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FACULDADE CLARETIANA DE TEOLOGIA

afiliada à PONTIFICIA UNIVERSITÀ LATERANENSE

“HOJE CUMPRIU-SE ESTA ESCRITURA QUE OUVISTES”: O


APOCALIPSE DE JOÃO EM PERSPECTIVA INTERTEXTUAL A
PARTIR DO ANTIGO TESTAMENTO

MARCUS VINICIUS SEGEDI DA SILVA

Orientação:
Dr. ELIAS SANTOS DO PARAIZO JUNIOR

CURITIBA
MMXIX
MARCUS VINICIUS SEGEDI DA SILVA

Orientação:
Dr. ELIAS SANTOS DO PARAIZO JUNIOR

“HOJE CUMPRIU-SE ESTA ESCRITURA QUE OUVISTES”: O


APOCALIPSE DE JOÃO EM PERSPECTIVA INTERTEXTUAL A
PARTIR DO ANTIGO TESTAMENTO

Projeto de trabalho de conclusão de curso a ser


apresentado ao Curso de Teologia da Faculdade
Claretiana de Teologia – Studium Theologicum
da Pontificia Università Lateranense como
requisito para obtenção da graduação em
Bacharel em Teologia.

CURITIBA
2019
CATALOGAÇÃO NA FONTE PELA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE TEOLOGIA
CLARETIANA - STUDIUM THEOLOGICUM, AFILIADO À PONTIFICIA
UNIVERSITÀ LATERANENSE DE ROMA
© REPRODUÇÃO AUTORIZADA PELO AUTOR

Silva, Marcus Vinicius Segedi da


S578h “Hoje cumpriu-se esta escritura que ouvistes”: o Apocalipse de João em perspectiva
intertextual a partir do Antigo Testamento [TCC] / Marcus Vinicius Segedi da Silva ;
orientador Elias Santos do Paraizo Junior. Curitiba, PR - 2019.

202 f.; il. 15 cm

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Faculdade Claretiana de Teologia


(Studium Theologicum). Afiliado à Pontificia Università Lateranense, de Roma

Inclui bibliografias e referências

1. Apocalipse de João. 2. Sagrada Escritura. 3. Intertextualidade. 4. Antigo


Testamento. 5. Escatologia. I. Paraizo Jr., Elias Santos. II. Faculdade Claretiana de
Teologia (Studium Theologicum, afiliado Pontificia Università Lateranense, de Roma).
III. Título.
CDD – 228 (23.ed.)
BANCA EXAMINADORA

Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado para a


obtenção da do grau de Bacharel em Teologia e aprovado em sua forma
final pelo Orientador e pela Banca Examinadora.

ORIENTADOR:
_______________________________________________
Prof. Dr. Elias Santos do Paraizo Junior, Claretiano - Studium
Theologicum
Doutorado em Estudos da Tradução pela UFSC

BANCA EXAMINADORA:

_________________________________________________
Prof. Ms. Rafael Santamaria, Claretiano – Studium Theologicum
Mestre em Teologia Bíblica pela Universidad Pontificia de Salamanca
_________________________________________________
Prof. Ms. Jaime Sanchez Bosch, Claretiano - Studium Theologicum
Mestre em Sagrada Escritura pelo Instituto Bíblico de Roma

REITOR do STUDIUM THEOLOGICUM:


_________________________________________________
Prof. Ms. Jaime Sanchez Bosch, Claretiano - Studium Theologicum
Mestre em Sagrada Escritura pelo Instituto Bíblico de Roma

DIRETOR ACADÊMICO do STUDIUM THEOLOGICUM:


_________________________________________________
Prof. Dr. Márcio Luiz Fernandes, Claretiano - Studium Theologicum
Doutor em Psicologia pela USP

CONCEITO: ___________.
Em, 19 de novembro de 2019.
DEDICATÓRIA

A meus pais, os primeiros que – a seu modo – me


inseriram na escuta atenta de Deus e sua
Palavra
AGRADECIMENTOS

Deus seja louvado porque é criador e


consumador da história.

Agradeço a meus pais e familiares, pois foram


dele sinais.

Agradeço a meus amigos, todos, porque foram


linguagem privilegiada de Deus.

Agradeço aos companheiros de seminário,


particularmente meu colega de turma, Matheus
Matos. Buscamos Deus em caminho semelhante.

Agradeço aos formadores, diretores espirituais e


padres que passaram por minha vida, pois foram
de Deus ministros.

Agradeço a João Pedro, José Klebson e


Henrique Segedi da Silva pelo atencioso trabalho
de revisão.

Agradeço a toda a comunidade acadêmica do


Studium Theologicum, em particular aos
professores de Sagrada Escritura, Rivaldave
Torquato, Rafael Santamaria, Alceu Orso e José
Peruzzo.

Agradeço ao orientador, prof. Elias Paraizo Jr.


Suas contribuições foram inestimáveis.
EPÍGRAFE

Quando encontrei tuas palavras, alimentei-me,


elas se tornaram para mim uma delícia e a
alegria do coração, o modo como invocar teu
nome sobre mim, Senhor Deus dos exércitos.

(Jeremias 15, 16)


ABREVIATURAS

Abreviaturas Remissivas
apud citado por (citação de segunda mão)
cap. capítulo
ed. edição
e.g. exempli gratia
ibid. no mesmo lugar
id. o mesmo (mesmo autor)
op.cit. na obra citada
dir. direção
org. organizador
p. (pp.) página (s)
trad. tradução
v. (vv.) versículo (s)
in presente em
s. (ss) versículo (s) seguinte (s)
// textos paralelos

Abreviaturas dos textos gerais importantes


AT Antigo Testamento
Gr Texto grego
Heb Texto hebraico
LXX Septuaginta (Setenta)
NT Novo Testamento
TH Tradução de Teodocião

Abreviaturas bíblicas
Gn Gênesis
Ex Êxodo
Lv Levítico
Nm Números
Dt Deuteronômio
Jz Juízes
1Sm Primeiro livro de Samuel
2Sm Segundo livro de Samuel
1Rs Primeiro livro dos Reis
2Rs Segundo livro dos Reis
1Cr Primeiro livro das Crônicas
Esd Esdras
Tb Tobias
Jud Judite
1Mc Primeiro livro dos Macabeus
2Mc Segundo livro dos Macabeus
Jó Jó
Sl Salmos
Sb Sabedoria
Is Isaías
Jr Jeremias
Lm Livro das Lamentações
Ez Ezequiel
Dn Daniel
Os Oséias
Jl Joel
Am Amós
Ab Abdias
Mq Miquéias
Na Naum
Hab Habacuc
Sf Sofonias
Ag Ageu
Zc Zacarias
Ml Malaquias
Mt Evangelho segundo Mateus
Lc Evangelho segundo Lucas
Jo Evangelho segundo João
Rm Epístola aos Romanos
Ef Epístola aos Efésios
Hb Hebreus
2Pd Segunda epístola de Pedro
Ap Apocalipse de João
SUMÁRIO

DEDICATÓRIA....................................................................................vii
AGRADECIMENTOS............................................................................ix
EPÍGRAFE..............................................................................................xi
ABREVIATURAS................................................................................xiii
RESUMO.............................................................................................xvii
ABSTRACT..........................................................................................xix
ÍNDICE DE TABELAS........................................................................xxi
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES.............................................................xxiii

INTRODUÇÃO.....................................................................................27

CAPÍTULO I CONCEITOS FUNDAMENTAIS...........................35


1 GÊNERO LITERÁRIO APOCALIPSE.....................................35
1.1 Influências literárias...................................................................36
1.2 Relação com a profecia..............................................................38
1.3 Uso retórico...............................................................................41
2 INTERTEXTUALIDADE.........................................................44
3 GÊNERO LITERÁRIO, AUTORIA E DATA DO
APOCALIPSE............................................................................................
48
4 ESTADO DA ARTE.................................................................50

CAPÍTULO II HERMENÊUTICA INTERTEXTUAL NO


APOCALIPSE ...................................................................................55
1 APOCALIPSE 1, 1-3..................................................................55
2 APOCALIPSE 1, 4-8..................................................................59
3 APOCALIPSE 1, 9-20................................................................64
4 APOCALIPSE 2 – 3...................................................................70
5 APOCALIPSE 4.........................................................................72
6 APOCALIPSE 5.........................................................................78
7 APOCALIPSE 6, 1-8..................................................................84
xvii

8 APOCALIPSE 6, 9-11................................................................88
9 APOCALIPSE 6, 12-17..............................................................89
10 APOCALIPSE 7, 1-8..................................................................93
11 APOCALIPSE 7, 9-17................................................................96
12 APOCALIPSE 8, 1-5................................................................101
13 APOCALIPSE 8, 6 – 9, 21.......................................................105
14 APOCALIPSE 10, 1-11............................................................111
15 APOCALIPSE 11, 1-13............................................................116
16 APOCALIPSE 11, 14-19..........................................................120
17 APOCALIPSE 12, 1-17............................................................122
18 APOCALIPSE 12, 18 – 13, 10.................................................127
19 APOCALIPSE 13, 11-18..........................................................130
20 APOCALIPSE 14, 1-5..............................................................134
21 APOCALIPSE 14, 6-13............................................................137
22 APOCALIPSE 14, 14-20..........................................................140
23 APOCALIPSE 15, 1-4..............................................................141
24 APOCALIPSE 15, 5 – 16, 23...................................................145
25 APOCALIPSE 17.....................................................................149
26 APOCALIPSE 18.....................................................................154
27 APOCALIPSE 19, 1-10............................................................159
28 APOCALIPSE 19, 11-21..........................................................163
29 APOCALIPSE 20.....................................................................168
30 APOCALIPSE 21 – 22.............................................................173

CAPÍTULO III VISÃO DE CONJUNTO EMERGENTE.................183


1 MODO DE USO DO ANTIGO TESTAMENTO POR JOÃO183
2 UMA TENTATIVA DE ESTRUTURAÇÃO DO APOCALIPSE
.................................................................................................187

CONCLUSÃO.....................................................................................195

REFERÊNCIAS...................................................................................199
RESUMO

Este trabalho tem por objetivo investigar as consequências


hermenêuticas das relações entre o Apocalipse de João e o Antigo
Testamento. O autor de Patmos, possivelmente visando a comoção de
seus ouvintes para a perseverança no testemunho de Jesus Cristo, não
simplesmente escreveu um apocalipse – o que é verdade – como também
se valeu de uma ampla gama de textos veterotestamentários, não para
apoiar-se argumentativamente, mas evidenciar facetas inauditas da
realidade. De fato, se seu tempo é de tribulação, antes mesmo que os
fiéis ergam a Deus suas preces, este já os ouviu e, em seu desígnio
salvífico eterno, providenciou-lhes uma salvação completa. As antigas
promessas se realizam, e o paraíso perdido é novamente aberto à
humanidade redimida. Portanto, não temos em mãos um texto que
objetive incutir medo, mas inflamar a esperança, uma vez que a história
esteja definitivamente orientada para uma completude escatológica na
qual todo o mundo criado, santificado, será um grande objeto de culto ao
Deus que enxuga toda lágrima.

Palavras-chave:
1. Apocalipse de João; 2. Sagrada Escritura; 3. Intertextualidade; 4.
Antigo Testamento; 5. Escatologia.
xix
ABSTRACT

This paper aims to investigate the hermeneutic consequences of the


relationship between Apocalypse of John and Old Testament. The
author of Patmos, possibly aiming to move his listeners to perseverance
on witness of Jesus Christ, not only wrote an apocalypse - which is true
- but also drew on a wide range of Old Testament texts, not to support
himself by arguments, but to highlight unprecedented facets of the
reality. Indeed, if his time is an epoch of tribulation, even before the
faithful persons raise their prayers to God, he has already heard them
and, in his eternal saving plan, has provided them a complete salvation.
The old promises are fulfilled, and the lost paradise is again opened to
redeemed humanity. Therefore, we do not have in hand a text that aims
to instill fear, but to ignite hope, since history is definitely oriented
towards an eschatological completeness in which the whole world
created, sanctified, will be a great object of worship to the God who
wipes away all the tears.

Key words:
xxi

1. Revelation of John; 2. Holy Scripture; 3. Intertextuality; 4. Old


Testament; 5. Eschatology.
ÍNDICE DE TABELAS

1. Quadro comparativo entre Ap 1, 1-3 e Dn 2, 28-30.45 (LXX, TH)


...................................................................................................56
2. Textos em paralelo: Ex 3, 14; Ap 1, 4-5a; Sl 88, 28.38..............59
3. Paralelo entre Dn 7, 13; Ap 1, 7-8; Zc 12, 10.............................63
4. Paralelo entre Ap 1, 13-16; Dn 10, 5s(TH)................................67
5. Paralelos entre Ap 6, 12-17 e diversos textos da LXX................90
6. Paralelo entre Ap 7, 5-8; Nm 1,20ss...........................................95
7. Paralelo entre Ap 8, 1; Hab 2, 20; Sf 1, 7a; Zc 2, 17 (Gr e Heb)....
.................................................................................................102
8. Elementos comuns entre Ap 8, 6 – 9, 21 e Jl...........................108
9. Paralelos entre Ap 15, 3s e diversos textos da LXX..................144
10. Elementos comuns entre Ap 21 – 22 e textos proféticos..........176
11. Esboço da estrutura do Apocalipse de João.............................189
xxiii
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1..................................................................................................26
PASTRO, Claudio. Cúpula central do Santuário de Aparecida. 2017,
mosaico, tinta sobre azulejos, escultura em metal.

Figura 2..................................................................................................33
PASTRO, Claudio. Baldaquino do Santuário de Aparecida. [s.d.], vitral.

Figura 3..................................................................................................53
PASTRO, Claudio. Baldaquino do Santuário de Aparecida. [s.d.], tinta
sobre azulejos

Figura 4................................................................................................180
PASTRO, Claudio. Painel da nave leste do Santuário de Aparecida.
[s.d.], tinta sobre azulejos

Figura 5................................................................................................192
PASTRO, Claudio. Nicho da imagem do Santuário de Aparecida. [s.d.],
escultura em metal
xxv
INTRODUÇÃO

PASTRO, Claudio. Cúpula central do Santuário de Aparecida., 2017, mosaico, tinta sobre azulejos, escultura em metal.
xxvii

DESCRIÇÃO: Cúpula central do Santuário de Aparecida

A árvore da vida é a Cruz – trono e altar de Deus – da qual brota o rio de


água viva. Identificado com aquele mencionado no livro de Gênesis, divide-se em
quatro braços, comunicando o Espírito Santo a toda a Terra. Circundam a árvore os
quatro querubins/seres viventes.
INTRODUÇÃO

O Apocalipse de João, último escrito dos cânones católico


romano e protestante, tem motivado muitas vozes a se posicionarem de
modos nem sempre conciliáveis e, frequentemente, contrastantes e
contraditórios. Mesmo pertencendo a um gênero literário que visa,
segundo Collins1, a consolação de uma comunidade de fé em um
momento de grave conflito, presenciamos o fato de que o termo é
correntemente associado a medo e catástrofe.
E verifica-se facilmente. Uma consulta a dicionários da Língua
Portuguesa nos dá certo acesso à mentalidade corrente dos falantes desta
língua sobre um certo verbete. Ora, os dicionários Michaelis e Houaiss,
ao apresentarem os termos apocalipse e apocalíptico, o fazem como
significando, além do gênero literário, elementos como “discurso
obscuro e aterrorizante”, “revelação profética relacionada a um
cataclismo em que as forças do mal vencem as forças do bem”, “fim do
mundo”2 ou “linguagem obscura”3.
Seria, como aparenta atestar o senso comum, o Apocalipse de
João um livro pessimista, composto por vaticínios horríveis acerca de
uma vingança divina sobre a massa humana?
A princípio, isso parece contrapor-se à boa nova evangélica,
segundo a qual Deus tem um desígnio universal de salvação, e que
enviou seu Filho ao mundo não para condená-lo, mas para salvá-lo 4.
Conquanto seja verdade que a doutrina cristã contenha em si uma moral
e uma expectativa de juízo, no qual serão salvos aqueles que, atuando
pela fé, crerem e manifestarem em suas vidas o amor santificante de
Deus, dessa crença à visão que sustenta que a finalidade da mensagem
da salvação codificada nas sagradas letras seja uma condenação geral da
humanidade, há um grande lapso lógico difícil de se entender e superar.
1
COLLINS, John Joseph. From Profecy to Apocalypticism: the
expectation of the end. – in: COLLINS, John Joseph. The Encyclopedia of
Apocalypticism. New York: Continuum, v. I, 1999. cap. 4, p. 157.
2
Houaiss, Antonio (2009). Dicionário Houaiss Eletrônico. [CD-ROM]
versão 3.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
3
Michaelis. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo:
Melhoramentos, 2008.
4
Jo 3, 17.
29

Evidentemente, nem tudo o que se escreveu sobre o Apocalipse


de João ressalta um aspecto condenatório. Todavia, uma breve análise
do estado da pesquisa5 pode levar à conclusão de que ainda há carência
de objetividade no trato com esse texto.
Sem dificuldade, pode-se entender a razão de uma variedade
muito grande de interpretações diferentes. Carey6, analisando o uso da
retórica pelos escritos do gênero literário apocalipse, identifica como
topos argumentativo justamente o uso da simbologia para retratar
pessoas, eventos ou povos. Mesmo que Collins 7 e Clifford8 tenham
identificado o uso do mesmo artifício retórico em outros gêneros que
antecedem a literatura apocalíptica, ainda assim o mecanismo pelo qual
se pode obter algum grau de certeza na atribuição dos símbolos é muito
variado.
Uma característica, todavia, muito particular deste apocalipse,
especificamente, o escrito por João9, é o intenso uso de fraseologia,
imaginário, figuras e estereótipos bíblicos. É verdade que isso não é
exclusividade sua, e o próprio recurso frequente à pseudonímia em
textos considerados apocalipses já é um indício de que não se pode ter
uma correta compreensão destes sem o recurso ao Antigo Testamento
(AT). Mas o caso do Apocalipse de João coloca-se como particular
devido à intensidade e ao modo do seu uso.
A título de ilustração, tomemos o Apocalipse de Enoque10. Sem
que nos interesse um estudo pormenorizado do texto, certamente sua
atribuição a um personagem pré-diluviano, que julgava-se ter subido aos
céus11, traz autoridade oriunda não somente da antiguidade do autor,
como também do fato de este poder falar com conhecimento de causa.
Não à toa, é um texto de jornada celestial. Todavia, à exceção da
5
Elencar exaustivamente os autores e suas opiniões acerca do significado
do Apocalipse de João seria, se não impossível, ao menos importuno. Todavia,
ilustrativamente, reportamos à análise das interpretações sobre o primeiro
cavaleiro, presente à página 84.
6
CARAY, Greg. Early Christian Apocalyptic Rhetoric. – in: COLLINS,
The Oxford…, op.cit., cap. 13, p. 220.
7
COLLINS. From Profecy…, op.cit., p. 158.
8
CLIFFORD, Richard. The Roots of Apocalypticism in Near Eastern
Myth. – in: COLLINS, The Encyclopedia…, op.cit., cap. 1, p. 34.
9
Sobre o autor, discute-se abaixo, à p. 48.
10
CHARLES, Robert Henry. The Apocrypha and Pseudoepigrapha of the
Old Testament in English. Oxford: Clarendon, v. II, 1913, pp. 163-218.
11
Gn 5, 21-24.
30

referência a Enoque, pouco alude às Escrituras. Podemos, ainda, tomar o


escrito hoje conhecido como Apocalipse Judaico de Esdras12.
Claramente, a comunidade judaica destruída por Roma 13 poderia se
beneficiar muito da experiência de um personagem presente à
reconstrução de Jerusalém14. Todavia, além do diálogo com Gênesis 49;
Daniel 7 e Salmos 2, não vemos que um outro escrito o permeie de
modo tão significativo.
No caso do Apocalipse de João, por outro lado, a quantidade de
alusões, referências ou ecos do AT é muito grande. Segundo Moyise 15, o
número total de locais no texto que, de algum modo, referendam ao uso
das Escrituras por João chega a 579. Embora essa contagem inclua um
certo nível de subjetividade e imprecisão, uma leitura atenta do texto do
autor de Patmos revelará que os títulos cristológicos, bem como as
figuras como a da Sala do Trono16, do Cordeiro17, do livro selado18, de
Babilônia19, da descrição das bestas20 etc., são compostos em
terminologia que, para quem tivesse a mente plasmada pelo estudo da
Sagrada Escritura, evocaria lembranças21 textuais e com capacidade de
moção até mesmo afetiva.
Um outro elemento que aponta para a vital importância do AT na
hermenêutica deste livro em particular é sua auto compreensão como
profeta22. Ou seja, colocando-se na esteira dos antigos mensageiros de
Deus a seu povo, o vidente se sente autorizado a, em nome de Deus,
exortar23, consolar24 e até mesmo julgar25. Aliás, é evidente que, na

12
CHARLES. op.cit, pp. 542-624.
13
COLLINS. From Profecy…, op.cit., p. 151.
14
Esd 7, 1ss.
15
MOYISE, Steve. The Old Testament in the Book of Revelation.
Sheffield: Sheffield Academic, 1995, p. 16.
16
Ap 4.
17
Ap 5.
18
Ap 5.
19
Ap 17.
20
Ap 13.
21
MOYISE. op.cit, p. 12.
22
Ap 22, 18.
23
Ap 2 – 3.
24
Elemento particularmente presente nos cc. 21 – 22.
25
Veja-se, por exemplo, as cenas dos cc. 17 – 20.
31

classificação de Carey26, este livro é visto como “apocalipse primário”,


ou seja, apresentando-se a si mesmo com a autoridade de mensagem
oriunda do próprio Deus. Por meio, sim, do intermediário celestial e
terreno, mas palavra fiel e autorizada da divindade, expressa em
linguagem que a coloca em continuidade com aquela Palavra antes
proferida aos que precederam João de Patmos no ministério da profecia.
Sendo assim, o que pretendemos é uma aproximação do
Apocalipse de João com o critério da intertextualidade. Ou seja, ler o
texto em questão tendo em mente os textos aos quais o autor poderia
estar fazendo referência. Em outras palavras, investigar como o uso do
AT por João pode influenciar em uma hermenêutica que, portanto,
pretendemos sustentada em uma objetividade mais acurada.
É claro, todavia, que o texto do profeta prisioneiro não deixa de
ser um apocalipse, ou seja, pertencer a um gênero literário muito
específico. Ou melhor, conforme considerações de Collins 27, o texto
participa do gênero, mais que pertencer a ele. Com isso, entende-se que
as características literárias dos escritos identificados por apocalipses não
simplesmente são copiadas ou herdadas por esse texto em particular,
mas que este com aqueles dialoga e estabelece uma posição,
simultaneamente, de continuidade e descontinuidade. Assim, ao
buscarmos estabelecer o diálogo entre o Apocalipse de João e os demais
textos, não podemos ignorar que um protagonista dessa relação é um
apocalipse e deve ser tratado como tal. Para tanto, pode surgir a
necessidade de investigar não somente algumas características desse
gênero, como também, em alguns casos, fazer referência ao modo
diverso como João trata temas comuns a uma mentalidade corrente da
época28.
Dito em outras palavras, o método que pretendemos utilizar neste
trabalho está contido no da Análise Retórica, mais especificamente, por
meio das consequências do uso de um texto autorizado, não dele fazendo
exegese, mas uso livre que inaugura uma mensagem nova, que continua
a anterior, mas a leva de tal modo a um sentido ulterior, que não
simplesmente a repete, mas ressignifica e recontextualiza29.
26
CARAY. Early Christian…, op.cit., p. 222.
27
COLLINS, John Joseph. What is Apocalyptic Literature. – in:
COLLINS, The Oxford…, op.cit., cap. 1, p. 2.
28
Sobre essa ideia de mentalidade corrente, uide definição de
apocalipticismo, à página 35.
29
SANDERS, James A. Canon and Community: a guide to canonical
criticism. Eugene-OR: Wipf and Stock, 2000. MEYNET, Roland. Trattato di
32

Como consequência, a organização do trabalho deve respeitar


esses princípios. Começaremos, portanto, o estudo a partir de
considerações preliminares (capítulo I), dentre as quais: gênero literário
(seção 1), o conceito de intertextualidade (seção 2), aspectos gerais
(gênero, autor e data) do Apocalipse de João (seção 3) e um sucinto
excurso sobre o estado da arte da questão que pretendemos abordar
(seção 4). Seguindo o texto, em uma ordem que sabemos não ser a usual,
investigaremos, por perícopes, o modo como estas são, em seu
significado, afetadas pelo pano de fundo veterotestamentário (capítulo
II). Em seguida, partindo dessas considerações, tentaremos iluminar o
modo como o texto se relaciona consigo mesmo, ou seja, tentar colher
frutos das informações hauridas até então (capítulo III), quais sejam: o
modo como João utiliza o AT no Apocalipse (seção 1) e uma tentativa
de estruturação do escrito de Patmos (seção 2).
O leitor certamente perceberá a disparidade entre os volumes dos
capítulos deste trabalho. Ainda que esse aspecto resulte deselegante na
apresentação do mesmo, entendemos que, uma vez que não se trate da
abordagem sistemática de um tema, mas da aplicação de um método a
um texto, uma diferente divisão dos capítulos correria o risco de ferir a
proposta inicial. Assim sendo, optamos deliberadamente por um segundo
capítulo grande e, todavia, uno, ao invés de parti-lo em unidades
menores com potencial para viciar a leitura que fizermos do Apocalipse
de João.
A bibliografia referendada será utilizada preferencialmente em
forma de paráfrase. Todavia, sendo convenientes algumas citações
diretas, desde já especificamos que traduções e grifos serão sempre
nossos, salvo quando o contrário for explicitamente declarado. Quando
houver menção a um texto grego da Sagrada Escritura, este será haurido
da LXX tal como compilada por Alfred Rahlf, a não ser que haja menção
em contrário, a saber, a sigla “TH”, que indicará a versão de Teodocião,
utilizada algumas vezes para o texto de Daniel. O texto hebraico, quando
citado diretamente, procede do códex de Leningrado.
Sobre a numeração de capítulos e versículos, sabe-se que alguns
livros do AT, tais como Salmos e Jeremias, apresentam divergências.
Nestes casos, seguiremos a numeração da LXX, tal como editada por
Alfred Rahlf, pela simples razão de ter sido mais utilizada. Para
facilidade do leitor, memoramos que os capítulos 27 e 28 de Jeremias,
os mais utilizados desse livro, ocorrem usualmente nas traduções com
base no texto hebraico como 50 e 51, respectivamente.

retorica biblica. Bologna: EDB, 2008, pp. 371-412.


CAPÍTULO I
CONCEITOS FUNDAMENTAIS

PASTRO, Claudio. Baldaquino do Santuário de Aparecida. [s.d.], vitral.


DESCRIÇÃO: Baldaquino do Santuário de Aparecida

Querubim/ser vivente com asas repletas de olhos.


CAPÍTULO I
CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Este capítulo, como dissemos acima, não tem pretensão de


sistematicidade, mas apenas de uma apresentação sumária dos tópicos
que podem afetar a compreensão do Apocalipse de João, segundo os
critérios que estamos adotando. Sendo assim, os subtítulos primários não
correspondem a uma sequência organicamente articulada, mas a temas
que, se não tratados, podem resultar em erros evitáveis ao longo do
trajeto.

1 GÊNERO LITERÁRIO APOCALIPSE

Antes de mais nada, convém que discorramos sobre alguns


aspectos gerais do gênero literário apocalipse. Além de sua definição,
versaremos sobre as dependências literárias comuns nesses escritos, sua
relação com a profecia e o modo como podem ser usados como recurso
retórico.
Embora o termo apocalíptico, segundo Collins30, tenha sido usado
pela primeira vez num sentido semelhante ao contemporâneo em 1832,
por Gottfried Christian Friedrich Lücke, para designar de modo genérico
os escritos antigos que se assemelhavam ao Apocalipse de João (à
época, os livros 1 Enoque, 4 Esdras e os Oráculos Sibilínicos, também
conhecidos como Sibilinas Cristãs), deve-se dizer que ainda não havia
clareza quando o termo designava um gênero literário específico ou uma
espécie de teologia, ou corrente teológica, ou se meramente agrupava
textos com motivos comuns. Somente a partir da década de 1970 o
debate tornou-se mais solidamente constituído.
Atualmente, é usual uma distinção entre o termo apocalipse,
referindo-se a um escrito de um certo gênero literário, e o termo
apocalipticismo, que tem como referente uma certa corrente de
pensamento com certas ideias e linguagem próprias, que podem ou não
se expressar em textos que participem do gênero apocalipse.

30
COLLINS. What is Apocalyptic…, op.cit., p. 1.
36

John Collins, em 1979, propôs a, em geral aceite, definição


segundo a qual um apocalipse é:

(…) um gênero de literatura revelatória com uma


moldura narrativa, na qual uma revelação é
mediada por um ser de outro mundo a um receptor
humano, expondo uma realidade transcendente
que é temporal, à medida que que visa uma
salvação escatológica, e espacial, uma vez que
envolve um outro mundo sobrenatural.31

Essa definição abrange, sobremaneira, textos entre os séculos III


a.C. e III d.C. Posteriormente, ainda foi feita distinção entre dois
subgêneros fundamentais de apocalipses: históricos, que dividem a
história do mundo em períodos distintos, tentando estabelecer uma
espécie de ordem no caos, e estabelecendo uma perspectiva de
intervenção salvífica final de Deus; e jornadas ao outro mundo, que são
visões do céu ou do inferno.

1.1 Influências literárias

Conquanto os apocalipses estejam cronologicamente localizados a


partir do século III a. C., podemos traçar influências textuais sobre ele a
partir do terceiro milênio antes da era cristã. 32 Isso não é mero exercício
arqueológico, mas tem influências no modo como entendemos os
impactos retóricos dos textos sobre seus ouvintes, uma vez que esses
textos pressupõem uma cosmovisão sobre o governo do mundo
minimamente aceita pela sociedade e que, portanto, é construída
culturalmente.
Ainda segundo Clifford, o primeiro a propor esse tipo de estudo
foi Herman Gunkel, afirmando que Gênesis 1 e Apocalipse 12 são
diferentes adaptações de um mesmo mito babilônico. Embora nem todas
31
No original: “a genre of revelatory literature with a narrative
framework, in which a revelation is mediated by an otherworldly being to a
human recipient, disclosing a transcendent reality which is both temporal,
insofar as it envisages eschatological salvation, and spatial insofar as it
involves another supernatural world” COLLINS, John Joseph. Apocalypse: The
Morphology of a Genre. Williston: Society of Biblical Literature, 1979, p. 9.
32
CLIFFORD. The Roots…, op.cit., p. 3.
37

as suas considerações sejam hoje consideradas válidas, dado o escasso


material disponível à época, foi uma grande contribuição para o avanço
no estudo das conexões entre literatura bíblica e extra bíblica (sobretudo
cananeia).
O complexo panteão dos povos do Oriente Próximo e da
Mesopotâmia, que uniu sem dificuldades deuses de diferentes culturas,
era visto como composto por uma assembleia, suprema em suas
decisões. Seus membros estabeleciam relações de hierarquia baseadas na
idade (pois havia diferentes gerações de deuses), mas também de
relevância com relação a sua força (havia, por exemplo, deuses
guerreiros). A tríade Anu-Enlil-Ea era a mais importante. Em Canaã, o
deus El era predominante.
Podendo propor uma certa projeção da monarquia humana para o
plano divino, temos um ambiente no qual florescem textos conhecidos
como mitos de combate, que justificam as relações de comando entre os
deuses a partir da superação de conflitos ou ameaças de proporções
cósmicas. Sua ressonância na Sagrada Escritura pode ser vista em textos
como: a luta entre Javé e Faraó; as relações entre o Filho do Homem e o
Ancião de Muitos Dias; as assembleias divinas em Jó e em Apocalipse 4
– 5 etc. A duração histórica desse gênero justifica que tenha sido
influente.
Não há forma ideal estabelecida para esses textos, mas, em linhas
gerais, há uma força capaz de desafiar a ordem cósmica vigente,
causando medo e confusão na assembleia dos deuses, que, incapaz de
enfrentá-la, delega a batalha a um deus guerreiro mais jovem. Este
derrota o inimigo e restaura a ordem, sendo aclamado rei dos deuses.
Uma consideração válida à hermenêutica dos textos apocalípticos
é que, apesar do mal ser relacionado a uma força natural, os elementos
selecionados para sua descrição costumam ter origem histórica. Por
exemplo, a prisão da água nas montanhas, relatada em mitos
babilônicos, se relaciona com a real ameaça de habitantes que lá
residiam e que outrora invadiram as planícies.
Após a vitória do deus guerreiro jovem, e sua tomada de posse
como deus supremo, eventualmente seguida de uma construção de um
palácio, existe o julgamento dos inimigos. Em alguns casos, como no
caso do mito de Enuma elish, o resultado da conflagração cósmica é um
processo descrito como origem do mundo. Exemplo cananeu é o Ciclo
de Baal.
Além dos mitos de combate, vale a pena destacar a ocorrência de
um artifício literário frequente nos apocalipses judaicos e cristãos, os
38

vaticinia ex eventu. O autor, colocando o tempo da narração em um


passado remoto, conta a história pretérita no tempo futuro, até o
presente, quando descreve em mais ricos detalhes o cerne de sua
profecia: a derrota de uma força presente. Uma característica é a
interpretação da história, para além de sua mera narração, uma vez que
há atribuição de valor bom ou mau aos personagens identificáveis nos
relatos. Exemplos desses textos na antiguidade são as Profecias de
Marduk (II milênio a.C.), a Profecia de Uruk (século VI a.C.) e a
Profecia Dinástica (século IV a.C.).
Pontos comuns são: a ante datação, a organização da história
como sucessão de reinos, a não nomeação das pessoas, e a carência de
detalhes narrativos nos fatos passados ao autor.
Na literatura apocalíptica, todavia, essas figuras são colocadas em
um cenário cósmico, com caráter escatológico e definitivo.
Como conclusão de uma breve consideração diacrônica 33 da
literatura do oriente próximo que, talvez, tenha influenciado a literatura
apocalíptica judaica e cristã, cabe uma recapitulação sobre os elementos
recorrentes e que se mostram presentes também no Apocalipse de João.
São eles: i) a assembleia divina com decretos eficazes, mas cujo poder é
questionado por uma ameaça cósmica; ii) o elemento monstruoso como
representação das forças que desafiam a ordem cósmica; iii) a
necessidade da assembleia delegar a um deus guerreiro jovem o
combate, não vencido na primeira batalha; iv) a dramaticidade e o
volume textual destinados ao debate da assembleia divina, indicando
grande confusão e perturbação; v) a glorificação do deus vencedor após
o término das batalhas.

1.2 Relação com a profecia

As cronologicamente remotas influências dos mitos


mesopotâmicos e cananeus sobre a literatura apocalíptica não são
suficientes para explicar-lhe o surgimento. Os profetas de Israel, em
autêntica pertença a sua própria cultura, desenvolveram, ao longo do
tempo, sua própria visão de mundo com base na defesa de uma religião
decididamente monoteísta34. Portanto, ao desenvolvimento da
33
CLIFFORD. The Roots…, op.cit., p. 37.
34
Sobre esse aspecto, SANDERS. op.cit., pp. 21ss. Não pretendemos
discutir se Israel, em qualquer momento de sua história, tenha sido efetivamente
39

escatologia judaico-cristã não bastam as considerações de suas origens


exógenas.
Conforme defendido por Collins35, o mito de combate, adaptado
pelos hebreus para, por exemplo, celebrar o triunfo de Javé nos Salmos,
foi, pelos profetas, projetado no futuro julgamento de Deus sobre Israel e
as nações. O profeta Amós, anunciando a queda do Reino do Norte, e
nomeando-a como “dia de Javé”36 , forneceu material para que outros
profetas o relessem como juízo de Babilônia 37. Todavia, essa releitura,
conquanto se destine a um povo em particular, é pintada em linguagem
cósmica.
O desenvolvimento desse imaginário, entre o exílio em Babilônia
e o desenvolvimento do cristianismo pode ser visto em três fases: a
proto-apocalíptica (sob domínio persa), o período helenista e o período
após a destruição do segundo Templo.
Já sob a égide da Pérsia se encontram temas cósmicos em alguns
oráculos38, nos quais Javé engole a Morte39 e aprisiona Leviatã40. A
linguagem figurativa da ressurreição está presente 41 e é clara a influência
do modo de pensar baseado nos mitos de combate. A imagem dos ossos
ressequidos42 também é exemplo desse período.
Uma característica é que, como nos mitos de combate, o mundo
fisicamente retratado é uma maneira de falar de uma realidade política
ulterior. Todavia, mesmo escritas para momentos específicos, utilizam
linguajar de uma escatologia mais geral e, tendo ganhado autoridade
pelo uso e releitura, estavam sujeitas a serem à futura hermenêutica que,

monoteísta, ou apenas tenha proposto uma monolatria, o se esses eventos sequer


ocorreram factualmente. Todavia, é clara a tendência que a Escritura como um
todo apresenta em monoteizar, nas palavras de J. Sanders. Mesmo que essa
tentativa tenha sido limitada e, em grande parte, não tenha evitado que os
israelitas se voltassem a outras divindades, também não se pode negar que tenha
sido grandemente influente na cosmovisão judaico-cristã. Em particular,
concluímos que é influente na produção literária apocalíptica.
35
COLLINS. From Profecy…, op.cit., p. 129.
36
Am 5, 18-20.
37
Is 13, 9-13.
38
Is 24 – 27.
39
Is 25, 7.
40
Is 27, 1.
41
Is 26, 19.
42
Ez 37.
40

desvinculando-as parcialmente do contexto original, via em seu presente


um cumprimento das profecias.
Ainda segundo Collins, essa releitura passa a entender a
esperança de “novos céus e nova terra” 43, motivada por uma profunda
desesperança no mundo presente. Isso não se deveria somente à força
externa sobre o povo de Israel, mas às injustiças internas que já não
permitiam às instituições tradicionais sustentar a esperança popular. São,
portanto, dois fatores que motivam a gênese da esperança escatológica:
uma interna e outra externa. Mesmo que essa esperança não seja ainda
vista como realidade transcendente, mas como uma terrena vida longa e
feliz.
Neste ponto, a evolução rumo à apocalíptica está na certeza de
uma transformação radical e genérica, por meio de uma influência do
Deus cujos combates antigos são projetados a um futuro de libertação.
A dramática mudança cultural à época da influência helenística na
Palestina motivou um movimento que, ao mesmo tempo que continuou a
antiga profecia, também inovou. Debate-se, aliás, sobre a influência do
movimento sapiencial sobre esse processo. Em textos como o
Apocalipse de Enoque44 e Daniel, os personagens são um misto de sábio
e profeta, que anunciam uma “mudança do mundo”. Passam a ser
relevantes seres sobrenaturais (como os Guardiões, de Enoque, ou
Miguel, em Daniel), bem como a espera de um julgamento futuro de
proporções cósmicas. Noções como imortalidade e vida eterna já são
mais claras.
Por fim, conquanto entre a Revolta dos Macabeus e a Revolta
contra Roma (66-70 d.C.) já houvesse esse tipo de mentalidade
escatológica bem desenvolvida (como atesta, por exemplo, o Rolo da
Guerra), os textos refletiam uma imediaticidade em sua aplicação muito
intensa. Uma visão transcendente ainda precisaria aguardar a queda de
Jerusalém.
Esse evento, aliás, foi marcante. Os documentos pertencentes ao
apocalipticismo, não necessariamente apocalipses propriamente ditos,
destacavam-se pelo aspecto exegético, geralmente para sustentar
movimentos ditos messiânicos, frequentemente associados a ações
militares. De fato, a literatura apocalíptica (em sentido lato), por meio da
interpretação de trechos da escritura como sendo escatológicos e

43
Ap 21,1.
44
Embora seu processo redacional seja longo e complexo, e isso reflita no
texto grandemente fragmentário, ainda é um bom exemplo desta época.
41

destinados para o momento de então, fez com que a propagação de


movimentos revolucionários fosse possível45.
A partir dos desastres do ano 70 d.C., a tônica dos escritos muda
drasticamente. Os escritos que surgem têm o claro propósito de consolar
e exortar sobre os rumos de ação após a tragédia. Sendo assim,
percebemos um declínio dos apocalipses históricos, que caíram em
descrédito entre os judeus. Figuras escatológicas eram vistas com
desconfiança. O único apocalipse das eras helenística e romana
preservado pelos rabinos foi Daniel. Entre os cristãos, surgiram
apocalipses que refletem a existência de um mundo além deste, ao qual
este se orienta, mas após grande mudança.
Portanto, a cosmovisão do apocalipticismo, tendo raízes nos mitos
do oriente próximo e na profecia hebraica, surge como resposta às
mudanças de época das eras helenística e romana. Em razão disso,
apresentam como marcas essenciais a confiança em uma revelação para
além das possibilidades humanas, a crença na influência de seres
sobrenaturais, e a confiança no juízo divino. Seu substrato cultural
específico foi amplo, de forma que se encaixou em vários ambientes
judaicos muito diferentes entre si, mesmo que dando mais ou menos
ênfase a determinados temas.

1.3 Uso retórico

Um último tópico a ser tratado sobre esse gênero literário versa


sobre o propósito de mover a audiência a uma determinada forma de
entender o mundo. Sem que haja a intenção de efetuar um discurso
exaustivo sobre o tema, a essa capacidade de causar efeito de um texto
chamamos retórica.
Todo texto visa um efeito, uma alteração da realidade, e isso é
conseguido por meio do convencimento de sua audiência. Todavia, esse
convencimento nem sempre se dá por vias racionais. Frequentemente,
trata-se de um discurso mais afetivo do que lógico.
Newson46 defende que a literatura apocalíptica está “menos
interessada em dar evidências do que em tornar evidente”. Antes de
argumentar, a descrição vívida de um testemunho em primeira pessoa
45
FLAVIUS JOSEPHUS. Guerra judaica, 6.312.
46
NEWSON, Carol. The Rhetoric of Jewish Apocalyptic Literature. – in:
COLLINS, The Oxford…, op.cit., cap. 12, p. 220.
42

produz eficazmente o efeito de que a realidade seja vista pelos leitores


tal e qual o é pelo autor. Além disso, a atribuição (ainda que discutível
no Apocalipse de João47) do relato visionário a um antepassado
prestigiado ajuda a dar relevância ao texto. Entende-se o apelo às
minúcias na comunicação das experiências visuais, bem como a narração
das emoções (frequentemente terrificantes) que ocorreram ao vidente,
que tudo partilha com uma assembleia de ouvintes.
A assembleia, por sua vez, vendo como autorizada a mensagem
recebida, uma vez que oriunda de revelação divina, automaticamente é
levada a reconhecer a posição inferior de hierarquia com relação ao autor
do texto, o que contribui para transmitir força à mensagem codificada.
Essa relação de subordinação, todavia, é atenuada com sua identificação
como “os escolhidos”. Não é o caso do Apocalipse de João48, mas o
frequente uso da ante datação nos apocalipses faze com que a “geração
distante”49 ao qual o texto se destina, e que, na realidade, é o público
contemporâneo do autor, sinta simultaneamente distância de autoridade e
proximidade íntima com a figura do vidente.
Ainda contribuindo com a autorização dos textos, há vários
relatos de manifestações do trono de Deus, do próprio Deus, da corte
celeste e dos anjos. Essa cosmovisão é integrante da mentalidade do
apocalipticismo, mas, particularmente nos textos enquadrados no gênero
apocalipse, gera um tom de mistério que produz hierarquia e
transcendência em um texto que usa um tom dito “sublime”. Combina-
se, assim, o desejo da presença de Deus com o terror por essa causado. A
linguagem é aterrorizante e, ainda assim, consoladora.
Ainda que os meios de argumentação retórica (τόποι) da literatura
apocalíptica sejam abundantes, Caray50 os agrupa em alguns conceitos
amplos: i) o interesse pelo outro mundo, temporal e espacialmente
transcendente; ii) o caos que precede a intervenção divina na história; iii)
a capacidade de seres sobrenaturais para agir nos negócios humanos; iv)
o apelo ao dualismo, propondo que a definitiva versão da realidade é
uma conflagração entre bem e mal; v) uma certa dose de determinismo51,
no sentido de que o futuro dos bons e dos maus está certo; vi) o interesse
47
uide as considerações sobre o autor desse livro à página 49.
48
Assim como o recurso à pseudonímia, embora não sejam efetivos no
escrito objeto de nosso estudo, valem a pena ser mencionados, pois evidenciam
características importantes do escrito de Patmos, por meio do contraste com a
literatura circunstante; seguindo, aliás, o método que apresentamos.
49
Dn 12, 4.
50
CARAY. Early Christian…, op.cit., p. 226.
43

na especulação sobre mistérios celestes; vii) as realidades definitivas,


como o juízo final, a ressurreição e o pós-morte.
Além dos instrumentos literários sobre os quais já comentamos
(narrativa de visões e audições, presença de intermediário celestial,
pseudonímia, divisão da história em períodos e profecia pós-evento),
cabe ressaltar o recurso ao simbolismo52, muito frequente nos textos
apocalípticos.
Enfim, uma dimensão importante do discurso com fins retóricos é
o recurso à emoção dos ouvintes. Nesse sentido, os textos apocalípticos,
além de provocarem um óbvio medo do juízo, também podem fazer
aflorar outros sentimentos. É verdade que, na cultura atual, isso possa
parecer ofensivo, mas uma acurada descrição dos sofrimentos dos
opressores também tem a capacidade de produzir sensação de conforto
na assembleia oprimida. Ou seja, a um sentimento de ansiedade
promovido pela perseguição (aberta ou velada 53) sofrida pela
comunidade, há a resposta de um juízo iminente. Percebemos, aliás, que
alguns dos hinos presentes na literatura apocalíptica 54 são expressões
justamente desse sentimento, manifesto também quando os mártires
gritam “(…) até quando (…)?”55.

51
Sobre isso, POPOVIĆ, Mladen. Apocalyptic Determinism. – in:
COLLINS, The Oxford…, op.cit., cap. 15, p. 255, vale lembrar que o conceito é
moderno, e é necessário lembrar que essa aplicação posterior dos termos aos
textos antigos deve ser consciente para evitar que as conclusões sejam
anacrônicas. Seja como for, um dado interessante é que textos como o
Apocalipse de Enoque e o Livro dos Jubileus, são muito afins com uma versão
bastante rígida do conceito que temos hoje.
52
O simbolismo na apocalíptica é objeto de grande debate, e, inclusive,
objeto do presente estudo. Todavia, como já dissemos, a abordagem que
pretendemos utilizar aqui para uma atribuição de sentido a essa linguagem é a da
intertextualidade.
53
FRIESEN, Steven. Apocalypse end Empire. – in: COLLINS, The
Oxford…, op.cit., cap. 10, p. 163, traça um histórico da pesquisa desde os anos
1970, que presencia um abandono da tese da perseguição aberta dos cristãos
como pano de fundo para o Apocalipse de João. Ainda assim, adotaremos o
termo perseguição, em um sentido bastante amplo. Se não se trata de prisões ou
assassinatos em série, ao menos uma estranheza dos cristãos decididamente
monoteístas e que não participem do culto imperial é esperada e, em alguns
casos, até mesmo suposta pelos pesquisadores.
54
e.g. Ap 15, 3s; 16, 5-7.
55
Ap 6, 10.
44

Para despertar sentimentos na assembleia dos ouvintes, ainda há


os recursos de identificação e contra-identificação. Como vimos, desde
os mitos de combate, inimigos são descritos como monstros
assombrosos. Na apocalíptica, também é possível que sejam personagens
(Jezabel, Balaão) e reinos (Babilônia, Sodoma) depreciados em toda a
Escritura. Por outro lado, os personagens com os quais deve haver
identificação, mãe56, noiva57 etc., mesmo se têm um aspecto terrível,
como o cordeiro de sete olhos58, ainda assim são apresentados
claramente como benévolos.
Enfim, o objetivo geral dos textos apocalípticos é inspirar fé
diante de uma situação de crise, mesmo que esta seja apenas potencial.
Todavia, além deste, cada apocalipse tem sua função imediata em uma
gama mais ampla de objetivos pretendidos, que podem ir desde a
resistência cultural à promoção de determinada moralidade individual.

2 INTERTEXTUALIDADE

Tendo elencado alguns aspectos principais do gênero literário


apocalipse, passemos às considerações sobre uma das figuras utilizadas
para a promoção de sua força retórica: a intertextualidade.
O termo intertextualidade, utilizado aqui, surge na história apenas
recentemente. Moyise59 aponta para o fato de seu uso ter iniciado com o
trabalho A palavra, o diálogo e o romance, de Юлия Кръстева (= Julia
Kristeva), publicado como capítulo do livro Introdução à Semanálise60.
Esta, por sua vez, para sustentá-lo, faz uso de conceitos de Михаи́ л
Миха́ йлович Бахти́ н (= Mikhail Mikhailovich Bakhtin).

