desvio de sua doxa, de sua sín-
tese de formação dos sujeitos, de seu fundamento último
da razão centrada no Eu como base do ser humano. É a
própria imanência pura do conceito que lhe fornece essa
capacidade de voar sobre o vivido e sobre si, em si, sobre
o plano infernal. O inferno é invivível, portanto: reserva
pura. Um entre-tempo, que não é eterno, mas também

40
não é tempo, é devir. Um tempo morto, na infersfera, onde
nada se passa: uma espera infinita que já passou infinita-
mente. Ele não sucede ao que acontece, não coexiste com o
instante, só com a imensidade do tempo vazio, na estranha
indiferença de uma intuição intelectual. Nesse estranho-in-
ferno, tudo muda, porque o devir-infernal não pára de con-
duzir o acontecimento-estranho a se atualizar alhures a ou-
tro momento.
Como conceito, o inferno não traz nada de sentimento
de culpa e castigo, graça e recompensa, emoções e atos
morais, mas é um ato de pensar, que opera em velocidade
infinita, em sua infinitude própria. É absoluto e é relativo.
Relativo a seus componentes internos, aos outros concei-
tos, à infersfera a partir da qual se delimita, aos problemas
educacionais que se supõe deva resolver. Absoluto, pelo lu-
gar que ocupa sobre o plano infernal e pelas condições que
impõe aos problemas educacionais.
Um filósofo do inferno é mais do que um amigo do
inferno-estranho, ele é o próprio Estranho em potência.
Não pára de remanejar seus conceitos e de experimentá-
los, de dessemelhá-los, devi-los infernalmente, variá-los per-
petuamente, na tarefa de estranhar o mundo da Educação.
De mudar um ponto de detalhe infernal, que se avoluma e
produz nova condensação, acrescentar rachaduras, retirar
componentes quebradiços, desviar o pensamento do im-
pério da opinião e das fáceis certezas. Com Leibniz, o Es-
tranho acredita, freqüentemente, estar entrando em um
porto seguro, mas é jogado, outra e outra vez, em pleno
mar. Com Nietzsche, corrige ele mesmo suas idéias, para
constituir novas, às vezes esquecendo todas as conclusões
às quais chegara anteriormente.

41
Mil-folhas do inferno movente

1 ara realizar o pensamento do inferno na Educação,


é preciso um encontro entre o meio educacional estranha-
do e o plano infernal de imanência. Tal meio é preparado
geograficamente, como uma atmosfera, numa névoa não-
histórica, que ultrapassa os fatores atuais e cria o desconhe-
cimento e a dissolução de um mundo que se aliena. A Edu-
cação arranca a história de si mesma e desvia-se do culto de
suas origens, para afirmar a potência desse meio e desco-
brir o seu devir-infernal, sem o qual muito pouco fará na
descontinuidade de sua história. Negando a estática e a si-
metria, esse meio é que traça um ambiente de assombro e
terror, surpresa e perplexidade, que não oferece nenhum
apoio com teor de verdade.
O mundo do pensamento educacional reduzido a ca-
cos vibra então na periferia maquínica do diabólico e do
tormento infernal. E a infersfera, horizonte, diagrama, vai
se implantando como plano quimérico e espectral, indivisí-
vel e impartilhável, lúdico e alegre, leve e pródigo em rique-
za de invenção. Espacialmente, traça o pensamento estra-
nhante do dia-a-dia: inapreensível, inexplicável, terrível.
Campo de horror e deformidades, solo às avessas, fora dos
eixos, que se move em si mesmo infinitamente, e onde se
produzem, circulam, entrechocam-se os conceitos infernais.

43
Infersfera: reservatório sinistro, mesa do contra-senso, ban-
deja do sem-sentido, taça de veneno da filosofia do inferno.
Traçar essa taça requer um empreendimento noturno
infinito, que não permite nenhuma interpretação racional
ou emocional. Tem de ser riscado mil vezes, para que o
absurdo permaneça absurdo, sem ser explicado. Plano in-
fernal do fantasiar, informe e fractal, atravessado por inter-
secções, cruzamentos de linhas, sem início ou fim, lotado
de pontos de encontro no meio, que é onde tudo se cria.
Plano em que os personagens infernais e os conceitos che-
gam tarde ou cedo demais, forçando-o a remanejar o con-
junto de seus agenciamentos coletivos de enunciação e a
brincar de recompor suas relações de velocidades e lenti-
dão e todos os seus afectos.
Percebida ao mesmo tempo em que faz perceber o im-
perceptível, a infersfera vai funcionando como criadora do
pensamento do inferno. Sendo e não sendo, verdadeira de-
mais para tornar-se o caminho, excessivamente irreal para
ser obstáculo, dela não se pode dizer que existe, nem que
não existe. Povoando sem especificar, é meio de transporte
para músicas, escrituras, ciências, artes, figuras, com seus
encontros e interferências de trabalho, como focos de cria-
ção. Nela, os conceitos do inferno-estranho movimentam
experimentações que levam o mundo- educacional confiá-
vel e arrimado numa ordem a desfazer-se, desintegrar-se,
dissipar-se com a irrupção de seus poderes abismais.
Desarticulando as juntas do mundo conhecido, perden-
do a efetividade da realidade vivida, aniquilando o finito
como totalidade, fazendo do familiar o estranho, a infersfe-
ra não propicia que nenhuma forma se desenvolva, que
nenhum sujeito se constitua, mas que afectos desloquem-se,
devires saltem e façam bloco. Sobre ela, formas e sujeitos,

44
mesmo abismais e insondáveis, são apenas aparências, pro-
duzidos pelo deslocamento de um centro de velocidade,
em linhas abstratas, e pela conjunção dessas linhas. Nenhum
sujeito, forma, caráter sobrevive a seu sonho em vigília.
A infersfera não é metáfora nem metonímia, pois não
dispõe de nenhuma dimensão suplementar ao que se passa
sobre ela. É campo virtual prévio, funcionamento e verti-
gem do pensamento infernal. O movimento finito dos con-
ceitos desintegradores e extravagantes, que a povoam,
constituem as coordenadas que fixam seus movimentos infi-
nitos. Sendo definida em correlação com tais conceitos, se a
infersfera se despovoar deles, submerge no nada. Assim como
os conceitos, se extraídos dela, ficam vazios. Como se a in-
fersfera ruísse sobre um grande tremor de terra conceituai.
O meio intuitivo do inferno é um corte que capta uma
fatia do caos. Seleciona e fixa, determina e contém o caos,
embora permaneça livre em todas as outras direções, em
função de sua pluralidade. Esse caos não é um estado iner-
te, uma mistura ao acaso, desordem e ausência de deter-
minações, um nada, mas caos da velocidade infinita. Velo-
cidade de nascimento e evanescimento, com a qual as
determinações se esboçam e se apagam, dissipando toda
forma esboçada no plano. O que o caos faz é caotizar,
desfazer no infinito toda consistência. Caos vazio, que é
um virtual. Caos-virtual, que contém todas as partículas
possíveis e suscita todas as formas aterradoras de elemen-
tos mecânicos, vegetais, animais, humanos, cósmicos, que
surgem, misturam-se, para desaparecer logo em seguida,
sem consistência nem referência, sem conseqüência expli-
cativa, sem derrisão do absurdo.
Guardando suas velocidades infinitas e dando consis-
tência ao virtual, a infersfera faz intervir sempre o acaso,

45
como força criadora de suas ações. Excita o jogo macabro e
burlesco, o grotesco e cômico, o irônico e satírico, o carica-
turado e dramático. Se adquire consistência, nem por isso
renuncia ao infinito fantasioso, no qual mergulha o pensa-
mento educacional, com um grande riso satânico. Garga-
lhada zombeteira, que soa quando o crivo infernal sele-
ciona movimentos tenebrosos e sinistros, que não têm mais
possibilidade de livrar-se da estranheza. Convulsiva libe-
ração dos conceitos, que se movimentam tão rápido quanto
o pensamento.
O plano infernal é a imagem que o pensamento se dá
do que significa pensar, fazer uso do pensamento, orientar-
se infernalmente no pensamento da Educação. Ele é o ab-
soluto ilimitado, informe, sem superfície nem volume. É
máquina infernal abstrata, cujos agenciamentos conceituais
são acontecimentos concretos. Não é horizonte relativo a
alguém ou a todo educador, que funciona como limite, muda
com os observadores e engloba estados de coisas observá-
veis, mas horizonte absoluto. Independente de nós, orienta
nosso olhar para um mundo educacional hostil aos ensina-
mentos e à moralização, sobre-humano, sobre-natural, so-
bre-terreno, supra-sensível.
Gigantesco tear que não pára de se tecer, a infersfera
não é um método, nem um estado de conhecimento, nem a
opinião que se faz do pensamento, de suas formas, fins,
meios, a tal ou qual momento. Perde todo o seu caráter
sinistro e tem atenuada sua intensidade abismai quando lhe
são atribuídos sentidos do inferno cristão ou do diabólico
pagão, quando lhe obrigam a conjurar tentações do mal ou
a retirar máscaras demoníacas. Porque a infersfera é, ao
mesmo tempo, o que deve ser pensado e o que não pode
ser pensado no pensamento educacional.

46
É o impensado, impensável, não-pensado da Educa-
ção. Pensamento do indizível, que não cria conceitos para
designar Isto é Isto ou Isto significa Isto. É o mais íntimo
do pensamento educacional, um dentro mais profundo do
que o seu mundo interior e, todavia, o seu fora absoluto,
mais longínquo que todo o mundo exterior. Ousada mistu-
ra do humano, belo, animalesco, atrevido, o gesto supremo
da infersfera é mostrar que está lá, como imanência, que é
ação do pensamento infernal, seleção de seu movimento.
A instauração filosófica do inferno é já pensamento
em ato. A pergunta pelo que tal pensamento é já é simulta-
neamente a própria resposta-bússola e pólo. Para ele, só
existem categorias do Espírito, não perspectiva etnográfi-
ca. Possui estilo dogmático, nietzscheano, vertiginoso. Uma
vontade infinita de mergulhar, através das mil-folhas do in-
ferno movente, em direção ao caos, para aí encontrar a pró-
pria desorientação, paisagens desordenadas, sensação de
abismo, que existem fora de seu pensamento, embora este
as suponha. Demonstra impaciência para encontrar o fur-
ta-cor, o ambíguo e a insegurança, quanto ao comporta-
mento das coisas, o inexplorável e fantasticamente bizarro,
o horripilantemente inconcebível e inquietante, o não-filo-
sófico, já que não pode contentar-se em ser compreendido
somente de maneira filosófica.
Os elementos anímico-ambientais que infernizam o pla-
no infernal não são etiquetas coladas às coisas que existem
enquanto tais, independentemente deles mesmos. São in-
tuições, traços diagramáticos, que convivem com concei-
tos-intensões e seus traços intensivos. Nenhuma intuição e
intensão é causa ou conseqüência da outra, embora se cor-
respondam. Correspondência que faz tudo se tornar possí-
vel e razoável, alheado e desmedido, e faz intervir instâncias

47
e pontos de vista, com múltiplas cabeças, adjuntos à cria-
ção dos conceitos: os personagens infernais. Personagens
que unem o incompatível, excedem o que é possível, evi-
tam toda moral significativa e tornam o desumano com-
preensível. Personagens que, inclusive, são capazes de fruir
a beleza estética das flores estampadas nas túnicas dos
guilhotinados.

48
Os infernais

xLstranho inferno da Educação é um conceito, mas tem


pressupostos pré-conceituais, que formam a seguinte ima-
gem do pensamento: todo mundo sabe o que significa estra-
nho, inferno, educação. Mas há outra coisa misteriosa, que sur-
ge às vezes e tem uma existência intermediária entre os
conceitos e a infersfera: são os personagens infernais. Eles
é que forçam uma variação do pensamento da Educação
ao infinito, com suas dobras enunciativas. Eles é que dotam
a filosofia do inferno de narratividade operacional, com seus
cortes agindo como crivos no caos. Eles é que lançam os
conceitos e traçam o plano infernal, desde os seus pontos
de vista afetivo e perceptivo.
No plano louco do acaso infersferático, esses persona-
gens são as últimas partes infinitamente pequenas do infi-
nito atual do pensamento da Educação. Embora sejam per-
feitamente reais, não podem ser identificados nem contados:
são sem rosto e sem número. Independentes de sujeitos,
formas e funções determinadas, constituem-se numa com-
binação emaranhada de partículas, moléculas, elementos,
que circulam por infinidades mecânicas, vegetais, animais,
atmosféricas, extra-humanas, neutras. Indiscerníveis, instau-
ram relações de movimento e repouso na zona objetiva de
indeterminação e incerteza do inferno, na qual não se pode

49
mais dizer onde passa a fronteira do animal e do humano,
do animado e inanimado, do orgânico e inorgânico, do na-
tural e artificial.
Os infernais não têm nada a ver com as figuras do in-
ferno pagão, cristão ou moral. Nestes, asfigurastêm atributos,
propriedades, funçõesfixas,territórios marcados, códigos. Iden-
tificando-se com eixos, limites e cadastros, funcionam como
figuras admoestadoras ou atormentadoras, amarguradas ou
verdugas de si mesmas, punidoras ou corroídas por seus
próprios ressentimentos. De modo que estão sempre em-
basadas nas ordens da justiça imanente coletiva ou divina
distributiva. Unindo o direito e a moral, a religião das almas
e o governo dos corpos, tais figuras acabam sempre alber-
gando-se no nobre reino dos humanos. Já os infernais,
assombrados apenas por si mesmos, tornam-se sempre
mais estranhos a esse reino. Por não se originarem de ne-
nhuma crença em deus ou no diabo, nem de qualquer
postura mística do espírito, mas da autoposição de si, são
inventados por uma fantasia do pensamento, livre de ob-
jetivos escatológicos.
Eles não são tipos psicossociais, símbolos, personifica-
ções abstratas, personagens da história da Educação e da
Pedagogia, mesmo que se conjuguem, realizem bifurcações,
penetrações e substituições com todos eles, sem entretanto
se confundirem. Psicólogo-que-observa-seus-filhos, Edu-
cador-libertador, Alfabetizadora-construtivista, Professor-
inclusivo, Professora-irmã-de-caridade, Voluntário-que-ado-
ta-uma-escola, Criança-em-desenvolvimento, Portador-de-
necessidades-especiais, Aluna-com-problemas, Estrangeiro,
Intelectual Público, Excluído, Proletário, Popular, Cidadão,
Globalizado, Democrático, Participativo, Universo-Freire,
Universo-Freud, Universo-Rousseau: são rostos, visões.

50
espécies, gêneros, figuras alegóricas. Todos devires sensí-
veis, que não param de devir-outros, embora continuem a
ser o que são. Já os infernais são devires que, embora re-
caiam na história, não provêm dela, pois são linhas de fogo,
sem passado nem futuro, ascendentes e descendentes, me-
mória e filiação. São multiplicidades que não se deixam di-
cotomizar, rizomas que não se deixam arborizar, buracos
negros que não se deixam aglomerar, muros brancos que
não podem ser pichados.
Resistindo às máquinas binárias do pensamento edu-
cacional - bom/mau, certo/errado, cognição/afeto - , os
infernais são unicamente pensadores, que têm por função
manifestar os territórios, desterritorializações e reterritoria-
lizações absolutas desse pensamento. Seus traços persona-
lísticos juntam-se aos traços diagramáticos da infersfera e
aos traços intensivos dos conceitos. Quando um persona-
gem inferniza o pensamento da Educação, não é mais a
Aluna-com-problemas que inferniza, mas um pensador que
leva a Educação a infernizar-se inteira. Quando o Demô-
nio-Infantil, como personagem conceituai, inferniza, não
se está diante de qualquer estado psicológico ou social, de
nenhuma determinação empírica, abstrata, privada, públi-
ca, mas do que cabe de direito ao pensamento do inferno
na Educação, como seu cristal ou germe.
Esses personagens têm traços próprios, que não po-
dem ser listados, porque nascem sempre e misturam-se cons-
tantemente para compor um personagem. De qualquer
modo, há traços pathiquer. o Infantil-Natural, que vive no
educador e o força a pensar a naturalidade do infantil. Emílio,
o Bom Selvagem, é um de seus nomes, que pode mudar
para Vitor, o Menino-Lobo, adquirindo o sentido de Mau
Selvagem. E os dois, por vezes, se conjugam, produzindo

51
um estado educativo a ser atingido por cada infantil, mes-
mo que lhe custe. Há o Bem-Educado, aquele personagem
que quer ser um modelo, que vive no filósofo do inferno,
forçando-o a agir, e que se tranforma no Mal-Educado,
personagem que leva o pensador a revoltar-se para pensar a
diferença pura.
Os infernais também têm traços relacionais: o Infantil-
Adulto, que só se relaciona com o Educador-Adulto por
meio da imagem especular. A esse personagem pode-se
acrescentar o Infantil-Infantil, que rejeita a adultização for-
çada do Adulto e, na atmosfera-ambiente da infersfera, di-
verte-se, canta, dança. Eles têm ainda traços dinâmicos: no
meio indivisível do inferno, o Demônio-Infantil avança, es-
correga, rouba conceitos como frutos do quintal vizinho,
empurra novas matérias de ser e pensar, orientando o pen-
samento da Educação pela magie noire.
Há traços jurídicos nos infernais: o pensamento atual da
Educação apresenta toda uma jurisprudência para legislar
sobre o Saber, o Poder e o Sujeito. Surgem então o Inquiri-
dor, o Promotor, o Advogado, o Jurado, que integram o Tri-
bunal da Ratio Educacional, da Escola Universal, da Repú-
blica dos Espíritos. Nessa Corte, o Réu é O Mau, acusado de
desrazão, desmotivação, imoralidade. Em tal diagrama, o Juiz
atribui Penas Pesadas, avaliando com critérios das Arvores,
sobrecodificações do Aparelho de Estado, técnicas da Me-
mória e da História, tecnologias da Totalização e da Unifica-
ção, táticas do Ponto de Partida e de Chegada. Há ainda tra-
ços existenciais, que contam a potência dos infernais, a relação
e os encontros consigo e com os outros: humanos, alunos,
cachorros, plantas, terras, águas, pedras. O rosto e o corpo
dos filósofos do inferno podem abrigar esses traços, que lhes
dão freqüentemente um ar maligno, condenado, danado: o

52
Terninho da Professora, os Óculos do Professor, o Batom, o
Cigarro, o Chapéu, a Pasta, o Celular.
Não sendo agentes de formação ou de educação do Su-
jeito, os infernais são potências de conceitos, que irrompem
e dominam a infersfera. Seus saberes não têm valor moral,
não confirmam a ordem antropomórfica do universo, nem
exortam, incitam, despertam, conscientizam, libertam. Não
vivem em nenhuma abóbada espiritual, não distinguem o Bem
do Mal, não agem por desígnio ou destino, nem servem para
racionalizar a Educação. Como simbiose ex-cêntrica, promo-
vem jogos edificantemente pervertidos no pensamento edu-
cacional, manejam os fios de seu desconhecimento, distor-
cem sua razão e dessubjetivam suas identidades.
Os infernais, inclusive, não podem ser pessoas dos
atos de fala. Nenhum deles é encontrado dizendo: - Eu te
falo como educador. A Educação, pensada pela filosofia do
inferno, pensa os infernais e eles pensam em nós a Edu-
cação. Eles são os verdadeiros agentes da enunciação in-
fernal, os verdadeiros sujeitos dessa filosofia, de modo que
Eu, educadora é sempre uma terceira pessoa, a quem é dada
a palavra para que se expresse diretamente. E que quando
fala incita a estranhar todas as explicações totalizantes, não
se deixar prender dentro de nenhum limite, atemorizar
todas as subjetividades construídas, não ter mais olhos para
a Verdade e ouvidos para o Sentido, bater a porta e deixar
de fora o entendimento, o razoável, os fatos, todas as pa-
lavras de ordem da linguagem.
Com seus jogos exóticos e movimentos selvagens, os
infernais são proto-seres, que integram uma cosmogonia,
de conteúdo paroxístico, mas inteiramente justificada. Não
prestam serviços à divindade, nem fazem exortações a favor
da bondade de coração ou da justiça das ações humanas, mas

53
traçam um retrato do mundo da Educação tal como ele é:
inalteravelmente estranhado. Partindo, passando, saltando,
deliram o pensamento educacional e rompem os intervalos
de todas as suas ordens, que o retêm, sufocam e adestram.
Em frenética voragem de pensar, caricaturizam a Realidade e
o Sujeito da Educação até o impossível, fazendo O Eu, A
Razão e O Valor deslizarem para a ruína. Somente um infer-
nal é mais forte do que todo um paraíso repleto de santos.
Composições impuras, de natureza obscura, emergen-
tes dos abismos, noturnas, irreais, fabulosas, inventadas, os
infernais fazem curto-circuitos entre dois ou mais reinos.
Ao se encontrarem, realizam enxames, matilhas, bandos,
povos, massas, espécies, raças, tribos, multidões, faunas e
floras, conjugando uma heterogeneidade inacessível às de-
terminações, capturando códigos de ordens diferentes,
empurrando uns aos outros, numa desterritorialização con-
jugada, onde cada um se dissolve e se transforma. Conjun-
to não-homogêneo, circulam intensivamente, conspiram,
funcionam juntos para opor, separar, fazer de cada um de
nós o nosso inimigo íntimo, o nosso próprio rival, fazer
com que odiemos o que nos fizeram ser e o que fizemos
valorar como nossas velhas crenças, ideais, conhecimentos,
promessas, sentimentos.
Anômalos, outsiders, clandestinos, os infernais vivem so-
bre as bordas de uma multiplicidade, puxando linhas-entre
possibilidades contemporâneas de pensar a Educação, tra-
mando névoas, feitiços, angústias para o pensamento que
se estabelecera e sossegara. Deixando escapar e correr as
potências infernais, eles não trapaceiam, porque, se trapa-
ceassem, seria para se apropriarem de propriedades fixas,
conquistar territórios, instaurar novas ordens. Teriam mui-
to futuro, como todos os trapaceiros, mas nenhum devir.