56
Ap 12.
57
Ap 21.
58
Ap 5.
59
MOYISE. op.cit, p. 108.
60
KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva,
1974.
45

Em debates recentes, tem-se questionado a leitura de Bakhtin por


Kristeva61, questionando se o termo intertextualidade é ou não bem
empregado para traduzir o pensamento bakhtiniano.
Carvalho Maciel62, ao ponderar a discussão, utiliza o termo
dialogismo, distinto em interno e externo, para apresentar uma
abordagem mais pacífica ao tema. Percebendo que, em um mesmo texto,
diferentes vozes possam entrar em contato e, concordando ou
discordando, confluir para a construção um argumento mais ou menos
coerente, chama esse fenômeno de dialogismo. Todavia, tais vozes
atuantes podem ser entendidas em um aspecto apenas intratextual, ou
seja, como ocorrentes apenas ao interior de uma determinada obra, como
também podem ser ecos externos de vozes que ressoaram anteriormente
em uma outra produção. Desse modo é que se entende que o fenômeno
do dialogismo pode ser dito interno ou externo. Conquanto sejam
distintos, não são mutuamente excludentes, uma vez que a voz externa,
entrando em relação dialógica com uma outra voz do texto, com ela
dialoga em um nível intratextual.
A esse dialogismo externo, que Carvalho defende não dever
necessariamente se apresentar de modo explícito, podemos denominar
intertextualidade.
O tema é de uma complexidade razoavelmente maior do que se
apresenta aqui, uma vez que passa pela discussão entre dependência de
um texto com relação a seu autor, seja esta absoluta, relativa ou
inexistente. Todavia, o que pretendemos aqui é a compreensão de como
essas vozes se relacionam especificamente no texto do Apocalipse de
João, e, portanto, bastam por ora as considerações feitas acima, contanto
que possamos estabelecer sua conveniência ao texto em questão. Ou
seja, faz-se necessário sustentar o argumento de que João, ao utilizar
fraseologia, imagens ou estereótipos veterotestamentários, o faça de
modo minimamente consciente, visando a construção de um diálogo
com os textos antigos em vistas de ressignificá-los para seus
contemporâneos.
Essa dificuldade é acentuada pelo modo muito espontâneo como o
vidente de Patmos alude aos textos que tem diante de si, concretamente
ou, pretendemos evidenciá-lo, ao menos mentalmente.
61
MACIEL, Lucas Vinício de Carvalho. A (in)distinção entre Dialogismo
e Intertextualidade. Linguagem em discurso, Tubarão, SC, v. 17, n. 1, pp. 137-
151, jan./abr. 2017. Disponivel em: <http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-
170107-2616>. Acesso em: 05 Janeiro 2019.
62
id.ibid.
46

Há quem defenda63 que a semelhança de alguns textos com seus


predecessores veterotestamentários seja uma mera coincidência, oriunda
de um uso inconsciente, por parte de um autor cuja memória estivesse
saturada de imagens dos textos que lia frequentemente. Outra
possibilidade, ainda, nesse sentido, seria que se tratasse de uma alusão
inconsciente a uma tradição prévia que unira vários textos. Ou, como
terceira alternativa, que o texto seja o relato de uma experiência extática
e mística (que, portanto, beiraria o inefável) que, ao ser traduzida em
linguagem humana, de modo adquiriria linguagem escriturística por ser a
mais frequente à mentalidade do autor.
A abundância numérica dos locais que parecem ressoar a tradição
já escrita parece contradizer essas hipóteses. Certas ocorrências de
grande similaridade entre o texto joanino e os textos herdados dos que
lhe antecederam na tradição religiosa parecem indicar seu uso
consciente. Mesmo que fosse – e não o negamos – o caso de uma visão
mística a ser exposta em linguagem humana, o processo exigiria uma
reflexão prévia e uma adaptação mais ou menos consciente à linguagem
que se pretende utilizar. Além do mais, seria inverossímil esperar que
uma mentalidade formada pelo uso das Escrituras não percebesse que a
elas faria alusão, sobretudo em tão frequentes casos (que serão listados
adiante, no curso do trabalho).
Um outro argumento favorável à consciência joanina do uso
veterotestamentário são os solecismos que ocorrem no texto. Moyise64 e
Beale65 apontam para mudanças na sintaxe corrente que não se
explicariam pelo mero desconhecimento ou incompetência gramatical do
autor. Isso porque em outros casos, o mesmo “erro”, não sendo
cometido, apontaria não para uma ignorância com relação à norma culta
da língua de seus contemporâneos, mas para um uso intencional dessa
desvinculação momentânea das convenções. Uma vez que, ao menos em
alguns casos, a alteração se mostre muito conveniente para fazer soar aos
ouvidos a fraseologia de traduções do AT para o grego, a consciência e
intencionalidade da ação parecem sobressair à possibilidade de erro ou
coincidência.
Uma última consideração necessária sobre a possibilidade de
diálogo textual entre o Apocalipse de João e o AT é a relevância do
contexto original referendado para a interpretação do texto que o
63
BEALE, Gregory. John's use of the Old Testament in Revelation.
Sheffield: Sheffield, 1998.
64
MOYISE. op.cit, pp. 11ss.
65
BEALE. John’s use…, op.cit., pp. 318ss.
47

referenda. Evidente que, para isso, supomos, de antemão, como


pretendemos haver sustentado, que havia consciência do autor ao
permitir que vozes antigas ressoassem em seu texto.
É consenso que João tem muita liberdade no tocante ao ecoar
veterotestamentário em seu Apocalipse e, por isso, geralmente se conclui
que ele use as passagens sem consideração sobre seu contexto original.
Poderíamos apontar quatro argumentos nessa direção: i) não há qualquer
fórmula de indique citação, mas apenas um estilo informal e antológico;
ii) não usa o AT como fonte de autoridade, repousando essa sobre o
apelo de que seu texto seja, efetivamente, uma profecia; iii) há
possibilidade de que João tenha escrito para comunidades iletradas ou,
então, pagãs, que, portanto, não conheceriam o AT; iv) mesmo que um
autor dependa literariamente de um texto, a princípio isso não
significaria que dependa quanto ao sentido ou que tenha intenção de
reinterpretá-lo.
Contra os argumentos acima, Beale66 defende que: i) a ausência de
fórmulas que apelem à referência não é indício de coisa alguma, uma vez
que o próprio Novo Testamento utilize esse tipo de alusão com alguma
frequência (por exemplo, ao fazer uso do nome de Elias nos
Evangelhos); ii) o uso interessado, não na autoridade, mas em algum
outro peso retórico também não aponta para a desvinculação do
contexto, e o caso do uso de Elias nos Evangelhos também é
contraexemplo do raciocínio apresentado; iii) seria necessário sustentar o
desconhecimento do AT nas comunidades destinatárias, e um argumento
contrário a essa alegação é que Paulo, nas comunidades da mesma
região, utilizava-o como autoridade a favor da visão cristã; iv) o alegado
de que a dependência literária não implique necessariamente em grande
diferença hermenêutica pode, sim, proceder, mas a quantidade, a
variedade e a frequência das alusões torna difícil supor que o autor não
tenha, ao menos, meditado sobre elas ao compor sua obra.
Embora haja casos em que João decididamente extrapola o
sentido originário dos textos aludidos, dando-lhes caráter decididamente
escatológico, a ampliação dos horizontes do contexto original não
significa desprezo por este. Aliás, é importante notar que a busca
positivista pelo sentido original do texto é uma preocupação mais
contemporânea que antiga.
Portanto, o contexto literário das perícopes (ou mesmo blocos
textuais inteiros) utilizadas por João pode, sim, ser relevante à
interpretação de seu uso, que pode seguir a linha interpretativa original
66
BEALE. John’s use…, op.cit., p. 63.
48

do texto, mas também subvertê-la. Moyise67 postula que, uma vez que os
usos joaninos do AT não são como uma exegese, mas também não se
dão de um modo totalmente arbitrário, toda citação distorce e redefine
seu original por meio da relocação em um novo contexto.
Ainda acompanhando esse autor68, sustentamos que o fenômeno
do uso de um texto por outro se dê em uma interação dialética e
conflituosa, pois os contextos subjacentes não correspondem
perfeitamente e, assim, contrastam em algum grau. Ler um texto, tendo
em mente o outro, faz com que haja a possibilidade de emersão à
consciência desse processo, uma vez que o texto final utiliza aquele
prévio para seus próprios fins, mas este, por sua vez, resiste, lembrando
o leitor de seu contexto original. Há, portanto, uma dinâmica que afeta
ambos os textos.
Isso pode ser feito, aliás, até com ironia, como quando os judeus
se prostram aos pés da igreja de Filadélfia69, desparte de Isaías 60, 14
colocar Israel em primeiro lugar.

3 GÊNERO LITERÁRIO, AUTORIA E DATA DO


APOCALIPSE

Depois de conceitos que se aplicam genericamente a várias obras,


ou seja, o gênero literário apocalipse e o conceito de intertextualidade,
detenhamo-nos a discorrer mais propriamente sobre alguns elementos
relevantes do livro que nos propomos a estudar.
O Apocalipse de João participa, ao menos nos capítulos 1; 3 – 22,
muito autenticamente do gênero literário apocalipse. De fato, temos um
conteúdo de caráter revelatório, inserido em uma moldura narrativa,
apresentado a um receptor humano por um mediador que dá a conhecer
realidades que transcendem a ordem meramente natural das coisas70.
Yarbro Collins71 propõe, todavia, que outros elementos estejam
imiscuídos nesse texto, nuançando um pouco a classificação
67
MOYISE. op.cit, p. 139.
68
id.ibid., p. 13.
69
Ap 3, 9.
70
uide p. 36.
71
COLLINS, Adela Yarbro. Apocalipse. – in: AAVV Novo comentário
bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo:
Paulus, 2011. cap. 63, p. 836.
49

excessivamente simples. De fato, há elementos epistolares, tais como


remetente, destinatário e saudação72, bem como uma bênção final73.
Além da epifania com mandato de escrita endereçada a um
destinatário74, classificada, todavia, por Bauckham75 como coleção de
oráculos proféticos, e não epistolar. Aliás, o próprio livro se classifica
como profecia76.
Seu autor é apresentado como sendo João, sem que se identifique,
todavia, como apóstolo ou discípulo. Ainda que cristãos antigos 77 o
entendessem como sendo aquele dentre os Doze, e ainda mais, o autor
do Quarto Evangelho, isso é altamente improvável. De fato, embora
fosse possível que o filho de Zebedeu sobrevivesse até o final do século
I, tal afirmação precisaria, pelo menos, ficar sob o crivo da dúvida, pois
a idade seria consideravelmente avançada. Além disso, mesmo que haja
semelhanças entre o Apocalipse e o Evangelho segundo João, as
diferenças também são notáveis.
Ainda assim, não temos razão para duvidar de seu nome, pois a
pseudonímia suporia primeiramente a afirmação de que este João fosse
aquele apóstolo do Senhor, o que, como dissemos, não há no livro.
Assim, neste trabalho, aparece designado frequentemente como João ou
João de Patmos.
Seja como for, os estudos recentes, segundo Collins78, apontam
que o autor seja único, embora possa ter utilizado fontes orais ou escritas
anteriores.
Quanto à datação, os escritores dos primeiros séculos divergem 79.
Alguns o situam no reinado de Domiciano (81 – 96 d.C.), outros, de
Cláudio (41 – 54 d.C.), de Nero (54 – 68 d.C.) ou de Trajano (98 – 117
d.C.). Passando a evidências internas, é fraca a suposição de que a alusão
ao Templo em Apocalipse 11, 1s implicasse em sua existência física, que
dataria o livro como sendo de antes de 70 d.C. Contrariamente a isso, a
alusão a Roma como “Babilônia” ou outro nome figurado, sendo mais

72
Ap 1, 4s.
73
Ap 22, 21.
74
Ap 1, 9 – 3, 22.
75
BAUCKHAM, Richard. Revelation. – in: AAVV The Oxford Bible
Commentary. New York: Oxford, 2001. cap. 81, p. 1291.
76
Ap 1, 3; 22, 7.10.18-19.
77
COLLINS. Apocalipse, p. 838.
78
id.ibid., p. 841.
79
id.ibid., p. 838.
50

comum após a destruição do Templo, leva a acreditar que o livro tenha


sido composto após essa data. Yarbro Collins 80 propõe que seja aceita a
datação de Irineu de Lião, ou seja, sob o final do reinado de Domiciano.

4 ESTADO DA ARTE

Por fim, consideremos aqueles que nos precederam nas


considerações que pretendemos fazer. Ou seja, passemos a uma revisão
de estudos que tentaram entender o Apocalipse de João, ou partes dele, a
partir de seu pano de fundo veterotestamentário, pois, como afirmado
anteriormente, a intenção do presente estudo é colocar o livro do
Apocalipse de João na perspectiva da intertextualidade, sobretudo
considerando suas relações com o AT.
Beale81 afirma que até os idos de 1970, apenas dois livros haviam
sido publicados com esse enfoque, além de 6 artigos. Desde então é que
tem havido mais interesse com relação ao assunto. Antes de
prosseguirmos decididamente com o estudo, seguimos, aqui, sua esteira
para apresentar um panorama dos textos disponíveis que versam,
particularmente, sobre o uso do AT no Apocalipse de João.
Ele elenca cinco contribuições exegéticas e duas hermenêuticas.
Uma primeira, exegética, dele mesmo, é um ensaio comparativo
entre diversos apocalipses (incluindo Daniel), que conclui na particular
importância da referência à ressurreição de Cristo no Apocalipse de
João, construído sob esse prisma interpretativo. Vogelgesang 82, por sua
vez, busca comparar o Apocalipse com Ezequiel, destacando de modo
particular o universalismo da salvação descrita por João. Para ele, a
ausência do templo material em Apocalipse 21 – 22, em detrimento da
narração de Ezequiel, permite a interpretação de que a própria Jerusalém
Celeste, cúbica como o Santo dos Santos, seja um novo e definitivo
templo, identificado com o próprio Cristo. Paulien 83, verificando a
80
id.ibid., p. 839.
81
BEALE. John’s use…, op.cit., 1998.
82
VOGELGESANG, Jeffrey Marshall. The Interpretation of Ezekiel in the
Book of Revelation. Cambridge: Harvard, 1985 apud BEALE. John’s use…,
op.cit., pp. 16-19.
83
PAULIEN, Jon. Decoding Revelation's Trumpets: Literary Allusions and
Interpretation of Revelation 8:7-12. Berrien Springs: Andrews, 1988 apud
BEALE. John’s use…, op.cit., pp. 19-21.
51

diversidade de modos de alusões veterotestamentárias no Apocalipse,


propõe um método exegético para classificá-las como “certas”,
“prováveis”, “incertas”, “não-alusão” ou “eco” (esta última categoria é,
para Beale, a maior contribuição de Paulien), por meio de paralelos
verbais, temáticos e estruturais. Há ainda Bauckham 84, que, relacionando
o uso do AT no Apocalipse com tradições judaicas, demonstra que o
livro foi composto meticulosamente, em cada palavra, mas com uso
criativo e não meramente mecânico do texto sagrado judaico. Para ele,
este texto joanino não foi feito com urgência, mas nasceu de um trabalho
delicado. De fato, as menções não são ocasionais, mas o autor supõe que
o leitor de fato busque as referências, que não são fortuitas. João
tentaria, assim, investigar como as profecias iniciaram seu cumprimento
e como se plenificarão no fim dos tempos, fazendo arranjos com blocos
inteiros do AT e fornecendo-lhes uma interpretação de grandes partes
dos livros dos profetas. Por último, Fekkes 85 relaciona o Apocalipse com
Isaías, e se propõe a sublinhar João como profeta na linha do AT. Ele
também estabelece um critério para determinar se há ou não alusão a um
texto profético, caracterizando cada referência como certa, provável ou
duvidosa.
As duas obras de índole hermenêutica apresentadas por Beale são
de Ruiz e Moyise. Ruiz86 convida a uma interpretação sapiencial do
Apocalipse em contexto litúrgico, ou seja, propõe que o leitor seja
interpelado a um diálogo através dos novos significados produzidos pelo
uso dos textos do AT. Ele vê em João uma reapropriação da tradição
veterotestamentária que abre a obra a uma polissemia que implica
hermenêutica com participação ativa e genuína do ouvinte e não somente
do autor. É por isso que importa muito, para Ruiz, o ambiente litúrgico
do leitor, que, interpretando o cumprimento das profecias em seu
contexto próximo, seria interpelado à obediência implicada nas bênçãos
e imperativos apresentados em contextos éticos. A sapiência não se
entenderia tanto no sentido de compreender as antigas profecias, mas de
ver seu cumprimento no tempo presente, ou seja, aplicar à vida o que se

84
BAUCKHAM, Richard. Climax of Profecy: studies on the Book of
Revelation. Edinburgh: T&T Clark, 1993, pp. 1-37.
85
FEKKES, Jan. Isaiah and Prophetic Traditions in the Book of
Revelation: Visionary Antecedents and their Development. New York:
Bloomsbury, 1994 apud BEALE. John’s use…, op.cit., pp. 26-29.
86
RUIZ, Jean-Pierre. Ezekiel in the Apocalypse: The Transformation of
Prophetic Language in Revelation 16,17-19,10. Bern: Peter Lang, 1989 apud
BEALE. John’s use…, op.cit., pp. 29-40.
52

sabe pelo intelecto. Moyise87, último autor citado, não busca fazer
teologia, mas entender a intertextualidade no Apocalipse e suas
implicações hermenêuticas. Analisando as alusões presentes no livro,
percebe-as justapostas umas às outras e à tradição cristã, e desvinculadas
do contexto originário, de modo a criar seus próprios significados
proféticos. Assim, a ideia de “intertextualidade” é central para sua
construção, e se trataria de ler o novo texto tendo o antigo em mente, e
tentar entender como os dois se relacionam, cada um em seu contexto, e
como o novo usa ou distorce o significado original do texto.

87
MOYISE. op.cit.
CAPÍTULO II
HERMENÊUTICA
INTERTEXTUAL NO
APOCALIPSE

PASTRO, Claudio. Baldaquino do Santuário de Aparecida. [s.d.], tinta sobre azulejos


DESCRIÇÃO: Detalhe do baldaquino do Santuário de Aparecida

Um dos querubins é o anjo que mede o interior do Templo. Apresenta fisionomia


brasileira.
CAPÍTULO II
HERMENÊUTICA INTERTEXTUAL NO APOCALIPSE

Tendo efetuado no capítulo anterior as considerações basilares


que norteiam o presente estudo, neste pretendemos sustentar, a partir dos
textos, que haja paralelos entre as perícopes de João e textos
veterotestamentários, e investigar sobre as possibilidades hermenêuticas
abertas por essa análise. Não há qualquer intenção de fornecer um
comentário bíblico exaustivo, mas apenas de verificar as relações
intertextuais entre João e as Escrituras.
A delimitação das perícopes seguirá um critério de continuidade
narrativa, mas sem pretensão de fornecer uma estruturação precisa.
Novamente, o que pretendemos é ler o texto tentando identificar
ocorrências de ecos do AT para, em seguida, encontrar fatores objetivos
que esclareçam o sentido dos elementos utilizados por João em sua
narrativa.

1 APOCALIPSE 1, 1-3

Seguindo, Beale88, comparemos os textos Apocalipse 1, 1-3 e


Daniel 2, 28-30.4589.

Ap 1, 1-3 Dn 2, 28-30.45 (LXX) Dn 2, 28-30.45 (TH)

1 28 28
Ἀποκάλυψις ἀλλ᾽ ἔστι θεὸς ἐν ἀλλ᾽ ἢ ἔστιν θεὸς ἐν
Ἰησοῦ Χριστοῦ οὐρανῷ ἀνακαλύπτων οὐρανῷ ἀποκαλύπτων
ἣν ἔδωκεν αὐτῷ μυστήρια ὃς ἐδήλωσε τῷ μυστήρια καὶ ἐγνώρισεν
ὁ θεὸς δεῖξαι τοῖς βασιλεῖ Ναβουχοδονοσορ τῷ βασιλεῖ
δούλοις αὐτοῦ ἃ ἃ δεῖ γενέσθαι ἐπ᾽ Ναβουχοδονοσορ ἃ δεῖ
δεῖ γενέσθαι ἐν ἐσχάτων τῶν ἡμερῶν(…) γενέσθαι ἐπ᾽ ἐσχάτων τῶν
τάχει, καὶ ἡμερῶν (…)
29
ἐσήμανεν σύ βασιλεῦ κατακλιθεὶς

88
BEALE. John’s use…, op.cit., p. 295.
89
Grifos semelhantes indicam trechos a serem comparados.
56

29
ἀποστείλας διὰ ἐπὶ τῆς κοίτης σου σὺ βασιλεῦ οἱ
τοῦ ἀγγέλου ἑώρακας πάντα ὅσα δεῖ διαλογισμοί σου ἐπὶ τῆς
αὐτοῦ τῷ δούλῳ γενέσθαι ἐπ᾽ ἐσχάτων τῶν κοίτης σου ἀνέβησαν τί
αὐτοῦ Ἰωάννῃ, ἡμερῶν καὶ ὁ δεῖ γενέσθαι μετὰ ταῦτα
ἀνακαλύπτων μυστήρια καὶ ὁ ἀποκαλύπτων
2
ὃς ἐμαρτύρησεν ἐδήλωσέ σοι ἃ δεῖ μυστήρια ἐγνώρισέν σοι ἃ
τὸν λόγον τοῦ γενέσθαι δεῖ γενέσθαι
θεοῦ καὶ τὴν
30 30
μαρτυρίαν Ἰησοῦ (…) τὸ μυστήριον τοῦτο (…) τὸ μυστήριον τοῦτο
Χριστοῦ ὅσα ἐξεφάνθη ἀλλ᾽ ἕνεκεν τοῦ ἀπεκαλύφθη ἀλλ᾽ ἕνεκεν
εἶδεν. δηλωθῆναι τῷ βασιλεῖ τοῦ τὴν σύγκρισιν τῷ
ἐσημάνθη μοι ἃ ὑπέλαβες βασιλεῖ γνωρίσαι ἵνα τοὺς
3
Μακάριος ὁ τῇ καρδίᾳ σου ἐν γνώσει διαλογισμοὺς τῆς καρδίας
ἀναγινώσκων καὶ … σου γνῷς
οἱ ἀκούοντες
45 45
τοὺς λόγους τῆς (…) ὁ θεὸς ὁ μέγας (…) ὁ θεὸς ὁ μέγας
προφητείας καὶ ἐσήμανε τῷ βασιλεῖ τὰ ἐγνώρισεν τῷ βασιλεῖ ἃ
τηροῦντες τὰ ἐν ἐσόμενα ἐπ᾽ ἐσχάτων τῶν δεῖ γενέσθαι μετὰ ταῦτα
αὐτῇ ἡμερῶν καὶ ἀκριβὲς τὸ καὶ ἀληθινὸν τὸ ἐνύπνιον
γεγραμμένα, ὁ ὅραμα καὶ πιστὴ ἡ τούτου καὶ πιστὴ ἡ σύγκρισις
γὰρ καιρὸς ἐγγύς. κρίσις. αὐτοῦ

1. Quadro comparativo entre Ap 1, 1-3 e Dn 2, 28-30.45 (LXX,


TH)
Os textos têm pontos em comum e elementos contrastantes. Em
primeiro lugar elenquemos o que há de existente em ambos os textos, ou
seja, comum entre o título do livro de João e a moldura do relato do
sonho de Nabucodonosor em Daniel. Em ambos há uma ação revelatória
(Ἀποκάλυψις, ἀνακαλύπτων, ἀποκαλύπτων), efetuada por Deus (ὁ θεὸς,
ἔστι θεὸς ἐν οὐρανῷ), cujo conteúdo é essencialmente simbólico
(ἐσήμανεν) e se refere a coisas que “é necessário que aconteçam” (ἃ δεῖ
γενέσθαι, τὰ ἐσόμενα). Particularmente com relação a essa terminologia,
que define o conteúdo da visão, cabe notar ser reservada, em toda a
Escritura, aos extremos do Apocalipse de João e a este relato de Daniel.
Seu uso em Apocalipse 1, 1 não parece, portanto, fortuito, uma vez que
surge repetidamente no texto veterotestamentário aludido e é
mencionada justamente no título do escrito joanino. Ainda poderíamos
acrescentar a utilização de termos relacionados ao sentido da visão,
como indicativos do modo em que se dá a revelação (δείκνυμι, ὁράω,
δηλόω, ὅραμα).
Prosseguindo com a comparação entre os dois textos, percebemos
que ao coisas que devem acontecer, segue-se notação temporal. Esta,
57

todavia, tem variação que merece ser destacada. O texto de Daniel 2, 28


indica que o relato descreve o que aconteceria nos últimos dias (ἐπ᾽
ἐσχάτων τῶν ἡμερῶν). Convém notar, entretanto, que este não foi escrito
em grego, mas traduzido. No versículo 45, conquanto os termos sejam
idênticos em hebraico, o resultado do processo de versão apresenta
diferenças: a LXX preserva o que expressara em 2, 28, mas Teodocião
utiliza outra terminologia, que, no contexto, se dá como sinônimo (μετὰ
ταῦτα, ou seja, depois destas [coisas]). Esta última expressão, João
também a utiliza, em Apocalipse 1, 19; 4, 1, e para referir-se às mesmas
realidades. A revelação, portanto, tem um conteúdo, e este é o mesmo
que Daniel se propõe a descrever. Todavia, em Apocalipse 1, 1, há
alteração: o tempo é indicado como ἐν τάχει, ou seja, em breve90.
O Reino de Deus, que suplantaria a sucessão humana de reinados,
e seria instaurado pelo poder de Deus, sem intervenção humana, se
apresentava para um tempo distante em Daniel. Todavia, este mesmo
Reino é imediatamente presente para João. Isso se deu por causa de
Jesus Cristo – pois a revelação é dele – e é anunciado com um objetivo
muito específico: a bênção proposta no macarismo de Apocalipse 1, 3.
Ou seja, o conhecimento sobre-humano (o que é indicado pela mediação
angélica no Apocalipse, como também é expresso não se tratar de
oriundo da simples capacidade intelectiva de Daniel em Daniel 2, 28ss)
dado aos servos de Jesus traz uma consequência simultaneamente
parenética e macárica. Os contextos supostos pelas cartas de Apocalipse
2 – 3 dão a entender que a situação das comunidades não era pacífica,
mas ainda assim, à fidelidade à profecia91 contida no livro corresponde
uma bênção, pois o tempo da intervenção divina está próximo.
Uma outra consequência hermenêutica da proposta desse pano de
fundo é a natureza essencialmente simbólica do Apocalipse de João. Sua
interpretação, como no caso da interpretação de Daniel ao sonho do rei,
não é oriunda do conhecimento humano92. O texto de Daniel narra como
uma sucessão de reinos desapareceria, deixando espaço a um único e
eterno reinado, o Reino de Deus, que não iniciaria por meio de mão
humana, mas seria inteiramente resultante do poder de Deus. Essa nova
realidade, ao mesmo tempo, suplantaria toda estrutura humana de
dominação, sempre alicerçada em pés de barro. Sendo assim, o conteúdo
programático do Apocalipse de João também tem, desde o princípio, a
proposta de dar a conhecer o que, nos últimos tempos (ou seja, em
90
Lc 18, 8 e Rm 16, 20 também a têm com sentido escatológico.
91
Ap 1, 3.
92
Dn 2, 30.
58

breve), deve acontecer, e que culminará com a implantação do Reino


definitivo. De fato, vemos, ao longo do livro, que as vitórias obtidas por
Deus sobre os inimigos mundanos são sempre repentinas e praticamente
imediatas, como na profecia de Daniel. Veja-se, por exemplo, que um
mesmo versículo93 narra os preparativos da guerra escatológica entre o
Dragão e Deus, e sua finalização abrupta, por meio de um fogo do céu.
O simbolismo encontrado no Apocalipse de João, Deus o
significou (ἐσήμανεν). Todavia, as considerações sobre o modo dessa
significação perpassam pela descrição da mediaticidade com que a
revelação é apresentada. As figuras de Deus e de Jesus Cristo têm
proeminência em Apocalipse 1, 1, e apenas obliquamente aparecem o
anjo e João, como primeiros interlocutores. Assim, nota-se uma tônica
decididamente cristológica, presente também ao longo do texto como um
todo. Veja, por exemplo, que é o Cordeiro aquele que pode abrir os
selos, e isso porque sofreu a morte e a venceu 94. Analisando a
continuidade ou descontinuidade desse elemento com Daniel,
percebemos que naquele relato havia um contato imediato do vidente
(rei) com o conteúdo de sua visão (a estátua), mas o sentido desta é
acessível somente mediante uma espécie de luz dada especialmente a
Daniel. A apresentação velada da mensagem recebe o nome de
μυστήριον (as únicas ocorrências desse termo no AT, aliás, estão em
Daniel), termo utilizado pelo Filho do Homem 95 no tocante às estrelas e

93
Ap 20, 9.
94
Ap 5.
95
Dada a importância do Filho do Homem para este estudo, convém que
façamos uma breve exposição sobre a cunhagem dessa expressão, seu uso nas
Escrituras e o modo como foi empregado nos textos referendados por João de
Patmos. Em hebraico, ‫ְּבֵני ָאָד ם( ֶּבן־ָאָד ם‬, no plural ou ‫ ַבר ֱאָנׁש‬em aramaico)
significa, literalmente, “filho de homem/humano” (ou “filho de Adão”, uma vez
que tomemos ‫ ָאָדם‬de Gn 2, 7 como nome próprio). O mais das vezes, é
empregado significando qualquer ser humano e, frequentemente, utilizado para
distingui-lo da divindade. Assim em Nm 23, 19, por exemplo, em que a
distinção está na fidelidade à palavra dada: enquanto os “filhos de homem” são
falíveis, El (‫ )ֵאל‬mantém sempre o que diz. Há dependência do ser humano,
“filho de homem” com relação a Deus, que deles se preocupa por pura
benignidade, como dito em Sl 8, 5. Jeremias utiliza a expressão ‫ ֶּבן־ָאָד ם‬em
sentido genérico, e sempre para significar a cidade desolada, onde já não habita
“filho de homem”. Por sua vez, Ezequiel mantém esse uso, mas coloca na boca
de Deus a expressão. Este impõe-se como soberano em visão mística de glória
diante daquele que aparece em sua mortalidade. Sl 79, 18 traz uma nuance: há o
‫( ֶּבן־ָאָד ם ִאַּמְצָּת ָּלְך‬filho de homem fortalecido para ti [Deus, curiosamente no
59

candelabros de Apocalipse 1. Nota-se, então, que se trata de algo que,


mesmo que disponível aos sentidos, deve ser levado a um tratamento
ulterior. Mas a sabedoria que abria à interpretação em Daniel é, aqui,
Jesus Cristo.

2 APOCALIPSE 1, 4-8

Comparemos os textos Êxodo 3, 14, Apocalipse 1, 4-5a e Salmos


88, 28.38.

Ex 3, 14 Ap 1, 4-5a Sl 88, 28.38

4 28
καὶ εἶπεν ὁ θεὸς Ιωάννης ταῖς ἑπτὰ ἐκκλησίαις κἀγὼ πρωτότοκον
πρὸς Μωυσῆν ταῖς ἐν τῇ Ἀσίᾳ· χάρις ὑμῖν καὶ θήσομαι αὐτόν
ἐγώ εἰμι ὁ ὤν εἰρήνη ἀπὸ ὁ ὢν καὶ ὁ ἦν καὶ ὁ ὑψηλὸν παρὰ τοῖς
καὶ εἶπεν οὕτως ἐρχόμενος καὶ ἀπὸ τῶν ἑπτὰ βασιλεῦσιν τῆς γῆς
ἐρεῖς τοῖς υἱοῖς πνευμάτων ἃ ἐνώπιον τοῦ
38
Ισραηλ ὁ ὢν θρόνου αὐτοῦ καὶ ὡς ἡ σελήνη
ἀπέσταλκέν με κατηρτισμένη εἰς τὸν
5
πρὸς ὑμᾶς καὶ ἀπὸ Ἰησοῦ Χριστοῦ, ὁ αἰῶνα καὶ ὁ μάρτυς
μάρτυς, ὁ πιστός, ὁ πρωτότοκος ἐν οὐρανῷ πιστός
τῶν νεκρῶν καὶ ὁ ἄρχων τῶν διάψαλμα
βασιλέων τῆς γῆς.

2. Textos em paralelo: Ex 3, 14; Ap 1, 4-5a; Sl 88,


28.38
A perícope Apocalipse 1, 4-8 apresenta os elementos comuns ao
início de um texto do gênero epistolar: remetente (João), destinatários
(as sete igrejas que estão na Ásia) e uma saudação (graça e paz (…)).
Além disso, como no caso de outras epístolas cristãs 96, apresenta um
louvor destinado a Jesus Cristo e a seu Pai. Todavia, o leitor atento
percebe que se destacam duas expressões, que, estando expressas no

feminino]). Entretanto, é em Daniel que há a principal mudança no sentido do


termo, pois Dn 8, 17; 10, 16 dá ao “filho de homem” um aspecto terrificante e,
por fim, Dn 7, 13 o coloca como figura escatológica. Sem dúvidas, trata-se desta
leitura aquela feita por João de Patmos, uma vez que cai prostrado aos pés
daquele que tem função cósmica de juízo, em Ap 1, 12.
96
e.g, Ef 1, 1-4.
60

caso nominativo, deveriam, estar no caso genitivo, uma vez que


antecedidas pela preposição ἀπὸ. São elas: “ὁ ὢν καὶ ὁ ἦν καὶ ὁ
ἐρχόμενος” e “ὁ μάρτυς, ὁ πιστός, ὁ πρωτότοκος τῶν νεκρῶν καὶ ὁ
ἄρχων τῶν βασιλέων τῆς γῆς”.
Beale97 e Laughlin98 notaram possibilidade de tais solecismos
serem um indício de alusão veterotestamentária. É o que sustentaremos a
seguir.
A tríplice expressão o que é, o que era e que será, inserida no
caso nominativo, figura um hebraísmo, uma vez que há tendência de não
declinar nomes hebraicos em textos gregos. Também pode ser
considerada um septuagintismo, uma vez que, das duas ocorrências de ὁ
ὢν no AT, há uma única em que sua função é denominar
especificamente uma pessoa: em Ex 3, 14, como tradução do nome de
Deus, certamente conhecido de um leitor das Escrituras.
O significado de ‫ יהוה‬é um tanto discutido. Todavia, sua
expressão como sentença tripla não é, segundo Beale 99, novidade no
judaísmo. O targum Jonathan100, para Deuteronômio 32, 29, traz a
mesma expressão temporalmente tríplice encontrada em Apocalipse 1, 4.
Seu uso claramente indica eternidade, e aparece em paralelo com
Apocalipse 1, 8 e Apocalipse 1, 19.
Assumindo, portanto, que João, ao falar do que era, que é e que
será, fala do Deus que se revelara a Moisés, colocamo-nos no contexto
do Êxodo. Sendo assim, os espíritos que estão diante de seu trono se
entendem por meio da referência veterotestamentária. Ora, a razão
primária da saída de Israel do Egito, segundo os textos bíblicos, era o
culto prestado no deserto. Esse culto ocupa grande espaço do
Pentateuco, com a descrição do tabernáculo, dos sacrifícios, dos objetos
e do próprio espaço litúrgico. Entre esses, o candelabro de sete braços
que repousava frente à Arca da Aliança, entendida como local da
presença de Deus101. Como a obra efetuada sob a supervisão de Moisés
97
BEALE. John’s use…, op.cit., p. 324.
98
LAUGHLIN, Thomas Cowden. The Solecisms of the Apocalypse.
Princeton: C.S.Robinson, 1902, p. 22.
99
BEALE. John’s use…, op.cit., p. 325.
100
Targum Jonathan, Dt 32, 29. Disponível em «https://www.sefaria.org/
Targum_Jonathan_on_Deuteronomy.32?lang=bi». Acessado em 12 jan. 2019.
101
O texto a que nos referimos no momento traz menção apenas aos “sete
espíritos”. Pode parecer apressado associar isso a um candelabro de sete braços,
todavia cabe lembrar que os mesmos “espíritos” são descritos em Ap 4 como
sete chamas que ardem diante do trono. Uma vez que – sustentaremos – o quarto
61

retratava o Santuário Celeste, por ele visto, é natural esperar que o autor
do Apocalipse, que diz ter visto a Sala do Trono, nos céus 102, ao se
deparar com as realidades, as mostre de modo semelhante e
eminentemente mais esplendoroso.
Estando diante dos versículos iniciais, que expressam o conteúdo
programático do escrito todo, entendemos que sua mensagem é de graça
e paz da parte do Deus que promoveu libertação e que, sendo o mesmo
sempre (o que se conclui pelo modo como foi designado), dispõe-se a
realizar a mesma vitória que outrora realizou sobre Faraó. Vemos, com
efeito, que a ideia de que Deus luta as guerras de Israel, presente na
narração do Pentateuco na descrição das pragas e das batalhas durante a
peregrinação pelo deserto também está presente no Apocalipse de João,
uma vez que o povo herda a posse da Jerusalém Celeste, sem, contudo,
engajar-se na batalha escatológica. Enquanto os seguidores do Dragão se
reúnem para a batalha, Deus mesmo salva os que permaneceram fiéis
por meio do fogo do céu103.
Sem exagero, podemos trazer ao leitor do Apocalipse as palavras
de Deus quando fala a Moisés: “eu vi a aflição de meu povo”104.
Passando ao segundo solecismo apontado, percebemos que
guarda muita semelhança com o primeiro: ambos são adjetivações de
sujeitos, escritas em fórmulas tríplices, e expressas no caso nominativo.
Agora, por outro lado, a referência não é do contexto da saída do Egito,
mas da monarquia. Beale105 e Laughlin106 defendem que o título ὁ
μάρτυς, ὁ πιστός evoca diretamente Salmos 88, 38 (ὁ μάρτυς ἐν οὐρανῷ
πιστός). Embora a estruturação do livro dos Salmos seja controversa, se
considerarmos os louvores presentes em Salmos 40, 14; 71, 18-20; 88,
53; 105, 48, podemos dividi-lo em cinco livros menores de salmos.
Sendo assim, a menção seria a um salmo régio que termina em lamento e
encerra o terceiro livro dos salmos. A doxologia final do terceiro livro

capítulo do escrito joanino seja uma descrição idealizada da sala do trono


copiada por Moisés em Êxodo 25 e que marcou fortemente a tradição sacerdotal,
concluímos plausibilidade de tal associação. Lembremos também que há
personificação de objetos pertencentes à divindade em outros textos da
antiguidade como a arma de Ninurta, que é viva, tem nome e atua de modo
dependente, porém proativo. uide CLIFFORD. The Roots…, op.cit., p. 7.
102
Ap 4, 1ss.
103
Ap 20, 9.
104
Ex 3, 7.
105
BEALE. John’s use…, op.cit., p. 329.
106
LAUGHLIN. op.cit, p. 15.
62

difere das demais em elementos importantes, tais como a brevidade e a


ausência do qualificativo de Deus referente à aliança com o povo de
Israel. Isso se entende à luz do pessimismo com relação ao futuro do
pacto, que se considera como rompido. Embora a primeira parte do
salmo fale do Rei como primogênito e, comparado com os reis da terra,
tem o primeiro lugar107, o final é pessimista e parece confrontar-se com a
dúvida sobre a situação presente do redator. De fato, se foram outrora
feitas promessas perpétuas, como explicar que a dinastia davídica tenha
sido destronada?
Ora, os três títulos cristológicos de Apocalipse 1, 5a, tomados
deste salmo, colocam Jesus Cristo como cumpridor da Aliança que
aparentemente havia sido quebrada, mas que se realiza de modo
inusitado e muito superior. O primogênito dos reis da terra o é não em
virtude de um passado de conquistas militares, como Davi, mas porque é
primogênito dentre os mortos. Aqui surge uma grande dissonância com
as expectativas messiânicas que se pudessem construir sobre o salmo.
De fato, percebemos que a alusão à morte é resposta à estranheza com
relação mentalidade messiânica régia e triunfal presente no Salmos 88. É
aquele que carregou os ultrajes das nações108 que se tornou de tal modo
redentor que conquistou para Deus uma nação régia.
Ao mesmo tempo em que a paradoxal visão do reinado
messiânico de Jesus Cristo prossegue no texto de João (pois foi por meio
de seu sangue que ele, lavando-nos do pecado, fez de nós um reino e
sacerdotes, de acordo com Apocalipse 1, 6), percebemos que a
terminologia cúltica do contexto do Sinai também continua. A doxologia
de Apocalipse 1, 5b.6, dirigida aos mesmos de quem procedem a graça
e a paz, são devidas a sua ação de ter-nos feito reinado e sacerdotes 109 de
Deus, a quem a glória e o poder.
João arremata a introdução de seu epistolário com o eco de dois
outros textos da Escritura que serão retomados mais adiante 110: a visão
do Filho do Homem de Daniel e os oráculos da futura libertação de
Jerusalém de Zacarias (embora aqui a alusão mude de primeira para
terceira pessoa, e apresente mudança terminológica para sinônimos).

107
uide Sl 88, 28; em uma tradução livre da LXX, o colocarei como
primogênito e grande junto dos reis da terra.
108
Sl 88, 51.
109
Ap 1, 6a.
110
uide p. 62.
63

Dn 7, 13 Ap 1, 7-8 Zc 12, 10

13 7
ἐθεώρουν ἐν ὁράματι Ἰδοὺ ἔρχεται μετὰ καὶ ἐκχεῶ ἐπὶ τὸν
τῆς νυκτὸς καὶ ἰδοὺ ἐπὶ τῶν νεφελῶν, καὶ οἶκον Δαυιδ καὶ ἐπὶ
τῶν νεφελῶν τοῦ οὐρανοῦ ὄψεται αὐτὸν πᾶς τοὺς κατοικοῦντας
ὡς υἱὸς ἀνθρώπου ἤρχετο ὀφθαλμὸς καὶ οἵτινες Ιερουσαλημ πνεῦμα
καὶ ὡς παλαιὸς ἡμερῶν αὐτὸν ἐξεκέντησαν, χάριτος καὶ οἰκτιρμοῦ
παρῆν καὶ οἱ καὶ κόψονται ἐπ᾽ καὶ ἐπιβλέψονται
παρεστηκότες παρῆσαν αὐτὸν πᾶσαι αἱ φυλαὶ πρός με ἀνθ᾽ ὧν
αὐτω τῆς γῆς. ναί, ἀμήν. κατωρχήσαντο καὶ
κόψονται ἐπ᾽ αὐτὸν
14 8
καὶ ἐδόθη αὐτῷ ἐξουσία Ἐγώ εἰμι τὸ ἄλφα κοπετὸν ὡς ἐπ᾽
καὶ πάντα τὰ ἔθνη τῆς γῆς καὶ τὸ ὦ, λέγει κύριος ἀγαπητὸν καὶ
κατὰ γένη καὶ πᾶσα δόξα ὁ θεός, ὁ ὢν καὶ ὁ ἦν ὀδυνηθήσονται
αὐτῷ λατρεύουσα καὶ ἡ καὶ ὁ ἐρχόμενος, ὁ ὀδύνην ὡς ἐπὶ
ἐξουσία αὐτοῦ ἐξουσία παντοκράτωρ. πρωτοτόκῳ
αἰώνιος ἥτις οὐ μὴ ἀρθῇ
καὶ ἡ βασιλεία αὐτοῦ ἥτις
οὐ μὴ φθαρῇ

3. Paralelo entre Dn 7, 13; Ap 1, 7-8; Zc 12,


10
O poder universal (παντοκράτωρ) dado pelo Ancião de Muitos
Dias ao Filho do Homem111 pertence, aqui, se entende, a Jesus Cristo, o
κύριος, que é designado com o mesmo título divino que vimos remeter à
teofania do Sinai (ὁ ὢν καὶ ὁ ἦν καὶ ὁ ἐρχόμενος). Notemos que o culto
destinado a Deus, também é dirigido à pessoa de Jesus, como quando é
apresentado como Cordeiro112. Corsini113 defende que isso seja uma
atestação de sua divindade. Embora não pretendamos aqui uma
abordagem sistemática sobre a Doutrina da Trindade, o comentário é
pertinente como chave interpretativa do capítulo 22, como veremos
adiante114.
Seja como for, o linguajar joanino da vinda de Cristo sobre as
nuvens parece mais compreensível como alusão ao Filho do Homem do

111
Ap 7, 14.
112
Ap 5.
113
CORSINI, Eugenio. O apocalipse de São João. São Paulo: Paulinas,
1984, p. 84.
114
uide p. 172.
64

que em uma abordagem literalista. Novamente, remetendo-nos a


Corsini115 e a Beale116, propomos que essa alusão, pertencente a um
anúncio do conteúdo programático do livro, não tenha o apelo
cataclísmico do medieval Dies irae, mas que anuncie que, pela salvação
obtida por Cristo em sua entrega na cruz, se plenificaram as promessas
feitas por Deus outrora. Seu cumprimento faz com que os fiéis tenham
acesso total a sua revelação. Lembremos que esta não é somente de
acontecimentos futuros, mas, antes de tudo, “Revelação de Jesus
Cristo”117.

3 APOCALIPSE 1, 9-20

O texto é uma visão inicial do Filho do Homem. Em primeira


pessoa, apresenta uma identificação do vidente 118, um mandato abrupto
de escrita119, uma descrição do mandatário120 e o relato de uma queda e
soerguimento de João, consolado pelo Filho do Homem121. Lembra-nos
Beale122 que o modo de autodescrição do escritor de Patmos123 é coerente
com o que comentamos sobre o reinado de Jesus Cristo, que vem por
causa de sua perseverança na adversidade124. De fato, João é dito como
irmão e participante na tribulação, no reinado e na paciência, em Jesus.
O sofrimento e a exaltação, portanto, se encontram novamente unidos.
Todavia, em virtude do que pretendemos com este trabalho,
voltemos a atenção ao restante do texto, que alude a importantes
passagens veterotestamentárias.

115
CORSINI. op.cit, p. 85.
116
BEALE, Gregory. Revelation: a shorter commentary. Cambridge:
William B. Eerdmans, 2015, pp. 35ss. e BEALE. John’s use…, op.cit., pp.
129ss.
117
Ap 1, 1.
118
Ap 1, 9.
119
Ap 1, 10s.
120
Ap 1, 12-16.
121
Ap 1, 17-20.
122
BEALE. Revelation, pp. 38ss.
123
Ap 1, 9.
124
uide acima, sobre o v. 5.
65

A primeira que sobressai, e define um contexto muito específico,


é a descrição da voz como sendo forte e de trombeta (φωνὴν μεγάλην ὡς
σάλπιγγος). Há um único caso na Escritura em que uma voz forte, como
que de trombeta, soa: a teofania do Sinai125. A partir desse momento, de
pessoal, pública e imediata intervenção de Javé na vida e na história de
seu povo, este pede que Deus se cale para si e fale apenas a Moisés. Essa
autoritativa manifestação divina legitima o profetismo de Moisés,
prometidamente continuado no futuro126. Sendo assim, a voz que outrora
se calara, fala em um novo profeta, Jesus, que tem o poder de revelar a
divindade de um modo semelhante, e até mesmo superior, àquele que
ocorrera no Sinai. De fato, também aqui há uma direta ação de Deus, que
liberta um povo, constituindo-o para que preste um ato cúltico de cunho
sacerdotal127.
A voz que fala como trombeta pronuncia claramente uma ordem
de escrita. Também isso remete à teofania do Sinai, em que há um livro,
o da Aliança128.
Após a queda e o fortalecimento do vidente, seu interlocutor é
descrito. Um elemento fortemente presente neste relato e nas cartas que
seguem são os sete candelabros de ouro (λυχνίας χρυσᾶς). Ao final, há
descrição do que seja o mistério dos candelabros: são as próprias igrejas.
Mas haveria que se perguntar por que razão é dada explicação aos
125
Ex 19, 16.
126
Dt 18, 15ss.
127
Ap 1, 6.
128
Extrapolando o limite proposto para o trabalho, poderíamos nos
perguntar sobre a figura do livro no Apocalipse. Veja-se que o Novo
Testamento, ao identificar Jesus com a Sabedoria de Deus, pode ser colocado na
esteira da tradição sapiencial que toma a Torá como a Sabedoria divina, eterna,
criadora e ordenadora do universo. Há que se ter cuidado com tais identidades,
mas não seria exagero – acreditamos – pensar que um significado possível das
figuras de livro no Apocalipse seja justamente uma plenificação da Torá, ou
seja, a revelação do próprio Deus. Mais que uma sequência de eventos, ou então
um código legal, seria um modo da presença de Deus, que se revela em Jesus
Cristo, e, justamente, por meio de sua morte e ressurreição.
Seja como for, um outro comentário pertinente é que, embora os seguintes
elementos: presença de um escrito, associado a uma voz, dado de alguma forma
a um representante da divindade, que manifesta fraqueza diante da incumbência,
mas é fortalecido; também ocorram em Ez 2, falta aqui a ordem de manducação
do livro, que ocorre, todavia, em Ap 10. Sendo assim, parece-nos mais sensato
não propor que o autor, aqui, se inspire no mandato a Ezequiel, embora o faça
posteriormente.
66

candelabros e estrelas, mas não às demais características pessoalmente


atribuídas ao Filho do Homem. Uma possibilidade seria que, enquanto se
sabe que o Filho do Homem é a pessoa de Jesus, nada se saberia sobre os
candelabros, que também possuem uma referência veterotestamentária
forte.
Note-se que o vocábulo λυχνία ocorre 31 vezes na versão LXX do
AT. A única ocorrência profana se encontra em 2 Reis 4, 10, onde se
descreve o cuidado de um casal em ter para o profeta Eliseu um cômodo
para si em sua casa. As demais 30 ocorrências, todas, estão relacionadas
à mobília do Templo ou à Tenda de Reunião, ambos elementos que
continuam em Israel a presença da manifestação de Deus no Sinai, já
muito aludida até o momento129. Não nos parece fortuita a escolha
terminológica.
Flávio Josefo130 indica que o número 7, associado às lâmpadas do
candelabro, se refira ao número dos planetas. Todavia, uma análise do
próprio AT dá a entender que seja uma manifestação da presença de
Deus, uma vez que esse candelabro deveria arder sempre, diante do
Santo dos Santos, desde a tarde à manhã, ou seja, durante a noite.
Enquanto não houvesse as funções sacerdotais rituais, haveria um culto
ininterrupto àquele que se fazia presente sobre a Arca da Aliança. Uma
vez que esses candelabros signifiquem as igrejas, podemos concluir que
a presença divina ocorrente no interior do Templo, agora, se dava de
modo novo em cada igreja, ou seja, em cada comunidade cristã. Beale 131,
ao analisar o uso do termo μυστήριον no Novo Testamento (e,
particularmente, no Apocalipse), conclui que este se refira a um mais
pleno cumprimento de uma antiga profecia, que ocorre de modo
inesperado. De fato, o universalismo da salvação, significado na
presença de Deus não mais em um lugar, mas na própria comunidade
eclesial, traz consigo uma inesperada proximidade de Deus, já
experienciada de modo intenso no Sinai132.
Após a figura dos candelabros, segue a descrição da aparência do
Filho do Homem, que acompanha muito de perto Daniel 10, 5s.

Ap 1, 13-16 Dn 10, 5s (TH)

129
Zc 4, 2.11 tem um uso um pouco diferente do termo, que será retomado
em Ap 11.
130
FLAVIUS JOSEPHUS. Guerra judaica, 5, 217.
131
BEALE. John’s use…, op.cit., p. 215.
132
Dt 4, 7.
67

13 5
καὶ ἐν μέσῳ τῶν λυχνιῶν ὅμοιον υἱὸν καὶ ἦρα τοὺς ὀφθαλμούς μου
ἀνθρώπου ἐνδεδυμένον ποδήρη καὶ καὶ εἶδον καὶ ἰδοὺ ἀνὴρ εἷς
περιεζωσμένον πρὸς τοῖς μαστοῖς ζώνην ἐνδεδυμένος βαδδιν καὶ ἡ
χρυσᾶν. ὀσφὺς αὐτοῦ περιεζωσμένη ἐν
χρυσίῳ Ωφαζ
14
ἡ δὲ κεφαλὴ αὐτοῦ καὶ αἱ τρίχες λευκαὶ ὡς
6
ἔριον λευκὸν ὡς χιὼν καὶ οἱ ὀφθαλμοὶ καὶ τὸ σῶμα αὐτοῦ ὡσεὶ
αὐτοῦ ὡς φλὸξ πυρὸς θαρσις καὶ τὸ πρόσωπον
αὐτοῦ ὡσεὶ ὅρασις ἀστραπῆς
15
καὶ οἱ πόδες αὐτοῦ ὅμοιοι χαλκολιβάνῳ καὶ οἱ ὀφθαλμοὶ αὐτοῦ ὡσεὶ
ὡς ἐν καμίνῳ πεπυρωμένης καὶ ἡ φωνὴ λαμπάδες πυρός καὶ οἱ
αὐτοῦ ὡς φωνὴ ὑδάτων πολλῶν, βραχίονες αὐτοῦ καὶ τὰ σκέλη
ὡς ὅρασις χαλκοῦ στίλβοντος
16
καὶ ἔχων ἐν τῇ δεξιᾷ χειρὶ αὐτοῦ ἀστέρας καὶ ἡ φωνὴ τῶν λόγων αὐτοῦ
ἑπτὰ καὶ ἐκ τοῦ στόματος αὐτοῦ ῥομφαία ὡς φωνὴ ὄχλου
δίστομος ὀξεῖα ἐκπορευομένη καὶ ἡ ὄψις
αὐτοῦ ὡς ὁ ἥλιος φαίνει ἐν τῇ δυνάμει
αὐτοῦ.