54
Ao anularem os domínios distinguidos, fazer coisas, ani-
mais, humanos participarem de atividades sinistras, os in-
fernais são traidores. Traem os disfarces unitários do Mes-
mo e do Outro - quem é que, neles, mente, assassina, rouba,
estupra? - , os sentidos do Ser e do Não-ser, as distinções
entre Original e Cópia, a hierarquia entre Modelo e Reprodu-
ção, dominantes na Terra Prometida da Educação. Train-
do, acendem fogos no pensamento, que queimam as iden-
tidades, fazem desaparecer as unidades, desfazer os rostos,
liberar as cabeças experimentadoras, virar tudo em um se-
gredo tão imenso que não tem mais nada a esconder.
À clara luz da Lua Cheia, os infernais roubam o devir-
demoníaco do que é conhecido na Educação. Inquietantes,
eles podem não aparecer por si mesmos, ou raramente apa-
recer, ou ficar subentendidos. Eles chegam sem causa, sem
razão, sem pretexto, sem respeito. Como penetram no in-
ferno da Educação? Impossível saber, entretanto, estão sem-
pre lá. E, a cada noite e dia, multiplicam-se infinitamente.
Mesmo não nomeados, eles são sempre aludidos no Selva-
gem, Idolatra, Muçulmano, Judeu, Rural, Litorâneo, Capi-
talista, Adolescente, Neoliberal, Negra, Político, Sem-Ter-
ra, Imigrante, Deficiente. Podem ser reconstituídos no
perjúrio, mentira, assassinato, violência, opressão, trânsito,
mutilação, terrorismo, consumismo, cinema, televisão, fa-
mília, trabalho, publicidade, pobreza, mortes.
Movimentando-se na infersfera, esses personagens
marcam a importância das chuvas, ventos, neblinas, atmos-
feras pestilentas, sangues corrompidos, carnes em decom-
posição. Vivendo aí transportes de afectos, fazem as pe-
quenas coisas do mundo cotidiano mostrarem-se malignas,
possuídas por demônios, ganharem animosidade, vontade
própria, impulsos destrutivos, e poder de lançar-se sobre os

55
humanos a todo momento, especialmente onde os afetam
mais sensivelmente. Substituem a física pela meta-física,
pelas teorias dos espíritos e da bestialidade energética das
coisas. Na roda sibilante do pensamento infernal, o espírito
humano é arrastado para um funil enlouquecido, cujo ím-
peto se vai adensando até a voragem do coisal, que termina
no caos infinito.
Porque não fazem simples arranjos, os infernais co-
mandam a metamorfose absoluta das coisas e dos sujeitos,
misturando-os em desproporção, na desmedida: aviões-
libélulas, alfinetes-espadas, peixes-tratores, humanos-dra-
gões. Agindo centrifugamente sobre a força explosiva do
paradoxal, essas potências de conceitos são ridículas e hor-
ripilantes, cômicas e insidiosas. Não são anticristos, mas à
força de fazer irromper poderes desumanos no pensar,
tornam-se anti-humanos. Eles são os que-não-deviam-exis-
tir, os-que-não-podem-ser-nomeados, os-que-é-preciso-ne-
gar, já que, ao desordenar e cavar abismos no pensamen-
to, fazem da Educação um pandemônio e de seu mundo
uma commedia deWarte: o aluno se transforma no basilisco
que cega, as professoras em figuras de açúcar, a escola em
pedra de gelo.
Intensidades que não param de cruzar-se, os infernais
não se contentam em não dobrarem seus joelhos diante de
Deus, do Ministério, da Teoria, da Verdade, do Logos, do
Transcendente. Não satisfeitos em se negarem a transmitir
o ressentimento, a culpa, a crença no além-mundo, a renún-
cia à vida, os infernais desorientam o Professor-Camelo,
que transporta o peso dos valores estabelecidos e lega os
fardos da Moral e da Cultura. Intempestivos, fundem, num
todo turbulento, o elevado e o nauseabundo, aceleram a
simultaneidade do sentido e do não-senso, desnorteando a

56
Professora-Metafísica, que conserva e dissemina as verda-
des instituídas no seu tempo.
Dotados de forças de escala planetária, cósmicas, abs-
tratas, não-humanas, esses personagens formam os concei-
tos infernais com forças revoltadas, resistentes, que cada
um possui de direito, por conta própria. Com forças malé-
ficas de gravitação, rotação, turbilhão, explosão, expansão,
germinação, proclamam que o pensamento educacional
necessita de novos começos, meios, princípios de avaliação.
Nenhuma garantia de sujeitos mais virtuosos, emblemas de
maior espiritualidade sob a superfície, referências a comu-
nidades eternas, vislumbres de sociedades mais elevadas,
mas individuações novas e estranhas, compostas de elemen-
tos imperceptíveis, integrantes do plano de imanência da
Natureza, que ela, antes deles, já abolira todas as fronteiras.
Como tudo na infersfera é relação de velocidade e
lentidão, poder de afectar e ser afectado, pode ser dito de
seus personagens que não são do mundo-nosso-de-cada-
dia e que, ao mesmo tempo, são deste mundo. Que não se
trata dos humanos das religiões, sociedades, metafísicas,
espiritualismos, educações, famílias, mas vinculações ex-
travagantes, humanos que devêm inumanos, fantásticos,
absurdos. Os infernais unem o incompatível, excedem o
que é possível e compreensível, extirpam do humano toda
interioridade, anulam laços e comunhões, estripam con-
tratos, sangram heranças.
Movimentos entre partículas não-formadas, conjunto
de afectos não-subjetivados, os infernais humanos tecem a
teia da infersfera somente quando se isolam e quedam de-
samparados de tudo o que é humano. Quando têm surtos
de pensamento, arrancam as estacas das ordenações, ne-
gam as leis das perspectivas, empurram os limites de sua

57
consciência e geografia, perdem a vida humana, ou adqui-
rem outra vida diferente, ou a sua semelhança de vida olha
a vida humana a ponto de lhe causar pavor, com os rostos
coagulados em máscaras. Quando declaram seu amor às
máscaras, já que nascem com elas, que não ocultam sem-
blantes vivos, mas respiram e são a sua própria rostidade.
Se arrancadas, só se verá, embaixo, esgares de crânios nus:
máscara e face dos infernais não se separam.
Participando, a um só tempo, de farsas e tragédias, os
infernais fazem teatro dentro do teatro, jogam o jogo ab-
surdo de papéis, convertem o mundo da aparência em reali-
dade e vice-versa. Virados lobisomens, feiticeiras, esqueletos,
espectros, vampiros, dançam danças de morte do humano,
expressando suas disposições de alma e paixões infernais.
Fazendo com que o princípio geral da configuração humana
torne-se cisão, anulando a unidade da identidade e das mul-
tiplicidades, essas caretas de espíritos deixam de ser sujei-
tos, para se tornarem acontecimentos em inter-agenciamen-
tos, que marcam as potencialidades de seu devir-hidra,
devir-harpia, devir-cíclope.
Os infernais podem receber vários nomes próprios:
Lilith, O Marginal, Satã, A Besta, Yama, Foucault, Demo, A
Mulher, Aquele-que-nunca-ri, Leviatã, O Grotesco, Prínci-
pe das Trevas, O Estrangeiro, Lúcifer, O Selvagem, Belzebu,
Comte, Velho Cavaleiro, Mananan, O Violento, Freud, Vam-
piro, Abigor, O Libertino, Jeová Negro, Erlik Khan, O Infa-
me, Semihazah, O Baixo, Sombra de Deus, Tremendo, Belial,
Excomungado, Azazel, O Infantil, Mictlantecuhthi, Maldito,
Piaget, Mastema, O Louco, Cornudo, Bruxa, Angra Mainyu,
Tremendo, Belfegor, O Monstro, Mulambento, Cão, O Bár-
baro, Asmodeus, O Doente, Fedegoso, Coisa-Ruim, El Nino,
La Nina, O Irracional, O Diferente, O Eu.

58
De culturas estranhas, puros fluxos sinistros, crepus-
culares, realizadores das núpcias anti-natureza de todos os
domínios, esses nomes próprios, embora bem antigos, es-
capam dos olhares dos entendimentos e resistem a todas as
identificações. Não indicam um animal, vegetal, mineral,
não são função de um sujeito, nem forma de qualquer es-
pécie. Apenas tomam valor de nome próprio por designa-
rem o que é da ordem do acontecimento infernal. Cada um
nada mais é do que o nome extremamente atual de alguma
coisa que se passa ao menos entre dois termos. Todos são
nomes de operações governamentais, fenômenos meteo-
rológicos, sociedades anônimas. Nomes de várias multipli-
cidades em cada um-infernal: nomes do agenciamento-in-
ferno em seu conjunto.

59
O diabo do currículo

\J diabo do currículo é criação cultural. Uma identi-


dade temível. Um conjunto de saberes. Representação do
mal radical. Arqui-inimigo sobre-humano. Ardiloso, enga-
nador, tentador. Alucinação. Sombra. Espelho da perver-
são do coração humano. Crença. Ficção. Mito. Superstição.
Fundamentalismo. Integrismo. Fanatismo. Obscurantismo.
Ciência. Projeção de sentimentos hostis. Um tipo de rela-
ção. Caricatura da consciência. Exercício de poder. Sistema
de pensamento. Negação da fínitude. Forma de agir sobre
o sobrenatural. Taumaturgia. Vontade de domínio. Lingua-
gem. Uma teoria. Material onírico. Prescrição, ameaça, cas-
tigo. Tecnologia pedagógica. Uma filosofia. Doutrina de
almas. Governante de corpos. Jurisprudência moral. Arte
de influenciar espíritos. Desejo. Uma Westalnschauung. Como
prática, o diabo é uma instituição social. Como legião, é
vivente eterno, no inferno do currículo.
O diabo do currículo é um ser, por um lado, misterioso,
fascinante, e, por outro, perigoso, impuro. Diante dele, fica-
mos seduzidos, tememos e trememos. Em virtude dessa du-
plicidade, traz em si algo de inabordável. Condição que obri-
ga o currículo a expressá-lo por meio de restrições e exclusões.
As restrições feitas pelo currículo, acarretadas por seu
diabo, encontram-se amalgamadas com proibições religiosas,

61
morais e pedagógicas e, ao mesmo tempo, são distintas de-
las. Restrições que, se estão, de saída, baseadas em alguma
ordem divina, acabam se impondo por conta própria. Que
também diferem das proibições morais c pedagógicas, por
não se enquadrarem em nenhum sistema ou código, que
declare que certas abstinências devem ser observadas e que
certos personagens devem ser expurgados. Por isso, as ex-
clusões sociais e subjetivas impostas pelo currículo são acei-
tas como "coisa natural" por aqueles sobre os quais atua e
que são por ele dominados.
O diabo do currículo e seus ancestrais integram os
mitos de todo o mundo. Eles são anteriores aos deuses,
criados para deter o dilúvio e os fogos caídos do céu. São
prévios aos governantes celestes, que controlam os im-
pulsos destrutivos dos gigantes e seres disformes. Tais di-
abos existem também antes dos guerreiros homéricos das
repúblicas aristocráticas. São anteriores às repúblicas po-
pulares e às monarquias governadas por leis humanas. Eles
são mais antigos do que Hércules, Platão e Cristo. E mui-
to, muito mais antigos do que Descartes, Kant e Marx.
Eles vêm do tempo do tabu.
E desse tempo que trazem de herança para o currícu-
lo o caráter impuro de indivíduos, grupos ou coisas; as
proibições e exclusões que resultam desse caráter; e a im-
pureza resultante da violação das proibições e da não-ex-
clusão. Ainda hoje, em plena idade doricorsocurricular -
período confuso, fim de um ciclo e princípio de outro —,
temos de lidar com seres, objetos, lugares, ações tabus,
isto c, demoníacos.
Deles, sentimos um medo objetivado. Já que acredita-
mos que, se forem acolhidos, tocados, afirmados, confir-
mados, podem vingar-se, lançando um encantamento

62
nefasto sobre os transgressores. O temor dos poderes de-
moníacos desses seres, coisas e fenômenos do currículo ra-
dica na ordem não externada, subjacente a todas as proibi-
ções do tabu, que continua a ser a mesma dos estudos do
tempo de Wundt, Smith e Freud: "Cuidado com a cólera
dos demônios"!
Quando irrompem, no mundo do currículo, os mitos
da cristandade e a crença no além-mundo; as idéias de espí-
ritos da luz e das trevas, do bem e do mal; os decretos e
promessas de salvação educativa; a força do poder pastoral
e os dispositivos escolares, a idéia do diabo associa-se a eles.
Tal associação restringe a liberdade de prazer, de movimento
e comunicação e, acima de tudo, a liberdade de fabulação,
de fantasia e de paixões fortes do currículo. O diabo fica
associado a indivíduos especiais, como crianças, mulheres,
negros; a estados excepcionais, como o nascimento, a mens-
truação, a puberdade, a deficiência; e a todas as coisas dife-
rentes e assustadoras, como a não-aprendizagem, a loucu-
ra, os maus comportamentos, o erotismo, a doença, a morte,
com o seu poder de infecção e contágio.
A idéia-prática do diabo no currículo veio transforman-
do-se com uma base própria, independente dos tabus, dos
tipos de confissão religiosa, dos sistemas filosóficos e das
teorias educacionais. Talvez muito mais do que os deuses,
heróis e homens, criados pela mente humana, o diabo do
currículo é, ainda hoje, objeto de veneração e horror. O
medo que dele temos corporifica nosso desejo de fazer coi-
sas proibidas, ou de ser tal como aquele que é diferente. Ele
nos tenta a transgredir os limites curriculares, escolares,
pedagógicos, culturais. Excita nossa ambivalência emocio-
nal e moral, fazendo-nos pendular entre grande admiração
e forte hostilidade para com os demônios curriculares.

63
Como um modelo de força, o diabo do currículo pode
ser um aliado; como ameaçador até o grau mais imprová-
vel, um perseguidor, acusado por tudo o que de desagra-
dável experimentamos. Realizamos cerimônias escolares
e culturais, seja para invocar e manter contato com o dia-
bo, seja para afastá-lo, mantendo-o à distância. Tanto a
fascinação quanto o horror ao diabo o que promovem
são práticas que, paradoxalmente, mantêm o diabólico
curricular sempre atuante.
Essa nossa relação indecidível com o diabo deriva da
importante relação dos seres vivos com os mortos do currí-
culo. Uma relação cujo elemento decisivo consiste nas ativi-
dades prejudiciais do diabo. Sendo ele, por definição e por
atuação, cheio de desejo de poder e morte, consideramos
que todos os seres mortos pelo currículo são sua proprieda-
de. Por isso, mesmo os mais chegados, como os pobres,
homossexuais, índios, disformes, vadios, crentes, etc, podem
transformar-se em demônios e arrastar os vivos atrás de si.
Acreditamos que todos os mortos do currículo são, po-
tencialmente, o próprio Diabo. Que eles são espíritos maus,
que têm rancor contra nós, vivos do currículo, e que procu-
ram prejudicar-nos e roubar a curta vida que ainda nos resta.
Cremos que as almas dos mortos pelo currículo são
transformadas em demônios malignos porque a morte é a
maior das desgraças para os que ali ainda vivem. Parece-
nos que os mortos, por essa sua condição, estão muito insa-
tisfeitos com o seu destino. Que são vingativos, mal-humo-
rados, invejosos e anseiam por nossa companhia. Esse
terreno, da morte promovida pelo currículo, parece ser ex-
tremamente fértil para a ação do diabo, que persegue, ten-
ta, arma ciladas, causa tragédias, cria técnicas, parâmetros e
mais normas para causar mais mortes.

64
Agora, o estranho é que é justamente nesse inferno que
a idéia do diabo nos ajuda a imaginar um outro currículo
sem mortos ou, no mínimo, sem limites precisos entre a
vida e a morte. Um currículo onde os espíritos dos que já
não vivem, ou dos que ainda não puderam viver, animam
falas, conhecimentos, relações. Um currículo que, em lugar
de classificações discursivas, dissolve o indivíduo no grupo
e une o grupo ao universo. Para esse currículo, com diabo,
não há noção nenhuma de sujeito. O eu é partido em dois,
em dez, em mil fractais. Ele leva todos os eus a guerrearem
entre si: crianças e velhos, pais e filhos, amados e amantes,
professores e alunos, patrões e empregados, pedra e água,
mar e terra, o caos e o cosmo. Não há elisão. Apenas pre-
dominância passageira.
Em um currículo, com o seu diabo, os excluídos, pri-
mitivos, abjectos, baixos, infames, violentados vivem, já que
tais distinções existem para ser transgredidas. Ele desdobra
o mapa de uma mente larga como o mundo. Rompe as
cadeias de subordinação. Incorpora várias línguas. Conjuga
lugares. Aproxima culturas. Congrega épocas. Mistura ex-
pressões vulgares com teorias relevantes.
O currículo do diabo abre a porta a todos. Desliza so-
bre estratos sobrepostos, verticaliza e horizontaliza, espacial
e cronologicamente. Realiza um arqueo-currículo, em que
se sucedem horizontes culturais variados, o sabido acolhe o
novo, a noite guarda traços da aurora e a manhã preserva
cheiros e marcas do sono.
O diabo do currículo suporta esperar uma cultura uni-
versalizável das singularidades, na qual seja possível anun-
ciar a possibilidade abstrata da impossível tradução cultu-
ral. O diabo faz um currículo performativo, sem dogma e
certezas, que avança no risco da noite absoluta. Avança,

65
aberto ao futuro como advento da justiça. Um currículo
que expressa o que acontece e nos acontece aí, neste preciso
momento, no mundo, na história. O diabo faz do currículo
um trabalho em processo, uma estrada em andamento, um
mar a fluir. Todos os que trabalhamos, caminhamos, nave-
gamos poderemos então viver nele.

66
Os bons(?) os maus(?):
genealogia da moral da Pedagogia

I N a Pedagogia, há um personagem infernal, diabóli-


co, demoníaco que diz: — Eu sou bom, portanto você é mau.
Quem é que pronuncia essa fórmula, o que quer com ela, e
para quem é dita? O Infantil é quem a diz ao Adulto, perso-
nagem celestial, eleito, divino da Pedagogia. Mas, ali, na Pe-
dagogia, também é pronunciado: - Você ê mau, portanto eu
sou bom. Aqui, quem é que fala, o que quer ao dizer isso, e
para quem é dito? Desta vez, é o Deus-Adulto quem fala ao
Demônio-Infantil. Estamos, portanto, diante de duas fórmu-
las diferentes, ditas por diferentes personagens que, eviden-
temente, não podem estar dizendo a mesma coisa, já que o
"bom" de uma é precisamente o "mau" da outra. O "bom",
"mau" e até o "portanto" possuem sentidos diversos.
O primeiro sentido é formulado por um personagem
pequeno, ignorante, primitivo, débil, carente, imoral, irracio-
nal, deficiente, ímpio, cruel: o Infantil. Ao contrário do que
poderiam escutar ouvidos desatentos, o Infantil afirma a
sua bondade instintiva, sem se comparar ao Adulto, sem
comparar suas ações, emoções e afetos a quaisquer valores
superiores e transcendentes. Nada disso! O Infantil não es-
pera que o chamem, ele se chama, afirma-se "bom". Em
função da intensidade de seu viver, criatividade de imanência,

67
liberdade de pensamento e vontade de potência infantil é
que ele nomeia-se desse modo.
Quando a linguagem infantil enuncia -Eu sou bom, está
expressando o poder que tem de marcar as coisas, os acon-
tecimentos e também o próprio Infantil. Assim, por meio
de sua linguagem, o Infantil cunha nomes para os valores e
cria valores infantis. Afirma, fortalece e frui de sua condi-
ção infantil. O "bom" que se atribui qualifica o prazer que
experimenta no exercício de sua infância: - Minha infantili-
dade é boa, eu sou bom. Ao dizer isso, está ativamente agindo.
Esses "bom" e "boa" relevam uma qualidade de alma, que
é aquela que o Infantil possui a respeito de si próprio. Ele
não tem de procurar a certeza preponderante de seu amor
pela vida infantil porque já a encontra no momento em que
afirma - Sou bom, meu modo de ser infantil é bom. Ao afirmar a
sua bondade e agir de acordo com ela, o Infantil "é", possui
realidade, e a sua infância é real, é verdadeira. O Infantil
honra tudo o que encontra em si, valora cada uma de suas
características como boas, encontra o bem-estar que só pode
ser proporcionado pela riqueza da condição infantil, e é
infantilmente feliz, felizmente infantil.
Esse pequeno demônio da Pedagogia considera-se, pela
elevação da alma e poder das afirmações, superior a todos
os que são bem-educados, disciplinados, dóceis, domésti-
cos, civilizados, prudentes, mansos, numa palavra: rebanho.
Mas, no princípio, o Infantil não deixa intervir qualquer
comparação com o Adulto. O fato do Deus-Adulto da Pe-
dagogia ser "mau" - na medida em que não age, não afirma
e não frui do estado infantil - não tem nenhuma importân-
cia para o Infantil, é apenas uma conseqüência secundária,
uma conclusão negativa. O seu "bom" designa, antes de
qualquer um, a ele, Infantil da Pedagogia, sem que haja aqui

68
qualquer conotação moral. Trata-se apenas de uma tipolo-
gia das forças e de uma ética das maneiras de ser que lhe
correspondem.
Quando o Infantil diz-se bom e acrescenta - (...) portan-
to, você Adulto é mau, só nessa conclusão é que introduz o
negativo. Este é apenas a conseqüência da afirmação ante-
rior e primeira, plena de bondade do Infantil. O que vale,
aqui, são as premissas da ação e da afirmação infantis. O
que é negativo não é o essencial e não tem, por isso, qual-
quer importância. É apenas um acessório, uma derivada,
uma nuance complementar. A única importância de tal nu-
ance é ativar o conteúdo da ação e da afirmação infantis,
fortalecer a sua aliança e aumentar o prazer que lhe corres-
ponde. O Infantil-Bom da Pedagogia só encontra o seu
antípoda, Adulto-Mau, para se afirmar a si mesmo, com
mais alegria, com uma agressividade alegre, com uma ale-
gria agressiva.
Já o Adulto da Pedagogia começa pela negação: - Você,
Infantil, é mau, portanto, eu sou bom. Diante desse outro come-
ço, tudo, mas tudo mesmo, muda! O que é negativo vem
para as premissas, enquanto o positivo é deslocado para a
" conclusão. Conclusão adulta, que fica constituída totalmente
por premissas negativas. O negativo desse Deus-Adulto
contém o essencial e o seu positivo existe apenas pela nega-
ção. É assim que este Deus faz do negativo a idéia original,
o seu agir por excelência.
Ora, só pode ser um Deus-Escravo esse, que necessita
das premissas da reação e da negação, do ressentimento e
do niilismo passivo - isto é, da propensão à falta de sentido
da vida infantil - , para obter uma conclusão que positive a
si mesmo como "bom". Em função de seu medo do Infan-
til, o Deus-Adulto da Pedagogia tem a necessidade extrema