4. Paralelo entre Ap 1, 13-16; Dn 10,


5s(TH)
Ao mesmo tempo em que a referência ao Filho do Homem traz à
mente a figura de juízo cósmico apresentada em Daniel 7, sua descrição
– afirma Moyise133 – lembra o personagem revelatório do capítulo 10,
não somente com o que se encontra destacado por igualdade semântica
no quadro acima (sublinhado), mas também pela ordem dos elementos
na descrição, marcados em itálico acima (vestes, cabeça/face, olhos,
pés/pernas correlatos ao bronze enrubescido, voz de muitas
águas/multidão). Além disso, o contexto também é semelhante, uma vez
que se trata de uma figura diante da qual há desfalecimento seguido de
fortalecimento sobrenatural134 e que introduz uma mensagem salvífica de
índole escatológica135. Outros detalhes da cena, particularmente as vestes
e cabelos brancos do Filho do Homem no Apocalipse também são
oriundos da visão Daniel 7, mas se referem ao Ancião de Muitos Dias, e
não ao Filho do Homem.
Essa fusão de características de três personagens distintos da
narrativa de Daniel não parece ocasional. Beale136 propõe interpretar o
133
MOYISE. op.cit, p. 37ss.
134
Dn 10, 8-11 // Ap 1, 17s.
135
Dn 10, 13s // Ap 1, 1; 4, 1.
136
BEALE. John’s use…, op.cit., p. 165.
68

Apocalipse de João em continuidade com as profecias de Daniel,


entendendo-o como pleno cumprimento destas. Sendo assim, Jesus seria
o portador da mensagem e da realização da salvação definitiva de Deus.
Veja-se que essa figura, que reúne em si elementos do Filho do Homem,
do anjo de Daniel 10 e do Ancião de Muitos Dias, além do próprio título
Filho do Homem, frequentemente utilizado para Jesus nos evangelhos 137,
carrega também a autodescrição “estive morto (…) e vivo” 138. Uma
comunidade cristã muito facilmente identificaria o personagem com
aquele que morreu na cruz, aplicando a este aqueles elementos que o
texto traz explicitamente, como, por exemplo, “primeiro e último”139,
título próprio de Deus Único em Isaías 44, 6; 48, 12.
O reiterado mandato de escrita140, portanto, reunindo a promessa
de salvação a Israel com o evento pascal de Jesus, coloca os textos do
AT em uma ótica cristã, e vê o acontecimento da cruz como a chave que
descortina um mais pleno horizonte de interpretação das Escrituras.
Aquilo que poderia ser visto como anúncio de uma esperada ação de
Deus, agora é entendido como um evento cuja realização se dá “em
breve”141.
Dois elementos ainda não considerados são: a espada de dois
gumes e as sete estrelas. A espada de dois gumes, para Beale 142, remonta
à profecia de Isaías 11 (também aludida em Apocalipse 22, 16).
Todavia, propomos que também seja levado em conta Salmos 149. A
fraseologia é muito semelhante, e ambos seriam plausíveis de ser
encontrados aqui. Por um lado, o salmo 149 é um convite ao louvor de
Javé no momento iminente da libertação, uma vez que o próprio povo é
chamado a exaltá-lo com os lábios e exercer o julgamento com espada
de dois gumes à mão143. A índole cósmica da salvação operada por Javé
137
Uma discussão correlata seria se Jesus se teria atribuído esse título, se o
teria aceitado, ou se faria parte das ipsissima verba Iesu. Conquanto seja muito
pertinente, o resultado não nos parece decisivo o suficiente para influenciar a
interpretação deste escrito em particular. Note-se que, tendo ou não Jesus
utilizado esse título para si, ou sequer aceitado, o fato é que as comunidades
cristãs o atribuíram a Jesus, e como uma tonalidade decididamente judicativa e
escatológica, como se pode notar, por exemplo, em Mt 25, 31.
138
Ap 1, 18.
139
Ap 1, 17.
140
Ap 1, 11.19.
141
Ap 1, 1.
142
BEALE. Revelation, p. 48.
143
Sl 149, 6.
69

neste salmo se expressa pelo juízo de nações, povos, reis e príncipes 144.
Por outro lado, Isaías 11, 4 traz a profecia da Raiz de Jessé, tipicamente
messiânica, que também faz referência a um espírito septiforme, e
atribui ao futuro rei o exercício da justiça, fazendo de suas palavras o
instrumento do juízo. Comparando os textos, percebemos as
semelhanças. Apocalipse 1, 16 traz “ἐκ τοῦ στόματος αὐτοῦ ῥομφαία
δίστομος ὀξεῖα ἐκπορευομένη”, enquanto em que Isaías 11, 4 consta
“πατάξει γῆν τῷ λόγῳ τοῦ στόματος αὐτοῦ” e, em Salmos 149, 6, “αἱ
ὑψώσεις τοῦ θεοῦ ἐν τῷ λάρυγγι αὐτῶν καὶ ῥομφαῖαι δίστομοι ἐν ταῖς
χερσὶν αὐτῶν”. Moyise145, ao compilar as influências
veterotestamentárias dessa passagem, nota a possibilidade de João
pretender efetivamente fazer ressoar aos ouvidos de quem testemunhava
a leitura do texto como que os ecos de várias profecias messiânicas. Se
for assim, podemos entender que o autor de Patmos tinha em mente a
proposição de que Jesus as realizara todas, e pretendia criar um texto
cuja linguagem solenemente despertasse nos ouvintes a consciência de
que Jesus é o Filho do Homem prometido e que cumpria de modo
definitivo e completo o juízo de Deus. Sem dúvida, a força retórica pela
reunião de textos variados seria imensa àqueles que captassem as
múltiplas vozes consonantes.
Um último comentário sobre os textos messiânicos aludidos é que
se, antes, o uso de Salmos 88 evocava uma situação de lamento pela
dinastia davídica arruinada, o cumprimento pleno das promessas é
destacado ao evocar Salmos 149 e Isaías 11.
Por fim, resta considerar o elemento faltante: as sete estrelas. No
AT, a referência a estrelas se dá o mais frequentemente na comparação
numérica com a descendência de Israel. Demais, em modos de falar da
criação, e se refere especificamente aos astros presentes no céu. As
exceções a essa regra são Gênesis 37, 9 e Daniel 8, 10. No livro de
Gênesis, temos as estrelas simbolizando os filhos de Jacó. Em Daniel,
algo diferente: são membros do exército celeste, alguns dos quais
lançados à terra e pisados. Aparentemente, João segue em muito o modo
de expressão do autor de Daniel, uma vez que também este faz uso da
ideia de anjos associados a comunidades, sendo Miguel o anjo de
Israel146. Collins147 notara a suposição da literatura apocalíptica entre
relações com seres de um mundo sobrenatural e as grandezas históricas
144
Sl 149, 7-9.
145
MOYISE. op.cit, p. 44.
146
Dn 10.
147
COLLINS. What is Apocalyptic…, op.cit., p. 6.
70

do mundo presente. Sendo assim, a continuidade entre Daniel e o


Apocalipse de João não somente aparenta plausível, como também
completa o mistério dos sete candelabros. Não somente a Israel
corresponde um anjo que realiza os desígnios de Deus, mas também às
comunidades cristãs. Não pretendemos desenvolver uma teoria sobre a
angelologia do Apocalipse, mas certamente podemos entender esse texto
na suposição de uma universalização das promessas a Israel,
verdadeiramente cumpridas em cada uma das igrejas.
Sintetizando: em Jesus, que esteve morto e vive pelos séculos, as
promessas feitas a Israel são cumpridas, mas nas igrejas.

4 APOCALIPSE 2 – 3

Não seria difícil separar Ap 2 – 3 em perícopes menores que


delimitassem cada uma das mensagens enviadas às sete igrejas da Ásia.
Tampouco seria pequeno o volume de texto escrito sobre cada uma delas
em uma análise exegética profunda. Entretanto, cabe notar que,
conforme estabelecemos acima, buscamos aplicar ao livro do Apocalipse
um método preciso: investigar o uso do AT por João e o modo como ele
impacta na interpretação dos símbolos utilizados ao longo do texto.
E é fato que a porção de menor uso de linguagem
veterotestamentária no livro todo é justamente o bloco formado pelos
capítulos 2 e 3. Todos os comentadores consultados apresentam poucas
referências ao AT em Apocalipse 2 – 3. Mesmo Moyise148, que se propõe
a analisar pormenorizadamente o modo da influência das Escrituras
sobre Apocalipse 1 – 3, acaba por deter-se na visão do Filho do Homem,
sobre a qual já versamos.
Também é verdade, entretanto, que este mesmo autor proponha
que a tese segundo a qual as mensagens sejam explicáveis por meio do
recurso ao conhecimento apenas da realidade local de cada uma das
comunidades destinatárias esteja equivocada. E, por isso, ressalte a
necessidade do uso do AT, sem, contudo, fornecer indicações muito
precisas.
Além disso, se é verdade, como defende Prigent 149, que as cartas
tiveram redação após o resto do livro, pode acontecer que haja elementos
148
MOYISE. op.cit, pp. 24ss.
149
PRIGENT, Pierre. O Apocalipse. [trad. Luiz João Baraúna.] São Paulo:
Loyola, 1993, p. 45.
71

que, embora remetam a textos mais antigos, têm origem primeiramente


em outras passagens do próprio Apocalipse de João. Tais são: i) a árvore
da vida em Ap 2, 7150; ii) o “Primeiro e Último” de Ap 2, 8151; iii) o maná
escondido de Ap 2, 17 pode referir-se à perda da Arca da Aliança152; iv) o
cetro férreo de Ap 2, 27 parece referir-se ao descendente da Mulher de
Ap 12153.
Sendo assim, muito brevemente nos deteremos a algumas
considerações esparsas do que aparenta ser eco do Tanakh em Ap 2 – 3:
i) a provação de dez dias de Ap 2, 10 parece remontar a Daniel 1, 12ss,
na qual os jovens israelitas são submetidos à alimentação com vegetais,
e não carnes sacrificadas aos ídolos, mas são por isso mesmo
robustecidos, ao invés de apresentarem aspecto físico inferior. Neste
caso, teríamos um uso como que irônico, pois agora é a “Sinagoga de
Satanás” que submete o verdadeiro Israel à prova; ii) as referências a
Balaão parecem remontar a Números 22, 1 – 25, 4; 31, 16. Este,
chamado a amaldiçoar, constata a bênção a Israel. Todavia,
paradoxalmente, a influência dos cultos idolátricos fez com que o Povo
de Deus encontrasse a maldição que o profeta não ousara proferir. Isso
parece em conformidade com o texto de Daniel 1, referido acima; iii) a
autodescrição do Filho do Homem como quem “sonda rins e coração” de
Ap 2, 23 pode referir-se a Jeremias 11, 20 e Salmos 61, 13, textos em
que o orante aflito confia em Deus onisciente para que realize sua
justiça. Essa ameaça se dirige contra os filhos de “Jezabel”, conhecida na
tradição de Elias por ser quem levava Israel à idolatria; iv) a chave de
Davi em Ap 3, 7 pode significar aquela de Isaías 22, 22, retirada de um
administrador infiel e prometida a alguém 154 escolhido para ser como um
pai para Israel.

5 APOCALIPSE 4

O texto Apocalipse 4, 1 é como segue: “Μετὰ ταῦτα εἶδον, καὶ


ἰδοὺ θύρα ἠνεῳγμένη ἐν τῷ οὐρανῷ, καὶ ἡ φωνὴ ἡ πρώτη ἣν ἤκουσα ὡς

150
uide p. 178.
151
uide p. 68.
152
uide p. 120.
153
uide p. 121.
154
Eliaquim, ou ‫ֶאְל ָיִ֖ק ים‬, literalmente, “escolhido por Javé”.
72

σάλπιγγος λαλούσης μετ᾽ ἐμοῦ λέγων· ἀνάβα ὧδε, καὶ δείξω σοι ἃ δεῖ
γενέσθαι μετὰ ταῦτα”.
Duas considerações de ordem gramatical podem ser feitas com
relação a esse texto, e que ressaltam sua correlação com o AT. Em
primeiro lugar, o genitivo λαλούσης concorda com σάλπιγγος, não com
o acusativo ἣν. Uma tradução livre, que respeite isso, seria “a primeira
voz, que ouvi como trombeta falando comigo” ou “trombeta que fala
comigo”. Quem porta o ato do verbo λαλέω não é a voz, mas a trombeta.
Desse modo, a referência ao instrumento de sopro não simplesmente
enfatiza a intensidade da voz, mas diz especificamente que o ato de falar
se refere mais à “trombeta” que à voz. Embora pareça preciosismo
linguístico, Beale155 afirma que essa característica acentua a similaridade
com a “voz de trombeta” que se manifestou na teofania do Sinai, em Ex
19, 16-19. Como vimos acima, à página 65, a voz que falara com o
vidente já fazia referência ao mesmo evento. E há ainda uma outra
questão de concordância, não de caso, mas de gênero. O particípio
nominativo λέγων (masculino) concorda não com φωνὴ (feminino), mas
com o sujeito falante (o Filho do Homem, a quem é atribuída a voz), o
que também faz remeter à teofania do Sinai, uma vez que é Deus quem
age, respondendo156 por meio de uma voz já anteriormente anunciada
como sendo de trombeta157.
Além desses dois elementos de índole linguística, também outros
colocam o versículo 1 em direta conexão com o evento do Sinai: a
ordem de subir, também dada a Moisés; o ato de mostrar algo celeste 158;
e o próprio lugar da manifestação como sendo no céu, uma vez que
Moisés teve contato com um santuário excelso para dele fazer uma cópia
terrena precisa; além da seguinte descrição de um ambiente cultual, bem
como da referência à escrita de um livro 159. Ainda listando o que, no
texto, insere Apocalipse 4, 1 na mesma dinâmica da voz que se
manifestara no Sinai e no Filho do Homem do c. 1, temos o enunciado
do que será mostrado ao vidente: “ἃ δεῖ γενέσθαι μετὰ ταῦτα”. Se, por
um lado, isso se insere em continuidade com o título do livro 160, também
indica que o que segue é o conteúdo da visão cujo mandato de escrita

155
BEALE. John’s use…, op.cit., p. 336.
156
Ex 19, 19.
157
Ex 19, 16.
158
Ex 25.
159
Ap 5.
160
Ap 1, 1.
73

fora dado em Apocalipse 1, 19; e, como vimos161, “ἃ δεῖ/μέλλει γενέσθαι


μετὰ ταῦτα” é indicativo dos eventos escatológicos tais como entendidos
em Daniel 2, 28ss. Assim, aquilo que fora anunciado em Daniel, e que
começara a ser desvelado no capítulo 1, continua em processo de
enunciação aqui.
Quando João é arrebatado em espírito (ἐγενόμην ἐν πνεύματι,
elemento que continua em 4, 2 o evento revelatório de 1, 10), depara-se
com a Sala do Trono. Novamente, recordemos que, de acordo com a
narrativa bíblica162, Moisés recebeu ordem de construir um santuário
segundo os moldes do templo celeste que vira 163. Esta tradição avançou,
e se fez presente ao longo do AT em vários momentos, dentre os quais,
convém destacar alguns. A profecia de Natã, destinada à descendência
do rei Davi164 é dada no contexto de uma tentativa de construção de um
templo. Não lhe é permitido realizar a empreitada, mas seu filho o faria.
À letra, isso se realizou com Salomão 165, que não somente transformou a
tenda em palácio, mas também ornou com novos objetos. Vale notar que
os querubins da Arca, que eram dois166, passaram a ser quatro, uma vez
que outros dois, enormes, foram colocados no interior do Santo dos
Santos167. Ao final, o Templo contava com um Santuário cúbico e
dourado168, um altar de ouro para perfumes 169, um “mar de bronze”170,
ornatos em forma de leões, bois e querubins171, elementos móveis
apoiados em rodas172, além da própria Arca da Aliança, do Candelabro e
de outros móveis e utensílios. O interior do Templo era reservado aos
sacerdotes, e o Santo dos Santos era reservado ao sumo sacerdote, que
apenas uma vez ao ano lhe adentrava. Todavia, as peregrinações e

161
uide p. 56.
162
Não nos interessará, no momento, o processo de redação da Obra
Histórica Deuteronomista, mas apenas a redação tal qual se apresenta, uma vez
que esta serviu de inspiração ao autor de Patmos.
163
Ex 19ss.
164
2Sm 7.
165
1Rs 6.
166
Ex 25, 18.
167
1Rs 6, 23.
168
1Rs 6, 20.
169
1Rs 6, 23.
170
1Rs 7, 23.
171
1Rs 7, 29.
172
1Rs 7, 32.
74

sacrifícios certamente seriam ocasiões que divulgariam uma teologia


cúltica do santuário entre os israelitas. De fato, quando Isaías e Ezequiel
descrevem suas experiências extáticas, o fazem em linguagem que
lembra o ambiente do Templo de Salomão. Isaías 6 descreve Deus em
um trono, dentro do Templo. Serafins o aclamam com o Triságion.
Pouco depois, Ezequiel também utiliza o ambiente sacerdotal para a
descrição da glória de Deus. Agora, os querubins já têm forma, indicada
pela comparação entre os capítulos 1 e 9 – 10: faces humana, de leão, de
touro e de águia, com asas repletas de olhos. A Arca móvel, agora, é
descrita como um trono-carro. Deus repousa sobre os querubins.
Relâmpagos, luzes e um imaginário fantástico são fatores que destacam
as visões em Ezequiel. Por fim, alguns elementos associados à presença
de Deus, e que perpassam essa tradição, são o recurso a pedras que
formam um lajeado sob sua presença173 e o arco-íris174.
Retornando à descrição da Sala do Trono do Apocalipse, vemos
que seus elementos são explicáveis à luz dessa tradição 175. O trono de
Deus176 circundado por um halo177, do qual procedem elementos
portentosos como trovões e relâmpagos178, diante do qual há sete
chamas179 e um mar de cristal180, e os seres vivos em forma de leão,
touro, homem e águia, alados e proclamando o Triságion 181, são todos
elementos paralelos àqueles que outrora compunham a tradição cúltica
de Israel. Os louvores proclamados diante da presença de Deus evocam a
eternidade182 e a criação183. Por um lado, a tríplice expressão do v. 8
remonta às considerações sobre o nome ‫יהוה‬, à página 60. Por outro, a

173
Ex 24, 10.
174
Gn 9, 13; Ez 1, 26-28.
175
BEALE. Revelation, p. 103, propõe essa similaridade. Todavia, notar a
semelhança entre os textos não é novidade do último século. Podemos fazer
remontar, pelo menos, a Dante Alighieri, nos últimos cantos do Purgatório a
tendência a essa identificação. Também CORSINI. op.cit, p. 142.
176
Ap 4, 2.
177
Ap 4, 3.
178
Ap 4, 5.
179
Ap 4, 5.
180
Ap 4, 6.
181
Ap 4, 6-9.
182
Ap 4, 8.
183
Ap 4, 11.
75

referência à criação não é estranha a esse ambiente, uma vez que o Deus
da Aliança se coloca como único184 e, por isso, criador.
Portanto, da comparação do texto de João com seu pano de fundo
veterotestamentário (desta vez, composto), podemos haurir
continuidades e descontinuidades. Entre os elementos comuns, destaca-
se a manifestação da glória de Javé como elemento de juízo e ação
procedente diretamente da divindade. Assim como Ezequiel a viu, e essa
visão como que catalisou a ação de Deus no juízo e na restauração de
Israel. De fato, ela sai do Templo, abandonando-o, mas volta 185, e esse
gesto simbólico é acompanhado e como que emoldura toda a ação divina
no livro. Também a atividade de Isaías se entende à luz da vocação,
legitimada pela visão do mandato divino. João, portanto, entende que
aquilo que acontecerá denota, por um lado, uma intervenção direta de
Deus na história, e, por outro, como que uma autenticação de sua
mensagem em Patmos. Por isso, podemos entender esse capítulo em
posição central com relação à retórica do livro 186, uma vez que coloca o
vidente em uma posição destacada na assembleia. Se é verdade que é
companheiro nas tribulações187, também é verdade que é o único a poder
experienciar semelhante arrebatamento dos sentidos. Aquilo, portanto,
que expõe, encontra-se na esteira da profecia veterotestamentária, com o
peso e a envergadura de tal manifestação, que procedera na história
desde o Sinai até os eventos narrados por Isaías e Ezequiel. Não se
apoia, com efeito, na autoridade dos profetas antigos, mas compara-se a
estes e haure para si uma posição semelhante, e ainda superior, uma vez
que sua visão combina os elementos dessas três fontes.
Entende-se a função do rico colorido do texto, e percebe-se a
posição do locutor da mensagem. Transmite-se, também, a certeza de
que Deus continua agindo, como agiu nos períodos marcantes da história
de Israel.
Embora a novidade decididamente cristã esteja presente sobretudo
a partir do capítulo 5, já aqui podemos notar dois fatores inteiramente
novos com relação às narrativas de Moisés, Salomão, Isaías e Ezequiel.
Um é o processo de mediação para a subida aos céus, dado por meio da
voz que, embora correlata à do Sinai, aqui é claramente a de Jesus, pelo
que concluímos do capítulo 1. Verdadeiramente, o texto bíblico não

184
Dt 6, 4.
185
Ez 43.
186
uide “Uso retórico”, à página 41.
187
Ap 1, 9.
76

coloca mediação entre o vidente do Sinai, ou Isaías e Ezequiel. Com


Salomão, há apenas a presença de uma nuvem que enche o templo 188.
Assim, entendemos – como ficará mais claro a partir do capítulo
seguinte, mas como já fora aventado desde o capítulo 1 – que o
conhecimento sobrenatural disponível àquele a quem foi dada a ordem
da escrita só se faz possível pela presença de Jesus, que, como vimos,
aparece morto e ressuscitado. A fonte, portanto, é pascal.
Outro fator que denota novidade com relação à tradição que
evocamos é a presença de uma espécie de senado celeste, composto por
vinte e quatro anciãos. Conquanto essa ideia fosse comum na
antiguidade189, presente em livros como Jó, ou na ideia de que Deus
presida um conselho de deuses, aqui ocorre de um modo inteiramente
novo. Em primeiro lugar, destaca-se que, em continuidade com um
monoteísmo, há radical distinção entre a descrição de Deus e a descrição
dos anciãos, embora apareçam coroados. Aliás, estes depõem suas
coroas e prestam culto de adoração 190. Todavia, possuem tronos no céu,
ao redor do trono de Deus.
A ocorrência disso na Escritura remonta a Daniel, em texto já
citado e, por isso, plausivelmente influenciador de Apocalipse 4. De fato,
o juízo promovido pelo Ancião de Muitos Dias em Daniel 7 é feito
quando ele toma lugar em um trono em meio a outros tronos. Os
comentários talmúdicos191 sobre isso demonstram certa perplexidade.
Aparentemente, João simplesmente aceita o simbolismo e passa a usá-lo
como uma ferramenta que indica o início do julgamento divino da
profecia do Filho do Homem sobre as potências inimigas (retratadas,
todas elas, aliás, em Apocalipse 13, 2, como veremos adiante).

188
1Rs 8, 10.
189
uide as considerações sobre os mitos de combate, à página 39.
190
Ap 4, 10.
191
Talmude Babilônico, Chagigah, 14a:4-5. Disponível em: «https://www.
sefaria.org/Daniel.7.9?lang=bi&with=Talmud&lang2=en». Acessado em 12 jan.
2019.
77

Sobre o número dos tronos192, não teríamos dificuldade em


admitir que se trate de uma soma entre os doze filhos de Jacó e os doze
apóstolos. Não pretendemos, contudo, uma visão profunda sobre isso,
uma vez que foge do escopo do trabalho. Bastaria que indicássemos,
como fizemos, as implicações da leitura conjunta do Apocalipse com
textos do AT. Todavia, um comentário sobre a razoabilidade da inserção
equiparada de um elemento judaico (12 tribos) com um elemento cristão
(12 apóstolos) pode ser esboçado. Convém notar que os 144 mil
assinalados de Apocalipse 7 remontam às tribos de Israel e são tomados
com uma caracterização bastante positiva. Também ao final do livro, na
descrição da Jerusalém Celeste as doze tribos de Israel têm um lugar de
destaque193. Sem querer supor que João tenha tido Mateus como fonte,
mas admitindo como possível uma influência de fonte comum, não seria
de admirar que Jesus a Pedro em Mateus 19, 28 reverberasse também
aqui. Sendo assim, com a aceitação da posição de destaque dos antigos
patriarcas, bem como dos novos apóstolos, teríamos uma explicação
para o número de tronos.
Ainda assim, uma explicação alternativa ao número de anciãos,
talvez não suficientemente considerada por Beale 194 e Corsini195, é a
coincidência entre o número de anciãos e o número das famílias
sacerdotais de 1 Crônicas 24, 4. O texto bíblico, ao descrever a divisão
das funções sacerdotais, o faz por famílias. Literalmente, todavia, as
considera na pessoa de seus chefes, ou, em grego, “ἄρχοντας τῶν
δυνατῶν”. Uma tradução poderia ser “chefes ou reis dos que têm poder”.
Assim, diante da informação lacônica de Daniel 7, sobre a presença de
muitos tronos, o autor de Patmos a preencheria com uma outra tradição,
cúltica e sacerdotal.
Ao final, pela análise do texto com seu pano de fundo
veterotestamentário, temos consciência de uma mensagem precisa: Deus
que se ocultara e passara a falar por profetas a partir da petição do povo

192
COLLINS. Apocalipse, p. 850, traz os tronos como uma novidade, não
pelo fato de existirem, mas por seus donos poderem se apresentar sentados
diante da divindade. A influência recolhida por ela é do zodíaco babilônico (o
número 24) e do senado romano. Conquanto sejam bastante plausíveis, nos
parece mais adequado ver o quadro todo em continuidade com a tradição
escriturística, uma vez que esta se mostra suficiente para explicar os elementos
selecionados por João.
193
Ap 21, 12.
194
BEALE. Revelation, p. 105.
195
CORSINI. op.cit, p. 142.
78

no Sinai, efetuava agora uma nova manifestação, por meio de Jesus


Cristo. Nele, os eventos escatológicos se cumprem, e por ele se tem
acesso a uma realidade que se encontra para além desta. A revelação de
Jesus Cristo196 tem como conteúdo as coisas que devem acontecer depois
destas197, dando continuidade à descrição dos eventos escatológicos de
Daniel 7, mas a partir de uma nova e definitiva manifestação do Deus da
Aliança. Assim, mais que uma indicação de sucessão cronológica de
eventos, a expressão de Apocalipse 4, 1 indica a realização definitiva de
uma mensagem de salvação, não entendida somente à luz da situação
concreta dos profetas de Israel (particularmente Daniel), mas que
remonta a algo anterior e muito mais intenso: o próprio Deus descendo
ao encontro de seu povo, para estabelecer com ele uma relação íntima de
aliança e de eleição.

6 APOCALIPSE 5

A visão do trono celeste continua, mas agora inicia-se de modo


decidido a ação no cenário descrito anteriormente. O Sentado no Trono
tem a iniciativa, ao ter em mãos um livro selado. Após um anjo indagar-
se sobre quem poderia abri-lo, há o choro do vidente e a consolação por
parte de um dos anciãos. A razão do consolo é que o Leão-Cordeiro, por
ter sido imolado, pode tomar em mãos o livro, abri-lo e lê-lo. A reação é
de louvor cósmico.
Como estabelecido, o propósito deste trabalho é a leitura do texto
de João em seu pano de fundo veterotestamentário, que passamos a
elencar. Em primeiro lugar, cabe notar que a continuidade com a visão
anterior nos permite associar o Sentado no Trono com o Ancião de
Muitos Dias198, dando a entrever a presença posterior de um outro ser,
correlato ao Filho do Homem. Além disso, há o livro selado, motivo que
também remonta a textos anteriores. Alguns, menos relevantes por
conterem menos elementos em comum são: Ezequiel 2, 9s, em que há o
rolo apresentado ao profeta para ser devorado199 (falta, aqui, o elemento
do selo, aparentemente muito importante na narrativa do Apocalipse);
196
Ap 1, 1.
197
Ap 4, 1.
198
Dn 7.
199
Corsini o lembra, mas parece-nos mais adequado ao capítulo 10.
CORSINI. op.cit, p. 145.
79

Ex 19 também se encontra no contexto da escrita de um livro de


procedência divina, a saber, o Código da Aliança, mas sua correlação
também parece duvidosa se considerados os selos, incompatíveis com a
ideia de documento de pacto; um outro texto, desta vez fora da Escritura,
é o mito babilônico de Enuma elish200, no qual a posse de um escrito, a
Tábua dos Decretos, dá um poder de ordem cósmica; embora ainda não
explique o elemento dos selos, nem tampouco a necessidade de que
alguém o pegue da mão do Sentado no Trono. Outros dois textos
parecem mais relevantes para compreender o elemento do livro. O
primeiro a que fazemos referência é Isaías 29, 11s.18. O texto
normalmente é visto como mais de uma perícope, pertencendo os
versículos 11 e 12 a um oráculo de condenação, e o versículo 18 a um
outro oráculo, de salvação. Também há que se considerar que os dois
usos, alegóricos, não fazem aparecer na narrativa um livro preciso, nem
tampouco há clareza de que se trate de duas ocorrências do verbete na
narração de uma única alegoria. Todavia, João não faz exegese rigorosa
dos textos antigos, de modo que seria possível entender que as profecias
incompreensíveis à Jerusalém pecadora de outrora estariam, agora,
acessíveis a todos, por causa da ação do Leão-Cordeiro.
A interpretação, porém, não deixa de ser insegura, merecendo,
portanto, mais atenção o recurso 201 a Daniel 12, 4.9. Primeiramente, não
seria surpresa encontrar mais uma alusão a Daniel, uma vez que, como
vimos, já houve apelo ao sonho de Nabucodonosor, à visão do Filho do
Homem, e à visão angélica de Daniel 10. Ora, ao final (seguindo de
modo razoavelmente acrítico a narrativa bíblica) de sua experiência
mística, e possivelmente próximo de sua morte, Daniel recebe o mandato
de selar sua profecia. Depois de anunciar uma grande tribulação, seguida
de ressurreição e juízo universais, num contexto escatológico bastante
claro, o profeta recebe o mandato de que seu livro fique inacessível por
selos até a consumação do tempo 202, ou o final do tempo 203. Isso
condicionaria a mensagem de Patmos, uma vez que a abertura do selo
desencadearia (como, de fato, desencadeia) a sequência dos eventos
tidos por finais, ou seja, catalisadores de uma decisão última de Deus
sobre a história humana. Como o Reinado de Deus se estabelece, em
Daniel204, por iniciativa absolutamente livre de Deus, sem qualquer
influência humana, seria admissível esperar que ninguém pudesse
200
CLIFFORD. The Roots…, op.cit., p. 16.
201
BEALE. Revelation, p. 109.
202
καιροῦ συντελείας, Dn 12, 4 TH.
203
καιροῦ πέρας, Dn 12, 9 TH.
80

realizar o desígnio de desselamento do livro, a não ser por um ato de


intervenção especial da divindade. Conquanto isso explique, por si só, a
postura de desespero do vidente de Patmos nos versículos 2-4, convém
que consideremos antes as outras vozes do AT que ressoam em
Apocalipse 5.
Quando é anunciada a João a presença do Leão de Judá, Raiz de
Davi, o que o vidente efetivamente percebe é uma realidade diversa: um
Cordeiro, em pé, como que imolado. Um detalhe é que o vocábulo
utilizado por João não é ἀμνός, ou πρόβατον, mas sim ἀρνίον, utilizado
quase que exclusivamente no Apocalipse. Conquanto isso dificulte a
relação com o AT, cabe notar que, além de Jeremias 11, 19 fazer uso do
mesmo nome para a “ovelha levada ao matadouro”, também Flávio
Josefo205 o emprega para com ele referir-se ao sacrifício pascal. Assim,
ainda que seja verdade que não ocorre em textos de ordem cúltica do
AT, a mentalidade judaica da época se referia ao cordeiro pascal com
esse termo. Sendo assim, um cordeiro imolado apresentado diante do
Templo, num ambiente que remete contextualmente à aliança do Sinai,
certamente faz ressoar aos ouvidos de alguém que conheça a
mentalidade judaica o sacrifício da passagem do Mar Vermelho. Um
cristão não teria dificuldades em entender que o Cordeiro fosse a pessoa
de Jesus, uma vez que é descrito como imolado em resgate dos seres
humanos, além de se apresentar de pé, ou seja, vivo. A referência à
ressurreição e o entendimento de sua morte como preço pago para
realizar o desígnio divino de salvação não seriam estranhas ao
pensamento da época. Basta lembrar que as tradições que se
cristalizaram no Novo Testamento se referem a Jesus como “Cordeiro de
Deus”206, bem como colocam sua Paixão em contexto pascal.
Não apenas temos uma referência a Jesus, mas também títulos
cristológicos aplicados. Enquanto este, do Cordeiro, é oriundo da
Aliança do Sinai, há também a Raiz de Davi e o Leão de Judá. A
existência de obras apocalípticas (os testamentos dos doze patriarcas,
judaicas cristianizadas, ou cristãs de origem, há controvérsia 207) que
associam a bênção de Jacó a seus filhos a um cumprimento escatológico
denunciam que se trata do descendente real de quem não se afastaria o

204
Dn 2, 34.44.
205
FLAVIUS JOSEPHUS. Antiguidades judaicas, 3, 251.
206
Jo 1.
207
HENZE, Matthias. Apocalypse and Torah in Ancient Judaism. – in:
COLLINS, The Oxford…, op.cit., cap. 18, p. 316.
81

cetro208, mas que também lava suas vestes no “sangue das uvas” 209, texto
retomado em Apocalipse 6, 9ss. Assim, o Leão de Judá, ainda que possa
se referir a uma figura que remeta à força e ao poder, antes aparenta se
tratar de um descendente régio (certamente forte e poderoso), mas
entendido de um modo inteiramente novo, uma vez que o texto da
bênção de Jacó é reinterpretado, não como manifestação de opulência,
mas como expressão da morte voluntária e expiatória. O mesmo
acontece com a Raiz de Davi. O texto aludido é Isaías 11, 1ss, que
também fala de um espírito septiforme, manifestado nos sete olhos e sete
chifres do cordeiro. A profecia, à qual já aludimos 210, se refere a um rei
justo e pacífico, dos tempos messiânicos, mas também traz à tona a
índole judicativa da realização dos finais desígnios de Deus.
Passando a outro elemento do texto, temos os louvores cantados
ao Sentado no Trono e ao Cordeiro. Embora haja distinção entre aquele
proclamado pelos anciãos, pela multidão de anjos e pelas demais
criaturas, cabe destacar sua designação como “cântico novo” (ᾠδή
καινή), que remonta aos Salmos211, bem como a Isaías212 e Judite213. É
questionável o acesso de João de Patmos ao livro de Judite, mas as
demais ocorrências veterotestamentárias da expressão cântico (ᾠδή,
ᾆσμα, ὕμνος) novo (καινός) apontam inequivocamente à reação da
assembleia diante de uma ação salvífica de Deus, o que é grandemente
coerente com o esperado. Particularmente, destacam-se os salmos 32 e
95, pelo ambiente cúltico que supõem, sendo muito adequados à
presente situação. Seja como for, certo é que a qualificação do louvor
como sendo “novo”, indica a ação de graças por uma especial
intervenção de Deus na história em favor de seu povo, que reconhece a
ação libertadora como gratuita e, por isso, dá graças e adora.
Novamente, embora não pretendamos estabelecer uma abordagem
sistemática sobre a doutrina da Trindade, tal como presente no
Apocalipse, cabe notar que o Cordeiro é associado ao Sentado no Trono
nos louvores que a este se proclamam. Sua posição na assembleia celeste

208
Gn 49 8-12.
209
Gn 49, 11.
210
uide p. 69.
211
Sl 32, 3; 39, 4; 95, 1; 97, 1; 143, 9; 149, 1.
212
Is 42, 10.
213
Jud 16, 13.
82

é central214, e o culto a ele destinado é de adoração aos pés215. Isso será


importante mais adiante216.
A razão apontada para o culto ao Cordeiro é sua redenção por
meio do sangue. Sendo assim, novamente temos um ambiente pascal.
Deus, outrora, salvara o povo por meio do sangue do cordeiro nas portas
e por meio do sangue de um outro cordeiro fizera com seu povo o pacto
da Aliança. O Cordeiro, aqui, é quem adquire 217 para Deus um povo. No
Sinai, o pacto foi estabelecido entre Deus e seu povo, como aqui,
novamente. Todavia, encontra-se aqui uma mediação: a do Cordeiro. Por
meio dele, não mais de um cordeiro, mas do Cordeiro, é que há a
constituição de um povo régio e sacerdotal 218. A antiga cláusula da
Aliança do Sinai219 ganha aqui uma nova dimensão.
Como vemos, o linguajar joanino no texto não é fortuito.
Conquanto sua mensagem seja uma radical novidade, expressa-se como
continuidade dos eventos ocorridos quando do Êxodo de Israel. Mais
que pretender estabelecer uma teologia sobre as hierarquias celestes,
parece-nos que o vidente de Patmos teve a intenção de, com uso retórico,
inserir o leitor em um ambiente que não somente recordasse, mas
trouxesse vivamente à tona a liturgia sinaítica, que fora evento fundante
de um povo e, agora, é pedra de toque para a compreensão do início de
um povo novo, mas não desvinculado do antigo. Não se trata,
propriamente, de uma releitura exegética dos textos antigos, mas da
inserção dos novos eventos em uma história que os precede e significa.
Portanto, a fácil identificação de Jesus com o Cordeiro o insere em um
ambiente inteiramente novo. Jesus de Nazaré, homem que viveu na
Galileia do século I, é visto como aquele que morreu e ressuscitou.
Todavia, novos e inauditos títulos lhe são atribuídos na profecia de
Patmos: Leão de Judá, Raiz de Davi, Cordeiro, e até mesmo Deus. O
evento da Cruz e da Ressurreição, ganha aqui uma interpretação à luz da
teologia da Aliança, e é apresentado claramente como evento redentor.
Assim, a morte cruenta, histórica e perceptível aos sentidos, ganha um
significado sobrenatural de uma comunidade que já percebe no profeta

214
Ap 5, 6; 3, 21.
215
Ap 5, 14.
216
uide p. 172.
217
Ap 5, 9.
218
Ap 5, 10.
219
Ex 19, 6.
83

de Nazaré um personagem que transcende qualquer qualificação


meramente humana.
Ainda uma última alusão a que o texto parece remontar é a visão
do Filho do Homem em Daniel 7. Beale220 e Collins221 percebem, cada
um a seu modo, similaridades no modo das relações entre o Ancião de
Muitos Dias e o Filho do Homem, e o Sentado no Trono e o Cordeiro.
Particularmente digna de nota é a observação de Collins, que relaciona
esses eventos com uma forma literária ainda mais antiga, a do mito de
combate. De fato, diante de uma situação calamitosa (as bestas em
Daniel 7 ou a suposta pelo choro de Apocalipse 5, 4), uma figura divina
associada à ancianidade delega o enfrentamento a uma divindade mais
nova. Ao radical monoteísmo, isso não deixou de ser impressionante 222,
como vimos acima. Mas, ainda assim, deve-se notar que, ao contrário
dos mitos mais antigos, não há grande volume textual voltado à
perplexidade e à impotência da assembleia divina. Deus, aqui, é
apresentado como senhor absoluto da situação, e sua decisão não é
tomada à pressão de um inimigo à altura. Aliás, até o momento, o
inimigo sequer foi apresentado.
Podemos concluir, até o presente momento, que uma comunidade
decididamente cristã esteja a refletir sobre uma final e decisiva
manifestação divina, que se dá por meio do estabelecimento de um pacto
de aliança. Sustentam essa tese as alusões à teofania do Sinai e à tradição
cultual do Templo, bem como aos textos que, relidos, ganharam cunho
messiânico, particularmente de Isaías, Ezequiel e Daniel. Isso não se faz
por meio de especulação, mas pela inserção de Jesus Cristo em uma
teologia mais antiga e tradicional.

7 APOCALIPSE 6, 1-8

O texto se refere à abertura dos quatro primeiros selos do livro


pelo Cordeiro. Alguns fatores os distinguem dos demais selos: i) maior
brevidade na apresentação; ii) motivos comuns de cavalo e cavaleiro; iii)
ação desencadeada pelo chamado dos seres vivos que estão ao redor do
220
BEALE. Revelation, p. 97.
221
CLIFFORD. The Roots…, op.cit., p. 7.
222
Talmude Babilônico, Chagigah, 14a:4-5. Disponível em: «https://
www.sefaria.org/Daniel.7.9?lang=bi&with=Talmud&lang2=en». Acessado em
12 jan. 2019.
84

Trono; iv) salvo pequenas alterações, os trechos delimitados pelos vv.


1.3.5.7 seguem um padrão bastante uniforme, textualmente223. Assim,
encontramos razões suficientes para analisar em particular essa perícope.
Ao investigarmos as alusões veterotestamentárias ocorrentes, três
elementos textuais chamam a atenção: i) a presença do Cordeiro e dos
quatro seres vivos; ii) a importância dada à ruptura dos selos pelo
Cordeiro; iii) os cavalos e os cavaleiros.
Como explanado anteriormente, o Cordeiro e os quatro seres
vivos remontam à Aliança do Sinai, feita por meio de epifania
cultualmente representada na tradição do Templo e da Arca da Aliança.
A ruptura dos selos, como também já visto, remete à realização dos
eventos escatológicos do livro de Daniel. E sua ocorrência simultânea e
correlata parece significar que a realização das profecias referentes aos
últimos tempos é iniciada pelo evento pascal de Cristo. Ou seja, porque
Jesus de Nazaré morreu e ressuscitou, está acessível o conteúdo do livro
outrora consignado por Daniel. Assim, o Reinado de Deus, objeto da
visão interpretada em Daniel 2, 44 tem seu início por iniciativa
puramente divina, ocasionada pela revelação ocorrida no Calvário. Até
aqui, não há, de fato, novidade, uma vez que isso já se entrevia nos
capítulos 4 e 5. Todavia, os cavalos e cavaleiros dão o modo do início
dessa realização.
Costuma não haver consenso quanto a sua interpretação. De fato,
notamos que os comentadores tendem a divergir, particularmente com
relação ao primeiro. Veja-se que Yarbro Collins 224, além de apresentar
teorias sobre os selos em geral, afirma que o cavaleiro branco representa
o exército parto. Corsini225 propõe que se trate de eventos relativos ao
passado, descrevendo a queda original por influência dos demônios, e
suas consequências. Vanni226, por outro lado, propõe que o cavaleiro
branco seja o próprio Cristo, pelo modo vitorioso como é apresentado.

223
O versículo 5 representa bem a fórmula padrão: “Καὶ ὅτε ἤνοιξεν τὴν
σφραγῖδα τὴν τρίτην, ἤκουσα τοῦ τρίτου ζῴου λέγοντος· ἔρχου. καὶ εἶδον, καὶ
ἰδοὺ ἵππος μέλας, καὶ ὁ καθήμενος”. O v. 1 apresenta uma descrição um pouco
mais detalhada, trazendo a informação sobre agente da ação de abrir os selos (o
Cordeiro), bem como sobre os seres vivos. O v. 7 carrega a palavra φωνὴν. E o
v. 4 substitui “εἶδον, καὶ ἰδοὺ” por “ἐξῆλθεν”. Importa, todavia, notar
similaridade vernacular muito grande nos textos que apresentam a ruptura dos
quatro primeiros selos.
224
COLLINS. Apocalipse, p. 851.
225
CORSINI. op.cit, pp. 151ss.
226
VANNI, Hugo. Apocalipse. São Paulo: Edições Paulinas, 1979, p. 54.
85

Por outro lado, busquemos, como propomos desde o princípio,


um critério de objetividade por meio da investigação dos ecos
veterotestamentários do texto. Enquanto Beale 227 propõe que o principal
pano de fundo para os selos todos seja Levítico 26, 18-28, referindo-se a
sete castigos, infligidos com intensidade crescente, parece-nos que outro
texto possa ser mais significativo. De fato, os três comentadores
apontam a Zacarias como referência que subjaz ao texto. Beale, aliás, o
utiliza para justificar que o primeiro cavaleiro seja portador de um
“caráter satânico”, o que nos parece um pouco exagerado.
Os argumentos a favor de que João faça ecoar o texto dos quatro
grupos de cavaleiros de Zacarias 6, 1-8 e Zacarias 1, 7-17 (Gr) são: i) a
referência a cavalos de quatro cores distintas 228; ii) o contexto de visão
revelatória comum aos dois textos, com mediação angélica; iii) a
procedência divina do mandato dos cavaleiros; iv) sua destinação a “toda
a terra”229; v) a pergunta pelo tempo da ação de Javé (“até quando”230).
Em um contexto mais amplo, ainda há coerência com a referência à
reconstrução do Templo231, e à ação de medi-lo232.
Passemos às considerações sobre a perícope do Apocalipse,
considerando o texto de Zacarias como seu interlocutor.
Zacarias 1, 7-17 traz uma mensagem favorável a Israel: Deus se
mostra cheio de compaixão para com Jerusalém e promete a
reconstrução do Templo233. Isso se relaciona com a ira voltada contra

227
BEALE. Revelation, p. 129.
228
Vejamos como isso ocorre mais explicitamente. Ainda que Zc 1, 8 (Heb)
traga somente três cores (‫ ָלָבן‬,‫ ָש ֹרק‬,‫)ָאֹדם‬, Zc 1, 8 (Gr) contém quatro (πύρρος,
ψαρός, ποικίλος, λευκός). O texto correlato de Zc 6, 2 (Heb) menciona quatro
cores, com coincidência de duas (‫ ָּבֹרד‬,‫ ָלָבן‬,‫ ָׁשֹחר‬,‫)ָאֹדם‬. Por sua vez, Zc 6, 2 (Gr)
também se serve de quatro cores, mas agrupando duas de Zc 1 e acrescentando
outra (πύρρος, μελάς, λευκός, ποικίλος ψαρός). É este último o texto seguido de
perto por Ap 6, que traz como cores: λευκός, πύρρος, μελάς, χλωρός (essa
última, geralmente é traduzida por verde, mas não de modo inequívoco, pois
pode significar “claro”, “esbranquiçado”, “pálido” ou “acinzentado”). Seja como
for, entre os comentadores, um dos poucos consensos é que há referência a
Zacarias.
229
Sobre isso, considerações à página 86.
230
Zc 1, 12; Ap 6, 10.
231
Ap 21 – 22.
232
Ap 11, 1.
233
Zc 1, 16.
86

aqueles que outrora foram vistos como instrumentos da cólera divina 234.
Todavia, os cavaleiros dos quatro grupos de cavalos, após terem
percorrido a terra, trazem a notícia de paz e tranquilidade. Em primeira
vista, isso poderia ser considerado como positivo ou reconfortante, mas
o texto apresenta logo a avaliação sobre a mensagem de paz: ela é razão
para que se indague até quando Deus deixará de ter compaixão para com
Israel235. De fato, embora siga a esse anúncio a promessa de salvação, o
fato é que a paz para os opressores em toda a terra significa, para os
oprimidos, a ausência da ação de Deus, diante da qual surge, em prece, a
mesma queixa que, em outro contexto, será apresentada pelos que
sofreram o martírio236. Segundo Carey237, é de se esperar que uma
audiência movida pela sensação de injustiça retrate seus sentimentos de
aguardo do juízo divino como sendo de vingança e, assim, não de paz,
como o que ocorria.
Isso começa a mudar em Zacarias 6, 1-8. Novamente, os
cavaleiros são enviados por Deus para percorrer toda a terra. Não se
encontram após um retorno, aqui, mas estão inquietos até que lhes seja
permitido partir. Recebem, então, a ordem de percorrer a terra 238.
Todavia, nenhuma ação é descrita. Em Apocalipse 6, 1-8, a mudança é
drástica. Os cavaleiros já não trazem notícias de paz, e nem tampouco
simplesmente percorrem a terra. Eles são enviados pelo próprio Deus
(pois quem rompe os selos é o Cordeiro, quem os chama são os seres
vivos do entorno do Trono de Deus, e foram-lhes dados 239 por Deus os
meios da execução de suas missões) e com uma incumbência que
poderia ser descrita, justamente, como retirar a paz da terra.
Podemos entender que a abertura dos selos implique que Deus
não mais se apresenta passivo diante das situações calamitosas de seu
povo.
Ao final, diz-se que “foi-lhes dado poder sobre a quarta parte da
terra240. O pronome αὐτοῖς pode se referir à morte e ao hades, ou então
234
Zc 1, 15.
235
Zc 1, 12.
236
Ap 6, 10.
237
CARAY. Early…, op.cit., p. 228.
238
Zc 6, 7.
239
Sobre isso, nota-se a presença do passivo divino nos verbos ἐδόθη (v.
2.4.8). Falta ao terceiro cavaleiro, a quem nada foi dado. Todavia, a
proclamação dos preços da carestia se encontra não na boca do cavaleiro, mas
de um dos seres vivos do Trono.
240
“ἐδόθη αὐτοῖς ἐξουσία ἐπὶ τὸ τέταρτον τῆς γῆς”, Ap 6, 8.
87

aos quatro cavaleiros. No primeiro caso, seria um flagelo terrível. No


segundo, indicaria uma limitação no poder dado aos cavaleiros. O
segundo caso seria suportado pela quádrupla adjetivação da morte 241.
Todavia, se essa asserção fosse referente aos quatro cavaleiros, caberia a
pergunta sobre que relação deveria haver entre as “feras da terra” e o
primeiro cavaleiro (pois, claramente, a espada seria relativa ao segundo
cavaleiro, a fome, ao terceiro, e a morte, ao quarto). Favoravelmente ao
primeiro caso (αὐτοῖς se refere à morte e ao hades), nota-se a ausência de
referência conjunta aos quatro cavaleiros, bem como o fato de que os
nomes masculinos mais próximos do pronome não são os dos cavalos ou
dos cavaleiros, mas, justamente, “ὁ θάνατος” e “ὁ ᾅδης”.
De um modo ou de outro, o que se percebe é que, mesmo que os
cavaleiros possam ser entendidos como “forças satânicas”, como afirma
Beale, certamente se encontram sob o domínio de Deus, e suas ações são
entendidas como início de uma ação salvífica. Nota-se que não há
menção de quem sofreria com a ação dos cavaleiros, de modo que não se
pode concluir, ao menos não imediatamente, se sua ação deve ser
entendida como castigo ou como provação242. Não há, também, qualquer
espécie de convite à conversão, nem tampouco informação sobre
mudança de vida ou perseverança, seja no mal, seja no testemunho de
Cristo. Assim, o que sobressai no texto é que o juízo de Deus, até então
contido, conforme percebemos pela referência a Zacarias 1, 7ss, passa à
execução, mesmo que fazendo uso de forças associadas ao sofrimento.