69
de conceber, primeiro, o Não-Eu, ou seja, o Demônio-In-
fantil como "mau". Então, opor-se, como Adulto, a este
Não-Eu. Para, finalmente, colocar-se como "Eu". E, claro,
encontrar o seu "Eu-Bom". Volta a falar: - Você é mau; eu
sou o contrário daquilo que você é;portanto, eu sou bom.
Nessa locução divino-adulta, valores são criados, em-
bora sejam valores atrofiados, medíocres, cristãos. Valores
que postulam, numa inversão de forças, o Infantil como
mau. Observe-se que justamente é dito "mau" aquele que
afirma que é "bom", sem precisar, em nenhum momento
crucial, acusar ninguém de ser mau. Esse Infantil que se diz
"bom" age como infantil, não se furta de agir infantilmen-
te, não considera suas ações do ponto de vista das conse-
qüências infantis que poderiam recair sobre terceiros.
Só que, agora, no domínio dessa nova moral pedagógi-
ca, o Adulto-Bom é aquele que não age como infantil, que
não se afirma infantilmente, que não frui daquilo que não
pode perder porque não tem, ou seja, de sua força infantil
ativa. "Bom" passa então a ser aquele personagem que se
impede de agir como infantil. Aquele que refere qualquer
ação sua ao ponto de vista do Adulto que não age, daquele
adulto grave e sério que lhe sofre as conseqüências. Refere
toda ação ao ponto de vista de um "terceiro adulto-divi-
no", que pode ser A Sociedade, A Família, A Revolução, A
Cidadania, A Liberdade, A Democracia, O Sujeito, A Ra-
zão, O Mercado.
Terceiro divino-adulto, que só quer saber de intenções,
objetivos, finalidades. O Adulto da Pedagogia reage ao In-
fantil desse modo pesado. Começa por perguntar o que ele
pretende, intenciona, objetiva, visa com as suas brincadei-
ras, risos, jogos, danças, leveza. Infantilidades que trazem
ao Adulto tantos transtornos, desequilíbrios, desordens,

70
anormalidades, aniquilamentos, desidentificação, perdas de
referência: na sala de aula, na escola, na cultura. Para o Adul-
to, está completo o seguinte paralogismo: - 0 Infantil da
Pedagogia é mau (quer dizer, os infantis são todos eles maus,
os maus são os infantis). — Ora, Eu, que educo e adultisço o
Infantil, Eu, Adulto da Pedagogia, sou o contrário de um infantil;
portanto, eu sou bom.
Na premissa menor - (...) émau-, o Infantil é tomado
por aquilo que é: uma força que não se separa dos efeitos
ou das manifestações de sua infantilidade. Mas, na premissa
maior - Ora, Eu, (...)—, o Adulto supõe que o Infantil pode-
ria não manifestar a sua força infantil, reter os seus efeitos e
separar-se daquilo que é infantil. O Infantil é mau, na medi-
da em que não se retém, em que não acha o limite, a boa
medida de sua exasperante e insuportável infantilidade. O
Adulto supõe que ele, Adulto, é uma só e única força que se
reteve e continua retendo-se efetivamente - a força da in-
fantilidade - , mas que se torna livre no Infantil. Porque "o
forte", na concepção do Adulto, é aquele que pode impe-
dir-se de agir infantilmente, enquanto "o fraco" é qualquer
um que poderia agir ao modo do Adulto, mas não o faz.
O Adulto da Pedagogia culpa o Infantil pelo fato de ele
não reter os efeitos da força de sua infantilidade, de deixar
que se manifestem quando poderia e deveria, pelas práticas
escolares, pedagógicas, curriculares, ver-se livre deles. O
Adulto quer porque quer separar o Infantil da força de sua
infantilidade; dos sentidos, concupiscências e paixões in-
fantis; e de toda a sua experiência da infância. Reage a essa
força com muita raiva, espírito de vingança, cientificidade e
profissionalismo. O processo de acusação dessa maquina-
ria adulta do ressentimento cumpre-se assim: as forças rea-
tivas adultas projetam uma imagem abstrata e neutralizada

71
da força da infância. Essa força separada de seus efeitos é
culpada de agir e é meritória no caso de não agir. Tanto
mais meritória se o Infantil adquirir mais força adulta para,
cada vez mais, se reter de agir como um infantil.
Desse modo reativo, negativo, é que o Deus-Adulto da
Pedagogia define o Demônio-Infantil: - O Infantil é aquele
que não se adultissou, ainda. Ou, em versões: - O anormal-infan-
tilé aquele que não se normalizou, ainda. — O Demônio é aquele que
não se fez Deus, ainda. Observe-se como o Adulto opera sem-
pre por negação, que esteriliza a expansão da vida infantil:
o Infantil é mau, ele é o Demônio, por não ser normal, por
não ser adulto, por não ser Deus. -Mas, Eu, Adulto, prosse-
gue ele, Eu sou bom porque, apesar disso tudo, não ofendo o Infan-
til, não o ataco, não uso represálias. Deixo para a Escola, para o
Além-mundo, para a Psicopedagogia, para o Exame, para a Cons-
ciência, para a Moral, o meu trabalho eterno de vingança. Eu evito o
encontro direto com o Mal Radical, que é o Infantil, porque sou pa-
ciente, hu/uilde, justo.
Nascem assim o Bem e o Mal da Pedagogia: pela inver-
são da relação de forças infantis-ativas e adultas-reativas.
Não contente em não agir como infantil, mas reagindo sem-
pre à infantilidade, o Adulto opõe-se às forças ativas da in-
fância e se apresenta como triunfante, superior e bom: edu-
cado, racional, consciente, sujeitado, moralizado. A primeira
determinação ética do bom e do mau na Pedagogia, como
tipologia das forças, dá lugar ao juízo moral. O "bom" da
ética torna-se o "mau" da moral, e o "mau" da ética torna-
se o "bom" da moral pedagógica.
Vê-se como a genealogia do Bem e do Mal da Pedago-
gia não concerne ao bom e ao mau, mas, ao contrário, à
troca da distinção, à subversão da determinação do Bem e
do Mal. Esses são valores morais novos, valorados como

72
valores pedagógicos supremos, é certo. Mas, não podemos
esquecer que são criados invertendo-se o bom e o mau das
forças da ética infantil. São criados não pela ação do Infan-
til, mas no impedimento de sua ação infantil promovida
pelo Adulto, que inicia a moral pedagógica começando por
negar a infantilidade; desenvolvendo-se pelo enfraquecimen-
to da infância; e concluindo pelo desaparecimento radical
do infantil. É por isso que tais valores morais são ditos não-
criados, divinos, transcendentes, em tudo superiores aos do
Mundo Infantil.
O que esses valores do Bem e do Mal da moral peda-
gógica escondem é um ódio inacreditável, extraordinário
mesmo, contra a força da vida infantil, contra o ser infantil
rico de vida, e contra tudo o que na infância é ativo, altivo,
afirmativo e singular. Não haveria valores morais na Peda-
gogia se tais valores fossem afastados das premissas negati-
vas do Adulto de que o positivo é apenas a conclusão. Valo-
res dos quais não podem ser separados o ódio e a vingança
contra o Demônio-Infantil de que o Adulto extrai todas as
conseqüências disciplinares.
A positividade dessa moral da Pedagogia é mentirosa,
porque conclui que os fracos, os reativos, os resignados,
os que retêm a sua força infantil são os infantis bons, na
medida em que os que, desgraçada e malignamente, in-
fantilizam a Pedagogia são maus e malditos. Essa moral
repousa sobre a ficção da força infantil separada da infan-
tilização pedagógica que ela promove. Uma moral que in-
venta o Educado-Bom, o Moralizado-Bom, o Pedagogi-
zado-Bom, o Adulto-Bom. Que inventa também o
Infantil-Mau: culpado pelo fato de a força infantil ativa
exercer a sua atividade, e digno de aprovação e reconheci-
mento se tal força não for exercida.

73
Não se conhece melhor vingança contra o Infantil for-
te, alegre, feliz e orgulhoso de si mesmo. Mas, afinal das
contas, o que é que seria da Pedagogia se não substituísse
a distinção concreta entre as forças, a diferença original
entre forças qualificadas - o bom e o mau - , pela oposi-
ção moral entre forças substancializadas - o Bem e o Mal?
O que é que seria do "Amor Pedagógico", que é um valor
cristão, sem esse "Poder do Ressentimento", que é uma
prática judaica, se a moral da Pedagogia não transformas-
se a vontade de potência infantil na moral da fraqueza
adulta? Moral adulta, que trata a infância como mórbida e
nociva; cria a impotência de se viver infantilmente; e fixa
o Adulto como um ser pleno e sadio. Moral do Deus-
Adulto, que anima, regula e dirige, há mais de dois mil
anos, todas as nossas instituições e relações pedagógicas
com o Demônio-Infantil.

74
Nós, mulheres-professoras, ainda
queremos ser deusas e bruxas?

Deusas e bruxas

1
\J primeiro elemento cultuado é a Terra, que se gera a
si mesma. De sua carne rasgada por grutas e fendas, de suas
manifestações de força em montanhas, florestas, desertos,
de suas profundezas líquidas em mares, rios, geleiras, é que
nasce toda a vida do Universo. As epifanias da Terra ligam-
se a forças cósmicas e são fontes inesgotáveis da geração de
frutos, animais, homens.

Extremamente poderosa, a mulher invade o homem


em cada parte de seu ser. Pela sedução, suga o seu poder
viril. Incita-o a agir e paralisa-o, com medo de ser tragado.
Barra o seu acesso às esferas superiores do pensamento e
da moral. Diante dela, a humanidade oscila entre sagrada e
profana, sexual e maternal, angelical e demoníaca, prostitu-
ta e virgem, sublime e diabólica, pecadora e santa, deusa e
bruxa, Eva e Ave.

75
Terra e mulher: analogia recorrente, por meio dos ven-
tres que geram a vida. Se os homens desconhecem, por
milhares de anos, o seu papel na fecundação, a procriação
da Mãe é sem partilha. Já o Paleolítico inscreve associações
da mulher a águas, grutas, cavernas, árvores, sangue, con-
chas, ocre vermelho.

A mulher retém todo o (i)mundo da criação. Ventre


nefasto que nutre, mas que também leva ao reino dos mor-
tos, sob o solo, ou nas profundezas das águas. Cálice de
morte. Mãe, com face de trevas. Noite no seio da terra, onde
o homem se abisma. Mais ligada ao ciclo da vida para a
morte do que da morte para a vida, a mulher cria e destrói.

Senhora da Vida, que semeia e vivifica, fecunda e ferti-


liza, transmite sua força exorbitante a todos os domínios da
Natureza. Dona da Morte, que ascende ao mundo dos
mortos para ressuscitá-los. O túmulo da terra acolhe a mor-
te. Mas esse ventre lacerado fecha-se, para engendrar de
novo e restituir a vida. Com a vida, nos desligamos do ven-
tre da Tellus Mater, com a morte, regressamos necessaria-
mente a ela, para que novos nascimentos aconteçam.

No homem, o corpo reflete a alma, na mulher, não, já


que seu corpo obstaculiza o exercício da razão c da virtude.
O homem é a imagem de Deus, a mulher é a imagem do
Diabo. Só há um sexo: o masculino. A mulher é inferior,
imperfeita, em falta, um macho deficiente e mutilado. Por

76
ceder ao Tentador, deve permanecer sob tutela. Desobedi-
ente, indiscreta, curiosa. Frágil, deseja o fruto proibido. Do-
tada de cupidez bestial, tem de ser mantida na coleira. Tem-
peramento melancólico, mole, enferma. Tem menos calor
que o homem. Seus órgãos sexuais, por serem internos, pos-
suem partes espermáticas mais frias e moles, menos secas
que as do homem. Sua natureza é úmida e viscosa. A umi-
dade é menos eficaz que a secura para gerar um macho.

A fertilidade e a fecundidade supremas da mulher são


incorporadas ao simbolismo da Grande Deusa Mãe: Senhora
dos Animais Selvagens, Deusa Cornuda, Vaca Celeste, So-
berana das Montanhas, das Árvores e dos Mares. Para ga-
rantir a sobrevivência animal e humana, fazem-se rituais,
danças, símbolos, mitos, amuletos. As Vênus esteatopígias,
de pedra, argila ou osso, sacralizam a maternidade, com seus
largos quadris, seios caídos e ventre protuberante.

Crédula, impressionável, inconstante no ser e na ação.


Apresenta deficiência natural de inteligência. Ignorante. Um
ser marcado pela imbecilidade de sua natureza. Menor no
pensamento reflexivo, sem aptidão para a Filosofia e as
Ciências Exatas. Tem memória fraca. Passiva, domesticá-
vel, incapaz de alcançar a idade adulta. Criança perpétua.
Débil e vulnerável. Desvalida. Insensata. Lamurienta. Re-
pugnante. Ser de decrepitude rápida e visível. Corpo que
pulula de vermes: dorso, seios e ventre são sempre já podri-
dão. A mulher velha é a imagem da morte. Seus olhos são
trevas, um esqueleto de pele e osso, carniça sem cores, des-
pojo de sepultura, carcaça desenterrada, um fantasma que

77
dá medo ao medo. Sua decadência física implica malignida-
de, inverno, esterilidade, fome, quaresma.

Mulher e Lua: dois corpos com ciclos fundamentais,


que marcam o ritmo das marés, chuvas, germinação, fe-
cundação, menstruação, gravidez. Como a mulher, a Lua
é cálice, ventre, receptáculo, vaso, luminosidade que ofus-
ca nas trevas. Diana, Deusa Mãe, Gata Sagrada, caçadora
e virgem, prescinde de criação, contém em si todas as coi-
sas, é responsável pela luz e pelas trevas, usa chifres do
quarto crescente lunar. Hécate é dona da magia, rainha
das trevas e da noite. Epona, deusa gaulesa, é divindade
lunar, cavaleira que conduz as almas ao Outro Mundo.
Holda, deusa alemã da fertilidade, comanda as mulheres
na Grande Caçada noturna.

10
Força misteriosa, que influencia maleficamente tudo o
que toca. Insubordinada e rebelde. Caráter perigoso e inde-
cifrável. Símbolo da ingratidão. Mal magnífico, prazer fu-
nesto. Corruptora e transgressora de toda lei humana, mo-
ral e divina. Fonte de toda condenação. Atrai pela mentira e
arrasta os homens ao abismo da sensualidade. Mulher de
vida fácil. Adúltera, delinqüente, luxuriosa, violadora, libi-
dinosa, incestuosa. Lasciva, copula até com demônios. É
ela quem introduz no mundo o pecado, a desgraça e a mor-
te. Pandora grega, Eva cristã, Lilith judaica: cometem as
faltas originais e trazem os males à humanidade. Mães do
pecado. Portadoras da morte. Culpadas. Responsáveis pelo
sofrimento, malogro, desaparecimento do Paraíso e da Bem-
Aventurança. Maria Madalena, Joana, Suzana, samaritanas,

78
pecadoras públicas: todas portas do Mal, perdição do gêne-
ro humano, inimigas da raça humana.

11

Mulher-Serpente: aparece e desaparece nas entranhas


da terra, regenera-se ciclicamente, é telúrica e imortal,
conhece os mistérios e fontes de sabedoria, une-se sexual-
mente a si mesma, autofecunda-se, transmuta perpetua-
mentc a vida em morte e a morte em vida. Possui as
duas valências e os dois sexos, quando morde a própria
cauda. Mulher, a Grande Serpente, Coisa Primordial, Ci-
bele, Atena: soberana, eterna, invisível, causai, atempo-
ral, dona do Princípio Vital e das forças da Natureza,
defensora da Cidade, dotada de conhecimento superior,
símbolo da Pitonisa.

12

Como a Lua, a mulher é incapaz de brilho próprio, pas-


siva e frígida. Como a Serpente, é venenosa, sombria e en-
ganadora. Servil, desprezível, cruel, orgulhosa, repleta de
traição, sem moderação, sem razão, sem lei, móvel, vaga-
bunda, inapta, vã, avarenta, indigna, fingida, ameaçadora,
cúpida, leviana em crer, bebedora, onerosa, mordaz, cafeti-
na, feiticeira, inculta, perniciosa, ambiciosa, litigiosa, des-
peitada, maligna. É animal mutável, variável, inconstante,
incapaz de guardar um segredo. Prejudica o Estado, pois
perdeu a Terra inteira. Nada de transmitir a coroa a ela,
nada de funções públicas, nada de deixá-la ensinar os meni-
nos. Seu testemunho não vale, ou o de um homem vale
pelo de duas mulheres. Servos, crianças, mulheres: o mes-
mo sujeito inferior de Direito.

79
13
Guerreira e caçadora, nunca frágil ou delicada, ja-
mais escrava, livre sexualmente, superior a todos os deu-
ses, identificada à soberania universal, muitas em uma,
uma em muitas. É associada ao jumento, cavalo, cervo,
javali, pomba, leão, coruja. Soberana como eles, reina
em dois mundos: no uraniano, luminoso, solar, celeste,
faz nascer e renascer; no ctônico, subterrâneo, lunar,
profundo, dispensador e condutor da morte. Situada
para além de todas as dicotomias, a mulher engloba-as
e dispersa-as.

14
A gruta sexual da mulher é fossa viscosa do Inferno.
Repulsiva. Cloaca da espécie, onde tudo é obscuro e fonte
de terrores. Ela não sabe o que quer. Suja pelo sexo, ofusca
os olhos e encanta com palavras. A mulher é a Quimera:
cabeça de leão, ventre obsceno de cabra, cauda de víbora.
Mentirosa, em seu porte e atitude: o aspecto é belo, o con-
tato é fétido e a companhia mortal. Seu perfume é pura
camuflagem. Sempre é preciso ver o que se esconde sob
suas nove peles. Ser perigoso, quando sorri. Ao olhar, quei-
ma a si e aos outros. Em seu andar e postura, reside a vaida-
de das vaidades. Pus da Terra.

15
O culto da Terra Mãe transmuda-se no da Deusa Mãe,
iniciado nos arredores do mar Cáspio e espalhado por to-
das as civilizações arcaicas. Atravessa o nomadismo do
Mesolítico até chegar à sedentarização do Neolítico.

80
16

Juíza da sexualidade do homem, inesgotável, insaciá-


vel, comparável a um fogo que é preciso alimentar. Ela im-
pede o homem de ser ele mesmo, de encontrar o caminho
da salvação. Devoradora, como o louva-a-deus. Canibal se-
xual. Oceano furioso, sorvedouro, lago profundo, poço sem
fundo. Carcereira do homem, sua fatalidade e perdição.
Repleta de paixões vorazes, desprovida de prudência, vo-
luptuosa, avara, andeja, vagabunda, faladora, briguenta, cú-
pida de elogios. Mãe de todos os vícios, que engendra no
mundo os maiores escândalos. Funesta cepa de desgraça.
Saco de excremento. Assemelha-se aos judeus, leprosos,
anões, negros, homossexuais, vagabundos, loucos, cujos
defeitos físicos denunciam defeitos na alma.

17

O reinado da Mãe Imortal é soberano e a mulher é


adorada como imagem da Deusa. Envolta em luzes e tre-
vas, rainha do Céu e do Inferno, doadora do bem e do mal,
condutora na vida e na morte, virgem angelical da materni-
dade e prostituta do desejo e da volúpia no sexo, a mulher
possui uma dualidade conectada à magia de seu sangue. San-
gue da vida, da menstruação, defloração e parto. Sangue da
morte, da menopausa, provocadora de esterilidade.

18

Um mal doce, favo de mel e copo de veneno, a um só


tempo. Mais perigosa que uma armadilha, quando bota as
mãos numa criatura, enfeitiça-a com ajuda do~Q'\2tao;femme
fatale. Sua voz é como o canto das Sereias: garganta mais
oleosa que o azeite, mas as partes inferiores mais amargas
que o absinto. É cortesã, meretriz, rameira, prostituta:

81
Olympia e Nana, de Manet, fills publiques, de Rops, Goya,
Degas, Toulouse-Lautrec, femmes damnées, de Baudelaire.
Transforma o bem em mal: Judith, Dalila, Salomé, Lore-
lei, Sidonia von Bork, La Belle Dame sans Merci. Mais
amarga que a morte: a morte é natural e destrói só o cor-
po, já o pecado que a mulher traz destrói a alma e entrega
o corpo do homem à punição eterna. É a própria morte:
espalha pestes, fome, guerras, poeira, calor opressivo,
medos, cismas, tempestades, o fim do mundo. Destrói
navios, cidades, homens: Proserpina, Messalina, Lucrecia
Bórgia. Desvia o homem de sua vocação intelectual: Xan-
tipa impede Sócrates de filosofar, uma cortesã transforma
Aristóteles em besta de carga. Vende todas as mercado-
rias: mulheres da Art Nouveau. Constrói o star system de
celulóide: Vamp Theda Bara.

19
A Deusa Mãe do paganismo reina sem companheiro
durante milênios. Aos poucos, é associada a um jovem deus,
um filho, que assume o papel de Filho Amante, assujeitado
a ela. No plano divino, a Magna Mater Deorum engendra esse
Filho que é também seu amante.

20
Santuário do Estranho. Realiza metamorfose dos cor-
pos, transforma os homens em animais disformes, em bes-
tas. Transforma-se em animal selvagem. Acasala-se com os
animais. Recusa a posição de missionário e coloca-se sobre
o homem no ato de amor. Copula igual aos animais. Há
dúvidas se é humana ou animal. Tem poderes de profetizar,
curar ou prejudicar, por meio de beberagens, ungüentos,
poções, olho gordo, mau-olhado. Sabe a receita dos filtros

82
de amor, tira sortes, freqüenta os cemitérios, viola cadáve-
res, aterroriza animais e pessoas, pratica sacrifícios huma-
nos. Ligada às lunações, à natureza selvagem, é O Mal. Faz
com que nasçamos entre urina e fezes. É impura, como o
seu fluxo menstrual, líquido amniótico, expulsões do parto,
odores, secreções. Sangues carregados de malefícios, que
impedem a germinação das plantas, fazem morrer o gado,
corroem o ferro e provocam a raiva da Natureza.

21

Personagens de um casamento sagrado, a união entre a


Deusa Mãe e o Filho Amante, no plano temporal, é vivida
por reis, chefes e heróis. Casando com a rainha ou com a
sacerdotisa, dotadas de poder pela Deusa, o rei investe-se
do poder vivificador do Filho. Parceiro hierogâmico, con-
cebido no espaço celeste, morto simbolicamente, lançado
nas profundezas do espaço infernal, para renascer após três
dias e três noites, regenerado e regerado, como a Lua.