8 APOCALIPSE 6, 9-11

Os três versículos em questão retratam uma cena com vários


elementos: seguida à ruptura do selo, há visão das “almas/vidas dos que
foram imolados”. Eles clamam por vingança e recebem, além das vestes
brancas, a resposta que aguardem “um pouco” até que outros se lhe
ajuntem ao número. Por um lado, o clamor “até quando?” pode ser
atribuído à influência de Zacarias na perícope anterior 243. Por outro, a
mesma aclamação remete às orações que sobem como incenso, de

241
“ἐν ῥομφαίᾳ καὶ ἐν λιμῷ καὶ ἐν θανάτῳ καὶ ὑπὸ τῶν θηρίων τῆς γῆς”, Ap
6, 8.
242
Retomaremos o assunto à página 93.
243
uide p.85.
88

Apocalipse 8, 3. Além disso, as vestes brancas 244 também coincidem


verbalmente com as de 7, 9.13. Assim, percebemos marcações de
continuidade entre as narrativas da ruptura de cada selo.
Todavia, um elemento que aparece de repente é o altar, não
mencionado antes. Também surpreende que haja algo sob a ara. Caberia
a pergunta sobre que altar seria esse, e que significam as “almas/vidas”
que se encontram abaixo dele. Se houver identidade entre este altar e o
de 8, 3, por ambos estarem diante do Trono, então a composição áurea, a
posição e o uso indicariam tratar-se do altar dos perfumes, descrito em
Ex 30, 1ss. Sobre este, não se oferecia holocausto, mas apenas incenso e,
uma vez ao ano, o sangue pelo perdão dos pecados. A posição das almas
sob o altar poderia indicar, por um lado, presença constante diante de
Deus245. Por outro, poderia indicar uma identificação entre a oração
dirigida a Deus por aqueles que morreram e a oferta vespertina de
incenso246. Mas há ainda um outro fator: os que estão sob altar não
apenas foram mortos pela palavra, mas imolados. Ora, mesmo imolados,
ainda dirigem suas preces a Deus (ou seja, estão vivos) e, deste modo, se
apresentam com as mesmas características do Cordeiro247. A unicidade
do sacrifício cujo sangue seria derramado sobre o altar faz entender que
a oferta de sua imolação não é sacrifício próprio, como seria um
holocausto, mas participação do mesmo destino de Cristo. Aliás, sua
morte foi por causa da Palavra de Deus (λόγος του θεού), e dirigem-se
ao que é o Verdadeiro: ambos títulos de Jesus em Apocalipse 19, 11-13.
Portanto, o juízo escatológico iniciado com a ruptura do primeiro
selo, como concluímos a partir das alusões a Zacarias, continua, mas
ainda de um modo incompreendido. De fato, se os males do mundo – ou
seja, a retirada da paz que outrora significava inação de Deus – têm
acima de si o soberano poder de Deus, ainda é verdade que sua execução
não sacia a ânsia pela justiça divina, esperada por aqueles que por ela
sofreram. Inclusive, se nos quatro primeiros selos há flagelo indistinto,
desta vez, se trata da descrição de um mal que atinge somente aos justos.
Todavia, mesmo mortos, eles clamam, como Abel, o primeiro justo a
perecer, cujo sangue clama eloquentemente ao céu 248. Assim, embora,
todos aqueles que injustamente foram imolados (como Abel) tenham

244
Ap 6, 11.
245
Ex 30, 8.
246
Sl 140, 2.
247
Ap 5, 6.
248
Gn 4, 10.
89

suas vidas diante de Deus249, que as recebe qual sacrifício sobre o altar, a
verdade é que não se realizou ainda a consumação da fidelidade
esperada. Ainda resta que se levantem, e se realize sua vingança sobre os
que estão sobre a terra250.

9 APOCALIPSE 6, 12-17

À abertura do sexto selo, corresponde um texto de colorido


extremamente expressivo, oriundo de vários trechos do AT, como segue:

249
Sb 3, 1.6.
250
Sb 5, 1; Ap 6, 10.
90

Ap 6, 12-17 LXX

12
Καὶ εἶδον ὅτε ἤνοιξεν τὴν καὶ ὁ ζῆλός μου ἐν πυρὶ τῆς ὀργῆς
σφραγῖδα τὴν ἕκτην, καὶ σεισμὸς μου ἐλάλησα εἰ μὴν ἐν τῇ ἡμέρᾳ
μέγας ἐγένετο ἐκείνῃ ἔσται σεισμὸς μέγας ἐπὶ γῆς
Ισραηλ (Ez 38, 19)

ὁ ἥλιος μεταστραφήσεται εἰς σκότος


καὶ ὁ ἥλιος ἐγένετο μέλας ὡς καὶ ἡ σελήνη εἰς αἷμα πρὶν ἐλθεῖν
σάκκος τρίχινος καὶ ἡ σελήνη ὅλη ἡμέραν κυρίου τὴν μεγάλην καὶ
ἐγένετο ὡς αἷμα ἐπιφανῆ (Jl 3, 4; uide 2, 10; 4, 15)
13
καὶ οἱ ἀστέρες τοῦ οὐρανοῦ καὶ πάντα τὰ ἄστρα πεσεῖται ὡς
ἔπεσαν εἰς τὴν γῆν, ὡς συκῆ βάλλει φύλλα ἐξ ἀμπέλου καὶ ὡς πίπτει
τοὺς ὀλύνθους αὐτῆς ὑπὸ ἀνέμου φύλλα ἀπὸ συκῆς (Is 34, 4b)
μεγάλου σειομένη,
καὶ ἑλιγήσεται ὁ οὐρανὸς ὡς βιβλίον
14
καὶ ὁ οὐρανὸς ἀπεχωρίσθη ὡς (Is 34, 4a)
βιβλίον ἑλισσόμενον

καὶ πᾶν ὄρος καὶ νῆσος ἐκ τῶν


τόπων αὐτῶν ἐκινήθησαν.
15
Καὶ οἱ βασιλεῖς τῆς γῆς καὶ οἱ
μεγιστᾶνες καὶ οἱ χιλίαρχοι καὶ οἱ
πλούσιοι καὶ οἱ ἰσχυροὶ καὶ πᾶς καὶ νῦν εἰσέλθετε εἰς τὰς πέτρας καὶ
δοῦλος καὶ ἐλεύθερος ἔκρυψαν κρύπτεσθε εἰς τὴν γῆν ἀπὸ προσώπου
ἑαυτοὺς εἰς τὰ σπήλαια καὶ εἰς τὰς (…) εἰσενέγκαντες εἰς τὰ σπήλαια
πέτρας τῶν ὀρέων (…) ἀπὸ προσώπου (…) (Is 2, 10.19)
16
καὶ λέγουσιν τοῖς ὄρεσιν καὶ ταῖς καὶ ἐροῦσιν τοῖς ὄρεσιν καλύψατε
πέτραις· πέσετε ἐφ᾽ ἡμᾶς καὶ ἡμᾶς καὶ τοῖς βουνοῖς πέσατε ἐφ᾽
κρύψατε ἡμᾶς ἀπὸ προσώπου τοῦ ἡμᾶς (Os 10, 8)
καθημένου ἐπὶ τοῦ θρόνου καὶ ἀπὸ
τῆς ὀργῆς τοῦ ἀρνίου,
17
ὅτι ἦλθεν ἡ ἡμέρα ἡ μεγάλη τῆς διότι μεγάλη ἡ ἡμέρα τοῦ κυρίου
ὀργῆς αὐτῶν, καὶ τίς δύναται μεγάλη καὶ ἐπιφανὴς σφόδρα καὶ τίς
σταθῆναι; ἔσται ἱκανὸς αὐτῇ (Jl 2, 11)

5. Paralelos entre Ap 6, 12-17 e diversos textos da


LXX
91

Há um abalo de grandezas cósmicas, e que se manifesta em cinco


elementos (terra, sol, luz, estrelas e céu), sentido por cinco categorias de
pessoas (reis da terra, magnatas, chefes militares, ricos e poderosos),
fazendo lembrar Isaías 24, 21. Às séries de cinco, seguem-se expressões
de totalidade: tudo é movido de seu lugar251, todos buscam um lugar para
esconder-se da face do Sentado no Trono e do Cordeiro252.
Notemos que, ao longo dos seis selos anteriores, havia a presença
do mal no mundo, sob o controle, todavia, de Deus. Paradoxalmente, não
somente o poder de Deus está acima dessas grandezas, como também as
tornam instrumento de um juízo que, ao fim, resultará em salvação para
os fiéis, uma vez que o ápice das dores, diante do qual tudo é abalado,
também é o Grande Dia da Ira [do Sentado no Trono e do Cordeiro]. De
fato, a paz da terra já fora tirada (1º a 4º selos), como vimos, em um
sentido de juízo vindicativo em vias de andamento. Todavia, os justos
ainda indagavam “até quando” (5º selo) Deus toleraria a situação da
opressão e morte dos justos. O tempo breve que lhes foi anunciado já se
passou, e a ação definitiva de Deus já se cumpre, e toda a realidade está
implicada em sua efetivação. Isso porque já chegou o grande dia da ira
de Deus, Sentado no Trono e Cordeiro253.
Ora, o texto é um mosaico de referências veterotestamentárias.
Apenas a lista dos atingidos pelo juízo, bem como os nomes dos
personagens Sentado no Trono e Cordeiro, não são hauridos de escritos
precedentes. Todo o restante do texto é uma costura de outros anteriores
que, por multiformes que sejam, têm um elemento em comum: dizem de
um dia do Senhor, grande dia de sua ira, em que Deus se mostra
indignado não contra os verdadeiros filhos de Israel, mas contra as
nações inimigas e contra a idolatria.
Elencando as alusões, percebemos que o autor traz à mente de
seus ouvintes o imaginário simbólico e afetivo decantado ao longo da
experiência de leitura das profecias de Ezequiel 38, Joel, Isaías 2;34, e
Oséias 10. Sobretudo, por volume textual, é intenso o uso de Joel, mas
indiretamente também podemos entrever influência de Sofonias 1, 14ss.
Para que possamos fazer aflorar a carga conceitual acumulada com esses
textos, tragamo-los à tona.

251
καὶ πᾶν ὄρος καὶ νῆσος ἐκ τῶν τόπων αὐτῶν ἐκινήθησαν, Ap 6, 14.
252
πᾶς δοῦλος καὶ ἐλεύθερος ἔκρυψαν ἑαυτοὺς, Ap 6, 15.
253
ἦλθεν ἡ ἡμέρα ἡ μεγάλη τῆς ὀργῆς αὐτῶν, Ap 6, 17.
92

Segundo Erich Zenger254, tema central do livro todo de Joel é


especificamente o Dia de Javé, todavia, este próprio trabalhando material
recebido de tradição profética anterior, sobretudo as pragas do Egito e as
profecias Naum, Habacuque e Abdias. Diante do sofrimento de Israel,
esse profeta (possivelmente redacional) haure das escrituras uma
compreensão de que os fatos presentes são andamento de um juízo
definitivo de Deus que salva seu povo. Sendo assim, até mesmo as
tragédias ocorrentes quando de sua redação são vistas em perspectiva
soteriológica, manifestando um desígnio final de libertação e redenção.
Em continuidade com esse escrito, o autor de Patmos acrescenta a
referência a Oseias, que denuncia as falsidades e a idolatria do próprio
Israel. Ora, aqueles em cujos lábios é colocada a súplica aos montes de
que caiam sobre si são justamente os que anunciam o Dia da Ira e,
portanto, mesmo sob a máscara da religiosidade, estão cientes do que
faziam, não ignorando que seus bens (notemos que as cinco categorias
de pessoas citadas em Apocalipse 6, 15 são socialmente prestigiosas) são
fruto de uma situação injusta, hauridos às custas daqueles que
perguntaram “até quando?”. Esse aspecto da mensagem é notado
também no eco de Sofonias 1, 14ss, onde o Dia de Javé, visto como
iminente, é anunciado à universalidade. Diante dele, qualquer força
humana será inoperante.
Por fim, o uso de Ezequiel 38, bem como dos textos de Isaías 2 e
Isaías 34 retomam a índole escatológica do juízo. Particularmente
Ezequiel 38 e Isaías 34 têm esse caráter, descrevendo um juízo
escatológico não contra uma grandeza sociológica propriamente dita,
mas contra um ícone do Mal, ou seja, Gog e Magog (que serão
retomados ao longo do livro) ou contra a totalidade da existência oposta
ao Deus da Vida. Em outras palavras, trata-se de um julgamento divino
sobre tudo e todos que, opondo-se ao desígnio de Deus, promovia na
terra a opressão de seus filhos.
Isso não mais é simples anúncio, mas andamento presente.

254
ZENGER, Erich. O livro dos Doze Profetas. – in: AA.VV. Introdução
ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003. cap. VIII, p. 473.
93

10 APOCALIPSE 7, 1-8

O juízo escatológico de Deus, em andamento, agora parece


protelado255, uma vez que os executores de tal ação vindicativa são
segurados por quatro anjos. A cena se desenvolve, então, sob a marca da
expectativa, uma vez que essa demora é claramente um sinal da
seletividade de Deus quando de seu julgamento. Antes que algo seja
feito, é necessário marcar a fronte dos servos de Deus.
O texto já não é como a perícope anterior, composta quase que
inteiramente de recortes do AT. Todavia, há um pano de fundo
veterotestamentário a ser explorado.
Ezequiel 9 é um texto cuja semelhança com esta perícope salta
aos olhos. Como vimos, desde o capítulo 4, o ambiente em que se
encontra João é litúrgico, o Templo Celeste, do qual o Templo de
Jerusalém, no qual se encontrava em visão o profeta Ezequiel, é cópia.
Ambos estão diante da Glória de Deus, apresentando-se de modo a
mostrar a atitude de um juízo iminente, retardado apenas brevemente,
entretanto, para que haja uma assinalação. Ou seja, os executores da ira
de Deus estão sob a autoridade de um outro ser com função escribal,
portando efetivamente instrumentos de escrita256.
Um outro pano de fundo nos ajudará a efetivar o que dissemos na
nota de rodapé 242. Para Beale257, os quatro anjos encarregados de
danificar o mundo existente258 se identificam com os quatro ventos do v.
1. Esta afirmação é por ele sustentada por meio do eco textual de
Zacarias 6, 5, já aludido anteriormente ao falarmos dos quatro
cavaleiros. Com efeito, o profeta Zacarias pergunta a seu guia nas visões
proféticas quem seriam os quatro cavaleiros, recebendo como resposta
serem os “quatro ventos do céu” 259.
Argumento contra essa identificação é que João simplesmente não
a faz. Todavia, supondo que o autor realmente tomasse a sério (o que
255
Ap 7, 1.
256
Em Ezequiel (heb), este ser utiliza como marca distintiva dos que
desaprovaram as abominações de Jerusalém um ‫( ָּתו‬tau), que, no alfabeto
hebraico antigo, era grafado semelhantemente a uma cruz. A versão grega nada
traz sobre isso, traduzindo essa mesma palavra por σημεῖον (sinal).
257
BEALE. Revelation, p. 143.
258
Ap 7, 2.
259
ταῦτά ἐστιν οἱ τέσσαρες ἄνεμοι (‫ֻר ֣ח ֹות‬, heb) τοῦ οὐρανοῦ ἐκπορεύονται
παραστῆναι τῷ κυρίῳ πάσης τῆς γῆς. (Zc 6, 5).
94

nos parece mais que plausível) que seu texto seja escrito não somente
com termos veterotestamentários, mas por meio de conceitos e alusões
ao Texto Sagrado, poderíamos efetivamente considerar a possibilidade
de tal identificação. Sendo assim, utilizando como parâmetro Ezequiel
9260, a praga indistinta anunciada sobre um terço da terra no capítulo 6
seria, então, destinada apenas aos que não foram assinalados na fronte.
Ou seja, os servos de Deus seriam poupados, o que faz ecoar também a
última das pragas do Êxodo, na qual a marca de servidão a Javé fez com
que o exterminador passasse adiante.
O paralelismo, portanto, entre a assinalação do Apocalipse e a de
Ezequiel (vendo também os quatro ventos como operadores da cólera
divina) parece fazer entender que as ações divinas de hoje, além de
plenificação das de outrora, têm a mesma finalidade. O Deus que, por
ser fiel a si mesmo, deixou seu Templo e puniu aqueles com os quais
celebrara Aliança, o fez não de modo indiscriminado, mas cuidadoso,
para que não fossem vítimas de sua ira aqueles que foram fiéis à
promessa de amor. Esse mesmo Deus atua hoje e, portanto, suas
promessas de libertação. Se o faz, é apenas temporariamente, pois é
necessário separar o trigo do joio261.
Novidade com relação a Ezequiel e Zacarias é a enumeração dos
assinalados.
Vanni262 vê a lista em relação ao povo da Antiga Aliança,
entendendo a imensa multidão da perícope seguinte como o povo da
Nova Aliança. Conquanto essa identificação possa ser feita, parece-nos
mais adequada a consideração de Yarbro Collins 263, que vê os
assinalados não como sendo do Israel étnico, mas do Novo Israel, uma
grandeza teológica maior que o judaísmo. Sendo assim, seria possível
que a multidão assinalada (e não vista, pois João apenas ouve seu
número) seja a mesma que carrega palmas às mãos e veste branco em
Apocalipse 7, 9. Sobre isso, veremos adiante.
Independente da afirmação ou não de identidade entre assinalados
e os alvamente indumentados, surgem elementos a explicar: por que a
lista das doze tribos, e por que a ausência da tribo de Dan.
260
Importa este texto para a conclusão que segue porque Ap 7 não menciona
explicitamente que os assinalados na fronte seriam poupados de qualquer um
dos flagelos descritos, conquanto deixe entender essa função simplesmente pelo
ato de marcar adiar a punição, em Ap 7, 3.
261
Mt 13, 24ss; 2Pd 3, 9ss.
262
CORSINI. op.cit, p. 170.
263
COLLINS. Apocalipse, p. 852.
95

A enumeração tribo a tribo faz lembrar os censos de Israel. Afora


o modo mais sintético de escrever e os números redondos, Apocalipse 7,
5-8 tem a estrutura de Números 1, 20ss. A semelhança semântica
também é notável, aliás.

Ap 7, 5-8 Nm 1, 20ss

ἐκ φυλῆς Ἰούδα δώδεκα χιλιάδες ἐκ τῆς φυλῆς Ρουβην ἓξ καὶ


ἐσφραγισμένοι, τεσσαράκοντα χιλιάδες καὶ
πεντακόσιοι
ἐκ φυλῆς Ῥουβὴν δώδεκα χιλιάδες, (…)

ἐκ φυλῆς Γὰδ δώδεκα χιλιάδες, ἐκ τῆς φυλῆς Συμεων ἐννέα καὶ


πεντήκοντα χιλιάδες καὶ τριακόσιοι
ἐκ φυλῆς Ἀσὴρ δώδεκα χιλιάδες, (…)
(…)

6. Paralelo entre Ap 7, 5-8; Nm


1,20ss
Essa identificação traz à tona considerações sobre um contexto
militar, como nota Bauckham264. De fato, a realização definitiva da
salvação esperada se dará com uma batalha escatológica, e os
contentores são apresentados, em Apocalipse 17, 14 como inimigos do
Cordeiro. Tal ordem de armada, todavia, está, no livro de Números, no
contexto do deserto, indicando cumprimento já realizado, mas não pleno,
de uma promessa cujo penhor se tem de modo permanente e inequívoco.
Notemos que, conquanto já se houvesse operado a saída do Egito, a
posse da Terra ainda não era real neste contexto. Assim também, o
Cordeiro já é vencedor e, podemos intuir, também os assinalados o são.
Mas a associação definitiva à vitória ainda está por vir.
Um elemento que corrobora essa interpretação é a pouco usual
ordem, que não começa por Rubem (o filho mais velho), mas por Judá,
tribo davidida. A contrário do que pareceria a um leitor desatento da
Torá, as eleições futuras não recaem sobre José ou sobre Levi, mas sobre
Judá265. Ora, no capítulo 5, a figura do salvador escatológico é anunciada
264
BAUCKHAM. Revelation, p. 1294.
265
Importa pouco à exegese do Apocalipse a razão disso, que sem
dificuldades pode ser imputada à legitimação escriturística da dinastia de Davi,
bem como a eleição de Aarão entre os levitas pode ser utilizada para dar suporte
ao sacerdócio sadocita.
96

como “Leão de Judá”266. Não choca, portanto, que o elenco das doze
tribos inicie justamente por esta.
Por fim, a tribo faltante de Dã pode se explicar pela tradição de
imputar-lhe infidelidade no AT267, bem como pela avaliação negativa
feita em Gênesis 49. Esse é outro fator que aponta não para Israel étnico,
mas para um Novo Israel, totalmente fiel e depurado, autenticamente
servo de Deus268.
O que se antevê é que há iminência de uma intervenção divina
definitiva. As antigas promessas de salvação estão para cumprir-se e, sob
certo sentido, já se cumpriram, bastando apenas que haja uma última
intervenção divina, uma autorização para ação. A vitória é certa. Resta
esperar e manter-se fiel, mesmo em meio às tribulações.

11 APOCALIPSE 7, 9-17

Após ter ouvido o número da multidão, João de Patmos tem uma


visão, justamente, de uma multidão, que não se sabe ser a mesma ou
outra distinta da anterior (sobre isso, versaremos abaixo). Seja como for,
esta multidão se apresenta no mesmo cenário cúltico em que o vidente se
encontrava, com a função laudatória própria dos seres da corte celeste, à
qual se ajuntam. São os provenientes da “grande tribulação” e deles são
ditas promessas.
A identidade, como dissemos, desse grupo é discutida. Vanni269,
Vanni e Yarbro Collins271 defendem que esta multidão é distinta do
270

grupo dos 144.000. Bauckham272 e Beale273 entendem-nos como iguais.


Os argumentos a favor da distinção são: i) o relato do versículo 9 inicia
com “Μετὰ ταῦτα εἶδον, καὶ ἰδοὺ”, que pode ser marca distintiva de
sucessão temporal; ii) há oposição notória entre as duas multidões (uma
é numerada, outra não; uma é de Israel, outra é de todas as nações).

266
Ap 5, 5.
267
Jz 18; 1Cr 4 – 7.
268
Ap 7, 3.
269
VANNI. op.cit, p. 58.
270
CORSINI. op.cit, p. 170.
271
COLLINS. Apocalipse, p. 853.
272
BAUCKHAM. Revelation, p. 1294.
273
BEALE. Revelation, p. 154.
97

Contrariamente, se poderia defender que: i) mesmo que haja


imposição de tempo narrativo, este uso de μετὰ ταῦτα não implica
mudança de personagens; ii) esta oposição não é rara no Apocalipse,
ocorrendo, aliás, em um ponto razoavelmente correlato, em Apocalipse
5, 5.6, quando se anuncia o Leão e vê-se o Cordeiro.
Particularmente esse último argumento parece relevante, uma vez
que à multidão dos 144.000, que poderíamos dizer em ordem de batalha
e seguindo o Leão de Judá, corresponderia a multidão vitoriosa dos
mártires (oriundos da tribulação) seguidores do Cordeiro. A própria não
identificação dos 144.000 com o Israel étnico, ao passo que reforça essa
tese, também é reforçada justamente pelo padrão recorrente de ouvir a
descrição274 para, em seguida, ver algo distinto275.
Todavia, como nos propomos, busquemos no pano de fundo
veterotestamentário uma ulterior elucidação do texto. Elenquemos os
textos na ordem em que aparecem as alusões.
É consenso entre os comentadores que a multidão inumerável
ecoe as promessas de bênção a Abraão. Ora, a descendência de Abraão
era, de fato, vista como impossível de enumeração 276. Ela seria
instrumento de bênção a todas as famílias da terra 277. Isso, encontrando
cumprimento escatológico, faz entender que a multidão de salvos em
toda a terra é uma grandeza teológica superior ao Israel étnico,
compondo um Novo Israel, descendência verdadeira e plena de Abraão.
Este grupo veste branco278 e tem palmas nas mãos279. O termo
στολή, conquanto signifique de modo genérico vestido/túnica (e também
exército, significado inviabilizado pelo uso, mas coerente com a ideia de
identificação com a multidão anterior), tem, contudo, um uso muito
particular na Torá. Sua ocorrência no Pentateuco, de fato, se dá em
número de 42 vezes. Destas, apenas 1 se dá em contexto decididamente
profano. Há 1 vez em que o termo se diz das vestes de Esaú vestidas por
Jacó (conquanto ainda seja profano o uso, está em cena intimamente
relacionada à promessa). No número absolutamente maior das vezes
(38/42), este é termo reservado às roupas sacerdotais, geralmente de
Aarão, mas também de seus filhos. Ora, a nação dos salvos é sacerdócio

274
Ap 5, 5; 7,4.
275
Ap 5, 6; 7, 9.
276
Gn 15, 5.
277
Gn 12, 3.
278
περιβεβλημένους στολὰς λευκὰς.
279
φοίνικες ἐν ταῖς χερσὶν.
98

régio oriundo de toda tribo, língua, povo e nação 280, e isso é reafirmado
por meio de uma indumentária cúltica no ato litúrgico diante do Trono
de Deus. Se outrora o sacerdócio em sentido estrito era sadocita,
reservado a uma família dentre as levíticas, agora aqueles que reinam
com Cristo (reinam porque são o exército de seu combate escatológico)
apresentam-se eles mesmos como sacerdotes.
Suas vestes são brancas porque alvejadas em sangue, o sangue do
Cordeiro281. Não espanta essa afirmação a alguém acostumado com a
ideia do sacrifício vicário na cruz. Todavia, essa frase também ecoa um
texto caro à apocalíptica282, o testamento de Jacó. De fato, em Gênesis
49, 11, Judá é visto como alguém que lava as vestes em vinho.
Lembremos, entretanto, que o texto da LXX traz vinho por sangue de
uvas283. Novamente, dado o paralelismo em que o Cordeiro está para o
Leão assim como a multidão de sacerdotes (estes, vestidos de branco)
está para o exército (144.000), não surpreende que tal identificação surja.
Aqueles que desempenham função sacerdotal escatológica são os que se
tiveram santificado não por meio de sangue de animais, mas por meio da
participação no sacrifício de Cristo. A “grande tribulação”, portanto,
ganha sentido de ingresso em uma liturgia celeste que, paradoxalmente,
teve seu início na Cruz.
Um detalhe importante desse eco é que a própria multidão, além
de vestida de sacerdócio (régio porque acompanhando seu rei), tem a
origem da alvura de suas roupas idêntica à daquele que seguem. Por um
lado, a leitura atenta faz perceber a dramática situação daqueles que
podem dar seu sangue para seguir o Cordeiro. Por outro, a dignidade
mesma dos integrantes dessa multidão está atrelada à participação no
mesmo sacrifício que fez com que o Cordeiro pudesse abrir os sete selos.
Aliás, podemos dizer que essa mesma multidão, elemento atuante no
cenário cúltico celeste284, já não brada “até quando?”, mas festeja a
definitiva intervenção divina na história.
A última, ainda não refletida, ocorrência de στολή na Torá se
refere a um versículo penitencial. Ex 33, 5 é a única vez em que há
280
Ap 5, 9s. Fora a ordem, a terminologia é idêntica: ἐκ παντὸς ἔθνους καὶ
φυλῶν καὶ λαῶν καὶ γλωσσῶν (Ap 7, 9).
281
Ap 7, 14.
282
Note-se que a presença de obras apocalípticas intituladas Testamentos
dos doze patriarcas indica sua real importância a essa corrente de pensamento.
283
πλυνεῖ ἐν οἴνῳ τὴν στολὴν αὐτοῦ καὶ ἐν αἵματι σταφυλῆς τὴν περιβολὴν
αὐτοῦ (Gn 49, 11).
284
Ap 6, 9-11.
99

despojamento de vestes, em virtude do pecado. Justamente por estarem


alvejadas as vestes, podemos entender que já não há a realidade do
pecado para aqueles que as têm.
Estes que portam tal indumentária também carregam consigo,
como dissemos, palmas nas mãos. O significado deste detalhe é
altamente discutido. Enquanto alguns285 simplesmente lhe atribuem um
sentido de vitória, outros especulam uma outra significação. Beale 286 e
Prigent287 pensam na possibilidade de associá-lo à Festa das Tendas288.
Não propomos uma solução definitiva à questão, mas cabe notar
que Levítico 23, 40 de fato insere o elemento das palmas como objeto
cerimonial popular da Festa dos Tabernáculos. Se este for, de fato, o
caso, caberia a indagação sobre a possibilidade exegética a partir deste
pano de fundo. Parece-nos que a cultura judaica289 identificou a
ocorrência da primeira dedicação do Templo 290 com esta festa. Esse tipo
de consideração se apresenta significativo, uma vez que há uma grande
quantidade de elementos confluentes: após o Yom Kippur, faz-se a Festa
das Tendas, ou seja, após a cerimônia em que tudo (todo o povo, e até
mesmo o Santuário291) é purificado para que Deus possa habitar no meio
de Israel, aí é que se realiza a entronização da Arca no Templo que
Salomão construíra. Este edifício, ao mesmo tempo em que é realização
estável da cópia do Templo Celeste efetuada por Moisés, também tem
sinal de permanência292 e perenidade. Ora, por meio de uma purificação
ritual do povo e do local sagrado, Deus passa a fazer nele sua habitação.
De modo semelhante, porém mais intenso (e em sentido inverso), o povo
purificado pelo sangue do Cordeiro293, vestindo indumentária sacerdotal,
agora entra ele mesmo diante de um Templo que já não é cópia das

285
CORSINI. op.cit, p. 172, BAUCKHAM. Revelation, p. 1294,
COLLINS. Apocalipse, p. 853.
286
BEALE. Revelation, p. 156.
287
PRIGENT. op.cit, pp. 146-7.
288
Prigent, todavia, conclui negando, não tanto esta associação, mas as
razões apontadas para efetuá-la.
289
FLAVIUS JOSEPHUS. Antiguidades judaicas, 8, 99ss.
290
1Rs 8.
291
Lv 16.
292
São várias as passagens que denotam a esperança de que esta construção
seria definitiva. Por exemplo, 1Rs 8, 13.
293
Ap 7, 14.
100

realidades celestes, mas a própria realidade 294. Sendo assim, ainda que,
como protesta Prigent295, não haja indício claro no judaísmo do século I
de que a Festa das Tendas fosse tal que tivesse um caráter de esperança
escatológica, sua inserção cronológica quando da dedicação do primeiro
Templo, se não nos habilita a fazer ecoar o texto veterotestamentário, ao
menos faz com que não sejamos impedidos, uma vez que fornece outra
linha argumentativa pela qual possamos sustentar esta afirmação.
Notemos que, se supusermos que as palmas às mãos façam
recordar a entrada festiva de Deus no Templo, ou, no caso, a entrada
festiva da assembleia no Templo Definitivo, entendemos o porquê dos
elementos cúlticos presentes na perícope, tais como os hinos dos vv.
10.12, bem como com a ideia de que o Sentado no Trono estende sobre
seu povo a sua tenda296.
Por fim, esse cortejo triunfal que adentra no coro celeste é
compatível com as demais referências ao Texto Sagrado. Notemos que
as promessas dos vv. 16s são hauridas de Isaías 49, 10; 25, 8; Salmos 22,
2. Os trechos de Isaías se referem especificamente à peregrinação
escatológica de todos os povos, que afluirão a Jerusalém para prestar
culto a Deus. O Salmos 22, conquanto não pareça, a princípio,
concernente a esse tema, traz em seu final uma abertura à vida perene,
justamente pela habitação na casa de Deus297.

12 APOCALIPSE 8, 1-5

O cordeiro abre o selo. Segue-se um silêncio e, em seguida, um


ato que é, simultaneamente, de solene proclamação e grande liturgia: há
sete trombetas, e uma oferenda de incenso que termina com um turíbulo
lançado à terra. O resultado parece cataclísmico: trovões, vozes,
relâmpagos e terremoto.
Aqui cabe uma nota sobre as interpretações correntes. Alguns
exegetas, ao se depararem com semelhante decepção298, entendem que se

294
Hb 9, 24ss.
295
PRIGENT. op.cit, p. 147.
296
Ap 7, 15.
297
Sl 22, 6.
298
Sim, à nossa cultura, não se esperaria um silêncio quando da ruptura do
último dos selos, e sim um desfecho da história.
101

trata de um elemento de ênfase litúrgica 299, outros, cada qual a seu modo,
veem como uma visão cronológica da história, com o fim da Antiga
Aliança e o início da Nova300. Há ainda quem exclua completa e
explicitamente a hipótese de sucessão cronológica301. E há quem, sem
sequer mencionar o problema da presença ou ausência de cronologia,
atribui ao silêncio um significado psicológico de expectativa 302.
Conquanto tenha a tendência de atribuir exageradamente personagens
(ou, ao menos, tempos) concretos aos eventos descritos no Apocalipse,
Beale303 é o que mais destaca a importância veterotestamentária como
pano de fundo ao texto. Todavia, ao apontar alguns textos como chave
hermenêutica, sobretudo para Apocalipse 8, 1, o faz de modo
questionável.
Não espanta, com efeito, que justamente neste ponto do texto haja
grande dissenção entre os comentadores. Aqui termina 304 o setenário dos
selos e inicia-se o setenário das trombetas, e o modo de interpretar este
versículo acaba por influenciar no modo de estruturar, portanto, o livro
todo. Sendo assim, importa sobremaneira que, particularmente aqui –
por fidelidade à proposta inicial – percebamos se há algum tipo de
alusão ao Texto Sagrado.
O primeiro eco do AT, percebido por Beale e negado por Prigent
é a presença dos textos de Habacuc 2, 20; Sofonias 1, 7; Zacarias 2, 17.
Não havendo consenso entre os comentadores se estes textos são ou não
correlatos de Apocalipse 8, 1, e sendo esta análise razoavelmente
complexa, convém que comparemos todos os quatro versículos e
analisemos os argumentos contra e a favor da afirmação de que João de
Patmos tinha em mente algum destes versículos quando da escrita do
Apocalipse.

Ap 8, 1 Hab 2, 20 Sf 1, 7a Zc 2, 17

299
VANNI. op.cit, p. 59, BAUCKHAM. Revelation, p. 1294.
300
É o caso de CORSINI. op.cit, p. 173-5.
301
PRIGENT. op.cit, p. 154.
302
COLLINS. Apocalipse, p. 854.
303
BEALE. Revelation, p. 164.
304
Supondo, evidentemente, que o setenário das trombetas não esteja
incluído todo no sétimo selo. Não importa, por enquanto, esse tipo de
consideração. Dessa reflexão nos ocuparemos adiante, à página 186.
102

Καὶ ὅταν ὁ δὲ κύριος ἐν εὐλαβεῖσθε ἀπὸ εὐλαβείσθω


ἤνοιξεν τὴν ναῷ ἁγίῳ αὐτοῦ προσώπου πᾶσα σὰρξ ἀπὸ
σφραγῖδα τὴν εὐλαβείσθω ἀπὸ κυρίου τοῦ θεοῦ προσώπου
ἑβδόμην, προσώπου αὐτοῦ διότι ἐγγὺς ἡ κυρίου διότι
ἐγένετο σιγὴ ἐν πᾶσα ἡ γῆ ἡμέρα τοῦ ἐξεγήγερται ἐκ
τῷ οὐρανῷ ὡς κυρίου νεφελῶν ἁγίων
ἡμιώριον αὐτοῦ

‫ַֽויהָ֖וה ְּבֵהיַ֣כל‬ ‫ַ֥הס ָּכל־ָּבָׂ֖ש ר ִמְּפֵ֣ני ַ֕ה ס ִמ ְּפֵ֖ני ֲא ֹדָ֣ני‬


‫ְיהָ֑וה ִּ֥כי ֵנ֖ע ֹור ְיהִ֑וה ִּ֤כי ָק רֹו֙ב ֣יֹום ָק ְד ׁ֑ש ֹו ַ֥הס ִמ ָּפָ֖ניו‬
‫ָּכל־ָהָֽאֶר ץ‬ ‫ְיהָ֔ו ה‬ ‫ִמ ְּמ ֥ע ֹון ָק ְד ֽׁש ֹו‬

7. Paralelo entre Ap 8, 1; Hab 2, 20; Sf 1, 7a; Zc 2, 17 (Gr e


Heb)
Elenquemos os argumentos contrários à ideia de que haja eco
veterotestamentário neste versículo. O primeiro desafio (não elencado,
aliás, por ninguém que se oponha a esta correlação) é a falta de
coincidência semântica. De fato, enquanto Apocalipse 8, 1 traz “ἐγένετο
σιγὴ”, os textos trazem “εὐλαβείσθω” (εὐλαβέομαι), que indica não um
silêncio propriamente dito, mas uma atitude de respeito e reverência, ou
seja, temor, ante alguém de grande autoridade. Se o texto hebraico de
cada um dos três versículos do AT apresenta de maneira clara que haja
silêncio (‫)ַהס‬, também é verdade que, conquanto este elemento seja,
então, comum, não há, todavia, no Apocalipse, qualquer ordem ao
silêncio, uma vez que este simplesmente acontece. Por um lado, isso é
um argumento utilizado para evitar qualquer paralelismo. Por outro,
poderia ser um contraste a ser evidenciado justamente na existência do
paralelismo.
Outra situação, todavia, que dificulta estabelecer que João
pensasse nesses versículos ao escrever o Apocalipse é quem fica em
silêncio. O Apocalipse fala de um silêncio no céu. Habacuque fala de
um silêncio em “toda a terra”. Zacarias fala de um silêncio imposto a
“toda carne”. E Sofonias não especifica nominalmente o interlocutor da
ordem de silenciar-se. Este problema é mais difícil de superar.
Poderíamos pensar em argumentos favoráveis a esse ecoar do AT,
tais como o teor contextual judicativo, ou então o ambiente decorrendo
no Templo Celeste. Entretanto, isso correria o risco de resultar em um
certo apriorismo, que inseriria na exegese informações que dela
extrairíamos posteriormente.
103

Como, então, entender o silêncio ocorrente no céu? Há dois textos


que passam desapercebidos e que, talvez, possam elucidar o que um
leitor do século I pensaria ao ouvir de um “silêncio no céu”. São eles
Ezequiel 1, 24s e Salmos 41, 9. Todavia, é necessário que deles tratemos
mais pormenorizadamente, pois não apenas os textos deverão ser
levados em conta, mas também a interpretação judaica do início da era
cristã.
Bauckham305 nota que o tratado Hagigah306,da ordem Moed, do
Talmude Babilônico interpreta Salmos 41, 9 de uma maneira bastante
diferente da usual para um leitor do século XXI. Nos céus, o louvor a
Javé cessaria durante as orações feitas por Israel, para que o coral não
competisse com as preces que o Deus Misericordioso desejasse ouvir,
oriundas de seu povo. Ezequiel, ao descrever o Trono-Carro de Deus, em
visão já aludida quando tratamos do capítulo 4 do Apocalipse de João,
alega que as asas dos seres vivos (posteriormente identificados como
querubins, e que influenciaram a descrição da Sala do Trono por João de
Patmos) fazem um grande ruído, como o barulho de uma multidão, mas
quando estão estendidas. Quando deixam pender suas asas, portanto,
supõe-se, não fazem ruído algum.
Sabemos que seria uma grande ousadia afirmar que o texto do
Talmude Babilônico seja anterior ao Apocalipse. Maior audácia ainda
seria afirmar que este teria sido influenciado por aquele. Não
pretendemos fazer isso, pois foge longe da alçada deste trabalho, além
do julgamento que temos de nós ser suficientemente claro para que nos
imputemos incapacidade de fazer isso. Todavia, não é necessário para as
considerações que pretendemos.
Se supusermos, como Bauckham307 e Koester308, que essa tradição
fosse suficientemente capilarizada para que, encontrando cristalização
em um escrito posterior, fosse já conhecida quando da redação do
Apocalipse, chegaríamos à conclusão que os versículos 1 e seguintes do
capítulo 8 estariam muito bem coligados. O silêncio ocorrido no céu
seria uma indicação de que Deus está atento às preces a ele dirigidas,
dispondo-se a atendê-las com prontidão, e antepondo-as até mesmo ao
305
BAUCKHAM, Richard. Climax…, op.cit., pp. 71ss.
306
Talmude Babilônico, Chagigah, 12b. Disponível em: «https://www.
sefaria.org/Chagigah.12b.7?lang=en&with=all&lang2=en.». Acessado em 12
jan. 2019.
307
BAUCKHAM. Climax…, op.cit., pp. 71ss.
308
KOESTER, Craig. Revelation: a new translation with introduction and
commentary. London: Yale, 2014, p. 451.
104

louvor celestial que ecoa para além dos tempos, na corte celeste descrita
desde há quatro capítulos.
Portanto, veríamos a grande importância que João de Patmos dá
às orações dos santos que há pouco entravam no santuário. Seu clamor
“até quando?” não somente foi ouvido, como também, admitidos seus
autores ao mais interior do santuário celeste, ganha o status de oferenda
de perfume. Notemos que isso é coerente com a descrição da atividade
cúltica do Dia do Grande Perdão, de Levítico 16. Naquele dia, o sumo
sacerdote entrava com o incenso diante do Propiciatório, realizando em
um complexo ritual a purificação de todo Israel. Um dos elementos
importantes do ritual era justamente a oferta de incenso diante do Trono
de Deus309, ou seja, a Arca da Aliança e o Propiciatório.
Supondo autêntica esta correlação, podemos haurir algumas
conclusões: i) há uma profunda conexão entre todos os selos, pois a
atividade de Deus, ao mesmo tempo paciente e iminente, está a irrupção
de acontecer e levar à plenitude todas as coisas, mas também aguarda
pacientemente porque é ação que leva em conta a individualidade da
vida de cada pessoa; ii) Deus não se faz surdo às súplicas de seu povo,
ouvindo-as, adequando-as a seu projeto salvífico, admitindo seu povo ao
convívio celeste e, finalmente, desencadeando com as preces dos santos
a manifestação definitiva de sua redenção e do juízo cósmico.
Esta última consideração se vê pelo fato de que o anjo que oferece
a Deus a oração dos fiéis (o incenso, sobre o altar, embaixo do qual,
outrora, estavam as almas dos santos) também atira o incensário sobre a
terra. Assim, o mesmo instrumento utilizado para fazer com que as
preces chegassem a Deus na ocasião espaço-temporalmente mais solene
da atividade litúrgica de seu povo, é também o instrumento pelo qual se
dá início à definitiva concretização histórica da manifestação de Deus no
mundo.
Um elemento a ser notado é que o turíbulo lançado à terra produz
trovões, vozes, relâmpagos e terremoto310. Por um lado, isso faz lembrar
a teofania do Sinai, mostrando que o mesmo Deus que libertou seu povo
para uma atividade cúltica no deserto, também liberta sua nação de
sacerdócio régio para um culto perene na Jerusalém Celeste. Assim, todo
o restante do livro se torna uma descrição do modo da realização dessa
promessa. Por outro lado, esse refrão “βρονταὶ καὶ φωναὶ καὶ ἀστραπαὶ
καὶ σεισμός” ocorre exatamente três vezes no livro, justamente entre os
três setenários mais evidentes (selos, trombetas e taças). Sendo assim, há
309
Ap 8, 3s.
310
βρονταὶ καὶ φωναὶ καὶ ἀστραπαὶ καὶ σεισμός; Ap 8, 5.
105

grande sugestão de que essa seja uma marca estrutural importante que
precise ser estudada mais pormenorizadamente. Pretendemos fazê-lo no
capítulo seguinte311.

13 APOCALIPSE 8, 6 – 9, 21

Surpreende um pouco, à primeira vista, que decidamos tomar uma


perícope assim extensa. Sim, é verdade que é um bocado maior que o
habitual até o presente, mas justifica-se com base na comparação que
faremos com o AT.
As cenas descritas são espantosas. Ora de caráter cataclísmico
(quatro primeiras trombetas), ora de caráter fabuloso, mítico ou de
flagelo sobrenatural (quinta e sexta trombetas). Pretendemos argumentar
que a proposta de uma busca de pano de fundo veterotestamentário
possa elucidar a grande diversidade de elementos fantásticos presentes
nesta perícope.
Um dos poucos consensos existentes entre os diversos
comentadores do livro do Apocalipse é que, a partir de agora,
atravessamos um ponto fulcral. Sobre onde precisamente esteja este, os
autores divergem. Divergem igualmente sobre o significado das
trombetas e das cenas descritas ao toque de cada uma.
Notemos que, se até então eram abertos selos, agora são tocadas
trombetas. Por um lado, seu toque se inicia justamente quando da
realização da ação litúrgica na qual um anjo lança um turíbulo à terra,
pois se, como vimos, os anjos que receberam as trombetas aguardavam
para tocar, uma vez que as orações dos santos foram ouvidas, já não
mais aguardam. Como o que se esperava era a execução de um juízo
divino, aparentemente o que teremos aqui é a realização das
expectativas. Assim, as trombetas devem ter esse tipo de significado e,
de fato, Bauckham312, Beale313, Koester314, Vanni315 e Prigent316, ao
reconhecer no elemento das trombetas influências de Joel e Josué,

311
uide “Uma tentativa de estruturação do Apocalipse”, à página 186.
312
BAUCKHAM. Revelation, p. 1294.
313
BEALE. Revelation, p. 170.
314
KOESTER. op.cit, p. 448.
315
VANNI. op.cit, p. 60.
316
PRIGENT. op.cit, p. 158.
106

afirmam a tônica de juízo escatológico de Deus contra uma realidade de


opressão contrária aos desígnios divinos. Por outro lado, a quantidade
grande de descrições de um colorido simultaneamente vívido e tremendo
faz com que as considerações exegéticas dos autores variem muito, e não
somente nos pormenores.
O foco na interpretação do toque das trombetas, quando haurido
do AT, normalmente o é de Josué. É verdade que há argumentos em
favor desta tese, quais sejam: i) em Jericó, havia 7 trombetas, bem como
aqui; ii) o toque se dá por homens/anjos revestidos de características
sacerdotais; iii) há um ambiente de combate e vitória de uma cidade
(Jericó ou a Babilônia escatológica). Todavia, conquanto não
pretendamos negar que essa influência seja real, visamos propor que
uma outra seja mais decisiva. Note-se que há contraste entre o juízo total
em Josué (toda a cidade é destruída, com exceção de Raab) e, por ora,
parcial no Apocalipse (há ênfase na fração “terça parte”). Além disso,
não é totalmente condizente a progressividade da realização da ação das
trombetas no Apocalipse contrastada com a imediaticidade (conquanto
esperada) da sua atuação em Josué.
Por sua vez, ainda que o livro de Joel, segundo Zenger317 seja
dividido em duas partes, uma 318 sobre uma praga ocorrida e outra 319
consistindo em um oráculo de salvação, ou mesmo considerando a
hipótese de que seja um profeta redacional que retrabalhe as pragas do
Egito sob o prisma hermenêutico de outros profetas anteriores, o fato é
que, considerando o texto tal como se apresenta, apresenta grande
coincidência com a perícope do Apocalipse que pretendemos abordar.
Além disso, uma vez que seu tema central seja o Dia de Javé
(curiosamente, o mesmo nome é dado tanto a profecias contra Sião como
a profecias de salvação), certo é que não seria de se admirar uma
releitura escatologizante do texto.
Favoravelmente à proposta de que Joel seja um texto em
dialogismo com as seis primeiras trombetas do Apocalipse, temos: i)
Joel 2, 1. 15 falam de “trombeteai com trombeta” 320 associando tal gesto
com o Dia de Javé; ii) os elementos fantásticos do Apocalipse se
explicam bem com a profecia de Joel321. Este último argumento se
317
ZENGER. op.cit, p. 473.
318
Jl 1, 2 – 2, 17.
319
2, 18 – 4, 17.
320
Uma tradução mais literal de “σαλπίσατε σάλπιγγι”.
321
Há aqueles que não são oriundos de Joel, mas são das pragas do Egito.
Outros formam uma correlação com outros textos do Apocalipse.
107

mostra particularmente forte e, por isso, convém que o detalhemos e


vejamos mais pormenorizadamente.

Elemento Apocalipse Joel

Trombetas 8, 6 etc. 2, 1. 15

Fogo e sangue sobre a 8, 7. 18 3, 3


terra

Devastação da 8, 7 2, 3
vegetação como que
por fogo

Sol, lua e estrelas 8, 12; 9, 2 2, 10; 3, 4


escurecidos

Gafanhotos 9, 3 1, 4

Cavalos de batalha 9, 7. 16 2, 4

Partes de leão 9, 8. 17 1, 6

Barulho dos gafanhotos 9, 9 2, 5

Os nomes Apolion e 9, 11 1, 11 Tudo está


Abadon (destruidor) destruído (ἀπόλλυμι /
‫)אבד‬

Os três “ais” 8, 13; 9, 12 1, 15 (LXX 3x; Heb 1x)

8. Elementos comuns entre Ap 8, 6 – 9, 21 e


Jl
Há, sim, outros elementos a serem considerados. As pragas sobre
massas aquáticas, por exemplo, não estão presentes em Joel. Todavia,
são oriundas dos relatos das pragas do Egito. Os objetos caindo do céu,
conquanto apareçam também no texto do Êxodo, relacionam-se
verbalmente com o turíbulo lançado na terra (com efeito, o verbo é
ἐβλήθη [βάλλω], ou seja, “lançar, atirar”). Sendo assim, seriam um
108

elemento conectivo entre os textos consecutivos dos selos e das


trombetas. Até mesmo a cavalaria, da sexta trombeta, sendo relacionada
aos quatro anjos amarrados, faz ecoar os quatro anjos do sexto selo.
Sendo assim, se supusermos que o texto de Joel seja ecoado no
Apocalipse, como admitem vários autores (Vanni, Koester, Prigent,
Bauckham, Beale e Yarbro Collins), temos uma abertura hermenêutica
consideravelmente sóbria para um texto que aparentemente se afigura
terrivelmente assustador.322
Quando Joel apresenta o Dia de Javé relacionando-o com
trombetas, sua ênfase é a conversão do povo, e não o anúncio de uma
catástrofe inevitável e fruto certo da ira de Deus, sem a possibilidade de
arrependimento e mudança de vida. Sendo assim, uma vez que a
sequência do toque das trombetas se inicia em conexão com o turíbulo
lançado à terra, e se encerra (por enquanto, ao menos) com a constatação
de que os sobreviventes não se abriram ao abandono das práticas
idolátricas, podemos concluir que a limitação constante do alcance das
tragédias a um terço das pessoas seja uma manifestação de uma monição
prévia com fins na conversão de quem a sofre. A fração da terça parte
também poderia ser relacionada com a conversão de Zacarias 13, 8ss,
coerente com o mesmo sentido.
Também a alusão às pragas do Egito faz com que essa ideia
transpareça no texto todo. De fato, conquanto a finalidade das pragas
tenha sido, literalmente, endurecer o coração de Faraó para que Javé
fosse glorificado a suas custas, o modo da narrativa mostra que não se
trata de um Deus caprichoso que decide simplesmente eleger um e
flagelar outro para mostrar um poder absoluto. Faraó é interpelado à
conversão e, porque não a aceita, sofre as consequências de sua decisão
em prol da escravidão do povo de Deus, cujo clamor é ouvido do alto do
céu. Assim também ocorre com a narrativa de Patmos: as testemunhas
de Cristo na terra clamam por justiça e Deus as atende, mas antes dá
tempo para a conversão dos que não compactuam com seu projeto de
salvação, enviando inclusive advertências severas (pelo colorido dos
selos, vê-se a intensidade com que Deus chama à conversão) de que
Deus “faz distinção entre hebreu e egípcio”323.