22
Monstro, besta-fêmea. Medéia, a mãe ogra, seduz Ja-
são, cozinha drogas para Esão e devora os filhos. Kali, deu-
sa hindu, Mãe do Mundo: criadora e bela, sedenta de san-
gue, exige o sacrifício de milhares de animais por ano. Safo,
da ilha de Lesbos: andrógina, sedutora de ninfas, perverti-
da. Amazonas: devoradoras de carne humana e de meni-
nos. Erínias: assustadoras, loucas e vingadoras, das quais os
gregos não pronunciam o nome. Margot, a Furiosa, de Brue-
ghel: delirante, liberta, armada de gládio, incendeia e des-
trói tudo, conduzindo as companheiras ao Inferno. Para os
índios da América do Norte, integrante de mais de trezen-
tas versões do mito da vagina dentada. Na índia, sua vagina

83
contém serpentes. A Esfinge, de Éfeso: corpo de leão, pei-
to e rosto de mulher, asas de águia, devora os que não deci-
fram seus enigmas. Medusa: monstro alado de garras afia-
das, serpentes no lugar de cabelos, olhos que convertem
em pedra. Sirena, de Ovídio, com seu canto de morte, pe-
trifica. Harpia: corpo de ave, cabeça de mulher, cauda de
serpente, destruidora. Vampira, morcega, serpente-rainha.
Hera, que mata o filho. Lâmia, que chupa o sangue dos
filhos das outras. Circe, que converte os homens em ani-
mais. As três Parcas, que tramam, tecem e cortam o fio da
vida do homem. Mênades, as possuídas, que invertem a or-
dem familiar e social.

23
Princípio Feminino, Fonte da Vida, só a Deusa Mãe é
Prostituta Celeste, Puta Divina. Nos templos, a jovem pú-
bere lhe consagra a virgindade. Como prostituta, aguarda
que um estranho lhe ofereça dinheiro, para cumprir o ritual
sagrado do amor. Só após, é considerada virgem, no senti-
do religioso do termo, e estabelece sua ligação com Eros.
Virgor. mulher livre, disponível, que não está presa a nenhum
homem, pode ser mãe de vários filhos e amante de vários
homens e deuses. As crianças geradas pela virgo assumem
características de Herói, Salvador, Redentor.

24
Noiva do Diabo. Mulher-bruxa. Realiza o pacto diabó-
lico, pelo qual se torna devota cega e serva obediente do
Demônio. Fala com ele, numa linguagem sem palavras. Por
baixo, por suas partes vergonhosas, recebe as palavras do
Diabo. Realiza feitiços, malefícios e encantamentos, que
adoecem e matam os homens. Sutil na perversidade. Porta

84
a marca diabólica, umpunctum diabolicum, assinatura do Dia-
bo, que é a prova do pacto. Vai aos shabbaths noturnos, sa-
crílegos e blasfematórios, montada em vassouras, tridentes
ou bodes negros. Participa ativamente de liturgias demonía-
cas, orgias, incestos, canibalismos, infanticídios, sodomias,
lesbianismo, bestialidades. Pertence à categoria das Pitonisas,
em quem e pelas quais o Diabo realiza operações vis, he-
diondas. Recita um credo repugnante e obsceno. Tem o po-
der de deslocar seu corpo pelo mundo, em busca de rela-
ções sexuais. Pratica os venenos, chantagens e todos os
crimes. Em sua casa, encontram-se sapos, hóstias conspur-
cadas, imagens de cera, ossos, cabelos, membros humanos.
Blasfema, em palavras e atos, contra a Fé Verdadeira. Dis-
farça-se em Anjo de Luz. Domina pelo terror e superstição,
explora a credulidade, finge curar. Tem imaginação devassa.
É naturalmente insana.

25
Existe uma ambivalência fundamental diante daquela
que dá a vida e anuncia a morte: admiração e inveja, respei-
to e temor, fascínio e medo, amor e ódio. Há uma ambigüi-
dade feminina, que não é aceita na complementaridade de
seus pólos opostos. Um clamor pela unidade daquela que,
desde o princípio dos tempos, foi múltipla.

26
Zeus engole a amante Métis e o feto, fazendo Atená
nascer de sua cabeça; arranca Dionísio de Semeie e termina
de gestá-lo em sua coxa-ventre. Ao entardecer do sexto dia
da Criação, quando as trevas avançam, Jeová cria Lilith, a
primeira mulher para Adão, cheia de saliva e sangue, da ter-
ra impura, suja de fezes e imundícies, e com ela todos os

85
demônios e desafios ao deus monista. O Deus Único cria
Eva, a segunda mulher, do osso-pó de Adão, como A Que
Parirá, com todas as dores do mundo: apêndice do homem,
para servi-lo e obedecê-lo.

27
Pitagóricos e platônicos privilegiam o Uno, o Princípio
Primeiro, universal e eterno, estável, ordenado, limitado,
sólido, cognoscível. Inferiorizam a multiplicidade e asso-
ciam-na a tudo que é instável, desordenado, incognoscí-
vel, ilimitado, fragmentado, sujeito a mudanças infinitas. Múl-
tiplo é o corpo, a carne, os sentidos, como faculdades animais.
Múltipla é a Deusa Mãe, ocultada por Deus Pai Todo-Pode-
roso que, por sua vez, é afastado pelo Filho, que reina.

28
Chamariz, cúmplice e aliada de Satã. Instrumento hu-
mano e agente livre do Diabo. Sinistra e deletéria. Provoca
êxtases, transes, possessões. Castigo inevitável. Mal necessá-
rio. Tentação natural. Calamidade desejável. Deleite nocivo,
pintado de lindas cores. Com seus atrativos falaciosos e de-
moníacos, atrai o homem ao Inferno. Verdadeiro diabo do-
méstico, inimiga da paz, fonte de impaciência e disputas, causa
de vícios e más ações. Incorrigível, infiel e vaidosa, viciosa e
coquete, enganadora e maliciosa. Adversária da amizade. Com
a cauda de seus vestidos parece o verdadeiro animal que é.
Com seus colares, o Demônio a acorrenta e arrasta.

29

A Deusa é fonte e origem de tudo. Tyché: responsável


pela sorte e pela fortuna. Cibele e Atis: asseguram a imorta-
lidade para os iniciados em seus Mistérios. Juno: força vital

86
e guerreira, regente da fecundação e do renascimento. Mi-
nerva: patrona das artes e dos artesãos. Libera: represen-
tante da fecundidade universal. Ceres: deusa do crescimen-
to da Natureza. Deméter: assegura abundância das colheitas.
Vesta: imagem do fogo perpétuo, que protege e purifica o
lar e a cidade.

30
Sentinela do Inferno. Pela força terrível de suas magias
consegue destruir a vida. Sua língua tagarela e palavras me-
lífluas causam grandes males. Debochada, parasita. Alcovi-
teira, impudica. Negra conselheira das damas lascivas e de
seus amantes adúlteros. Conspurca as emoções do homem.
Provedora do vício e das corrupções, enriquece-se do lixo e
das imundas paixões da época. Com seus encantos diabóli-
cos faz os pares mais perigosos: Eva e Satã, Lilith e o De-
mônio. Derruba reinos: Tróia, por Helena; o dos judeus,
porjezebel e sua filha Atália, rainha dejudá; o romano, por
Cleópatra, a Rainha do Egito.

31

Mulher-Sol: branca, luminosa, dourada, bela. Mulher-


Graal: tesouro cátaro, recipiente celta, cujo conteúdo nutre,
dá a vida, regenera, ressuscita, dispensa o alimento inesgo-
tável. Mulher-Esmeralda: pedra de luz. Deusa da Irlanda:
metamorfoseada em animal, ou sob o aspecto de uma hor-
renda mulher, ao ser amada e beijada pelo jovem guerreiro,
transforma-se em Soberania e lhe faz dom da realeza. Mu-
lher-Gata, emblema da fecundidade; Nut, Isis: detentora de
um poder perturbador, iniciada nos mistérios da vida e da
morte, sensível às correntes telúricas. Mulher-Dragão: com
aspectos positivos e negativos, ctônica e uraniana, aquática

87
e terrestre, associada à fertilidade, com poder celeste, cria-
dor, ordenador. Mulher-Planta: herda da Mãe os segredos da
Natureza, semeia, colhe e mistura essências, conhece os po-
deres curativos, venenosos, afrodisíacos e alucinógenos das
folhas e ervas, para combater as mazelas do corpo e da alma.

32
Flecha de Lúcifer. Arma do Demônio. Femina, de Fe e
Minur. fé de menos. Paga. Ministra das idolatrias. Praticante
de Necromancia. Invocando os demônios, esteriliza planta-
ções, incita as forças e confunde os elementos da Natureza.
O seu coração é uma rede e as mãos são algemas. Enfeitiça a
mente dos homens, leva-os à loucura, ao ódio insano e à las-
cívia desregrada. Capturados por sua paixão da carne e em-
briaguez diabólica, os homens abandonam o Verdadeiro Deus.
Briguenta, colérica, vingativa. Despreza os homens. Sente
ciúme e inveja das outras mulheres. É tirânica. Coabita com
os clérigos e corrompe os leigos. Concubina dos poderosos.
Blasfema contra a Fé Verdadeira. Abjura de sua fé na palavra
de Deus. Comete o crime de lesa-majestade divina.

33
Mulher-Fada: divindade silvestre ou aquática, que pode
aparecer sob a forma humana ou animal. Mortal ou imor-
tal, transita pelo mundo terrestre e pelo reino encantado
do qual provém. Avatar do ser sobrenatural, seu poder é
superior e divino. Mensageira do Outro Mundo. Prediz o
futuro e faz com que os acontecimentos se produzam.
Detentora do bem e do mal, é mais bela do que as mais
belas mulheres e, quando quer, torna-se repugnante e es-
palha o medo. Seduz os heróis e os acorrenta a seu amor.
Madrinha-mãe ou madrinha-amante. Do mundo arturiano:
Morgana, satânica, maléfica, a Dama do Lago-Viviane,
maternal, fiel servidora do Senhor.

34
Trono de Satã. Filha mais velha de Satã. Ignóbil, pérfi-
da, vil, fera, má, carnal, carne toda inteira, a pior das víbo-
ras, bela podridão, inimiga, turbilhão de sexualidade, ins-
trumento do abismo, boca dos vícios, leoa, oposta à lei,
delírio supremo, flagelo íntimo, loba, feroz serpente. Dis-
farçada, falsificadora, nociva, fétida, pior das partes, ladra
do pudor, inumana, infiel a si mesma, infecta. Alma de to-
das as palavras do mal. Mais maldosa e mais ardilosa que os
demônios. O seu poder se confia às partes íntimas e ao úte-
ro. Hábil na ilusão e burla dos sentidos, torna as mulheres
incapazes de conceber, ou as leva a abortar. Cozinha os
recém-nascidos, de suas carnes e ossos faz pomadas e un-
güentos. Assassina os filhos, oferta crianças não-batizadas
a Satã. Por meio de encantamentos, poções ou ervas, obs-
trui o canal seminal do homem, impede a ereção do mem-
bro viril, esfria o desejo, impede que os corpos se aproxi-
mem, interpondo-se sob alguma forma corpórea, faz crer
que o pênis é retirado do homem, impede-o de copular,
torna-o impotente, temporária ou permanentemente. In-
terfere no processo normal de copulação e concepção:
obtém sêmen humano e o transfere para outros corpos,
gerando outras filhas do Diabo. Serve de Súcubo para o
homem e de Incubo para a mulher.

35
Dama cortês: do lirismo medieval trovadoresco, o cul-
to ao corpo da mulher, como propagador do bem e do belo.
Amar a castidade de seu corpo e a pureza de sua alma é a

89
principal virtude do cavaleiro: condessa de Flandres, dama
de Norbonne. Da Bretanha paga: Isolda, Guenièvre, Es-
clarmonde de Foix. Do Oriente: Atargatis, Astarté Lyriaca,
Ishtar. Da literatura: Beatriz de Dante, Laura de Petrarca.
Culto mariano: Maria, a Ave, a Vida, a Inacessível, a Invio-
lável, a Eterna Virgem, a Santa Divina, Rainha do Céu, Lua
da Igreja, Estrela do Mar, a Redentora, a Madona, Mãe Boa
da Humanidade.

36
MVLIER: o M, de mulher má, o mal dos males; o V,
vaidade das vaidades; o L, de luxúria das luxúrias; o I, ira
das iras; o E, das Erínias, de fúria das fúrias; o R, de ruína
dos reinos.

37
Mulher, a primeira e a última. A que é honrada e a de
quem se zomba. A prostituta e a santa. A esposa e a virgem.
A noiva e o noivo. O conhecimento e a ignorância. A tola e
a sábia. A quem chamam Vida e vós chamastes Morte.

Elas?
Ser deusas e bruxas é algo que cabe a nós, mulheres-
professoras, decidir? Nós temos autonomia para determi-
nar esses modos de ser? Mas, quem somos nós, para esco-
lher, diante de milhões e milhões de anos, discursos, textos,
práticas, que inscreveram tais modos de ser em nossos cor-
pos e almas, mesmo antes de nascer como mulheres e de
trabalhar como professoras? Nós queremos ser alguma des-
sas coisas que foram constituídas e fixadas como uma deu-
sa e como uma bruxa? E o que há nesta palavra "ainda",

90
senão a indicação de que algo já passou, já se foi, já era, e
que nela mora um outro tempo que é o desta hora deste
mundo? E quem somos "nós"? Nós, mulheres-professo-
ras, que fomos subjetivadas na oscilação entre deusas e bru-
xas? Mas, o que é uma professora-mulher, a não ser nossa
segunda natureza, criptografada desde o Paleolítico como
deusa e bruxa? O que é uma mulher-professora, hoje, se-
não a carne viva de tudo o que se disse dela e também o seu
distanciamento crítico disso tudo, que lhe permite reler e
reescrever todas essas palavras, desfazer e revirar e refazer
todos esses sentidos?
Minha resposta é: nós não queremos mais ser elas, deu-
sas e bruxas. Não queremos mais nos significar, pensar, sen-
tir, agir desses modos. Não queremos porque não se trata de
"querer", mas de que estamos experimentando devires mu-
lher e professora, que não sejam nem bruxas nem deusas.
Estamos extraindo partículas de deusas e bruxas e nos fazen-
do mulheres-professoras, no entre intermediário, indetermi-
nado, vicinal, ziguezagueante entre deusas e bruxas, passan-
do entre as linhas que sobrecodificam cada uma dessas
subjetividades. Andamos fugindo de ser deusas e bruxas, e
fazendo seus fluxos e intensidades se comunicar, tornar-se
simultâneos, deslizar de bruxa a deusa e de deusa a bruxa.
Realizamos núpcias anti-deusas-e-bruxas, involuímos
criadoramente em outras direções, distantes dessas formas
determinadas. Não nos tornamos nem deusas nem bruxas,
como esses corpos programados há tanto tempo, mas tam-
bém todas elas. Não somos análogas, arquétipos, simbolis-
mos, nem fazemos imitações de bruxas e deusas. Mas, com-
pomos, com a velocidade de nosso desejo, algo que tem a
ver com elas e com cada uma. Saltamos com elas, instaura-
mos relações de movimento e repouso entre elas, deixamos

91
passar nossas linhas de deusas e bruxas em sua co-presen-
ça. Com as formas, objetos e sujeitos bruxas-e-deusas, que
conhecemos, nos tornamos coletividades moleculares de
feitiçaria e de divindade.
Promovemos encontros entre deusas e bruxas, que são
as formas que temos, as mulheres que somos, as funções de
professoras que preenchemos, em tudo as mais próximas
do que estamos em vias de nos tornar. Invocamos uma zona
tal de incerteza, ao mesmo tempo comum e indiscernível,
na qual não podemos mais distinguir a fronteira entre mu-
lher e pecadora e professora e santa. Do mesmo modo, como
deixamos lugares vagos, abertos, arejados, sem órgãos, para
embruxar e endeusar todas as nossas outras possibilidades
contemporâneas de devir criança, vegetal, loba, ursa, esme-
ralda, serpente, gata, borboleta, fauna silvestre, floresta vir-
gem, deserto, várzea, região agreste.
Assim criamos metamorfoses das bruxas e das deusas
criaturais, que somos nós e que nos fizeram ser, e que com-
põem nosso organismo de professora-mulher com outras
coisas. Deslizamos entre as ordens, atos, sentidos para pro-
duzir um devir-mulher e um devir-professora com átomos
de Ave e fluxos de Eva, capazes de impregnar o campo
social, bosques, cidades, represas, universidades, ruas, esco-
las, castelos, bolsas de valores, trânsito, parlamentos. Con-
vocamos e repelimos tudo do mundo visível e do mundo
invisível para funcionar, inventar outras megeras criadoras
e diferentes soberanas da perdição de nós mesmas. Luta-
mos para descorporificar todos esses espíritos.
Cavamos terras. Incubamos sementes. Sonhamos à luz
da Lua. Fazemos alianças com o Sol. Corremos com os lo-
bos. Acendemos fogos criadores. Estrumamos solos. Fertili-
zamos conceitos. Transplantamos mudas. Plantamos bulbos

92
para a Primavera. Descobrimos mortos. Recolhemos os-
sos. Cortamos carnes. Bebemos sangue. Arrancamos peles
e pêlos. Misturamos reinos. Cuidamos de velhos e educa-
mos crianças e jovens. Perseguimos águias e raposas. De-
sarmamos predadores. Povoamos desertos. Convocamos a
força do vento e do redemoinho. Superamos os limites ver-
tical e horizontal.
Rimos e cantamos, dançamos e acarinhamos, choramos
e ficamos raivosas. Farejamos perigos. Afiamos nossas gar-
ras. Adotamos precauções de prudência. Saltamos civiliza-
ções. Matamos irmãs molares. Alienamos o conhecido e fa-
miliar. Gritamos palavras indizíveis. Invocamos todas as
estranhezas. Usamos chaves proibidas. Pulamos cercas, mu-
ros, obstáculos. Rastreamos rizomas e alegrias. Eliminamos
cancros, desejos não-satisfeitos, queixas, culpas, ofensas, fa-
tos morais, arrazoados, tudo o que se enraíza em si mesmo.
Sopramos almas sobre o que está doente e triste. Descemos
rios e afundamos nos mares. Adentramos nas grutas, trevas,
ares, tempos. Arrancamos escritos, cantos e poesias das en-
tranhas. Fluidificamos tudo o que nos impede de deslizar e
irromper entre as deusas e as bruxas do presente e do futuro.
Dizemos não às histórias impostas de mulheres, pro-
fessoras, deusas, bruxas, e mergulhamos em um mundo-
entre-mundos, para nos encontrar com a nossa impessoali-
dade. Encontro realizado no infinito, todo feito de névoa
cósmica, inefável, rarefeita e imperceptível, que é onde
mulheres e professoras são e não são, estão e não estão, e
toda substância de bruxa e deusa é sempre diáfana. Névoa,
por onde passam o amor e o sexo e a morte e a vida e a
criação e a destruição e tudo o que é irredutivelmente mu-
lher. Ou seja, tudo o que é diabólico e divino, dada a sua
multiplicidade, como nações do mundo que somos.

93
Rasgar ofirmamento,mergulhar
no caos, retornar da morte

U m dos grandes perigos que rondam a teoria educa-


cional é perder a capacidade de criar suas próprias idéias.
Talvez, por isso, ela se agarre tanto a idéias preestabelecidas,
que lhe emprestam um saibo moral de unificação ou um gos-
to religioso de totalidade. Qualquer variação conceituai desa-
fia e lamina as opiniões preexistentes, para encontrar formas
de criação do novo na Educação. Formas que, nesta filosofia
do inferno, respiraram uma atmosfera de estranheza, rasga-
ram o desconhecido do firmamento, mergulharam no caos
diabólico e daí trouxeram variações sobre a infersfera.
Criar conceitos, traçar um plano, inventar personagens con-
ceituais são atos filosóficos que podem ser feitos por qualquer
pensamento, até por umafilosofiado céu na Educação. Um desses
pensamentos não será melhor do que outro, ou mais plena-
mente pensado. Eles serão distintos, heterogêneos, não-assi-
miláveis, sem síntese, identificação, superação. Embora pos-
sam deslizar, passar uns pelos outros, cruzar-se, ter suas
extensões ocupadas por outros personagens, apelar a concei-
tos que restam por criar em outros pensamentos.
Nenhum modo de pensar a Educação é sagrado ou pro-
fano, verdadeiro ou falso, nobre ou vulgar, rico ou indigente.
Um pensador não pode provar, comparar, medir, decidir que
o seu modo de pensar é melhor do que os modos que cons-
tróem outros conceitos, planos e personagens. Os critérios

95
para tal comprovação não são senão imanentes, diante de
conceitos ainda indeterminados, personagens ainda no lim-
bo, planos ainda transparentes. Qualquer pensamento só é
avaliado pelos movimentos que traça, fluxos que cria, multipli-
cidades complexas que infinitiza. Só pode ser condenado aquele
pensamento que não experimenta, não prolonga, não desterri-
torializa, não foge, não se relaciona com problemas de fora,
não abala a confiança na arbitrariedade da Kngua, nem vive a
gagueira e o büingüismo dentro da própria hnguagem.
Do que lhe toca, a filosofia do inferno busca dar o que
pensar ao pensamento da Educação. Modificar o que signi-
fica pensar o inverossímil. Reunir à força coisas distintas.
Alhear significados existentes. Agitar devires de idéias. Li-
berar riachos e canais de conceitos, onde pululam mais se-
res maravilhosos do que no fundo dos oceanos. Programar
meios de orientação, para conduzir experimentações nas
práticas de pesquisa educacional. Inventar possibilidades de
existir como pesquisador, para se tornar sempre outra coi-
sa, que ultrapassa todas as previsões.
Os pesquisadores do inferno na Educação não estão no
inferno: dão vida aos conceitos sobre a infersfera. Não são
infernais: tornam-se, à medida que investigam e pensam o
pensamento infernal. Não se deixam representar pelos in-
fernais: são invólucros e pseudônimos dos personagens que
criam. O destino de cada pesquisador é transformar-se em
seu infernal. Assim, poderá retornar do mundo das idéias,
opiniões, coisas e sujeitos mortos, como um vencedor. Ven-
cedor que indica não algo nem alguém que ultrapassa suas
possibilidades, mas um agente de enunciação da filosofia do
inferno. A questão não será o que um infernal desses pode ou
não fazer no pensamento da Educação, mas a maneira pela
qual é perfeitamente positivo e produtivo como pesquisador
do inferno, mesmo no que não sabe ou não pode pensar.

96
Idéias-força:
referências bibliográficas

Para vivificar os textos deste livro, utilizei algumas idéias-força,


cujas referências bibliográficas são, respectivamente, as que seguem.

Entradas e saídas para inventar u m problema:


linhas d o D i a b o , geografia d o Inferno
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do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
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Experiência perigosa, que assusta os funcionários


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Mil-folhas d o inferno movente


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103
Qualquer livro da Editora não
encontrado nas livrarias pode ser pedido
por carta, fax, telefone ou pela Internet.

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Belo Horizonte, setembro de 2002.

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