322
Reconhecemos que os autores citados dão mais importância a outros
aspectos do texto. Ora a outras passagens do Antigo Testamento, ora ao
simbolismo proposto para outros elementos etc. Todavia, importa-nos aqui que
haja atestação de que esta linha de interpretação seja possível.
323
Ex 9, 4.26; 10, 23; 12, 12.
109

A costura dos elementos é feita de tal maneira que as quatro


primeiras trombetas formem um todo coeso que indica a universalidade
da pena infligida por Deus (pois a terra, o mar, os rios e os astros são
atingidos), bem como a correlação entre os eventos e as preces dos
santos (são os objetos atirados, como o turíbulo, sobre os elementos que
promovem sua convulsão).
Advertindo severamente os pecadores na quinta trombeta (pois
somente os que não têm o selo de Deus são afligidos), Deus não procura
sua morte324 e sim seu arrependimento325. A figura de uma estrela-anjo
caindo do céu remonta a outros textos de denúncia da idolatria 326 e pode
ser associada com a falência necessária de todas as forças que, opostas a
Deus, tentam usurpar seu trono, ou seja, inserir-se como autênticos
garantidores de vida e salvação.
As figuras de cobras e escorpiões 327 parece remeter a
Deuteronômio 8, 15, em um texto que adverte justamente a lembrança
de Deus que conduziu seu povo em meio ao deserto para purificá-lo e
fazê-lo entender sua dependência absoluta com relação a Javé, que os
libertara do Egito.
Por fim, também a Águia (ocorrente em Deuteronômio 32, 11) se
encaixaria neste contexto, uma vez que se trata de uma figura da
condução de Israel por Deus rumo à terra prometida, mas não sem que o
povo muito pecasse e Deus muito perdoasse.
Até o momento, poderíamos entender a mensagem de Patmos
como sendo uma resposta ao choro de João328 e aos que clamam “até
quando?”329. Coerente com a mensagem profética de Ezequiel 18, 23ss, o
autor reconhece que há uma situação de injustiça que não pode perdurar
(a paz que reina na terra é, como dissemos, um desafio ao fiel que sofre),
mas Deus, todavia, não deseja a perdição de ninguém e, por isso, atrasa
deliberadamente sua intervenção330 e, quando lhe dá início decidido, o
faz de tal modo que a porta do retorno permaneça aberta (as trombetas).
O colapso das estruturas iníquas, vista aqui como “ais” e instrumentos da
realização dos desígnios divinos, não tem como objetivo próprio a morte

324
Ap 9, 6.
325
Ap 9, 20.
326
Is 14, 12ss; Ez 28, 17.
327
Ap 9, 5. 20.
328
Ap 5.
329
Ap 6.
330
Ap 7.
110

do pecador, mas sua conversão, mesmo que isso não esteja explícito nos
próprios acontecimentos, e sim num lamento final de que esta não
houve331.
A idolatria da obra das mãos332, associada a elementos que
indicam ao menos um certo grau de prosperidade (ou seja, trata-se de
colocar no lugar de Deus o fruto do próprio trabalho), está intimamente
relacionada aos homicídios, magias, fornicações e roubos 333, indicando
que não somente o aspecto cúltico é abordado, mas de modo eminente a
imediata relação entre o mal moral com consequência aos que gritam
“até quando?” (e são ouvidos) e o abandono do Deus que vive
eternamente e, por isso, pode garantir a vida a seus seguidores.
Uma última consideração sobre as seis primeiras trombetas é sua
progressividade. A primeira não causa dano direto a pessoa alguma. A
segunda, apenas aos que se encontram em navegação. A terceira, a
muitos homens. A quarta, indiretamente, a todos os homens. A quinta, a
todos os homens pecadores, diretamente, mas sem morte alguma. A
sexta, por sua vez, leva a cabo a vida de um terço da humanidade.
Percebemos, então, que, como no caso das pragas do Egito, há como que
um avanço didático nas tentativas de motivar o arrependimento para que
os homens deixem de dizer “deuses” às coisas que não são, e colocar sua
confiança no Deus verdadeiro.

14 APOCALIPSE 10, 1-11

A cena de desenrola com uma simplicidade que corre até o risco


de ocultar a complexa discussão que dela decorre. Um “anjo forte” com
características peculiares desce sobre a terra e o mar e faz uma
proclamação que deve ser selada. Após isso, entrega ao vidente um
livretinho334 para ser ingerido. Então, há um mandato profético.
Sobre quem seja o “anjo forte”: eis uma questão polêmica.
Enquanto alguns335 defendem explicitamente que este anjo não seja o

331
Ap 9, 20s.
332
Ap 9, 20.
333
Ap 9, 21.
334
Utilizaremos esta palavra como tradução de βιβλαρίδιον porque,
segundo PRIGENT. op.cit, p. 177, trata-se de um duplo diminutivo de βιβλιον.
335
PRIGENT. op.cit.
111

Cristo, outros336 o afirmam categoricamente. Há ainda os outros 337 que


não afirmam e nem negam nenhuma das duas posições. Analisemo-las,
como sempre, à luz do proposto conceito de intertextualidade338.
Em contrário à identificação ontológica do anjo com o Messias,
temos o simples, porém forte, fato de que, no texto, ele realmente não é
chamado com absolutamente nenhum tipo de título messiânico.
Enquanto “cordeiro”, “raiz de Jessé”, “leão de Judá”, “ressuscitado”,
“vivo para sempre” sejam títulos muito claros, aqui não há nada que
sustente uma decisiva interpretação de que este anjo, conquanto descrito
de maneira muito especial, seja efetivamente a pessoa de Jesus.
Em favor, há o argumento de que o modo como é descrito é
aplicável, tanto no texto quanto no AT, somente à divindade. Por isso é
que Beale339 o identifica com o “anjo de Javé”.
Não tomaremos posição com relação a isso, mas a questão foi
enunciada porque este último argumento, reconhecido por todos os
comentadores consultados, é que guiará a reflexão sobre o papel
desempenhado por este anjo e sua função no presente momento do livro.
Notemos que os elementos da descrição do anjo realmente não
são desprezíveis. Além de “forte” (fator comum com o anjo do capítulo
5), desce do céu, traja-se de nuvem, tem sobre si o arco-íris, tem o rosto
como sol e as pernas como colunas de fogo, e segura um livro na mão.
Quando fala, o faz como leão e como trovão. De fato, como vimos, o ato
de descer do céu com nuvens é característico da visão do Filho do
Homem de Daniel 7. O arco-íris, vimos, é sinal da divindade desde a

336
BEALE. Revelation.
337
CORSINI. op.cit, COLLINS. Apocalipse, BAUCKHAM. Revelation,
VANNI. op.cit, KOESTER. op.cit.
338
Trata-se aqui de uma nota em caráter de adendo relativo a uma questão a
ser explorada, mas não neste trabalho, dada sua necessária brevidade
comparativamente à amplidão da questão enunciada. Ap 1, 1 identifica o próprio
escrito como uma revelação amplamente mediada. De fato, há um fluxo
revelatório Deus  Jesus Cristo  Anjo  João  Comunidade. Surpreende a
figura de um anjo, que simplesmente some e deixa de ser relevante, embora
haja, sim, muitas figuras angélicas. Não seria este o “anjo” mencionado lá? Se
fosse, haveria uma porta aberta à crítica da redação acerca da apresentação
tardia do livro? Ainda que esta última problemática se mostrasse estéril, o livro
dado ao anjo se relacionaria com o escrito do Apocalipse de que maneira? Todas
essas são questões emergentes da consideração sobre a relação entre Ap 1, 1 e
Ap 10.
339
BEALE. Revelation, p. 200.
112

narrativa de Noé340 e de Ezequiel341 e aparece como halo do Trono de


Deus342. O rosto como sol e pernas como coluna de fogo também eram
atributos de Cristo343 oriundos de Daniel344. E mesmo a voz de trombeta,
remetendo à teofania do Sinai, foi utilizada em Apocalipse 4, onde,
pouco após, aparece o Cristo como o Leão de Judá345.
Se esta figura angelical não é o Cristo, certamente é alguém que,
de tal modo revestido de sua dignidade, vem à terra com uma missão
especificamente divina. Aquilo que ele fizer, portanto, se levarmos em
conta a origem bíblica da terminologia de sua descrição (que, de longa
que é, não permite afirmar que seja fortuita), deve ser ação própria da
divindade, seja mediatamente, seja imediatamente. Talvez não seja
exagerada a ideia de “anjo de Javé”.
Suas ações são: gritar, estar em pé sobre o mar e a terra, jurar e
entregar o livretinho ao vidente. Embora a ideia de gritar como trovão 346
ou leão347 ocorra no AT, e seja também um elemento de proclamação de
mensagem autenticamente divina, sobretudo sobre conversão e
arrependimento, o que, por si, já dá a entender o ato do anjo neste
contexto, não é o fator que mais chama a atenção no texto 348. De fato, é

340
Gn 9.
341
Ez 1, 26-28.
342
Ap 4.
343
Ap 1.
344
Dn 10.
345
Ap 5.
346
Sl 28, 3.
347
Os 11, 10; Am 1, 2; 3, 8; Jl 4, 16.
348
Uma grande parte dos comentadores do Apocalipse aventa a
possibilidade de que os sete trovões deste texto sejam eco do Sl 28. O
argumento, basicamente, é: há 7 menções de ‫ קֹול ְיהָ֗ו ה‬no salmo, o que pode ser
interpretado como sete ocorrências de “trovão”. Todavia, literalmente, isso se
traduz por “voz de YHWH”, como de fato temos na versão grega “φωνὴ
κυρίου” e latina “vox Domini”. A evocação do Sl 28 também não justifica a
razão do silêncio imposto ao profeta de Patmos. Sendo assim, ainda que
exponhamos que haja quem pensa desta maneira, preferimos não seguir a
argumentação pela razão recém exposta. O texto acima se concentrará no que há
de mais claro, mas seja-nos permitido tecer uma reflexão sobre isso.
Literalmente, o texto traz “ἔκραξεν φωνῇ μεγάλῃ ὥσπερ λέων μυκᾶται. καὶ ὅτε
ἔκραξεν, ἐλάλησαν αἱ ἑπτὰ βρονταὶ τὰς ἑαυτῶν φωνάς” (Ap 10, 3). Uma
tradução um tanto quanto literal poderia ser “[o anjo forte] gritou com voz
grande como leão mugindo, e quando gritou, falaram os sete trovões as suas
113

gritante que o rugido de leão e as vozes dos trovões, anunciadas no livro,


sejam mantidas em segredo. Parece-nos que este é o elemento de
principal destaque e que merece mais explicações.
Não é novidade, como vimos, que João de Patmos tenha
conhecimento do livro de Daniel. Sendo assim, aparenta não se justificar
a ideia de que seja fortuita a coincidência entre as únicas ocorrências
veterotestamentárias de profecia selada por mandato divino estarem
justamente em Daniel. São elas: Daniel 8, 26; 12, 4.9.
Uma vez que o conteúdo da revelação do Apocalipse é justamente
“as coisas que devem acontecer em breve” e que, vimos, está em
contraposição com Daniel, onde são para um tempo longínquo, então a
justificativa de Daniel 8, 26 pode não aparentar satisfatória. De fato, lá
se diz que a profecia deve ser mantida em segredo porque há muito
tempo para que aconteça. Se o convite à conversão já foi recusado cinco
versículos antes349, e uma vez que o conteúdo do Apocalipse é “ἃ δεῖ
γενέσθαι ἐν τάχει”350, cremos que, de fato, a mera satisfação da
curiosidade de João não deva ser suficiente para explicar a descida do
“anjo forte” e para que tenha havido as vozes de leão e trovões.

vozes”. O artigo αἱ dá a entender que a personalidade dos sete trovões já seja


conhecida para autor, leitor e ouvintes. De fato, notemos que João de Patmos,
quando introduz um novo personagem, usualmente o faz sem o uso do artigo
“ἰδοὺ θρόνος ἔκειτο ἐν τῷ οὐρανῷ, καὶ ἐπὶ τὸν θρόνον καθήμενος” (Ap 4, 2) e,
quando dele fala novamente, utiliza o artigo definido, como em “καὶ ὁ
καθήμενος” (Ap 4, 3). Isso dá a entender que os sete trovões já tenham sido
anunciados. Com certa ousadia, gostaríamos de aventar que uma certa
pontuação de Ap 4, 5 (“Καὶ ἐκ τοῦ θρόνου ἐκπορεύονται ἀστραπαὶ καὶ φωναὶ
καὶ βρονταί, καὶ ἑπτὰ λαμπάδες πυρὸς καιόμεναι ἐνώπιον τοῦ θρόνου, ἅ εἰσιν τὰ
ἑπτὰ πνεύματα τοῦ θεοῦ”) poderia resultar em “e do trono procediam/saíam
relâmpagos, vozes, trovões e sete tochas ardentes de fogo. Em frente ao trono, as
coisas são os sete espíritos de Deus”. Note-se que o pronome ἅ é neutro, e não
se refere propriamente às tochas ardentes (os manuscritos divergem aqui), sendo
cabível inserção da “res oculta”. Se assim for, os tais “sete trovões” seriam estes
procedentes do trono, os sete espíritos, que, aliás, são os que tocam as sete
trombetas (8, 2). Dada esta suposição, a conclusão exegética sobre a voz dos
trovões que não acaba sendo consignada seria semelhante à frase “quem tem
ouvidos, ouça”, presente, aliás, no Apocalipse. As sete trombetas, ao soarem,
seriam sinal claro de que o mundo não só é falível como entra em falência no
presente, falando este fato por si em favor da conversão. Corrobora com essa
ideia a coerência com o contexto, conforme temos exposto.
349
Ap 9, 20-21.
350
Ap 1, 1.
114

Cremos que Daniel 12, 4.9 nos forneça alguma informação


relevante. Com efeito, reparemos que, ao final da profecia de Daniel, há
ordem de que receba selos até que chegue o momento certo 351, e isso não
se dá sem razão: enquanto muitos serão purificados, muitos maus
persistirão em seu pecado. João, então, guarda segredo (literalmente,
sela) as vozes dos trovões, indicando que seu conteúdo é tal qual a
profecia de Daniel: chama à mudança de vida, e é dada a conhecer a
todos (aliás, o livretinho ingerido será conteúdo de profecia à
universalidade), mas nem todos têm de fato acesso a este porque
apresentam persistência no erro.
Um outro elemento que fortalece esta linha de raciocínio: há um
juramento solene por aquele que vive eternamente 352 nos dois escritos.
Todavia, se em Daniel o juramento diz que tudo se realizará quando
acabar a opressão do povo santo, em “tempo, tempos e meio tempo”,
agora já não é assim: o anjo diz “não haverá mais tempo”. Basta que seja
tocada a sétima trombeta para que todos os eventos sejam efetivamente
realizados, de modo que já é encerrado, ao menos de certo modo, ou ao
menos potencialmente, o sofrimento do povo eleito, que fora, aliás,
marcado e poupado das últimas pragas. Aquilo que se realiza é a
consumação do “mistério de Deus, como evangelizou os seus servos, os
profetas”353.
Uma vez que João se insira na linha dos profetas 354, não admira
que evoque a experiência de manducação de livro de Ezequiel355. Este
fora enviado a Israel, “casa de rebeldes” 356 com um pergaminho que,
como aqui, está desenrolado. Nos dois relatos há a descrição do paladar
do livro: doce. Conquanto ao autor de Patmos seja amargo no estômago.
A quantidade de semelhanças entre as duas hierofanias parece nos
permitir a suposição de que João se vê como que em continuidade de
Ezequiel, embora tenha sua missão ampliada e de conotação
decididamente escatológica. Aquilo que ele anuncia é, de fato, uma
profecia, endereçada à universalidade357 e de perspectiva decididamente

351
Dn 12, 4.
352
Dn 12, 7; Ap 10, 6.
353
Ap 10, 7; 22, 9.
354
uide p. 75.
355
Ez 2, 1 – 3, 15; Ap 10, 8ss.
356
Ez 2, 5.7.8.
357
Curiosamente, aqui, a tétrade “φυλῆς καὶ γλώσσης καὶ λαοῦ καὶ ἔθνους”,
de Ap 5, 9; 7, 9; 11, 9; 13, 7; 14, 6 é substituída por “λαοῖς καὶ ἔθνεσιν καὶ
115

escatológica. Ainda assim, como seu predecessor, sua mensagem tem o


objetivo comum de denúncia das práticas caducas que desviam do Deus
Vivente para as obras das mãos. O caráter universalista, de fato, não dá a
entender que o endereço sejam todos os homens, mas apenas aqueles que
recusam o convite à conversão, pois, ao invés de utilizar o quantificador
“todos”358, utiliza “muitos”.
Se o livro doce de Ezequiel continha “lamentações, gemidos e
gritos de dor”, com mais razão se espera que o livretinho do Apocalipse,
também doce, mas de consequências amargas, contenha em si sentenças
dolorosas a seus destinatários. O anúncio da mensagem, doce a quem
recebe, mas amargo em suas consequências, portanto, como em
Ezequiel, traz em si o eco profético da conclamação ao arrependimento,
simultâneo com a explicitação das consequências da permanência nas
práticas denunciadas.

15 APOCALIPSE 11, 1-13

A cena se desenvolve em duas etapas. A primeira 359 é a medição


do Templo. A segunda360 é o ministério das duas testemunhas. Não as
separamos apenas por coesão do próprio texto, uma vez que o cálamo 361
é dado (lit. ἐδόθη) a João sem que haja um sujeito que lho dê, indicando
assim um passivo divino. Este sujeito oculto inicia seu discurso dizendo
(lit. λέγων) no versículo 1 e prossegue, não sendo possível separá-lo
antes do versículo 3.
Esta perícope, todavia, como muitas do Apocalipse, aliás, é
reconhecidamente controvérsia. Basta notarmos que Vanni 362 e Prigent363
atestam explicitamente que há pouca concordância entre os
comentadores sobre o que significam cada uma das realidades apontadas
neste texto. Seguiremos, ainda assim, a perspectiva de tentar identificar,
caso possível, ecos veterotestamentários na obra de João de Patmos,
γλώσσαις καὶ βασιλεῦσιν”, enfatizando os reis, que têm poder sobre as tribos, ao
invés de enfatizar as tribos mesmas.
358
Ap 5, 9; 7, 9 etc.
359
Ap 11, 1-2.
360
Ap 11, 3ss.
361
Ap 11, 1.
362
VANNI. op.cit, p. 63.
363
PRIGENT. op.cit, pp. 184ss.
116

trazendo os personagens do passado à atuação no Apocalipse. Com


efeito, todo o desenrolar da trama tem cenas ou personagens do AT
implicados: a medição do Templo364, os 42 meses (ou 1260 dias)365, as
duas oliveiras e dois candelabros366, o fogo de devora os inimigos367, a
capacidade de fechar o céu368 e de mudar água em sangue369. Sendo
assim, aparenta-nos suficientemente razoável procurar nesta coleção de
textos uma fonte que esclareça o sentido do texto de Patmos.
Como dissemos, a primeira parte da perícope trata de uma
medição do Templo, deixando de fora (lit. joga fora, ἔκβαλε ἔξωθεν) o
pátio externo. Dado que a medição literal da construção outrora presente
em Jerusalém, aquele Templo reformado por Herodes, já não era
possível, pois o livro foi escrito tempo depois de sua demolição, resta-
nos supor que tal templo seja uma realidade não física, mas simbólica.
Buscando na Torá370 textos em que haja este ato de medir, encontramos
duas cenas: Ezequiel 40 – 42 e Zacarias 2, 5-9. É de se notar a diferença
entre as duas. Em Zacarias, não se mede o Templo, mas Jerusalém toda.
Além disso, o agente da medição é um anjo, não o vidente. E tal ação
sequer se concretiza, pois um outro anjo o impede, dizendo que
Jerusalém deve ficar sem muros, indicando a realização de um culto que
já não caberia na cidade como era. Não parece que este seja, ainda, o
caso no Apocalipse, uma vez que temos diferenças grandes e a cena não
parece indicar uma acolhida universal do culto a Javé. Ainda que o texto
de Ezequiel também traga suas diferenças com o de João (há,
efetivamente, uma medição, enquanto o Apocalipse apresenta somente
uma ordem; quem mede é o anjo; a medição é detalhada e é incluído o
átrio), as semelhanças também são grandes (a aparência do anjo, a
relação com o livro entregue para profecia, o objeto da medição como
sendo o Templo, o instrumento [κάλαμος] da medição, a garantia de não
profanação). Em se tratando de uma quantidade grande de elementos que
sustentam o paralelismo entre o texto joanino e o texto de Ezequiel,

364
Ez 40 – 42.
365
Dn 7, 25; 12, 7.
366
Zc 4, 13s.
367
2Rs 1.
368
1Rs 17.
369
Ex 7, 17.
370
CORSINI. op.cit, p. 204.
117

sustenta-se que as diferenças sejam efetivamente elemento contrastante,


e não que anule a relação dos textos371.
Ora, o Templo de Ezequiel é escatológico, cheio da glória de Javé
e jamais será profanado. No Apocalipse, faria sentido defender um
caráter escatológico do Templo medido? Conquanto faça parecer que
não, uma vez que o pátio é entregue às nações, bem como haja ainda o
sofrimento das testemunhas, convém notar que também são medidos
aqueles que estão dentro do Templo. Literalmente, temos em Apocalipse
11, 1, a ordem de medir o Templo, o altar e aqueles que adoram no altar.
Uma vez que entravam no Templo somente sacerdotes, e que, como
vimos372 os fiéis são vistos no Apocalipse como portadores de um
sacerdócio régio, não espanta que os que estão “no altar” 373 sejam todos
os preservados. Esta cena, portanto, traria à comunidade dos assinalados,
das testemunhas374, um caráter decididamente escatológico, de
antecipação do Templo Celeste. A medição do Apocalipse, de fato
identifica a comunidade dos adoradores que se encontram no Templo
com uma das realidades últimas, conferindo um sentido particular ao
testemunho daqueles que adoram o Deus presente no Santuário. Se há
paralelismo com o texto de Ezequiel, todavia, a realidade escatológica
ainda não se cumpre plenamente, uma vez que o pátio é entregue às
nações375, que pisarão a Cidade Santa por 42 meses, símbolo oriundo de
Daniel 7, 25; 12, 7.
Ora, 42 meses lunares de 30 dias resultam em 1260 dias. E isto
corresponde a um período de 3,5 anos, evocado em Daniel como o
tempo em que prevalecerá o culto profano no Templo de Deus 376. Não é
fortuito que as testemunhas ajam contra a besta 377, cuja descrição378
evoca justamente o mesmo texto de Daniel 7. Como vemos, portanto, a
quantidade de elementos confluentes dificulta a possibilidade de mera
coincidência, restando, todavia, ainda, a necessidade de análise sobre a
significação de tal uso literário.

371
A semelhança é defendida também por BEALE. Revelation, p. 215.
372
Ap 6, 9 – 7, 17.
373
Ap 11, 1; 6, 9.
374
Ap 6, 9.
375
Ap 11, 2.
376
Dn 12.
377
Ap 11, 7.
378
Ap 13.
118

Se é verdade que a realidade escatológica do Templo – protegido


por Deus, em cujo interior se encontram aqueles que clamam “até
quando?”, e que clamam por ação divina, os tementes a Deus 379 – ainda
tem uma abrangência limitada, também é verdade que sua plenitude já
está anunciada desde já. Com efeito, João aparenta mais otimista que
Daniel, uma vez que a adoração já não cessa no Templo, mas apenas no
seu pátio. Para Daniel, a Abominação da Desolação reinaria no Templo
de Javé, interrompendo o sacrifício diário380. De fato, se este é realmente
interrompido no átrio, a comunidade fiel permanece com um culto
perene, já não condicionado a um lugar físico381.
Em seguida, como dissemos, inicia o trecho referente às duas
testemunhas. Primeiramente, entretanto, notemos uma peculiaridade: são
duas. Talvez isso se refira a Deuteronômio 17, 6, que proíbe o
julgamento havendo apenas uma testemunha. Sendo assim, qualquer que
seja o testemunho destes dois, deve ser verdadeiro, pois até mesmo a
vida de um homem poderia ser tirada em testemunho concorde de
dois382.
João, ao falar destas duas testemunhas, novamente utiliza um
artigo definido383, indicando que se trate de personagens já mencionados
no livro. Aqueles que têm função de testemunho no Apocalipse são:
Jesus384, João385, Antipas (morto)386, os que foram mortos387 e os fiéis388.
À multiplicidade de realidades históricas que a exegese já
identificou com estas, elencada por Vanni389, aparenta corresponder
melhor os personagens mesmos descritos no próprio escrito de João de
Patmos: Jesus, em primeiro lugar, e seus seguidores. Essas duas
testemunhas, com eloquente concórdia, dão a entender que seu
testemunho é verdadeiro, ainda que seja desprezado. Aliás, o desprezo
pelo testemunho dos fiéis é claramente associado com desprezo pelo
379
BEALE. Revelation, p. 216.
380
Dn 12.
381
CORSINI. op.cit, p. 205.
382
Note-se o caso da história de Susana, na versão grega de Daniel.
383
τοῖς δυσὶν μάρτυσίν; Ap 11, 3.
384
Ap 1, 2.6; 3, 14; 22, 20.
385
Ap 1, 9; 22, 18.
386
Ap 2, 13.
387
Ap 6, 9; 12, 11; 17, 6; 20, 4.
388
Ap 12, 17.
389
VANNI. op.cit, p. 63.
119

próprio Cristo390. Se o período até a concretização de seu testemunho é


visto como limitado391 (3,5 anos, evocando simbolicamente a realidade
escatológica apresentada em Daniel), mais breve ainda é o período de
sua derrota (3,5 dias).
A pregação das testemunhas de Cristo é identificada com:
Moisés392 (transformar água em sangue), Elias393 (fogo que devora os
inimigos, céu fechado à chuva)394, mas também com Josué e Zorobabel395
(duas oliveiras e dois candelabros). Assim, as testemunhas de Cristo têm
o mesmo papel dos profetas do AT 396 e, como o sumo-sacerdote
Zorobabel e o rei Josué, têm papel de construção de um templo
escatológico perene397.
Se nos colocarmos no contexto em que esta perícope está inserida,
veremos que o convite à conversão proclamado pelas trombetas, além de
revelar a inevitável derrocada da realidade que se põe no lugar de Deus,
também é anunciado com clareza e força pelo testemunho daqueles que
se mantém fiéis. À estranha imagem de um edifício parcialmente
tomado, corresponde uma realidade humana que se mantém fiel, ainda
que em meio a provações, que, como as pragas do Egito, têm um papel
redentor. Isso se expressa claramente por meio da palavra daqueles que
anunciam a unicidade da salvação em Deus e, por isso, são hostilizados
pelas forças que, oprimindo, se propõe como eterna398.

16 APOCALIPSE 11, 14-19

A cena é breve, e seu conteúdo, à primeira vista, não aparenta tão


complexo. Todavia, isso é desmentido pela variedade de opiniões dos
comentadores. Isso não deveria assustar, uma vez que, como o início do
capítulo 8, este aparenta ser um ponto fulcral do livro.

390
Ap 11, 7s.
391
PRIGENT. op.cit, p. 191.
392
Ex 7, 17.
393
1Rs 17; 2Rs 2.
394
CORSINI. op.cit, p. 207.
395
Zc 4, 3.14.
396
BEALE. Revelation, p. 220.
397
Zc 4. uide BEALE. Revelation, p. 222.
398
Ap 13, 12.
120

A águia que voava clamando pelo céu retorna, alegando ter se


passado o segundo “aí”, de modo que o terceiro chegue depressa
(curiosamente, dele nada se fala). Em seguida, há a sétima trombeta,
diante da qual ocorre uma cena litúrgica intensa. Ao final, há a abertura
do Templo de Deus nos céus, com a exibição da Arca da Aliança, além
da tétrade “relâmpagos, vozes, trovões e terremoto”, associada, desta
vez, à tempestade de granizo.
Três são os ecos do AT: a proclamação do Reino Eterno de
Deus399, sua aclamação litúrgica triunfal 400 e o reencontro da Arca da
Aliança401. Em favor de uma referência ao Salmo 2, temos: i)
estabelecimento do Reino de Deus e seu Ungido; ii) comemoração
litúrgica deste fato; iii) o Reino é eterno; iv) há fúria das nações após ter
havido júbilo diante de uma transitória vitória; v) contra estas ergue-se a
ira de Deus.
Em favor da associação com Daniel 7, 14.27, temos: i) o contexto
próximo da presença das bestas; ii) grande uso deste texto no
Apocalipse; iii) o estabelecimento do Reino de Deus; iv) isto se dá às
custas do desmantelamento dos reinos da terra; v) esse reino é visto
como justiça para os que são fiéis a Deus.
Por fim, em favor da recordação de 2 Macabeus402, temos: i) o
escondimento da arca como obra divinamente atribuível; ii) sua
revelação quando dos tempos de um juízo divino em favor de seu povo.
À luz desses textos, entendemos que o Reino de Deus e de seu
Ungido, tornado presente (pois passaram os três anos e meio de Daniel),
e celebrado, é visto como a realização do Dia da Ira, plenificação do fato
já celebrado culticamente por meio da liturgia salmódica, efetivação das
profecias escatológicas presentes na cultura do povo (aqui, a profecia
atribuída a Jeremias no Segundo livro de Macabeus), e tempo final de
manifestação da misericórdia divina para com aqueles que o servem.
O tom de realização escatológica do desígnio salvífico de Deus é
coerente com sua manifestação em forma de relâmpagos, vozes, trovões
etc. Novamente, isso evoca a Teofania do Sinai e a intervenção direta e
definitiva de Deus na vida de seu povo. A promoção de libertação ganha,

399
Dn 7, 14.27.
400
Sl 2.
401
2Mc 2, 1-8.
402
Uma questão suficientemente séria seria sobre o cânon escriturístico
aceito por João de Patmos. Ou seja, quais livros ele mesmo considera como
sagrados e quais não. Não pretendemos entrar nesta discussão.
121

como outrora, simultaneamente, caracteres de revelação divina,


celebração litúrgica, purificação do povo, libertação sobre os inimigos e
batalha vencida de Israel (antes étnico, agora escatológico) por parte de
Deus sem que seu povo precise engajar-se na luta. Certamente isso é
coerente com o restante da obra de João de Patmos.
Uma última consideração sobre a perícope resultará na tessitura
de comentários de ordem estrutural no livro. Notemos 403 a grande
semelhança existente entre as sete trombetas e os sete selos. Ambos os
setenários iniciam com quatro narrações relativamente curtas, e cuja
articulação se mostra bastante evidente (quatro cavaleiros, quatro ações
sobre os elementos). Em seguida, o quinto elemento, mais longo, inicia
uma série de outros três, de algum modo relacionados (nos selos, a
relação se dá pela ação litúrgica e as preces dos que estão sob o altar; nas
trombetas, pela águia e a sequência de sofrimentos). Após o sexto
elemento, há dois interlúdios (os 144 mil seguidos da multidão
inumerável; o anjo e as testemunhas). Depois, o sétimo elemento, além
de breve e, de algum modo, decepcionante (não se evidencia uma ação
divina de ordem cataclísmica, como se esperaria), centra-se na ação
litúrgica e na já referida tétrade. Esta estrutura existe aqui e não se
repete, nem mesmo no setenário das taças. Há, portanto, um todo coeso
até o presente. Como vimos, a narrativa dos selos dá a entender que
Deus controla a história e ouve a prece de seus fiéis, atendendo-lhes pela
implantação de seu Reino, ocorrida com o toque das trombetas.

17 APOCALIPSE 12, 1-17

A cena ocorre “no céu”404, havendo uma Mulher e um Dragão. Ela


está para dar à luz, e há inimizade entre os dois. Sem que haja
intervenção de ninguém, o filho recém-nascido é levado junto ao trono
de Deus, e a Mulher é sustentada no deserto. Há batalha no céu e na
terra, entre o Dragão e os anjos, bem como com a Mulher e seus
descendentes. Por duas intervenções milagrosas, esta é salva.
Embora corramos o risco de parecer exaustivos, é conveniente
notar novamente a preocupação dos autores consultados em estabelecer

403
São vários os autores que evidenciam este paralelismo, haurindo dele
diferentes conclusões. Para isso, uide, por exemplo, CORSINI. op.cit, p. 179.
404
Ap 12, 1.3.
122

em que tempo da história405 acontecem cada um dos fatos


simbolicamente narrados no Apocalipse. A preocupação secundária, mas
que ocupa grande volume literário é a identidade de cada uma das
figuras, sobretudo da Mulher. Aparentemente, ainda que seja verdade
que o livro de Gênesis (bem como outros livros da Escritura) seja
frequentemente mencionado406, as consequências exegéticas dele
hauridos são, no mínimo, periféricas.
Entretanto, ao indagarmos sobre quais textos veterotestamentários
João de Patmos poderia fazer referência, dentre os vários (que
apresentaremos) sobressai um: Gênesis 3407. Elenquemos as razões pelas
quais se pode arguir que este seja pano de fundo para Apocalipse 12: i) o
termo δράκων, usualmente traduzido por “dragão” significa, também,
cobra ou serpente408; ii) este ser é referido explicitamente como a
“serpente primitiva”; iii) entende-se a vitória do descendente da mulher
sobre a serpente; iv) a mulher dá à luz em meio a dores; v) há inimizade
evidente entre a serpente e a mulher e sua descendência; vi) há
intercâmbio entre os termos “dragão” e “serpente” 409; vii) há uma
expulsão de um paraíso; viii) a ideia da descendência aparece
recorrentemente em Apocalipse 12. Sendo assim, não se nos afigura que
esta alusão seja fortuita, e, uma vez que esta alusão veterotestamentária
dê explicação satisfatória dos personagens presentes na narrativa do
Apocalipse, entendemos que qualquer que seja a realidade retratada no
texto que nos propomos a estudar, está vista justamente sob o prisma do
pecado motivado pela serpente no paraíso terrestre.

405
uide, por exemplo, BEALE. Revelation, p. 242, PRIGENT. op.cit, p.
207, CORSINI. op.cit, p. 225, BAUCKHAM, Richard. The Theology of the
Book of Revelation. Cambridge: Cambridge, 1993, p. 94.
406
Conquanto PRIGENT. op.cit, p. 214, citando estudos anteriores, proíba
interpretação messiânica de Gn 3, 15 no judaísmo, ele mesmo afirma que essa
possibilidade existe, contanto que atribuamos a João de Patmos a autoria dessa
associação. Posição que ele mesmo defende, aliás, ainda que não reconheça esse
texto como estruturante.
407
BAUCKHAM. Revelation, p. 1296.
408
Dentro da Sagrada Escritura, podemos ver este uso do termo δράκων em
Êxodo 7, 9ss (LXX). Uma vez que pode ser vista como particípio de δράκω
(olhar fixamente), entende-se por que atribuiu-se este nome ao animal. Todavia,
a palavra ganhou características mais cosmológicas na a partir dos Salmos 73 e
103, nos quais, na LXX, é tradução de ‫ִלְו ָיָ֑ת ן‬, que costumamos entender como o
epíteto “Leviatã”.
409
Ap 12, 14ss.
123

Todavia, não é este o único eco de textos do AT. Há dois que dão
continuidade com o relato anterior: os 1260 dias (ou “tempo, tempos e
meio tempo”, 3,5 anos) retomam a alusão a Daniel 7; o fato do filho
nascido da Mulher ser descrito como quem “regerá as nações com cetro
de ferro” também faz alusão ao Salmo 2410, referendado na perícope
anterior.
Ainda de Daniel 7, temos a descrição dos dez chifres pertencentes
ao inimigo escatológico. Conquanto pareça este elemento tomado ao léu,
o intenso uso desta profecia de Daniel justifica que a semelhança não
seja coincidência. Na visão consecutiva deste profeta, surge suficiente
razão para a presença de outros dois elementos da cena de João: o
personagem Miguel411 acompanhado de um exército e o ato de derrubar
estrelas do céu por parte do inimigo do exército celeste. Além disso, de
modo obliquo, mas não desprezível, a Serpente identificada como
Satanás faz remontar a Zacarias 3, 1-5 (texto aludido pouco antes,
quando se falava das duas testemunhas), onde este aparece com o papel
de acusador na corte celeste, justamente como aqui. Também em Jó 1 –
2 há esta concepção. Por fim, a ocorrência do Sol, da Lua e de doze
estrelas parece remontar ao sonho de José em Gênesis 37.
Uma vez que tenhamos trazido à tona os dialogismos subjacentes
ao texto, passemos a discorrer sobre como todos esses elementos
interagem.
A retomada do tempo de três anos e meio poderia indicar que a
cena trata de uma explicitação do que fora descrito sobre as duas
testemunhas. Todavia, uma vez que ainda não é nossa pretensão
estabelecer uma estrutura complexiva do livro, atentemos para o fato de
que esse número, retomando Daniel 12 e a vitória sobre a Abominação
da Desolação412, indica que este período de luta tem caráter escatológico
e a vitória garantida é definitiva.
No relato da criação e da queda 413, Eva é denominada “Mãe dos
viventes”, e é apresentada como mãe de toda a humanidade. Seu nome
original, entretanto, é “Mulher”, de modo que o contexto indique que
410
Sl 2, 9.
411
Em Dn 8, é dito Príncipe do exército celeste, mas seu nome é
apresentado em Dn 10, 13. Devemos lembrar que um leitor dos séculos I ou II
não teria acesso a elementos de crítica textual, identificando facilmente estes
dois personagens como sendo o mesmo.
412
Convém reparar que, posteriormente, como nas denúncias contidas em
Daniel, o tempo de poder das bestas é indicado como período de idolatria.
413
Gn 2 – 3.
124

esta, do Apocalipse, e aquela, do Gênesis, são a mesma mulher, não em


sentido físico, mas numa personificação de um coletivo. A presença das
dores de parto indica que se trata de uma humanidade pecadora, não
isenta do que hoje chamamos de “culpa original”. Todavia, ainda que o
pecado marque a existência humana e lhe confira o sofrimento, este não
é infrutífero, uma vez que é justamente a descendência nascida em dores
de parto que fará com que a vitória escatológica aconteça. Aqui, três são
os vencedores: a Mulher, poupada do poder da Serpente, o seu filho
nascido, levado ao céu, e os outros descendentes dela, que observam os
mandamentos de Deus e o testemunho de Jesus. É verdade que a vitória
ainda não ocorreu, mas todos os três são apresentados como inimigos da
Serpente, embora somente esta tenha a atitude de iniciar um combate.
A complexidade dos males apresentados até o momento,
traduzindo-se em dores de parto e combate escatológico, ganha uma
riqueza de sentido muito particular. O “protoevangelho” de Gênesis 3,
15 cumpre-se na salvação da humanidade414, por meio do Ungido de
Deus, que instaura seu reino, mesmo com a revolta dos reinos da terra,
como vemos em Salmos 2. Se, outrora, a expulsão do paraíso era
operada contra a humanidade, e um querubim fora posto como meio de
garantia de que este retorno fosse impossibilitado, agora, há inversão
total do cenário: o tentador é expulso, e quem garante que seu poder
esteja limitado também é um ser angélico. Persiste a inimizade
anunciada no relato do pecado original, mas, como antecipado
justamente nesse relato, há certeza sobre o final do drama humano: a
cabeça do Dragão será esmagada.
Uma vez que o antigo inimigo seja descrito com caracteres que
fazem lembrar os inimigos escatológicos de Daniel, este se apresenta de
modo bastante concreto. Há uma presentificação clara deste na história,
e será ainda mais clarificada à frente, uma vez que os elementos de
descrição das bestas serão novamente retomados da mesma profecia
(Daniel 7), que, utilizando o paradigma da história de quatro reinos 415, vê
o curso da história como orientado a um final divinamente estabelecido,
mas com inimigos bastante concretos no percurso até este término
escatológico.
O Ungido de Deus é levado para junto de seu trono. Ora, isso
promove uma identificação com o Cordeiro de Apocalipse 5 e, para um
414
Se o Sol, a Lua e as Doze Estrelas forem eco do sonho de Jacó, em Gn
37, então seria lícito afirmar que a humanidade encontra seu coroamento na
Aliança de Deus com Israel.
415
CLIFFORD. The Roots…, op.cit., p. 33.
125

cristão, é suficientemente claro que se trate da pessoa de Jesus. Filho da


humanidade decaída, é, todavia, levado ao céu. Sua vitória está
realizada416 e seu sangue é penhor da vitória de todos aqueles que se
dispõem a segui-lo417. Trata-se de fato consumado418.
Se até mesmo os mais justos dentre os homens (tomando aqui os
relatos de Jó e Zacarias) eram vistos sob as lentes da acusação por
Satanás, isto não mais é verdade, pois há uma purificação que faz com
que tudo isso seja passado. Notemos que há a vitória por meio de
sangue, já aludida como limpeza e alvejamento de vestes no quinto selo,
e que, vimos, trata-se de uma concepção haurida dos rituais sacrificais da
Antiga Aliança, sobretudo de Levítico 16. Vemos, então, que a medição
realizada pelo anjo do Templo419 é efetivamente garantia de preservação
para todos os que, por meio da purificação realizada pelo sacrifício
vicário de Cristo, mas participada por meio do “desprezo da vida” 420,
ingressam no Santuário Celeste e dele participam como sacerdócio régio.
De fato, aqueles que participam dessa liturgia celeste recebem o mandato
da alegria421.
A Mulher vive agora no deserto, mas é carregada em asas de
águia. Ora, isso ocorre com o povo de Israel em Deuteronômio 32, 11.
Sendo assim, persiste a inimizade, e os descendentes da Mulher ainda
são objeto de guerra por parte do Dragão, mas tal coisa acontece como
um caminho rumo à pátria prometida. Se, antes, a criação ficara hostil à
humanidade por causa do pecado, até mesmo ela vem em seu socorro
contra o Dragão expulso do paraíso. O sofrimento do combate
escatológico não passou aos que permanecem sobre a terra, e os
personagens dessa peça derradeira ainda serão apresentados com mais
detalhes, mas já é certo que até mesmo as maldições outrora impostas
por consequência do pecado são revertidas em favor do povo de Deus 422,
a humanidade já de alguma forma redimida, feita presente na Mulher. É
verdade que houve o pecado por obra desta, mas a promessa de vitória
agora já se realiza.

416
Ap 12, 10.
417
Ap 12, 11.
418
ἄρτι ἐγένετο ἡ σωτηρία, “agora veio a ser a salvação”; Ap 12 ,10.
419
Ap 11, 1-2.
420
Ap 12, 11.
421
Ap 12, 12.
422
PRIGENT. op.cit, p. 217, VANNI. op.cit, p. 66.
126

Os interlocutores de João, sofrendo na terra as consequências


dessa guerra promovida pelo Dragão, sabem-se tratados como Israel no
deserto, levados em asas de águia e sustentados pelo próprio Deus, que,
não está alheio a este drama, sendo solícito com os que guardam os seus
mandamentos e o testemunho de Jesus423.
É esperado que aquele que já está condenado promova uma
revolta e tente uma vingança. E esta vem, por meio da guerra tentada
pelo Dragão. Entretanto, esta será inútil, pois seu tempo é curto.

18 APOCALIPSE 12, 18 – 13, 10

Os manuscritos divergem no início desta narrativa entre ἐστάθη


(3ª pessoa) e ἐστάθην (1ª pessoa). Sendo assim, há dúvida sobre quem se
pôs na praia do mar, se o vidente ou a Serpente. Seja como for, após isso
surge uma besta (θηρίον, fera, animal selvagem) de aspecto terrível e
aliada do Dragão, dele recebendo seu poder e fazendo suas vezes na
realidade terrena. É contrária a Deus, proferindo blasfêmias, mas tem
admiração e apoio. Faz guerra aos santos, mas é adorada pelos homens.
Seu tempo, todavia, é limitado: 3,5 anos.
Em Apocalipse 17, 8ss, será retomada a figura de uma besta com
sete cabeças e dez chifres. Lá, haverá maior identificação de cada
característica destas, associando as sete cabeças a sete colinas. Há
consenso de que isso signifique a cidade de Roma da época de João.
Todavia, deixemos, por ora, esse tipo de consideração, em favor dos
ecos escriturísticos desta perícope, precisamente.
Todo o imaginário em torno da besta é oriundo424, ou de Daniel 7,
ou do Dragão. De fato, sobe do mar 425, tem dez chifres426 sobre os quais

423
Ap 12, 17.
424
CORSINI. op.cit, p. 241.
425
Dn 7, 3.
426
Dn 7, 7.
127

há coroas427, tem sete cabeças428, é semelhante a um leopardo429, mas


com pés de urso430 e mandíbula de leão431.
Uma vez que Daniel 7 tenha sido já recorrentemente evocado, em
virtude do julgamento do Filho do Homem, o ambiente formado pela
contraposição entre a Mulher e sua descendência, e o Dragão e as duas
bestas ganha um caráter decididamente escatológico. O personagem que
emerge do mar aqui tem uma função ulterior à factualidade histórica 432,
conquanto a subsuma. De fato, uma vez que a sucessão de quatro reinos
presente em Daniel é aqui toda associada em uma única figura
terrificante, esta passa a possuir um aspecto como que transcendente,
meta-histórico, de personificação de uma estrutura que atravessa a
história, a perpassa, e se faz presente também no tempo do autor.
Simplesmente por fazer menção de modo direto Daniel 7,
podemos intuir que a força que se levanta do mar terá seu fim certo sob
o poder do Filho do Homem em um juízo que instaurará um reino
definitivo. Acrescenta-se a essa certeza a proporcionada pela explicação
de João de Patmos, segundo a qual a besta tem 3,5 anos para exercer seu
poderio. Este tempo, como vimos, não é fortuito, mas alusão de Daniel
10 – 12, onde também há a narrativa de um julgamento final de
instauração do Reino de Deus. Como vemos, esse tem sido o mote do
texto joanino.
Corsini433 chama a atenção a um detalhe importante. O Dragão é
quem entrega à besta seu poder e sua autoridade. Não o contrário.
Notemos que se o Dragão traz à tona a realidade subjacente ao mal,
presente desde a origem, e que concatena ao primeiro mal (moral, o
pecado primeiro, causado justamente pela tentação deste ser) os males
subjacentes (físicos, ou seja, a luta contra a Mulher), então a
continuidade do combate original tornado escatológico entre o Dragão e
a Mulher e sua descendência é apresentada por meio das estruturas que
tornam presente este mal, ou seja, a besta.
Notemos que essa potência que surge do mar é representante de
reinos por meio de duas vias que permitem essa conclusão: i) a alusão a

427
Ap 12, 3.
428
Ap 12, 3.
429
πάρδαλις, Dn 7, 6.
430
Dn 7, 5.
431
Dn 7, 4.
432
BEALE. Revelation, p. 268.
433
CORSINI. op.cit, p. 242.
128

Daniel explicita por si só que se trate de uma realidade atuada em


grandezas de ordem política; ii) a besta tem um trono e,
posteriormente434 será identificada de maneira mais precisa como sendo
uma grandeza imperial. Sendo assim, ainda que uma exegese possa ser
feita dizendo que esta fera signifique Roma dos séculos I e II, também é
verdade que o modo como usa Daniel dá a entender que se trata de uma
espécie de generalização desta realidade, hipostaticamente representada
nesta figura. Por isso, entendemos também que a realidade socialmente
construída em relações essencialmente de poder e certa ordem política,
quando contrária ao Reino de Deus, são personificadas no relato pela
figura da besta. Uma vez que, como temos defendido (seguindo Corsini
e Beale) que este personagem não signifique apenas um reino na história
universal, mas toda a realidade de combate a um desígnio salvífico
primeiro, então a conclusão imediata é que esse tipo de estrutura ganha
seu poder da realidade originária do pecado (aqui, o Dragão).
O afastamento de Deus causa, portanto, uma desordem não
somente cosmológica (como poderíamos entender pela revolta dos
elementos contra o trabalho humano em Gênesis 3), mas também
sociológica, ainda que não se reduza a esta (reiteramos: a besta não é a
Serpente; e esta lhe é muito superior). São coexistentes com a condição
humana decaída, portanto, realidades políticas que combatem o Reino de
Deus.
Não é à toa que, herdando novamente Daniel 7, a besta seja posta
em nível blasfematório contra Deus. Todavia, as blasfêmias erguidas
pelos chifres em Daniel, ainda que não sejam formalmente explicitadas
aqui, o são ao menos de maneira intuitiva. Prigent 435 e Beale436 lembram
que já Daniel, quando retrata Antíoco IV Epífanes como sendo o quarto
monstro que sobe do mar, dá a entender que tais palavras arrogantes
sejam a pretensão divina do poder imperial macedônio. Aqui, entretanto,
isso resulta mais claro, uma vez que o grande feito da besta é apresentar-
se de tal modo que seja objeto de admiração e adoração, a ponto de que
até mesmo o nome de Miguel 437 se torna objeto de usurpação pela
realidade representada pela besta438. Sendo assim, seu poder
aparentemente divino dá a entender que o afastamento de Deus

434
Ap 17, 8ss.
435
PRIGENT. op.cit, p. 238.
436
BEALE. Revelation, p. 269.
437
‫ִמיָכֵאל‬, “quem como Deus?”, que foi vencedor da Serpente em Ap 12, 7.
438
Ap 13, 3s.
129

promovido pelo Dragão se realiza por meio de estruturas concretas que,


no mundo, colocam-se com a pretensão de ocupar o trono de Deus439.
Novamente, seu alcance limitado aos 42 meses dá a entender a
natureza de combate escatológico travado entre os descendentes da
Mulher e a besta. Sua vitória aparente não se dará sem o testemunho
fiel440 em contrário. Aqueles que guardam os mandamentos de Deus e o
testemunho de Jesus441 encontram na providência divina o consolo para
sua aflição. Esta se encontra novamente explicitada, de outros dois
modos: a presença no Livro da Vida e a citação de Jeremias 15, 2. Esse
texto abre uma perspectiva hermenêutica para Apocalipse 13, 10. Por um
lado, o fato de os santos encontrarem nisso a razão de sua perseverança
pode significar que, ainda que sejam presos ou mortos, Deus deles tem
cuidado e isso justifica até mesmo o martírio442. Por outro lado, se for
considerado o contexto de Jeremias 15, a mesma frase redunda em
sentença condenatória contra todos aqueles que são infiéis ao projeto de
Deus. Notemos como isso é coerente com a postura geral do Apocalipse
que reconhece o problema do mal no mundo, mas lhe dá duas
avaliações: uma redentora, com relação ao sofrido pelos santos e que
redunda em participação dos sofrimentos de Cristo; e outra judicativa, de
certo modo, correlata ao endurecimento do coração dos egípcios operado
por Javé.
Portanto, o mal primevo se mostra ainda presente nas realidades
mundanas, e opera em favor do afastamento de Deus por parte dos seres
humanos, mas não tem um poder ilimitado, ainda que sua presença na
desordem das relações seja tal que gere guerra entre as grandezas
contrárias ao Reino e aqueles que testemunham o único Deus da vida.

19 APOCALIPSE 13, 11-18

Há a descrição do aspecto e dos atos de uma outra fera. Ela surge


da terra, tem dois chifres como cordeiro e fala como dragão. Tem poder
e autoridade da primeira fera, e sua ação é promover um culto idolátrico
a esta, assinalando com uma marca, o nome ou o número do nome.

439
Paradoxalmente, esta é justamente a promessa de Ap 3, 21.
440
Ap 11, 2ss.
441
Ap 12, 17.
442
PRIGENT. op.cit, p. 244.
130

O texto se afigura complexo, talvez mais que os anteriores. O


contraste entre cordeiro e dragão é frequentemente explorado, mas se
nos afigura, ainda que sustentável, também este suficientemente difícil
de entender. De fato, tanto para a palavra ἀρνίον quanto para a palavra
δράκων, há exatamente duas ocorrências destas sem que um artigo
definido as preceda: a primeira, em que é anunciado o personagem 443, e
esta, em Apocalipse 13, 11444. Não se trata, com efeito, de similaridade
com o Cordeiro ou com o Dragão (ao menos, não primariamente), mas
de possuir características de cordeiro e de dragão. O que há de comum
com um cordeiro são os chifres, em número de dois, o que o distingue do
Cordeiro, que os tem em quantia de sete 445. E a semelhança com um
dragão é a voz, mas ocorre que o Dragão mesmo não fala, em todo o
capítulo anterior. Sendo assim, conquanto seja difícil, convém que
busquemos alguma luz para esta passagem em uma outra via.
Beale simplesmente afirma categoricamente “a descrição da
segunda besta como tendo dois chifres como um cordeiro é tomada de
Daniel 8, 3” 446. Yarbro Collins447 admite esta possibilidade.
Assumiremos que estejam corretos, mas julgamos conveniente haurir ao
menos alguns argumentos de que seja realmente assim, uma vez que
Prigent448, por exemplo, negue taxativamente que haja qualquer eco
veterotestamentário.
Convém notar um (e talvez o maior) argumento contrário a essa
afirmação: não há coincidência semântica. De fato, o animal de Daniel
8, 3 é κριός, enquanto temos aqui um ἀρνίον. Na língua portuguesa,
todavia, temos equivalentes semânticos para ambos os termos: carneiro e
cordeiro, respectivamente. Formalmente, tanto no grego koiné quanto no
português contemporâneo, a primeira palavra significa o animal adulto,
enquanto a segunda faz menção ao animal de idade mais tenra, de
aproximadamente um ano. Comprova-se que tais palavras sejam tidas
nesta proximidade pelo uso paralelo em Salmos 113, 4.6. Sendo assim,
trata-se, ao menos na ontologia do referido, de uma diferença meramente
aspectual, e não essencial. Além disso, o termo usado para o Cordeiro
443
Ap 5, 6; 12, 3.
444
Convém notar que a ausência do artigo não se dá pela presença da
preposição ὡς, como seria possível supor. De fato, verifica-se que o autor a
utiliza seguida de artigo definido em Ap 1, 16; 2, 27; 10, 1; 20, 8; 22, 12.
445
Ap 5, 6.
446
BEALE. Revelation, p. 278. Grifo do autor. Tradução livre.
447
COLLINS. Apocalipse, p. 860.
448
PRIGENT. op.cit, p. 245.
131

(ἀρνίον) é quase desconhecido da LXX, de modo que, se este fosse o


mote determinante para toda e qualquer exegese, não se sustentaria a
mínima associação do sacrifício vicário de Cristo com aqueles do AT.
Não é, como vimos, o que parece acontecer em Apocalipse 4 – 5, uma
vez que haure todo o linguajar cúltico justamente do ambiente litúrgico
judaico. Sendo assim, parece-nos mais aceitável que o autor
simplesmente faça um uso mais livre da terminologia, sem que esteja
copiando um certo texto a cada momento.
Favoravelmente à assunção de Daniel 8, 3ss como pano de fundo
para o texto de Apocalipse 13, 11ss, temos: i) a semelhança diz respeito
aos chifres, e, de fato, o texto de Daniel 8 centra-se não nos animais,
mas em seus chifres; ii) Daniel 8 se apresenta como uma profecia para
um tempo muito distante449, vista como escatológica pelo autor (quando
do encontro com o anjo em Apocalipse 10, 4), mas este elemento
realmente se apresentaria como faltante; iii) há conveniência de que um
trecho baseado em Daniel 8 siga imediatamente um outro pautado em
Daniel 7450; iv) a função da segunda fera e a função dos animais de
Daniel 8 é a mesma, ou seja, promover um culto idolátrico e corromper
a verdade451; v) a ação dos personagens tem caráter de corrupção e
domínio universal452; vi) isso explica o surgimento453 “da terra”454.
Ora, Daniel 7 utilizava a figura de quatro animais para,
sobrevoando rapidamente uma história de seu povo, evidenciar quanto a
perseguição de Antíoco IV Epífanes era pior455 e, ainda assim, estava
fadada ao fracasso. Depois disso, no capítulo seguinte, retoma os
mesmos personagens (com exceção de Babilônia) para que a mesma
mensagem seja reiterada, todavia dando espaço ao caráter cúltico 456. De
fato, ao final, há uma vitória definitiva do culto javista sobre o culto
idolátrico457. Portanto, se é que João de Patmos tenha em mente Daniel
quando da escrita da narração da segunda besta, desde sua apresentação,

449
Dn 8, 26.
450
Ap 13, 1ss.
451
Dn 8, 12.
452
Dn 8, 4; Ap 13, 14.
453
Este argumento é fornecido por BEALE. Revelation, p. 278.
454
Ap 13, 11; Dn 7, 17.
455
Dn 7, 23 TH.
456
Dn 8, 13.
457
Dn 8, 25.
132

a entende como um poder destinado à promoção do culto idolátrico, mas


cujo final será uma derrota em favor do Deus único e verdadeiro.
Se assim for, não admira que fale como dragão. Note-se que
apenas em Gênesis 3 é que há um dragão/serpente falante. E o conteúdo
de sua mensagem é justamente este: o culto de engrandecimento pessoal
em detrimento do criador. Realmente, a tentação primária da serpente,
conquanto tenha incitado desobediência, foi “sereis como deuses” 458,
negando a potência de morte de tal ato 459. Também a segunda besta
aparentemente convence a humanidade com a negação de uma morte
certa460 e, por meio do ato de fala, promove um engrandecimento de uma
potência estranha à divindade, como em Daniel 8, 4.10s.
Uma vez que esta segunda besta é capaz de fazer descer fogo do
céu461, há certa contraposição também com as duas testemunhas 462. Este é
o mesmo feito de Elias em 1 Reis 18, 38s; 2 Reis 1, 10-14 e, assevera
Beale463, feito como simulacro de milagre de um verdadeiro profeta,
remonta à disputa entre Moisés e os sacerdotes egípcios 464. Deste modo,
o autor alertaria que as características distintivas de um verdadeiro
profeta não seriam os milagres por ele operados, e sim o conteúdo da
mensagem, que remete ao Deus vivo.
Isso tudo se encontra em um todo coerente quando o modo de
operar da segunda besta se manifesta por meio da confecção de uma
estátua que deve ser adorada. Beale 465 e Prigent466 concordam que isso
remonta ao culto idolátrico promovido por Nabucodonosor em Daniel 3.
Além disso, a ideologia que não somente legitima e autoriza, mas
também impõe o culto à primeira besta adquire um tal significado social
que já não mais a Torá será sinal sobre a mão direita e a testa 467, mas a
marca das realidades contrárias ao projeto divino.
Assim, sintetizando os capítulos 12 e 13, poderíamos entender
que a realidade do pecado faz com que haja uma oposição entre a
458
Gn 3, 5.
459
Gn 3, 4.
460
Ap 13, 12.
461
Ap 13, 13.
462
Ap 11, 5.
463
BEALE. Revelation, p. 279.
464
Ex 4, 17.30.
465
BEALE. Revelation, p. 280.
466
PRIGENT. op.cit, pp. 248-250.
467
Ex 13, 9.
133

humanidade redimida e seus filhos e as realidades que decidem


obstaculizar a instauração do Reino de Deus. Estas são, em primeiro
lugar, o pecado. Em segundo e terceiro lugar, os mecanismos políticos e
ideológicos de manutenção de um ambiente hostil ao culto ao Deus
verdadeiro, propondo em seu lugar estruturas blasfematórias, ou seja,
que se colocam no lugar de Deus, buscando usurpar-lhe o trono.
Enquanto o Cordeiro dá a vida em favor de um resgate 468, o que existe
nas realidades opostas à salvação é uma perseguição contra os santos, e a
tentativa de extingui-los. Isto é evidenciado desde o começo, uma vez
que a primeira atitude do Dragão é a tentativa de devorar a descendência
da Mulher. Todavia, isso tudo não escapa aos desígnios de Deus, e tem
um alcance temporalmente limitado, findando com a implantação
definitiva de uma cidade livre de todo o mal.

20 APOCALIPSE 14, 1-5

O relato é breve. Os 144.000 assinalados estão com o Cordeiro


sobre o monte Sião. Há voz celeste e cântico por parte destes que são
virgens, seguidores do Cordeiro, resgatados e íntegros.
A despeito da brevidade do relato, a multiplicidade das
interpretações dadas é grande. Apenas como ilustração, elenquemos
algumas considerações. Para Yarbro Collins469, a virgindade significa
que se trate de uma espécie de grupo distinto de fiéis, contrapostos aos
Guardiões, de tradição enóquica. Enquanto estes decaíram pelas relações
sexuais, aqueles homens foram elevados por sua abstinência. Koester 470
entende estes indivíduos como sendo toda a comunidade cristã, que não
se contaminara idolatricamente, uma vez que esta prática é vista como
fornicação. Beale471 os pensa como “todos os santos de todas as eras”.
Fixamos, desde o início, como critério hermenêutico, uma busca
escriturística por sinais que possam estar subjacentes ao texto de João de
Patmos.
Antes, porém, convém estabelecer a relação com o capítulo 7. É
verdade que o autor não fala de “os 144.000”, mas omite o artigo. Sendo
assim, questiona-se se seriam ou não os mesmos. Em contrário, segundo
468
Ap 5.
469
COLLINS. Apocalipse, pp. 860-1.
470
KOESTER. op.cit, p. 609.
471
BEALE. Revelation, p. 292.
134

Prigent472, há apenas a ausência do artigo. Todavia, o elevado número,


por si, justificaria que este não fosse usado. Além disso, a presença do
Cordeiro, e o fato de terem todos sido assinalados, faz remontar sem
grande dificuldade a cena de Apocalipse 7. Sendo assim, com Prigent,
assumimos essa posição e, como vimos, trata-se de uma visão
militarizada daqueles que foram redimidos, e que, por isso, participam já
da liturgia celeste.
Este aspecto parece coerente com o texto que encontramos aqui.
De fato, continua Prigent473, estabelecendo paralelo com Joel 3, 5, o
Monte Sião é o lugar da salvação escatológica. Beale 474 vai ainda além,
alegando que a expressão “Monte Sião” é tradicionalmente associada no
AT à salvação de Israel. Mas podemos dizer mais. Das 35 ocorrências de
“Monte Sião” na LXX475, 8 (todas em 1 Macabeus) são narrativas
militares, 3 são profecias contra o povo de Israel 476, 1 é lamentação477 e
23 são promessas ou realização do reinado de Javé sobre o Monte Sião,
que não se dá sem intervenção militar de Deus. Como até mesmo nas
profecias contra o povo de Deus, é a fidelidade de Javé a si próprio e seu
reinado absoluto sobre Israel que prevalecem, esperamos desde já que o
relato que segue trate de uma grande conquista do governo de Deus
sobre a história.
A análise atenta de todos os possíveis ecos veterotestamentários
traz à tona dois versículos em particular: Isaías 31, 4 e Salmos 2, 6.
O salmo 2 tem especial relevância porque os elementos comuns
com Apocalipse 14 são mais abundantes: i) o Monte Sião; ii) a voz do
céu; iii) a presença do Pai do Messias. Este texto já esteve presente em
outros ambientes478, é messiânico e afirma a certeza de que a
contrariedade dos poderosos não é suficiente para evitar a chegada
decidida do Reino de Deus. Sendo assim, intui-se que a intervenção
divina na história se dará de tal maneira que qualquer objeção

472
PRIGENT. op.cit, p. 257.
473
idem.
474
BEALE. Revelation, p. 291.
475
2Rs 19,31; 1Mc 4,37.60; 5,54; 6,48. 62; 7,33; 10,11; 14,26; Sl 2,6;
47,3.12; 73,2; 77,68; 124,1; 132,3; Mq 4,7; Jl 2,1; 3,5; 4,17; Ab 1,17.21; Is 4,5;
8,18; 9,10; 10,12.32; 16,1; 18,7; 29,8; 31,4(2x); 37,32; Jr 38,12; Lm 5,18.
476
Is 8, 18; 9, 10; Jl 2, 1.
477
Lm 5, 18.
478
Ap 11 – 12.
135

simplesmente tenha um poder nulo sobre os desígnios divinos, servindo


esta mesma como condenação apenas para os que dela compactuam.
Mas é Isaías 31, 4 que aparenta ter mais semelhanças com o texto
que estudamos presentemente. A vitória de Deus, herdada por seu povo,
se apresenta como um leão que ruge – convém lembrar que o Cordeiro é
apresentado incialmente como o Leão de Judá – e defende o que é seu.
Além da impotência de todos os adversários, esta metáfora é designada
para um combate sobre o Monte Sião, que tem por destino certo a
salvação de Israel.
Se o Cordeiro, portanto, é combatente com vitória certa – o que
intuímos pelos textos referidos –, então aqueles que o acompanham a
têm por herança. A semelhança com Apocalipse 5 é evidente. A voz do
céu soa como harpa, e canta um cântico novo. Todavia, lá apenas os
quatro animais e os vinte e quatro anciãos o cantavam porque Deus
resgatou uma multidão; agora a multidão de todas as raças, tribos,
línguas e nações associa-se ao mesmo louvor celeste. Celebram, com
efeito, a vitória do Cordeiro, assim como outrora fora celebrada no
Templo apresentado por João de Patmos479. Como no passado, Deus
combate no lugar de seu povo, e este já antecipadamente sabe-se
vencedor de seus inimigos, com os quais, aliás, sequer travará combate.
A vitória do povo é participação da daquela de Deus.
Ainda assim, esta participação exige algo daqueles que a têm.
Para “acompanhar o Cordeiro”480 é necessária uma condição apresentada
aqui sob a alcunha de “virgindade”. Dentre todas as possíveis soluções, a
mais coerente para o que se espera da assembleia que tomará sua vez no
combate escatológico é a apresentada por Bauckham 481: a abstinência de
relações sexuais é condição de pureza ritual também para a guerra santa,
como vemos em 1 Samuel 21, 5s. Longe de qualquer acepção puramente
angelista ou antifeminista, entender a virgindade dos seguidores do
Cordeiro como a disponibilidade constante – quase como que congênita
– de engajar-se no combate escatológico, ou seja, renunciar ao pacto
com a besta para que possa ter parte decidida com o Cordeiro. Embora
não tome partido na discussão, Koester 482, ao apresentar essa
interpretação, acrescenta que essa multidão, combatente da guerra
escatológica, ao manter a pureza ritual, adquire também um caráter

479
Ap 4 – 5.
480
Ap 14, 4.
481
BAUCKHAM. Revelation, p. 1298.
482
KOESTER. op.cit, p. 610.
136

sacerdotal, o que é coerente com as observações de Yarbro Collins 483,


que observa que o termo primícias é técnico para o sacrifício e faz
remontar àqueles que se encontram sob o altar no quinto selo. Corrobora
com essa tese também o fato de que são “ἄμωμοί”484, o que, embora
possa ter caráter moral, é característica dos animais íntegros para o
sacrifício ritual485.
Em síntese, para a grande batalha que se aproxima (o dia da Ira de
Deus, em que se cumpre o tempo limitado já demarcado), apresentam-se
os personagens combatentes: o Dragão, as bestas, a mulher, o Cordeiro,
seus seguidores. Monta-se o cenário para que, em breve, seja executado
o juízo.

21 APOCALIPSE 14, 6-13

Há uma sequência de três anjos que anunciam, do céu, cada um,


uma mensagem. Em geral, a mensagem é um “evangelho eterno”,
destinado à universalidade. O primeiro anuncia o julgamento, apelando
para que se tema a Deus. O segundo fala da queda de Babilônia (até
aqui, ainda não se falara desta). O terceiro torna esta mensagem aberta a
todos os que a seguiram.
Bauckham486 e Beale487 notam dois textos veterotestamentários
aludidos e que desempenhariam um papel chave na interpretação desta
sequência de anúncios angélicos. Bauckham parte da estranheza do
termo “evangelho eterno para evangelizar” 488 para, por meio desta
expressão, estabelecer um paralelo com o salmo 95. De fato, a LXX traz
para Salmos 95, 2: “εὐαγγελίζεσθε ἡμέραν ἐξ ἡμέρας”, traduzindo “‫ַּבְּׂש ֥ר ּו‬
‫”ִמ ּֽיֹום־ְ֜ל ֗י ֹום ְיׁשּוָעֽת ֹו‬. Supondo que o autor tivesse em sua mente o texto
hebraico, a falta de coincidência vernacular no tocante à expressão
temporal seria, de fato, irrelevante, uma vez que o significado de ambas
as expressões em grego é suficientemente preciso para que sejam
tradução de ‫ִמ ּֽיֹום־ְ֜ל ֗י ֹום‬.

483
COLLINS. Apocalipse, p. 861.
484
Ap 14, 5.
485
Ex 29, 1.38; Lv 1, 3.10; 3,1.6.9 etc.
486
BAUCKHAM. Climax…, op.cit., p. 286.
487
BEALE. Revelation, pp. 300ss.
488
εὐαγγέλιον αἰώνιον εὐαγγελίσαι; Ap 14, 6.
137

Se for verdade que João de Patmos tinha em mente este salmo


quando da redação desta perícope, teríamos boa explicação para a
universalidade da mensagem do anjo, bem como para o mandato de que
seja dada glória a Deus, uma vez que a tomada de posse do reino por
Javé é, no salmo, motivo de conclamação universal a seu louvor 489. Este
salmo também faz o convite a que seja cantado um cântico novo, de
modo que sua conexão com o texto anterior 490 seja por si só
suficientemente clara.
Colocando na boca dos anjos um anúncio paralelo ao do salmo de
louvor universal a Javé-rei, o autor do Apocalipse declararia que mesmo
que os oponentes do combate escatológico apareçam terríveis, poderosos
e, mesmo que por um certo tempo, dominantes, a realeza do universo
pertence unicamente a Deus, que é seu criador.
Beale, por sua vez, segue linha diferente para a interpretação dos
três anjos, haurindo de um outro texto razão suficiente para a
terminologia neles presente. Para ele, o autor tem em mente Daniel 4. O
termo que mais lhe preocupa explicar é “Babilônia”, uma vez que, de
fato, trata-se da primeira ocorrência deste nome no Apocalipse. Os
argumentos que ele mesmo elenca em favor do paralelismo entre
Apocalipse 14, 6ss e Daniel 4 são: i) Babilônia é dita “a grande”,
terminologia comum entre os dois textos; ii) o objetivo da realização dos
feitos de ambos os textos é que seja dada glória a Deus491; iii) o cosmos é
tetrapartidamente descrito492; iv) a humanidade também é apresentada de
maneira quádrupla493; v) o tempo do castigo é apresentado como
“hora”494. Poderíamos acrescentar ainda a existência de um ser angélico
(no hebraico, o termo é ‫ִ֣ע יר‬, simplesmente transliterado por Teodocião
como ιρ, mas entendido como ἄγγελος na LXX).
Partindo desta argumentação de Beale, temos algumas vantagens:
a queda de Babilônia tem como razão a recusa de prestar culto ao Deus
verdadeiro. De fato, é porque julgou que tudo tinha sido feito por si,
prescindindo totalmente de Deus, que Nabucodonosor, segundo o relato
de Daniel (conquanto altamente questionável do ponto de vista
historiográfico), tenha sido punido com a vida entre os animais. A

489
Sl 95, 7s.
490
Ap 14, 1-5.
491
Dn 4, 34; Ap 14, 7.
492
Dn 4, 37; Ap 14, 7.
493
Dn 4, 1; Ap 14, 6.
494
ἐν ὥρᾳ μιᾷ; Dn 4:17; ἦλθεν ἡ ὥρα; Ap 14, 7.
138

experiência toda tem um objetivo claro: que Deus seja reconhecido


como criador e único rei de toda a história. Isso seria bastante adequado
aqui, uma vez que os habitantes de todo o mundo são julgados por
prestar culto à besta e não a Deus. Como vimos, a evocação à imagem da
besta também tem raízes em Daniel.
Uma vez que Babilônia é descrita com a ação de inebriar as
nações com o vinho do “desejo de sua fornicação” 495, convém notar que
João pode ter em mente ainda Jeremias 28, 7, que anuncia a queda de
Babilônia justamente por dar de beber de seu vinho à terra 496. Porque
beberam deste vinho, os habitantes da terra beberão da ira de Deus 497. A
semelhança terminológica, que faz uso de um múltiplo significado do
termo θυμός, parece evocar a lei do talião.
Em visão sintética, temos uma sequência de anúncios
concatenados de maneira ordenada. Deus é rei, e seu reino eterno
chegou. Isso implica o juízo em base ao culto do Deus verdadeiro, o
único criador, oposto aos ídolos498. Portanto, as forças que se colocam
em seu lugar são destronadas e caem (Babilônia, evocando sobretudo
Daniel 4), bem como, por consequência, aqueles que delas passaram a
depender por livre vontade499. A punição é apresentada nos termos do
castigo de Sodoma e Gomorra500.
Assim como Babilônia, Sodoma e Gomorra foram paradigmáticas
em seus pecados, tornam-se paradigmáticas no castigo e na queda.
Qualquer realidade presente que se suponha potente suficiente para
alçar-se ao nível da divindade cairá por própria conta. Então, a Roma da
época de João de Patmos, sendo consignada como “Babilônia, a grande”,
adquire também ela um papel de objeto de denúncias, como também de
atualizadora de uma grandeza que a transcende e se faz presente
multiformemente na história, por meio de realidades que se opõe ao
Deus verdadeiro.

495
ἐκ τοῦ οἴνου τοῦ θυμοῦ τῆς πορνείας; Ap 14, 8.
496
BEALE. Revelation, p. 302.
497
ἐκ τοῦ οἴνου τοῦ θυμοῦ τοῦ θεου; Ap 14, 10.
498
Sl 95.
499
Jr 28, 7.
500
Gn 19, 24; Ap 14, 10.
139

22 APOCALIPSE 14, 14-20

Sobre as nuvens, vem o Filho do Homem. A clássica expectativa


é acrescida de sua situação real (coroa) e judicativa (colheita),
conclamada por um anjo. Depois desta, outros dois anjos intervêm, um
vocalmente e outro por meio de ação. É realizada uma vindima. O lagar,
todavia, é instrumento de ira.
Há consenso entre os comentadores501: a cena faz eco de Daniel 7,
13; Joel 4, 13; e Isaías 63, 1-6. De fato, os elementos todos encontram
razão suficiente de sua existência nesta perícope à luz destas outras três.
De Daniel 7, 13ss, haure-se a escatológica figura do Filho do
Homem, sobre a qual já falamos. Não somente há sua referência
nominal, o que seria por si só bastante para estabelecer que João de
Patmos quisesse, de alguma maneira, remeter a Daniel, como também há
o fato de sua origem ser celeste e seu modo de locomoção relacionar-se
com nuvens. Sendo assim, as realidades por ele julgadas (aqui, indicadas
pela figura da vindima) são essencialmente as relacionadas com as
figuras evocadas na profecia daniélica, ou seja, no Apocalipse, aqueles
que pactuaram com a besta. Deste modo, o promotor do juízo definitivo,
identificado inicialmente com Cristo, aparece irrompendo contra as
realidades que se opunham ao desígnio salvífico de Deus,
essencialmente usurpando-lhe o trono.
Sobre o modo da realização deste juízo, evoca-se Joel e Isaías.
Deste modo, identifica-se o juízo sobre as nações esperado para o Dia de
Javé com a ação do próprio Cristo em Daniel. Desse modo, o prisioneiro
de Patmos continua a correlação que estabelece entre a vinda do Filho do
Homem e a realização do Dia de Javé. A leitura escatológica das
profecias contra as nações inimigas de Israel faz com que o autor
entenda que também os cristãos são destinatários de tais confortos
oriundos da certeza de que Deus governa a história e seus desígnios se
realizam soberanamente. Com efeito, em Isaías, a ação de redenção
divina sobre Israel em contrário daqueles que o oprimiam é vista como
inteiramente de Deus, sem qualquer intervenção humana502.
O que se descreve aqui é que o esperado juízo definitivo em favor
do povo eleito (Israel, aqui, mais que étnico, mas a comunidade
501
CORSINI. op.cit, p. 277, PRIGENT. op.cit, pp. 272ss, COLLINS.
Apocalipse, p. 861, BAUCKHAM. Revelation, p. 1298, KOESTER. op.cit, pp.
623ss, BAUCKHAM. The Theology…, op.cit., pp. 95ss.
502
Is 63, 5s.
140

verdadeiramente fiel à aliança) está em execução. Os personagens foram


apresentados, a vitória fora anunciada na perícope anterior. Agora,
acontece o julgamento. Notemos que há tema comum para o castigo: o
vinho. Ou seja, João, ao reler a esperança que vê consignada na
Escritura, entende que a mesma figura utilizada para ilustrar a corrupção
de Israel por parte das nações 503 também é usada para descrever o
instrumento da cólera divina504. Porque Babilônia embriagou as
nações505, aqueles que se deixaram embriagar beberão da ira de Deus 506.
Tanto a luxúria quanto a ira são vistas sob a alegoria do vinho, bem
como o resultado confluente de ambas as ações: o sangue dos pecadores
vindimados. Se houve (e será descrito, ainda, em 17, 2.6) o tempo em
que Babilônia se embriagava com o sangue dos justos, agora embriaga-
se da ira divina, apresentada em seguida na figura do conteúdo de
taças507.
Uma vez que a obra judicativa divina já foi apresentada, resta
agora acompanhar o desenrolar pormenorizado de sua execução.

23 APOCALIPSE 15, 1-4

Não diferentemente do início da seção das trombetas, há uma


introdução508 seguida de ato litúrgico hínico e solene 509. A introdução
fala do último sinal: os anjos510 com as taças da ira derradeira de Deus. O
ato litúrgico inicia com a imagem de um mar vítreo e pírico. Sobre ele,
estão os vencedores da besta, com as “cítaras de Deus” e cantando o
cântico de Moisés e do Cordeiro.
A ideia das taças como portadoras da cólera divina já fora
anunciada em Apocalipse 14, 9ss. Seu conteúdo, as últimas pragas, será

503
Jr 28, 7.
504
Jl 4, 13; Is 63, 1ss.
505
14, 8.
506
14, 10.
507
16, 1ss.
508
Ap 15, 1.
509
Ap 15, 2-4.
510
Esta por si só é outra semelhança com o setenário das trombetas. Em
ambos os casos, o agente do juízo é um grupo de sete figuras angélicas.
141

objeto de avaliação mais detalhada adiante 511. O contexto do Êxodo,


como veremos, está presente de maneira clara, e evoca as pragas
operadas por Moisés contra o Egito em favor da libertação de Israel, que,
aliás, também tinha um caráter cúltico e litúrgico. Sendo assim, não
surpreende que o hino colocado nos lábios dos vencedores seja o cântico
de Moisés, uma vez que este remete àquele entoado pelos hebreus após a
passagem do Mar Vermelho. Todavia, ainda que o tema das pragas seja
mais conveniente em seguida, há que se chamar a atenção para esse pano
de fundo bastante esclarecedor, uma vez que, transformando o inimigo
escatológico em uma espécie de grau máximo dos antigos inimigos de
Israel, nos quais estava ele presente, o autor de Patmos faz entender que
também a vitória sobre os egípcios deve ser lembrada aqui. Isso lança
luzes também sobre a figura apresentada pela expressão “como que um
mar”, retratada na cena, sobre o qual estão em pé os vencedores, pois a
vitória sobre o Egito se deu por meio da passagem por um mar, havendo
entre hebreus e seus opressores uma coluna de fogo e nuvem512.
Entretanto, com relação especificamente ao mar de cristal e fogo,
ainda que haja entre os comentadores 513 esta identificação com o Mar
Vermelho, ou quem previra vê-lo como o pavimento celeste 514,
propomos que, dada a identidade verbal entre 15, 2 e 4, 6, se trate da
mesma realidade. Como outrora víamos uma espécie de protótipo celeste
do móvel que compunha o ambiente cúltico do Templo em Jerusalém 515,
também aqui esperaríamos que se tratasse do mesmo objeto. Com efeito,
o ambiente é idêntico – o celeste – bem como o contexto litúrgico. E,
além disso, não há relato veterotestamentário de uma multidão se
locomovendo sobre um mar, mas apenas por dentro dele, sem que o
tocasse. Portanto, sendo um objeto de purificação ritual, os que
estivessem sobre ele seriam aqueles purificados para que pudessem
prestar o culto celeste.
Um elemento intratextual que corroboraria esta tese é o modo da
descrição de vários personagens que poderiam, então, ser identificados.
Estes vencedores presentes aqui, com as cítaras de Deus, têm grande
semelhança com os 144.000 que acompanham o Cordeiro sobre o Monte
Sião. Se estes são, como aparenta, os mesmos do sexto selo, que
511
Ap 15, 5ss.
512
Ex 13, 21s; 14, 19s.
513
BAUCKHAM. Revelation, p. 1299, BAUCKHAM. Climax…, op.cit., p.
297.
514
PRIGENT. op.cit, p. 280.
515
1Rs 7, 23-26.
142

entendemos todos como sendo o mesmo grupo (os 144.000 e a multidão


inumerável), não admiraria que a atitude laudatória do povo de 7, 9ss
esteja na boca dos que lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro. Ou
seja, como os que aqui são os vencedores da besta também passaram por
um processo de purificação, a julgar pelo mobiliário litúrgico, então há
uma associação cada vez mais clara entre a integração como membro na
liturgia celeste, a inserção em um povo régio e sacerdotal, a participação
com o destino de Cristo e a purificação. O que permite que tudo isso seja
feito é o sangue de Cristo, ou seja, seu sacrifício vicário. Em outras
palavras, ainda que esses textos sejam individuais, aparentam formar um
todo coerente, e concorde também com a ideia presente nos evangelhos
segundo a qual a morte de Jesus foi acompanhada pela ruptura do véu do
santuário (ainda que não tenhamos intenção de propor dependência
literária entre esses textos).
Note-se que em Apocalipse 12, 11, a vitória sobre o Dragão é
vista em função do sangue do Cordeiro, o mesmo que alvejara as vestes
da multidão de 7, 9ss. A pureza que os autoriza a prestar culto diante do
trono de Deus é não ter compactuado com a besta, ou seja, as realidades
que, opostas à unicidade do poder de Deus, buscam usurpar-lhe o trono.
Esta alvura, portanto, é vitória. Donde a identificação do mar cristalino
de 15, 2 com o de 4, 6.
A presença de um rio de fogo diante do trono de Deus em Daniel
7, 9ss pode ter inspirado o autor a associar este elemento à cena descrita.
Se esse for o caso, como defende Beale 516, não admiraria que os
vencedores sejam justamente aqueles que combateram contra a besta,
uma vez que o imaginário desta é oriundo justamente deste texto.
Passando ao cântico em si517, este “é quase um florilégio de frases
extraídas do AT, principalmente dos Salmos”518. Apresentemo-lo em
forma de quadro comparativo com as frases a que faz menção:

516
BEALE. Revelation, p. 317.
517
Ap 15, 3s.
518
PRIGENT. op.cit, p. 281.
143

Ap 15, 3s LXX

μεγάλα καὶ θαυμαστὰ τὰ ἔργα σου, (…) κύριε (…) θαυμαστὸς ἐν δόξαις
κύριε ποιῶν τέρατα (Ex 15, 11)
ὡς ἐμεγαλύνθη τὰ ἔργα σου κύριε
(Sl 91, 6)
μεγάλα τὰ ἔργα κυρίου (Sl 110, 2)
θαυμάσια τὰ ἔργα (Sl 138, 14)

ὁ θεὸς ὁ παντοκράτωρ κύριος ὁ θεὸς ὁ παντοκράτωρ


(Am 3, 13; 4, 13)

ἀληθινὰ τὰ ἔργα αὐτοῦ καὶ πᾶσαι αἱ


δίκαιαι καὶ ἀληθιναὶ αἱ ὁδοί σου, ὁδοὶ αὐτοῦ κρίσεις (Dt 32,4)
δίκαιος κύριος ἐν πάσαις ταῖς ὁδοῖς
αὐτοῦ (Sl 144, 17)

Τίς δὲν ἤθελε σὲ φοβεῖσθαι, Βασιλεῦ


ὁ βασιλεὺς τῶν ἐθνῶν· τῶν ἐθνῶν (Jr 10, 7)
4
τίς οὐ μὴ φοβηθῇ, κύριε, καὶ
δοξάσει τὸ ὄνομά σου;
πάντα τὰ ἔθνη ὅσα ἐποίησας ἥξουσιν
ὅτι μόνος ὅσιος, ὅτι πάντα τὰ ἔθνη καὶ προσκυνήσουσιν ἐνώπιόν σου
ἥξουσιν καὶ προσκυνήσουσιν κύριε καὶ δοξάσουσιν τὸ ὄνομά σου
ἐνώπιόν σου, ὅτι τὰ δικαιώματά σου (Sl 85, 9)
ἐφανερώθησαν.

9. Paralelos entre Ap 15, 3s e diversos textos da


LXX
Ainda de acordo com Prigent519, o núcleo do cântico é a ação de
Deus na história e na vida dos justos, que não vencem por si mesmos,
mas participam da vitória obtida por Deus, a redenção por meio da Cruz
e da Ressurreição. Todos são convidados a tomar sua parte no louvor
celestial por meio do reconhecimento dos sinais históricos da ação de
Deus, mas enquanto uns lhes dão atenção e, por isso, são salvos e já
estão em comunhão com a liturgia celeste, outros passam pelos
cataclismas ignorando o sofrimento alheio e haurindo para si a
obstinação contrária ao arrependimento. Assim, convém notar que após
as sete taças da ira, não haverá conversão, mas permanência nas más
ações.
519
id.ibid., p. 282.
144

24 APOCALIPSE 15, 5 – 16, 23

Embora haja quem divida esta perícope em duas ou três, dada a


continuidade existente na cena, optaremos por vê-la inteira. Como
acontecera com as trombetas, sete seres angélicos recebem instrumentos
que, quando utilizados, redundarão em algum tipo de sofrimento
causado ao mundo. Desta vez, todavia, são taças. Há ordem para que seu
conteúdo seja derramado, o que é feito por cada anjo. Entre as
trombetas, há eventuais ocorrências: um hino angélico, uma espécie de
extrusão demoníaca em forma de sapos, e um enxerto em forma de
admoestação. Por fim, quando da voz celestial dizendo “está feito”,
ocorre novamente a tétrade relâmpagos, vozes, trovões e terremoto, com
as consequências cataclísmicas contra Babilônia.
Dentre os usos do AT no texto que pretendemos estudar aqui,
destaca-se muito a tradição do Êxodo, sobretudo no tocante às pragas 520.
De fato, nota-se que: a primeira taça e a sexta praga são úlceras; a
segunda e terceira taças, bem como a primeira praga é a transformação
de águas do mar e rios em sangue; a quarta taça, falando sobre o ardor
do sol, lembra a sétima praga, quando há chuva de pedras, mas o flagelo
é relacionado ao fogo521; a quinta taça contém trevas e úlceras, como a
nona e a sexta pragas; a sexta taça relaciona um rio (seco, no caso) com
a emersão de rás, como a segunda praga; a sétima taça traz granizo,
como a sétima praga. Corsini vai além, ainda, ao propor que o banquete
de carnes humanas preparadas aos animais em Apocalipse 19, 18 seja
correlato com a morte dos primogênitos no Egito. Independentemente de
sua exatidão, o que se entende é que o setenário das taças é uma
atualização escatologizada e universalizada da libertação de Israel do
Egito. Um último argumento, desta vez vocabular, em favor desta
associação é que os flagelos descritos no Apocalipse recebem o nome de
πληγὰς, como em Ex 11, 1; 12, 3.
Como foi feito até aqui, o prisma hermenêutico pelo qual leremos
o texto do Apocalipse é a influência que recebe dos textos aos quais
alude. Portanto, podemos entender que a ação ocorrida quando do
derramamento das taças da cólera divina seja a mesma que a pretendida
no êxodo de Israel. Assim como outrora, o povo de Deus encontra-se
520
Notam essa relação: VANNI. op.cit, p. 72, PRIGENT. op.cit, pp. 285ss,
CORSINI. op.cit, pp. 307-9, COLLINS. Apocalipse, p. 862, BAUCKHAM.
Revelation, p. 1299, BAUCKHAM. The Theology…, op.cit., p. 102.
521
Ex 9, 23s.
145

imiscuído entre as realidades que condena, e o inimigo escatológico não


se está geograficamente distinto do povo redimido. Aliás, a voz do céu
ordena “saí dela, meu povo” em Apocalipse 18, 4, referindo-se a
Babilônia. Sendo assim, concordamos com Beale 522 ao dizer que o
objetivo geral dos sofrimentos enviados com as taças da ira divina é o
“endurecimento do coração”, entendido não como Deus fazendo o papel
de tentador, ou influenciando interiormente o homem para que se afaste
dele, mas em relação à ação divina com o propósito de colocar em
evidência as opções realizadas por cada ser humano, seja a favor do
Reino, seja a favor das iniciativas que lhe são contrárias. Essa ação não
apenas escancara a opção fundamental de cada um, mas também as
consequências radicais desta escolha, uma vez que a conversão não se
deu, mesmo que o pacto com a besta as tenha tido como consequências.
Acrescentamos, ainda, que o testemunho da caducidade de todas as
realidades alheias a Deus é causa de sofrimento para aqueles que nelas
colocam suas vidas.
Encontramos suficiente relação com um outro texto, também
apontado por Beale523, como ecoante veterotestamentário desta perícope:
Levítico 26, 21. Dois são os argumentos que apresentamos pelos quais
pode-se propor que João fizesse memória do Levítico quando da redação
do Apocalipse: i) a tradição do Templo e da Lei foi muito usada no texto
todo, e certamente era muito bem conhecida do autor; ii) a coincidência
semântica é exata, uma vez que o texto da Torá traz “προσθήσω ὑμῖν
πληγὰς ἑπτὰ κατὰ τὰς ἁμαρτίας ὑμῶν”; iii) em ambos os casos, a ação
punitiva de Deus está intimamente conexa com a pertinácia no mal.
Este último argumento é também – sem apriorismo – uma
consequência interpretativa, uma vez que há reforço da ciência de que
Deus intervém na história com o objetivo de denunciar e coibir a escolha
definitiva pelas realidades contrárias ao seu reinado. Note-se há uma
espécie de lamento, ou triste constatação de que não houve
arrependimento dos homens vitimados pelas penas divinamente
infligidas524, o que implica que a possibilidade disso ainda estaria em
aberto, bem como seria mesmo visada pelo autor de tais ações.
Até aqui, discorremos sobre as consequências hermenêuticas do
uso da tradição das pragas do Egito sobre as taças da ira no Apocalipse.
Todavia, ainda há outros elementos ocorrentes na cena e que ainda não
ganharam nossa atenção: as vestes dos anjos que possuem as taças, as
522
BEALE. John’s use…, op.cit., p. 205.
523
BEALE. Revelation, p. 323.
524
Ap 16, 9.
146

próprias taças, a fumaça do Templo, o cântico angélico, os espíritos


demoníacos e as consequências do sétimo selo. Passemos, portanto, à
consideração desses elementos, cujos ecos veterotestamentários
aparecem de maneira mais oblíqua.
Em primeiro lugar, as vestes dos anjos são as mesmas do Filho do
Homem525 do capítulo 1. Não repetiremos as considerações sobre esta
figura, e nem tampouco pretendemos identificar cada um dos anjos com
este personagem – o que seria consideravelmente imprudente, a nosso
ver. Todavia, como no caso do “anjo forte” do capítulo 10, a remissão à
semelhança do ente presente em Daniel 7 indica que o que está para ser
realizado é ato próprio de Deus, não com um objetivo meramente
vindicador, mas de juízo escatológico de libertação de um povo
oprimido por potências que superam as forças humanas. Uma vez que os
destinatários, todavia, não são propriamente as bestas, nem tampouco o
Dragão, mas aqueles que com eles compactuaram 526, entende-se que o
juízo presente em Daniel, realizado aqui, não é meramente de uma
realidade supra-histórica, mas também pessoal, concernente ao modo de
participação na atuação destas realidades no nível da história humana,
feita, obviamente, por seres humanos.
As vestes de linho também remetem, como vimos 527, à índole
sacerdotal. Além disso, o objeto nas mãos de cada anjo é φιάλη, cujo uso
no AT é fortemente ligado ao culto. Os próprios anjos saem do Templo
de Deus, como nota Yarbro Collins528. Portanto, reforça-se o que foi dito
acima, sobre o juízo promovido especificamente por Deus. Todavia, o
uso comum do termo φιάλη com Apocalipse 5, 8 (este, também em
contexto litúrgico) indica529 que as preces dos santos, ouvidas, redundam

525
BEALE. Revelation, p. 323.
526
Ap 16, 2.
527
Acima, à página Error: Reference source not found, há considerações
sobre as vestes brancas. Verbalmente, não há coincidência aqui, mas o linho
limpo e brilhante de Ap 16, 2 reporta facilmente a esse tipo de indumentária.
Sobre a relação entre vestes de linho e sacerdócio, também convém notar que o
texto atribuído a Hegesipo por Eusébio de Cesareia, o Martírio de Tiago,
associa o “direito e a faculdade de entrar no íntimo santuário do Templo” com o
uso de “veste de linho”. Sobre isso, uide HEGESIPPUS. Commentarium
Actuum Ecclesiasticorum. – in: MIGNE, Jacques Paul Patrologiae Cursus
Completus: series graeca. [S.l.]: [s.n.], v. 5, p. 1308.
528
COLLINS. Apocalipse, p. 862-3.
529
BAUCKHAM. Revelation, p. 1299.
147

no juízo de Deus sobre a terra. Como no Egito, Deus ouve530 as preces


dos seus e age em seu favor por meio de uma libertação cuja
consequência termina por ser trágica para aqueles que se punham no
lugar de deuses.
A fumaça que enche o Templo e impede que haja alguém em seu
interior remete a 1 Reis 8, 10 e Isaías 6, 4531. Como vimos quando dos
capítulos 4 e 5, esses textos, que trazem a presença da tradição do
Templo, eram bem conhecidos do autor. Em ambos os casos, a presença
de Deus não é vista apenas como realidade estática, mas também
atuante, por meio do perdão e da purificação. A evocação da presença
litúrgica em Isaías está ligada a uma purificação do profeta, bem como o
envio para um povo a quem Deus dá a possibilidade da conversão.
Sendo assim, a situação apresentada no Apocalipse não parece evocar
um fatalismo histórico pessimista, mas uma última ocasião de
arrependimento, recusada, todavia, pelos habitantes da terra 532. Essa
recusa, todavia, tem uma consequência: no Primeiro livro dos Reis, é por
meio da prece no Templo que se alcançaria de Deus o perdão dos
pecados. Esta, impossibilitada pela fumaça que preenche o Templo,
impede qualquer tipo de prece de intercessão em favor daqueles que se
encontram sob a iminência do castigo divino.
Quando a terceira taça é derramada, completando a segunda e
relembrando a primeira praga do Egito, uma nova interpretação desta
praga é dada por meio do hino angélico: trata-se de juízo retributivo,
similar à lei do talião 533. É por causa do derramamento de sangue justo
que os habitantes da terra são destinatários da ira de Deus. Outrora, o
juízo admoestativo apareceria arbitrário, mas não agora, pois é mostra da
falsidade da impressão de que os atos humanos não têm uma
consequência final e derradeira, por meio de uma inversão dos papéis.
A reação das forças hostis a Deus é a convocação para uma
batalha, que acontecerá na Montanha de Megido. Como vimos 534, a
realização definitiva do Reino de Deus está associada com sua vinda,
pautada tanto pela referência a Daniel 7, quanto pelo uso de Zacarias 12,
10ss. Ora, também aqui, na alusão a Megido, aparece o texto de

530
Ex 3, 7.
531
BAUCKHAM. Revelation, p. 1299, BEALE. Revelation, p. 325.
532
Ap 16, 9.
533
BAUCKHAM. Revelation, p. 1299.
534
uide p. 63.
148

Zacarias, indicando, segundo Bauckham535, a concretização final do que


fora anunciado no início do livro. Sendo assim, é curioso que a decisão
escatológica sobre o destino dos que carregam a marca da besta é
tomada primeiramente por esses mesmos e, depois, apenas confirmada
por Deus, uma vez que estes é que seguem os inimigos do Reino em
uma batalha contra o Todo Poderoso. Esta guerra é vista como o Grande
Dia536.
Por fim, as consequências da última taça são muito semelhantes
às da última trombeta e do último selo. Sobre isso, discorreremos
adiante537.

25 APOCALIPSE 17

Os próximos três capítulos formam um todo coerente e bem


organizado. No capítulo 17, é mostrada a Prostituta no deserto, e os
elementos que ocorrem na cena são descritos pelo anjo. O capítulo 18,
comparativamente longo, contém as reações terrestres à queda de
Babilônia. E o capítulo 19 manifesta as reações celestes. A estrutura do
capítulo 17 é bastante coerente com as visões proféticas contidas no AT,
particularmente no livro de Daniel. Há a visão e, em seguida, um anjo
fornece sua explicação538.
A identificação da Prostituta é um dos pontos controversos,
havendo geralmente a tendência de tê-la como o Império Romano. Uma
vez que as cabeças são reis, bem como os chifres, retomando Daniel 7,
24 (que se explica muito bem pela associação de cada elemento com

535
BAUCKHAM. Revelation, p. 1299.
536
Cumpre notar que o texto aludido, de Zc 12, não somente anuncia uma
grande batalha em ‫ְמִגּדֹון‬, tendo como resultado a destruição de todos os inimigos
da cidade santa, como também fala que os habitantes desta olharão para um
transpassado (Zc 12, 10). Bem, o juízo definitivo é realizado por aquele que se
apresenta como Cordeiro imolado. A vitória contra todas as nações é feita por
aquele que foi transpassado na Cruz. Ora, como ‫ ְמִגּדֹון‬é uma planície, não uma
montanha, poderíamos ousadamente inferir que João de Patmos pensasse no
Calvário como local de batalha escatológica. Preferimos, entretanto, manter essa
consideração como nota de rodapé e no subjuntivo, pois, embora muito
coerente, não pode – a nosso ver – ser haurida sem mais do texto.
537
uide p. 186.
538
uide, por exemplo, Dn 7; 8; Zc 1, 7-17.
149

uma figura histórica), tenta-se frequentemente determinar quais são,


concretamente, os personagens designados por João 539, mas os resultados
são bastante controversos, e há mesmo quem diga ser impossível esse
tipo de empreitada540. Sendo assim, não nos opomos que a Prostituta seja
Roma, mas aparenta-nos demasiadamente conveniente ao leitor atual
situá-la somente no plano histórico passado, sem qualquer incidência
presente. Portanto, pretendemos que o modo pelo qual é descrita esta
personagem, sobretudo por meio de ecos veterotestamentários, elucide
sua caracterização mais genérica, ou seja, possibilite uma compreensão
do porquê Roma, naquele momento histórico preciso, seria digna de que
se lhe atribuísse o pouco honroso título de a Grande Prostituta.
Convém notar, com Prigent541, que, depois de “grande”, a
primeira adjetivação que esta recebe é “sentada sobre muitas águas”.
Isso, por si, alega o autor, é incompatível com a cidade propriamente de
Roma, uma vez que entrecortada por apenas um rio. Todavia, Jeremias
28, justamente ao descrever o juízo derradeiro de Babilônia, a intitula
justamente “κατασκηνοῦντας ἐφ᾽ ὕδασι πολλοῖς542”. Ora, colocando a
atenção sobre o oráculo todo, percebemos uma grande quantidade de
similitudes com a descrição do Apocalipse: i) o juízo de Babilônia, como
já dissemos; ii) o mandato de que Israel saia de Babilônia 543; iii) o uso da
figura de uma taça de ouro544; iv) a narrativa de um embriagamento das
nações545; v) a queda da cidade é comparada com uma pedra lançada à
água546.
Encontramos um ambiente externo contra o qual devemos
comparar Apocalipse 17 e do qual ganhará contraste. Todavia,
aparentemente, há também elementos internos com os quais devamos
confrontar o texto. Corsini547 repara que a mulher se encontra no deserto,
como também ocorre com aquela do capítulo 12. Como a descrição da
besta sobre a qual esta se senta também é similar à daquela do capítulo

539
PRIGENT. op.cit, pp. 297-9, CORSINI. op.cit, pp. 321-2.; COLLINS.
Apocalipse, p. 866.
540
BAUCKHAM. Revelation, p. 1300.
541
PRIGENT. op.cit, p. 300.
542
Jr 28, 13.
543
Jr 28, 6; Ap 18, 4.
544
Jr 28, 7.
545
Jr 28, 7; Ap 17, 2.
546
Jr 28, 64; Ap 18, 21.
547
CORSINI. op.cit, p. 324.
150

13, ele haure conclusões – a nosso ver um tanto quanto precipitadas –


segundo as quais há identidade entre esses personagens. Enquanto não
nos custaria aceitar a identificação das bestas, as mulheres, todavia, nos
aparentam bastante antitéticas. Aliás, enquanto uma é celeste, outra é
decididamente terrestre. Enquanto uma se veste com sol, lua e estrelas,
outra se veste de abominações e luxo. Uma é perseguida pelo Dragão,
enquanto outra é como que ginete de besta. Bem, como a esposa do
Cordeiro, ao final do Apocalipse, é descrita como “γυναῖκα τοῦ
ἀρνίου”548, parece-nos mais sensato que esta cidade seja antítese daquela
que desce do céu, e não meramente identificada com a mulher do
capítulo 12.
Ainda que não julguemos apropriado igualar a Prostituta com a
Mulher, negar entre elas qualquer relação tampouco se nos apresenta
como atitude prudente. Ora, se os filhos da Mulher foram perseguidos 549
pelo Dragão, agora é esta outra mulher, Prostituta, que, caindo, mostra-
se desonrada. E isso se mostra muito coerente com o pano de fundo
jeremiânico, uma vez que Jeremias 27 estabelece, de certo modo, um
contraste entre os filhos de Israel, que deixam Babilônia para não serem
dela cúmplices, e os filhos de Babilônia550, que também fogem, mas
assombrados e humilhados por causa da vergonha de sua mãe. De fato,
se em Jeremias 27 – 28, a queda de Babilônia é também manifestação do
Goel de Israel551, também aqui a queda desta é coincidente com a
epifania da nação dos redimidos, novo Israel, com nova Jerusalém. Esta,
aliás, também celeste, como a Mulher.
O ambiente desértico no qual a Prostituta se localiza também é
explicado por meio da referência aos profetas maiores. De fato, aponta
Prigent552, as profecias da queda de Babilônia, tanto em Jeremias553
quanto em Isaías554 descrevem a cidade caída como um deserto. A visão
de João de Patmos, portanto, é antecipatória do destino desta que traz
presente a força do inimigo escatológico (besta).
Findas as considerações para o momento pertinentes sobre as
consequências hermenêuticas de tomarmos Jeremias 27 – 28 como pano

548
Ap 21, 9.
549
Ap 12, 17.
550
Jr 27, 12.
551
Jr 27, 34.
552
PRIGENT. op.cit, p. 301.
553
Jr 28, 26.29.43.
554
Is 13, 21; 14, 23.
151

de fundo para Apocalipse 17, convém notar que não demos devida
atenção ao primeiro nome que designa esta mulher: Prostituta. Não é
novidade para um autor com mentalidade plasmada pelo AT que uma
cidade cujo ideário afaste do culto ao verdadeiro Deus seja chamada com
este apelativo. Com efeito, Israel todo 555, Jerusalém556, Tiro557 e Nínive558
receberam esta designação. Em comum, aponta Prigent 559, todas essas
realidades geográficas trazem a corrupção da idolatria. Um texto em
particular, todavia, sobressai: o da profecia contra Tiro. A razão pela
qual se diz isso é que, ao contrário de quando Israel é acusado de
prostituição com outros deuses, esta cidade é acusada de prostituir-se
com todas as nações, lembra Beale560.
Como se depreende dos lamentos de Apocalipse 18, também a
realidade de prostituição de Isaías 23 se aplica a esta Babilônia. Trata-se
de uma postura de comércio, ou seja, política econômica que,
favorecendo o luxo de alguns, promove a miséria de outros. Para
justificar esse tipo de atitude, destrona-se Javé. Quando este promove o
juízo, a consequência imediata se aplica a esta realidade, mas há outros
efeitos refratários, sobre aqueles que lucravam com a atividade
exploratória. Ou seja, seguem-se lamentos generalizados pela queda
desta potência comercial561.
Um outro detalhe que, agora, potencializa o afastamento desta
mulher com relação àquela do capítulo 12 é que o lamento de Isaías 23,
4 se refere à ausência da descendência da cidade opressora com a
linguagem da não ocorrência de dores de parturiente.
Por fim, outros elementos do Antigo Testamente que merecem ser
lembrados são: o nome da Prostituta “a Grande Babilônia” e suas vestes.
Segundo Beale562, o nome e o fato de o anjo dela falar como um
“mistério” remetem a Daniel 4563. Ora, Babilônia era um instrumento da

555
Os 5, 3.
556
Is 1, 21; Ez 16, 15.
557
Is 23, 16.
558
Hb 3, 4.
559
PRIGENT. op.cit, p. 300.
560
BEALE. Revelation, p. 354. Em favor da influência isaiânica aqui, Beale
ainda aponta como argumento que os juízos contra Tiro em Ezequiel são
importantes para a formação de Ap 18.
561
Is 23, 5; Ap 18.
562
BEALE. Revelation, p. 359.
563
Dn 4, 9.27.
152

autoafirmação de Nabucodonosor, uma manifestação de sua glória.


Como no caso da história sobre o rei antigo, também aqui o esplendor
aparente não é suficiente para opor-se aos desígnios de Deus.
Com relação às vestes564, são descritas como as do sumo-
sacerdote em Ex 25, 7; 28, 5-9.15-20; 35, 9. Como veremos adiante,
também a Jerusalém Celeste terá descrição baseada nessa tradição.
Portanto, aparentemente também Babilônia se apresenta com índole e
caráter sacerdotal, mas com um culto que promove luxo e riqueza para
si, às custas da opressão de muitos.
O final desta perícope retoma o tema de uma preparação para um
combate escatológico. Qualquer que seja a grandeza sociológica que, em
seu tempo, se identifique com a Prostituta, ou seja, qualquer que seja a
cidade, nação, instituição, ou realidade que, enriquecendo, se ponha a
embriagar-se com o sangue dos santos, não o fará por muito tempo
porque outras forças, cuja potência lhe transcende, são as que dão
sustentação a essas formas de organização humana, mais que
passageiras. Não existe lealdade no mal, e se o Cordeiro foi imolado
pelos seus, para fazer deles um reino e sacerdotes, aqui não acontece o
mesmo. A besta preza por seu poder, e trai todo aquele que se prostitui
em seu nome. Quando já não há razão para que os inimigos
escatológicos estejam ao lado de seus representantes, estes comem suas
carnes e as queimam565. Curiosamente, esse é o mesmo ato feito com os
animais sacrificados em holocausto566.
Ou seja, há grande contraste entre a imolação do Cordeiro e a
imolação da Prostituta. As duas são celebradas, mas uma como resgate, e
outra como juízo vindicativo. Uma é voluntária e redunda em salvação
para os que com o Cordeiro têm parte. Outra é involuntária e acaba em
tragédia para todos aqueles que fazem parte do âmbito de domínio da
Prostituta567. Uma é ato litúrgico, de culto, que causa uma liturgia
celeste, participada pelos seres humanos, salvos justamente em virtude
do ato de imolação ocorrido. Outra, paradoxalmente, é situação
vexatória, de completa anulação da realidade vítima do rito.
A esta altura, o leitor pode sentir-se convidado a escolher de que
banquete sacrifical quer participar.

564
BEALE. Revelation, p. 361.
565
Ap 17, 16.
566
Lv 1.
567
Ap 18, 4.
153

26 APOCALIPSE 18

As porções inicial568 e final569 deste capítulo são protagonizadas


por anjos que anunciam a queda de Babilônia. Curiosamente, o primeiro
fala em uma queda ocorrida, enquanto o último fala em tempo futuro.
Entre esses trechos, há uma voz vinda do céu 570 que convoca a separação
entre seu povo e Babilônia, bem como conclama a aplicação da lei do
talião. Demais, o capítulo é um conjunto de cantos fúnebres 571
pronunciados por aqueles pessoalmente atingidos pela queda da cidade.
Existe uma evidente conexão desta perícope com a anterior, sendo
esta continuação daquela. Portanto, não deve ser causa de admiração que
Jeremias 27 – 28 seja evocado com alguma frequência, sobretudo nas
porções extremas do capítulo. De fato, a cidade tornar-se abrigo de
animais selvagens e aves de rapina, o mandato de que o povo de Deus
saia de Babilônia, um elemento judicativo que alcança os céus, a punição
por meio de um incêndio, a retribuição segundo a lei do talião
(eventualmente em dobro) e a punição simbolicamente representada por
meio de uma pedra lançada, são todos elementos explicáveis à luz da
alusão a esse trecho de Jeremias572. Sobre isso, já discorremos
suficientemente ao falar do capítulo 17.
Todavia, não apenas Jeremias é tomado como profecia
escatologicamente realizada no escrito joanino. Também Ezequiel 26 –
28573 é evocado aqui, diz Prigent 574. Todavia, não segundo a versão da
LXX, entretanto, mas por meio de uma tradução do hebraico, ou outra
versão independente do texto grego. Elenquemos as aproximações entre

568
Ap 18, 1-3.
569
Ap 18, 21-24.
570
Ap 18, 4-8.
571
COLLINS. Apocalipse, p. 866.
572
Ap 18, 2 // Jr 27, 39
Ap 18, 4 // Jr 27, 8; 28, 6.9.45
Ap 18, 5 // Jr 28, 9
Ap 18, 6 // Jr 27, 15.29.
Ap 18, 8 // Jr 27, 32.34; 28, 25.30.32.58
Ap 18, 21 // Jr 28, 63ss.
573
São profecias contra Tiro, todavia, Babilônia aqui não é nome de uma
determinação geográfica, mas uma figura prototípica.
574
PRIGENT. op.cit, p. 310. BAUCKHAM. Revelation, p. 1301.
154

esses dois textos: i) os três grupos a lamentar a queda da cidade são os


reis, mercadores e marinheiros575; ii) a atividade da cidade é meio de
enriquecimento para os reis da terra 576; iii) os lamentos são
acompanhados de grande enumeração das mercadorias com as quais a
potência inimiga se enriquecia por meio do comércio 577; iv) além das
mercadorias enunciadas, há o tráfico de escravos, descrito como
comércio de ψυχας ἀνθρώπων578; v) há entonação de cantos fúnebres,
sinais de luto em temas que lamentam a cessação da fonte de riquezas
sem esboçar grande empatia pelo destino da cidade propriamente dita 579;
vi) a queda é vista como ruína de navegantes 580; vii) o resultado é a
interrupção de todas as ações musicais festivas581.
Além dos argumentos propriamente ditos pelos quais
pretendemos evidenciada a utilidade de contrastar Apocalipse 18 com
Ezequiel 26 – 28, convém notar que este texto já foi aludido
anteriormente582. O texto é forte. E se destaca também dentro do livro de
Ezequiel. Embora haja outras profecias extensas, é razoavelmente
considerável o volume textual empregado contra esta cidade. De fato,
aproximadamente 3/18 capítulos entre a porção dedicada a oráculos
contra as nações583. E, para além de critérios meramente métricos, é ao
príncipe de Tiro que é dedicada a maior acusação de todas, a de propor-
se como divino e, portanto, objeto de idolatria 584. Ora, percebemos que a
tônica do Apocalipse é uma denúncia contra a idolatria, e o objetivo dos
poderes demoníacos no mundo é um só: sua promoção585. Não
surpreende, portanto, que esse tipo de texto seja evocado
frequentemente. Aliás, quando Satanás é justamente quando Satanás é
lançado fora do céu que este texto em particular surge como figura

575
Ap 18, 9.11.17 // Ez 27, 16.35.36.29-30.
576
Ap 18, 9 // Ez 27, 33.
577
Ap 18, 11-13 // Ez 27, 12-24.
578
Ap 18, 13 // Ez 27, 13.
579
Ap 18, 19ss // Ez 27, 30-34.
580
Ap 18, 17ss // Ez 27, 27-29.
581
Ap 18, 22 // Ez 26, 13.
582
uide p. Error: Reference source not found.
583
SCHÖKEL, Luiz Alonso; DIAZ, José Luiz Sicre. Profetas. [trad.
Anacleto Alvarez.] São Paulo: Paulinas, v. II, 1991, p. 699.
584
Ez 28, 2.9.
585
Ap 17, 13.
155

paradigmática: como um querubim decaído, Deus o precipita


abaixo586587.
Esse texto do Apocalipse é marcado pelo pretérito588, mas há
intercalação com verbos no futuro589 e no presente com conotação de
início para permanência no futuro590. Ora, se identificamos a Prostituta
com Roma, à época de João sua queda ainda não se realizara. E mesmo
quando se houvesse realizado, tampouco se poderia dizer que jamais
haveria outro império semelhante em perseguição aos cristãos 591. Sendo
assim, propomos que a tônica geral do capítulo seja um cântico
antecipado de vitória, daquele que sabe as consequências finais da
perseverança ou não na relação com o Deus verdadeiro, mesmo que tais
certezas se realizem apenas na esperança. As realidades implicadas na
profecia de Patmos, quaisquer que sejam, estão em tal posição que,
mesmo que pareçam dominantes, se encontram sob a égide do poderio
divino, vencedor desde já, pois o Leão de Judá esteve morto e agora
vive. Sendo assim, toda autoproclamação de divindade de uma realidade
à parte de Deus está fadada ao fracasso e à queda.
Isso vemos desde já pelo modo como aparece o anjo que desce do
céu592. Se o rei de Tiro (e, pela identificação que sustentamos, Babilônia)
586
Ez 28, 14.17.
587
Certas tendências demonológicas se entenderiam a partir dessa metáfora.
Para além da mera alegoria, entende-se que a pretensão de se fazer divino seja a
causa da “queda dos anjos”. Não pretendemos aqui uma discussão a esse
respeito, nem julgamos que seja o principal tema na mente de João de Patmos.
Todavia, o que se evidencia é a correlação entre o pretender-se divino e fazer-se
reconhecer como tal com as potências inimigas dos cristãos no Apocalipse.
588
ἔπεσεν ἔπεσεν Βαβυλὼν; Ap 18, 2.
589
οὕτως ὁρμήματι βληθήσεται Βαβυλὼν; Ap 18, 21.
590
καὶ ὁ καπνὸς αὐτῆς ἀναβαίνει εἰς τοὺς αἰῶνας τῶν αἰώνων; Ap 19, 3.
591
Este trabalho não tem, sob hipótese alguma, pretensão de identificação
no livro do Apocalipse de eras cronológicas ordenadas, pois isso redundaria
muito facilmente em um exercício de futurologia cuja utilidade se apresenta, no
mínimo, como duvidosa. Tampouco temos o objetivo de fornecer qualquer juízo
de valor sobre grandezas sociais que se constituíram e dissolveram ao longo da
história. Mas aparenta-nos sensato supor que não seja correto imaginar a
interrupção completa da perseguição ao Evangelho com o Edito de Milão.
592
BEALE. Revelation, p. 382, não hesita em afirmar categoricamente que
este anjo é o Cristo. Prigent é mais sóbrio, apenas dizendo que sua aparência é
divina. O argumento é conhecido pelos dois: o conteúdo textual costuma ser
reservado a Deus no Antigo Testamento. De fato, muito notável é a semelhança
de Ez 43, 2 “ἡ γῆ ἐξέλαμπεν ὡς φέγγος ἀπὸ τῆς δόξης κυκλόθεν” com Ap 18, 1
156

era comparável a um querubim cintilante 593 que, mesmo sendo portador


de tal grandeza, foi lançado ao chão, agora, em contraste, um anjo
também cheio de poder e glória vem, mas para anunciar outra queda.
Este anjo594 dirá “não faças isso” quando João resolver prostrar-se diante
dele595.
É curioso que, seguindo-se ao anúncio da queda, a primeira
desgraça constatada em Babilônia parece ser oriunda de Isaías 13,
21ss596. Este texto também fala de Babilônia, e a acusa não de qualquer
ação, mas justamente daquela pela qual o rei de Tiro fora tipo de Satanás
no Apocalipse: fazer-se como Deus597. De fato, não há aqui a exclamação
explícita “eu sou um deus”, mas a pretensão de subir ao trono de Deus e,
portanto, reconhecendo sua condição criatural, usurpar-se ao cargo de
criador. Em certo sentido, foi o que fez o Dragão com relação às bestas.
É o que pretendem fazer os que são denunciados por João de Patmos. O
resultado em Isaías é o mesmo que em Ezequiel: a queda total e
absoluta, a precipitação à categoria mais baixa da existência598.
Evocando simultaneamente Jeremias 27, 39 (novamente, contra
Babilônia), o vidente antecipa o castigo constatado em Apocalipse 19, 3:
a fumaça que sobe pelos séculos. As cidades pecadoras por excelência,
objetos da mais profunda cólera de Deus, que fez cair fogo do céu (sobre
isso, convém notar que esse poder fora dado à segunda besta, em
Apocalipse 13, 13), são aqui meios de compreensão do destino da
Prostituta. Ainda não temos, entretanto, o destino das bestas, nem do

“ἡ γῆ ἐφωτίσθη ἐκ τῆς δόξης αὐτου”. E, realmente, o objeto glorioso da visão de


Ezequiel é a glória divina. Não nos opomos a isso, desde que haja suficiente
explicação para a descontinuidade do texto até Ap 19, 10, uma vez que aí o anjo
opõe-se ao culto, referindo-se a Jesus na terceira pessoa, e opondo-se ao
consenso obtido pelos capítulos 4 e 5, segundo os quais o Cordeiro assenta-se no
trono de Deus e recebe o culto de latria, conjuntamente com o próprio Sentado
no Trono.
593
Ez 24, 18.
594
Ou outro semelhante a ele, pois a continuidade da narrativa se mostra
questionável aqui.
595
Ap 19, 10. Convém notar aqui que em Dn 10, 9, também há prostração
diante de figura angélica, mas esta não se dá como forma de culto latrêutico,
mas como desfalecimento dos sentidos.
596
Notam isso BAUCKHAM. Revelation, p. 1301, PRIGENT. op.cit, p.
311, BEALE. Revelation, p. 382.
597
Is 14, 12-14.
598
Is 14, 15.
157

Dragão, e sim daquelas realidades que, colocando-se a serviço das forças


inimigas escatológicas, se opõem também ao Deus verdadeiro. Por ora
sabemos que, como fora com as cidades pecadoras, também agora é com
qualquer outra. De fato, como outrora, não há em Babilônia justo
algum599.
Um último texto profético evocado é o juízo contra Babilônia de
Isaías 47. Dele, João de Patmos haure a figura contrastante da mulher
rainha-prostituta600, o juízo repentino601, a pretensão de eternidade do
reinado de Babilônia602.
Enfim, com Vanni603, Prigent604, concordamos ao dizer que o
capítulo fornece um prenúncio do fim de qualquer potência que,
colocando-se no lugar de Deus, faz de sua influência política e
econômica, a razão de sua confiança e, por isso, promove um sistema
que se coloca em posição de possuir até mesmo vidas humanas 605. De
fato, a grande característica de Babilônia é de ordem financeira, e os
principais elementos com que é descrita são exemplos de um luxo
exacerbado.
Babilônia, aqui, ao ser descrita por meio de um entrelaçamento de
oráculos proféticos contra os antigos inimigos de Israel 606, adquire o
caráter escatológico de síntese e superação de todas as realidades que
causaram danos ao povo de Deus. Como sempre, as denúncias contra
esta cidade gira em torno da idolatria, pois somente o Deus vivo pode
efetivamente promover vida em abundância. Ao contrário dele, deuses
falsos são tomados como justificativa para um domínio que corrompe.
Além da identificação com a cidade de Roma, sem grande dificuldade
entendemos que esta era apenas a atualização temporal da realidade
descrita por João, e que esteve presente em Tiro, Babilônia, Macedônia,
Roma, e tantas outras que pretenderam para si títulos divinos como
meios de legitimação de uma situação de injustiça profundamente
radicada, incompatível com a vida dos cristãos. Quaisquer que sejam os
atores que, cedo ou tarde, se coloquem em capacidade de identificação

599
Ap 18, 4.5; Gn 18, 20s.
600
Ap 18, 7 // Is 47, 1.3.
601
Ap 18, 8; Is 47, 9.
602
Ap 18, 7 // Is 47, 7s.
603
VANNI. op.cit, p. 76.
604
PRIGENT. op.cit, p. 314.
605
Ap 18, 13.
606
Is 47; Jr 27 – 28; Ez 26 – 28.
158

com Babilônia, a prostituta (ou seja, que façam presente na história o


modo babilônico de ser), seu destino é certo: cairão, serão lançados para
longe e não mais serão vistos. A história, com efeito, está repleta de
casos assim.

27 APOCALIPSE 19, 1-10

A cena aqui descrita é continuação clara da anterior. Todavia, se a


queda de Babilônia antes provocava cantos fúnebres, lamentos e
anúncios de juízo, agora a reação é bem diversa: canta-se “Aleluia”. A
sucessão é intensa: uma multidão no céu, os vinte e quatro anciãos e
novamente uma multidão. Entrementes, há voz saindo do trono
conclamando ao louvor607. Ao final, um tanto enigmaticamente, rompe-
se a estrutura narrativa e alguém (supostamente o anjo de Apocalipse 17,
1) adverte João para que não se prostre diante de si, mas adore apenas a
Deus.
Convém iniciar as considerações sobre esta perícope notando uma
característica que, mesmo que evidente, é razoavelmente pouco
considerada por alguns comentadores: o “aleluia” 608. Esta palavra, em
sua forma grega ἁλληλουϊά, ocorre 23 vezes na LXX: 1x em Tobias, 1x
em 3Macabeus e 21x nos Salmos. Se considerarmos o Tanakh, a forma
hebraica609 ‫ ַֽהְללּו־ָֽיּה‬é exclusiva dos Salmos. Sua colocação também não é
ocasional. A depender do modo como se recortam os salmos, esta é a
palavra que encerra ou inicia o louvor. Na LXX, sempre inicia, assim
como em Apocalipse 19.

607
Isso também pode ser considerado um “Aleluia”, uma vez essa palavra é,
justamente, um convite ao louvor de Deus.
608
Dos comentadores aos quais tivemos acesso, apenas KOESTER. op.cit,
pp. 726.733, se detém em considerar esta palavra e, mesmo colocando evidência
de sua conexão com o livro dos Salmos, não o faz com tanta ênfase. Por se tratar
de palavra de grande ocorrência neste texto, e em ocasiões muito específicas dos
Salmos, julgamos necessário tomar em conta essa correlação.
609
A título de esclarecimento, “Aleluia” (ou, aqui, ἁλληλουϊά) é
transliteração de ‫ַֽהְללּו־ָֽיּה‬. Esta expressão contém duas palavras: ‫ַֽהְללּו‬, forma
imperativa, masculino plural do verbo ‫הלל‬, que significa louvar; e ‫ָֽיּה‬, forma
abreviada do nome de Deus, que, como vimos, deveria ser conhecido de João de
Patmos. Sendo assim, sua tradução é “louvai a YHWH”, o que explica seu uso
litúrgico tanto presente quanto, sobretudo, passado.
159

O uso litúrgico que dela fazemos pode nos causar certa sensação
de excessiva familiaridade. Todavia, o leitor da Escritura pode
identificar a semelhança forte e exclusiva entre o Apocalipse e os
Salmos, onde, aliás, sua ocorrência não é aleatória. De fato, pela divisão
da LXX, os salmos que iniciam com ἁλληλουϊά são: 104 – 106, 110 –
118, 134 – 135 e 145 – 150.
Estes salmos não são quaisquer. Em sua maioria, pertencem ao
quinto livro dos salmos610 (composto pelos salmos 107 a 150), e tinham
uso litúrgico nas festividades pascais. Sua recitação lembra os atos que
Deus realizou em favor de seu povo, e que demonstram simultaneamente
seu poder e seu amor de predileção para com Israel. A proclamação da
realeza de Deus acompanha os atos de juízo que teve em favor de Israel,
contra seus opressores. No caso do Salmos 149, não somente Javé é rei e
julga, como associa os fiéis ao seu julgamento, que é simultâneo e como
que identificado com seus louvores. Sua vitória é expressa como derrota
dos ídolos pagãos.
Não é à toa que este tipo de cântico é colocado ao final do
saltério. O caminho espiritual proposto pelo livro dos Salmos culmina
com a proclamação do reinado universal de Deus, reconhecido e
celebrado por todas as pessoas, e por todas as realidades, animadas e
inanimadas. A criação e a libertação encontram seu cume na realeza
divina, que é cantada liturgicamente, e lembrada nos momentos mais
festivos do povo de Israel.
Ora, João de Patmos, pelo conhecimento que demonstra ter da
vida cúltica do Templo, bem como pela naturalidade com que se refere
ao Tanakh, pode ser suposto como participante, ouvinte ou, ao menos,
conhecedor, das tradições festivas de Israel. Se a Páscoa já não era
celebrada no Templo de Jerusalém, pois este caíra em 70 d.C., os
cristãos agora a celebram de modo novo e inaudito: em comunhão com a
celebração celeste. Às pragas que sucederam (taças da ira), e que
anunciam a queda de Babilônia, inimigo escatológico, segue-se a
libertação definitiva do povo de Deus, celebrada com a merecida
dignidade.
Se há pouco as reações sobre Babilônia caída eram de lamentos
fúnebres, cantados por causa da perda financeira, aqueles que não
610
CHOURAQUI, André. A Bíblia: Louvores (Salmos). [trad. Paulo
Neves.] Rio de Janeiro: Imago, v. II, 1996, pp. 33-4. uide também KSELMAN,
John S.; BARRÉ, Michael L. Salmos. – in: BROWN, Raymond E.;
FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. Novo Comentário Bíblico São
Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Paulus, 2007. cap. 34, p. 1030.
160

compactuavam com esse tipo de realidade e, por isso, nenhuma


vantagem tinham com sua manutenção, entendem que o final dessa
injustiça é um novo e definitivo êxodo, ocasião pascal em que Deus age
em favor de seu povo com mão forte e braço estendido. Como outrora,
Javé vê e ouve a aflição de seu povo, e realiza uma definitiva salvação.
Novamente é o sangue de um Cordeiro que realiza o julgamento e opera
a separação entre uns e outros. Aqueles que deixaram Babilônia 611, não
se tornaram cúmplices de suas maquinações e, por isso, presenciam uma
nova aliança nupcial. Na primeira páscoa, Israel foi visto como esposa612,
e o pacto entre Javé e seu povo era pacto nupcial. Agora, um novo Israel,
não mais étnico, e sim universalizado e caracterizado pela fidelidade e
justiça613, é a nova esposa do Cordeiro.
O juízo de cada potência inimiga que se arvorou ao trono de
Deus, realizado pontualmente no AT contra Tiro e contra Babilônia,
alcançou sua efetividade derradeira e escatológica nos capítulos 17 e 18.
Mas também aqui ele se manifesta, não com ênfase no réu, e sim na
vítima, que canta libertada e chega ao final de uma experiência de dor
louvando o Deus que agiu em seu favor.
Em conexão com os textos anteriores, as acusações do julgamento
são retomadas, e entendidas como razões pelas quais as ações de Deus
são justas. A corrupção na prostituição e o sangue derramado 614 são os
motivos que fazem com que Babilônia tenha o mesmo destino que
Sodoma e Gomorra615. Ora, essas acusações foram vistas anteriormente
justamente sob o prisma de alusões veterotestamentárias, de modo que
também nisso sobressaia o caráter final, definitivo e como que meta-
histórico deste louvor: toda tribulação que perpassou a história e teve
suas causas na idolatria, ou seja, na permuta do Deus da vida por deuses
que são “ouro e prata”, encontra termo agora, e isso é causa de alegria
para os santos.
A grande multidão presente aqui616 facilmente recorda a de 7,9. Se
seu primeiro ato de fala foi cobrar justiça de Deus (“até quando?”), agora
sua ação é distinta: festejam a justiça que chegou.

611
Ap 18, 4.
612
e.g. Os 1; 3.
613
Ap 19, 8.
614
Ap 19, 2.
615
Ap 19, 3.
616
Ap 19, 1.6.
161

Ao término das considerações sobre a perícope de Apocalipse 19,


1-10, dada sua continuidade com os textos que iniciaram no capítulo 17,
convém que teçamos um comentário sobre o conjunto. Primeiramente,
um leitor atento poderia espantar-se com a extensão de semelhante
estrutura, maior, aliás, que a descrição da Sala do Trono (25 versículos),
da ruptura dos selos (35 versículos), do relato da Mulher e do Dragão
(18 versículos) etc. De fato, são 52 versículos. Sendo assim, caberia a
indagação sobre o significado de uma estrutura assas grande. Ora, os
textos principais referendados por João de Patmos tampouco são
pequenos. De fato, Jeremias 27 – 28, Ezequiel 26 – 28 e Salmos 106 –
150 também são textos longos. E seu uso não é de apenas algumas
porções, mas de uma inspiração bastante larga, trazendo à tona não
somente personagens, mas estrutura, modo de organização do
pensamento, acusações/louvações principais e posturas do autor diante
do personagem narrado.
Até o capítulo 16, com efeito, víamos uma sucessão de fatos e
efeitos, um drama de proporções cósmicas com um ato seguido de outro.
A partir de 19, 11, o modo narrativo continua e, se há hinos e outras
intervenções de ordem doxológica, lamuriosa ou imprecatória, são mais
breves e funcionam como elementos de um ato maior. Aqui não, o que
há é um único acontecimento: a queda de Babilônia, que é uma mulher
prostituta traída pela besta em que montava. Todo o resto é como que a
resposta do coro a este único evento – sob certo aspecto, apical –
ocorrido, esperado e preparado até então.
As duas bestas ainda permanecem com capacidade de ação.
Igualmente o Dragão. A Jerusalém Celeste ainda não veio. Todavia, a
forma mais próxima do inimigo escatológico, sua representação
imanentizada, Babilônia, deparou-se com o juízo. Deus mostrou-se rei
sobre a manifestação mais próxima dos poderes inimigos. As profecias
veterotestamentárias aludidas são menos enigmáticas e mais concretas.
Não são ecos de Daniel, da tradição cúltica do Templo, da Queda, do
Filho do Homem, da Lei, de Zacarias ou outro profeta que falasse por
meio de visões simbólicas. Agora tudo é muito palpável, e os textos
referendados são destinados a cidades, povos ou situações muito bem
situadas. Também o resultado obtido por João de Patmos aparenta ser
esse.
Como o motivo da escrita de um texto, usualmente, é a moção do
leitor/ouvinte a uma atitude617, uma postura diante da realidade,
percebemos um clímax aqui, onde se encontra o texto mais
617
NEWSON. op.cit, p. 202.
162

apaixonadamente escrito, no qual todas as reações são emotivas, e


trazem consigo estados psicológicos intensos, tanto de exultação pela
vingança consumada mesmo que vicariamente, quanto pelo lamento de
quem perdeu grande fonte de lucro.
Enfim, à luz do que pretendemos desde o início, ou seja, a
verificação das consequências hermenêuticas do fato de João parecer ter
em mente textos do AT quando da formulação do Apocalipse, haurimos
um corolário grave: como outrora realidades políticas, institucionais ou
sociais foram causa de sofrimento ao Povo de Deus e, por isso, agora
desmascaradas, são mostradas como presença e atuação de potências
ulteriores, às quais serviam e pelas quais sucumbiram, assim também o
atual inimigo tem sua queda decretada e, por isso, já celebrada, ainda
que haja reis para virem618. O desvelamento do sentido profundo do
passado, presente no texto por meio das alusões que evidenciamos, faz
com que transpareça também uma direção última da história presente,
seja este presente o de João de Patmos, seja o de qualquer outro cristão
que se indague “até quando?”. Assim, pudemos aventar uma boa razão
pela qual o autor dedicou tanto de sua pena a um único bloco textual.
Certo é que, quem quer que pretenda estar ao lado do Cordeiro,
também deve estar ciente de que somente Deus é Deus. De fato, o anjo
não permitiu ser adorado619 e talvez seja esta a tentação em que caiu a
Prostituta Babilônia.

28 APOCALIPSE 19, 11-21

Terminadas as reações sobre o juízo de Babilônia, inicia-se uma


nova rodada do julgamento escatológico. Novamente, o céu é visto
aberto. Aparece um cavalo branco, e seu cavaleiro é facilmente
reconhecido por um cristão como sendo Jesus Cristo, apresentado com
descrição minuciosa. Sua ação judicativa é anunciada por um anjo que
convoca as aves para um macabro banquete de carne humana. Com
Babilônia caída, agora é a vez das duas bestas serem julgadas e
condenadas, bem como seus seguidores.
Os ecos veterotestamentários que podemos elencar não são
poucos, mas não têm todos a mesma função na perícope. Há alguns que

618
Ap 17, 10.
619
Ap 19, 10.
163

afetam em sentido mais estrutural, a saber Ezequiel 38 – 39620 e Isaías


63, 1-6621, no seguinte sentido: Ezequiel traz a cena de um macabro
banquete de carne humana, e Isaías aporta a figura de um juiz que
tornou rubras suas vestes com sangue, metaforicamente apresentado
como mosto de uvas622.
Antes de mais nada, apresentemos os argumentos pelos quais se
acredita que João faça alusão aos textos que elencamos.
Quanto a Ezequiel 38 – 39, o julgamento de Gog e Magog,
aparentemente já iniciado, temos: i) principalmente, a convocação das
aves do céu para que comam carne humana, de reis e chefes militares,
cavalos e cavaleiros; ii) esta manducação por parte das aves tem um
aspecto sacrifical, ao menos aventado pela expressão τὸ δεῖπνον τὸ μέγα
τοῦ θεοῦ, e claramente expresso em Ezequiel 39, 17; iii) Gog e Magog
são personagens muito importantes no capítulo 20, de modo que a
proximidade com sua menção explícita já seja, por si só, razão para
supor que João já pensasse nesse texto; 4 – há índole judicativa por parte
de Deus.
Argumentos em favor do eco de Isaías 63, 1-6, temos: i) as vestes
vermelhas de sangue usadas pelo juiz escatológico; ii) sua ação solitária
em termos de julgamento623; iii) o processo judicativo é eficaz, mas é
realizado por meio da palavra; iv) os destinatários do juízo são de toda a
universalidade dos povos contrários a Deus; v) desencadeia a ação a
cólera divina.
Outros elementos624 podem ser explicados como reverberações
veterotestamentárias: i) o céu aberto provém de Ezequiel 1, 1 e Salmos
95, 13; ii) os olhos como de fogo são característica do Filho do Homem
em Daniel 10, 6; iii) a palavra como instrumento concreto de juízo está
presente em Isaías 11, 4; 49, 2; iv) a Palavra de Deus como guerreiro
que luta com uma espada ocorre em Sabedoria 18, 15; v) a ação de
620
Este eco do Antigo Testamento é notado por COLLINS. Apocalipse, p.
869, BAUCKHAM. Revelation, p. 1302, BEALE. Revelation, p. 415,
PRIGENT. op.cit, p. 350.
621
CORSINI. op.cit, p. 341. COLLINS. Apocalipse, p. 869, PRIGENT.
op.cit, p. 347.
622
Ap 14, 17ss.
623
Notemos que o Cavaleiro do Apocalipse não está sozinho, mas é
radicalmente distinto de seus companheiros. No tocante à ação combativa,
propriamente dita, cuja consequência é o encharcamento de sangue em suas
vestes, certamente ele é único.
624
Aqui, seguimos PRIGENT. op.cit, p. 341-3.
164

apascentar com cetro de ferro está presente em Salmos 2, 9; vi) o


apelativo Rei dos Reis e Senhor dos Senhores pode ser oriundo de
Daniel 2, 47; vii) o combate contra os reis da terra parece ser oriundo de
Salmos 2, 2; viii) o lançamento ao fogo como elemento judicativo
também está presente em Daniel 7, 11.
A combinação de todos esses textos é inaudita. Embora seja
verdade que mosaicos de trechos do AT já tenham ocorrido no
Apocalipse, desde já impressiona que aquele que supomos ser o Messias,
porque Rei dos Reis, Senhor dos Senhores, Palavra de Deus, e que fora
anteriormente descrito como cordeiro e como esposo, seja agora
referendado como cavaleiro.
Todavia, mesmo que seja original, não é injustificada a esperança
em um juiz escatológico que efetue de maneira definitiva a implantação
do Reino de Deus. Vemos, de fato, que a realização da cólera divina em
favor de seu povo não somente aguardada no AT, como ecos dessa
espera se encontrem justamente no texto em que é realizada.
Passando mais propriamente a considerar as implicações do uso
que João fez das Escrituras, percebemos que o juízo de Gog e Magog,
explicitamente mencionado no capítulo seguinte, se inicia já aqui,
independentemente de quem seja julgado, se as bestas ou o Dragão.
Embora o texto de Ezequiel deva ter sido motivado contra nações
concretas625, o drama exílico levou o autor a formular uma esperança
escatológica, para os últimos dias, ou, literalmente, ἐπ᾽ ἐσχάτων τῶν
ἡμερῶν626. A releitura por João não deveria, efetivamente, se dar à luz do
Sitz im Leben antigo, mas a partir de seu próprio ponto de vista. Sendo
assim, o povo reunido dentre todas as nações de que falava a profecia
antiga já não é mais o Israel que retorna do exílio, mas os cristãos.
Ponhamo-nos a ler Ezequiel 38 – 39 com a ótica de João de
Patmos. Rapidamente se destaca o fato de que o propósito iniquo das
nações é apresentado como sendo iniciativa de Javé. Veja-se, com efeito,
que embora Gog, da terra de Magog, e seus aliados todos, sejam
guerreiros fortes, montados em cavalos, em ordem de batalha impecável,
e com espadas às mãos, seu líder é apresentado como um cavalo domado
por Deus627. Assim como outrora Faraó tivera o coração endurecido pelo
mesmo que salvou Israel, agora também o inimigo escatológico tem no
625
O uso de Magog, Mosoc e Tubal em Gn 10, 2 como nomes de
personagens antigos sugere que tais fossem, realmente, em algum momento da
história, nomes de grupos humanos.
626
Ez 38, 16.
627
Is 38, 4.
165

coração um propósito que, à letra do texto, é-lhe incutido por Deus. Uma
abordagem sistemática questionaria esse dado, e facilmente o teria por
gerador de dúvidas. Aos propósitos deste trabalho, são suficientes as
considerações da página 108, sobre o endurecimento do coração de
Faraó: não se trata de um Deus caprichoso, mas de um senhor universal
da história que faz com que os desígnios malignos dos pecadores tenham
um desfecho tal que resulte na maior glória de Deus e no bem de seus
servos.
A mesma realidade, aliás, podemos ver refletida na alusão feita a
Salmos 2, 9 em Apocalipse 19, 15. De fato, este salmo, que funciona
como um preâmbulo a todo um saltério messiânico, tem como programa
básico um cenário de conflito de grandes proporções, no qual os povos
se revoltam, mas em vão. Deus mantém a promessa de fidelidade a seu
Ungido e, por isso, este esmaga os inimigos com cetro de ferro.
Continuando, todavia, a discorrer sobre as implicações de
Ezequiel 38 – 39 sobre este texto, vemos que Israel é um povo fraco,
com terra arrasada e reduzida a ruínas. Gog, de Magog, reúne nações
para uma presa fácil, a fim de saquear um povo humilde que vive sem
qualquer defesa628. O mesmo pudemos presenciar sobre os fiéis de
Cristo, que tiveram por única vitória aquela que se obtém sobre a morte:
o testemunho intacto até o fim629. Embora os cristãos pareçam, talvez até
a seus próprios olhos, como um povo sem defensor, sabem que seu
redentor vive, mesmo depois de imolado. Há um novo Israel, que morará
em segurança630, mesmo que em uma cidade que nunca tem suas portas
fechadas.
Como a Faraó, assim também a Gog de Magog. De fato, a
santidade de Deus, manifestada às custas deste rei sublevado, o é porque
ele mesmo se levantou contra Israel. Foi quando a besta e os reis da terra
se reuniram contra o exército do Cordeiro que aconteceu o episódio
derradeiro da ira de Deus631. Os instrumentos da cólera divina são os
mesmos: espada632, fogo e enxofre633, bem como as aves do céu634.

628
Ez 38, 10ss.
629
uide, por exemplo, Ap 6, 9ss, quando da ruptura do quinto e sexto selos.
Aqueles que perseveraram até a morte tiveram o sangue derramado e se
encontram sob o altar, clamando como Abel.
630
Ez 38, 14, Ap 21, 25.
631
Ap 19, 19 // Ez 38, 18.
632
Ap 19, 21 // Ez 38, 21.
633
Ap 19, 20 // Ez 38, 22.
166

Todavia, se em Ezequiel o executor do juízo divino é o próprio


Deus, imediatamente, aqui há algo de diferente. A presença judicante
está como que mediada pelo cavaleiro com vestes rubras. Não espanta a
figura, retomada de Apocalipse 14, 19s. Não havia, com efeito, ninguém
para pisar o lagar da ira de Deus, a não ser o ginete deste cavalo, pois,
apenas o seu manto aparece embebido em sangue 635. É com este – não
dificilmente identificado pelos cristãos como sendo Jesus Cristo – que se
realizam, portanto, as derradeiras profecias de salvação para Israel, que
agora abarca gente de todos os povos.
Esta vitória é vista como redenção, tanto em Isaías636 quanto no
Apocalipse, pois é realização da salvação dos companheiros do Cordeiro
da guerra contra eles promovida pela besta637.
Ou seja, ἐπ᾽ ἐσχάτων τῶν ἡμερῶν, realiza-se a definitiva
intervenção de Deus na história, a final redenção de Deus. Se antes havia
uma súplica, como que em tom de suspiro, “(…) Ah, se rasgasses os
céus e descesses”638, agora com os céus abertos639, isso já acontece, e
enfim há plenitude de realização de tudo o que era esperado. Aqueles
que confiaram no testemunho de Jesus Cristo, com ele partilham da
vitória, embora na derrocada final dos inimigos não tenham tido a
necessidade de batalhar.

29 APOCALIPSE 20

Estamos diante de uma passagem assaz controversa. De fato, até


mesmo grandes linhas hermenêuticas do Apocalipse recebem seu
nome640 das divergentes interpretações do texto que nos propomos a
634
Ap 19, 17-18.21 // Ez 39, 17ss.
635
Is 63, 3 // Ap 19, 13.
636
Is 63, 4.
637
Ap 19, 19.
638
Is 63, 19.
639
Ap 19, 11.
640
Referimo-nos aqui a tendências pré-milenaristas, pós-milenaristas e
amilenaristas. Com fins de ilustração e maior completude do trabalho,
seguiremos Koester para uma suscinta apresentação da história hermenêutica do
milênio. Segundo ele, a prevalente interpretação no ocidente até meados do
século IV seria tal que o reinado com Cristo fosse visto como a vida pós-morte
no céu, contraposta à vida terrena com atribulações. A visão oriental simultânea
167

estudar a esta altura. Sem correr grande risco de exagero, atrevemo-nos a


dizer que a principal atenção dos autores foi dada ao significado do reino
de mil anos narrado em Apocalipse 20, 2s.
Não temos pretensão de considerações dirimentes acerca da
polêmica atual sobre o tema. A restrição do estudo se dará – reiteramos –
de acordo com a proposta inicial: buscar as repercussões dos textos do
AT no Apocalipse de João.
O texto consiste, grosso modo, em uma prisão de Satanás por mil
anos, com a ressurreição de mártires. Em seguida, há a soltura de
Satanás, que reúne as nações para o último combate descrito no livro.
Todavia, um fogo descido do céu põe fim a isso, sendo o Diabo lançado
ao lago de fogo e enxofre. Após, há o julgamento de todos, e a segunda
morte, resultado de sentença divina.
Entre os raros consensos encontrados, estão a influência de
Daniel 7; 12 e Ezequiel 38 – 39 sobre Apocalipse 20. De fato, notam
esses ecos: Prigent641, Yarbro Collins642, Bauckham643, Koester644,
Beale645 e Corsini646. Dentre estes autores, Beale se destaca pela
quantidade de linhas que gasta considerando a significação de tais
influências, sobretudo de Ezequiel. Com efeito, outros autores dão
menos atenção a esse tipo de característica, que, todavia, sendo notada
por todos, é reforçada em importância como possível critério de
objetividade das análises a serem realizadas.
Antes, entretanto, de discorrer sobre isso, convém notar um
detalhe importante de Apocalipse 20, 2: “καὶ ἐκράτησεν647 τὸν δράκοντα,

identificaria o milênio com a vida dos batizados, contraposta à daqueles que não
renasceram das águas do batismo. Subsequentemente, em ambos os hemisférios
da Igreja, a visão preponderante identificaria o reino milenar com a era da
Igreja, sendo novamente a primeira ressurreição entendida como o batismo.
Entre os séculos VII e XV, a tendência mais aceita enxergava o milênio como
uma era a acontecer, mas que chegaria brevemente na história geral. Com a
Reforma Protestante, as interpretações se tornaram mais multifacetadas,
fazendo-se valer as terminologias que apresentamos ao início deste comentário.
KOESTER. op.cit, pp. 741-50.
641
PRIGENT. op.cit, pp. 362-9.
642
COLLINS. Apocalipse, pp. 870-1. Embora nada fale sobre Dn 7.
643
BAUCKHAM. Revelation, p. 1303.
644
KOESTER. op.cit, pp. 777-80.
645
BEALE. Revelation, pp. 422-4; 435.
646
CORSINI. op.cit, pp. 346.364.
647
Sujeito oculto: ὁ ἄγγελος do versículo anterior.
168

ὁ ὄφις ὁ ἀρχαῖος, ὅς ἐστιν Διάβολος καὶ ὁ Σατανᾶς, καὶ ἔδησεν αὐτὸν


χίλια ἔτη”. O objeto direto do verbo κρατέω está, como é evidente, no
caso acusativo, ou seja, δράκοντα. Todavia, o aposto que lhe segue não,
como deveria. Esse tipo de construção já foi usado no Apocalipse e,
como vimos à página 60, pode indicar um hebraísmo no sentido de
manter indeclináveis os nomes próprios. Como resultado, reforçamos as
conclusões da página 121 e seguintes, a saber: o Dragão faz alusão à
serpente primitiva de Gênesis 3. Se as bestas eram, então, modos de
operação temporal de um poder ainda mais antigo, e superior, ao qual
estavam submissas, o ente em juízo no momento é este mal primordial,
ou seu agente. Para nós, Diabo, Satanás, Serpente Primitiva, e outros
tantos apelativos para o mesmo sujeito, que entendemos
costumeiramente como um anjo decaído, é tão familiar que corremos o
risco de tomar por pressuposta a falsa alegação que se trate
originalmente da mesma realidade. Embora não seja assim, João de
Patmos enfatiza aqui que, a seu entender, são sim, e agora o julgamento
acontece sobre ele. Aquele mesmo que fora expulso do céu por Miguel
tem agora seu poder tolhido também na terra.
Quando de sua prisão, há a visão de tronos. Literalmente, temos
“Καὶ εἶδον θρόνους καὶ ἐκάθισαν ἐπ᾽ αὐτοὺς καὶ κρίμα ἐδόθη αὐτοῖς,
καὶ τὰς ψυχὰς τῶν πεπελεκισμένων διὰ τὴν μαρτυρίαν Ἰησοῦ (…)”648.
Novamente, o texto apresenta alguma dificuldade de tradução. Uma
possibilidade seria “e vi tronos, e sentaram sobre eles, e juízo foi dado a
eles, e as almas/vidas [acusativo] dos degolados [perfeito] por causa do
testemunho de Jesus”. Esclarecendo de modo mais enfático a questão
tradutória: quem é o sujeito do verbo καθίζω? Embora se possa propor649
que sejam as ψυχαί dos mártires, há falta de clareza, e, em última
instância, nada foi dito. Este é um forte argumento para que tais tronos,
que apareceram após o céu ser aberto 650 sejam uma alusão ao
problemático651 texto de Daniel 7, 9, como observado pelos autores que
mencionamos.
Esse juízo se dá por meio da ressurreição e da análise de livros,
assim como ocorre também em Daniel 12, 1s. Tais considerações,
aliadas à observação de que o juízo das bestas acabara de acontecer,
648
Ap 20, 4.
649
Como faz COLLINS. Apocalipse, p. 870.
650
Ap 19, 11.
651
Acima, falamos sobre o problema encontrado por rabinos quando da
leitura deste texto. Referendamos ao que foi dito à página 76, bem como à nota
191.
169

como também acontece em Daniel 7 – pois vimos que a figura da


primeira besta é originária deste texto – favorecem a opinião de que a
cena descrita é o cumprimento final dos desígnios de salvação de Deus,
por meio da implantação do Reino de Deus. De algum modo, então, o
juízo das bestas e o juízo do Dragão são próximos. Aquela cena que
pudera ser vista como iniciada em Apocalipse 4 – 5, quando a disposição
de tronos ao redor do grande trono de Deus fora vista com certa
admiração, de algum modo se pode entender em caminhos de conclusão
aqui. Portanto, tudo o que ocorrera no livro todo, por mais terrificante
que fosse, pode ser visto sob o prisma da providência de Deus. Ou seja,
nas palavras de Ezequiel, Gog e Magog levantaram-se com cavalos e
cavaleiros, mas têm freio à boca. O ginete de Apocalipse 19, 11 parece
não surpreender em sua vitória, embora esta se dê de modo
absolutamente repentino.
Detenhamo-nos, entretanto, em um aspecto mais pontual: a
proximidade (não temos aqui intenção de demarcação cronológica, mas
qualitativa) do juízo das bestas, ocorrido no capítulo anterior, e a
derrocada geral de toda potência maligna, ocorrente aqui. Não somente o
pano de fundo daniélico comum justifica isso, mas também a comum
alusão a Gog e Magog, textos característicos de Ezequiel. Beale652, que
tem posições muito bem definidas sobre a ordem dos “eventos” 653
descritos no Apocalipse, utiliza esse pano de fundo comum para propor
certa cronologia coincidente entre as guerras contra as bestas e a batalha
final contra o Dragão. Assim, ele propõe que o “milênio” seja anterior ao
lançamento das duas bestas no lago de fogo e enxofre654.
652
BEALE. Revelation, pp. 421-6.
653
Usamos este termo entre aspas não por depreciação, mas porque é
justamente aquele utilizado por Beale. Não nos apropriamos, todavia, dele no
sentido em que é usado pelo autor porque vem carregado semanticamente de
uma característica um tanto futurológica, quando busca entender – o que não
negamos explicitamente, mas também não supomos – uma correspondência
entre texto e fato anunciado e futuramente realizado. Não queremos
espiritualizar o texto, mas nos parecem exageradas as considerações
cronológicas implicadas por tomar o que é descrito no Apocalipse como
“eventos”.
654
Convém notar que também CORSINI. op.cit, pp. 341ss, ao buscar
entender a porção final do Apocalipse realiza suas identificações entre os
“eventos” descritos no livro. A batalha do Harmagedon, para ele, é descrita aqui.
PRIGENT. op.cit, pp. 362ss é ainda mais ousado. A luta entre a Serpente e a
Mulher e o combate entre Miguel e Satanás são também vistos como textos com
alto grau de parentesco com este.
170

Convém notar que uma consequência de suas considerações seja a


conciliação da existência de pessoas afeitas ao Dragão após o reinado de
mil anos dos santos com Cristo. Se, todavia, buscarmos considerações
ulteriores à preocupação cronológica, talvez possamos haurir novos
resultados do pano de fundo ezequiélico de Apocalipse 20.
Novamente, há uma iniciativa na ordem de combate: é o Dragão
que o inicia. Como em Ezequiel, os maus desígnios das forças inimigas
são convertidos em salvação para o povo de Deus e glória deste. Mas se
Israel, contra Gog de Magog, é nação indefesa, sem muralha e sem
capacidade de luta ou reação, convém notar que os vencedores aqui são
justamente aqueles que foram degolados por causa do testemunho de
Jesus e por causa da Palavra de Deus. Sua vitória é justamente não aderir
ao poder das bestas, não ter seu número e sua marca, mas carregar até o
fim a marca do Deus vivo. A certeza do bom êxito no combate não vem
pela força física, nem pela estratégia militar, mas pela constância e
perseverança na fidelidade a Deus. Com efeito, como Cristo venceu o
mal e a morte de um modo absolutamente inusitado, desde dentro, assim
também os cristãos veem a Morte e o Hades serem lançados no lago de
fogo e enxofre. Se os fiéis participam na primeira ressurreição, após
terem provado uma morte, há aqueles que, embora aparentassem estar
vivos porque atuavam na história e pareciam senhores desta, agora
provam uma morte pior do que aquela dos cristãos: a segunda morte, ou
seja, a condenação eterna.
Como aconteceu em Daniel e em Ezequiel, havia guerra contra os
santos. A multidão dos inimigos sitiava os cristãos, mas foi
repentinamente dizimada, e aqueles que permaneciam fiéis viram o
Reino de Deus chegar em um momento. De fato, bastou uma hora para a
condenação de Babilônia, foi necessário um só versículo 655 para
descrever o juízo sobre as bestas, e de modo abrupto há um fogo do céu
que devora os inimigos de Deus em Apocalipse 20, 9. Aliás, este
versículo é condizente com o aspecto sacrifical do banquete oferecido
por Deus no capítulo anterior656.

655
Ap 19, 20.
656
Os targumim Jerusalém e Jonathan para Nm 11, 26 trazem algo curioso
para a consideração sobre Gog e Magog. Em primeiro lugar, seu julgamento por
meio do fogo oriundo do Trono da Glória, além da vitória do Rei Messias sobre
estes. Todavia, o fato dessas considerações se alocarem nos comentários sobre
os dois escolhidos que receberam do espírito de Moisés e profetizaram fora do
acampamento traz uma aparência um tanto quanto insólita ao leitor
contemporâneo de Números. O fato de duas bestas combaterem contra
171

Diante dessas considerações, notemos o seguinte: a primeira


ressurreição ocorre no versículo 4, seguida, então, do reino de mil anos,
após o qual, de algum modo, as nações (que, se supõem, então, más, mas
sobreviventes a esses mil anos) são adversário que rodeia o povo de
Deus. A força do macarismo do versículo 6 não parece fortuita. Talvez
sejam suficientemente justificáveis as posturas que consideram os
batizados, todos, como reis e sacerdotes com Cristo. Suponhamos, por
um momento, que seja assim. Vejamos que todo cristão, lutando neste
mundo ou sabendo-se vencedor caso nele morra, na medida em que
permanece fiel, mesmo rodeado de forças que, guerreando, querem fazê-
lo perder-se (mais, aliás, do que fazê-lo perder a vida), se sentiria
reconfortado ao saber-se feliz por já reinar com Cristo, e ser para ele
participante de seu sacerdócio eterno, consumado na Cruz.

30 APOCALIPSE 21 – 22

O texto dos capítulos 21 e 22 é extenso e não tão homogêneo.


Todavia, sua divisão é controversa e, por isso, decidimos tratá-lo como
um todo, sem seccioná-lo em perícopes menores.
Trata-se de visões e descrições da Jerusalém Celeste. Há uma
nova criação657 e, do céu, desce a Cidade Santa 658. Seguem-se
manifestações oriundas do Trono659 e do próprio Deus660. Depois disso,
um dos anjos que tinham as sete taças da ira de Deus se aproxima e
transporta João a um monte para mostrar a cidade que descia do céu 661.

exatamente duas testemunhas que realizavam sua profecia na terra, fora do


ambiente da Sala do Trono – que fora inspirada na Tenda de Reunião, local da
reunião dos 68 anciãos de Nm 11, 24ss – talvez possa ser um indício revelador
de que João de Patmos conhecesse esse tipo de literatura judaica e nela se
inspirasse. Os textos dos targumim estão acessíveis em
https://www.sefaria.org/Numbers.11.26?lang=en&with=Targum&lang2=en.
657
Ap 21, 1.
658
Ap 21, 2.
659
Ap 21, 3s.
660
Ap 21, 5-8.
661
Ap 21, 9s.
172

A descrição é longa662, intercalada com uma medição pelo anjo 663 e de


textos que se aproximam muito de oráculos proféticos664.
A partir de Apocalipse 22, 6, o texto se apresenta um pouco
confuso. Falas são intercaladas, mas introduzidas por verbos com sujeito
oculto (Καὶ εἶπέν / λέγει μοι665), sendo este, contextualmente, o mesmo
anjo. Entrementes, tentativa de João em se prostrar diante de quem lhe
falava, com impedimento explícito por parte deste. O texto de
Apocalipse 22, 12-16 contém sentenças tácita ou manifestamente
atribuíveis a Cristo: ser o Alfa e o Ômega, vir em breve, um macarismo
e uma maldição e, enfim, a declaração patente “eu, Jesus” 666. Todavia,
não há marca alguma de interrupção entre as falas do anjo e as falas de
Jesus, deixando dúvidas sobre onde esta acontece. Isso causa certa
ambiguidade interpretativa, como observa Corsini 667, pois o mesmo Alfa
e Ômega epifânico do início do livro, que se sentava sobre o Trono de
Deus, e diante do qual os vinte e quatro anciãos se prostravam, este
mesmo ordena que João de Patmos não lhe preste culto. Acima 668,
adiantamos esta questão, e defendemos que o autor do Apocalipse
atestou a divindade de Jesus Cristo. Embora não tenhamos preocupação
com uma construção sobre a dogmática trinitária, não pudemos nos
eximir dessa discussão justamente por causa das dúvidas apresentadas
aqui669.

662
Ap 21, 10 – 22, 6.
663
Ap 21, 15-17.
664
Ap 21, 24-27; 22, 3-5.
665
Ap 22, 6.10.
666
Ap 21, 16.
667
CORSINI. op.cit, p. 392.
668
uide p. 63.
669
A título de ilustração, comparamos algumas traduções do Novo
Testamento. Algumas mantêm o texto continuamente, sem qualquer interrupção,
dando a entender que o anjo fala como sendo Jesus. Entre elas estão a Bíblia do
Peregrino, a Bíblia Ave Maria e a edição de 1967 da Bíblia de Jerusalém. A
Edição Paulinas teve uma postura semelhante, porém não idêntica: separar com
uma marcação de parágrafo, preservando, porém, o discurso todo em um único
bloco entre aspas. Outras traduções são mais decididas, fechando aspas após o
versículo 15, como a Nova Bíblia Pastoral, a tradução da Conferência Episcopal
Italiana, a New International Version, e a Bíblia de Jerusalém, em português e
em espanhol. Esta, aliás, além de separar com aspas, insere um subtítulo entre os
versículos 15 e 16. Caminho semelhante segue a Nova Tradução na Linguagem
de Hoje, da SBB, inserindo um parágrafo e marcando novo sujeito falante com
173

Seja como for, afora as duas maldições de Apocalipse 22, 18s, o


livro se encerra670 de maneira polifônica, com Jesus, o Espírito, a Igreja,
João e o ouvinte do livro proclamando e suplicando a vinda de Jesus
Cristo.
Ora, feitas essas considerações – que, se longas, necessárias – de
índole estrutural, passemos à busca do pano de fundo
veterotestamentário do texto. Este, aliás, muito extenso. Em termos de
sumarização, podemos elencar vários capítulos de Isaías, Ezequiel,
Zacarias, Êxodo etc. De fato, esses ecos são notados por muitos
comentadores, tais como Vanni671, Prigent672, Yarbro Collins673 e
Bauckham674, geralmente elencados como uma espécie de mosaico onde
se cumprem antigas profecias.
Façamos, portanto, um elenco destas:

Promessa Ap AT

Novo céu e nova terra 21, 1 Is 65, 17; 66, 22

Coabitação entre Deus e os homens 21, 3 Ez 37, 27

Presença de Deus/Emanuel 21, 3 Is 7, 14

Deus enxuga as lágrimas 21, 4 Is 25, 8

Não há mais morte 21, 4 Is 25, 5

Não há mais luto 21, 4 Is 35, 10

um travessão. A Bíblia TEB optou por manter o texto com grande paragrafação,
mas sem nenhuma interrupção adicional, e sem qualquer uso de aspas, deixando
a interpretação a cargo do leitor. O mesmo recurso usa a tradução Almeida
Revista e Corrigida. Há, ainda, quem separe o texto no versículo 12, inserindo
uma fórmula oracular em nome de Jesus. Tais fazem: a Nova Tradução na
Linguagem de Hoje e a Good News Translation.
670
Ap 22, 17-21.
671
VANNI. op.cit, pp. 81-5.
672
PRIGENT. op.cit, pp. 377-82.
673
COLLINS. Apocalipse, pp. 871-2.
674
BAUCKHAM. Revelation, pp. 1303-5, BAUCKHAM. The Theology…,
op.cit., pp. 132ss.
174

Promessa Ap AT

Benefícios gratuitos 21, 6 Is 55, 1

Filiação divina 21, 7 2Sm 7, 14

Jerusalém desposa-se com Deus 21, 9s Is 62, 5

Jerusalém brilha com a glória divina 21, 11 Is 60, 1s

Jerusalém construída preciosamente, com 21, 15ss Tb 13, 17


ouro, pérolas e pedras
Is 54, 11s

A luz já não vem dos dois luzeiros 21, 23 Is 60, 19s

Jerusalém é luz das nações 21, 24 Is 60, 3

Jerusalém sempre aberta 21, 25 Is 60, 11

Afluxo de riquezas das nações 21, 26 Is 60, 6.9

Virão somente aqueles que não praticaram 21, 27 Is 35, 8


idolatria
Is 52, 1

Juízo realizado por meio de um livro 21, 27 Dn 12, 1

Rio de água viva 22, 1 Ez 47, 1-12

10. Elementos comuns entre Ap 21 – 22 e textos


proféticos
Além de mostrar de modo claro que as promessas de Deus
continuam valendo e têm um cumprimento escatológico certo,
conquistado por Cristo, e destinado a todos os cristãos fiéis, outras
nuances podem ser hauridas dos textos citados. Por exemplo, o novo céu
e nova terra de Isaías estão relacionados com o tão extremado perdão de
Deus para os pecados que até mesmo sua lembrança é apagada 675. O
675
Literariamente, uma bela ocorrência de uma leitura desse texto está no
canto 33 do Purgatório, de Dante Alighieri. Ao passar pelo rio Letes, o pecador
175

problema do mal é finalmente resolvido, e tudo aquilo que outrora era


causa dos males de Israel está agora superado: morte, luto, invasões
estrangeiras, inadequação religiosa, infidelidade à Lei. Enfim, todas
essas eram consequências de uma visão idolátrica, agora definitivamente
superada. O mal do mundo foi exterminado com o extermínio do
Dragão. Se outrora aquele pecado cometido no jardim era razão para que
houvesse uma expulsão do paraíso676, o processo agora é inverso.
Esmagada a cabeça da serpente, já não há um querubim impedindo a
entrada na habitação de Deus. Ao contrário, aliás: há anjos sobre as
portas de Jerusalém, que permanece sempre aberta677.
O pecado das origens, generalizado, havia causado uma irrupção
do mar, instrumento de juízo, punição e, simultaneamente, purificação
da humanidade corrompida678. Agora o mar já não existe679. Além disso,
como aquela antiga terra já houvesse passado, a promessa de infindável
altercação de dia e noite tampouco faz sentido, e já não há noite 680.
Sendo assim, o coração do homem, desde a juventude inclinado para o
mal, como atestado por Deus a Noé 681, já não possui esse vício de raiz,
mas está liberto da influência da primitiva serpente, atirada no lago de
fogo.
Antes do pecado, o homem, em cuja face Deus soprara seu
hálito682, via, por conseguinte, a face de seu Deus. Escondido de sua face
por não ter ouvido a voz que lhe ordenara abster-se do fruto proibido 683,
passou a existência sem que pudesse retornar a vê-la 684. Agora, todavia,
essa consequência foi retirada, e a face de Deus é novamente acessível
àquele que dele fora feito imagem685.
Prosseguindo, ainda, a comparação dos textos do Apocalipse com
aqueles que propomos como seus interlocutores, encontramos Ezequiel

purgado esquece de todos os seus pecados para que nem mesmo haja a dor da
lembrança das culpas passadas.
676
Gn 3.
677
Ap 21, 12.
678
Gn 6, 1 – 9, 17.
679
Ap 21, 1.
680
Gn 8, 21s; Ap 21, 25; 22, 5.
681
Gn 8, 21.
682
Gn 2, 7.
683
Gn 3, 8.
684
Ex 33, 20.23; Jz 6, 22; 13, 20.
685
Ap 22, 4.
176

40 – 48. De fato, são elementos comuns: i) a cidade é brilhante; ii) sua


localização sobre um grande monte; iii) a apresentação por um anjo por
meio de um arrebatamento extático; iv) sua medição; v) a presença de
Deus na construção; vi) a ausência de construtores humanos. De fato, a
Jerusalém celeste é vista de acordo com as categorias do Novo Templo
de Ezequiel. Além desse texto também carregar consigo uma conotação
expiatória, uma vez que a glória de Deus efetua um movimento que é,
simultaneamente, de retorno e elevação para o povo de Deus 686, também
faz lembrar a outra situação em que fora referendado por João de
Patmos: a medição do capítulo 11687. Ora, àquela altura, apenas a parte
mais interna do santuário havia sido medida, sendo agora toda a cidade.
Evocando Ezequiel, percebemos que se trata de um novo Templo,
afirmação corroborada por se tratar da morada de Deus com os
homens688. De fato, na nova Jerusalém, não há templo porque a própria
realidade é um templo divino 689, e é constante a presença da divindade, o
Senhor e o Cordeiro.
Essa informação é inserida logo após a descrição das muralhas da
áurea e cúbica cidade. Uma vez que notarmos que também essa
minuciosa apresentação também seja oriunda do AT, como que
encaixaremos mais duas peças deste imbricado mosaico de alusões
intertextuais. De fato, ao notarmos que há o elenco de doze pedras
preciosas, podemos compará-las com aquelas das vestes do sumo
sacerdote690, como fazem Prigent691, Corsini692 e Beale693.
Na Torá, encontramos as seguintes pedras, nesta ordem: 1 –
σάρδιον, 2 – τοπάζιον, 3 – σμάραγδος, 4 – ἄνθραξ, 5 – σάπφειρος, 6 –
ἴασπις, 7 – λιγύριον, 8 – ἀχάτης, 9 – ἀμέθυστος, 10 – χρυσόλιθος, 11 –
βηρύλλιον, 12 – ὀνύχιον. Por sua vez, João de Patmos faz seu próprio
elenco deste modo: 1 – ἴασπις, 2 – σάπφιρος, 3 – χαλκηδών, 4 –
686
Retorno porque a glória que deixara o Templo em Ez 10, agora volta
novamente a seu lugar em Ez 43. Elevação porque embora seja uma construção
análoga à de Salomão, já não era aquela, mas uma versão muito mais
ornamentada, como que consumação daquele que havia sido destruído por
Babilônia.
687
uide p. 116.
688
Ap 21, 3.
689
Ap 21, 22.
690
Ex 28, 15ss.
691
PRIGENT. op.cit, p. 403.
692
CORSINI. op.cit, p. 379.
693
BEALE. Revelation, p. 486.
177

σμάραγδος, 5 – σαρδόνυξ, 6 – σάρδιον,7 – χρυσόλιθος, 8 – βήρυλλος, 9


– τοπάζιον, 10 – χρυσόπρασος, 11 – ὑάκινθος, 12 – ἀμέθυστος. Se
considerarmos, ainda, que o Targum Jerusalém694, para Ex 28, 18, em
lugar de ‫( ֹנֶפְך‬ἄνθραξ) traz ‫( ַּכְד ְּכָד ָנא‬χαλκηδών), bem como, no versículo
seguinte, para ‫( ֶלֶׁש ם‬λιγύριον), traz ‫( זֹוזּון‬ὑάκινθος)695, ainda que
tenhamos corrido risco de preciosismo, consideramos evidenciada uma
coincidência de 10/12, que muito dificilmente se poderia passar por
casualidade. Deste modo, com os autores acima citados, julgamos
argumento suficiente para justificar uma dependência literária. De fato,
também os nomes das doze tribos de Israel, inscritos sobre as portas da
cidade, fazem recordar o peitoral sacerdotal de Ex 28, 15ss. A partir
disso, haure-se a conclusão de que toda a cidade está revestida de sumo
sacerdócio. Sendo assim, aqueles mesmos que participavam da liturgia
celeste696, dela permanecem participantes, mas sem que sua realização
seja separada das realidades terrenas, agora transformadas em uma nova
criação. Ora, a cidade cúbica e toda dourada evoca por sua vez o Santo
dos Santos697, de forma semelhante e composto do mesmo material. Se
anteriormente somente o sumo sacerdote que, uma vez ao ano, adentrava
o Santo dos Santos698, percebemos que mantém-se a lei antiga e,
simultaneamente, admite-se cada um dos santos à participação do
mesmo sacerdócio que, como vimos, já habilitara os mártires a tomarem
parte no louvor celeste. O sacerdócio, agora universal e como que
cósmico, não é apenas funcional ou subsidiário, com o dos filhos de
Aarão, mas é o próprio sumo sacerdócio ocorrente no Santuário Celeste,
agora descido à terra. A Igreja, como um todo, é realidade sacerdotal e
acabam por ser superadas todas as barreiras entre sagrado e profano. De
fato, o próprio Santo dos Santos foi novamente medido 699, mas não há
nenhuma outra realidade a ser entregue aos pagãos.
Como consequência, o Trono de Deus e do Cordeiro está
localizado na própria cidade. De fato, o Cordeiro resgatou para Deus um
povo sacerdotal e régio700. A própria cidade é a Sala do Trono e,
694
Targum Jerusalém, Ex 28, 18. Disponível em: «https://www.sefaria.org/
Exodus.28?lang=bi&aliyot=0&p2=Targum_Jerusalem
%2C_Exodus.28&lang2=bi». Acessado em 12 jan. 2019.
695
PRIGENT. op.cit, pp. 402-3.
696
uide p. 98.
697
Este era cúbico e totalmente coberto de ouro, conforme 1Rs 6, 20.
698
Lv 16.
699
Ap 21, 15ss; 11, 1ss.
700
Ap 5, 9s.
178

curiosamente, o modo de entrada de João neste recinto, agora


gigantesco, é o mesmo: ἐν πνεύματι701.
Como em Ezequiel702, as margens do rio são arborizadas703.
Todavia, embora as semelhanças entre esses dois textos sejam grandes (a
localização das árvores à margem do rio, a menção às folhas e a
informação de que os frutos que surgem mensalmente), a árvore não é
indeterminada, mas apresentada taxativamente como τὸ ξύλον τῆς
ζωῆς704 (árvore de vida). Tal expressão não parece fortuita, mas é
oriunda univocamente de Gênesis 2, 9, quando do relato da inserção do
homem no paraíso terrestre. Outrora, como dissemos, sua expulsão se
deu por causa do pecado. Mas, como dissemos, vencida a Serpente,
novamente há o acesso àquele dom primeiro, de cujos frutos o homem
fora privado porque ingerindo-os viveria para sempre 705. Novamente, se
os querubins às portas do paraíso impediam a humanidade de adentrá-lo,
agora estão em suas portas, sempre abertas.
Convém ainda que façamos menção ao aspecto esponsal da
epifania dessa cidade. Ela é a noiva, mulher do Cordeiro 706. Ainda que o
termo γυνὴ possa indicar o ser humano do sexo feminino, bem como
aquela mulher com um homem comprometida, a confluência de
elementos comuns talvez possa fazer com que aquela mulher de
Apocalipse 12, que vimos ter pano de fundo no relato do pecado
original, também seja recorrente aqui. Ambas vêm do céu, mas agora já
não há mais guerra com o Dragão, já vencido. Agora, não mais a
humanidade pecadora está desnuda, mas resplendente e vestida de
sacerdócio, pode apresentar-se a seu Deus, sem mais necessidade de
fugir de seus passos no jardim.
Enfim, também a esperança dos cristãos que leem o livro é
anunciada em linguagem veterotestamentária. Aquele que vem
rapidamente707 retribuirá cada qual conforme suas obras. O texto de
Apocalipse 22, 12708 remete a Salmos 61, 13709. Contra toda a esperança

701
Ap 21, 10; 1, 10; 4, 2.
702
Ez 47.
703
Ap 22, 1s.
704
Ap 22, 2.14.
705
Gn 3, 22.
706
Ap 21, 9.
707
ταχύ, Ap 22, 12. Sobre isso, uide a expressão εν ταχει, à p. 57.
708
ἀποδοῦναι ἑκάστῳ ὡς τὸ ἔργον ἐστὶν αὐτοῦ.
709
ἀποδώσεις ἑκάστῳ κατὰ ἔργα αὐτοῦ.
179

humana, o salmista confessa sua total entrega a Deus, pois os homens


são apenas ilusão, enquanto Deus é capaz de dar-lhe a paz e a salvação.
Como consequência, a súplica confiante: ἔρχου κύριε Ἰησου710.

710
Ap 22, 20.
180

CAPÍTULO III
VISÃO DE CONJUNTO
EMERGENTE

STRO, Claudio. Painel da nave leste do Santuário de Aparecida. [s.d.], tinta sobre azulejos
DESCRIÇÃO: Painel da nave leste do Santuário de Aparecida

A cruz/trono de Deus é instrumento pelo qual é aberto o livro sete vezes selado por
parte do Cordeiro Imolado. Ele é o A e Ω que nos redimiu para Deus. Ele é o
cavaleiro do juízo escatológico.
CAPÍTULO III
VISÃO DE CONJUNTO EMERGENTE

Até o presente momento, o caminho percorrido passou por


informações genéricas sobre o Apocalipse de João, seu gênero literário e
o que se tem estudado acerca do seu uso do AT (capítulo I), para, em
seguida, munidos de tais ferramentas, perpassamos o texto todo do autor
de Patmos em busca dos ecos veterotestamentários e as consequências
hermenêuticas de sua consideração (capítulo II).
Fizemos esse esforço sem que nos detivéssemos em
considerações sobre a estrutura do livro ou os modos como João faz falar
os autores antigos porque pretendíamos que tais esforços fossem
executados apenas depois de uma análise o mais livre possível de
preconceitos oriundos de outras leituras do texto. Sendo assim, o que
pretendemos agora é, dada a visão que passamos a ter do Apocalipse,
tecer comentários sobre a obra como um todo, deixando que venham à
tona as informações que já obtivemos anteriormente, mas de modo
localizado.

1 MODO DE USO DO ANTIGO TESTAMENTO POR JOÃO

Ao longo do capítulo II, pudemos perceber que há dois modos de


uso da Escritura por João. Se é verdade há ocasiões em que seu texto
final ocorre em forma de um mosaico de citações 711, a verdade é que, no
mais das vezes, o que existe é o uso dos textos antigos como paradigma
para a composição de um novo, que com ele dialoga, mas que não o
repete712. Ou seja, o objetivo de João não é alicerçar-se na autoridade de
um outro, mas propor uma nova mensagem, inteiramente sua, mas que
carrega à baila uma carga conceitual e afetiva concernente a uma outra
situação.

711
Como ocorre em Ap 6, 12-17 (uide p. 89), Ap 19, 1-10 (uide p. 158), ou
Ap 21 – 22 (uide p. 171).
712
MOYISE. op.cit, p. 12.
183

Caray713, classificando os apocalipses em “primários” e


“secundários”, utiliza como critério de separação a origem da revelação.
Se esta é dada ao vidente de modo direto, o apocalipse é primário, mas
se é outro que a obtém e o autor dela se serve como fonte autorizada de
conteúdo descritivo ou parenético, então o apocalipse é secundário. Ora,
diferente de 2 Pedro 3, 10-12, que usa um dado já conhecido da
comunidade cristã para admoestá-la a um comportamento coerente, o
Apocalipse de João se coloca ele mesmo como fonte fidedigna de uma
revelação que, de outro modo, não seria dada ao leitor.
É coerente que, como nota Moyise714, João jamais utilize a
fórmula de citação para qualquer texto ao qual alude. De fato, seu
objetivo não é fundamentar-se em uma revelação anterior para, com ela,
autorizar-se a dizer o que diz. Ao contrário, vendo-se autorizado por
Cristo, usa das fontes antigas, separando-as do contexto em que foram
escritas, para dar-lhes uma nova significação.
Longe e propor apenas um florilégio, evoca personagens,
situações e textos antigos para compor um novo cenário, que carrega
consigo toda a carga afetiva do anterior, mas é realmente distinto. Não
pretende, assim, fornecer uma interpretação a determinados textos da
Escritura, mas usá-los para, a partir deles, compreender a realidade
circunstante. Sua preocupação, portanto, não é exegética, mas
existencial, eclesial e pastoral.
Com Beale715, reconhecemos que João se serve da Escritura com
criatividade. Por vezes, segmentos longos, sobretudo de Ezequiel e
Daniel são utilizados como protótipos do texto joanino. É o caso, por
exemplo, de Apocalipse 21 – 22, que faz uso extenso de Ezequiel 40 –
48, trazendo à mente do leitor a experiência da realização da promessa
antiga em uma forma nova e inaudita. Aquele que, vendo-se na situação
em que João de Patmos se encontrava, a encarasse com a esperança das
promessas por ele evocadas, poderia sentir-se comovido a reagir como
João reagia, perseverando até o final, pois o Sentado no Trono, sendo
senhor da história, construía um novo Templo, no qual brilharia a
mesma glória vista por Ezequiel716.
713
CARAY. Early Christian…, op.cit., p. 222.
714
MOYISE. op.cit, p. 14.
715
BEALE. John’s use…, op.cit., pp. 75ss.
716
Sobre a justeza dessa leitura, convém notar que é feita pelo autor das atas
do martírio de Perpétua e Felicidade. De fato, segundo o relato, Perpétua vê-se
conduzida por anjos à Sala do Trono descrita em Ap 4 – 5 e, vendo o triunfo dos
mártires, tem-se animada à perseverança na fé. uide Acta Ss. Perpetuae et
184

Consequentemente, entendemos que o texto de Patmos não


aparenta ter pretensões fortuitas ao fazer falar novamente, em novo
contexto, quem já dera respostas a perguntas anteriores. Newson 717
propõe que a literatura apocalíptica tenha menos interesse em buscar
evidências para sustentar o que diz, e mais em fazer evidente aquilo que
vê. Os estudos que temos conduzido até aqui parecem corroborar esta
tese, uma vez que, no Apocalipse de João, não há qualquer pretensão de
afirmar que os antigos profetas estivessem corretos, mas há, sim, a
preocupação em fornecer uma tal forma de ver a realidade circundante
que aqueles que estivessem prestes a perder o primeiro amor718, fossem
reanimados na fé para que sustentassem-na até mesmo diante da
possibilidade do martírio. A leitura do mundo e da sociedade são feitas a
partir das Escrituras e da fé cristã que há pouco nascera. Se é verdade
que o mal parece prosperar no mundo, também é verdade que o mesmo
Deus que se manifestou a Moisés no Sinai, mostrando-lhe a glória
celeste, também continua a manter-se fiel à sua promessa, tanto que, em
lugar dos sacrifícios que eram cópia dos louvores que o profeta deveria
ter presenciado quando da teofania fundante do povo judeu, o próprio
Deus oferece um novo Cordeiro, vencedor porque imolado, e que exerce
seu senhorio sobre o mundo e a história 719. O Leão de Judá, isto é, o
Cordeiro, já venceu, e associa a si a humanidade que permanece fiel
àquele Deus cuja fidelidade esteve constante.
A linguagem terrificante utilizada por João ganha contornos
consoladores, como é próprio da literatura apocalíptica de então 720. Não
à toa a manifestação do Sinai teve papel central no modo da descrição da
divindade que novamente se fazia ver em sua glória, tal que causou
desfalecimento do vidente721. As experiências que motivaram os
primeiros pais continuam válidas e capazes de fornecer razões para a
crença daqueles que seguem no mesmo caminho.
Dado que João dá significados novos às perícopes aludidas por
meio de uma grande liberdade contextual, mas com a preservação do
peso retórico que o simbolismo veterotestamentário carrega com sigo,

Felicitatis martyrium. – in: MIGNE, Jacques Paul Patrologiae Cursus


Completus: series latina. [S.l.]: [s.n.], v. 3, p. 41.
717
NEWSON. op.cit, p. 204.
718
Ap 2, 1ss.
719
Ap 5.
720
NEWSON. op.cit, p. 206.
721
Ap 1, 17.
185

consideramos lícito afirmar, como fez Caray 722, que o principal objetivo
do texto não seja a divulgação de uma informação, mas a comoção à
ação, fazendo, para isso, uso de sentimentos presentes no leitor e
espelhados no texto, que são, por isso, suscitados não somente do ponto
de vista patético, mas sobretudo com a apresentação de uma resposta
divina à ânsia comum de todos aqueles que têm acesso ao texto. Daí o
peso da linguagem simbólica, acentuado pelo fato de ser haurida de um
pano de fundo já considerado como inspirado e sagrado. Aliás, mais
ainda agora que o contato com a Sagrada Escritura se dá justamente por
meio de uma hierofania, acessível, aliás, somente a João.
Concluímos que a liberdade contextual permitiu a João uma
mobilização retórica potente e, de certo modo, muito criativa. Não
seguiu os autores que inseriram em autoridades do passado experiências
que dessem peso ao conteúdo que desejavam transmitir, como foi o caso
do Apocalipse de Enoque, nem tampouco construiu um edifício
argumentativo basilarmente alicerçado em outro. Antes disso, fez valer
uma nova fonte revelatória, mas apresentada em continuidade
ininterrupta com a anterior.
Em outras palavras. Não há coleção de dicta probantia, mas
reescrita com base não em frases isoladas que sejam vistas como
realizadas, mas em longos excertos ressignificados e atualizados.
Isso também explica os recortes utilizados por João para
descrever as realidades que pretendia. Se outros livros do Novo
Testamento, segundo Moyise723, tiveram a tendência de fazer uso
preponderante da Torá, seguida não tão proximamente pelos Salmos e
por Isaías, e apenas esporadicamente dos demais profetas ou outros
escritos, João, ainda que continue usando esses textos, ao modo como
indicamos, também dá grande atenção a Daniel, Ezequiel e os profetas
menores. E isso sem que haja uma distribuição compatível com
aleatoriedade, o que significa uso consciente de textos seletos.
Aparentemente, o critério de escolha joanino tampouco foi fortuito, uma
vez que o livro de Daniel, os trechos aludidos de Ezequiel, bem como as
profecias de Jeremias e Isaías referendadas, ou mesmo outros textos,
como Zacarias, têm um potencial bastante evidente de releitura
escatologizante. Aliás, grande parte do material utilizado por João
contém o sintagma ἐπ᾽ ἐσχάτων τῶν ἡμερῶν, com é o caso do

722
CARAY. Early Christian…, op.cit., p. 228.
723
MOYISE. op.cit, p. 15.
186

testamento de Jacó724, da profecia sobre Gog de Magog725, ou do livro de


Daniel726.
O leitor de João, sendo inserido em uma longa história, vista
como sagrada, pode ter confiança de que qualquer um dos sofrimentos
que suporte será meio da realização de uma definitiva soberania divina
no mundo.

2 UMA TENTATIVA DE ESTRUTURAÇÃO DO


APOCALIPSE

Um último assunto a ser tratado, e que somente aqui


consideramos oportuno, pois constitui uma consequência das premissas
que fizemos, e não um elemento inserido a priori em nosso estudo, é a
estrutura do Apocalipse de João. Passemos a uma tentativa que, não
tendo palavra final, e sendo uma entre tantas, nos parece, contudo,
coerente com o que até aqui pudemos haurir do texto de Patmos.
Prigent727, após comentar o livro todo do Apocalipse, reconhece
que o máximo que se pôde fazer até o momento foram tentativas de
realizar este empreendimento. Ainda que ele negue a total ausência de
consenso entre os comentadores, reconhece muito problemática a porção
Apocalipse 4, 1 – 22, 5, o que constitui mais de oitenta porcento do livro.
Sua postura é a de elencar pistas sobre as quais se tem certo
consenso. Estas, entretanto, nem sempre são conciliáveis. Por exemplo,
o paralelismo estrutural entre selos e trombetas e a teoria de que haja
inclusão destas no último daqueles aparentam contrariar-se. Sendo
assim, há concordância entre Prigent e Yarbro Collins728, segundo quem
há duas grandes visões sobre a estrutura do Apocalipse: uma mais linear,
e outra conhecida como da recapitulação.
Talvez um tanto ousadamente, gostaríamos de propor que emerge
da abordagem que fizemos um argumento sobre este último modo de

724
Gn 49.
725
Ez 38.
726
Dn 10, 14.
727
PRIGENT. op.cit, p. 431.
728
COLLINS, Adela Yarbro. The Book of Revelation. – in: COLLINS, The
Encyclopedia…, op.cit., cap. 11, p. 388.
187

entender a organização dos textos no Apocalipse de João, qual seja:


aquele apontado por Bauckham729, ou seja, o “terremoto escatológico”.
Segundo este último, os terremotos que ocorrem ao longo do
Apocalipse não são meramente ilustrativos, ou simplesmente um modo
de afirmar a presença divina. Ao contrário, como afirmamos, retomam a
teofania do Sinai, evento fundante do povo de Israel e já associado pelos
Cristãos com a manifestação de Cristo730.
Bauckham propõe que a linguagem teofânica do terremoto, da
tradição do Êxodo, tenha sido fundamental para plasmar o modo de
expressão profético e sálmico, até que tenha sido levada a um novo
patamar para a descrição do Dia de Javé. E não fortuitamente tenha sido
utilizada pelo autor de Patmos para a descrição de um último juízo
divino.
Notemos que o terremoto731 ocorre em pontos fulcrais do livro: a
transição do setenário dos selos para o setenário das trombetas 732,
imediatamente após o toque da última trombeta 733 e logo após a última
taça da ira de Deus734. Se forem suficientes os argumentos apresentados
por Beale, Corsini e Prigent735, que fazem identificações entre a sexta
taça da ira e as batalhas escatológicas dos capítulos 17 a 20, então
teríamos uma estrutura para o Apocalipse, qual seria:

Ap 1 Introdução e visão inicial


Ap 2 – 3 Exortações parenéticas e macarismos
Ap 4, 1 – 8, 5 Setenário dos selos
Ap 4 – 5 Visão da Sala do Trono

729
BAUCKHAM, Richard. The Eschatological Earthquake in the
Apocalypse of John. Novum Testamentum, Leiden, v. 19(3), pp. 224-233, julho
1977. Disponivel em: <https://www.jstor.org/stable/1560516>. Acesso em: 09
julho 2019.
730
Hb 12, 18ss.
731
A palavra σεισμὸς ocorre mais vezes no livro, mas as considerações de
Bauckham selecionam estas três passagens porque são aquelas nas quais é
acompanhado de ἀστραπαὶ καὶ φωναὶ καὶ βρονται. Ou seja, há a tétrade a que
nos referimos às pp. 120 e 144.
732
Ap 8, 5.
733
Ap 11, 19.
734
Ap 16, 18.
735
A saber: i) a conformidade entre narrativas e ii) pano de fundo comum.
uide as notas 652 e 654, à página Error: Reference source not found.
188

Ap 6, 1-8 Quatro primeiros selos


Ap 6, 9-11 Quinto selo
Ap 6, 12 – 7, 16 Sexto selo – Dia de Javé, Juízo divino
Ap 8, 1-5 Sétimo selo – Realização das promessas
Ap 8, 6 – 11, 19 Setenário das trombetas
Ap 8, 6-13 Quatro primeiras trombetas
Ap 9, 1-12 Quinta trombeta
Ap 9, 13 – 11, 13 Sexta trombeta – Juízo divino
Ap 11, 14-19 Sétima trombeta – Realização das promessas
Ap 12 – 20 Setenário das taças
Ap 12, 1 – 14, 5 Apresentação dos personagens
Ap 14, 6-20 Promessa de julgamento
Ap 15 – 16 Realização do julgamento
Ap 17 – 20 Pormenorização do julgamento
Ap 21 – 22 Desfecho comum

11. Esboço da estrutura do Apocalipse de


João

Para efetivar tal estruturação, tomamos como base as seguintes


premissas, que cremos justificadas ao longo do texto: i) Apocalipse 2 – 3
constituem um bloco razoavelmente separado, o que se sustenta pela
diferença estrutural, semântica, de gênero, e porque, embora esse trecho
tenha muitas alusões ao livro todo, sua ausência simplesmente não seria
notada736; ii) Apocalipse 1 é uma visão introdutória do livro todo737; iii) o
terremoto escatológico descrito por Bauckham é uma marca estrutural
importante e é baseado na teofania do Sinai 738; iv) há forte paralelismo
entre trombetas e taças739; v) a sexta trombeta e a sexta taças são
descritas segundo as expectativas para o Dia de Javé 740; vi) Apocalipse
17 – 20 são descrições do juízo e da batalha escatológica da sexta taça741.

736
uide p. 70.
737
uide pp. 55ss.
738
uide p. 187.
739
uide a nota de rodapé 403. Estruturalmente, ainda elencamos ambas as
seções apresentam a seguinte estrutura: quatro selos/trombetas breves, dois
selos/trombetas longos, duas cenas intermediárias e um último selo/trombeta
cuja execução surpreende por ser abrupta.
740
uide pp. 92 e 139.
189

Sem que pretendamos, pelo escopo do trabalho, grande precisão


nos recortes textuais; e sem que tenhamos a esperança de dar última
palavra sobre qualquer discussão que seja; notamos, todavia,
conformidade entre as suposições i) de que o Apocalipse de João tenha
como elemento chave as alusões veterotestamentárias e ii) de que uma
possível hermenêutica do Apocalipse seja aquela oriunda da tese da
recapitulação.
Em contrário a tal estruturação, elencaríamos a aparente inclusão
das trombetas no último selo, pois, de fato, quando o selo é aberto, as
trombetas tocam e o desígnio de Deus, até então aguardado, começa sua
realização. Todavia, essa consideração pode ser um elemento a ser
analisado cuidadosamente, e não tão somente um argumento em
contrário à proposta da teoria da recapitulação, já muito antiga.
Mesmo que consideremos que a série das trombetas seja resposta
à oração dos santos, descrita no setenário dos selos, parece-nos que a
consequência dessa premissa seja que os próprios males descritos no
primeiro setenário já fossem, a seu modo, uma realização dos desígnios
de Deus. Antes mesmo que seu povo lhe dirigisse súplicas sobre o juízo,
o Sentado no Trono e o Cordeiro já se pronunciaram, e iniciaram a
derrocada final das estruturas de pecado do mundo.
Deste modo, uma leitura panorâmica do livro todo poderia ser
feita da seguinte forma.
Jesus Cristo, porque morto e ressuscitado742, não somente veio
uma vez na fraqueza humana ao encontro da humanidade, mas
permanece com ela em cada vez que se reúne no Dia do Senhor. Como
consequência, a humanidade redimida é admitida à presença de Deus,
participando como nação de sacerdotes e reis da liturgia celeste 743. Parte
dessa liturgia é a súplica para que tais realidades sejam definitivamente
realizadas no mundo e na história, mas isso está acessível somente a
Deus e a quem ele quiser revelar 744. Felizmente, o Cordeiro, o Leão de
Judá, tendo vencido a morte, revela também à humanidade que toda a
história se passa sob o vigilante olhar de Deus, e se encontra eternamente
submissa a seus desígnios, agora desselados, porque a Cruz e a
Ressurreição são chave interpretativa da caminhada da humanidade no
mundo, entre dores e lutas. Estas, contidas no desígnio de redenção de
741
Novamente, uide as notas 652 e 654, à página Error: Reference source
not found.
742
Ap 1.
743
Ap 4 – 5.
744
Ap 5.
190

Deus, são realização do juízo definitivo 745, operado em favor daqueles


que suplicam pela sua salvação. Tal juízo não é feito à revelia, mas com
distinção entre aqueles que colocam sua confiança em Deus – e, por isso,
carregam em sua fronte o Selo de Deus – e aqueles que confiam em
realidades caducas – carregando o selo da besta 746. Ao final, entende-se
que se trata de um grande drama de proporções cósmicas, no qual a
humanidade se encontra em luta contra potências que querem causar-lhe
dano. Tendo, entretanto, forças para resistir, ela engaja-se em uma luta já
vencida pelo Cordeiro747. Esta vitória se realiza definitivamente com a
implantação de um Reino Definitivo, com a chegada à terra da Jerusalém
Celeste, na qual todo choro será enxugado, e na qual já não haverá dor
ou morte. É um mundo inteiramente novo748, do qual participarão
aqueles que, pela fé, viverem as bem-aventuranças dos conselhos
parenéticos indicados pelo próprio Cristo749.
Tendo elencado as premissas sobre as quais nos sustentamos, o
possível argumento em contrário que considerávamos, e as
consequências interpretativas de tal estrutura, passemos ainda a elencar
ainda um outro argumento favorável a esta: alguns verbos são
conjugados em tempos significativos ao longo do livro. Por exemplo, em
Apocalipse 6, 17, o aoristo750 ἦλθεν referindo-se ao Grande dia da Ira
(ὅτι ἦλθεν ἡ ἡμέρα ἡ μεγάλη τῆς ὀργῆς) resulta lúcido e claro, uma vez
que já nesta altura do livro o juízo definitivo está de fato realizado. O
mesmo se diz da realização do tempo escatológico de Daniel em
Apocalipse 11, 11, seguida da clara atestação de que o Reino do Senhor
se encontra efetivado, no v. 15 (ἐγένετο ἡ βασιλεία τοῦ κόσμου τοῦ
κυρίου ἡμῶν). Bem como da voz oriunda do Trono em Apocalipse 16,
17, e que atesta que sua obra se encontra, já, realizada (γέγονεν).
Sendo assim, concluímos que seja proponível a estrutura esboçada
acima. Esta se nos afigura como sendo razoavelmente abrangente e
elucidativa.

745
Ap 6, 1 – 8, 5.
746
Ap 8, 6 – 11, 19.
747
Ap 12 – 20.
748
Ap 21 – 22.
749
Ap 2 – 3.
750
Embora o aoristo grego tenha uma conotação aspectual, mais que
cronológica, em todos os casos referidos aqui o aumento temporal dá a entender
que se trata de evento já realizado
191
CONCLUSÃO

STRO, Claudio. Nicho da imagem do Santuário de Aparecida. [s.d.], escultura em metal


DESCRIÇÃO: Nicho da imagem do Santuário de Aparecida

A comunidade dos fiéis, Esposa do Cordeiro, e o Espírito suplicam continuamente:


“Vem, Senhor Jesus”. Ela, a humanidade redimida, coroada de estrelas, vestida de
Sol e tendo sob si a Lua, tem um ícone: Maria.
CONCLUSÃO

Cada obra literária, antes de pertencer a um gênero, dele participa.


Embora pareça preciosismo, essa distinção que agora fazemos nos ajuda
a entender que, ainda que o Apocalipse de João seja, autenticamente, um
apocalipse, tem características próprias que o individualizam dos demais
textos correlatos. Dentre essas, certamente, está o forte e sui modo uso
do AT.
Isso não se dá de modo fortuita ou despropositadamente. Pelo
contrário, acontece – nós propomos – por razões bastante genuínas:
persuadir a comunidade ouvinte a uma determinada forma de encarar a
realidade presente a si. Se é verdade que há sofrimento e que a Igreja
trava sério combate contra as forças que se lhe opõem – sejam estas a
perseguição aberta ou meramente a sedução das idolatrias correntes –
também é verdade que Deus de antemão concebeu seu desígnio
salvífico, e que, atendendo às orações dos santos, desde já coloca em
andamento o projeto de instalação de um mundo novo, feito em reino de
sacerdotes.
Embora atraente a proposta de cosmovisão, sabemos não ser fácil
convencer-se de tal esperança salvadora. Talvez mesmo impossível, a
não ser por um contato direto com uma realidade que transcende o ser
humano, e se comunica de modo simultaneamente objetivo e subjetivo.
Objetivo porque real, partilhável, comunitária, codificável em
linguagem. Subjetivo porque pessoal, ulterior a toda experiência mas
dela dependente, tocante até o mais íntimo, no profundo da alma. Sendo
assim, nada mais natural que essa aproximação do eterno se dê,
simultaneamente, em linguagem bíblica e apocalíptica.
Como apocalipse, o escrito de Patmos guarda uma posição de
afável autoridade, pois seu autor é colocado no nível dos leitores,
coirmão e conservo, partilhante dos sofrimentos suportados por Cristo.
A experiência que teve, embora sua, é partilhada com toda uma
assembleia ouvinte por meio de uma forte identificação entre autor e
audiência. Por outro lado, sendo o único que teve acesso direto a tal
epifania, lidera a comunidade em um caminho místico capaz de
ressignificar sua existência sofredora.
Não tanto – embora não neguemos – como texto sagrado, mas
sobretudo por meio do recurso às Escrituras, consegue recolher um
195

cabedal oceânico de experiências sobrenaturais gravadas no coração de


seus interlocutores. Ao saber que cada uma daquelas experiências de
outrora se faz atual na tangibilidade do momento presente, aquele que
ouve as profecias do livro passa a ter uma outra visão, de um outro ponto
de vista, de todo o mundo que o cerca. João, reiteramos, não busca
evidências, mas busca tornar evidente, por meio de uma imersão
completa na mentalidade e linguagem escriturísticas, que Deus tem o
controle integral de tudo quanto acontece, e nada escapa de seu olhar.
Onisciente e onipotente, consegue abarcar até mesmo o mal e o
sofrimento do justo como via purificadora do mundo criado, instrumento
de juízo, transformando-o em ocasião do testemunho de Jesus Cristo, ou
seja, em possibilidade da manifestação da glória de Deus. Esse mesmo
testemunho transporta o sofredor para o sacerdócio régio de Cristo, pois
é o mesmo que outrora foi dado por Jesus Cristo, testemunha do amor de
seu Pai. O Cordeiro é pastor, e leva os seus a uma batalha já vencida,
mas que passa pela doação total da vida.
Não sem razão, sua descrição é de um vívido colorido, e de uma
riqueza impressionante de detalhes, capazes de capturar a atenção e a
curiosidade, mas também de comover à ação, à perseverança até o fim,
fazendo com que o pathos da assembleia ouvinte seja convertido em
coragem e força. A comunidade é animada na fé e, por isso, consegue
antever na sua história o louvor celeste que está para além de toda
experiência cronologicamente contingente. O fiel ouve no já – mesmo
que ainda não – o cântico eterno dos querubins que rodeiam o trono, e a
eles se associa, glorificando aquele que vive pelos séculos, e que faz
viver porque, humano, imolou-se.
O culto sacrifical ganha um novo significado. Não somente Cristo
ofereceu-se em sacrifício para, por meio de seu sangue, entrar no
Santuário Eterno – construído pelas próprias mãos de Deus, como
cantara Israel recém saído do Egito – como também carrega consigo toda
a humanidade, não nas costas, mas a partir do coração. De fato, o
sofrimento redentor do Leão de Judá é participado corredentoramente
por todos aqueles cujas almas se encontram sob o altar do sacrifício. Ele
é, sim, sacerdote e cordeiro, mas também faz de cada fiel partícipe do
mesmo sacerdócio e do mesmo sacrifício. Agradáveis ao Pai, os fiéis
todos podem participar da liturgia de adoração que plenifica todo aquele
que nela adentra.
Cronologicamente, há urgência. A todo momento, pois vivemos
mais de dois milênios de últimos dias. Se a redenção já se realizou, a
pressa do cristão deve ser para que possa também ele elevar sua voz no
196

coro eterno, por meio de um sacrifício continuamente oferecido em sua


vida. Sem que pretendamos – de modo algum – negar a parusia e a vinda
definitiva, percebemos que sua atuação presente na tensão escatológica
faz com que o fiel não se converta por medo do castigo, mas porque é
honrado pelo acesso à própria Sala do Trono. De fato, o autor de
Hebreus tem razão ao dizer que nos aproximamos da Jerusalém Celeste,
do coro dos anjos, do sangue de um sacrifício mais eloquente que o de
Abel. Eloquência esta partilhada também pelo sangue de suas
testemunhas, que, como ele, se oferecem a Deus e clamam pela vinda do
reinado da justiça.
Cada ser humano, ao defrontar-se com tão grande mistério, chora
inconsolavelmente. Até que recebe a notícia da vitória do Leão de Judá,
que triunfou por seu sangue. Então a janela da história se abre e se
escancara, aos olhos não somente do Cordeiro, mas também daquele que
é admitido a sua presença. Mesmo que sob o véu do simbolismo, é
acessível àquele que recebe a visão desta revelação (João, e os felizes
ouvintes de sua profecia) o sentido último da história, performada pela
atenção de Deus a seus santos, que recebem vestes litúrgicas e não ficam
para sempre desolados. Seu sangue clama, mas nenhum deles jamais
geme.
A própria realidade é transformada por esse poder orante, ainda
que de tal modo inauditamente, que até mesmo os próprios santos
somente podem ter intelecção disso por meio da oração. É entrando
também eles na Tenda de Reunião, o Santuário Celeste, que podem,
como Moisés, ter o rosto transfigurado e enxergar para além do véu.
Percebem, então, que mesmo que venham escorpiões poderosos, sua
aflição nada mais é que a derrocada das estruturas idolátricas que se
sustentam em injustiças. Como em Daniel, as bestas deste mundo
emergem da água e não têm sustentação. Mesmo que brilhem como
ouro, seus pés são de barro. E a grande Pedra, oriunda e movida pelo
poder de Deus, já esmigalhou as bases de toda idolatria. A besta sabe
que tem pouco tempo. Por isso, também ela resiste à descendência fiel
da humanidade redimida. Os fiéis sofrem por sua mãe, a Igreja.
O testemunho que dão provoca. As reações não são das melhores.
Mas Deus é fiel, eleva suas testemunhas à condição do divino convívio.
Recebem a recompensa pelas suas obras, e descansam porque sua
caridade imortal os acompanha. Quem geme é o mundo, abalado pela
cólera salvífica de Deus. É chegada a hora da colheita e da vindima por
parte daquele Leão que lavara suas vestes no sangue das uvas.
197

Enfim, aquele paraíso do qual fora excluído o homem novamente


se abre. Como dissera o poeta, o sangue do Cordeiro apagou a espada
flamejante do querubim. Este, agora, continua postado à entrada do
Éden, mas não mais para bloqueá-la e sim para que não mais se feche. A
Árvore da Vida agora é o Trono de Deus, que jorra água viva. Seu fruto
é tal que confere a imortalidade. Sem grande exagero, identificamo-lo
como sendo aquele pão vivo descido do céu, do qual quem come não
morre. A glória de Deus brilha sobre a humanidade, ele sobre nós volve
seu olhar e nos dá a sua paz. Enfim, não somente rasgou-se o véu do
Templo, como todos nele penetramos, e ele agora abrange toda a
universalidade cósmica. Cristo, Templo Definitivo, agora é tudo em
todos.

Seja-nos escusada a tentativa de lirismo, e permita-nos o leitor


encerrar este trabalho por meio de duas considerações de ordem mais
técnica.
A primeira é que João de Patmos é hábil cosedor de profecias. E
as tece com um único filigrana: a Páscoa de Cristo. É este o
acontecimento definitivo que, abrindo o livro selado, desvela toda a
significação profunda da história, aberta no tempo e no espaço. Tudo
que antes se dissera sobre a benevolente vontade salvífica de Deus se
elucida em Cristo. E, além disso, faz elucidar o mundo, que já não mais
é mistério, porque há a Revelação de Jesus Cristo.
A segunda sintetiza epistemologicamente o percurso que
realizamos. Partindo do dado de que João utilize o AT de modo mais
original e intenso do que o que esperaríamos para um livro rotulado
como apocalipse, supusemos que este fosse um meio importante de
compreensão do simbolismo nele contido. Partindo dessa premissa,
verificamos se hauriríamos dela uma hermenêutica consistente. Então,
voltando ao texto, aplicamo-la e percebemos que carrega consigo certa
abrangência e concisão. Sob certo aspecto, agimos popperianamente,
pois fixamos um modelo axiomaticamente simples (capítulo I), o
desenvolvemos (capítulo II) e, em seguida, o colocamos a certa prova
(capítulo III). O que obtivemos não contradiz o que outros anteriormente
falaram, sobretudo quando da atribuição de certos símbolos a
personagens históricos. Todavia, também por nossa imperícia na
profundidade da ciência historiográfica, abstivemo-nos dessa questão
para haurir do texto um outro sentido, talvez ulterior, talvez aquém
deste.
198

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VANNI, Hugo. Apocalipse. São Paulo: Edições Paulinas, 1979.
ZENGER, Erich. O livro dos Doze Profetas. In: AA.VV. Introdução ao
Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003. cap. VIII, pp. 460-
540.

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